a expansÃo do turismo no litoral setentrional brasileiro: considerações a partir da...

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XIV Encuentro de Geógrafo de América Latina Reencuentro de saberes territoriales latinoamericanos Lima del 08 al 12 de Abril de 2013 1 A EXPANSÃO DO TURISMO NO LITORAL SETENTRIONAL BRASILEIRO: considerações a partir da valorização do espaço litorâneo no estado do Maranhão. Carlos Rerisson Rocha da Costa 1 Universidade de São Paulo Resumo O presente artigo apresenta considerações acerca da expansão do turismo no litoral setentrional brasileiro, partindo-se de inferências sobre as dinâmicas em curso nos municípios litorâneos do estado do Maranhão. As reflexões tomam por base o papel do Estado na indução da valorização do espaço litorâneo por meio de suas políticas públicas de turismo e da indução de novos usos ao litoral. O confronto entre os instrumentos de planejamento, os materiais de promoção, os mapas turísticos e a realidade vislumbrada em trabalho de campo nos 26 municípios que compõem o litoral maranhense dá o mote da reflexão pretendida. Palavras-chave: Turismo; Litoral; Valorização do espaço Introdução Na transformação do tempo livre em mercadoria, apropria-se o litoral de países tropicais como o Brasil como uma das parcelas do espaço prioritárias para o desenvolvimento do turismo. O litoral brasileiro passa então, nesse âmbito, a figurar como representação paradisíaca para o descanso de volumes cada vez maiores de turistas estrangeiros e mesmo brasileiros. A partir da década de 1960 esse processo se dá de forma sistematizada, passando o estado a atuar na organização de políticas e na promoção de cidades como o Rio de Janeiro como destino turístico e imagem nacional. Espraia-se em direção ao litoral da região nordeste a partir dos anos de 1980 e 1990, destacadamente pela indução de macropolíticas como o Prodetur-NE. Nesse contexto, o turismo aparece como alternativa econômica para estados da região mais pobre do país, movendo vultosos volumes de recursos captados junto ao banco Mundial, BID, BIRD e BNDES. Estados reestruturam suas orlas marítimas na tentativa de produção de um espaço-produto compatível com o padrão imagético atrativo: o paraíso tropical. Estados como Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Bahia promovem massivamente a reordenação do litoral face ao desenvolvimento da atividade. Acompanhado disso, comunidades de pescadores e ambientes estuarinos sofrem as consequências do processo de “modernização”. Outros estados como Piauí, 1 Doutorando em Geografia Humana – Universidade de São Paulo-USP – Brasil. E-mail: [email protected]

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O presente artigo apresenta considerações acerca da expansão do turismo no litoral setentrional brasileiro, partindo-se de inferências sobre as dinâmicas em curso nos municípios litorâneos do estado do Maranhão. As reflexões tomam por base o papel do Estado na indução da valorização do espaço litorâneo por meio de suas políticas públicas de turismo e da indução de novos usos ao litoral. O confronto entre os instrumentos de planejamento, os materiais de promoção, os mapas turísticos e a realidade vislumbrada em trabalho de campo nos 26 municípios que c ompõem o litoral maranhense dá o mote da reflexão pretendida.

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  • XIV Encuentro de Gegrafo de Amrica Latina Reencuentro de saberes territoriales latinoamericanos

    Lima del 08 al 12 de Abril de 2013

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    A EXPANSO DO TURISMO NO LITORAL SETENTRIONAL BRASILEIRO:

    consideraes a partir da valorizao do espao litorneo no estado do Maranho.

    Carlos Rerisson Rocha da Costa1 Universidade de So Paulo

    Resumo O presente artigo apresenta consideraes acerca da expanso do turismo no litoral setentrional brasileiro, partindo-se de inferncias sobre as dinmicas em curso nos municpios litorneos do estado do Maranho. As reflexes tomam por base o papel do Estado na induo da valorizao do espao litorneo por meio de suas polticas pblicas de turismo e da induo de novos usos ao litoral. O confronto entre os instrumentos de planejamento, os materiais de promoo, os mapas tursticos e a realidade vislumbrada em trabalho de campo nos 26 municpios que compem o litoral maranhense d o mote da reflexo pretendida.

