a expressÃo da religiosidade em cantigas de louvor… · ficavam limitadas às horas diurnas, a...

12
1 A EXPRESSÃO DA RELIGIOSIDADE EM CANTIGAS DE LOUVOR, DE DOM AFONSO X doi: 10.4025/XIIjeam2013.oliveira.cortez35 OLIVEIRA, Keila Mara Fraga Ramos de CORTEZ, Clarice Zamonaro O feudalismo é constituído basicamente por concessões de terras e a vassalagem de seus beneficiários, em outras palavras, o “relacionamento contratual e a aliança de lealdade, o sistema de serviço e obrigação mútuos, o princípio de fidelidade mútua e lealdade pessoal, que tomam agora o lugar do antigo sistema de subordinação,” o estudioso Hauser (1998, p.180) argumenta que o “título de posse feudal, no início meramente um usufruto concedido por um limitado período de tempo, converteu-se no século IX em título permanente e hereditário.” O início da Idade Média é marcada por um período sem moeda e sem comércio, em que a propriedade fundiária é a única fonte de renda e a única forma de riqueza. Esta ruralização da cultura começou no final da época clássica e nesse momento a economia é inteiramente agrária em que a vida tornou-se absolutamente rural. As cidades perderam o poder de atração, a maioria da população está limitada a povoações pequenas. Para o estudioso Hauser (1998, p.181) a unidade econômica e social, onde tudo está agora organizado, é o solar ou casa senhorial; as pessoas veem-se forçadas a tornar-se independentes do mundo exterior e a renunciar à aquisição dos produtos de terceiros, assim como à venda dos seus bens produzidos. Desenvolve-se uma situação em que quase não existe incentivo para produzir bens que excedam as próprias necessidades de cada um, essa sociedade baseada na economia familiar absolutamente autossuficiente da Idade Média provou ser insustentável. Mas, nada era rígido, havia em pequena escala, compra e venda de produtos de bens de consumo mas, estava ausente a ideia de lucratividade. O escritor Hauser (1998, p.182) nos explica que as classes sociais dessa sociedade eram vistas como ordenação divina, e por esse motivo “era quase impossível ascender de uma classe para uma outra; qualquer tentativa de desprezar as fronteiras entre elas é equivalente a uma rebelião contra a vontade de Deus para o homem.” As classes médias, que estão satisfeitas e seguras, se esforçam por competir em prestígio com a nobreza e para assim, imitar o modo de vida aristocrático; a nobreza, por outro lado, também procura

Upload: dangkhue

Post on 30-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

A EXPRESSÃO DA RELIGIOSIDADE EM CANTIGAS DE LOUVOR,

DE DOM AFONSO X doi: 10.4025/XIIjeam2013.oliveira.cortez35

OLIVEIRA, Keila Mara Fraga Ramos de

CORTEZ, Clarice Zamonaro

O feudalismo é constituído basicamente por concessões de terras e a vassalagem de

seus beneficiários, em outras palavras, o “relacionamento contratual e a aliança de

lealdade, o sistema de serviço e obrigação mútuos, o princípio de fidelidade mútua e

lealdade pessoal, que tomam agora o lugar do antigo sistema de subordinação,” o estudioso

Hauser (1998, p.180) argumenta que o “título de posse feudal, no início meramente um

usufruto concedido por um limitado período de tempo, converteu-se no século IX em título

permanente e hereditário.”

O início da Idade Média é marcada por um período sem moeda e sem comércio,

em que a propriedade fundiária é a única fonte de renda e a única forma de riqueza. Esta

ruralização da cultura começou no final da época clássica e nesse momento a economia é

inteiramente agrária em que a vida tornou-se absolutamente rural. As cidades perderam o

poder de atração, a maioria da população está limitada a povoações pequenas. Para o

estudioso Hauser (1998, p.181) a unidade econômica e social, onde tudo está agora

organizado, é o solar ou casa senhorial; as pessoas veem-se forçadas a tornar-se

independentes do mundo exterior e a renunciar à aquisição dos produtos de terceiros, assim

como à venda dos seus bens produzidos. Desenvolve-se uma situação em que quase não existe incentivo para produzir bens que excedam as

próprias necessidades de cada um, essa sociedade baseada na economia familiar absolutamente

autossuficiente da Idade Média provou ser insustentável. Mas, nada era rígido, havia em pequena escala,

compra e venda de produtos de bens de consumo mas, estava ausente a ideia de lucratividade. O escritor

Hauser (1998, p.182) nos explica que as classes sociais dessa sociedade eram vistas como ordenação divina,

e por esse motivo “era quase impossível ascender de uma classe para uma outra; qualquer tentativa de

desprezar as fronteiras entre elas é equivalente a uma rebelião contra a vontade de Deus para o homem.”

