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Grupo RELLIBRA - "Relações Linguísticas e Literárias Brasil-Alemanha" | www.rellibra.com.br
Credenciado na USP e no CNPq
Coordenação Geral: Profa. Dra. Celeste Ribeiro de Sousa
KARL VON KOSERITZ 1830-1890
(Celeste Ribeiro de Sousa) 2012
A expiação Um conto da colônia*
Karl von Koseritz
I
O velho Guilherme Schulze era um homem respeitado na colônia. Ao
tempo da nossa narrativa, no início dos anos quarenta, ele já estava quase há
vinte anos no Brasil e era bem sucedido nos negócios. Havia chegado com os
primeiros colonos estimulados pelo major Schäffer; ele havia aceitado uma
colônia de terra na mata virgem; cultivou-a com mais um camarada, mas sem
grandes expectavivas.
Não se pode dizer que era um sujeito exemplar. Com alguns
companheiros de Mecklenburgo, não muito civilizados, cujo passado todos
conheciam, era um frequentador assíduo dos botecos, então ainda raros, e
deixava as suas terras serem tomadas pelo capim. Ainda mais, quando o
companheiro, um homem econômico e bem humorado da região do Reno se
afastou dele, dizendo que o negócio não lhe interessava e que Schulze era muito
fechado, resmungão e só se animava no boteco junto a um copo de cachaça.
Durante alguns anos, Guilherme Schulze conduziu seus negócios dessa
forma, suas plantações se perdiam e ele dividia o tempo entre a caça e os
botecos.
* Tradução de Alceu João Gregory. Koseritz, Karl von. Die Sühne. Eine Erzählung aus
der Colonie. In: Koseritz’ deutscher Volkskalender für die Provinz Rio Grande do Sul,
Porto Alegre,1875, p.33-63. Revisão: Celeste Ribeiro de Sousa.
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Dinheiro nunca lhe faltava. Vez por outra, até trocava barras de ouro nas
tavernas, e barras de ouro com impressão alemã e francesa, que, segundo ele,
teria ganho com a venda das peles de suas caças.
Vendo o modo como administrava suas economias, as pessoas
balançavam a cabeça e evitavam-no. Aqui e acolá, falava-se mal dele e a alegria
foi quase geral, quando, depois de ali ter trabalhado durante quatro anos, sumiu
da colônia. Como se ouviu dizer mais tarde, teria ido para a região da campanha
com a intenção de construir sepulturas e, depois, estabelecer um comércio em
algum lugar.
Passara-se aproximadamente um ano sem que se tivesse notícia do assim
considerado desaparecido, quando um homem ainda jovem, que fora comprar
cavalos na fronteira, contou ter encontrado o Schulze em São Gabriel. Estaria
bem trajado e com muito dinheiro, e teria perguntado por este e aquele na
colônia, mas não teria dito nada sobre suas relações pessoais.
Transcorrido mais um ano, soube-se que Schulze ia com frequência a
Porto Alegre, onde vendia peles e outros produtos da campanha e que estava
bem. Não tardou e, um belo dia, correu pela colônia a notícia: “Schulze está de
volta; ele trouxe com ele uma moça de Porto Alegre, e quer comprar terras e
estabelecer-se aqui!”
E assim aconteceu. Guilherme Schulze, o antigo preguiçoso, apareceu na
colônia com a segurança de um homem financeiramente bem posto, era amigo
de todos, não frequentava mais os bares e comprou terras excelentes à margem
do rio por cinco mil réis. Em pouco tempo, havia construído uma bela casa e
habitou-a com a jovem esposa, uma moça muito bela e modesta, que acabara de
chegar da Alemanha com a família, se empregara em Porto Alegre, onde
conhecera o marido.
Schulze era um esposo feliz e o homem, outrora fechado, parecia ter
desaparecido por completo, principalmente, quando depois de alguns anos o
sorriso satisfeito da mulher se espelhava no rosto de dois meninos
encantadores, que se tornaram a alegria e o orgulho de sua vida. Agora,
ninguém superava o antigo andarilho em atividades sérias e trabalho
inteligente. Não tardou e suas plantações, nas quais mantinha vários
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empregados, floresceram maravilhosamente; sua fazenda de gado tornou-se a
mais grandiosa da colônia e uma loja de produtos bem selecionados, à qual ele
adicionou mais tarde um moinho e uma serraria, rendeu-lhe grandes lucros.
Embora muitos o invejassem e outros lhe atribuíssem participação nos roubos
da igreja, ninguém podia gabar-se de ser seu confidente, pois embora fosse
amigo de todos, mantinha uma certa frieza e discrição, – não havia como
colocar em cheque seus esforços, sua inteligência e sua pontualidade. Sua
mulher, bela e de configuração mignon, fora uma aparição tão doce e bondosa,
como mal se podia imaginar e todos lhe desejavam sorte, a mesma sorte, que
acompanhava os empreendimentos do marido. E a Maria do Guilherme Schulze
era realmente feliz: seu marido amava-a profundamente, carregava-a nos braços
e realizava todos os seus desejos, tão logo eles se manifestavam em seu olhar. Os
dois filhos cresciam saudáveis e felizes, eram bem educados e bonitos, e até
mesmo seu único desejo, o de também ter uma menina, fora realizado, ainda
que um pouco tardiamente. Lieschen, a linda filhinha loira de Schulze, tinha no
ano de 1842, no início do nosso conto, apenas seis anos, quando os dois irmãos
já tinham doze e catorze. Seria difícil imaginar uma família mais feliz, não fosse
uma melancolia lúgubre, que, de tempos em tempos, ofuscava a mente de
Schulze, embora os carinhos da esposa e de Lieschen sempre afastassem as
nuvens para longe.
II
Lá fora a tempestade rugia e o minuano atirava a chuva gelada contra as
janelas da casa de Schulze. Ele tinha fechado a loja, não só por causa do tempo
ruim, mas também porque uma corja perigosa andava pelas redondezas, e
porque corriam boatos sobre a presença do Menino diabo, aquele ladrão ousado
dos tempos da Revolução.
Era pelas sete horas da noite, já havia escurecido havia uma hora e meia,
pois estava-se no mês de junho, quando os dias são curtos e as noites
infinitamente longas. Se lá fora havia desassossego, tanto mais confortável era
estar na sala do velho Guilherme Schulze. Chamavam-no de velho por causa dos
cabelos totalmente grisalhos, embora tivesse apenas quarenta e dois anos. A
grande sala oferecia quase um conforto urbano e nem sequer ali faltava o, à
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época, moderno fogão de ferro, que espalhava o calor pela casa. Sobre a grande
mesa, de onde a mulher de Schulze, ainda bela, acabara de tirar os pratos do
jantar, ardia uma lamparina de óleo com cilindro de vidro esbranquiçado e, a
uma das pontas da mesa, achava-se Schulze sentado, de roupão espesso, com
pantufas quentes nos pés e, na cabeça, um gorro de pele de lontra, que seu filho
mais velho tinha caçado. A luz da lamparina caía em cheio sobre a fisionomia do
homem, que era decididamente atraente e tinha uma expressão de energia rara.
Todavia, seu olhar taciturno, sombreado por sobrancelhas espessas, revelava
algo inquietante, preocupação (ou arrependimento), que lhe tinha criado sulcos
profundos na testa e em torno da boca. Schulze lia um velho exemplar da
“Revista Financeira” (“Pfennigmagazins”), aquela primeira tentativa alemã de
ilustração, com xilogravura rústica e papel cinza, da qual todos ainda nos
lembramos com sereno prazer, – pois nos recorda dos tempos despretensiosos
de nossa juventude, quando o progresso irrestrito da atualidade ainda não tinha
inundado tudo com ilustrações –, enquanto os seus dois rapazes, fortes e
garbosos, com traços verdadeiramente belos e os cabelos loiros de sua mãe,
faziam as lições, que o pai sempre controlava com rigor extremo. Lieschen, a
loirinha encantadora, estava sentada no colo do pai, segurava-lhe o cachimbo e
não se cansava de olhar as xilogravuras do livro, as quais ela saudava com
entusiasmo assim que o velho virava uma página.
Quando Maria, a mulher de Schulze, terminou de arrumar a louça, pegou
o tricô e sentou-se ao lado do pai, que acabara de mandar os dois meninos
guardarem os cadernos e começava a ler com voz grave e sonante um dos contos
do velho livro, já tantas vezes ouvido. O que se via era um quadro emocionante
de paz domiciliar, de felicidade familiar alemã, – assim também parecia a um
homem a cavalo em frente à casa, que acabara de chegar e, alçando-se nos
estribos, através do recorte em forma de coração na janela fechada, lançara um
olhar para dentro da sala.
No mesmo instante, os cachorros acudiram e Schulze ergueu-se para
verificar, quem era o estranho, pois o temporal o impedira de ouvir o trote do
cavalo. Pela porta entreaberta, ele perguntou: “Quem está aí?”
“Um viajante cansado, que, neste tempo horrível, pede abrigo em casa de
colonos alemães.”
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“Um homem do campo é sempre bem-vindo em minha casa; pode apear-
se, forasteiro, e entre aqui na sala aquecida, os rapazes vão cuidar do seu
cavalo.”
