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1 REFORMA DE CANAVIAL DE ACORDO COM A DEMANDA DA COMMODITY DA CANA “Trabalho realizado para orientação de Trabalho de Conclusão de Curso com o intuído de aprovação na disciplina de Pesquisa Aplicada à Administração.” Professor: Josias Nunes Barreto Brasília/DF Pró-Reitoria Acadêmica Escola de Negócios Curso de Relações Internacionais Trabalho de Conclusão do Curso A ESTRUTURAÇÃO DO REGIME HIDROPOLÍTICO PLATINO A PARTIR DE UMA ANÁLISE DAS CULTURAS DE ANARQUIA CONSTRUTIVISTAS: DE 1966 A 1979 Autor: Yan da Veiga Ferreira Orientador: Dr. Fábio Albergaria de Queiroz Brasília - DF 2015

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Page 1: A ESTRUTURAÇÃO DO REGIME HIDROPOLÍTICO Autor: Yan … · Monografia apresentada ao curso de Graduação em Relações Internacionais ... um adendo a algumas das premissas do construtivismo

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REFORMA DE CANAVIAL DE ACORDO COM A DEMANDA DA COMMODITY DA

CANA

“Trabalho realizado para orientação de Trabalho de Conclusão de Curso com o intuído de aprovação na disciplina de Pesquisa Aplicada à Administração.” Professor: Josias Nunes Barreto

Brasília/DF

Pró-Reitoria Acadêmica Escola de Negócios

Curso de Relações Internacionais

Trabalho de Conclusão do Curso

A ESTRUTURAÇÃO DO REGIME HIDROPOLÍTICO PLATINO A PARTIR DE UMA ANÁLISE DAS CULTURAS DE

ANARQUIA CONSTRUTIVISTAS: DE 1966 A 1979

Autor: Yan da Veiga Ferreira

Orientador: Dr. Fábio Albergaria de Queiroz

Brasília - DF

2015

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YAN DA VEIGA FERREIRA

A ESTRUTURAÇÃO DO REGIME HIDROPOLÍTICO PLATINO A PARTIR DE UMA ANÁLISE DAS CULTURAS DE ANARQUIA CONSTRUTIVISTAS: DE 1966 A 1979

Monografia apresentada ao curso de Graduação em Relações Internacionais da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para a obtenção do Título de Bacharel em Relações Internacionais. Orientador: Dr. Fábio Albergaria de Queiroz

Brasília 2015

Page 3: A ESTRUTURAÇÃO DO REGIME HIDROPOLÍTICO Autor: Yan … · Monografia apresentada ao curso de Graduação em Relações Internacionais ... um adendo a algumas das premissas do construtivismo

Monografia de autoria de Yan da Veiga Ferreira, intitulada “A

ESTRUTURAÇÃO DO REGIME HIDROPOLÍTICO PLATINO A PARTIR DE UMA

ANÁLISE DAS CULTURAS DE ANARQUIA CONSTRUTIVISTAS: DE 1966 A 1979”,

apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Relações

Internacionais da Universidade Católica de Brasília, em 23/11/2015, defendida e

aprovada pela banca examinadora abaixo assinada:

_________________________________________________

Prof. Dr. Fábio Albergaria de Queiroz

Orientador

Curso de Relações Internacionais – UCB

_________________________________________________

Prof. MSc. Creomar Lima Carvalho de Souza

Curso de Relações Internacionais – UCB

_________________________________________________

Prof. MSc. Jean Santos Lima

Instituto de Relações Internacionais - UnB

Brasília

2015

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RESUMO

Referência: FERREIRA, Yan. A estruturação do regime hidropolítico platino a partir de uma análise das culturas de anarquia construtivistas: de 1966 a 1979.

2015. 54 f. Monografia (Bacharelado em Relações Internacionais) – Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2015.

Esta pesquisa analisa o processo de construção e consolidação de um regime internacional sobre o aproveitamento hídrico na Bacia Platina no período de 1966 a 1979. O estudo busca justificar como este fator alterou os padrões de interação entre os Estados desta região a ponto de modificar a lógica de anarquia existente. A discussão sobre o tema iniciou a partir da ideia da construção de um empreendimento hidrelétrico entre Brasil e Paraguai após a assinatura da Ata das Cataratas em 1966. Após reivindicações argentinas sobre a questão, o debate passou para o nível regional e englobou todos os países banhados pelos rios platinos em um regime internacional hídropolítico. Com o final do litígio hidrelétrico entre Brasil e Argentina em 1979, fato que marcou a consolidação do regime, a região entrou em um período onde há um cenário prevalecente de cooperação e amizade em detrimento às rivalidades existentes em períodos anteriores. Essa mudança de padrões marca o início declínio de uma cultura de anarquia Lockeana rumo ao estabelecimento de uma lógica Kantiana na Bacia Platina.

Palavras-chave: Hidropolítica. Bacia Platina. Regimes Internacionais. Culturas de anarquia.

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ABSTRACT

This research analyses the process of construction and consolidation of an international regime based on water use in the Platine Basin from 1966 to 1979. The study seeks to justify how this factor changed the patterns of interaction among states on the region in order to modify the existing logic of anarchy. The discussion about water use begun from the idea of building a hydroelectric project between Brazil and Paraguay after the signing of Ata das Cataratas in 1966. After Argentina's claims on the issue, the debate shifted to the regional level and encompassed all countries covered by Platine rivers towards the foundation of a water regime. When the hydroelectric dispute between Brazil and Argentina ended in 1979, a fact that marked the consolidation of the regime, the Platine region entered in a period where cooperation and friendship arose as prevailing principles in place of the existing rivalries in prior periods. This change of patterns marked the declining of a Lockean culture towards the establishment of a Kantian logic in the Platine Basin.

Keywords: Hydropolitics. Platine Basin. International regimes. Cultures of anarchy.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 6

CAPÍTULO 1 - O ESTUDO DOS REGIMES INTERNACIONAIS ............................. 10

1.1. A PERSPECTIVA DE LEVY, YOUNG E ZÜRN SOBRE REGIMES

INTERNACIONAIS ................................................................................................. 12

1.1.1. Classificação dos Regimes Internacionais ....................................... 14

1.1.2. O processo de formação e consolidação dos regimes .................... 16

1.1.3. A efetividade dos Regimes Internacionais ........................................ 19

1.2. A APLICAÇÃO DOS CONCEITOS DE WENDT À PERSPECTIVA SOBRE

REGIMES .............................................................................................................. 21

CAPÍTULO 2 – A CONJUNTURA POLÍTICA DA BACIA DO PRATA: AS BASES

PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME HIDROPOLÍTICO ................................. 24

2.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS ................................................................. 24

2.2. A ATA DAS CATARATAS: O INÍCIO DA COOPERAÇÃO ENTRE BRASIL E

PARAGUAI E A REAÇÃO ARGENTINA ................................................................ 28

2.3. AS REUNIÕES DE CHANCELERES DA BACIA DO PRATA ...................... 29

2.4. CONVENÇÃO DE ESTOCOLMO E ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES

UNIDAS (1972) ...................................................................................................... 32

2.5. ASSINATURA DO TRATADO DE ITAIPU.................................................... 33

2.6. O CONSÓRCIO ARGENTINO PARAGUAIO PARA A CONSTRUÇÃO DE

YACYRETÁ-APIPÉ E CORPUS ............................................................................ 34

2.7. CONCILIAÇÃO DE PROJETOS: O ACORDO TRIPARTITE ....................... 35

CAPÍTULO 3 – O REGIME HIDROPOLÍTICO DA BACIA DO PRATA .................... 38

3.1. O TRATADO DA BACIA DO PRATA E A CRIAÇÃO DO REGIME .............. 38

3.2. O PROCESSO DE FORMAÇÃO E MANUTENÇÃO DO REGIME PLATINO ... 39

3.3. EFETIVIDADE DO REGIME HIDROPOLÍTICO PLATINO ........................... 43

3.4. OS EFEITOS COMPORTAMENTAIS DO REGIME SOBRE OS ESTADOS

PLATINOS ............................................................................................................. 45

3.5. AS CULTURAS DE ANARQUIAS DE WENDT E SUA APLICAÇÃO AO

REGIME PLATINO ................................................................................................. 46

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 50

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 52

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INTRODUÇÃO

A Bacia do Prata é uma região hidrográfica situada na América do Sul cuja

jurisdição está dividida entre cinco países: Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e

Uruguai. É a segunda mais extensa da região com 3,1 milhões de km² de área,

ficando atrás apenas da Bacia Amazônica. Dentre suas principais características, a

mais importante é que esta bacia possui a maior densidade populacional da América

do Sul e é uma zona de importante atividade econômica (FILHO, 2005). Segue

abaixo um mapa localizando esta bacia na América do Sul:

Imagem 1 – Mapa da Bacia Platina na América do Sul

Fonte: Comité Intergubernamental Coordinador de los Países de la Cuenca del Plata (CIC).

