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1 Grupo RELLIBRA - "Relações Linguísticas e Literárias Brasil-Alemanha" | www.rellibra.com.br Credenciado na USP e no CNPq Coordenação Geral: Profa. Dra. Celeste Ribeiro de Sousa KARL VON KOSERITZ 1830-1890 (Celeste Ribeiro de Sousa) 2012 A expiação Um conto da colônia * Karl von Koseritz I O velho Guilherme Schulze era um homem respeitado na colônia. Ao tempo da nossa narrativa, no início dos anos quarenta, ele já estava quase há vinte anos no Brasil e era bem sucedido nos negócios. Havia chegado com os primeiros colonos estimulados pelo major Schäffer; ele havia aceitado uma colônia de terra na mata virgem; cultivou-a com mais um camarada, mas sem grandes expectavivas. Não se pode dizer que era um sujeito exemplar. Com alguns companheiros de Mecklenburgo, não muito civilizados, cujo passado todos conheciam, era um frequentador assíduo dos botecos, então ainda raros, e deixava as suas terras serem tomadas pelo capim. Ainda mais, quando o companheiro, um homem econômico e bem humorado da região do Reno se afastou dele, dizendo que o negócio não lhe interessava e que Schulze era muito fechado, resmungão e só se animava no boteco junto a um copo de cachaça. Durante alguns anos, Guilherme Schulze conduziu seus negócios dessa forma, suas plantações se perdiam e ele dividia o tempo entre a caça e os botecos. * Tradução de Alceu João Gregory. Koseritz, Karl von. Die Sühne. Eine Erzählung aus der Colonie. In: Koseritz’ deutscher Volkskalender für die Provinz Rio Grande do Sul, Porto Alegre,1875, p.33-63. Revisão: Celeste Ribeiro de Sousa.

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Page 1: A expiação Um conto da colônia - Instituto Martius Staden · bem. Não tardou e, um belo dia, correu pela colônia a notícia: “Schulze está de volta; ele trouxe com ele uma

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Grupo RELLIBRA - "Relações Linguísticas e Literárias Brasil-Alemanha" | www.rellibra.com.br

Credenciado na USP e no CNPq

Coordenação Geral: Profa. Dra. Celeste Ribeiro de Sousa

KARL VON KOSERITZ 1830-1890

(Celeste Ribeiro de Sousa) 2012

A expiação Um conto da colônia*

Karl von Koseritz

I

O velho Guilherme Schulze era um homem respeitado na colônia. Ao

tempo da nossa narrativa, no início dos anos quarenta, ele já estava quase há

vinte anos no Brasil e era bem sucedido nos negócios. Havia chegado com os

primeiros colonos estimulados pelo major Schäffer; ele havia aceitado uma

colônia de terra na mata virgem; cultivou-a com mais um camarada, mas sem

grandes expectavivas.

Não se pode dizer que era um sujeito exemplar. Com alguns

companheiros de Mecklenburgo, não muito civilizados, cujo passado todos

conheciam, era um frequentador assíduo dos botecos, então ainda raros, e

deixava as suas terras serem tomadas pelo capim. Ainda mais, quando o

companheiro, um homem econômico e bem humorado da região do Reno se

afastou dele, dizendo que o negócio não lhe interessava e que Schulze era muito

fechado, resmungão e só se animava no boteco junto a um copo de cachaça.

Durante alguns anos, Guilherme Schulze conduziu seus negócios dessa

forma, suas plantações se perdiam e ele dividia o tempo entre a caça e os

botecos.

* Tradução de Alceu João Gregory. Koseritz, Karl von. Die Sühne. Eine Erzählung aus

der Colonie. In: Koseritz’ deutscher Volkskalender für die Provinz Rio Grande do Sul,

Porto Alegre,1875, p.33-63. Revisão: Celeste Ribeiro de Sousa.

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Dinheiro nunca lhe faltava. Vez por outra, até trocava barras de ouro nas

tavernas, e barras de ouro com impressão alemã e francesa, que, segundo ele,

teria ganho com a venda das peles de suas caças.

Vendo o modo como administrava suas economias, as pessoas

balançavam a cabeça e evitavam-no. Aqui e acolá, falava-se mal dele e a alegria

foi quase geral, quando, depois de ali ter trabalhado durante quatro anos, sumiu

da colônia. Como se ouviu dizer mais tarde, teria ido para a região da campanha

com a intenção de construir sepulturas e, depois, estabelecer um comércio em

algum lugar.

Passara-se aproximadamente um ano sem que se tivesse notícia do assim

considerado desaparecido, quando um homem ainda jovem, que fora comprar

cavalos na fronteira, contou ter encontrado o Schulze em São Gabriel. Estaria

bem trajado e com muito dinheiro, e teria perguntado por este e aquele na

colônia, mas não teria dito nada sobre suas relações pessoais.

Transcorrido mais um ano, soube-se que Schulze ia com frequência a

Porto Alegre, onde vendia peles e outros produtos da campanha e que estava

bem. Não tardou e, um belo dia, correu pela colônia a notícia: “Schulze está de

volta; ele trouxe com ele uma moça de Porto Alegre, e quer comprar terras e

estabelecer-se aqui!”

E assim aconteceu. Guilherme Schulze, o antigo preguiçoso, apareceu na

colônia com a segurança de um homem financeiramente bem posto, era amigo

de todos, não frequentava mais os bares e comprou terras excelentes à margem

do rio por cinco mil réis. Em pouco tempo, havia construído uma bela casa e

habitou-a com a jovem esposa, uma moça muito bela e modesta, que acabara de

chegar da Alemanha com a família, se empregara em Porto Alegre, onde

conhecera o marido.

Schulze era um esposo feliz e o homem, outrora fechado, parecia ter

desaparecido por completo, principalmente, quando depois de alguns anos o

sorriso satisfeito da mulher se espelhava no rosto de dois meninos

encantadores, que se tornaram a alegria e o orgulho de sua vida. Agora,

ninguém superava o antigo andarilho em atividades sérias e trabalho

inteligente. Não tardou e suas plantações, nas quais mantinha vários

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empregados, floresceram maravilhosamente; sua fazenda de gado tornou-se a

mais grandiosa da colônia e uma loja de produtos bem selecionados, à qual ele

adicionou mais tarde um moinho e uma serraria, rendeu-lhe grandes lucros.

Embora muitos o invejassem e outros lhe atribuíssem participação nos roubos

da igreja, ninguém podia gabar-se de ser seu confidente, pois embora fosse

amigo de todos, mantinha uma certa frieza e discrição, – não havia como

colocar em cheque seus esforços, sua inteligência e sua pontualidade. Sua

mulher, bela e de configuração mignon, fora uma aparição tão doce e bondosa,

como mal se podia imaginar e todos lhe desejavam sorte, a mesma sorte, que

acompanhava os empreendimentos do marido. E a Maria do Guilherme Schulze

era realmente feliz: seu marido amava-a profundamente, carregava-a nos braços

e realizava todos os seus desejos, tão logo eles se manifestavam em seu olhar. Os

dois filhos cresciam saudáveis e felizes, eram bem educados e bonitos, e até

mesmo seu único desejo, o de também ter uma menina, fora realizado, ainda

que um pouco tardiamente. Lieschen, a linda filhinha loira de Schulze, tinha no

ano de 1842, no início do nosso conto, apenas seis anos, quando os dois irmãos

já tinham doze e catorze. Seria difícil imaginar uma família mais feliz, não fosse

uma melancolia lúgubre, que, de tempos em tempos, ofuscava a mente de

Schulze, embora os carinhos da esposa e de Lieschen sempre afastassem as

nuvens para longe.

II

Lá fora a tempestade rugia e o minuano atirava a chuva gelada contra as

janelas da casa de Schulze. Ele tinha fechado a loja, não só por causa do tempo

ruim, mas também porque uma corja perigosa andava pelas redondezas, e

porque corriam boatos sobre a presença do Menino diabo, aquele ladrão ousado

dos tempos da Revolução.

Era pelas sete horas da noite, já havia escurecido havia uma hora e meia,

pois estava-se no mês de junho, quando os dias são curtos e as noites

infinitamente longas. Se lá fora havia desassossego, tanto mais confortável era

estar na sala do velho Guilherme Schulze. Chamavam-no de velho por causa dos

cabelos totalmente grisalhos, embora tivesse apenas quarenta e dois anos. A

grande sala oferecia quase um conforto urbano e nem sequer ali faltava o, à

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época, moderno fogão de ferro, que espalhava o calor pela casa. Sobre a grande

mesa, de onde a mulher de Schulze, ainda bela, acabara de tirar os pratos do

jantar, ardia uma lamparina de óleo com cilindro de vidro esbranquiçado e, a

uma das pontas da mesa, achava-se Schulze sentado, de roupão espesso, com

pantufas quentes nos pés e, na cabeça, um gorro de pele de lontra, que seu filho

mais velho tinha caçado. A luz da lamparina caía em cheio sobre a fisionomia do

homem, que era decididamente atraente e tinha uma expressão de energia rara.

Todavia, seu olhar taciturno, sombreado por sobrancelhas espessas, revelava

algo inquietante, preocupação (ou arrependimento), que lhe tinha criado sulcos

profundos na testa e em torno da boca. Schulze lia um velho exemplar da

“Revista Financeira” (“Pfennigmagazins”), aquela primeira tentativa alemã de

ilustração, com xilogravura rústica e papel cinza, da qual todos ainda nos

lembramos com sereno prazer, – pois nos recorda dos tempos despretensiosos

de nossa juventude, quando o progresso irrestrito da atualidade ainda não tinha

inundado tudo com ilustrações –, enquanto os seus dois rapazes, fortes e

garbosos, com traços verdadeiramente belos e os cabelos loiros de sua mãe,

faziam as lições, que o pai sempre controlava com rigor extremo. Lieschen, a

loirinha encantadora, estava sentada no colo do pai, segurava-lhe o cachimbo e

não se cansava de olhar as xilogravuras do livro, as quais ela saudava com

entusiasmo assim que o velho virava uma página.