Enquanto os dois moços, envoltos em grossos casacos, seguiram as
ordens do pai, o forasteiro entrou na sala e despiu o poncho, do qual escorria
água. Maria trouxe-lhe meias e pantufas do marido, enquanto este lhe ajeitava a
cadeira de espaldar junto ao fogão e ordenava à empregada, que acorrera, o
preparo de um lanche para o hóspede.
“Deus lhes pague pelo que fazem a um viajante, que já temia não alcançar
mais a colônia e ter de acampar a céu aberto com este tempo.”
“Bem, não há muito a pagar; mas, para se aventurar com um temporal
destes, quando nem mesmo os cachorros saem, deve estar com muita pressa.”
“Pressa não é bem a palavra”, retrucou sorrindo o forasteiro, que usava
roupas escuras sóbrias, “mas eu sou viajante e tão somente viajante; não sou
daqui e, por isso, permaneço em todos os lugares apenas o tempo que a
necessidade determina.”
“Se me permite a pergunta, de onde está vindo?”
“Venho da Serra e vou para Porto Alegre.”
“E no caminho não foi importunado por nenhuma patrulha dos malditos
farrapos?”
Não, também não iriam encontrar nada em mim que pudesse aguçar sua
ganância.”
“Mas, para esse pessoal, um poncho e os arreios de um cavalo são o
suficiente para cortarem o pescoço de dez pessoas!”
“Parece que você está do lado da realeza!”
“Isso não; não sou, graças a Deus, tão idiota, como muitos de meus
compatriotas, que ficam fuçando em coisas, que não lhes dizem respeito. Eu
vendo meus produtos tanto a um quanto a outro, e, quando as pessoas pagam, o
ouro dos farrapos é para mim tão bom quanto o da realeza. Se não o fazem,
então, mantenho distância dos dois.”
“E isso sempre deu certo?”
“Até hoje sim; é que todos eles sabem que com o Guilherme Alemão não
se brinca.”
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Ao proferir estas palavras, percebia-se um traço duro, quase malévolo em
sua boca.
“Não se pode negar a sua autoconfiança.”
“Seria péssimo, se não fosse assim. Veja, a sua comida já está na mesa; vá
em frente e bom apetite.”
O viajante não esperou uma segunda ordem e a carne fria com o pão com
manteiga deliciaram-no. Um copo de vinho branco português também lhe
agradou e, depois de estar satisfeito, agradeceu a Schulze a hospitalidade com
palavras simples, mas comoventes. “
“Não há de quê”, retrucou este. “Nada mais do que obrigação e dívida em
terra estrangeira.”
“Faz tempo que vive aqui?”
“Há mais de vinte anos.”
“Então, veio com os primeiros colonos?”
“Exatamente, mas primeiro tive de amargar muitas perdas, antes de ter
algum êxito.”
“Veio do norte da Alemanha?”
“Isso não”, apressou-se Schulze em responder com um olhar um tanto
sombrio. “Sou da Renânia, nasci em Koblenz.”
“Estranho, o seu dialeto me lembra mais o Mark.”
“Pelas contas do rosário! riu Schulze um tanto áspero. Não, Deus me
livre, isso eu só conheço de ouvir falar. Sou da região do Reno, conhecida pelos
bons vinhos.”
“Não me leve a mal; errar é humano. Eu mesmo sou pomerano e muitas
vezes já fui confundido.”
“Também não teria acreditado; aliás, conheço muito poucos pomeranos.
Aqui não há nenhum.”
“Todavia, esta seria uma bela terra para os meus compatriotas. O braço
pomerano poderia dar-se bem aqui.”
“Os Hunsrücker, como eles nos chamam, os da região do Reno e do
Mosela, também sabem lidar com a terra.”
“É, já ouvi dizer isso. Em contrapartida, não se ouve muita coisa boa em
relação aos de Mecklemburgo.”
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“Deve ser a inveja”, retrucou Schulze, “pelo menos em relação a alguns,
que progrediram rapidamente.”
“É! O que se conta por aí de histórias de roubos de igrejas ....”
“Muito se ouve falar disso, e gente também há por aí, que hoje está bem,
mas não pode dizer de onde provêm suas posses, mesmo não sendo roubo de
igreja. A revolução oferece muitas oportunidades.”
“É muito triste”, disse o forasteiro, “que também alemães enriqueçam às
custas de outros. Em uma terra tão abençoada por Deus isso realmente não
seria necessário. Você, por exemplo, se deu bem rapidamente.”
“Não posso me queixar, mas também fiz negócios no interior, lidei com
gado e trabalhei feito um doido.”
“Não tenho dúvidas; por isso pode se alegrar com as suas posses, pois
quem se apodera dos bens alheios, não pode se sentir feliz com eles.”
“Você acha mesmo?” Perguntou Schulze um pouco tenso. “Ouça, mulher,
mande as crianças para a cama.”
As crianças disseram “boa noite” e Schulze, colocando sobre a mesa uma
garrafa de vinho branco e dois copos, convidou o forasteiro a se aproximar e a
beber mais um pouco. Depois de encher os dois copos com vinho branco,
ponderou:
“Você acredita, portanto, que o bem injustamente conseguido não
prospera?”
“Não é bem assim. Muitas vezes prospera, mas – as pessoas não ficam
mais felizes consigo mesmas.”
“Isso dizem os padres no altar; mas eu conheço uns quantos, que não
estão nem aí para roubar o bem alheio.”
“Pode até ser; mas vem um dia, em que o arrependimento se abate sobre
todos.”
“Por acaso você é um padre?”
“Deus me livre” riu o homem, “sou um pesquisador e padre combina
comigo como a cabra com o jardim ou a raposa com o galinheiro; afinal, alguém
como eu, que pesquisa a natureza em suas profundezas e que, diariamente,
encontra novas provas para as diversas revoluções, que o mundo já
experimentou, não pode acreditar em todas as coisas obscuras, que esses idiotas
nos colocam sobre a mesa como verdades absolutas. Eu acredito na natureza,
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meu caro, e em suas claras leis eternas; admiro sua beleza e fico pasmo diante
da sua objetividade; quero distância das fábulas bíblicas. Minha bíblia é o
grande e infinito livro da natureza, que ainda hoje mal consigo soletrar, mas que
estará eternamente aberto diante dos olhos da humanidade.”
“Você fala como um livro, e é isso o que vai na minha alma, pois também
nada quero saber da enganação desses padrecos. Você está ouvindo”, disse,
voltando-se para a mulher, que acabara de entrar, “este senhor aqui, um homem
estudado, um pesquisador da natureza, também não quer saber desses
hipócritas pregadores de preto, que apregoam a vingança eterna. ”
“Mas, meu querido”, disse Maria, “como pode você falar assim dos
ungidos do Senhor!” “Minha cara senhora”, interferiu o forasteiro, “seu marido
não está tão errado. Também não suporto os padrecos e prefiro ler o livro da
natureza ao invés da Bíblia. Mas respeito a fé alheia, mesmo não podendo
compartilhá-la.”
“Exatamente”, redarguiu Schulze, “este é um tema no qual minha mulher
e eu divergimos. Mas”, continuou ele com olhos vigilantes, “se você pensa assim,
como pode falar em vingança e em bens injustos, que não têm futuro? ”
“Isto não tem nada a ver com os padres, meu caro. Há no Evangelho uma
frase, que vale pelo todo. Diz ela: ‚não faças ao teu próximo o que não queres
para ti.‘ E esta frase, que deve constituir o fundamento da moral de todas as
pessoas de honra, sempre acaba prevalecendo.”
“Mas como ficamos então, se não tem céu nem inferno, quem vai castigar
aqueles, que atentam contra esta frase? ”
“Quem? ” retrucou com muita seriedade o forasteiro. “A consciência, que
cada um carrega na mente e cuja voz não deixa nada adormecer. E mesmo que a
sorte sorria àquele que comete injustiças ao outro, mesmo que tudo lhe corra
bem, mesmo que ele se considere feliz como poucos, – vem o dia em que a
consciência desperta e o faz lembrar-se diariamente da maldade, que ele levou
aos outros. E, então, as forças do destino agem maravilhosamente; muitas vezes,
o castigo pelas más ações ocorre bem mais tarde, mas sempre ocorre; não
acredito no inferno dos padres, mas no inferno, que o ser humano carrega em
sua mente e estou convicto que cada pessoa, que faz o mal ao seu próximo, vai
pagar cedo ou tarde por isso e neste mundo, mesmo que seja pela dor de
consciência que o consumirá.”
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O olhar de Schulze foi-se tornando cada vez mais sombrio, enquanto a
boca se torcia como num riso sarcástico, que só com muito esforço ele conseguia
reprimir. Esvaziou o copo e, levantando-se, disse num tom quase ameaçador:
“Certamente está cansado; venha, vou mostrar-lhe o quarto!”
Um pouco surpreso com a mudança repentina, o homem levantou-se e
Schulze o conduziu ao quarto. Quando voltou à sala, Maria dispunha-se a
guardar o vinho; mas ele disse: “Não, deixe o vinho aí. Vá dormir; tenho ainda
de fazer umas contas. Amanhã o minuano vai mudar de rumo e vai fazer tempo
bom, quero receber os pagamentos, pois tenho muitos acertos a fazer.”
Hesitante, Maria ficou parada, mas um olhar quase agressivo do marido a
intimou a recolher-se.