As discussões sobre o aproveitamento hídrico dos rios desta bacia foram

findadas no final da década de 1970, o que modificou os padrões de relacionamento

e de identificação a partir das identidades compartilhadas entre os Estados da

região. Este fato acabou por evidenciar o surgimento de um novo padrão de

interação no Cone Sul. Todavia, esta construção passou por diversos matizes ao

longo das décadas de 1960 e 1970, levando muitas vezes a um choque de

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perspectivas entre os países banhados por seus rios. Nesse sentido, pretende-se

responder como a construção e o estabelecimento de um regime relacionado ao

aproveitamento hídrico da Bacia do Prata propiciou a modificação dos padrões de

interação entre os países da região, assim como pretende-se analisar se tal arranjo

foi efetivo ou não.

O objetivo geral do presente estudo monográfico é analisar o processo de

construção e consolidação de um regime hídropolítico1 na Bacia do Prata no período

de 1966 a 1979. Para que este objetivo fosse atingido, foram delineados três

objetivos específicos, que nortearam a elaboração dos capítulos, a saber: delimitar

as premissas da Teoria dos Regimes Internacionais e da natureza da anarquia

construtivista; descrever a conjuntura política da Bacia do Prata no período

analisado; e mostrar as nuances do regime hídropolítico platino em seu processo de

formação e consolidação.

A pesquisa foi realizada através da utilização de fontes documentais e

bibliográficas, que incluem a análise dos Tratados da Bacia do Prata (1969) e da

Declaração de Assunção (1971), assim como a pesquisa em fontes secundárias

como livros, artigos científicos, dissertações, teses e publicações acerca do tema em

meio eletrônico.

Em relação ao método utilizado, Marconi e Lakatos (2000) os caracterizam a

partir da divisão entre métodos de abordagem e método de procedimento. A primeira

categoria enquadra os fenômenos através de uma abordagem mais ampla, servindo-

se de níveis de abstração mais elevados para o entendimento do estudo em

questão. Por sua vez, os métodos de procedimento são “etapas mais concretas da

investigação, com finalidade mais restrita em termos de explicação geral dos

fenômenos e menos abstratos” (p. 91).

O método de abordagem usado foi o dedutivo, onde se procura explicar a

ocorrência de fenômenos particulares ao se analisar teorias e leis (MARCONI;

LAKATOS, 2000). Assim, partindo da Teoria dos Regimes Internacionais e de

algumas premissas do Construtivismo de Wendt, este trabalho busca explicar a

formação de um regime hidropolítico na Bacia Platina, assim como o seu

1 O termo hidropolítica pode ser definido como “as dinâmicas multisetoriais, cooperativas e/ou

conflitivas, oriundas das relações de interdependência que se estabelecem entre aqueles atores que, em alguma medida, impactam e/ou são impactados pelos usos de recursos hídricos compartilhados” (QUEIROZ, 2012, p. 38).

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desenvolvimento ao longo das décadas de 1960 e 1970 e os seus efeitos ao longo

deste período.

O método de procedimento utilizado foi o histórico, onde há uma abordagem

de um evento passado para que possam ser entendidas as suas relações de causa

e efeito através da análise das variáveis encontradas. Através desse método, torna-

se mais fácil fazer uma análise e compreender o desenvolvimento das variáveis

históricas. Marconi e Lakatos (2000) o caracterizam como uma ferramenta capaz de

investigar os acontecimentos do passado para que possam ser verificadas suas

influências e resultados no presente, pois “as instituições alcançaram sua forma

atual por meio de alterações de suas partes componentes, ao longo do tempo,

influenciadas pelo contexto cultural particular de cada época” (p. 91).

Disto isso, para cumprir os objetivos propostos, o primeiro capítulo desta

monografia aborda os principais aspectos do estudo dos regimes internacionais,

demonstrando os fatores que incitaram na pesquisa sobre esta temática e quais são

as perspectivas teóricas existentes. Para dar maior profundidade ao tema, são

explicadas as principais premissas dos regimes internacionais de acordo com Levy,

Young e Zürn, que norteiam a elaboração do presente estudo monográfico, e é feito

um adendo a algumas das premissas do construtivismo de Wendt que são úteis para

dar maior entendimento ao contexto platino e ao regime.

Por sua vez, o segundo capítulo mostra o contexto político na qual é realizada

a formação e a construção de um regime hidropolítico na Bacia do Prata. Para isto, é

feito uma conceituação histórica de um período anterior ao analisado, para

demonstrar o processo de construção de imagens, identidades das/entre os

principais protagonistas dos eventos narrados, buscando identificar os padrões de

interesses dos Estados da região que os levaram à situação específica entre os

anos de 1966 e 1979. Posteriormente, são delineados os principais aspectos

relacionados ao aproveitamento hídrico das águas da Bacia Platina no período

proposto para análise, que visa expor as nuances históricas que culminaram com a

formação do regime em si.

Por fim, no terceiro capítulo é feita a junção entre teórico e empírico, onde é

mostrada a validade conceitual do marco teórico dentro do universo de pesquisa

selecionado. Para isto, as premissas estabelecidas no primeiro capítulo são

aplicadas ao contexto histórico delineado, mostrando os aspectos relevantes no

processo de formação e consolidação do regime. Ademais, também é feita uma

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análise da efetividade da construção deste arranjo e de que forma este pode ter

alterado as relações interestatais da Bacia do Prata.

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CAPÍTULO 1 - O ESTUDO DOS REGIMES INTERNACIONAIS

De acordo com Haggard e Simmons (1987), o estudo dos regimes

internacionais iniciou a partir de meados da década de 1970 por conta da

insatisfação e do questionamento dos estudiosos das Relações Internacionais em

relação aos conceitos de autoridade, organização e coerção estabelecidos pela

teoria dominante no momento, o Realismo. As premissas relacionadas à competição

entre os Estados em um constante jogo de soma-zero2 não explicavam o

comportamento cooperativo entre Estados industriais, o que fomentou o

desenvolvimento de teorias que supriam esta lacuna.

O debate sobre o papel dos regimes internacionais surge com John Ruggie

(1975, p. 570), que os define como: “a set of mutual expectations, rules and

regulations, plans, organizational energies and financial commitments, which have

been accepted by a group of states”. A ideia de que o comportamento estatal é

institucionalizado apresentada por Ruggie acabou por propiciar o arcabouço teórico

necessário para o desenvolvimento de teorias relacionadas ao tema. Para Haggard

e Simmons (1987; p. 492):

Regime analysis attempted to fill this lacuna by defining a focus that was neither as broad as international structure, nor as narrow as the study of formal organizations. Regime analysts assumed that patterns of state action are influenced by norms, but that such norm-governed behavior was wholly consistent with the pursuit of national interests. Hence, the regimes literature can be viewed as an experiment in reconciling the idealist and realist traditions.