Quando Maria, a mulher de Schulze, terminou de arrumar a louça, pegou

o tricô e sentou-se ao lado do pai, que acabara de mandar os dois meninos

guardarem os cadernos e começava a ler com voz grave e sonante um dos contos

do velho livro, já tantas vezes ouvido. O que se via era um quadro emocionante

de paz domiciliar, de felicidade familiar alemã, – assim também parecia a um

homem a cavalo em frente à casa, que acabara de chegar e, alçando-se nos

estribos, através do recorte em forma de coração na janela fechada, lançara um

olhar para dentro da sala.

No mesmo instante, os cachorros acudiram e Schulze ergueu-se para

verificar, quem era o estranho, pois o temporal o impedira de ouvir o trote do

cavalo. Pela porta entreaberta, ele perguntou: “Quem está aí?”

“Um viajante cansado, que, neste tempo horrível, pede abrigo em casa de

colonos alemães.”

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“Um homem do campo é sempre bem-vindo em minha casa; pode apear-

se, forasteiro, e entre aqui na sala aquecida, os rapazes vão cuidar do seu

cavalo.”

Enquanto os dois moços, envoltos em grossos casacos, seguiram as

ordens do pai, o forasteiro entrou na sala e despiu o poncho, do qual escorria

água. Maria trouxe-lhe meias e pantufas do marido, enquanto este lhe ajeitava a

cadeira de espaldar junto ao fogão e ordenava à empregada, que acorrera, o

preparo de um lanche para o hóspede.

“Deus lhes pague pelo que fazem a um viajante, que já temia não alcançar

mais a colônia e ter de acampar a céu aberto com este tempo.”

“Bem, não há muito a pagar; mas, para se aventurar com um temporal

destes, quando nem mesmo os cachorros saem, deve estar com muita pressa.”

“Pressa não é bem a palavra”, retrucou sorrindo o forasteiro, que usava

roupas escuras sóbrias, “mas eu sou viajante e tão somente viajante; não sou

daqui e, por isso, permaneço em todos os lugares apenas o tempo que a

necessidade determina.”

“Se me permite a pergunta, de onde está vindo?”

“Venho da Serra e vou para Porto Alegre.”

“E no caminho não foi importunado por nenhuma patrulha dos malditos

farrapos?”

Não, também não iriam encontrar nada em mim que pudesse aguçar sua

ganância.”

“Mas, para esse pessoal, um poncho e os arreios de um cavalo são o

suficiente para cortarem o pescoço de dez pessoas!”

“Parece que você está do lado da realeza!”

“Isso não; não sou, graças a Deus, tão idiota, como muitos de meus

compatriotas, que ficam fuçando em coisas, que não lhes dizem respeito. Eu

vendo meus produtos tanto a um quanto a outro, e, quando as pessoas pagam, o

ouro dos farrapos é para mim tão bom quanto o da realeza. Se não o fazem,

então, mantenho distância dos dois.”

“E isso sempre deu certo?”

“Até hoje sim; é que todos eles sabem que com o Guilherme Alemão não

se brinca.”

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Ao proferir estas palavras, percebia-se um traço duro, quase malévolo em

sua boca.

“Não se pode negar a sua autoconfiança.”

“Seria péssimo, se não fosse assim. Veja, a sua comida já está na mesa; vá

em frente e bom apetite.”

O viajante não esperou uma segunda ordem e a carne fria com o pão com

manteiga deliciaram-no. Um copo de vinho branco português também lhe

agradou e, depois de estar satisfeito, agradeceu a Schulze a hospitalidade com

palavras simples, mas comoventes. “

“Não há de quê”, retrucou este. “Nada mais do que obrigação e dívida em

terra estrangeira.”

“Faz tempo que vive aqui?”

“Há mais de vinte anos.”

“Então, veio com os primeiros colonos?”

“Exatamente, mas primeiro tive de amargar muitas perdas, antes de ter

algum êxito.”

“Veio do norte da Alemanha?”

“Isso não”, apressou-se Schulze em responder com um olhar um tanto

sombrio. “Sou da Renânia, nasci em Koblenz.”

“Estranho, o seu dialeto me lembra mais o Mark.”

“Pelas contas do rosário! riu Schulze um tanto áspero. Não, Deus me

livre, isso eu só conheço de ouvir falar. Sou da região do Reno, conhecida pelos

bons vinhos.”

“Não me leve a mal; errar é humano. Eu mesmo sou pomerano e muitas

vezes já fui confundido.”

“Também não teria acreditado; aliás, conheço muito poucos pomeranos.

Aqui não há nenhum.”

“Todavia, esta seria uma bela terra para os meus compatriotas. O braço

pomerano poderia dar-se bem aqui.”

“Os Hunsrücker, como eles nos chamam, os da região do Reno e do

Mosela, também sabem lidar com a terra.”

“É, já ouvi dizer isso. Em contrapartida, não se ouve muita coisa boa em

relação aos de Mecklemburgo.”

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“Deve ser a inveja”, retrucou Schulze, “pelo menos em relação a alguns,

que progrediram rapidamente.”

“É! O que se conta por aí de histórias de roubos de igrejas ....”

“Muito se ouve falar disso, e gente também há por aí, que hoje está bem,

mas não pode dizer de onde provêm suas posses, mesmo não sendo roubo de

igreja. A revolução oferece muitas oportunidades.”

“É muito triste”, disse o forasteiro, “que também alemães enriqueçam às

custas de outros. Em uma terra tão abençoada por Deus isso realmente não

seria necessário. Você, por exemplo, se deu bem rapidamente.”

“Não posso me queixar, mas também fiz negócios no interior, lidei com

gado e trabalhei feito um doido.”

“Não tenho dúvidas; por isso pode se alegrar com as suas posses, pois

quem se apodera dos bens alheios, não pode se sentir feliz com eles.”

“Você acha mesmo?” Perguntou Schulze um pouco tenso. “Ouça, mulher,

mande as crianças para a cama.”

As crianças disseram “boa noite” e Schulze, colocando sobre a mesa uma

garrafa de vinho branco e dois copos, convidou o forasteiro a se aproximar e a

beber mais um pouco. Depois de encher os dois copos com vinho branco,

ponderou:

“Você acredita, portanto, que o bem injustamente conseguido não

prospera?”

“Não é bem assim. Muitas vezes prospera, mas – as pessoas não ficam

mais felizes consigo mesmas.”

“Isso dizem os padres no altar; mas eu conheço uns quantos, que não

estão nem aí para roubar o bem alheio.”

“Pode até ser; mas vem um dia, em que o arrependimento se abate sobre

todos.”

“Por acaso você é um padre?”

“Deus me livre” riu o homem, “sou um pesquisador e padre combina

comigo como a cabra com o jardim ou a raposa com o galinheiro; afinal, alguém

como eu, que pesquisa a natureza em suas profundezas e que, diariamente,

encontra novas provas para as diversas revoluções, que o mundo já

experimentou, não pode acreditar em todas as coisas obscuras, que esses idiotas

nos colocam sobre a mesa como verdades absolutas. Eu acredito na natureza,

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meu caro, e em suas claras leis eternas; admiro sua beleza e fico pasmo diante

da sua objetividade; quero distância das fábulas bíblicas. Minha bíblia é o

grande e infinito livro da natureza, que ainda hoje mal consigo soletrar, mas que

estará eternamente aberto diante dos olhos da humanidade.”

“Você fala como um livro, e é isso o que vai na minha alma, pois também

nada quero saber da enganação desses padrecos. Você está ouvindo”, disse,

voltando-se para a mulher, que acabara de entrar, “este senhor aqui, um homem

estudado, um pesquisador da natureza, também não quer saber desses

hipócritas pregadores de preto, que apregoam a vingança eterna. ”

“Mas, meu querido”, disse Maria, “como pode você falar assim dos

ungidos do Senhor!” “Minha cara senhora”, interferiu o forasteiro, “seu marido

não está tão errado. Também não suporto os padrecos e prefiro ler o livro da

natureza ao invés da Bíblia. Mas respeito a fé alheia, mesmo não podendo

compartilhá-la.”

“Exatamente”, redarguiu Schulze, “este é um tema no qual minha mulher

e eu divergimos. Mas”, continuou ele com olhos vigilantes, “se você pensa assim,

como pode falar em vingança e em bens injustos, que não têm futuro? ”

“Isto não tem nada a ver com os padres, meu caro. Há no Evangelho uma

frase, que vale pelo todo. Diz ela: ‚não faças ao teu próximo o que não queres

para ti.‘ E esta frase, que deve constituir o fundamento da moral de todas as

pessoas de honra, sempre acaba prevalecendo.”