As classes médias, que estão satisfeitas e seguras, se esforçam por competir em prestígio com a

nobreza e para assim, imitar o modo de vida aristocrático; a nobreza, por outro lado, também procura

2

adaptar-se ao espírito de ambição de lucro e às concepções racionalistas das classes médias, nos mostra

Hauser (1998, p.258) com esses acontecimentos houve um “nivelamento da sociedade, de um lado, a

ascensão das classes médias e, do outro, o declínio da aristocracia.” Há então um distanciamento entre as

camadas sociais da sociedade que “tornam-se cada vez mais irreconciliáveis, a aversão do cavaleiro pobre

para com o burguês rico converte-se numa barreira insuperável, e o conflito entre o trabalhador privado de

direitos civis e o mestre privilegiado é impossível de solucionar.”

Com a transição de economia natural para a monetária, a nobreza mais ou menos independente torna-se a clientela dos monarcas soberanos. Tornando os feudos em propriedades arrendadas ou fazendas cultivadas por agricultores livres. (HAUSER, 1998, P. 259)

Em meados do século XII, na época em que Portugal se constitui independente, encerra-se na

Europa Ocidental o período em que a economia, a sociedade, a vida política e a cultura estiveram dominadas

pela economia rural de auto subsistência. Lopes (1998, p.37) cita que “há um novo surto mercantil: em face

dos castelos, sobranceiros aos domínios senhoriais, brotam as vilas e cidades povoadas de burgueses”. Os

produtos da terra começam a ser lançados e procurados nos mercados pela gente citadina. Além dos trabalhos

ligados a produção rural há também novas classes sociais como os pequenos proprietários e os rendeiros

livres.

Os conceitos que possuímos em nossa sociedade hoje começaram na Idade Média como: “a

igualdade das mulheres, direitos e dignidade do trabalho, conveniência da instrução, leis iguais, direitos e

responsabilidades do indivíduo na sociedade”, apontando o começo de “várias instituições básicas, ideias,

valores e modos de vida” da civilização Europeia, explica Bark (1966, p.12-15).

Alguns fatores são relevantes para o processo que passa esse momento da história, o estudioso

Hauser (1998, p.123) salienta que acontecimentos como o surgimento da cavalaria aristocrática, a mudança

da economia natural para a economia monetária urbana, o despertar da sensibilidade lírica, a ascensão do

naturalismo gótico, a emancipação da burguesia e o começo do capitalismo moderno são importantes para

explicar a moderna concepção de vida.

A cultura intelectual da época era monopólio da Igreja, a educação era feita de

clérigos para clérigos, devido às necessidades do culto e em função desse clima social o

conhecimento ficou limitado em seu desenvolvimento. O referencial do homem medieval

era o sagrado e este era habituado a conviver sob o signo do sobrenatural. O tempo era

rigidamente dividido entre dia e noite, sem luz artificial suficiente, as atividades humanas

ficavam limitadas às horas diurnas, a noite era o momento desconhecido, portanto,

assustador para o homem medieval. Os mosteiros como os castelos e as cidadelas eram

construídos em lugares fortificados contra assaltos do mal, às vezes, nas montanhas,

simbolizando o isolamento, ascensão. No entanto, como nos castelos, os mosteiros atraiam

para si as riquezas da região, pois os camponeses como Duby (1988, p.23) esclarece

3

“entregam de bom grado tudo o que possuem, porque temem a morte, o julgamento, e os

monges os protegem contra os piores perigos: aqueles que não se veem”. A sociedade era

basicamente agrária e a Igreja era a maior possuidora de terras, sendo assim, ela

controlava as manifestações mais íntimas da vida dos indivíduos: sua consciência através da confissão, sua vida sexual através do casamento, seu tempo através do calendário litúrgico, seu conhecimento através do controle sobre as artes, as festas, o pensamento, seu domínio sobre a própria vida e a própria morte através dos sacramentos só se nasce verdadeiramente com o batismo, só se tem o descanso eterno no solo sagrado do cemitério. (FRANCO, 1986, p. 71)

O casamento é indicado pelos bispos para os leigos para “melhor controlá-los,

enquadrá-los, represar lhes a devassidão,” nos esclarece Duby (2011p. 46).