    Palavras-chave: Turismo; Litoral; Valorizao do espao

    Introduo

    Na transformao do tempo livre em mercadoria, apropria-se o litoral de pases tropicais

    como o Brasil como uma das parcelas do espao prioritrias para o desenvolvimento do turismo. O

    litoral brasileiro passa ento, nesse mbito, a figurar como representao paradisaca para o descanso

    de volumes cada vez maiores de turistas estrangeiros e mesmo brasileiros. A partir da dcada de 1960

    esse processo se d de forma sistematizada, passando o estado a atuar na organizao de polticas e

    na promoo de cidades como o Rio de Janeiro como destino turstico e imagem nacional. Espraia-se

    em direo ao litoral da regio nordeste a partir dos anos de 1980 e 1990, destacadamente pela

    induo de macropolticas como o Prodetur-NE.

    Nesse contexto, o turismo aparece como alternativa econmica para estados da regio mais

    pobre do pas, movendo vultosos volumes de recursos captados junto ao banco Mundial, BID, BIRD e

    BNDES. Estados reestruturam suas orlas martimas na tentativa de produo de um espao-produto

    compatvel com o padro imagtico atrativo: o paraso tropical. Estados como Cear, Rio Grande do

    Norte, Pernambuco e Bahia promovem massivamente a reordenao do litoral face ao

    desenvolvimento da atividade. Acompanhado disso, comunidades de pescadores e ambientes

    estuarinos sofrem as consequncias do processo de modernizao. Outros estados como Piau,

    1 Doutorando em Geografia Humana Universidade de So Paulo-USP Brasil. E-mail: [email protected]

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    Maranho, Par e Amap experimentam o desenvolvimento do turismo mais tardiamente, associados

    sobretudo ao ecoturismo e s caractersticas amaznicas.

    O Maranho, na transio entre este litoral de influncia amaznica e o litoral nordestino traz

    consigo peculiaridades importantes. Esta distino pode ser entendida tambm a partir das

    consideraes de Moraes (2009) que, ao tratar do litoral brasileiro, classifica-o, de maneira geral, em

    dois grandes litorais, um estendendo-se do sul do pas ao Cear, apropriado sob formas capitalistas de

    uso; outro do Piau ao Amap, comportando assim a poro setentrional do litoral brasileiro,

    caracterizado como um espao em vias de apropriao capitalista, onde o uso ainda se d em parte

    dos lugares baseado em relaes tradicionais, marcado pela presena de camponeses, comunidades

    extrativistas, com a apropriao capitalista do espao estabelecida pontualmente, ficando o litoral

    entrecortado de espaos de reserva.

    Assim, o litoral maranhense se configura como verdadeira fronteira de desenvolvimento do

    turismo litorneo, impulsionado pela ao estatal no planejamento e incentivo ao desenvolvimento da

    atividade turstica. Desse modo, parte dos municpios litorneos do estado se instrumentaliza para o

    desenvolvimento da atividade ao passo que ainda convivem ara a construo de caminhos para o

    turismo nessa poro do litoral brasileiro.

    O litoral e o turismo

    A partir dos sculos XVII e XVIII o litoral passa a figurar como espao de interesse de parcela

    cada vez maior da sociedade, uma vez que a praia e os banhos de mar so inseridos no discurso

    mdico como elementos benficos sade. Alain Corbin apresenta os elementos dessa resignificao

    das praias em sua obra Territrio do Vazio (CORBIN, 1989), atrelando tal processo a mltiplos fatores.

    Alm do discurso mdico e seus tratados, obras religiosas, poesias, pinturas e romances so

    apontados como elementos responsveis por essa inveno da praia no mundo ocidental (RAMOS,

    2009).

    Esta procura pelo litoral acaba por criar uma necessidade de hospedagem e transporte (e

    posteriormente lazer). Tais necessidades figuram como importantes bases para o desenvolvimento do

    turismo litorneo. O litoral, espao onde servios bsicos eram inexistentes, passa ento a figurar como

    lcus para possveis investimentos. A prestao de servios de hospedagem, alimentao, lazer e

    transporte aparece ento como importante meio para a gerao de lucro e como fator de destaque

    para consolidao do turismo moderno.