“Mas como ficamos então, se não tem céu nem inferno, quem vai castigar

aqueles, que atentam contra esta frase? ”

“Quem? ” retrucou com muita seriedade o forasteiro. “A consciência, que

cada um carrega na mente e cuja voz não deixa nada adormecer. E mesmo que a

sorte sorria àquele que comete injustiças ao outro, mesmo que tudo lhe corra

bem, mesmo que ele se considere feliz como poucos, – vem o dia em que a

consciência desperta e o faz lembrar-se diariamente da maldade, que ele levou

aos outros. E, então, as forças do destino agem maravilhosamente; muitas vezes,

o castigo pelas más ações ocorre bem mais tarde, mas sempre ocorre; não

acredito no inferno dos padres, mas no inferno, que o ser humano carrega em

sua mente e estou convicto que cada pessoa, que faz o mal ao seu próximo, vai

pagar cedo ou tarde por isso e neste mundo, mesmo que seja pela dor de

consciência que o consumirá.”

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O olhar de Schulze foi-se tornando cada vez mais sombrio, enquanto a

boca se torcia como num riso sarcástico, que só com muito esforço ele conseguia

reprimir. Esvaziou o copo e, levantando-se, disse num tom quase ameaçador:

“Certamente está cansado; venha, vou mostrar-lhe o quarto!”

Um pouco surpreso com a mudança repentina, o homem levantou-se e

Schulze o conduziu ao quarto. Quando voltou à sala, Maria dispunha-se a

guardar o vinho; mas ele disse: “Não, deixe o vinho aí. Vá dormir; tenho ainda

de fazer umas contas. Amanhã o minuano vai mudar de rumo e vai fazer tempo

bom, quero receber os pagamentos, pois tenho muitos acertos a fazer.”

Hesitante, Maria ficou parada, mas um olhar quase agressivo do marido a

intimou a recolher-se.

Entretanto, Schulze, ao invés de ir fazer contas, atirou-se na cadeira e, ali,

ficou bebendo sofregamente alguns copos do vinho inebriante. Depois, reclinou-

se e quedou-se durante horas olhando as brasas incandescentes do pequeno

fogão, sempre mais fracas. Aos poucos, a sala foi ficando gelada – mas o homem

de consciência pesada na cadeira nem percebeu. Sulcos profundos cortavam-lhe

a testa, o olhar estava parado e assustador, e o punho cerrado tremia-lhe vez por

outra, movido pela agitação interna. Apertado devia estar o peito deste homem

corpolento, que não parava de tão tristemente fixar as brasas, que se

extinguiam. Seus pensamentos vagavam distantes, longe, além-mar, quando o

grande relógio bateu meia-noite.

Schulze continuava remoendo seus pensamentos. “Vingança!” ria

ironicamente. “Absurdo! Conversa mole. – O que me importam os que ficaram

do outro lado! – Estou muito bem aqui, tenho tudo o que desejo; minha mulher

me ama, meus filhos crescem, sou o mais rico da colônia e não quero me

aborrecer com as bobagens desse forasteiro. Deve ser coisa do demônio, ainda

prefiro os sermões dos padrecos hipócritas. Com eles me divirto; mas esse

forasteiro... Ufa! – como está frio esta noite.”

Então, ele foi para o quarto, mas também debaixo das cobertas não

encontrou sossego; inquieto revirava-se na cama e, somente ao amanhecer,

conseguiu dormir um sono leve, marcado por pesadelos.

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Na manhã seguinte, o forasteiro foi-se embora, depois de ter tomado um

café quente e comido uma fatia de pão de milho com manteiga e ter agradecido

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cordialmente à dona da casa, pois Schulze tinha sumido. Ele se pusera a

trabalhar no moinho até o hóspede desaparecer.

III

Mais dois anos se passaram e os meninos de Schulze eram agora rapazes

fortes de catorze e dezesseis anos respectivamente, que trabalhavam ativamente

no moinho, na plantação e na floresta, e eram o orgulho do pai. Desde a visita

daquele forasteiro, a aversão do dono da casa em relação a pessoas

desconhecidas tornou-se ainda maior e sua testa ampla franzia-se cada vez

mais. Embora o amor da mulher e a alegria com os filhos reduzisse os

momentos de angústia a apenas algumas horas, em certas ocasiões parecia que

justamente a visão da felicidade familiar lhe corroía a alma. Nesses momentos,

ele se embrenhava nas matas próximas e, muitas vezes, se entregava dias a fio à

caça.

Maria, a mulher de estatura baixa, observava cheia de aflição essa

mudança de comportamento do marido, não conseguindo compreender por que

isso acontecia. Em vão ela tentava ganhar-lhe a confiança e penetrar no mais

profundo do seu espírito. Da mesma forma que ele era bom com ela, também

podia se tornar muito rude, quando ela tentava se intrometer em coisas muito

particulares. Tudo isto, agora, pesava-lhe no coração e, frequentemente,

duvidava do amor do esposo, que era tudo para ela neste mundo.

Nos últimos anos, ele havia-se desligado totalmente da igreja e tinha

dificultado as idas da esposa aos rituais sagrados; a contragosto concordou com

a crisma dos filhos. Seus bens, no entanto, aumentavam cada vez mais e os

vizinhos, muitas vezes, se zangavam com a ingratidão deste homem, pois

mesmo diante de tanta sorte, ainda assim parecia insatisfeito.

Nessa época, a revolução caminhava para o seu desfecho; havia ainda

muita luta nas redondezas, mas o marechal Caxias avançava cada vez mais e já

havia rumores de uma possível convenção entre ele e o general Canabarro.

Ainda havia muito sofrimento, porque tinha aqueles que preferiam o partido

das armas ao do trabalho.

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Numa noite de verão, Schulze encontrava-se no estábulo, observando

alegre os cavalos, que os rapazes tinham acabado de arrebanhar. Formavam

uma tropilha imponente, tão imponente como só havia uma na colônia. Ouviu-

se, então, um tropel de cavalos e um tinir de armas. Um bando de homens a

cavalo parou em frente ao estábulo perto da casa. A aparência dessa gente não

inspirava confiança. Eram figuras selvagens, vestidas de chiripá e com esporas

de ferro no calcanhar do pé esquerdo descalço. Uma jaqueta militar, um

chapéu-braga de aba larga, um poncho esburacado sobre o selim, este era o seu

uniforme; longas lanças em punho, as temidas ferraduras de guasca, trabucos

de cano largo e facas longas na cartucheira, laço e boleadeiras eram estas as suas

armas. Deviam ser uns cinquenta homens; na frente estava um oficial do alto-

comando, vestindo um envelhecido casaco de uniforme cheio de medalhas,

montado num majestoso cavalo coberto de prata. O homem tinha um olhar

malévolo, penetrante, barba rala, alguns cabelos brancos, e sua mão esquerda

machucada repousava em uma faixa; sua postura, no entanto, era rígida sobre o

cavalo impetuoso e seu olhar traiçoeiro reluziu de prazer, quando viu os belos

animais de Schulze.

“É exatamente isto que precisamos”, gritou ele em português para um

jovem oficial do grupo. “Ei, alemão, vou requerer os seus cavalos para o serviço

do imperador! ”

Schulze aprumou-se imponente. “Meus cavalos são minha propriedade e

se o imperador precisa deles, que os compre de mim, mas somente os que

estiverem à venda!” Ele disse isso em português, pois dominava perfeitamente a

língua. Embora desarmado, opunha-se destemido diante dos cavaleiros.

O olhar penetrante do oficial mirou-o com ira. “Com quem o cão

germano acha que está lidando? Eu me chamo....... ” – e, aqui, ele mencionou o

nome do, justificadamente, mais cruel dos oficiais do imperador, – “e vou

ensinar-lhe, o que significa opor-se a mim, se de imediato não me entregar os

cavalos!” E, dirigindo-se ao seu grupo, ordenou: “Desçam dos cavalos!

Desencilhem os matungos cansados e deixem-nos correr. A partir daqui irão

cavalgar os cavalos do gringo. Ao trabalho, peguem os que mais lhes agradarem

e cortem logo a ponta da orelha! Serão brilhantes reiunos.”

Em Schulze crescia a ira. “Senhor! Não me tire do sério–”.

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“Por que o gringo ainda continua ruminando?!” Gritou o oficial,

enquanto alguns dos homens, seguindo as suas ordens, tiravam da porteira as

travessas mais elevadas e tentavam entrar. Tomado de raiva, Schulze

empunhou uma delas e ameaçou os invasores, logo os seus dois filhos

apareceram e colocaram-se a seu lado.

Então, o oficial com as grandes rodas das chilenas prateadas esporeou as

ancas de seu cavalo, que, de um salto, afastou as últimas travessas da porteira e,

em seguida, meteu o fundo da ferradura de aço na cabeça de Schulze, que, no

mesmo instante, caiu inconsciente. Os dois filhos caíram sobre o pai; mas o rude

guerreiro ordenou aos seus homens para amarrarem os rapazes e levá-los como

recrutas, e, antes que o empregado da loja de Schulze, que assistiu apavorado a

tudo pela janela, pudesse chamar a mãe, que se encontrava no moinho distante,

os cavalos tinham sido trocados e os dois filhos amarrados a dois animais sem

arreios, tendo o bando malvado sumido a galope por detrás da mata.

Quando Maria chegou com respiração ofegante, encontrou o estábulo

vazio e o marido ainda inconsciente banhado em sangue. Os filhos e os cavalos

haviam desaparecido. Maria, num grito de medo, caiu ao lado do marido e

também ficou inconsciente. Ambos foram arrastados para dentro de casa pelos

empregados, que trabalhavam ali perto na plantação e no moinho.

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Schulze tinha recobrado os sentidos, mas Maria estava de cama,

queimando em febre e delirava. As mulheres vizinhas tinham se apressado a

ampará-la, enquanto os homens interrogavam Schulze, que, de cabeça

enfaixada e sentado numa cadeira reclinável, tentava explicar:

“O cachorro do ..... levou meus filhos e todos os cavalos”, dizia ele aos que

o interrogavam.