Com esta breve introdução sobre o período medieval será abordado a religiosidade

na Idade Média, com uma pesquisa que se derivou tanto de referenciais históricos como de

literários. Deste modo, apoiamo-nos nas teorias de Le Goff, Duby, Spina, bem como nas

Cantigas de Santa Maria de autoria de Afonso X, as quais possibilitaram efetuar uma

leitura sobre a religiosidade e a exaltação da mulher na Idade Média, se constituindo em

traçar o perfil feminino como resultado de uma leitura das diferentes situações da mulher

medieval: louvada e sublimada (comparada à figura da Virgem) em exemplares de

Cantigas de Santa Maria, de autoria de D. Afonso X, em que a Virgem é louvada acima de

todas as mulheres, pois só ela pode segundo o trovador pode salvar o homem.

Na França no século XII as mulheres eram chamadas de damas, porque eram

desposadas por um senhor. Essas damas de tempos longínquos não possuem "nem rosto

nem corpo,” segundo Duby (1995, p.5 e p.6), elas "nunca passarão de sombras imprecisas,

sem contorno, sem profundidade, sem voz".

Essas mulheres eram representadas simbolicamente por homens que, na sua maior

parte eram eclesiásticos. Essas damas “sabiam escrever, talvez melhor do que os

cavaleiros, seus maridos ou irmãos, no entanto nada aparece de feminino, a não ser através

do olhar dos homens”, salienta Duby (1995, p.7 e p. 8).

Os homens controlavam o tempo das mulheres e lhes conferiam ao longo da vida,

três estados sucessivos: “filhas, necessariamente virgens; esposas, necessariamente

obrigadas à cópula, porque a sua função é trazer ao mundo os seus herdeiros; viúvas,

necessariamente devolvidas à continência,” Duby ilustra (1995, p. 156) que em todos esses

4

períodos elas eram obrigadas a se subordinarem aos homens. No entanto, esses mesmos

homens do século XII temiam as mulheres, que não se deixavam dominar facilmente e,

consequentemente, os homens julgavam-nas ruins. Segundo Duby (1995, p.156) “sendo

elas teimosas, eles achavam-se no dever de adestrá-las, de domá-las, de guiá-las, assim os

homens julgavam-se responsáveis pela conduta das mulheres." Desta forma, os homens

adquiriram o direito de punir os pecados femininos, ou até mesmo de matá-las, caso fosse

preciso. Na maioria das vezes, elas eram colocadas em regime severo de prisão. Desta

forma, o amor não é definição de casamento, pois nesse período é proibido ao esposo e

esposa amarem-se mutuamente.

Para a mulher era reservada a função de procriadora. Le Goff (2005, p.285) explica

que ela também teve um papel importante na economia, pois na classe camponesa seu

trabalho era quase igual ao dos homens, não sendo apenas uma produtora, mas uma

transformadora da matéria prima produzida. Mesmo as mulheres de classe superior

possuíam sua atividade econômica importante, ficavam à “frente dos gineceus” para

atender as necessidades vestimentárias do senhor e de seus companheiros. Podemos

destacar que muitas mulheres, “rompendo as disposições dos costumes, exerceram os

direitos de um senhor feudal.” Sendo assim, cumpriam suas funções como verdadeiras

líderes, com pouco ou muito, de acordo com a extensão dos domínios que possuía, sendo

“viúvas, eram tutoras dos filhos menores.” (MACEDO, 1999, p.31)

Le Goff (2005, p. 285) elucida que nos séculos XII e XIII o Cristianismo promove

a mulher, (o culto da Virgem Maria) ocorrendo uma mudança de rumo na espiritualidade

cristã. O que se difundiu e se acreditou foi que no livro de Efésios, Paulo declara que “o

homem é o chefe da mulher”. No entanto, neste período se começa a enfatizar a remição da

mulher que pecava, trocando “por Maria a nova Eva,” essa situação traz uma “melhoria da

situação da mulher na sociedade”.