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    No Brasil a atrao pelas praias tambm ganhou adeptos ainda no sculo XIX, mas tal

    desejo pelo mar se intensifica no sculo XX. Nesse processo, as praias, que eram espaos

    portadores de imagens repulsivas, adquirem outro uso quando seu significado modificado,

    revertendo-se as imagens negativas associadas ao mar e aos espaos de contato direto com ele.

    Assim, o mar e o martimo tornam-se, no final do sculo XX, verdadeiro fenmeno de sociedade

    (DANTAS, 2002; DANTAS, PEREIRA; PANIZZA, 2008, p. 01).

    Embora nos livros bblicos o mar tenha um carter diluviano e no exista nenhum mar no

    jardim do den, o litoral passa a compor as imagens do paraso construdo pelo e para o turismo. Uma

    busca rpida em um site de buscas de imagens na internet com a palavra-chave Paraso nos revela

    que cerca de 70% das imagens resultantes so fotografias ou outras formas de representao do

    litoral.

    As imagens ednicas consubstanciaram a ideia portuguesa no lanar-se ao processo

    colonizador no sculo XVI. Tal assertiva fundamenta-se em Buarque de Holanda (1958), oportunidade

    em que o historiador dedica-se ao debate acerca dos motivos ednicos no descobrimento e na

    colonizao brasileira. Esta imagem paradisaca fora buscada e refutada ao longo dos sculos XVI e

    XVII, inicialmente estando presente nas representaes do Novo Mundo como espao certo de

    localizao do paraso terreno, posteriormente abandonada em sua afirmao veemente por parte dos

    cronistas e homens da cincia, como nos indica Magalhes (2010) a partir da anlise do trabalho de

    cronistas como Manoel da Nbrega, Pero de Magalhes Gandavo, Jos de Anchieta, Ferno Cardim,

    Ferno Guerreiro ou Domingos dAbreu de Brito, principais cronistas (e produtores de imagens

    discursivas sobre a colnia portuguesa na Amrica) do sculo XVI.

    Embora esta imagem de paraso tenha sido de certo modo posta de lado a partir do

    desencantamento portugus, nos parece que o ideal paradisaco europeu arrastou-se ao longo dos

    sculos, alterando-se em sua composio fantstica e mtica e recompondo-se sob bases naturais e

    paisagsticas caractersticas dos ambientes tropicais. Assim, extensos coqueirais, dunas, lagoas, praias

    azuis e esverdeadas, tudo isso passa a compor uma imagem paradisaca que est agora associada,

    sobretudo, ao litoral.

    O turismo, embora se espraie por todo o territrio a partir da criao de um sem fim de

    atrativos e segmentaes, tem sido desenvolvido de modo intenso nas reas litorneas, especialmente

    nas zonas intertropicais. Os agentes envolvidos com a realizao do fazer turstico passam ento a ter

    grande peso na produo do espao litorneo, inundados de contradies e conflitos entre agentes

    hegemnicos e contra-hegemnicos. A praia passa a ser um paraso construdo para aqueles que

    podem consumi-la, materialmente configurada como um produto singular standard, por mais absurdo

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    que isso possa parecer. Cidades litorneas apressam-se para padronizar suas praias a serem postas

    venda, numa glorificao do repetitivo, do feio, a servio de uma reproduo mais rpida do capital

    (SANTOS, 1997, p.23).

    Impactos deste processo se avolumam e se do de diversas maneiras, desde os de ordem

    natural, como a alterao de ambientes estuarinos, dunares e manguezais, at os de natureza social,

    que envolvem conflitos em comunidades de pescadores, passando por embates sobre a posse da terra

    e alteraes nas relaes familiares derivadas do trabalho feminino, por exemplo.

    Cabe destacar que estes e outros problemas presentes no litoral no derivam apenas do uso

    turstico, mas tambm pelo fato de que, nos espaos litorneos esto situadas as maiores cidades do

    mundo, reunindo a maior parte da populao do planeta. Entretanto, preciso ressaltar que a

    valorizao do espao litorneo crescente e o turismo aparece nessa dinmica com peso

    preponderante.