Entretanto, Schulze, ao invés de ir fazer contas, atirou-se na cadeira e, ali,
ficou bebendo sofregamente alguns copos do vinho inebriante. Depois, reclinou-
se e quedou-se durante horas olhando as brasas incandescentes do pequeno
fogão, sempre mais fracas. Aos poucos, a sala foi ficando gelada – mas o homem
de consciência pesada na cadeira nem percebeu. Sulcos profundos cortavam-lhe
a testa, o olhar estava parado e assustador, e o punho cerrado tremia-lhe vez por
outra, movido pela agitação interna. Apertado devia estar o peito deste homem
corpolento, que não parava de tão tristemente fixar as brasas, que se
extinguiam. Seus pensamentos vagavam distantes, longe, além-mar, quando o
grande relógio bateu meia-noite.
Schulze continuava remoendo seus pensamentos. “Vingança!” ria
ironicamente. “Absurdo! Conversa mole. – O que me importam os que ficaram
do outro lado! – Estou muito bem aqui, tenho tudo o que desejo; minha mulher
me ama, meus filhos crescem, sou o mais rico da colônia e não quero me
aborrecer com as bobagens desse forasteiro. Deve ser coisa do demônio, ainda
prefiro os sermões dos padrecos hipócritas. Com eles me divirto; mas esse
forasteiro... Ufa! – como está frio esta noite.”
Então, ele foi para o quarto, mas também debaixo das cobertas não
encontrou sossego; inquieto revirava-se na cama e, somente ao amanhecer,
conseguiu dormir um sono leve, marcado por pesadelos.
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Na manhã seguinte, o forasteiro foi-se embora, depois de ter tomado um
café quente e comido uma fatia de pão de milho com manteiga e ter agradecido
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cordialmente à dona da casa, pois Schulze tinha sumido. Ele se pusera a
trabalhar no moinho até o hóspede desaparecer.
III
Mais dois anos se passaram e os meninos de Schulze eram agora rapazes
fortes de catorze e dezesseis anos respectivamente, que trabalhavam ativamente
no moinho, na plantação e na floresta, e eram o orgulho do pai. Desde a visita
daquele forasteiro, a aversão do dono da casa em relação a pessoas
desconhecidas tornou-se ainda maior e sua testa ampla franzia-se cada vez
mais. Embora o amor da mulher e a alegria com os filhos reduzisse os
momentos de angústia a apenas algumas horas, em certas ocasiões parecia que
justamente a visão da felicidade familiar lhe corroía a alma. Nesses momentos,
ele se embrenhava nas matas próximas e, muitas vezes, se entregava dias a fio à
caça.
Maria, a mulher de estatura baixa, observava cheia de aflição essa
mudança de comportamento do marido, não conseguindo compreender por que
isso acontecia. Em vão ela tentava ganhar-lhe a confiança e penetrar no mais
profundo do seu espírito. Da mesma forma que ele era bom com ela, também
podia se tornar muito rude, quando ela tentava se intrometer em coisas muito
particulares. Tudo isto, agora, pesava-lhe no coração e, frequentemente,
duvidava do amor do esposo, que era tudo para ela neste mundo.
Nos últimos anos, ele havia-se desligado totalmente da igreja e tinha
dificultado as idas da esposa aos rituais sagrados; a contragosto concordou com
a crisma dos filhos. Seus bens, no entanto, aumentavam cada vez mais e os
vizinhos, muitas vezes, se zangavam com a ingratidão deste homem, pois
mesmo diante de tanta sorte, ainda assim parecia insatisfeito.
Nessa época, a revolução caminhava para o seu desfecho; havia ainda
muita luta nas redondezas, mas o marechal Caxias avançava cada vez mais e já
havia rumores de uma possível convenção entre ele e o general Canabarro.
Ainda havia muito sofrimento, porque tinha aqueles que preferiam o partido
das armas ao do trabalho.
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Numa noite de verão, Schulze encontrava-se no estábulo, observando
alegre os cavalos, que os rapazes tinham acabado de arrebanhar. Formavam
uma tropilha imponente, tão imponente como só havia uma na colônia. Ouviu-
se, então, um tropel de cavalos e um tinir de armas. Um bando de homens a
cavalo parou em frente ao estábulo perto da casa. A aparência dessa gente não
inspirava confiança. Eram figuras selvagens, vestidas de chiripá e com esporas
de ferro no calcanhar do pé esquerdo descalço. Uma jaqueta militar, um
chapéu-braga de aba larga, um poncho esburacado sobre o selim, este era o seu
uniforme; longas lanças em punho, as temidas ferraduras de guasca, trabucos
de cano largo e facas longas na cartucheira, laço e boleadeiras eram estas as suas
armas. Deviam ser uns cinquenta homens; na frente estava um oficial do alto-
comando, vestindo um envelhecido casaco de uniforme cheio de medalhas,
montado num majestoso cavalo coberto de prata. O homem tinha um olhar
malévolo, penetrante, barba rala, alguns cabelos brancos, e sua mão esquerda
machucada repousava em uma faixa; sua postura, no entanto, era rígida sobre o
cavalo impetuoso e seu olhar traiçoeiro reluziu de prazer, quando viu os belos
animais de Schulze.
“É exatamente isto que precisamos”, gritou ele em português para um
jovem oficial do grupo. “Ei, alemão, vou requerer os seus cavalos para o serviço
do imperador! ”
Schulze aprumou-se imponente. “Meus cavalos são minha propriedade e
se o imperador precisa deles, que os compre de mim, mas somente os que
estiverem à venda!” Ele disse isso em português, pois dominava perfeitamente a
língua. Embora desarmado, opunha-se destemido diante dos cavaleiros.
O olhar penetrante do oficial mirou-o com ira. “Com quem o cão
germano acha que está lidando? Eu me chamo....... ” – e, aqui, ele mencionou o
nome do, justificadamente, mais cruel dos oficiais do imperador, – “e vou
ensinar-lhe, o que significa opor-se a mim, se de imediato não me entregar os
cavalos!” E, dirigindo-se ao seu grupo, ordenou: “Desçam dos cavalos!
Desencilhem os matungos cansados e deixem-nos correr. A partir daqui irão
cavalgar os cavalos do gringo. Ao trabalho, peguem os que mais lhes agradarem
e cortem logo a ponta da orelha! Serão brilhantes reiunos.”
Em Schulze crescia a ira. “Senhor! Não me tire do sério–”.
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“Por que o gringo ainda continua ruminando?!” Gritou o oficial,
enquanto alguns dos homens, seguindo as suas ordens, tiravam da porteira as
travessas mais elevadas e tentavam entrar. Tomado de raiva, Schulze
empunhou uma delas e ameaçou os invasores, logo os seus dois filhos
apareceram e colocaram-se a seu lado.
Então, o oficial com as grandes rodas das chilenas prateadas esporeou as
ancas de seu cavalo, que, de um salto, afastou as últimas travessas da porteira e,
em seguida, meteu o fundo da ferradura de aço na cabeça de Schulze, que, no
mesmo instante, caiu inconsciente. Os dois filhos caíram sobre o pai; mas o rude
guerreiro ordenou aos seus homens para amarrarem os rapazes e levá-los como
recrutas, e, antes que o empregado da loja de Schulze, que assistiu apavorado a
tudo pela janela, pudesse chamar a mãe, que se encontrava no moinho distante,
os cavalos tinham sido trocados e os dois filhos amarrados a dois animais sem
arreios, tendo o bando malvado sumido a galope por detrás da mata.
Quando Maria chegou com respiração ofegante, encontrou o estábulo
vazio e o marido ainda inconsciente banhado em sangue. Os filhos e os cavalos
haviam desaparecido. Maria, num grito de medo, caiu ao lado do marido e
também ficou inconsciente. Ambos foram arrastados para dentro de casa pelos
empregados, que trabalhavam ali perto na plantação e no moinho.
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Schulze tinha recobrado os sentidos, mas Maria estava de cama,
queimando em febre e delirava. As mulheres vizinhas tinham se apressado a
ampará-la, enquanto os homens interrogavam Schulze, que, de cabeça
enfaixada e sentado numa cadeira reclinável, tentava explicar:
“O cachorro do ..... levou meus filhos e todos os cavalos”, dizia ele aos que
o interrogavam.
“Esse?” Gritaram apavorados. “Então não há esperanças, o que ele leva,
ele não devolve.”
“Preciso ter os meus filhos de volta!” gemia o infeliz. “Preciso tê-los de
volta.– Deixem-me, vou buscá-los!”
Em vão, os homens tentavam dissuadi-lo. Schulze armou-se e,
acompanhado de três homens leais, que se ofereceram voluntariamente, foi ao
encalço do bando, depois de ter recomendado a mulher, que ainda permanecia
em delírio, aos cuidados das vizinhas.
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Três dias haviam se passado; Maria estava sem febre, mas ainda muito
debilitada e terrivelmente preocupada com os filhos e o marido. Aí, enfim,
vislumbrou-se à distância um pequeno grupo de cavaleiros, que vinha em
direção da casa.
“Aí vêm eles!” gritou uma das vizinhas.
“E meus filhos?” Perguntou Maria com voz fraca.
A mulher, que agora observava com mais atenção, empalideceu e disse,
desconversando: “Ainda não sei, se estão juntos.”