O papel da mulher foi elevado indiscutivelmente pelo cristianismo, fazendo-a,

teoricamente, igual ao homem. A situação da mulher “tinha sido precária na remota Idade

Média, pois estava exposta ao misoginismo dos autores eclesiásticos e às brutalidades dos

homens a quem pertencia.” A mulher de condição nobre podia refugiar-se num convento.

Assim ficava livre da lavoura ou dos pesados trabalhos corporais, buscando nas letras um

consolo contra as “tentações da carne” (LAPA, 1973, p. 10).

O início da história literária da moderna Europa foi escrito, no curso do século XII,

5

pelos trovadores da Provença. “Surge então uma poesia que é fonte de todo lirismo

europeu dos próximos séculos e de grande importância, foi o século de ouro da literatura

medieval e do grande renascimento da França no século XII.” (SPINA, 1996, p.17)

A poesia trovadoresca e o culto mariano são contemporâneos. Lapa (1973, p. 23)

explica que antes do “século XII já existia, senão um sistema de mística mariana, pelo

menos o serviço de Maria”. Para o cristão, a Virgem era a meiga medianeira entre o Céu e

a Terra, a que ouvia a prece do suplicante e a transmitia ao Senhor. De acordo com Lapa há

quem veja até nesta “concepção religiosa, transferida para a vida social, a razão profunda

do trovadorismo, o seu caráter panegírico, o motivo enfim porque o trovador pedia à

senhora e não, como era natural, ao senhor”.

O paralelismo poético é efetivamente perfeito entre a atitude do cristão,

“prosternado aos pés da Virgem, e a do amador, deitado aos pés da dona.” Assim a mulher

foi divinizada como objetivo da nova concepção trovadoresca da vida, que “representa um

desvio consciente ou inconsciente da Igreja e dos ideais de vida que ela impunha uma

gradual libertação do homem medieval”. (LAPA, 1973, p. 23)

Os trovadores colocavam em um mesmo plano de adoração tanto a dona divinizada quanto Deus humanizado. Possuíam valores iguais. O trovador preferia a dona por intuitivas razões de ordem social e estética e não em obediência a qualquer pensamento ou disposição anti-católica. (LAPA, 1973, p. 24).

Servir era o dever do bom vassalo e o amor cortês ensinava as obrigações

vassálicas que foram “transferidas para a gratuidade do divertimento, mas que num certo

sentido, adquiriam assim mais acuidade, já que o objeto do serviço era uma mulher, um ser

naturalmente inferior.” Desta forma o que era solicitado era a “submissão, a fidelidade e o

esquecimento de si”. (DUBY, 2011, p.74e p.75)

Por volta de 1209, a produção trovadoresca foi transformada em uma literatura

dirigida pela Igreja. Foram os dominicanos que impuseram o culto a Maria como tema

oficial dos novos trovadores. A poesia lírica dos trovadores provençais não desapareceu,

contrariamente, raízes profundas haviam sido lançadas pelos países vizinhos, que se

tornaram discípulos da arte poética do Languedócio, ao mesmo tempo em que davam

forma culta aos temas de inspiração folclórica. Quando a poesia dos trovadores penetrou

em terras germânicas e italianas e ultrapassou as fronteiras ibéricas até a Galiza, já nessas

6

populações vegetava uma poesia primitiva, autóctone, que tinha por agente principal a

mulher, e por irmãs a música e a coreografia. (SPINA, 1996, p.26)

Segundo Ferreira o lirismo provençal é constituído pela expressão sutil e depurada

do sentimento amoroso, “na medida em que o amor se identifica com a ascese moral, isto

é, o amor pressupõe a perfeição moral dos apaixonados.” O conceito de amor que não

aspira à realização humana: é o amor cortês, criação dos poetas provençais, que é um