“Esse?” Gritaram apavorados. “Então não há esperanças, o que ele leva,

ele não devolve.”

“Preciso ter os meus filhos de volta!” gemia o infeliz. “Preciso tê-los de

volta.– Deixem-me, vou buscá-los!”

Em vão, os homens tentavam dissuadi-lo. Schulze armou-se e,

acompanhado de três homens leais, que se ofereceram voluntariamente, foi ao

encalço do bando, depois de ter recomendado a mulher, que ainda permanecia

em delírio, aos cuidados das vizinhas.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Três dias haviam se passado; Maria estava sem febre, mas ainda muito

debilitada e terrivelmente preocupada com os filhos e o marido. Aí, enfim,

vislumbrou-se à distância um pequeno grupo de cavaleiros, que vinha em

direção da casa.

“Aí vêm eles!” gritou uma das vizinhas.

“E meus filhos?” Perguntou Maria com voz fraca.

A mulher, que agora observava com mais atenção, empalideceu e disse,

desconversando: “Ainda não sei, se estão juntos.”

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Mas por que razão a filha valente da mata virgem empalidecera? – Atrás

dos cavaleiros, eram dez, que trotavam lentamente, havia uma carroça sobre a

qual um Poncho cobria uma massa disforme. Schulze cavalgava cabisbaixo ao

lado da carroça. O que havia acontecido e que mistério horrendo se ocultava sob

o poncho? Algo que, infelizmente para a época, não era nada incomum. Os

cadáveres de dois jovens maravilhosos, que o pai infeliz encontrou de gargantas

cortadas no caminho para Taquari.

Schulze havia perseguido os rastros com os seus três acompanhantes; o

bando tinham tomado o caminho de Taquari, onde havia tropas leais.

Desesperançados, os perseguidores cavalgaram, sem alcançar os ladrões.

Ficaram sabendo que estes estavam quatro horas à sua frente e, como os cavalos

estavam cansados e o próprio Schulze se encontrava enfraquecido pela agitação

e pela perda de sangue, pernoitaram na casa de um alemão – que já morava no

acampamento –, para continuarem no dia seguinte a perseguição com forças

renovadas. E assim fizeram. Pelo meio-dia alcançaram um lugar na floresta que

margeava o riacho, onde o bando tinha acampado e feito fogo. Schulze queria

continuar, mas reparou que os seus cachorros haviam ficado inquietos e

começado a seguir um rastro, que se embrenhava na mata ao lado. Schulze

encontrou vestígios de pés, meio apagados pelas ferraduras de cavalos,

enquanto os cachorros iam ficando cada vez mais agitados. Decidiram seguir a

pista e, com pesar, Schulze teve de admitir que, enquanto o bando acampava, os

rapazes talvez tivessem tentado fugir durante a noite pela picada e, ao romper

do dia, foram perseguidos. Cheio de medo, seguiu os rastros e os seus

acompanhantes também temiam o pior. Assim, percorreram a picada até que,

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de repente, depois de quatro horas de caminhada, os cachorros pararam,

choramingando. Schulze tinha encontrado seus filhos – mas como cadáveres

com as gargantas cortadas. Eles tinham fugido, haviam sido perseguidos,

encontrados e penalizados no ato.

E o leitor nos poupe de descrever o estado do pobre homem, de tentar

delinear seu desespero com palavras. Durante horas ficou sentado ao lado dos

cadáveres, até estes serem retirados sobre pranchas improvisadas de taquara,

com grande esforço, e, depois, colocados sobre a carroça na casa do alemão do

acampamento. O pobre Schulze parecia ter perdido a fala; acompanhou o carro

de bois com olhar fixo sobre o poncho, que cobria o que ainda restara dos dois

rapazes, que há três dias ainda eram a alegria e o orgulho de seu velho. Foi

assim que o cortejo fúnebre se dirigiu de volta à colônia, onde a notícia

assombrosa foi se espalhando, aos poucos, de boca em boca. O próprio Schulze

estava, como já foi dito, praticamente ausente; seu olhar preso aos cadáveres

dos filhos parecia não ter percebido que já haviam chegado a casa.

As mulheres, que estavam com Maria, logo entenderam o que havia

acontecido e seus rostos preocupados chamaram a atenção da pobre doente,

que, temendo o pior, queria erguer-se da cama. Em vão, as mulheres se

opuseram. Quando os homens abriram a porta e colocaram os cadáveres sobre a

grande mesa, quando ouviu o soluço das empregadas, nada mais a conteve.

“Meus filhos! O que aconteceu com meus meninos?” ela gritava, e

encontrando forças no medo, pois até há pouco nem conseguia erguer-se,

afastou as mulheres e apressou-se para a porta da sala. Abriu-a e – desmaiou

num grito forte. O quadro, que se oferecia à pobre doente, era deveras cruel: aí

estavam sobre a mesa os corpos de seus filhos, cobertos de sangue, feridas

abertas na garganta e, do outro lado da mesa, em pé, estava seu marido, com

olhar rijo, que mais se assemelhava ao de um cadáver. – Isto era demais para o

coração da mãe. Quando Maria novamente voltou a si, tinha perdido a lucidez.

Faltam-nos palavras para descrever os dias terríveis, que se seguiram. Os

filhos foram enterrados, mas apenas o pai calado e a pequena Lieschen

seguiram o caixão. A mãe pemaneceu em casa num canto, fitando as paredes.

Havia perdido o juízo e se tornara completamente louca.

Schulze convalescia muito, muito lentamente. O dever de cuidar da única

filha, que lhe restara e a necessidade de oferecer à mulher, na medida do

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possível, auxílio médico, levaram-no a organizar-se de tal modo a poder

novamente conduzir ele próprio os seus negócios. O estado de Maria não

apresentava nenhuma alteração. O administrador da vila, que tinha a fama de

ser um médico assaz inteligente, entrava quase todo dia naquela casa, que agora

estava marcada por grandes dores; mas seu rosto tornava-se cada vez mais

sério, meneava a cabeça cada vez com maior tristeza, sempre que observava a

situação da pobre mulher sem espírito, que caminhava lenta e seguramente para

a morte. Numa noite, depois de examinar a doente, Schulze perguntou-lhe,

enquanto o acompanhava até o cavalo: “Então, senhor Coronel, há ainda

alguma esperança, de ver minha pobre Maria salva?” O médico balançou a

cabeça com tristeza e – oito dias depois, Schulze estava em pé ao lado do leito de

morte de sua mulher.

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Há mais de um ano Maria descansa ao lado dos filhos no pequeno

cemitério, que Schulze construiu para os seus mortos em um lugar predileto da

sua propriedade. Flores cobriam o túmulo e duas palmeiras elegantes faziam-

lhe sombra. Lá, o viúvo ficava sentado às vezes, durante horas, mergulhado em

pensamentos sombrios, nenhuma lágrima aliviava o seu coração, nenhuma

queixa brotava dos seus lábios. Mas seu cabelo ficava cada vez mais branco e seu

rosto se cobria de rugas cada vez mais fundas. Somente quando abraçava

carinhosamente a filha, loira e saudável, e agora de quase nove anos, é que seu

rosto se alegrava momentaneamente. Ela era uma criança querida e admirável.

Com a ajuda de seu temperamento infantil, logo o tempo lhe apagou a dor

lancinante da ausência da mãe e dos irmãos, e ela se apegou de todo o coração

ao pai taciturno, mas para ela infinitamente amoroso.

Os moradores da colônia solidarizavam-se com Schulze em relação à

infelicidade de sua família, mas, ao mesmo tempo, invejavam a sua fortuna que

se multiplicava diariamente. Quanto menos parecia preocupar-se com seus

haveres tanto mais os negócios iam bem e, enquanto outros perdiam dinheiro,

ele continuava ganhando grandes quantias; era agora realmente um homem

rico. Mas, quando à noite juntava reluzentes barras de ouro às que já existiam

no cofre, pesados lamentos saíam de seu peito largo e ele murmurava: “Para

quê tudo isso!” E, então, pensava em sua menininha e, na manhã seguinte,

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punha-se a trabalhar com forças novas, pois nele continuava a existir um ser,

para quem o dinheiro poderia propiciar, um dia, um futuro feliz.

Certa tarde, um cavaleiro parou em frente a sua casa. Schulze logo o

reconheceu: era o pesquisador da natureza, que estava voltando de uma viagem

de dois anos ao interior e, agora, dirigia-se a Porto Alegre.

“Saudações, meu velho!“ gritou ele para Schulze. “Como vai a família?”

Só então o homem reparou nas roupas pretas do luto e percebeu o desgosto

profundo estampado no rosto de seu antigo anfitrião. “O que aconteceu aqui?

Você perdeu sua mulher?”

“Ela e também os filhos!” retrucou com voz grave o homem, que

atravessava duras provações.

“Meu Deus e meu Pai, que golpe duro!” E, movido por compaixão, entrou

na loja.

Mas Schulze conduziu o viajante à sala e tanto insistiu com ele, que este

anuiu em pernoitar ali. Já estava escurecendo e os empregados cuidaram de seu

cavalo, enquanto ele lá dentro se sentava à mesa de jantar com o homem

solitário e com sua única filha. O viajante era um homem senvível e culto, que

sabia com uma conversa adequada distrair seu anfitrião e fazê-lo acreditar em

um futuro promissor, à medida em que ia lhe mostrando como a sua filhinha

ainda o poderia fazer feliz.