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Mas por que razão a filha valente da mata virgem empalidecera? – Atrás
dos cavaleiros, eram dez, que trotavam lentamente, havia uma carroça sobre a
qual um Poncho cobria uma massa disforme. Schulze cavalgava cabisbaixo ao
lado da carroça. O que havia acontecido e que mistério horrendo se ocultava sob
o poncho? Algo que, infelizmente para a época, não era nada incomum. Os
cadáveres de dois jovens maravilhosos, que o pai infeliz encontrou de gargantas
cortadas no caminho para Taquari.
Schulze havia perseguido os rastros com os seus três acompanhantes; o
bando tinham tomado o caminho de Taquari, onde havia tropas leais.
Desesperançados, os perseguidores cavalgaram, sem alcançar os ladrões.
Ficaram sabendo que estes estavam quatro horas à sua frente e, como os cavalos
estavam cansados e o próprio Schulze se encontrava enfraquecido pela agitação
e pela perda de sangue, pernoitaram na casa de um alemão – que já morava no
acampamento –, para continuarem no dia seguinte a perseguição com forças
renovadas. E assim fizeram. Pelo meio-dia alcançaram um lugar na floresta que
margeava o riacho, onde o bando tinha acampado e feito fogo. Schulze queria
continuar, mas reparou que os seus cachorros haviam ficado inquietos e
começado a seguir um rastro, que se embrenhava na mata ao lado. Schulze
encontrou vestígios de pés, meio apagados pelas ferraduras de cavalos,
enquanto os cachorros iam ficando cada vez mais agitados. Decidiram seguir a
pista e, com pesar, Schulze teve de admitir que, enquanto o bando acampava, os
rapazes talvez tivessem tentado fugir durante a noite pela picada e, ao romper
do dia, foram perseguidos. Cheio de medo, seguiu os rastros e os seus
acompanhantes também temiam o pior. Assim, percorreram a picada até que,
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de repente, depois de quatro horas de caminhada, os cachorros pararam,
choramingando. Schulze tinha encontrado seus filhos – mas como cadáveres
com as gargantas cortadas. Eles tinham fugido, haviam sido perseguidos,
encontrados e penalizados no ato.
E o leitor nos poupe de descrever o estado do pobre homem, de tentar
delinear seu desespero com palavras. Durante horas ficou sentado ao lado dos
cadáveres, até estes serem retirados sobre pranchas improvisadas de taquara,
com grande esforço, e, depois, colocados sobre a carroça na casa do alemão do
acampamento. O pobre Schulze parecia ter perdido a fala; acompanhou o carro
de bois com olhar fixo sobre o poncho, que cobria o que ainda restara dos dois
rapazes, que há três dias ainda eram a alegria e o orgulho de seu velho. Foi
assim que o cortejo fúnebre se dirigiu de volta à colônia, onde a notícia
assombrosa foi se espalhando, aos poucos, de boca em boca. O próprio Schulze
estava, como já foi dito, praticamente ausente; seu olhar preso aos cadáveres
dos filhos parecia não ter percebido que já haviam chegado a casa.
As mulheres, que estavam com Maria, logo entenderam o que havia
acontecido e seus rostos preocupados chamaram a atenção da pobre doente,
que, temendo o pior, queria erguer-se da cama. Em vão, as mulheres se
opuseram. Quando os homens abriram a porta e colocaram os cadáveres sobre a
grande mesa, quando ouviu o soluço das empregadas, nada mais a conteve.
“Meus filhos! O que aconteceu com meus meninos?” ela gritava, e
encontrando forças no medo, pois até há pouco nem conseguia erguer-se,
afastou as mulheres e apressou-se para a porta da sala. Abriu-a e – desmaiou
num grito forte. O quadro, que se oferecia à pobre doente, era deveras cruel: aí
estavam sobre a mesa os corpos de seus filhos, cobertos de sangue, feridas
abertas na garganta e, do outro lado da mesa, em pé, estava seu marido, com
olhar rijo, que mais se assemelhava ao de um cadáver. – Isto era demais para o
coração da mãe. Quando Maria novamente voltou a si, tinha perdido a lucidez.
Faltam-nos palavras para descrever os dias terríveis, que se seguiram. Os
filhos foram enterrados, mas apenas o pai calado e a pequena Lieschen
seguiram o caixão. A mãe pemaneceu em casa num canto, fitando as paredes.
Havia perdido o juízo e se tornara completamente louca.
Schulze convalescia muito, muito lentamente. O dever de cuidar da única
filha, que lhe restara e a necessidade de oferecer à mulher, na medida do
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possível, auxílio médico, levaram-no a organizar-se de tal modo a poder
novamente conduzir ele próprio os seus negócios. O estado de Maria não
apresentava nenhuma alteração. O administrador da vila, que tinha a fama de
ser um médico assaz inteligente, entrava quase todo dia naquela casa, que agora
estava marcada por grandes dores; mas seu rosto tornava-se cada vez mais
sério, meneava a cabeça cada vez com maior tristeza, sempre que observava a
situação da pobre mulher sem espírito, que caminhava lenta e seguramente para
a morte. Numa noite, depois de examinar a doente, Schulze perguntou-lhe,
enquanto o acompanhava até o cavalo: “Então, senhor Coronel, há ainda
alguma esperança, de ver minha pobre Maria salva?” O médico balançou a
cabeça com tristeza e – oito dias depois, Schulze estava em pé ao lado do leito de
morte de sua mulher.
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
Há mais de um ano Maria descansa ao lado dos filhos no pequeno
cemitério, que Schulze construiu para os seus mortos em um lugar predileto da
sua propriedade. Flores cobriam o túmulo e duas palmeiras elegantes faziam-
lhe sombra. Lá, o viúvo ficava sentado às vezes, durante horas, mergulhado em
pensamentos sombrios, nenhuma lágrima aliviava o seu coração, nenhuma
queixa brotava dos seus lábios. Mas seu cabelo ficava cada vez mais branco e seu
rosto se cobria de rugas cada vez mais fundas. Somente quando abraçava
carinhosamente a filha, loira e saudável, e agora de quase nove anos, é que seu
rosto se alegrava momentaneamente. Ela era uma criança querida e admirável.
Com a ajuda de seu temperamento infantil, logo o tempo lhe apagou a dor
lancinante da ausência da mãe e dos irmãos, e ela se apegou de todo o coração
ao pai taciturno, mas para ela infinitamente amoroso.
Os moradores da colônia solidarizavam-se com Schulze em relação à
infelicidade de sua família, mas, ao mesmo tempo, invejavam a sua fortuna que
se multiplicava diariamente. Quanto menos parecia preocupar-se com seus
haveres tanto mais os negócios iam bem e, enquanto outros perdiam dinheiro,
ele continuava ganhando grandes quantias; era agora realmente um homem
rico. Mas, quando à noite juntava reluzentes barras de ouro às que já existiam
no cofre, pesados lamentos saíam de seu peito largo e ele murmurava: “Para
quê tudo isso!” E, então, pensava em sua menininha e, na manhã seguinte,
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punha-se a trabalhar com forças novas, pois nele continuava a existir um ser,
para quem o dinheiro poderia propiciar, um dia, um futuro feliz.
Certa tarde, um cavaleiro parou em frente a sua casa. Schulze logo o
reconheceu: era o pesquisador da natureza, que estava voltando de uma viagem
de dois anos ao interior e, agora, dirigia-se a Porto Alegre.
“Saudações, meu velho!“ gritou ele para Schulze. “Como vai a família?”
Só então o homem reparou nas roupas pretas do luto e percebeu o desgosto
profundo estampado no rosto de seu antigo anfitrião. “O que aconteceu aqui?
Você perdeu sua mulher?”
“Ela e também os filhos!” retrucou com voz grave o homem, que
atravessava duras provações.
“Meu Deus e meu Pai, que golpe duro!” E, movido por compaixão, entrou
na loja.
Mas Schulze conduziu o viajante à sala e tanto insistiu com ele, que este
anuiu em pernoitar ali. Já estava escurecendo e os empregados cuidaram de seu
cavalo, enquanto ele lá dentro se sentava à mesa de jantar com o homem
solitário e com sua única filha. O viajante era um homem senvível e culto, que
sabia com uma conversa adequada distrair seu anfitrião e fazê-lo acreditar em
um futuro promissor, à medida em que ia lhe mostrando como a sua filhinha
ainda o poderia fazer feliz.
“Vai chegar o dia”, disse ele, “em que os anos de grande dor já passaram
e, então, você verá florescer em Lieschen a renovação daqueles que já se foram;
então, a dor bravia já não terá mais forças, e, se ela encontrar um homem bom e
presenteá-lo com netinhos, então, a alegria voltará a sua casa solitária e você
ainda vai se alegrar com o fruto da sua vida e do seu trabalho!”
Schulze respirou pesaroso e meneou de leve a cabeça, enquanto dizia
para Lieschen: “Minha filha, vá dormir, já está na sua hora de ir para cama!“
Depois de a criança se recolher ao quarto, Schulze voltou-se para o
viajante: “O quadro que você descreve é deveras belo e, realmente, poderia
acontecer – mas não me sinto predestinado a isso.” “Por que o desespero, bom
homem? O brasileiro diz com razão: não há bem, que não se acabe nem mal
que sempre dure.”
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Schulze parecia estar num conflito intenso consigo mesmo. Enfim, disse
decidido ao forasteiro: “Você proferiu outrora, em tempos melhores, palavras
que permaneceram em meu cérebro.”