“sentimento convencional e platônico, que consiste fundamentalmente no culto da mulher,

considerada modelo de beleza e virtude, e que impõe ao perfeito apaixonado um código em

que dominam duas leis: cortesia e mesura.” Para ser cortês, o apaixonado deve “amar

desinteressadamente, numa atitude de timidez amorosa, pois o amor tem em si a sua

própria finalidade: o aperfeiçoamento moral do apaixonado.” Correspondendo desta forma,

ao conceito de mesura este deveria “colocar acima de tudo a dignidade da senhor e nunca a

comprometer. Daí o uso de um pseudônimo, pois a senhor não podia ser nomeada, para

não a identificarem.” Desta maneira, o apaixonado apresenta apenas um retrato idealizado

da dona. (FERREIRA, s/a, p. 11)

Temos a impressão "de ver passar diante dos nossos olhos a imagem distante de

uma mulher bela, mas diluída num nevoeiro que lhe encobre os traços particulares." Desta

forma, os trovadores que tecem elogios para essa dama "tão pouco consegue lobrigá-la

melhor que nós." Essa mulher possui características próprias tais como: a beleza, o bom

parecer, o bom falar e assim parece nos que ela é "constituída de palavras contudo sem

conteúdo, pode-se dizer que é feita de palavras que o coração captava, mas que a memória

não retinha."(VILHENA, s/a. p.133)

D. Afonso X em sua devoção à Virgem, a louva de maneiras diferentes, ora ele a

exalta dizendo que é “Rosas das rosas e Fror das frores, Dona das donas, Sennor das

sennores,” ora diz: “Santa Maria loei e loo e loarei,” que ele a louvou no passado, a louva

no presente e a louvará no futuro, pois ela “de todo mal o pode guardar; e pode-ll' os

peccados perdõar.” Desta forma ocorre a ascese da mulher em comparação com a Virgem.

Dentre as cantigas de loor de Afonso X, em que a Virgem é louvada, a cantiga

número 200, que tem por título Santa Maria loei, loo e loarei o objetivo também é louvar a

Virgem no passado (loei), no presente (loo) e no futuro (loarei) pelos benefícios que ela

lhe proporcionou. Desta forma, o trovador demonstra sua alegria em louvar a Virgem, em

todos os tempos de sua vida. As nove estrofes possuem quatro versos cada, metrificados

7

em sete sílabas (redondilha maior). As rimas apresentam-se graves e agudas (AAAB) e no

refrão, agudas (BB): Santa Maria loei / e loo e loarei.

Na primeira estrofe D. Afonso X declara que entre os homens que hoje são

nascidos (Ca, ontr' os que oge nados) estes são muito honrados (son d' omees muit'

onrrados), e que foi a Virgem quem os apresentou (a mi á ela mostrados). Faz uma

previsão, afirmando que ele contaria mais do que ela lhe retribuiu (mais bes, que contarei).

Na segunda estrofe o trovador mostra que possui boas pessoas ao seu redor (Ca a mi de

bõa gente), o verbo está em terceira pessoa, revelando que foi a Virgem quem trouxe os

homens honrados para a companhia de D. Afonso X (fez vir dereitamente). Ele se coloca

nas mãos da Virgem, e demonstra claramente (e quis que mui chãamente), que ela o tornou

rei e que reinasse sobre os homens bons, (reinass' e que fosse rei). Com estes versos o rei

coloca sob responsabilidade da Virgem os homens honrados que lhe servem em seu

reinado.

Na terceira estrofe o trovador engrandece a Virgem, declarando que ela é piedosa

(E conas sas piadades), pois em suas grandes enfermidades (nas grandes enfermidades)

ela o socorreu, salvando-o, porque a Virgem era conhecedora de sua fé e fidelidade (m'

acorreu; por que sabiades/que poren a servirey). Na quarta estrofe há pessoas que o

queriam mal (e dos que me mal querian) que o procuravam e odiavam (e buscavan e

ordian), a Virgem o protegeu e deu-lhes o merecido castigo (deu lles o que merecian). O

eu-lírico continua sugerindo que irá provar o milagre (assi como provarei). Observa-se que

havia pessoas que o não queriam bem, contudo, o rei acreditava que tinha a proteção da

Virgem. Na quinta estrofe, o trovador faz uma confissão, pois estava em grande pobreza (a

mi de grandes pobrezas) e enriquece dando os créditos à Virgem (sacou e deu-me

requezas), pois ela é de grande nobreza (por que sas grandes nobrezas) que ele nem

consegue expressar (quantas mais poder direi).