“Vai chegar o dia”, disse ele, “em que os anos de grande dor já passaram

e, então, você verá florescer em Lieschen a renovação daqueles que já se foram;

então, a dor bravia já não terá mais forças, e, se ela encontrar um homem bom e

presenteá-lo com netinhos, então, a alegria voltará a sua casa solitária e você

ainda vai se alegrar com o fruto da sua vida e do seu trabalho!”

Schulze respirou pesaroso e meneou de leve a cabeça, enquanto dizia

para Lieschen: “Minha filha, vá dormir, já está na sua hora de ir para cama!“

Depois de a criança se recolher ao quarto, Schulze voltou-se para o

viajante: “O quadro que você descreve é deveras belo e, realmente, poderia

acontecer – mas não me sinto predestinado a isso.” “Por que o desespero, bom

homem? O brasileiro diz com razão: não há bem, que não se acabe nem mal

que sempre dure.”

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Schulze parecia estar num conflito intenso consigo mesmo. Enfim, disse

decidido ao forasteiro: “Você proferiu outrora, em tempos melhores, palavras

que permaneceram em meu cérebro.”

“Que palavras e sobre o quê? ”

“Sobre o bem injusto, que não vinga; sobre o mal, que causamos ao

outro.“

O viajante ficou curioso e fitou o anfitrião meio compassivo e meio

desconfiado. “Não me lembro dessas palavras; mas é minha convicção mais

íntima, que o mal, que se faz aos outros, cedo ou tarde se vinga de nós.”

Schulze suspirou fundo. “Mas por que razão outros inocentes devem

sofrer por isso?”

“Os caminhos do destino são imperscrutáveis e, para o malfeitor, o

castigo mais implacável, muitas vezes, reside em ter que viver e ver outros, a

quem ama, irem-se.”

O olhar do homem tornou-se sério, quase severo, e Schulze baixou tímido

os olhos. “Meu Deus”, gemeu ele, “então, não há misericórdia, não há alívio para

aquele, que comete o mal contra os outros?”

O forasteiro tinha-se erguido e disse com semblante sério: “Para ele só há

uma saída, só uma coisa para apaziguá-lo – a expiação da injustiça cometida!”

Schulze encolheu-se e, arrepiado, repetiu: “A expiação!”

O forasteiro ainda o fitou longamente com pena e, em seguida,

abandonou o aposento com passos leves, para procurar sua cama no já

conhecido quarto de hóspedes.

O homem solitário ainda continuou na sala, pensativo, por longo tempo

e, quando enfim se ergueu com um suspiro profundo, para procurar seu quarto,

murmurava ainda meio inconsciente: “A expiação – sim, a expiação!”

IV

Outros tantos anos se passaram. Lieschen tornara-se uma jovem atraente

de dezesseis anos no clima saudável do Rio Grande. Na vida alegre e aprazível

da colônia, suas formas desenvolveram-se rapidamente e sua figura irradiava

todos os encantos de uma beleza, que amadurecia, enquanto seus olhos claros

ainda sorriam despreocupados para a vida e refletiam a pureza de uma alma

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ainda quase infantil. Já há dois anos, ela governava a casa, por assim dizer,

sozinha e as ocupações constantes assim como o amor incansável de seu pai

preenchiam-lhe a vida, sem que seu temperamento de moça se ressentisse de

outros desejos. Os rapazes jovens da colônia lançavam olhares desejosos à bela

loira, que, como filha única de um homem rico, era muito cobiçada; mas

Lieschen não lhes dispensava atenção, nem a eles nem aos elegantes cavalheiros

da cidade, que vez ou outra apareciam na casa de Schulze. A ela lhe bastava o

amor do pai, e a preocupação com a casa ocupava-a praticamente o tempo todo.

O seu contato com pessoas jovens era raro, pois o semblamte amuado de

Schulze e sua reclusão taciturna tinham piorado nos últimos anos. Como nunca

antes, trabalhava com afinco na multiplicação da sua imensa fortuna e fugia de

qualquer contratempo; seu amor por Lieschen se transformara numa espécie de

fanatismo e podia-se dizer que vivia apenas para a filha. Nela se incorporava

agora tudo o que a vida lhe oferecia em felicidade! Muitas vezes, ainda passava

horas junto ao túmulo de Maria e de seus filhos e quem o observasse teria, com

certeza, percebido o conflito, que pesava dentro dele. Naquelas horas de solidão,

lembrava-se muitas vezes da palavra “expiação”, mas, depois de muita luta

consigo mesmo, sempre chegava à mesma conclusão: “Não, eu tenho uma filha e

esta deverá ser rica e feliz, já que a mim a riqueza não trouxe sorte!”

Assim, tudo seguia o curso normal, até que, de repente, um camarada

desconhecido apareceu lá em casa. Um jovem, com não mais de vinte e dois

anos, de roupas novas e bem trajado, chegou certa noite, pedindo permissão

para pernoitar na casa, pois estava muito cansado. Schulze queria tocá-lo dali

com palavras ásperas, pois supôs de pronto que o pálido rapaz, de aparência

sofrida, fosse um desertor do exército alemão que tivesse chegado no último

ano. Havia na colônia um preconceito quase geral contra essas pessoas,

também Schulze, embora esclarecido, não fugia à regra. Além do mais, acolher

um desertor, poderia significar incorrer em uma série de desconfortos, por isso

Schulze estava decidido a mandar o andarilho cansado para longe de sua porta.

Ao ouvir a voz dura do homem, o moço deu meia volta com um lamento,

preparando-se para continuar andando, mas suas pernas negaram-se a fazê-lo,

seu corpo balançou e ele caiu totalmente exausto sobre um banco de madeira

em frente à porta. Lieschen assistia à cena da janela e correu a ajudá-lo, pedindo

suplicante ao pai para não abandonar o rapaz aparentemente muito doente na

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frente da porta. O pai cedeu ao seu desejo e permitiu que ela lhe arrumasse um

quarto na casa. Lieschen ficou feliz com a permissão e, como boa samaritana,

logo arrumou uma cama para o pobre rapaz e ofereceu-lhe refrescos. Porém,

Henrique, o nome do lívido moço, recusou-os; não poderia degustar nada sem

primeiro descansar. Com esforço, tomou uma xícara de chá doce e reclinou-se

sem forças sobre a cama, de onde não sairia tão cedo. Schulze não se cansou de

amaldiçoar, nas semanas seguintes, o destino que trouxera o homem cansado

até a sua porta. Henrique já estava queimando de febre na noite em que chegara

e, durante vinte dias, ficou entre a vida e a morte. Por mais desagradável que

tudo isso fosse para Schulze, ele não era capaz de se opor às súplicas de sua

filhinha para chamar o médico e permitiu que ela, com a ajuda da empregada,

cuidasse do jovem. E, nessa tarefa humana, Lieschen mostrou-se incansável;

mais de uma vez o respeitável médico da colônia admitiu que o cuidado dela

para com o doente o teria salvado da morte certa. Isso deixava Lieschen muito

feliz, não só porque ela era essencialmente boníssima e humana, mas também

porque o rapaz pálido, de traços elegantes e de olhar belo, mas triste, havia lhe

despertado interesse desde o primeiro momento. Durante os vinte dias em que

ele delirara de febre, ela passara horas ao lado de sua cama, observando-lhe as

feições, que, a cada mudança de expressão, emanavam ondas gigantes de

sentimentos diversos, e ouvindo-lhe as fantasias, ora selvagens ora melancólicas

e sentimentais, em que, sobretudo, a palavra “mãe” e reclamações sobre

necessidades e miséria na casa dos pais eram temas recorrentes. Os delírios

febris ofereciam à menina entusiasmada apenas impressões rápidas e fugazes

sobre a vida particular do doente, mas tudo o que ela ouvia emprestava forma

positivamente luminosa ao moço; mesmo nas irrupções mais fortes do delírio,

ela não ouviu nenhuma palavra rude. O cérebro do pobre doente, martirizado

pela febre, mostrava-lhe recortes de uma longa história de sofrimento, mas não

havia aí nenhuma propensão para o mal e muito menos sentimentos de culpa.

Lieschen sentia-se quase como uma mãe para o doente; ela tinha consciêcia de

que, durante semanas, lutara com ele contra a morte, a qual queria arrastar a

sua vítima sem piedade alguma.

Enfim, a crise prevista pelo médico precipitou-se e Lieschen observava-a

com o coração na mão. Mas o destino era favorável ao doente; depois de suar

muito, este caiu em um sono tranquilo, durante o qual um sorriso feliz

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embelezou-lhe a face – era o alvorecer da saúde recobrada. Lieschen, que já fora

informada pelo médico sobre o significado desses sintomas, caiu de joelhos e

agradeceu fervorosamente aos céus. Então, correu até o pai com rosto radiante e

gritou-lhe: “Ele está salvo! Meu doente vai viver!”

Schulze recebeu a notícia com frieza resoluta e fez apenas a seguinte

observação: “Tanto melhor, assim acabam-se os gastos com o doente e você

também terá sossego. Você está realmente precisando, veja como ficou pálida e

magra durante esses dias.” Lieschen olhou para o pai com olhar desaprovador e

disse com voz trêmula: “Como você pode ser tão duro, paizinho. Ele estava

completamente arruinado. Deixe-me a alegria de vê-lo restabelecido, antes de

você tocá-lo de casa.”

“Claro”, replicou Schulze. “Tão rápido ele não vai conseguir andar; mas

quando estiver novamente com força, quero-o longe daqui, pois não posso

alimentar preguiçosos e sentimentalidade não é de modo algum meu ponto

fraco!”