    Para Moraes (2007, p. 21) o litoral particulariza-se modernamente por uma apropriao

    cultural que o identifica como um espao de lazer, por excelncia, o que tem sustentado as atividades

    tursticas e de veraneio. A incorporao desses espaos ao mercado de terras e ao turismo tem sido

    responsvel pela maior parte da intensa apropriao do litoral nas ltimas dcadas e pela

    intensificao dos processos de valorao e valorizao do espao litorneo.

    Assim, o turismo se expande no litoral, apropriando-se dessa parcela reduzida e rara dos

    territrios, reconfigurando seus usos e atuando de maneira decisiva na produo do espao, inserindo

    objetos, dando novos significados aos preexistentes e reformulando normas. Tudo isso se d sob os

    auspcios do Estado que dota o territrio com a infraestrutura necessria para a atividade se

    desenvolver, desde as que garantem o deslocamento sobre o territrio (estradas, aeroportos, etc.) at

    o fomento de projetos via financiamento pblico, ou mesmo com a omisso diante da prevalncia dos

    interesses de empresas e corporaes sobre as necessidades para a reproduo social digna da

    populao.

    O Turismo no Brasil

    Durante a primeira metade do sculo XX o turismo no Brasil comea a se intensificar,

    sobretudo motivado pelos cassinos e pelas estncias termais. Nessa primeira metade do sculo

    passado so construdos meios de hospedagem para essa finalidade, sofrendo mais tarde forte

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    impacto do Decreto-Lei 9.215 de 30 de abril de 1946 que proibiu os Jogos de azar no Brasil. Na

    segunda metade do sculo XX o Estado brasileiro passa a atuar de modo mais intenso na organizao

    e no planejamento da atividade turstica, tendo como marco desta nova postura a criao da Embratur

    Empresa Brasileira de Turismo2 na dcada de 19603. A Embratur incentivou e financiou o

    desenvolvimento do turismo no Brasil, trabalhando ainda na promoo de uma imagem do pas para o

    mundo. Esta imagem, de modo geral, resumia-se s belas praias e a nudez das mulatas do carnaval.

    O litoral brasileiro passa ento, nesse mbito, a figurar como representao paradisaca e

    destino para o descanso de volumes cada vez maiores de turistas estrangeiros e mesmo brasileiros. A

    partir da dcada de 1960 esse processo se d de forma sistematizada, passando o estado a atuar na

    organizao de polticas e na promoo de cidades como o Rio de Janeiro como destino turstico e

    imagem nacional. Espraia-se em direo ao litoral da regio nordeste a partir dos anos de 1980,

    destacadamente nos fins da dcada e incio da dcada seguinte pela induo de macropolticas como

    o Prodetur-NE Programa de Ao para o Desenvolvimento do Turismo do Nordeste. Nesse contexto,

    o turismo aparece como alternativa econmica para estados da regio mais pobre do pas, movendo

    vultosos volumes de recursos captados junto ao banco Mundial, BID, BIRD e BNDES4. Como aponta

    Rodrigues (1999, p. 149) o Nordeste comea a ser vendido como o novo Caribe, o novo Mediterrneo,

    a nova Flrida.

    O Prodetur-NE criado no ano de 1991 por meio da Portaria Conjunta n 001 de iniciativa da

    Sudene Superintendncia para o Desenvolvimento do Nordeste e com apoio da Embratur. Motivado

    pelas demandas dos governos dos estados nordestinos, o Prodetur-NE acaba por priorizar o

    fortalecimento do turismo receptivo internacional, calcado em projetos de grande envergadura

    (RODRIGUES, 1999, p. 155), recebendo amplo financiamento de capitais transnacionais. A partir do

    Prodetur-NE o turismo passa a figurar como grande alternativa para a recuperao da economia

    nacional/regional, fazendo da regio Nordeste um importante destino turstico nacional e internacional

    (CORIOLANO, 1998).