Na sexta estrofe D. Afonso X mostra que a Virgem o fez de boa terra ser o senhor

(Ca mi fez de bõa terra sennor), e que em toda guerra quando ele a chamou ela estava

pronta para lhe ajudar (e en toda guerra m' ajudou a que non erra nen errou, u a chamei).

Na sétima estrofe a Virgem o livra de ocasiões de mortes e de aleijões (A mi livrou d'

oqueijões, de mortes e de lijões), pois a Virgem sabia que se não fosse ela, ele morreria

(por que sabiades, varões, que por ela morrerei). Em gratidão pelos livramentos o

trovador declara que ela sabia que sua devoção era incondicional.

8

Na oitava estrofe o trovador agradece a todos os que o ajudaram (Poren todos m'

ajudade) a pedir pela vontade da Virgem (a rogar de voontade), que tinha grande piedade

(que con ssa gran piadade) e por esse motivo era necessário rogar (mi acorra, que mester

ei). Na nona estrofe, o trovador finaliza desejando o milagre da Virgem de tirá-lo

da luta deste mundo (E quando quiser que seja / que me quite de peleja daquest’ mund'),

irá satisfeito ter com ela, pois sempre a amou (que veja a ela, que sempr' amei). Conclui-se

que a fé na Virgem e a fidelidade do rei são a base do louvor.

As Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio, em que a Virgem é louvada

são conhecidas como “cantigas de loor” (cantigas de louvor). Destacam-se nos textos uma

"hábil diversificação de sua métrica e a originalidade com que essas cantigas se apropriam

de concepções temáticas tradicionais e se constituam em pequenas obras-primas poéticas".

(LEÃO, 2007, P.134). O corpus selecionado constitui-se nas cantigas: “Rosa das rosas“;

Santa Maria loei e loo e loarei”; “Entre Eva e Ave” e “Santa Maria strela do dia”.

A cantiga selecionada é o texto de abertura das cantigas de loor. O seu conteúdo se

resume em "louvor e compromisso, que se expressam em versos repassados de beleza e de

emoção: louvor da humanidade em geral e compromisso assumido por aquele que fala em

nome de toda ela, o rei Dom Afonso". (LEÃO 2007, p. 135). O título da cantiga em prosa

“Esta é de loor de Santa Maria, com' é fremosa e bõa e á gran poder”. Segundo Leão

(2007), o título enuncia o objetivo da cantiga, o de louvar Santa Maria, na sua beleza,

bondade e poder (com 'é fremosa e boa e a gran poder). Em seguida, há o refrão (Rosa das

rosas e Fror das frores,/Dona das donas, Sennor das sennores), com rima em -ores, que

"identifica a Virgem por quatro imagens, numa forma especial de superlativo relativo,

chamado superlativo bíblico". (LEÃO 2007, p. 136)

Neste refrão são encontrados os sintagmas nominais em que “cada um dos

substantivos nucleares, Rosa, Fror, Dona, Sennor se expande sucessivamente, numa forma

de genitivo plural à moda latina: das rosas, das frores, das donas, das Sennores". Esse

“superlativo bíblico” é um recurso estilístico usado tanto na linguagem oral quanto na

escrita. Que mostra o grau máximo uma qualidade específica da Virgem, que de forma

absoluta afirma os atributos que esse ser possa ser dotado. Assim, a rosa das rosas é um

"superlativo totalizante é a mais bela, a mais fresca, a mais brilhante, a mais perfumada,

etc., entre todas as rosas.” (LEÃO 2007, p. 137)