Posteriormente, em um artigo publicado originalmente no periódico

International Organization, Krasner adaptou o conceito existente sobre regimes, e

criou a definição que é considerada por Levy et al. (1994) como consensual no

âmbito das Relações Internacionais. Esta conceito é definido como: “regimes can be

defined as sets of implicit and explicit principles, norms, rules, and decision-making

procedures around which actors’ expectations converge in a given area of

international relations” (KRASNER, 1983, p. 2).

Na perspectiva de Puchala e Hopkins (1982), os regimes estão presentes em

todas as áreas temáticas das relações internacionais, independentemente da

2 O termo soma-zero está relacionado aos resultados de uma disputa ou negociação de acordo com a

teoria dos jogos, onde para que uma parte consiga algum ganho é necessário que a outra parte envolvida sofra uma perda equivalente (SPANGLER, 2003).

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existência ou não de rivalidades por poder ou de relações conflituosas entre os

membros. Para estes autores, os representantes estatais quase sempre terão que

lidar com princípios, regras e normas no processo de tomada de decisão, o que

modifica o seu escopo de atuação e o seu comportamento.

Keohane e Nye (2012), por sua vez, consideram os regimes como arranjos

compostos por um conjunto de regras, normas e processos que afetam as relações

de interdependência entre os Estados. Dentro desta perspectiva, os regimes são

fatores de intermediação entre a estrutura de poder do sistema internacional,

definida como a distribuição dos recursos de poder entre os atores, e a agenda

política e econômica na qual ocorrem as barganhas entre os governos. Ademais, os

regimes podem ser formais e abrangentes ou informais e parciais. A efetividade

desses arranjos, todavia, varia de acordo com a área temática específica na qual

atua e com o tempo.

Strange (1982), diferentemente das outras perspectivas, faz críticas ao estudo

dos regimes internacionais. Seu ponto de vista em torno do tema é explanado

através de cinco “dragões”, que são os fatores que tornam a abordagem sobre este

tema pouco relevante. Em suma, os regimes são caracterizados como uma reação

temporária aos eventos que, em longo prazo, trará pouca contribuição ao

conhecimento agregado das Relações Internacionais. Ademais, o conceito de

regime é impreciso, vago e enviesado, que faz com que se estabeleça uma visão

estática sobre os acontecimentos do sistema internacional com base em um

estadocentrismo exacerbado.

Percebe-se então que a literatura sobre regimes é vasta e possui diferentes

perspectivas, muitas vezes conflitantes sobre sua importância para a as Relações

Internacionais. Para fins de delimitação, esta monografia utiliza a perspectiva de

Levy, Young e Zürn sobre os regimes internacionais em relação à definição,

classificação, formação, estruturação e efetividade desses arranjos. Também são

utilizadas algumas premissas do pensamento de Wendt para elucidar o peso dos

regimes no processo de modificação da estrutura na qual se inserem.

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1.1. A PERSPECTIVA DE LEVY, YOUNG E ZÜRN SOBRE REGIMES

INTERNACIONAIS

Em The study of international regimes, Levy, Young e Zürn (1994) fazem uma

análise sobre o conhecimento relacionado ao estudo dos regimes internacionais

previamente elaborados. Para isto, os autores utilizam tanto conceituações próprias

como de outros pesquisadores para dar maior robustez ao tema em questão. Esta

seção dedica-se prioritariamente a identificar os principais aspectos da teoria

propostos neste artigo em específico.

A investigação proposta por esses autores está estruturada em seis seções

principais, que buscam explicar, de maneira detalhada, cada uma das variáveis

concernentes ao tema dos regimes internacionais, a saber: definição e classificação;

construção e consolidação; modificações empíricas causadas por regimes;

consequências – em nível de efetividade e de efeitos mais amplos; e perspectivas

futuras sobre o estudo do tema.

A preocupação inicial dos autores é conceituar o termo regimes

internacionais, tema este que é de difícil compreensão pela ausência de consenso

entre os pesquisadores do campo. A definição clássica, proposta por Krasner

(1983), é alvo de críticas por parte da academia por conta de sua falta de clareza na

diferenciação dos termos que a compõem e por sua vagueza. Apesar disto, os

autores não se propõem a dar nova explicação, mas a expandir e explicar esta

definição a partir da explanação de suas variáveis.

A fim de delimitar os termos componentes da definição clássica, alvo de

críticas pela falta de significado intersubjetivo próprio, os autores definem os termos

princípios, normas e regras da seguinte forma:

Principles involve goal orientations and causal beliefs cast at the level of general policy arenas, like economics, security, or the environment. […]Norms describe general rights and obligations that operate mainly on the level of issue areas. […] Rules are the most concrete of the components referred to in the consensus definition. They are often stated explicitly in the formal agreements on which regimes are commonly based, and they facilitate assessments of implementation and compliance. […] Distinguishing among principles, norms, and rules makes it possible to classify regimes in ways that may prove useful in explaining regime formation and regime consequences (LEVY ET AL., 1994, p. 5 e 6).

Além disto, é proposta a definição da existência ou não de um regime através

de uma matriz que leva em consideração duas variáveis distintas - a convergência

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de expectativas e o grau de formalidade entre os atores. Desta forma, os regimes

internacionais podem ser definidos da seguinte maneira:

Ausência de regime: não há um grau mínimo de convergência dos

atores, e também não há nenhum grau de formalidade. Sem essas

duas características, não há como qualificar determinado arranjo como

sendo um regime internacional.

Regime tácito: casos onde a convergência dos atores é elevada e há a

presença de referências implícitas a regras informais.

Regime de letra morta: existem regras explícitas em relação ao

conteúdo e aos processos decisórios de maneira formal, ou seja,

escritos. Todavia, o grau de comprometimento dos atores e as suas

expectativas são baixos, o que compromete o funcionamento das

regras.

Regime clássico: há a difusão de expectativas entre os atores, da

mesma forma como existe uma base formal explícita das regras e

processos decisórios acerca do tema convergente.

Para melhor elucidar esta questão, abaixo é apresentado um quadro que

relacionam as duas variáveis e o tipo de regime em específico:

Quadro 1 – Tipos de regimes internacionais

Convergência de expectativas

Formalidade

Baixa Alta

Baixa Ausência de regime Regime tácito

Alta Regime de letra morta Regime Clássico

Fonte: Levy et al. (1994)

As distinções quanto aos significados intersubjetivos concernentes à definição

clássica e a descrição de diversos tipos de regimes de acordo com duas variáveis é

útil para que seja possível classificar os regimes e para analisá-los. Dentro desta

perspectiva, é importante ressaltar que os termos regime internacional e

organização internacional, apesar de interligados, possuem significados distintos.

Enquanto o primeiro se refere às instituições sociais que são formadas por normas,

princípios, regras, processos e programas que governam a interação entre atores

em determinada área temática, os organismos internacionais são entidades

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materiais constituídas muitas vezes como o resultado da institucionalização dos

regimes.

1.1.1. Classificação dos Regimes Internacionais

A classificação dos regimes é uma ferramenta adequada para explicar a

formação, estruturação e consequências que o estabelecimento dessas instituições

sociais pode trazer ao ambiente internacional através da criação de subconjuntos.

Desta forma, é possível se fazer generalizações a determinados subconjuntos que

não podem ser feitas ao universo total dos regimes internacionais. As classificações

propostas pelos autores estão ligadas primordialmente por fatores endógenos ao

regime, ou seja, as características intrínsecas dessas instituições, conforme

delimitado pelo conceito de Krasner (1982), e não a fatores exógenos de

causalidade que podem ser usados para distinguir variações entre regimes. Assim, a

classificação de um regime está orientada a partir de suas normas e princípios,

regras, processos, programas e área específica.