    Privilegiando o litoral como espao preferencial para o planejamento das atividades tursticas,

    o Prodetur-NE resignifica a imagem do sol nordestino, antes apontado com culpado pelo flagelo da

    seca, agora figurante das campanhas publicitrias que convidam turistas de toda parte para o calor das

    praias da regio. Moraes (2007, p. 43) ressalta que a importncia do turismo pode ser medida

    justamente nessa entrada do Estado na tentativa de ordenamento e alavancagem de tal processo.

    2 Hoje, Instituto Brasileiro de Turismo.

    3 Cf. Becker (1995; 2001).

    4 Cf. BENEVIDES (1998) e RODRIGUES (1999).

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    nesse processo que os estados nordestinos tornam-se importantes destinos tursticos,

    destacadamente a Bahia, o Pernambuco, o Cear e o Rio Grande do Norte. Nestas unidades da

    federao os governos estaduais, alguns desde a dcada de 1980, alinham-se s polticas federais e

    mais tarde s linhas de atuao do Prodetur-NE e passam a planejar a atividade em cada estado,

    tratando a atividade turstica como fundamental para suas economias.

    Desse modo, o estado brasileiro passa a atuar de modo direto na destinao de novos usos

    para o espao litorneo. Nesse processo, os usos do litoral brasileiro podem ser compreendidos de

    maneira genrica a partir da classificao elaborada por Moraes (2007), onde este indica que a zona

    costeira do Brasil pode ser dividida do ponto de vista mais genrico possvel em dois grandes

    conjuntos, no que toca lgica imperante na valorizao do espao: de um lado, um padro de

    ocupao que domina a quase totalidade da fachada oriental atlntica, j avanando pelo litoral

    setentrional at envolver a regio metropolitana de Fortaleza, onde se introduz uma lgica urbana e

    mercantil no uso do solo, mesmo sobre os estoques territoriais ainda no ocupados existentes em seu

    interior (MORAES, 2007, p. 46). Indica Moraes que essa ampla poro do territrio pode ser

    qualificada como um litoral ocupado (e em ocupao) segundo formas plenamente capitalistas de

    valorizao do espao.

    Cobrindo o restante do litoral norte do Brasil, do Piau ao Amap, observa-se uma

    significativa extenso, mas essa emersa em gneros de vida tradicionais, de ndole pr-capitalista.

    Nessa poro do litoral, tem-se como paisagens predominantes reas de trnsito de populaes

    nmades, terras desocupadas, sedes de comunidades extrativistas, fazendas arcaicas, cidades

    mortas. Diante desse quadro, os centros dinmicos de adensamento representam quase que

    enclaves, face ao padro dominante (MORAES, 2007, p. 46).

    Essa compartimentao da zona costeira, estabelecida a partir de diferentes nveis de

    valorizao do espao e distintos usos, estando associada ao do Estado por meio de suas polticas

    de turismo, aparece-nos como manifestao/produto de distintas formas de atuao de agentes

    hegemnicos, entre os quais o Estado, e seus conflitos com agentes hegemonizados e contra-

    hegemnicos.

    Assim, pode-se admitir a existncia de dois grandes espaos classificados genericamente

    quanto ao uso, onde o valor de uso ou o valor de troca so base para a reproduo social e para a

    produo tanto de um espao social de usos quanto de espaos abstratos de expropriao

    (GOTTDIENER, 1997, p. 131).

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    Na ltima dcada os estados que compem o que estamos chamando aqui de litoral

    setentrional brasileiro (Piau, Maranho, Par e Amap) passam a elaborar estratgias para o

    desenvolvimento do turismo. Embora em alguns pontos destes estados j se desenvolvesse

    estratgias para o fortalecimento da atividade desde meados da dcada de 1990, caso do Maranho

    com os polos de So Lus, capital do estado e Lenis Maranhenses, na primeira dcada do sculo

    XXI que o turismo aparece como uma atividade importante para estes estados e seus grupos

    empresariais, fazendo o poder pblico tomar iniciativas referentes ao planejamento turstico.