A rosa, de acordo com sua simbologia, é um atributo consagrado na tradição

9

mariana. Os outros sintagmas são constituídos pelo mesmo molde sintático-semântico: a

fror das frores (a flor das flores), flor única pela sua perfeição, entre todas as flores; o

mesmo com a expressão a dona das donas, que se refere a uma mulher superior pelas suas

qualidades e a todas as mulheres na expressão a Senhor das senhores, que pelos seus dons,

não tem igual entre todas as outras senhoras. Após o refrão, existem quatro estrofes, cada

uma vem seguida de um quarto de verso que rima com o refrão. "Essa estrutura poemática

se inicia por um refrão em forma de dístico monórrimo e prossegue com quadras

compostas de três versos monórrimos que variam de uma estrofe para outra, mais um

quarto verso que retoma a rima do refrão, constituindo-se, segundo a poética medieval em

uma “volta” ou “glosa.” A sequência das estrofes, nessa cantiga, nos mostra uma

progressão no seu envolvimento afetivo com a Sennor". A primeira estrofe apresenta a

Virgem e seus atributos, no início de cada verso repetem-se os núcleos dos sintagmas

nominais do refrão, fazendo, assim, uma expansão sintática que justifica esses núcleos

(Rosa de beldad'e de parecer/e Fror d'alegria e de prazer,/Dona em mui piedosa

seer,/Sennor em toller coitas e doores.)

Nesta estrofe, Santa Maria é rosa, pela sua beleza e boa aparência; é flor, pela

alegria e pelo prazer que dá aos seus seguidores; é dona, pela piedade que tem; é senhora,

pelo poder de tirar aflições e dores. A Virgem,, nessa estrofe, apresenta-se sem a presença

do ser humano e sem a presença de verbos. São apenas "sintagmas nominais soltos, com

função sintática ambígua, já que poderiam ser analisados ou como vocativos dirigidos à

Virgem ou como expressões que a descrevem, dirigidas aos ouvintes". Observa-se que nas

outras três estrofes há a presença do ser humano, "mostrando-o, nas suas relações com

Santa Maria, através de uma progressão decrescente, que vai do geral ao particular, do

universal ao individual, da humanidade como um todo ao Poeta como ser único". (LEÃO

2007, p. 138)

Na segunda estrofe existe o início de uma progressão incluindo agora o gênero

humano com a Virgem. Surge nesta estrofe o gênero humano, representado, segundo Leão

(2007, p. 138) pelo "pronome indefinido neutro – ome- sujeito indeterminado de deve,

comparável ao on francês, o que explica o seu funcionamento exclusivo como sujeito".

No primeiro verso, colocado em ordem direta, explica que o homem deve amar muito tal

Senhora (Atal Sennor dev'ome muit'amar); pois Ela pode protegê-lo contra todo o mal (que

de todo mal pode guardar); e pode perdoar-lhe os pecados (e pode-ll'os pecados perdõar);

10

pois são os pecados que comete aqui na terra, por maus instintos (que faz no mundo per

maos sabores). "O Poeta não aparece aí por si mesmo, mas apenas diluído na espécie

humana, através da expressão genética ome, a quem ele lembra o dever de amar aquela que

o protege.".(LEÃO 2007, p. 139)

Na terceira estrofe o trovador coloca junto a Virgem os pecadores que devem amá-

la e servi-la, a primeira pessoa do plural está no início da estrofe, apontando para nós,

"sujeito de valor coletivo que inclui o eu do Poeta". Dom Afonso diz, para todos nós, que

devemos amá-la e servi-la muito (Devemo-la muit'amar e servir), pois Ela se empenha em

nos afastar do pecado (ca punna de nos guardar de falir), e arrependermo-nos dos erros

(des i dos erros nos faz repentir) que cometemos, como pecadores que somos (que nos

fazemos come pecadores). "O Poeta aparece aí como porta-voz de todo o gênero humano,

relembrando o dever de amar e servir aquela que o afasta do erro". (LEÃO 2007, p. 140).