Lieschen voltou ao seu doente, enquanto o pai continuou murmurando

contra o mulherio, sempre pronto a acolher.

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

No pequeno quarto, Henrique ainda continuava no sono tranquilo e

reconfortante, enquanto Lieschen o observava. O sol já se punha e os últimos

raios avermelhados entravam pela fresta da janela estreita, quando Henrique

abriu os olhos. Quando o olhar do doente caiu sobre Lieschen, o reflexo dourado

do sol poente cingia-lhe a cabeça, como se fosse uma auréola.

“Estou no céu? – Terá Deus me enviado um de seus anjos?” murmurou

Henrique.

Lieschen inclinou-se tímida sobre ele e pediu-lhe para ficar em repouso;

disse-lhe que estava cuidando dele e que o médico lhe prescrevera repouso

absoluto. Numa obediência comovente Henrique fechou os olhos novamente e,

depois de ela ter-lhe dado o remédio, ele caiu em sono profundo. Agora sua

respiração era tranquila e ele parecia envolto em um sonho bom.

Lieschen foi também para o seu quarto e deixou o doente aos cuidados

das empregadas, mas continuava sem sono; estava feliz demais por ter salvo a

vida de um ser humano. Na manhã seguinte, como em muitos outros dias,

encontrava-se ela ao lado da cama do doente, que convalescia rapidamente.

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Embora o pai ficasse resmungando por ela passar a maior parte do dia ao lado

da cama de Henrique, ela sabia como acalmá-lo.

Entre o doente e sua zeladora desenvolveu-se um relacionamento

especial. Para Henrique, a bela menina de bom coração era um verdadeiro anjo;

a imagem dela, ao vê-la envolta como em uma auréola de santa ao lado de sua

cama, quando recobrou os sentidos, o marcara profundamente e ele olhava para

ela com toda a adoração, da qual seu coração era capaz. Lieschen, em

contrapartida, encontrava no entretenimento com o rapaz um doce e

inexplicável prazer, que revelava um sentimento até então desconhecido em

suas relações e mostrava diante de seus olhos contemplativos o quadro de uma

vida espiritual de rara preciosidade. Em suas longas conversas, ele contava-lhe a

história de sua vida e de sua dor.

Era filho de uma viúva, que, com trabalho braçal na pequena cidade da

região de Brandenburg, se sustentava a si e a duas filhas de modo precário. O

pai, falecido precocemente, fora em certo momento um comerciante bem-

sucedido. Ao lado da esposa jovem, olhara para o futuro cheio de esperança,

prosperara nos negócios e experimentara a possibilidade de se tornar um

homem rico. Fora, então, que o destino trouxera para dentro de sua casa a visita

de um antigo colega de escola, Arno Rothenbusch. Este era um homem de

espírito empreendedor e um típico bajulador. O pai de Henrique não o via há

muito anos, mas sua volta à cidadezinha natal, onde os pais haviam falecido,

avivou-lhe toda a amizade de outrora. E Rothenbusch parecia merecê-la. Apesar

de ter, conforme as suas informações, um negócio próprio em Hamburgo e de

ter vindo à comuna para a compra de cereais, ele mostrava interesse, sobretudo,

pelo pequeno negócio do amigo, dando-lhe alguns bons conselhos e, quando

enfim surgiu uma excelente oportunidade para especular com cereais,

convenceu o amigo a participar com cinquenta por cento do investimento. A

mãe de Henrique sentira, desde o primeiro dia, uma certa desconfiança em

relação ao amigo do marido; seu olhar parecia-lhe instável, e, tímida, advertia o

esposo aqui e acolá para não se meter em negócios com ele. Mas o pai de

Henrique acalmava-a com a explicação de que ela não entendia nada de

negócios, de que Rothenbusch ter-lhe-ia apresentado ótimas referências e de

que estaria de posse de títulos de crédito; também lhe teria garantido

participação em um negócio, com o qual, no período de um mês, duplicaria seu

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patrimônio. Foi assim que o homem, baseado numa amizade cega, correu ao

encontro de sua ruína. Para participar da especulação, pediu dinheiro

emprestado, liquidou produtos e até hipotecou sua casa, a herança de sua

mulher. Cheio de confiança, colocou o dinheiro nas mãos do amigo Arno, que

partiu para fechar a compra nada módica de cereais.

Passaram-se vários dias sem que se tivesse notícias do desaparecido.

Depois de oito dias, o pai de Henrique, enfim, começou a ficar preocupado e

passou a dar ouvidos às observações de sua mulher. Apressou-se a viajar até

Magdeburgo, onde o grande negócio deveria ter sido concretizado, mas lá

ninguém tinha feito negócios com Arno Rothenbusch. Indo de uma firma a

outra, em todo o lugar foi-lhe dito não ter havido negócio algum, apesar das

suas assinaturas nos papéis carimbados, que Rothbusch guardava na pasta,

apesar das referências - todas elas eram falsificadas. Em contrapartida, o nome

de Arno Rothenbusch era muito bem conhecido, ele tinha sido demitido de uma

firma em Magdeburgo por causa de repetidas desonestidades e falsificações. O

pai de Henrique voltou à sua cidade natal como homem arruinado e

moralmente fracassado.

A polícia fez de tudo para capturar o trapaceiro, mas ele contava com

uma vantagem muito grande: na época, trens e telégrafos eram ainda apenas

santos objetos de desejo. Embora tivessem seguido suas pegadas até Hamburgo,

lá elas desapareciam em definitivo. O larápio era esperto; com certeza não

mostrou o dinheiro e sumiu sem deixar rastros.

O pai de Henrique era agora um homem arruinado. Para cumprir com

suas obrigações, vendeu a casa, mas, ainda assim, precisou desistir da loja e

passou a levar uma vida miserável com a família, até que, depois de catorze

anos, foi enfim levado pela tuberculose, deixando uma viúva com duas filhas

pequenas e um menino, nosso Henrique.

A mãe, uma mulher estudada, educou os filhos na indigência e na

provação, mas ensinou-lhes o que sabia e lhes deu as melhores lições. Henrique

cresceu e teve a sorte de ser empregado pelo padrinho, um velho amigo de

negócios de seu pai, numa firma em Hamburgo. Então, a esperança voltou ao

pobre coração da mãe; naquela casa grande um futuro promissor haveria de

florir para o seu filho. Porém, o homem põe e o destino dispõe: tão logo

Henrique se tornou contador, o amigo de seu pai e seu protetor faleceu, e o novo

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chefe, o filho do falecido, passou a desfavorecê-lo constantemente, já que era

preguiçoso e bem menos talentoso do que ele. O falecido muitas vezes lhe

apresentara Henrique como exemplo e isso aguçara-lhe o ódio contra o modesto

rapaz. Sendo agora o dono da firma, vingou-se do inocente de um modo

terrível: não contente em apenas demiti-lo, também o difamou, fechando-lhe

todas as portas na cidade. Como Henrique tinha enviado todo o dinheiro que

recebera para a mãe, não possuía nada, nem mesmo o montante para pagar a

viagem de volta para casa. Em vão, procurou um emprego, mesmo que fosse

trabalho braçal; em todos os lugares exigiam-lhe referências e estas ele não

tinha. Sem um teto, dormira durante noites ao ar livre, melhor dizendo, sobre

um banco ou sob uma ponte. A fome apertara-lhe as entranhas e o desespero

tinha tomado conta dele, de modo que pensara até em suicidar-se. Assim

perambulava naquela noite pelas ruas, quando chegou a um restaurante

iluminado, onde se ouvia o tilintar de copos e alegre cantoria; o refrão dizia o

seguinte: “Viva, viva, a artilharia brasileira!” Então, ocorreu-lhe que, naquele

momento, estavam procurando soldados para o Brasil e percebeu que inscrever-

se para o recrutamento era a sua chance de salvação. Entrou rápido e decidido

no restaurante, perguntou se havia algum oficial ali e, ao ser conduzido a este,

pediu-lhe com insistência para não recusá-lo. O oficial agradou-se do belo rapaz

e de sua inteligência, e ofereceu-lhe o jantar e um quarto para pousar. Na

manhã seguinte, no escritório do capitão Martim Valentim, assinou seu contrato

e informou a mãe sobre a decisão desesperada, que havia tomado, por meio de

uma carta, onde lhe explicava tudo o que estava acontecendo. Três dias depois,

foi conduzido ao excelente navio “Heinrich” e velejou mar afora rumo ao

longínquo Brasil.

Henrique sabia contar muitas histórias sobre a vida no navio, sobre o gordo

capitão Boyen, para quem os soldados aprontaram "uma cabeça de porco" (um aspic de

salsicha, preparado para a cabina) e a quem, mais tarde, atacaram duramente numa

espécie de rebelião.

É bem verdade que ele passou por poucas e boas com a tripulação, um

tanto quanto estranha para ele. Quando ele se intimidava diante dos modos

rudes, que, aqui e acolá, se viam entre os mercenários, eles o chamavam de

sonso e até mesmo faziam piadas nada delicadas com ele, mas, de modo geral,

era um pequeno grupo razoavelmente tranquilo e a viagem, apesar de um

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incidente mais grave, transcorreu de maneira bastante agradável. Durante a

travessia, Henrique entrosou-se com alguns jovens com instrução, também

atraídos ao Brasil “no ano especial”, e que gostavam de entreter-se com o rapaz

modesto e bem educado.

Henrique descreveu a baía do Rio de Janeiro com entusiasmo para a sua

ouvinte atenciosa e a impressão fantástica, que teve da natureza tropical.