    O Turismo no litoral maranhense

    No Maranho, esses processos se instalam no litoral, sobretudo na Ilha do Maranho5 e em

    alguns municpios onde as polticas pblicas de turismo (com destaque para o Plano Maior de Turismo

    da dcada de 1990) incentivaram a instalao de empreendimentos hoteleiros e a publicidade de

    atrativos tursticos.

    Embora o Maranho tenha estabelecido algumas medidas governamentais e efetuado a

    criao de rgos destinados ao planejamento do turismo a partir da dcada de 1960, sistematiza

    apenas a partir da dcada de 1990 as suas polticas voltadas atividade. Tal processo ocorre

    mediante a insero deste estado no Prodetur-NE, culminando na elaborao do Plano Estadual de

    Turismo em 1995, reapresentado em janeiro de 2000 sob a insgnia de Plano de Desenvolvimento

    Integral do Turismo no Maranho (chamado desde sua elaborao na dcada de 1990 de Plano Maior)

    (MARANHO, 2000)6. Embora elaborado na dcada de 1990, este plano pouco surtiu efeitos, e sua

    reedio tambm caminhou a passos lentos. Neste plano priorizado o desenvolvimento do turismo no

    litoral maranhense, concentrando a maior parte dos polos tursticos no espao litorneo. Dos dez polos

    estabelecidos pela secretaria de turismo do estado, sete possuem ao menos um municpio litorneo.

    Dentre os polos selecionados como prioritrios, destacam-se o Parque dos Lenis, o Delta das

    Amricas e o de So Luis, evidenciando uma concentrao da atividade no chamado litoral oriental

    maranhense.

    O Turismo que se desenvolve j em elevada intensidade no estado do Cear espraia-se em

    direo ao norte do pas e j se insere nas prioridades do litoral piauiense, com seus quatro municpios

    5 Tambm chamada de Ilha de Upaon-a ou Ilha de So Lus, a Ilha do Maranho abriga a capital maranhense, So Lus, e mais trs municpios: So Jos de Ribamar, Pao do Lumiar e Raposa. Juntos, os quatro municpios aglutinam 1.306.029 habitantes (IBGE, 2010) e fazem parte da Regio Metropolitana da Grande So Lus. 6 Cf. Ferreira (2007).

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    e pouco mais de 60 km de extenso, chegando ao litoral maranhense, que passa a se configurar como

    verdadeira fronteira de expanso desta atividade no litoral brasileiro.

    No litoral oriental os municpios ligados aos lenis maranhenses (Polo Delta das Amricas e

    Polo Parque dos Lenis) j experimentam grande fluxo de turistas, boa parte vindos do Cear pela

    chamada Rota das Emoes, que liga a praia de Jericoacoara, o Delta das Amricas, no Rio Parnaba,

    e o Parque Nacional dos Lenis Maranhenses (ASSIS, 2011). A capital do estado, So Lus, destaca-

    se por seu acervo arquitetnico e patrimnio cultural ligado ao perodo colonial. O litoral ocidental abre-

    se ao turismo com o apelo amaznico ligado a presena de extensas florestas de manguezais e ilhas e

    impulsionado pelo Proecotur Programa de Desenvolvimento do Ecoturismo na Amaznia Legal, do

    qual faz parte o polo Floresta dos Guars.

    Nesse caminho, o estado elabora seu novo plano de turismo no ano de 2010 (MARANHO,

    2011) e os municpios litorneos passam tambm a buscar instrumentos normativos e de gesto que

    possibilitem o desenvolvimento da atividade. O Governo do estado prope um caminho a ser seguido

    com o objetivo de conquistar os mercados mundiais e atrair visitantes7, visando colocar o Maranho

    entre os grandes destinos mundiais (MARANHO, 2011, p. 3).

    A partir desse instrumento o Estado prope a produo de uma imagem para o Maranho,

    destacando-o como nico. Essa condio de singularidade, condio impulsionadora de atrao

    turstica, se d por seu quadro natural bastante particular, com elementos de transio entre o nordeste

    e a Amaznia, seu acervo arquitetnico colonial portugus, manifestaes culturais, etc. sendo tais

    caractersticas exploradas na elaborao dos polos tursticos.