Na quarta estrofe encontramos a Virgem com seu trovador D. Afonso assumindo a

primeira pessoa do singular, destacando-se da humanidade e se apresentando sozinho

diante de Santa Maria, considerando-se seu servo (Esta dona que tenno por Sennor), e quer

ser o seu Trovador (e de que quero seer trobador); quer ser amado por ela. E, se isso

ocorrer, (se eu per ren poss'aver seu amor) entregará ao diabo os outros amores, isto é, as

mulheres que teve e que poderia ainda ter (dou ao demo os outros amores). A Virgem

possui um valor altamente expressivo nos sentimentos do poeta, pois ele a coloca em

primeiro lugar em sua poesia (vida), assim confirma-se a devoção que ele tem por ela. Vale

ressaltar o modo como o trovador apresenta a Virgem no refrão e prepara, na outras

estrofes, o seu encontro pessoal com ela. Na primeira estrofe, a vemos sozinha, em sua

beleza e misericórdia. Nas três outras, Santa Maria encontra-se com a humanidade diante

de si. Porém, ela é apresentada pouco a pouco, "em gradação descendente, até chegar ao

Poeta: 2ª estrofe, ome (…); 3ª estrofe, nós (…); 4ª estrofe, eu, Dom Afonso, entendedor da

Virgem, isto é seu namorado". No terceiro estágio o poeta se coloca em uma relação

amorosa, quando se encontra frente a frente com ela. Nesse momento de elogios e

admiração por sua dona, ele em "garantia de exclusividade amorosa, entrega ao demônio as

mulheres que amou e que não foram poucas. Esse é o compromisso que assume com a

dona que é sua senhor.” (LEÃO 2007, p. 141)

Conclui-se que na Idade Média o conhecimento era privilégio dos religiosos e das

pessoas mais abastadas, desta forma, podemos explicar que a Igreja detinha em seu poder a

11

maneira em que as pessoas podiam ter suas manifestações culturais. O trovadorismo inicia-

se primeiramente nas cortes, e após com sua musicalidade chega ao povo, mas as cantigas

de amor eram especialmente criadas para a senhor ou dama que geralmente era da nobreza,

quando um trovador se apaixonava por uma mulher de classe inferior e a quisesse louvar

era logo discriminado por seus companheiros de trova.

As cantigas de amor e as cantigas de Santa Maria são contemporâneas, pois o

cristianismo elevou o papel da mulher comparando-a com a Maria a nova Eva. Ela é

louvada sobre todas as mulheres, pois segundo D. Afonso X ela tem o poder de salvar o

homem.

Afonso X, de origem espanhola, é chamado de o rei sábio, mostrou-se um trovador

de destaque no movimento trovadoresco. Escreveu as Cantigas de Santa Maria, num total

de 430 composições, musicadas, que contavam os prodígios da Virgem Santíssima. No

entanto, nas cantigas analisadas, cantigas de louvor, ele ressalta a figura da mulher

sublimada, cujo modelo é a Virgem Maria, que intercede e livra os homens dos males e dos

pecados, resgatando-o aos céus e a Deus. Utilizou o galego-português para expressar suas

cantigas, pois esta era a língua de prestígio da época. (SPINA, 1961, p.46) A “Provença

não exportou para as terras galego-portuguesas a sua língua, mas a influência benéfica e

purificadora de sua poesia sobre aquelas que já cantavam as populações rústicas e

burguesas de Entre Douro e Minho.” (SPINA, 1996, p.43).

REFERÊNCIAS:

BARK, W. C. Origens da Idade Média. Tradução de DUTRA, W. Rio de Janeiro: Zahar editores.1966.

DUBY, G. A Europa na Idade Média. Tradução de DANESI. A. P. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

DUBY, G. Damas do Século XII. Tradução de COSTA, T. Lisboa: Teorema, 1995.

DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens. Tradução de NETO, J. B. São Paulo: Schwarcz, 2011.

FERREIRA, M. E. T. Poesia e Prosa Medievais. Seleção, introdução e notas. Lisboa: Ulisséia, s/d.

FRANCO, H. J. Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo: Editora Brasiliense,

12

1986.

LAPA, M.R. Lições de Literatura Portuguesa- época medieval. Coimbra: Coimbra Editora 8ªed., 1973.

LE GOFF, J. A civilização do Ocidente Medieval. Tradução MACEDO J. R. S. Paulo: Edusc, 2005.

LEÃO, A. V. Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio. B.H: Veredas e Cenários, 2007.

MACEDO, J. R. A Mulher na Idade Média. São Paulo:Contexto,1999.

SPINA, S. A Lírica Trovadoresca. Texto e arte. São Paulo: Edusp, 1996.

VILHENA, M.C. O carácter abstracto das Cantigas de Amor. Revista Ocidente Volume LXXXI.