Em relação aos princípios e normas, é o método mais comum para classificar

os regimes internacionais. Neste sentido, é possível classificá-los a partir da

existência ou não de diferenciação funcional de papéis entre os participantes, onde

quanto maior é a diferenciação, maior será o grau de institucionalização. Ademais, o

modo de alocação de recursos determinado por seus princípios também é útil para

distinguir os regimes comerciais de acordo com a sua orientação, que podem

promover processos de internacionalização, nacionalização, e de acesso livre. Essa

classificação, para os autores, é importante para compreender os efeitos de

distribuição do regime. Por fim, também é possível classificar os regimes em relação

à ênfase dada aos princípios de cooperação, assim como por seus objetivos finais.

Por outro lado, as classificações feitas através dos diferentes tipos de regras

que existem entre os diversos regimes também são passiveis de análise. Na

perspectiva de Levy et al. (2004, p. 9):

We can therefore classify regimes on the basis of whether they highlight prohibitions, requirements, or permissions. […] We may expect also that requiring rules will be the most hotly contested, whereas permitting rules are much easier to implement, and prohibitions lie in between.

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Ou seja, o entendimento das regras e de sua natureza faz com que seja

possível entender o comportamento dos atores a determinado regime. Estas

características também são importantes para que se possa compreender o grau de

legitimidade depositado na instituição. Ademais, o entendimento da natureza das

regras também permite compreender se o regime em análise é considerado forte ou

fraco. Assim, quando as regras de um regime são bem definidas e específicas,

cobrindo uma vasta gama de atividades, a tendência é que o regime seja forte e

garanta, assim, a sua manutenção mesmo quando existe a deterioração das

relações entre os Estados participantes. Por outro lado, um regime fraco não possui

essa capacidade, carecendo assim de mecanismos que garantam a sua

manutenção e efetividade.

Por sua vez, a classificação por conta de processos e programas é vasta. Um

dos principais modos para classificá-los é através da autonomia dos grupos de

processo decisório em ser capazes de revisar as regras vigentes. A aptidão em

modificar as bases normativas estruturais dos regimes promove o processo de

aprendizagem em nível internacional. Assim, há uma evolução do regime no que

concerne ao processo de tomadas de decisão e de fortalecimento interno, o que

gera uma maior capacidade para a solução de problemas.

Por outro lado, caso o regime possua uma tendência estática no processo de

reformulação de regras em nível de tomada de decisões, a tendência é que as

pressões causadas por mudanças externas erodam a capacidade da instituição em

lidar com os problemas, diminuindo a capacidade do regime em se adaptar ao

ambiente internacional onde está inserido. A efetividade dos mecanismos de

observância de um regime, como o monitoramento, capacidade em impor sanções e

processos de resolução de disputas, é crucial para mensurar a habilidade da

instituição em alterar o comportamento dos atores participantes.

Por fim, os regimes internacionais também podem ser classificados através

da interação dos seus participantes em uma área temática específica, sendo

relevantes o número e tipo de participantes. O número de atores relevantes no

processo de criação e de tomadas de decisão, assim como a presença de entidades

não-estatais, podem influenciar tanto a efetividade de determinados regimes

dependendo da sua área de atuação.

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1.1.2. O processo de formação e consolidação dos regimes

No que se refere à formação, os regimes estão condicionados à reformulação

de arranjos institucionais existentes ou à criação de arranjos em determinada

temática onde ainda não existe um corpo específico de normas, princípios e regras

de regulação. A análise da formação dessas estruturas deve estar embasada em

três etapas, de acordo com o desenvolvimento do regime.

A primeira etapa a ser analisada pode ser definida de acordo com a iniciativa

de atores que possuem interesses em comum em determinada área específica em

formar arranjos institucionais. Caso haja sucesso neste ponto, deve-se analisar o

tempo gasto entre a iniciativa dos atores em formar determinado arranjo relacionado

a uma temática específica e a estruturação do regime em si. Por fim, deve-se

investigar como o regime criado lida com as situações do ambiente internacional na

qual se propõe a atuar.

Assim, deve-se analisar o tipo e o comportamento dos atores envolvidos na

criação e estruturação dos regimes internacionais. A maior parte dos estudos acerca

desta temática observa que os principais membros e responsáveis diretos pela

criação desses arranjos institucionais são os Estados. Percebe-se também a

participação de outros atores no processo de inclusão de agendas a serem

delimitadas e no processo de indução dos atores estatais em criar regimes

específicos para tratarem destas temáticas. Apesar disso, Levy et al. (1994, 9. 12)

pontua que “[…] it does not alter the fact that regimes are properly understood as

social practices created to guide interactions among the members of international

society (that is, states) in identifiable issue areas”.

Deve-se enfatizar que, inicialmente, os estudos sobre a criação dos regimes,

influenciado pelas ideias realistas, analisavam os Estados como sendo entidades

unitárias que buscavam maximização de seus interesses em ambiente internacional.

Contudo, estudos posteriores enfatizam a ideia de que estas unidades são entidades

coletivas complexas com a capacidade de alterar o comportamento dos Estados em

relação a sua área de atuação.

No que concerne ao processo de criação de regimes, este pode ser analisado

de três maneiras distintas: através da geração espontânea, da negociação ou da

imposição. Todavia, é necessário mencionar que a formação de um regime pode

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estar condicionada aos três processos, porém cada um destes com um grau de

importância variado.

A geração espontânea ocorre quando não são necessários esforços

conscientes dos participantes em estabelecer um regime a partir da convergência

dos atores, sendo assim resultado da própria prática social. Os regimes criados

através de negociações são estruturados após um processo de barganhas onde as

partes interagem em busca de um acordo. Por sua vez, os regimes impostos

ocorrem através da criação de um arranjo institucional por um ator mais poderoso,

ou uma por uma coalizão, através da indução dos outros para adentrarem em suas

instituições.

O processo de formação e estruturação de um regime internacional também

está condicionado à consolidação de três estágios distintos, no caso, a formação da

agenda, a escolha institucional e a operacionalização. A formação da agenda ocorre

a partir do surgimento da discussão de um tema específico dentro da agenda política

e o seu estabelecimento como objeto de prioridade na esfera internacional. A

escolha institucional é o período entre a emergência da agenda em âmbito

internacional ao estabelecimento do acordo com as provisões para o regime em

específico. A operacionalização, por fim, cobre as atividades necessárias para

transformar o acordo em uma prática social funcional.

A elaboração dos regimes internacionais também está condicionada a

determinadas forças sociais, em especial o poder, o conhecimento e os interesses.

A formação dos regimes, dentro de uma ótica realista, mostra o reflexo das

estruturas de poder do ambiente internacional, podendo ser modificados de acordo

com a distribuição de poder vigente. Levy et al. (1994, p. 16), nesse sentido, ressalta

que:

It is no doubt true that there are cases in which a dominant state or a hegemon supplies institutional arrangements to the members of a privileged group as a kind of public good. But there are many cases in which regime formation takes the form of a bargaining process among actors or coalitions that are more nearly equals.

Por sua vez, o conhecimento é fundamental no sentido de fomentar o

processo de aprendizagem social e levar ao surgimento de agendas e arranjos

institucionais. Em relação aos interesses, esses estão vinculados ao processo de

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decisão, onde estabelecem as principais motivações dos atores para a criação de

acordos entre si.

Outros dois fatores também são determinantes para a estruturação dos

regimes, e acabam por somar às forças sociais neste processo – as lideranças e o

contexto envolvido. As lideranças são de fundamental importância para a

delimitação da agenda, na busca por consenso e na representação do poder

material durante a formação do regime. Já o contexto é importante para explicar as

variáveis externas e internas que fomentam ou impedem a formação dos arranjos

institucionais em uma área específica.

A existência de regimes internacionais pode causar alguns efeitos na

distribuição de poder no sistema internacional. Na perspectiva de Keohane e Nye

(2012), também apresentada por Levy et al. (1994), esses arranjos acabam por

propiciar a cooperação através da redução da insegurança e da incerteza entre os

atores participantes. Ademais, eles tendem a se perpetuar mesmo quando a

situação inicial na qual eles foram criados não existe mais. Por isso, a cooperação

fomentada por regimes internacionais tende a se perpetuar mais do que quando não

existe nenhum mecanismo que vincule os Estados a cooperarem.