    Os polos Delta das Amricas, Parque dos Lenis, Munim, So Luis, Floresta dos Guars e

    Amaznia Maranhense possuem municpios litorneos e so indicados como reas de

    desenvolvimento de turismo de sol e praia. Assim, municpios do litoral oriental alinham-se s diretrizes

    do Pordetur-NE e municpios do litoral ocidental s indicaes do Proecotur.

    7 Em 1999, o Plano Maior estabeleceu a meta de o Estado receber 1,5 milho de turistas em 2010, sendo 80% nacionais e

    20% estrangeiros. Em 2009, o Estado ultrapassou essa meta, recebendo 1,7 milho de turistas (MARANHO, 2011, p. 7).

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    Figura 01: Polos tursticos do litoral maranhense, Plano Maior 2020.

    Fonte: Adaptado de MARANHO (2011)

    Em trabalho de campo realizado no ms de janeiro de 2013, visitando os 26 municpios que

    compem o litoral maranhense, fora colocado em confronto aquilo que est no Plano Maior e o que

    vivido pelos habitantes desses municpios. Nesse processo, ganhou mais sentido ainda para ns o

    ttulo do texto de Castrogiovanni (2003): O misterioso mundo que os mapas escondem. O contato com

    municpios extremamente pobres, com deficincias de infraestruturas bsicas mostra e precrios

    (quando no inexistentes) servios de apoio ao turista (e populao em geral) deixaram claro que a

    imagem das belas paisagens vendidas pela Secretaria de turismo do estado est bem distante da

    realidade cotidiana daquela gente. No que essas belezas no existam. Elas esto l. Mas preciso

    superar a pobreza para pensar em turismo, para ofertar servios de qualidade e condies mnimas

    para o desenvolvimento da atividade turstica. Outra possibilidade (j bastante utilizada noutros pontos

    do territrio) produzir simulacros de uma realidade distante, incompatvel com o lugar que os rodeiam,

    espaos que extirpam a populao local de seus espaos de convivncia cotidiana e trabalho. No

    considero que seja est a melhor sada.

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    Figura 02: Representaes do Maranho nico do Plano Maior 2020.

    Fonte: MARANHO (2011)

    Figura 03: O Misterioso mundo que os mapas (e folders) escondem no litoral do Maranho

    Fonte: Acervo da pesquisa (2013)

    Embora com todos os problemas, o turismo se expande para o litoral maranhense. Parte das

    prefeituras desses municpios litorneos j possui ou esto em fase de elaborao de seus

    instrumentos de planejamento da atividade turstica. Em municpios menores os instrumentos e mesmo

    as secretarias de turismo so inexistentes ou, quando existente, inoperantes. Nesse nterim,

    empresrios interessados em desenvolver o turismo nesses municpios acabam tendo peso elevado

    nas tomadas de deciso do poder pblico, sobretudo na esfera municipal.

    O parcelamento das terras beira-mar tambm j se inicia. O valor das terras se eleva

    consideravelmente nos ltimos anos e, embora ainda haja municpios com lotes beira-mar sendo

    vendidos por preos baixssimos, noutros, pescadores j comeam a ser atrados pela possibilidade da

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    venda de suas terras na praia, o que tem mobilizado empresrios a investirem na aquisio de terras

    com finalidade de especulao.

    Evidencia-se desta forma que a ao do Estado, por meio das polticas pblicas de turismo,

    assume importante papel no processo de induo da valorizao do espao litorneo. O Estado

    enquanto agente produtor do espao, nesse nterim, associa-se a ao do mercado, contribuindo com

    incorporadores e agentes imobilirios, por exemplo, seja na normatizao do parcelamento do espao

    para venda, seja na arquitetura de um espao dotado de condies timas para o funcionamento da

    atividade turstica, esta ltima ao estando presente em apenas alguns pontos do litoral maranhense.