“Que palavras e sobre o quê? ”
“Sobre o bem injusto, que não vinga; sobre o mal, que causamos ao
outro.“
O viajante ficou curioso e fitou o anfitrião meio compassivo e meio
desconfiado. “Não me lembro dessas palavras; mas é minha convicção mais
íntima, que o mal, que se faz aos outros, cedo ou tarde se vinga de nós.”
Schulze suspirou fundo. “Mas por que razão outros inocentes devem
sofrer por isso?”
“Os caminhos do destino são imperscrutáveis e, para o malfeitor, o
castigo mais implacável, muitas vezes, reside em ter que viver e ver outros, a
quem ama, irem-se.”
O olhar do homem tornou-se sério, quase severo, e Schulze baixou tímido
os olhos. “Meu Deus”, gemeu ele, “então, não há misericórdia, não há alívio para
aquele, que comete o mal contra os outros?”
O forasteiro tinha-se erguido e disse com semblante sério: “Para ele só há
uma saída, só uma coisa para apaziguá-lo – a expiação da injustiça cometida!”
Schulze encolheu-se e, arrepiado, repetiu: “A expiação!”
O forasteiro ainda o fitou longamente com pena e, em seguida,
abandonou o aposento com passos leves, para procurar sua cama no já
conhecido quarto de hóspedes.
O homem solitário ainda continuou na sala, pensativo, por longo tempo
e, quando enfim se ergueu com um suspiro profundo, para procurar seu quarto,
murmurava ainda meio inconsciente: “A expiação – sim, a expiação!”
IV
Outros tantos anos se passaram. Lieschen tornara-se uma jovem atraente
de dezesseis anos no clima saudável do Rio Grande. Na vida alegre e aprazível
da colônia, suas formas desenvolveram-se rapidamente e sua figura irradiava
todos os encantos de uma beleza, que amadurecia, enquanto seus olhos claros
ainda sorriam despreocupados para a vida e refletiam a pureza de uma alma
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ainda quase infantil. Já há dois anos, ela governava a casa, por assim dizer,
sozinha e as ocupações constantes assim como o amor incansável de seu pai
preenchiam-lhe a vida, sem que seu temperamento de moça se ressentisse de
outros desejos. Os rapazes jovens da colônia lançavam olhares desejosos à bela
loira, que, como filha única de um homem rico, era muito cobiçada; mas
Lieschen não lhes dispensava atenção, nem a eles nem aos elegantes cavalheiros
da cidade, que vez ou outra apareciam na casa de Schulze. A ela lhe bastava o
amor do pai, e a preocupação com a casa ocupava-a praticamente o tempo todo.
O seu contato com pessoas jovens era raro, pois o semblamte amuado de
Schulze e sua reclusão taciturna tinham piorado nos últimos anos. Como nunca
antes, trabalhava com afinco na multiplicação da sua imensa fortuna e fugia de
qualquer contratempo; seu amor por Lieschen se transformara numa espécie de
fanatismo e podia-se dizer que vivia apenas para a filha. Nela se incorporava
agora tudo o que a vida lhe oferecia em felicidade! Muitas vezes, ainda passava
horas junto ao túmulo de Maria e de seus filhos e quem o observasse teria, com
certeza, percebido o conflito, que pesava dentro dele. Naquelas horas de solidão,
lembrava-se muitas vezes da palavra “expiação”, mas, depois de muita luta
consigo mesmo, sempre chegava à mesma conclusão: “Não, eu tenho uma filha e
esta deverá ser rica e feliz, já que a mim a riqueza não trouxe sorte!”
Assim, tudo seguia o curso normal, até que, de repente, um camarada
desconhecido apareceu lá em casa. Um jovem, com não mais de vinte e dois
anos, de roupas novas e bem trajado, chegou certa noite, pedindo permissão
para pernoitar na casa, pois estava muito cansado. Schulze queria tocá-lo dali
com palavras ásperas, pois supôs de pronto que o pálido rapaz, de aparência
sofrida, fosse um desertor do exército alemão que tivesse chegado no último
ano. Havia na colônia um preconceito quase geral contra essas pessoas,
também Schulze, embora esclarecido, não fugia à regra. Além do mais, acolher
um desertor, poderia significar incorrer em uma série de desconfortos, por isso
Schulze estava decidido a mandar o andarilho cansado para longe de sua porta.
Ao ouvir a voz dura do homem, o moço deu meia volta com um lamento,
preparando-se para continuar andando, mas suas pernas negaram-se a fazê-lo,
seu corpo balançou e ele caiu totalmente exausto sobre um banco de madeira
em frente à porta. Lieschen assistia à cena da janela e correu a ajudá-lo, pedindo
suplicante ao pai para não abandonar o rapaz aparentemente muito doente na
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frente da porta. O pai cedeu ao seu desejo e permitiu que ela lhe arrumasse um
quarto na casa. Lieschen ficou feliz com a permissão e, como boa samaritana,
logo arrumou uma cama para o pobre rapaz e ofereceu-lhe refrescos. Porém,
Henrique, o nome do lívido moço, recusou-os; não poderia degustar nada sem
primeiro descansar. Com esforço, tomou uma xícara de chá doce e reclinou-se
sem forças sobre a cama, de onde não sairia tão cedo. Schulze não se cansou de
amaldiçoar, nas semanas seguintes, o destino que trouxera o homem cansado
até a sua porta. Henrique já estava queimando de febre na noite em que chegara
e, durante vinte dias, ficou entre a vida e a morte. Por mais desagradável que
tudo isso fosse para Schulze, ele não era capaz de se opor às súplicas de sua
filhinha para chamar o médico e permitiu que ela, com a ajuda da empregada,
cuidasse do jovem. E, nessa tarefa humana, Lieschen mostrou-se incansável;
mais de uma vez o respeitável médico da colônia admitiu que o cuidado dela
para com o doente o teria salvado da morte certa. Isso deixava Lieschen muito
feliz, não só porque ela era essencialmente boníssima e humana, mas também
porque o rapaz pálido, de traços elegantes e de olhar belo, mas triste, havia lhe
despertado interesse desde o primeiro momento. Durante os vinte dias em que
ele delirara de febre, ela passara horas ao lado de sua cama, observando-lhe as
feições, que, a cada mudança de expressão, emanavam ondas gigantes de
sentimentos diversos, e ouvindo-lhe as fantasias, ora selvagens ora melancólicas
e sentimentais, em que, sobretudo, a palavra “mãe” e reclamações sobre
necessidades e miséria na casa dos pais eram temas recorrentes. Os delírios
febris ofereciam à menina entusiasmada apenas impressões rápidas e fugazes
sobre a vida particular do doente, mas tudo o que ela ouvia emprestava forma
positivamente luminosa ao moço; mesmo nas irrupções mais fortes do delírio,
ela não ouviu nenhuma palavra rude. O cérebro do pobre doente, martirizado
pela febre, mostrava-lhe recortes de uma longa história de sofrimento, mas não
havia aí nenhuma propensão para o mal e muito menos sentimentos de culpa.
Lieschen sentia-se quase como uma mãe para o doente; ela tinha consciêcia de
que, durante semanas, lutara com ele contra a morte, a qual queria arrastar a
sua vítima sem piedade alguma.
Enfim, a crise prevista pelo médico precipitou-se e Lieschen observava-a
com o coração na mão. Mas o destino era favorável ao doente; depois de suar
muito, este caiu em um sono tranquilo, durante o qual um sorriso feliz
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embelezou-lhe a face – era o alvorecer da saúde recobrada. Lieschen, que já fora
informada pelo médico sobre o significado desses sintomas, caiu de joelhos e
agradeceu fervorosamente aos céus. Então, correu até o pai com rosto radiante e
gritou-lhe: “Ele está salvo! Meu doente vai viver!”
Schulze recebeu a notícia com frieza resoluta e fez apenas a seguinte
observação: “Tanto melhor, assim acabam-se os gastos com o doente e você
também terá sossego. Você está realmente precisando, veja como ficou pálida e
magra durante esses dias.” Lieschen olhou para o pai com olhar desaprovador e
disse com voz trêmula: “Como você pode ser tão duro, paizinho. Ele estava
completamente arruinado. Deixe-me a alegria de vê-lo restabelecido, antes de
você tocá-lo de casa.”
“Claro”, replicou Schulze. “Tão rápido ele não vai conseguir andar; mas
quando estiver novamente com força, quero-o longe daqui, pois não posso
alimentar preguiçosos e sentimentalidade não é de modo algum meu ponto
fraco!”
Lieschen voltou ao seu doente, enquanto o pai continuou murmurando
contra o mulherio, sempre pronto a acolher.
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
No pequeno quarto, Henrique ainda continuava no sono tranquilo e
reconfortante, enquanto Lieschen o observava. O sol já se punha e os últimos
raios avermelhados entravam pela fresta da janela estreita, quando Henrique
abriu os olhos. Quando o olhar do doente caiu sobre Lieschen, o reflexo dourado
do sol poente cingia-lhe a cabeça, como se fosse uma auréola.
“Estou no céu? – Terá Deus me enviado um de seus anjos?” murmurou
Henrique.