A manutenção dos regimes também pode ser explicada pela influência

causada por eles aos governos, mesmo quando as suas regras são vistas de

maneira inconveniente. Este fato ocorre pela observância da reputação dos Estados

perante sua defecção a um regime, que pode gerar constrangimentos internacionais.

Assim, o respeito às regras, procedimentos, normas e princípios do regime podem

ser vistos como um modo de condicionar um determinado Estado à cooperação em

âmbito internacional, mesmo quando não é conveniente para esta entidade atuar em

conformidade com essas variáveis.

Em casos onde o regime não consegue obter resultados práticos, também se

percebe a manutenção da estrutura institucional. Este fato ocorre porque, mesmo

quando o regime falha na tentativa de solução de problemas, há a tendência de uma

adaptação dos pressupostos do arranjo institucional a partir do aprendizado social,

levando a um aumento da robustez do regime. Apesar disto, os regimes estão

sujeitos ao desaparecimento quando os principais Estados participantes

desaparecem ou frente a novas dinâmicas internacionais, na qual eles não mais se

encaixam.

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1.1.3. A efetividade dos Regimes Internacionais

Com a finalidade de demonstrar as maneiras pelas quais um regime pode ser

considerado efetivo, deve-se inicialmente estabelecer o conceito de efetividade.

Para Levy et al. (1994), este termo pode ser definido de três formas diferentes: em

âmbito legal, político e orientado por objetivos. Na esfera legal, o significado da

palavra está relacionado à regulação dos conflitos através de mecanismos de

legislação, como o cumprimento de leis e a adoção de políticas. A visão orientada

por objetivos delineia efetividade como uma definição satisfatória das metas e de um

ajustamento das políticas para a promoção desses pontos. Já a visão política

desenvolve o conceito através da capacidade do regime em modificar o

comportamento dos atores envolvidos e em criar padrões de interação que entre os

participantes para que os problemas encontrados possam ser gerenciados.

Para analisar a efetividade de um regime é necessário encontrar uma relação

de causa e efeito entre o arranjo institucional e as mudanças causadas por eles a

nível comportamental dos atores. Para isto, o cenário envolvido deve ser analisado

como se jamais tivesse existido um regime de modo a comparar a situação atual

com a idealizada. Assim, podem ser feitas conexões entre as mudanças

comportamentais dos atores com as características estruturais do regime.

Os testes também podem ser realizados através de comparações entre

arranjos institucionais de áreas temáticas diferentes ou através do processo

evolutivo do regime ao longo do tempo para perceber as variações na variável

institucional. Essas técnicas, apesar de não garantirem com precisão exata a

efetividade, são úteis como ferramentas de análise para compreender o papel dos

regimes como determinantes no processo de tomadas de decisão do sistema

internacional.

A literatura acerca do tema mostra que a efetividade de um regime

internacional pode ser mensurada através de fatores endógenos, exógenos e

comportamentais, produzindo efeitos diretos e indiretos, positivos e negativos.

Nesse sentido, é notório saber que os efeitos dos arranjos internacionais em

determinada área podem produzir efeitos em outras temáticas. Ademais, a

classificação analítica entre efeitos positivos ou negativos é relativa, sendo portanto

mais difícil de avaliar por levar em consideração o ponto de vista do analista. A

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maior parte das análises de efetividade dos regimes foca em aspectos diretos e

positivos a determinada área temática.

Os fatores exógenos que podem trazer modificações à efetividade de um

regime internacional estão relacionados a mudanças na configuração dos interesses

dos participantes, a transformações na distribuição de influência – relacionadas à

coerção, liderança e comunidades epistêmicas – e na natureza da área temática.

Todavia, é necessário fazer um exame minucioso para separar quais dos efeitos

estão relacionados ao papel da instituição em si: “One way to avoid this pitfall is to

present explicit causal arguments, specifying exactly what the initial conditions are,

what the institutional response and exogenous forces are, and how these factors

interact causally to produce the observed outcome” (LEVY ET AL., 1994, p 26). Por

outro lado, os fatores endógenos contribuem para mensurar a efetividade a nível

interno, levando em consideração a estrutura e a administração do regime.

Ademais, a efetividade também pode ser mensurada por fatores

comportamentais, que observam como a estrutura dos regimes e sua administração

interagem com as configurações externas em sua operação. Através desta análise,

pode ser constatado que os regimes possuem a capacidade de alterar o grau de

utilidade entre os atores, assim como podem aumentar o nível de cooperação entre

os participantes, delimitar os papéis e as hierarquias dentro do arranjo institucional,

promover o aprendizado de práticas tanto em nível individual como social, e podem

reajustar o alinhamento internacional de seus participantes ao longo do tempo.

A análise de consequências mais amplas dos regimes internacionais está

condicionada ao fato de as áreas temáticas específicas estarem, de certa forma,

interligadas. Por isso, os efeitos dessas instituições não estão limitados somente por

variáveis exógenas e endógenas de um âmbito específico. Contudo, existem

algumas dificuldades inerentes à pesquisa dos efeitos amplos dos regimes

internacionais. O estudo desses efeitos sempre cai em certo nível de especulação,

já que o universo de consequências em outras áreas temáticas é ilimitado, sendo

assim difícil a coleta de informações e a compreensão do alcance de todos os

resultados amplos possíveis.

Assim, percebe-se que o estudo dos regimes internacionais tem se tornado

robusto através da análise dos diversos fatores supracitados, o que permite a

exploração de uma grande variedade de casos. Além da preocupação em

demonstrar quais são os processos que levam ao surgimento dos regimes, também

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há a percepção de que estas estruturas possuem a capacidade de modificar os

interesses coletivos e individuais dos Estados e de atores não estatais, sendo assim

de fundamental importância para o entendimento das relações internacionais.

Todavia, os autores identificam algumas lacunas no que se refere ao estudo

dos regimes internacionais que podem servir para expandir o conhecimento acerca

deste tema. Uma dessas lacunas existentes se refere à questão do entendimento da

natureza dos regimes através do processo de construção social entre agentes e

estruturas:

Actors whose identities, interests, and preferences are determined through some exogenous process interact with each other in ways that generate collective-action problems and, at some point, realize that they may be able to eliminate or alleviate these problems by devising mutually agreeable institutional arrangements that will serve to guide their subsequent interactions. The obvious focus then is on the processes through which groups of actors endeavor, successfully or unsuccessfully, to arrive at social contracts establishing the constitutive rules of regimes (Ibidem, p. 38).

Para suprir esta lacuna, este trabalho levará em consideração também

algumas premissas descritas por Wendt, que serão explanadas a seguir.

1.2. A APLICAÇÃO DOS CONCEITOS DE WENDT À PERSPECTIVA

SOBRE REGIMES

Esta subseção tem como objetivo delinear alguns conceitos presentes nos

estudos de Wendt (1987; 1999) que podem contribuir para o entendimento dos

regimes internacionais. Deve-se levar em consideração que o uso dessas premissas

neste presente estudo está condicionado ao processo de construção e consolidação

do regime hidropolítico na Bacia Platina entre 1966 e 1979, e serão levadas em

consideração para adentrar em um universo de possibilidades não previstos por

Levy et al. (1994).

Na perspectiva de Wendt (1987), agentes e estruturas são elementos

essenciais para a ação social, mas possuem funções diferenciadas neste processo.

Neste sentido, a estrutura é constituída pelo conjunto de práticas, pela identidade e

interesses dos agentes no processo de construção social. Por sua vez, os

interesses e as relações entre os agentes são moldados e explicados pela estrutura

na qual estão inseridos.