    Consideraes Finais

    Os processos analisados at o presente momento no litoral do Maranho nos apontam que

    este estado tem se colocado como fronteira de expanso do turismo em direo ao litoral setentrional

    brasileiro. Nos estados desta poro do territrio o turismo se desenvolve tardiamente em relao aos

    demais estados do litoral do Brasil. Tal expanso tem carter estatal claro se tomarmos por base a

    construo de Programas pblicos de induo e financiamento para o desenvolvimento do turismo,

    exemplos so o Prodetur-NE e o Proecotur.

    Na guerra dos lugares e na composio atual do mercado de cidade, municpios alinham-se

    polticas federais e estaduais e elaboram seus instrumentos de atrao e planejamento da atividade

    turstica. A expanso se d, mas com empecilhos gerados, sobretudo, pela profunda pobreza vivida

    nesses lugares. O fazer turstico contrasta com as dificuldades enfrentadas pela populao no seu

    cotidiano e a experincia do turista, salvo em alguns pontos desse litoral, normalmente incmoda,

    seja por no ter a estrutura que espera (no caso de gostos mais exigentes), seja pela violncia de

    consumir lazer em meio pobreza extremada. Muitas vezes estes dois incmodos tornam-se

    empecilhos para o retorno, mesmo diante de tantas belezas naturais e manifestaes da cultura local

    (algumas vezes quase encenaes teatrais).

    Diante das experincias com o turismo em espaos litorneos em todo o mundo e

    especificamente no Brasil, a compreenso dos processos em curso no litoral maranhense pode

    configurar-se como importante estratgia para se eleger caminhos e posies a tomar no sentido de

    evitar a repetio de problemas e conflitos ocorridos em inmeros importantes destinos tursticos.

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    Tais consideraes correspondem a parcela momentnea das reflexes que temos

    desenvolvido na construo de nossa tese de doutorado e no desenvolvimento de projeto de pesquisa

    no mbito do curso de Geografia da Universidade Estadual do Piau e representa uma sntese que nos

    tem apontado uma agenda de pesquisa a ser desenvolvida nos prximos anos na busca de

    compreender a produo do espao litorneo a partir da ao estatal destinada ao desenvolvimento do

    turismo.

    Referncias

    ASSIS, Lenilton Francisco de. Entre o turismo e o imobilirio: velhos e novos usos das segundas residncias sob o enfoque da multiterritorialidade Camocim/CE. 2012. 278 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, 2012. BECKER, Bertha. Polticas e planejamento do turismo no Brasil. Caderno Virtual de Turismo. v. 1, n. 1, p. 1-7, 2001. Disponvel em: http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/index.php?journal=caderno&page= article&op=download&path%5B%5D=2&path%5B%5D=1. Acesso em: 23 de agosto de 2012 BENEVIDES, Ireleno Porto. Turismo e PRODETUR: dimenses e olhares em parceria. Fortaleza: EdUFC, 1998. CASTROGIOVANNI, Antonio Carlos. O Misterioso Mundo que os Mapas Escondem. In: Geografia em sala de aula: prticas e reflexes. Porto Alegre: UFRGS/Associao dos Gegrafos Brasileiros, 2003. p. 31-47. CORBIN, Alain. O territrio do vazio: a praia e o imaginrio ocidental. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. CORIOLANO, Luzia Neide Menezes Teixeira. Do local ao global: o turismo litorneo cearense. 2. Ed. Campinas-SP: Papirus, 1998. DANTAS, Eustgio Wanderley Correia. Mar vista: estudo da maritimidade em Fortaleza. Fortaleza: Museu do Cear/Secretaria de Cultura e Desporto, 2002. DANTAS, Eustgio Wanderley Correia; PANIZZA, Andrea de Castro; PEREIRA, Alexandre Queiroz. Vilegiatura martima no nordeste brasileiro. In: Actas del X Coloquio Internacional de Geocrtica. Barcelona: Universidad de Barcelona, 2008. p. 26-30. Disponvel em: < http://www.ub.edu/geocrit/-xcol/302.htm>. Acesso em: 19 out. 2009. FERREIRA, Antnio Jos de Arajo. O turismo e a produo do espao no estado do Maranho, Brasil. In: Actas del IX Coloquio Internacional de Geocrtica. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007. Disponvel em: . Acesso em: 13 jan. 2010.

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