Lieschen inclinou-se tímida sobre ele e pediu-lhe para ficar em repouso;
disse-lhe que estava cuidando dele e que o médico lhe prescrevera repouso
absoluto. Numa obediência comovente Henrique fechou os olhos novamente e,
depois de ela ter-lhe dado o remédio, ele caiu em sono profundo. Agora sua
respiração era tranquila e ele parecia envolto em um sonho bom.
Lieschen foi também para o seu quarto e deixou o doente aos cuidados
das empregadas, mas continuava sem sono; estava feliz demais por ter salvo a
vida de um ser humano. Na manhã seguinte, como em muitos outros dias,
encontrava-se ela ao lado da cama do doente, que convalescia rapidamente.
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Embora o pai ficasse resmungando por ela passar a maior parte do dia ao lado
da cama de Henrique, ela sabia como acalmá-lo.
Entre o doente e sua zeladora desenvolveu-se um relacionamento
especial. Para Henrique, a bela menina de bom coração era um verdadeiro anjo;
a imagem dela, ao vê-la envolta como em uma auréola de santa ao lado de sua
cama, quando recobrou os sentidos, o marcara profundamente e ele olhava para
ela com toda a adoração, da qual seu coração era capaz. Lieschen, em
contrapartida, encontrava no entretenimento com o rapaz um doce e
inexplicável prazer, que revelava um sentimento até então desconhecido em
suas relações e mostrava diante de seus olhos contemplativos o quadro de uma
vida espiritual de rara preciosidade. Em suas longas conversas, ele contava-lhe a
história de sua vida e de sua dor.
Era filho de uma viúva, que, com trabalho braçal na pequena cidade da
região de Brandenburg, se sustentava a si e a duas filhas de modo precário. O
pai, falecido precocemente, fora em certo momento um comerciante bem-
sucedido. Ao lado da esposa jovem, olhara para o futuro cheio de esperança,
prosperara nos negócios e experimentara a possibilidade de se tornar um
homem rico. Fora, então, que o destino trouxera para dentro de sua casa a visita
de um antigo colega de escola, Arno Rothenbusch. Este era um homem de
espírito empreendedor e um típico bajulador. O pai de Henrique não o via há
muito anos, mas sua volta à cidadezinha natal, onde os pais haviam falecido,
avivou-lhe toda a amizade de outrora. E Rothenbusch parecia merecê-la. Apesar
de ter, conforme as suas informações, um negócio próprio em Hamburgo e de
ter vindo à comuna para a compra de cereais, ele mostrava interesse, sobretudo,
pelo pequeno negócio do amigo, dando-lhe alguns bons conselhos e, quando
enfim surgiu uma excelente oportunidade para especular com cereais,
convenceu o amigo a participar com cinquenta por cento do investimento. A
mãe de Henrique sentira, desde o primeiro dia, uma certa desconfiança em
relação ao amigo do marido; seu olhar parecia-lhe instável, e, tímida, advertia o
esposo aqui e acolá para não se meter em negócios com ele. Mas o pai de
Henrique acalmava-a com a explicação de que ela não entendia nada de
negócios, de que Rothenbusch ter-lhe-ia apresentado ótimas referências e de
que estaria de posse de títulos de crédito; também lhe teria garantido
participação em um negócio, com o qual, no período de um mês, duplicaria seu
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patrimônio. Foi assim que o homem, baseado numa amizade cega, correu ao
encontro de sua ruína. Para participar da especulação, pediu dinheiro
emprestado, liquidou produtos e até hipotecou sua casa, a herança de sua
mulher. Cheio de confiança, colocou o dinheiro nas mãos do amigo Arno, que
partiu para fechar a compra nada módica de cereais.
Passaram-se vários dias sem que se tivesse notícias do desaparecido.
Depois de oito dias, o pai de Henrique, enfim, começou a ficar preocupado e
passou a dar ouvidos às observações de sua mulher. Apressou-se a viajar até
Magdeburgo, onde o grande negócio deveria ter sido concretizado, mas lá
ninguém tinha feito negócios com Arno Rothenbusch. Indo de uma firma a
outra, em todo o lugar foi-lhe dito não ter havido negócio algum, apesar das
suas assinaturas nos papéis carimbados, que Rothbusch guardava na pasta,
apesar das referências - todas elas eram falsificadas. Em contrapartida, o nome
de Arno Rothenbusch era muito bem conhecido, ele tinha sido demitido de uma
firma em Magdeburgo por causa de repetidas desonestidades e falsificações. O
pai de Henrique voltou à sua cidade natal como homem arruinado e
moralmente fracassado.
A polícia fez de tudo para capturar o trapaceiro, mas ele contava com
uma vantagem muito grande: na época, trens e telégrafos eram ainda apenas
santos objetos de desejo. Embora tivessem seguido suas pegadas até Hamburgo,
lá elas desapareciam em definitivo. O larápio era esperto; com certeza não
mostrou o dinheiro e sumiu sem deixar rastros.
O pai de Henrique era agora um homem arruinado. Para cumprir com
suas obrigações, vendeu a casa, mas, ainda assim, precisou desistir da loja e
passou a levar uma vida miserável com a família, até que, depois de catorze
anos, foi enfim levado pela tuberculose, deixando uma viúva com duas filhas
pequenas e um menino, nosso Henrique.
A mãe, uma mulher estudada, educou os filhos na indigência e na
provação, mas ensinou-lhes o que sabia e lhes deu as melhores lições. Henrique
cresceu e teve a sorte de ser empregado pelo padrinho, um velho amigo de
negócios de seu pai, numa firma em Hamburgo. Então, a esperança voltou ao
pobre coração da mãe; naquela casa grande um futuro promissor haveria de
florir para o seu filho. Porém, o homem põe e o destino dispõe: tão logo
Henrique se tornou contador, o amigo de seu pai e seu protetor faleceu, e o novo
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chefe, o filho do falecido, passou a desfavorecê-lo constantemente, já que era
preguiçoso e bem menos talentoso do que ele. O falecido muitas vezes lhe
apresentara Henrique como exemplo e isso aguçara-lhe o ódio contra o modesto
rapaz. Sendo agora o dono da firma, vingou-se do inocente de um modo
terrível: não contente em apenas demiti-lo, também o difamou, fechando-lhe
todas as portas na cidade. Como Henrique tinha enviado todo o dinheiro que
recebera para a mãe, não possuía nada, nem mesmo o montante para pagar a
viagem de volta para casa. Em vão, procurou um emprego, mesmo que fosse
trabalho braçal; em todos os lugares exigiam-lhe referências e estas ele não
tinha. Sem um teto, dormira durante noites ao ar livre, melhor dizendo, sobre
um banco ou sob uma ponte. A fome apertara-lhe as entranhas e o desespero
tinha tomado conta dele, de modo que pensara até em suicidar-se. Assim
perambulava naquela noite pelas ruas, quando chegou a um restaurante
iluminado, onde se ouvia o tilintar de copos e alegre cantoria; o refrão dizia o
seguinte: “Viva, viva, a artilharia brasileira!” Então, ocorreu-lhe que, naquele
momento, estavam procurando soldados para o Brasil e percebeu que inscrever-
se para o recrutamento era a sua chance de salvação. Entrou rápido e decidido
no restaurante, perguntou se havia algum oficial ali e, ao ser conduzido a este,
pediu-lhe com insistência para não recusá-lo. O oficial agradou-se do belo rapaz
e de sua inteligência, e ofereceu-lhe o jantar e um quarto para pousar. Na
manhã seguinte, no escritório do capitão Martim Valentim, assinou seu contrato
e informou a mãe sobre a decisão desesperada, que havia tomado, por meio de
uma carta, onde lhe explicava tudo o que estava acontecendo. Três dias depois,
foi conduzido ao excelente navio “Heinrich” e velejou mar afora rumo ao
longínquo Brasil.
Henrique sabia contar muitas histórias sobre a vida no navio, sobre o gordo
capitão Boyen, para quem os soldados aprontaram "uma cabeça de porco" (um aspic de
salsicha, preparado para a cabina) e a quem, mais tarde, atacaram duramente numa
espécie de rebelião.
É bem verdade que ele passou por poucas e boas com a tripulação, um
tanto quanto estranha para ele. Quando ele se intimidava diante dos modos
rudes, que, aqui e acolá, se viam entre os mercenários, eles o chamavam de
sonso e até mesmo faziam piadas nada delicadas com ele, mas, de modo geral,
era um pequeno grupo razoavelmente tranquilo e a viagem, apesar de um
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incidente mais grave, transcorreu de maneira bastante agradável. Durante a
travessia, Henrique entrosou-se com alguns jovens com instrução, também
atraídos ao Brasil “no ano especial”, e que gostavam de entreter-se com o rapaz
modesto e bem educado.
Henrique descreveu a baía do Rio de Janeiro com entusiasmo para a sua
ouvinte atenciosa e a impressão fantástica, que teve da natureza tropical.