Depois, contou-lhe da sua vida de soldado no forte da Praia Vermelha, como ele

adoeceu gravemente, como o generoso rei visitou o hospital militar e dirigiu

palavras amigáveis aos pobres doentes; como ele foi enviado ao sul, quando

ainda não estava recuperado, como esteve em Santa Catarina com o navio a

vapor ‚Paquete do Sul‘ e como quase naufragou na barra do Rio Grande, e assim

por diante. Também lhe descreveu a vida na guarnição do Rio Grande, arenoso e

tétrico, e contou-lhe, depois, como a sua saúde foi se fragilizando cada vez mais,

como a inveja do sargento lhe amargurou a vida e como, em última instância,

diante das constantes humilhações do sargento, não lhe sobrara nada a não ser

procurar a salvação na fuga. Assim, ele deambulou, passando pelas cidades de

Norte e Mostardas, com roupas velhas de civil, compradas com o ouro

economizado, tendo dormido várias noites ao ar livre, tendo passado fome, até

encontrar aqui e ali algum trabalho ou almas compassivas, que o protegiam.

Todavia, ninguém queria ficar com ele por muito tempo em casa, pois todos

viam que era um desertor e, assim, ele precisava, então, seguir viagem. O

terreno arenoso tinha-lhe arruinado os pés, a fome havia-lhe tirado as forças, e,

agora, que vinha de Viamão e tinha de contornar Porto Alegre para não ser

capturado, e já que não ousava mais aproximar-se dos vilarejos e dos sítios, sua

situação se deteriorara. Sua meta era a colônia alemã, mas em todos os lugares

os camponeses desconfiados o rejeitavam, pois os “Brummer” não gozavam de

boa fama. Assim foi até que, finalmente, diante da casa de Schulze a doença se

apoderou dele e o derrubou.

O que contamos aqui em poucas linhas era assunto de diálogos

intermináveis entre o convalescente e sua cuidadora, e nos catorze dias de sua

recuperação o relacionamento entre os dois foi se tornando cada vez mais

amigável e íntimo.

O coração humano é de uma natureza muito particular. Beleza, força e

autoconsciência, muitas vezes, não o influenciam tanto quanto a bondade e

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mesmo a fraqueza. A mulher carrega em seu peito um tesouro infinito de amor,

que oferece ao mundo, e, com frequência transforma a compaixão em amor.

Assim acontecia a Lieschen, que em sua inocência nem mesmo percebia que a

sua compaixão para com o pobre moço há muito merecia um outro nome. Ela

passava o tempo todo ao seu lado e, antes que se conscientizasse disso, estava

completamente apaixonada por ele. E, é claro, este sentimento não ficou sem

resposta. Pela primeira vez, no país estrangeiro, onde ele sofrera tanto, um

coração amável, que batia no peito de uma jovem e bela menina, ia de encontro

a Henrique. Lieschen ainda estava confusa em relação aos seus sentimentos por

Henrique; ele porém estava seguro dos seus, e quanto mais o momento de sua

total recuperação se aproximava, tanto mais triste ele se tornava, pois também

significava o dia de sua partida. Embora parecesse que não conseguiria livrar-se

do abrigo, que encontrara ao lado da linda menina, um dia de manhã, ouviu

com tremor e medo as palavras ásperas de Schulze, que entrou em seu quarto

para dizer-lhe que já estava reestabelecido e que deveria agora procurar um

outro teto, já que não podia mantê-lo por mais tempo em sua casa. Lieschen

ainda conseguiu prorrogar a sua partida por oito dias. Mas estes se passaram

rapidamente e a última noite antes da partida havia chegado. Há muitos dias

Lieschen estava pálida e triste; na última tarde ao anoitecer, ela ainda foi

passear com ele, e o caminho levou-os ao lugar romântico e belo, onde a pobre

Maria estava enterrada junto dos filhos. Lá, no túmulo da sua mãe, a dor tomou

conta dela e, quando, enfim, Henrique, num arrebatamento, caminhou até ela e,

com voz trêmula, lhe disse que amanhã tinha que ir embora, pedindo-lhe para

não se esquecer dele em suas horas sagradas junto ao túmulo de seus amados,

ela comoveu-se e sentiu que amava Henrique mais do que a própria vida.

Como é que, assim, num momento, lá estava ela encostada ao peito de

Henrique, os lábios colados num longo beijo ardente, - quem é capaz de dizê-lo?

E esqueceram-se do mundo à sua volta, além do amor infinito e

poderoso, que reinava em seus corações, nada sentiam nem entendiam. Ah, que

momento sagrado esse, quando duas almas jovens inocentes se encontram e

compreendem que, de agora em diante, se pertencem para sempre.

_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Mas esse não era o pensamento do homem, que agora voltava do moinho

e de longe já tinha avistado os dois junto à sepultura. Ao ver sua filha, a rica e

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bela filhinha de Schulze, nos braços de um desertor maltrapilho, que não tinha

nem onde cair morto, a raiva se apoderou dele, pondo-se a praguejar contra o

rapaz! “Eu já imaginava, que o garotão iria seduzir a minha menina. Razão pela

qual eu não queria acolhê-lo de modo algum; maldita a hora em que acolhi o

traste em minha casa!”

Com passos rápidos, chegou até a colina; os amantes não ouviam nem

viam nada, - faltava-lhes o chão. “Traste, infame!” gritou Schulze. “Deixe a

minha filha!” E, com braço de ferro, afastou a moça e ergueu a mão contra o

jovem rapaz. No primeiro momento, Henrique recuou espantado, enquanto

Lieschen caiu de joelhos, calada, ao lado do túmulo da mãe. Mas, quando

Schulze ergueu a mão para Henrique e passou a agredi-lo verbalmente: “Trapo,

preguiçoso, malandro, vou dar-lhe uma surra, se não sumir daqui

imediatamente e para sempre!” – então, o sangue do moço subiu-lhe nas veias

e, com voz baixa mas firme, retrucou: “Senhor Schulze, agradeço-lhe a bondade

de ter-me acolhido, mas, por Deus, não me bata, isto eu não poderia suportar,

por amor a ela, que amo e venero como a uma mãe!”

“Você ainda se julga no direito de argumentar, seu desertor desgraçado?”

“Só quero dizer-lhe mais uma palavra: vim aqui com sua filha para

despedir-me dela para sempre. Eu a amo do mais fundo de minha alma, mas sei

que jamais deverei desejá-la para esposa. Apenas vim dizer-lhe adeus”

“Isso é verdade?” perguntou Schulze à filha.

“Sim, mil vezes sim; eu sozinha sou culpada, eu o amo de modo

indizível”, soluçou Lieschen.

“Já vou curá-la desse amor.”

“Senhor Schulze”, continuou Henrique, “depois do que aconteceu, só me

resta ir embora. Deus lhe perdoe as palavras duras, que acaba de me dirigir;

não posso nem consigo odiá-lo, pois devo à sua bondade a minha vida. Só vou

pedir-lhe uma coisa: não magoe a sua filha, não aconteceu nada de mais entre

nós dois.”

“O algoz agradece-vos as palavras; se eu não acreditasse nisso, você não

deixaria este lugar vivo. Mas agora mova-se, afaste-se da minha propriedade, e

você, criança mal educada, tome o caminho de casa!”

Henrique inclinou a cabeça diante de Lieschen. “Seja feliz, Lieschen!

Nunca mais a verei, mas a sua imagem vai acompanhar-me até o túmulo, e, se

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você, um dia, for feliz ao lado de outro, lembre-se do pobre Henrique

Tannenheim, para quem você é o primeiro e último amor!”

Henrique fazia menção de afastar-se, enquanto Lieschen escondia o rosto

entre as flores do túmulo, soluçando alto.

De repente, Guilherme Schulze sofreu uma estranha transformação. Ali

ficou ele parado, como se um fantasma tivesse saído da terra e se colocado à sua

frente; pálido como um cadáver, de olhos arregalados, parecia devorar Henrique

com os olhos. “Que nome você disse?” adiantou-se ele com esforço. “Quem se

chama Henrique Tannenheim?”

O rapaz virou-se admirado. “Henrique Tannenheim é meu nome.”

“De onde você vem?” Perguntou Schulze numa tensão, que lhe tirava o

fôlego.

“De T....... da região de Brandenburg.” Admirado, o olhar de Henrique

fixou o homem forte, que tremia como uma vara verde e estava estático como se

um raio em plena luz do dia o tivesse atingido. “Adeus, senhor Schulze, eu lhe

agradeço”, disse Henrique e foi se dirigindo ao atalho, que levava ao caminho

principal.

“Não – senhor – Tannenheim, – leve Lieschen para casa – eu já vou –

preciso ainda lhe falar.”

Admirado, Henrique olhou para o homem, enquanto Lieschen com

esperança renovada se ergueu rapidamente.

“Mas, Senhor Schulze, depois do que o Senhor acaba de me dizer –”

“Vão, vão. Deixem-me – preciso ficar sozinho.”

Calado, Henrique ouviu sem compreender uma só palavra, e afastou-se

com Lieschen na direção da casa. Lá esperaram entre o medo e a esperança pela

chegada do pai, que devia decidir o destino deles.

Mas onde estava Schulze?

De joelhos, o homem forte demorava-se no túmulo de sua mulher e, ali

durante horas, obstinou-se em pensamentos tenebrosos. Um conflito intenso

devia estar se desenrolando em seu peito e precisou de muito tempo para

amenizá-lo. Enfim, levantou-se e voltou para casa. Tremendo, Lieschen o

recebeu na sala. “Onde está Henrique?” perguntou ele com voz

surpreendentemente mansa.