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O processo de construção de identidade e interesses dos Estados, que são

considerados agentes dentro do sistema internacional, ocorre através do processo

de socialização com outras entidades. Apesar de existir um componente material

próprio intrínseco dos agentes, são as interações que acabam por definir a

identidade própria tendo como base a percepção do outro, percebendo-se como

uma forma distinta com suas próprias características de escolha e atividade. Os

termos de individualidade dos agentes, então, dependem da cultura, que será

explicada a seguir, como forma de generalização do outro (WENDT, 1999).

A estrutura internacional é constituída por um micronível, onde ocorrem as

interações entre os Estados, e por um macronível, definido como um conjunto de

conhecimentos comuns ou cultura. Da mesma forma, a estrutura é constituída por

capacidades matérias, ideias e interesses. Os conhecimentos comuns são

caracterizados por um conjunto de crenças interligadas consideradas verdadeiras

sobre as razões, preferências e ideias dos outros atores. Nesta categoria são

incluídas as regras e as normas, presentes no conceito de regimes internacionais.

Assim, a cultura é um fator subjetivo que delineia o modo de atuação dos Estados

em nível social (WENDT, 1999).

A anarquia internacional não foge ao processo de socialização, e é

determinada de acordo com o conhecimento coletivo presente na estrutura na qual

se insere. Em seu livro, Wendt (1999) aborda três tipos de culturas de anarquia, que

são determinadas pelas representações coletivas de si e do outro, sendo, portanto

uma característica estrutural que define o comportamento dos atores.

Assim, temos uma cultura Hobbesiana quando há a percepção do outro como

inimigo, que é visto como uma ameaça existencial. Nesse caso, o direito à

sobrevivência não é permeado pelo conhecimento coletivo, o que significa que os

atores utilizarão dos seus recursos militares e capacidades materiais de modo

ilimitado para a obliteração do outro. O objetivo final do Estado é a sobrevivência, e

por isso este não medirá esforços para destruir ou conquistar os seus inimigos. Os

Estados mais fortes nesse cenário buscarão, então, balancear o seu poder para

garantir a sua existência. Assim, a cultura Hobbesiana é caracterizada

essencialmente à síntese da máxima de Hobbes da guerra de todos contra todos

(WENDT, 1999).

As culturas Lockeanas, por sua vez, a representação do outro é a de um rival.

Ou seja, o respeito à soberania e à liberdade dos Estados é garantido. O uso da

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violência, portanto, é limitado, pois o direito à sobrevivência é garantido como um

princípio desta lógica. O balanço de poder também está presente nesta cultura, mas

por uma questão de ordenamento. A conceituação de ameaça também é modificada

em relação à cultura Hobbesiana, visto que a preocupação com a própria

sobrevivência é minimizada pelas normas perpetuadas no sistema. (WENDT, 1999).

Por fim, a representação do outro nas culturas Kantianas tem como base a

amizade. Os princípios norteadores básicos desta lógica são a regra da não

violência, onde os litígios são resolvidos sem o uso da guerra ou de ameaçar fazê-la,

e segurança coletiva, onde qualquer ameaça a um dos membros é levada em

consideração pelos demais (WENDT, 1999).

Analisando estas perspectivas, e sendo os regimes práticas sociais, o seu

processo de construção afeta tanto o nível estrutural do sistema quanto a identidade

dos atores envolvidos. A consolidação de determinadas normas dentro de um

sistema, então, pode alterar as condições de anarquia e levar a um processo de

reprodução ou transformação da cultura do sistema baseado na construção mútua

de agentes e estruturas.

Feita a análise do estudo dos regimes internacionais e da apresentação de

algumas premissas do pensamento de Wendt, o próximo capítulo visa dar uma

explicação do contexto político da Bacia Platina no período de 1966 a 1979. Feita

esta análise, os conceitos trabalhados nesta seção serão utilizados para caracterizar

as nuances do processo de construção de um regime hidropolítico nesta região e

nas suas consequências tanto a nível interno quanto na modificação de padrões de

interação entre os Estados existentes nessa região.

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CAPÍTULO 2 – A CONJUNTURA POLÍTICA DA BACIA DO PRATA: AS BASES

PARA A CONSTRUÇÃO DE UM REGIME HIDROPOLÍTICO

O período situado entre 1966 e 1979 foi marcado por uma mudança

significativa do relacionamento entre os países que compõem a Bacia do Prata

(Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai), que saíram de uma situação

histórica de instabilidade política onde os vizinhos se percebiam como ameaças em

potencial para a consolidação da cooperação e o estreitamento de laços políticos e

econômicos.

Dentro deste contexto, é notória a participação das diplomacias de três dos

países que são banhados pelos rios desta bacia hidrográfica – Brasil, Argentina e

Paraguai – para a construção do entendimento. Todavia, este processo foi marcado

por longos períodos marcados por desconfianças e conflitos, que acabaram por

produzir efeitos consideráveis na esfera regional, e que foram resolvidos apenas em

1979 com a assinatura do Acordo Tripartite Corpus-Itaipu.

Assim, este capítulo tem como propósito explicar o processo de construção

da estabilidade platina a partir de uma análise conjuntural política do Cone Sul. Para

isto, serão resgatados os principais antecedentes históricos que culminaram com o

contexto político da década de 1960.

Também serão levados em consideração os acordos multilaterais firmados

entre os países platinos no período entre 1966 e 1979, assim como os

desentendimentos e sinergias entre Brasil, Argentina e Paraguai ao longo deste

período para buscar os fatores que ajudam a entender a natureza de um regime

hidropolítico em formação.

2.1. ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Desde a era colonial, Portugal e Espanha já identificavam na Bacia do Prata

um importante valor econômico devido à quantidade de riquezas minerais

encontradas e pela navegabilidade dos rios como forma de escoamento dos

produtos da região central da América do Sul para o Oceano Atlântico. Por isso,

ambos iniciaram uma corrida desde o século XVI para a conquista da região (FILHO,

2005).

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Com a independência dos países americanos no século XIX, a região da

Bacia do Prata continuou tendo imensa importância econômica, o que levou aos

países recém independentes a buscar a soberania da Bacia Platina, época marcada

pelo equilíbrio de poder entre os Estados mais fortes da região (FILHO, 2005).

O conflito central da América do Sul ocorria entre Brasil e Argentina, e

mesclava questões de liderança regional e competição pela influência dos três

países platinos menores. Apesar da situação conflituosa, ambos não entraram em

guerra desde 1870, mas continuaram disputando o comando da parte leste da Bacia

do Rio da Prata para controlar o sistema hídrico dos rios platinos (BUZAN; WÆVER,

2003). Essa posição também é sustentada por Nohlen e Fernández (1981, p. 427),

que afirmam:

Con la excepción de Brasil con Bolivia, todos los países de la Cuenca del Plata han tenido conflictos bélicos entre sí. El antagonismo dominante, sin embargo está radicado entre Argentina y Brasil. Tal relación tiene tanto una proyección continental en toda Latinoamérica, como local, en el marco de la Cuenca del Plata. Por una parte, ambos países han sostenido una permanente rivalidad por ocupar la posición de poder dominante en el subcontinente, y por la otra, por influir entre los vecinos menores en la región piálense.

Por conta desse fato, a região, em meados do século XX, passou a ser

cobiçada pelo seu alto valor energético, o que levou os países da região a

interagirem em relações conflituosas e de cooperação (NOHLEN; FERNÁNDEZ,

1981). A política de aproveitamento hidrelétrico do rio Paraná, o principal da bacia,

levaria posteriormente o Brasil e a Argentina a um período de intensa rivalidade

durante os governos militares em ambos os países (CERVO; RAPOPORT, 1998).

Candeas (2005), por sua vez, analisa as relações bilaterais entre Brasil e

Argentina como mutáveis ao longo da história. No que concerne ao período situado

entre o início da década de 1960 e o final da década de 1980, há o destacamento de

dois períodos distintos bem claros no relacionamento entre os dois países.