Depois, contou-lhe da sua vida de soldado no forte da Praia Vermelha, como ele
adoeceu gravemente, como o generoso rei visitou o hospital militar e dirigiu
palavras amigáveis aos pobres doentes; como ele foi enviado ao sul, quando
ainda não estava recuperado, como esteve em Santa Catarina com o navio a
vapor ‚Paquete do Sul‘ e como quase naufragou na barra do Rio Grande, e assim
por diante. Também lhe descreveu a vida na guarnição do Rio Grande, arenoso e
tétrico, e contou-lhe, depois, como a sua saúde foi se fragilizando cada vez mais,
como a inveja do sargento lhe amargurou a vida e como, em última instância,
diante das constantes humilhações do sargento, não lhe sobrara nada a não ser
procurar a salvação na fuga. Assim, ele deambulou, passando pelas cidades de
Norte e Mostardas, com roupas velhas de civil, compradas com o ouro
economizado, tendo dormido várias noites ao ar livre, tendo passado fome, até
encontrar aqui e ali algum trabalho ou almas compassivas, que o protegiam.
Todavia, ninguém queria ficar com ele por muito tempo em casa, pois todos
viam que era um desertor e, assim, ele precisava, então, seguir viagem. O
terreno arenoso tinha-lhe arruinado os pés, a fome havia-lhe tirado as forças, e,
agora, que vinha de Viamão e tinha de contornar Porto Alegre para não ser
capturado, e já que não ousava mais aproximar-se dos vilarejos e dos sítios, sua
situação se deteriorara. Sua meta era a colônia alemã, mas em todos os lugares
os camponeses desconfiados o rejeitavam, pois os “Brummer” não gozavam de
boa fama. Assim foi até que, finalmente, diante da casa de Schulze a doença se
apoderou dele e o derrubou.
O que contamos aqui em poucas linhas era assunto de diálogos
intermináveis entre o convalescente e sua cuidadora, e nos catorze dias de sua
recuperação o relacionamento entre os dois foi se tornando cada vez mais
amigável e íntimo.
O coração humano é de uma natureza muito particular. Beleza, força e
autoconsciência, muitas vezes, não o influenciam tanto quanto a bondade e
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mesmo a fraqueza. A mulher carrega em seu peito um tesouro infinito de amor,
que oferece ao mundo, e, com frequência transforma a compaixão em amor.
Assim acontecia a Lieschen, que em sua inocência nem mesmo percebia que a
sua compaixão para com o pobre moço há muito merecia um outro nome. Ela
passava o tempo todo ao seu lado e, antes que se conscientizasse disso, estava
completamente apaixonada por ele. E, é claro, este sentimento não ficou sem
resposta. Pela primeira vez, no país estrangeiro, onde ele sofrera tanto, um
coração amável, que batia no peito de uma jovem e bela menina, ia de encontro
a Henrique. Lieschen ainda estava confusa em relação aos seus sentimentos por
Henrique; ele porém estava seguro dos seus, e quanto mais o momento de sua
total recuperação se aproximava, tanto mais triste ele se tornava, pois também
significava o dia de sua partida. Embora parecesse que não conseguiria livrar-se
do abrigo, que encontrara ao lado da linda menina, um dia de manhã, ouviu
com tremor e medo as palavras ásperas de Schulze, que entrou em seu quarto
para dizer-lhe que já estava reestabelecido e que deveria agora procurar um
outro teto, já que não podia mantê-lo por mais tempo em sua casa. Lieschen
ainda conseguiu prorrogar a sua partida por oito dias. Mas estes se passaram
rapidamente e a última noite antes da partida havia chegado. Há muitos dias
Lieschen estava pálida e triste; na última tarde ao anoitecer, ela ainda foi
passear com ele, e o caminho levou-os ao lugar romântico e belo, onde a pobre
Maria estava enterrada junto dos filhos. Lá, no túmulo da sua mãe, a dor tomou
conta dela e, quando, enfim, Henrique, num arrebatamento, caminhou até ela e,
com voz trêmula, lhe disse que amanhã tinha que ir embora, pedindo-lhe para
não se esquecer dele em suas horas sagradas junto ao túmulo de seus amados,
ela comoveu-se e sentiu que amava Henrique mais do que a própria vida.
Como é que, assim, num momento, lá estava ela encostada ao peito de
Henrique, os lábios colados num longo beijo ardente, - quem é capaz de dizê-lo?
E esqueceram-se do mundo à sua volta, além do amor infinito e
poderoso, que reinava em seus corações, nada sentiam nem entendiam. Ah, que
momento sagrado esse, quando duas almas jovens inocentes se encontram e
compreendem que, de agora em diante, se pertencem para sempre.
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
Mas esse não era o pensamento do homem, que agora voltava do moinho
e de longe já tinha avistado os dois junto à sepultura. Ao ver sua filha, a rica e
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bela filhinha de Schulze, nos braços de um desertor maltrapilho, que não tinha
nem onde cair morto, a raiva se apoderou dele, pondo-se a praguejar contra o
rapaz! “Eu já imaginava, que o garotão iria seduzir a minha menina. Razão pela
qual eu não queria acolhê-lo de modo algum; maldita a hora em que acolhi o
traste em minha casa!”
Com passos rápidos, chegou até a colina; os amantes não ouviam nem
viam nada, - faltava-lhes o chão. “Traste, infame!” gritou Schulze. “Deixe a
minha filha!” E, com braço de ferro, afastou a moça e ergueu a mão contra o
jovem rapaz. No primeiro momento, Henrique recuou espantado, enquanto
Lieschen caiu de joelhos, calada, ao lado do túmulo da mãe. Mas, quando
Schulze ergueu a mão para Henrique e passou a agredi-lo verbalmente: “Trapo,
preguiçoso, malandro, vou dar-lhe uma surra, se não sumir daqui
imediatamente e para sempre!” – então, o sangue do moço subiu-lhe nas veias
e, com voz baixa mas firme, retrucou: “Senhor Schulze, agradeço-lhe a bondade
de ter-me acolhido, mas, por Deus, não me bata, isto eu não poderia suportar,
por amor a ela, que amo e venero como a uma mãe!”
“Você ainda se julga no direito de argumentar, seu desertor desgraçado?”
“Só quero dizer-lhe mais uma palavra: vim aqui com sua filha para
despedir-me dela para sempre. Eu a amo do mais fundo de minha alma, mas sei
que jamais deverei desejá-la para esposa. Apenas vim dizer-lhe adeus”
“Isso é verdade?” perguntou Schulze à filha.
“Sim, mil vezes sim; eu sozinha sou culpada, eu o amo de modo
indizível”, soluçou Lieschen.
“Já vou curá-la desse amor.”
“Senhor Schulze”, continuou Henrique, “depois do que aconteceu, só me
resta ir embora. Deus lhe perdoe as palavras duras, que acaba de me dirigir;
não posso nem consigo odiá-lo, pois devo à sua bondade a minha vida. Só vou
pedir-lhe uma coisa: não magoe a sua filha, não aconteceu nada de mais entre
nós dois.”
“O algoz agradece-vos as palavras; se eu não acreditasse nisso, você não
deixaria este lugar vivo. Mas agora mova-se, afaste-se da minha propriedade, e
você, criança mal educada, tome o caminho de casa!”
Henrique inclinou a cabeça diante de Lieschen. “Seja feliz, Lieschen!
Nunca mais a verei, mas a sua imagem vai acompanhar-me até o túmulo, e, se
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você, um dia, for feliz ao lado de outro, lembre-se do pobre Henrique
Tannenheim, para quem você é o primeiro e último amor!”
Henrique fazia menção de afastar-se, enquanto Lieschen escondia o rosto
entre as flores do túmulo, soluçando alto.
De repente, Guilherme Schulze sofreu uma estranha transformação. Ali
ficou ele parado, como se um fantasma tivesse saído da terra e se colocado à sua
frente; pálido como um cadáver, de olhos arregalados, parecia devorar Henrique
com os olhos. “Que nome você disse?” adiantou-se ele com esforço. “Quem se
chama Henrique Tannenheim?”
O rapaz virou-se admirado. “Henrique Tannenheim é meu nome.”
“De onde você vem?” Perguntou Schulze numa tensão, que lhe tirava o
fôlego.
“De T....... da região de Brandenburg.” Admirado, o olhar de Henrique
fixou o homem forte, que tremia como uma vara verde e estava estático como se
um raio em plena luz do dia o tivesse atingido. “Adeus, senhor Schulze, eu lhe
agradeço”, disse Henrique e foi se dirigindo ao atalho, que levava ao caminho
principal.
“Não – senhor – Tannenheim, – leve Lieschen para casa – eu já vou –
preciso ainda lhe falar.”
Admirado, Henrique olhou para o homem, enquanto Lieschen com
esperança renovada se ergueu rapidamente.
“Mas, Senhor Schulze, depois do que o Senhor acaba de me dizer –”
“Vão, vão. Deixem-me – preciso ficar sozinho.”
Calado, Henrique ouviu sem compreender uma só palavra, e afastou-se
com Lieschen na direção da casa. Lá esperaram entre o medo e a esperança pela
chegada do pai, que devia decidir o destino deles.
Mas onde estava Schulze?
De joelhos, o homem forte demorava-se no túmulo de sua mulher e, ali
durante horas, obstinou-se em pensamentos tenebrosos. Um conflito intenso
devia estar se desenrolando em seu peito e precisou de muito tempo para
amenizá-lo. Enfim, levantou-se e voltou para casa. Tremendo, Lieschen o
recebeu na sala. “Onde está Henrique?” perguntou ele com voz
surpreendentemente mansa.
“Em seu quarto.”
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Schulze dirigiu-se à filha, e passando a mão em seus cabelos loiros,
olhou-a nos olhos embaçados de lágrimas com amor infinito e melancolia.