“Em seu quarto.”

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Schulze dirigiu-se à filha, e passando a mão em seus cabelos loiros,

olhou-a nos olhos embaçados de lágrimas com amor infinito e melancolia.

“Conte-me, minha filha, como tudo isso aconteceu.”

E Lieschen contou-lhe de início pausadamente, mas depois com

entusiasmo desenfreado o pequeno romance do seu amor. Quando passou a

contar a história de Henrique, o pai sentou-se na sombra e pediu-lhe com voz

fremente que contasse a história com o máximo possível de detalhes. E Lieschen

assim o fez. Soluços fortes se desprendiam de tempos em tempos de seu peito,

principalmente quando ela falava com indignação juvenil da maldade do tal

Arno Rothenbusch e descrevia a miséria com que a pobre família teve de se

confrontar.

Quando ela terminou a história, Schulze perguntou-lhe com voz quase

trêmula: “E você realmente ama esse homem? Você realmente acredita que sem

ele não conseguirá ser feliz?”

Profundamente acanhada, Lieschen soluçou: “Sim, eu o amo acima de

tudo. Acho que morreria, se o perdesse.”

“Certo, minha filha; agora vá dormir – amanhã continuaremos a

conversa.” E, abraçando a filha, deu-lhe um beijo carinhoso na testa. Lieschen

não conseguiu dormir; tarde da noite ouviu os passos pesados do pai, que em

seu quarto andava de um lado para o outro. Era um último conflito intenso que

martirizava o peito do homem, que até então tinha enfrentado resoluto todas as

tempestades da vida. Mas, enfim, a luta terminara e, enquanto seus lábios

murmuravam a palavra “expiação”, a paz se restabelecia em seu espírito.

Sentou-se à escrivaninha, escreveu algumas linhas, queimou, depois, muitos

papéis, pôs em ordem outros, contou dinheiro e títulos, e em seguida trancou o

cofre novamente. O homem devia ter envelhecido naquelas poucas horas para

mais de dez anos. – Na ponta dos pés, entrou no quarto de Lieschen, que se

encontrava no primeiro sono, e, empurrando o molho de chaves sob o

travesseiro dela, olhou-a longamente sob a luz fraca, que trazia na mão,

enquanto lágrimas molhavam sua barba branca. Então, a menina mexeu-se; ele

temeu acordá-la e abandonou o quarto com um suspiro pesado. Pegou o chapéu

e o sobretudo e, com passos leves, saiu da casa, colocou a sela sobre o cavalo e

desapareceu pela estrada rumo a Porto Alegre antes do amanhecer.

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Quando Lieschen acordou logo ao raiar do dia, encontrou sob o

travesseiro as chaves de seu pai e um bilhete com apenas algumas palavras:

“Minha queriada filha! Uma necessidade inesperada forçou-me a ir

imediatamente a Porto Alegre; antes disso, porém, quero deixar-lhe o meu

consentimento em relação ao seu casamento com Henrique Tannenheim. Que

ele possa fazer você feliz tanto quanto você merece. Deixei as chaves, que você

pode passar ao Henrique, a quem confio os meus negócios, enquanto estiver

fora.”

Lieschen não entendeu nada daquilo. Vestiu-se rapidamente e procurou

Henrique, que estava no jardim após uma noite mal dormida. Também ele

estava muito admirado com o comportamente estranho de Schulze, mas não

menos feliz em relação ao desenlace da situação.

Os pobrezinhos, que no dia anterior tinham sofrido tanto, estavam agora

à beira de satisfazer seus desejos e, no entanto, estavam com medo. Não

entendiam o pai e temiam ainda alguma mudança nas relações.

Depois de três dias, veio uma carta de Porto Alegre. A primeira coisa que

lhes caiu nas mãos foi uma escritura, na qual Guilherme Schulze fazia a doação

de todos os seus bens móveis e imóveis para Henrique Tannenheim, com a

condição de que este se casasse, dentro de um prazo de dois meses, com

Lieschen e, depois da venda dos bens, voltasse definitivamente para a

Alemanha. Junto havia uma carta de Schulze:

“Meus caros filhos!

Um destino inesperado forçou-me a abandoná-los para sempre. Não se

assuste, minha querida filha; não encontro palavras para dizer o quanto a amei,

minha única filha, e, apesar disso, não a verei novamente. Assim é que deve ser

e não tenho o direito de reclamar. Henrique! No documento anexo, passo para

você todos os meus bens. Faça Lieschen feliz, mas venda tão rápido quanto

possível os bens e volte com ela para a Alemanha, onde está a sua mãe. A mim

nunca mais verão. Façam isso por amor do pai de vocês.”

Vamos abdicar de descrever a impressão, que estas linhas causaram em

Henrique e Lieschen. Ela estava inconsolável, sentia-se culpada por seu amor

ter ocasionado aquela situação e chorou durante semanas. Henrique conseguiu

enfim consolá-la e, quando se conformou com o triste destino de ter perdido o

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pai para sempre, depois de dois meses, seguiu-se o casamento. Os amantes

estavam inominavelmente felizes. Na colônia, corriam os boatos mais loucos

possíveis sobre a atitude de Schulze e acreditava-se, de modo geral, que tivesse

cometido suicídio; somente Henrique e Lieschen pensavam o contrário.

A escritura de doação era absolutamente legítima. Henrique liquidou

com cautela o patrimônio e, com as vendas, alcançou uma soma, que lhe

permitiu voltar à sua cidadezinha natal quase como homem rico, passando a

viver com toda a sua família. Para Lieschen a despedida da casa de seus pais e,

principalmente, da supultura de seus amados foi muito dolorosa; mas também

isso foi superado e, quatro meses depois do sumiço de Schulze, o jovem casal

embarcou em Porto Alegre rumo à Alemanha num navio da cidade de

Hamburgo. Durante a viagem, Lieschen ainda sentia muitas vezes tristeza

profunda sempre que se lembrava do pai e nunca mais teve notícias sobre o seu

destino, mas o amor de Henrique a consolava e quando, finalmente, chegaram a

T..., quando a mãe e a irmã de Henrique os receberam com amor infinito,

quando ela viu como o seu patrimônio devolveu a essa família pobre a felicidade

e a paz, embora ainda se lembrasse do pai com amor fiel e profunda melancolia,

ela agora estava feliz.

* *

*

Dez anos haviam se passado desde que Henrique havia partido do Brasil.

Lieschen estava no auge de sua beleza e três crianças encantadoras faziam de

Henrique um pai muito orgulhoso. O patrimônio de Lieschen tinha duplicado

nas mãos de Henrique e, depois da reabertura da velha firma, a família

Tannenheim passara a pertencer às mais ricas da pequena cidade. Ainda

recordavam com grande nostalgia o pai desaparecido da jovem esposa, do qual

nunca mais se ouviu falar. Foi, então, que Henrique numa manhã recebeu em

sua caixa do correio uma carta de Porto Alegre. Estava assinada por um

comerciante, que informava o senhor H. Tannenheim do falecimento na Santa

Casa de um velho coveiro alemão, que acabara de chegar da região da

campanha. Em seu leito de morte, chamara o redator da carta, que para seu

máximo espanto reconhecera nele um antigo amigo de negócios da colônia, que

se chamava Guilherme Schulze. Schulze ter-lhe-ia negado qualquer tipo de

informação e apenas teria pedido para informar a sua morte ao senhor H.

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Tannenheim em T.... e enviar-lhe essa carta, encargo do qual se incubira e que

acabara de cumprir. Apreensivo, Henrique abriu a carta anexa e bem fechada,

em cujo endereço reconheceu a letra de Schulze, que deixava entrever uma mão

já bastante trêmula. A carta continha apenas as seguintes linhas:

“Meu filho!

Quando você receber esta carta, a morte já terá chamado este, que trouxe

miséria inominável para vocês. Não se zangue mais com ele, Henrique; ele

expiou o malfeito, não só com dinheiro e bens, mas também com o que lhe era

mais caro nesta terra: ele lhe deu sua filha, e para não envenenar a vida dela

com vergonha eterna, renunciou a revê-la e a alegrar-se com sua felicidade.

Henrique, eu cometi um pecado grave contra vocês, mas paguei caro por ele.

Como fogo, queimava em mim o bem, que obtive de modo desonesto. Fui

castigado com a perda de minha mulher e de meus filhos e, por último, tive de

renunciar espontaneamente à minha filha. Sem alegria, durante dez anos

arrastei-me por uma existência miserável e saúdo a morte como libertadora.

Torne a minha filha feliz e nunca lhe diga o verdadeiro nome do pai, para que

não precise desprezá-lo! Oxalá, você e sua mãe possam perdoar a este infeliz

Arno Rothenbusch, conhecido como Guilherme Schulze.”

“Eu já imaginava”, murmurou Henrique, enquanto escondia a carta no

lugar mais secreto de sua escrivaninha. “Pobre homem, você nos trouxe muita

infelicidade, mas você também expiou o seu pecado, como somente um homem

de rara força de vontade poderia fazer.” –

Na mesma noite, Henrique informou a esposa da morte de seu pai em

Porto Alegre; mas, para ela como para a mãe e a irmã, o falecido continuou

sendo Guilherme Schulze, o benfeitor da família Tannenheim.

Fonte:

Koseritz, Carl von. Die Sühne. Erzählung aus der Colonie. In: Koseritz’

Deutscher Volkskalender für die Provinz Rio Grande do Sul. Porto Alegre,

Walther Kühn, 1875, p. 33-63.

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