No primeiro período, situado entre os anos de 1962 e 1979, pode ser

percebida uma instabilidade conjuntural com predomínio da rivalidade, ou seja, os

dois Estados se percebiam como adversários e potenciais ameaças no plano

continental, evitando assim o estreitamento de laços políticos e estratégicos.

Posteriormente, após a assinatura do Acordo Tripartite, em 1979, houve uma

mudança no que tange ao caminho das relações bilaterais entre Brasil e Argentina

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rumo à construção de uma estabilidade estrutural através da cooperação

(CANDEAS, 2005).

Além da rivalidade entre brasileiros e argentinos pela disputa da hegemonia

da Bacia Platina, antigos litígios fronteiriços não resolvidos entre Brasil e Paraguai

vieram à tona após a realização de estudos para o aproveitamento do Paraná, que

trata-se de um rio internacional3, na região de Sete Quedas a partir de 1962,

território onde este curso d’água é contíguo4 aos dois países (NETO, 2013a).

O Protocolo de Cotegipe, firmado entre os dois países após o fim da Guerra

do Paraguai em 1872, promoveu, de modo urgente, uma solução efêmera para a

definição de fronteiras entre Brasil e Paraguai em uma situação pós-conflituosa.

Entretanto, havia a necessidade de se construir outro documento que definisse

permanentemente os limites fronteiriços, fato este que foi negligenciado pela

chancelaria dos dois países até o início da década de 1960 (PECEQUILO; HAGE,

2007).

Em relação às origens do aproveitamento hidrelétrico da região de Sete

Quedas, os projetos datam desde a época da presidência de Jânio Quadros no

Brasil, e seguiram após a posse de João Goulart, devido a uma preocupação com

uma crise elétrica em território nacional. De acordo com Filho (2006), Stroessner,

então presidente do Paraguai, e Goulart se encontraram em Mato Grosso para

combinar que qualquer aproveitamento hidrelétrico no rio Paraná em território

contíguo aos dois países seria realizado através de entendimento bilateral.

Todavia, com o golpe militar no Brasil em 31 de março de 1964, o teor das

conversas com o Paraguai se modificaram. A política de Castello Branco, primeiro

presidente do período militar, era a de transformar o Brasil em uma potência média,

e por isso o Brasil precisava aumentar o seu potencial energético para alavancar o

crescimento econômico (PECEQUILO; HAGE, 2007).

A atuação de Otávio Marcondes Ferraz, então presidente da Eletrobrás,

também causou mudanças drásticas nas discussões com o Paraguai, pois “Ferraz

era veementemente contrário à ideia de construção de uma usina binacional em

Salto de Guairá/Sete Quedas defendendo, em contrapartida, o desvio do rio Paraná

3 Rio internacional é todo aquele cujo curso d’água banha mais de um Estado soberano (REZEK,

2011). 4 Rios internacionais contíguos são aqueles que delimitam a fronteira entre dois ou mais Estados. Por

outro lado, os rios sucessivos são aqueles que cortam os territórios de mais de um Estado separadamente.

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a fim de que o aproveitamento de suas águas fosse feito exclusivamente em

território nacional” (QUEIROZ, 2012, p. 200).

Ademais, em relação ao aproveitamento energético do rio Paraná, o governo

paraguaio enaltecia a construção em parceria com a Argentina de um projeto

hidrelétrico na região dos saltos de Apipé, que estava sendo realizada a partir de

estudos bilaterais feitos por uma comissão mista. Este fato, somados ao litígio

fronteiriço com o Brasil e o seu posicionamento unilateral acerca de como aproveitar

os recursos energéticos da Bacia, fazia com que o Paraguai possuísse visões

destoantes em relação aos dois principais rivais do continente sul-americano.

Enquanto as conversas com a Argentina propiciavam a colaboração para a

realização de projetos em conjunto, o Brasil possuía tendências monopolísticas para

o aproveitamento hidrelétrico do Paraná. (CERVO, 2007).

Esse conjunto de fatores acabou por ocasionar problemas fronteiriços entre

Brasil e Paraguai, que acabariam por levar a uma deterioração das relações

diplomáticas entre ambos os países. De acordo com Neto (2013b, p. 38):

No início de 1965, ocorreram alguns incidentes fronteiriços nas imediações de Sete Quedas, com violentos protestos de cidadãos paraguaios contra a ‘usurpação’ da região pelo Brasil. As autoridades brasileiras ficaram indignadas com a afronta à soberania e à honra do país. Na visão de Assunção, esses atos eram demonstrações espontâneas do patriotismo dos cidadãos paraguaios; já na perspectiva brasileira, eram ações estimuladas e patrocinadas pelas autoridades guaranis. O governo brasileiro enviou um pequeno destacamento de soldados para o local em junho de 1965, com a missão de marcar uma presença simbólica e evitar a repetição da violação do território e dos insultos aos símbolos nacionais. A diplomacia paraguaia manifestou-se com reclamações verbais contra a presença de tropas brasileiras na região, mas as autoridades do Brasil não cederam aos apelos paraguaios. Entrementes, a questão de Sete Quedas ganhava força na agenda política brasileiro-paraguaia.

Neste mesmo ano, autoridades paraguaias foram detidas na região de Sete

Quedas por tropas brasileiras, o que serviu para aumentar a animosidade percebida

entre os dois países. Em relação ao litígio fronteiriço, a chancelaria paraguaia definia

que o acordo de fronteiras de 1872 havia sido realizado sobre forte coerção, visto

que Assunção estava ocupada por tropas brasileiras.

As autoridades paraguaias também faziam uso da Guerra do Paraguai como

artifício simbólico para mobilizar a sociedade guarani contra as injustiças promovidas

por brasileiros. Por sua vez, a posição brasileira defendia que o governo paraguaio

utilizava-se de retórica para não cumprir acordos já ratificados, buscando uma nova

demarcação que favorecesse os seus interesses (NETO, 2013b). Após um longo

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impasse entre as diplomacias dos dois países, a questão foi solucionada com a

assinatura da Ata das Cataratas em 1966 e com a ratificação do Tratado de Itaipu

em 1973, temas discutidos a seguir.

2.2. A ATA DAS CATARATAS: O INÍCIO DA COOPERAÇÃO ENTRE

BRASIL E PARAGUAI E A REAÇÃO ARGENTINA

Após alguns transtornos causados à diplomacia brasileira durante o período

de 1965-1966 em suas relações com o Paraguai, o chanceler brasileiro Juracy

Magalhães informou que o Brasil estava disposto a dar participação de 50% para

este outro país em um futuro aproveitamento hidrelétrico na região de Sete Quedas,

local do litígio fronteiriço entre os dois países. Com isso, as relações entre Brasília e

Assunção voltaram à estabilidade (FILHO, 2006).

Em 1966, é formulada a Ata das Cataratas, ou Ata de Iguaçu, entre os

governos brasileiro e paraguaio, que estabelecem um mecanismo bilateral para o

aproveitamento das águas para a navegação e para a produção de energia no

trecho onde o rio Paraná é contíguo aos dois países, marco inicial para o que viria a

ser o Tratado de Itaipu sete anos mais tarde (QUEIROZ, 2012). Ademais, este

documento previa a submersão do território em litígio, que seria utilizado para a

construção de uma hidrelétrica posteriormente (PINTO, 2009).

Todavia, a Argentina via com preocupação a construção por parte do Brasil,

seja em caráter individual ou binacional, de uma hidrelétrica no rio Paraná, visto que

este país está em um trecho à jusante5 do rio. Neste sentido:

Qualquer aproveitamento hidrelétrico exigiria a construção de uma barragem no Rio Paraná, que diminuiria o volume de água à jusante. [...] As alternativas da Argentina com relação ao aproveitamento hidrelétrico são muito menores do que as brasileiras, de modo que o potencial energético do Rio Paraná não pode ser tão facilmente substituído por outros rios em território argentino, o que a tornava vulnerável às pretensões brasileiras. Assim, a fim de amarrar o Brasil a compromissos jurídicos, limitando suas ações na Bacia do Prata, o presidente argentino Arturo Illia (1963-1966) propõe aos países platinos a criação de vínculos para a integração física da Bacia do Prata e o aproveitamento de seus recursos naturais, sob o pretexto de um desenvolvimento regional (FILHO, 2006, p. 3).