“Conte-me, minha filha, como tudo isso aconteceu.”
E Lieschen contou-lhe de início pausadamente, mas depois com
entusiasmo desenfreado o pequeno romance do seu amor. Quando passou a
contar a história de Henrique, o pai sentou-se na sombra e pediu-lhe com voz
fremente que contasse a história com o máximo possível de detalhes. E Lieschen
assim o fez. Soluços fortes se desprendiam de tempos em tempos de seu peito,
principalmente quando ela falava com indignação juvenil da maldade do tal
Arno Rothenbusch e descrevia a miséria com que a pobre família teve de se
confrontar.
Quando ela terminou a história, Schulze perguntou-lhe com voz quase
trêmula: “E você realmente ama esse homem? Você realmente acredita que sem
ele não conseguirá ser feliz?”
Profundamente acanhada, Lieschen soluçou: “Sim, eu o amo acima de
tudo. Acho que morreria, se o perdesse.”
“Certo, minha filha; agora vá dormir – amanhã continuaremos a
conversa.” E, abraçando a filha, deu-lhe um beijo carinhoso na testa. Lieschen
não conseguiu dormir; tarde da noite ouviu os passos pesados do pai, que em
seu quarto andava de um lado para o outro. Era um último conflito intenso que
martirizava o peito do homem, que até então tinha enfrentado resoluto todas as
tempestades da vida. Mas, enfim, a luta terminara e, enquanto seus lábios
murmuravam a palavra “expiação”, a paz se restabelecia em seu espírito.
Sentou-se à escrivaninha, escreveu algumas linhas, queimou, depois, muitos
papéis, pôs em ordem outros, contou dinheiro e títulos, e em seguida trancou o
cofre novamente. O homem devia ter envelhecido naquelas poucas horas para
mais de dez anos. – Na ponta dos pés, entrou no quarto de Lieschen, que se
encontrava no primeiro sono, e, empurrando o molho de chaves sob o
travesseiro dela, olhou-a longamente sob a luz fraca, que trazia na mão,
enquanto lágrimas molhavam sua barba branca. Então, a menina mexeu-se; ele
temeu acordá-la e abandonou o quarto com um suspiro pesado. Pegou o chapéu
e o sobretudo e, com passos leves, saiu da casa, colocou a sela sobre o cavalo e
desapareceu pela estrada rumo a Porto Alegre antes do amanhecer.
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Quando Lieschen acordou logo ao raiar do dia, encontrou sob o
travesseiro as chaves de seu pai e um bilhete com apenas algumas palavras:
“Minha queriada filha! Uma necessidade inesperada forçou-me a ir
imediatamente a Porto Alegre; antes disso, porém, quero deixar-lhe o meu
consentimento em relação ao seu casamento com Henrique Tannenheim. Que
ele possa fazer você feliz tanto quanto você merece. Deixei as chaves, que você
pode passar ao Henrique, a quem confio os meus negócios, enquanto estiver
fora.”
Lieschen não entendeu nada daquilo. Vestiu-se rapidamente e procurou
Henrique, que estava no jardim após uma noite mal dormida. Também ele
estava muito admirado com o comportamente estranho de Schulze, mas não
menos feliz em relação ao desenlace da situação.
Os pobrezinhos, que no dia anterior tinham sofrido tanto, estavam agora
à beira de satisfazer seus desejos e, no entanto, estavam com medo. Não
entendiam o pai e temiam ainda alguma mudança nas relações.
Depois de três dias, veio uma carta de Porto Alegre. A primeira coisa que
lhes caiu nas mãos foi uma escritura, na qual Guilherme Schulze fazia a doação
de todos os seus bens móveis e imóveis para Henrique Tannenheim, com a
condição de que este se casasse, dentro de um prazo de dois meses, com
Lieschen e, depois da venda dos bens, voltasse definitivamente para a
Alemanha. Junto havia uma carta de Schulze:
“Meus caros filhos!
Um destino inesperado forçou-me a abandoná-los para sempre. Não se
assuste, minha querida filha; não encontro palavras para dizer o quanto a amei,
minha única filha, e, apesar disso, não a verei novamente. Assim é que deve ser
e não tenho o direito de reclamar. Henrique! No documento anexo, passo para
você todos os meus bens. Faça Lieschen feliz, mas venda tão rápido quanto
possível os bens e volte com ela para a Alemanha, onde está a sua mãe. A mim
nunca mais verão. Façam isso por amor do pai de vocês.”
Vamos abdicar de descrever a impressão, que estas linhas causaram em
Henrique e Lieschen. Ela estava inconsolável, sentia-se culpada por seu amor
ter ocasionado aquela situação e chorou durante semanas. Henrique conseguiu
enfim consolá-la e, quando se conformou com o triste destino de ter perdido o
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pai para sempre, depois de dois meses, seguiu-se o casamento. Os amantes
estavam inominavelmente felizes. Na colônia, corriam os boatos mais loucos
possíveis sobre a atitude de Schulze e acreditava-se, de modo geral, que tivesse
cometido suicídio; somente Henrique e Lieschen pensavam o contrário.
A escritura de doação era absolutamente legítima. Henrique liquidou
com cautela o patrimônio e, com as vendas, alcançou uma soma, que lhe
permitiu voltar à sua cidadezinha natal quase como homem rico, passando a
viver com toda a sua família. Para Lieschen a despedida da casa de seus pais e,
principalmente, da supultura de seus amados foi muito dolorosa; mas também
isso foi superado e, quatro meses depois do sumiço de Schulze, o jovem casal
embarcou em Porto Alegre rumo à Alemanha num navio da cidade de
Hamburgo. Durante a viagem, Lieschen ainda sentia muitas vezes tristeza
profunda sempre que se lembrava do pai e nunca mais teve notícias sobre o seu
destino, mas o amor de Henrique a consolava e quando, finalmente, chegaram a
T..., quando a mãe e a irmã de Henrique os receberam com amor infinito,
quando ela viu como o seu patrimônio devolveu a essa família pobre a felicidade
e a paz, embora ainda se lembrasse do pai com amor fiel e profunda melancolia,
ela agora estava feliz.
* *
*
Dez anos haviam se passado desde que Henrique havia partido do Brasil.
Lieschen estava no auge de sua beleza e três crianças encantadoras faziam de
Henrique um pai muito orgulhoso. O patrimônio de Lieschen tinha duplicado
nas mãos de Henrique e, depois da reabertura da velha firma, a família
Tannenheim passara a pertencer às mais ricas da pequena cidade. Ainda
recordavam com grande nostalgia o pai desaparecido da jovem esposa, do qual
nunca mais se ouviu falar. Foi, então, que Henrique numa manhã recebeu em
sua caixa do correio uma carta de Porto Alegre. Estava assinada por um
comerciante, que informava o senhor H. Tannenheim do falecimento na Santa
Casa de um velho coveiro alemão, que acabara de chegar da região da
campanha. Em seu leito de morte, chamara o redator da carta, que para seu
máximo espanto reconhecera nele um antigo amigo de negócios da colônia, que
se chamava Guilherme Schulze. Schulze ter-lhe-ia negado qualquer tipo de
informação e apenas teria pedido para informar a sua morte ao senhor H.
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Tannenheim em T.... e enviar-lhe essa carta, encargo do qual se incubira e que
acabara de cumprir. Apreensivo, Henrique abriu a carta anexa e bem fechada,
em cujo endereço reconheceu a letra de Schulze, que deixava entrever uma mão
já bastante trêmula. A carta continha apenas as seguintes linhas:
“Meu filho!
Quando você receber esta carta, a morte já terá chamado este, que trouxe
miséria inominável para vocês. Não se zangue mais com ele, Henrique; ele
expiou o malfeito, não só com dinheiro e bens, mas também com o que lhe era
mais caro nesta terra: ele lhe deu sua filha, e para não envenenar a vida dela
com vergonha eterna, renunciou a revê-la e a alegrar-se com sua felicidade.
Henrique, eu cometi um pecado grave contra vocês, mas paguei caro por ele.
Como fogo, queimava em mim o bem, que obtive de modo desonesto. Fui
castigado com a perda de minha mulher e de meus filhos e, por último, tive de
renunciar espontaneamente à minha filha. Sem alegria, durante dez anos
arrastei-me por uma existência miserável e saúdo a morte como libertadora.
Torne a minha filha feliz e nunca lhe diga o verdadeiro nome do pai, para que
não precise desprezá-lo! Oxalá, você e sua mãe possam perdoar a este infeliz
Arno Rothenbusch, conhecido como Guilherme Schulze.”
“Eu já imaginava”, murmurou Henrique, enquanto escondia a carta no
lugar mais secreto de sua escrivaninha. “Pobre homem, você nos trouxe muita
infelicidade, mas você também expiou o seu pecado, como somente um homem
de rara força de vontade poderia fazer.” –
Na mesma noite, Henrique informou a esposa da morte de seu pai em
Porto Alegre; mas, para ela como para a mãe e a irmã, o falecido continuou
sendo Guilherme Schulze, o benfeitor da família Tannenheim.
Fonte:
Koseritz, Carl von. Die Sühne. Erzählung aus der Colonie. In: Koseritz’
Deutscher Volkskalender für die Provinz Rio Grande do Sul. Porto Alegre,
Walther Kühn, 1875, p. 33-63.
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