5 Os termos montante e jusante se referem à denominação das partes de um rio a partir de um ponto

de referência. Tudo que está entre a nascente e o ponto de referência se situa a montante do rio, enquanto o que está entre ele e a foz se localiza a jusante. Assim, qualquer utilização de um curso de água a montante necessariamente causa impactos a jusante do rio (QUEIROZ, 2012).

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A assinatura da Ata de Iguaçu por brasileiros e paraguaios foi percebido pela

Argentina com desconfiança, justificada por possíveis ameaças aos seus interesses

nacionais, o que acabou por evidenciar um jogo de disputa de poder entre os dois

maiores Estados da região platina. A Argentina percebia a parceria entre Brasil e

Paraguai como um problema grave de segurança que poderia servir para um

possível controle do curso dos rios que atravessavam sua zona mais rica pelo Brasil.

Da mesma forma, este empreendimento reduziria as alternativas do aproveitamento

hidrelétrico por parte argentina (MELO, 2009).

Assim, o debate acerca do aproveitamento das águas platinas acabou por

gerar uma série de conflitos diplomáticos envolvendo o Brasil e a Argentina, onde o

Paraguai desempenhava um papel estratégico importante (PINTO, 2009). A

Argentina visava a manutenção de seus interesses através da formulação de

acordos multilaterais e regimes internacionais entre os países da região e em âmbito

internacional. Nesse sentido, foram realizadas uma série de reuniões entre os

chanceleres da Bacia do Prata e vários acordos foram firmados, como a Ata de

Santa Cruz de La Sierra e o Tratado da Bacia do Prata , temas da próxima seção.

2.3. AS REUNIÕES DE CHANCELERES DA BACIA DO PRATA

Pouco antes da assinatura da Ata das Cataratas por Brasil e Paraguai, a

Embaixada Argentina convocou os demais países platinos a realizarem uma reunião

com o objetivo de discutir propostas para o desenvolvimento estudos em conjunto na

região, com o objetivo de facilitar a navegação e aproveitar os recursos energéticos

ali existentes (VIDIGAL, 2007).

Para Cervo (2007, p. 169), esta proposição mostrava “a visão integracionista

moderna do governo argentino”, onde “a realização de um programa multinacional

com espírito integracionista era vista como um passo para o desenvolvimento de

cada uma das economias nacionais que disporia de infra-estruturas física e

energética complementares”. Queiroz (2012), por sua vez, acredita que as

preocupações argentinas estavam relacionadas especialmente ao jogo de poder que

envolvia a região, e que suas preocupações se tornaram mais evidentes após o que

fora acordado entre Brasil e Paraguai através da Ata das Cataratas. Em suas

palavras:

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Nas entrelinhas, percebia-se que a Argentina, temendo ficar cada vez mais isolada depois dos avanços concretos nas negociações entre o Brasil e o Paraguai sobre Sete Quedas e, ao mesmo tempo, vendo a balança de poder definitivamente pendendo em favor do Brasil ante o vigoroso programa de aproveitamento hidroelétrico que estava sendo levado a cabo no Alto Paraná, não viu alternativa outra senão tentar limitar a atuação brasileira na Bacia amarrando-o a compromissos jurídicos mais amplos e inclusivos (Queiroz, 2012, p. 207).

Neste contexto, a I Reunião de Chanceleres da Bacia do Prata ocorreu em

Buenos Aires em 27 de janeiro de 1967. A assinatura da Declaração de Buenos

Aires confirmou a expectativa dos atores em criar um organismo responsável por

nortear as questões relacionadas ao aproveitamento hídrico da Bacia Platina, e

estabeleceu os primeiros pilares para a estruturação de um Sistema da Bacia do

Prata. Nesta declaração, foi firmada a decisão de criar um Comitê

Intergovernamental Coordenador (CIC); a vontade das partes em realizar programas

nacionais, bilaterais e multilaterais; e a criação de organismos nacionais

responsáveis por realizar estudos em sua jurisdição na região em coordenação com

o CIC (FILHO, 2005).

Uma das propostas da Argentina para a declaração era o de estabelecer o

princípio da consulta prévia, que previa a exigência de trocar informações e realizar

consultas recíprocas sobre a realização de obras hidráulicas que pudessem afetar

outros países. Para Spektor (2002, p. 127):

A diplomacia argentina ventilou um conceito jurídico vago, mas amplamente aceito em foros internacionais, segundo o qual as construções de obras civis sobre rios internacionais seriam precedidas por uma consulta do Estado empreendedor às partes interessadas, consubstanciando o princípio da consulta prévia.

O princípio da consulta prévia não foi acrescentado na Declaração de Buenos

Aires (CERVO, 2007) e, um ano depois, a II Reunião de Chanceleres foi realizada

em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Nesta sessão, foram debatidos alguns

pontos que arquitetaram o princípio da construção de um sistema jurídico em

relação ao aproveitamento hídrico Bacia do Prata. Ademais, fora aprovado o

estatuto do Comitê Intergovernamental Coordenador, que ficara responsável pela

criação de um tratado a ser apresentado na reunião seguinte, e foi implementada a

regra da unanimidade para definir as questões internas das reuniões, que seriam

realizadas anualmente (FILHO, 2005).

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A III Reunião de Chanceleres, realizada em Brasília no ano de 1969, estatuiu

o principal documento firmado entre os países platinos em relação aos temas

discutidos nas reuniões anteriores: o Tratado da Bacia do Prata. Este documento

entrou em vigor em agosto de 1970, e previa institucionalização do sistema da Bacia

do Prata através da comunhão de esforços para a promoção harmônica do

desenvolvimento e da integração física da Bacia e de suas áreas de influência (CIC,

2015).

Posteriormente, em 1971, durante a IV Reunião de Chanceleres, realizada em

Assunção, a Argentina propôs novamente o princípio da consulta prévia. Todavia, o

texto aprovado não fazia menção à proposição portenha, e estabelecia que:

Nos rios internacionais contíguos, sendo a soberania compartida, qualquer aproveitamento de suas águas deverá ser precedido de Acordo bilateral entre os ribeirinhos; e 2) nos rios internacionais de curso sucessivo, não sendo a soberania compartida, cada Estado pode aproveitar as águas na medida de suas necessidades, sempre que não cause prejuízo sensível a outro Estado da Bacia (MELO, 2009, p. 8).

Apesar da aceitação da proposta pelo Brasil, posteriormente aprovada

através da resolução nº 25, conhecida como Declaração de Assunção, o

posicionamento dos dois países, nesse sentido, era dissonante. O Brasil defendia a

ideia de que qualquer projeto hidrelétrico realizado em conjunto com o Paraguai não

traria prejuízos à Argentina, enquanto a posição do país vizinho era a de que era

necessário que os planos fossem apurados e submetidos à consulta para avaliar se

haveria prejuízo sensível ou não. A ideia argentina era de possivelmente levar o

caso para a Corte Internacional de Justiça a partir da argumentação que o Brasil

estava disposto a colocar em prática um projeto que poderia prejudicá-la sem que

houvesse consulta prévia (MELO, 2009).

As quatro Reuniões de Chanceleres realizadas entre 1967 e 1971 delineiam o

início do processo de um regime hidropolítico na Bacia do Prata, pois percebe-se

claramente a expectativa dos atores participantes em criar normas, regras e um

conjunto de práticas sobre uma determinada área temática. Entretanto, o mesmo

período é marcado por um acirramento das tensões entre Brasil e Argentina quanto

ao aproveitamento hidrelétrico dos rios da região, o que demonstra que o contexto

político vigente acabava por limitar a atuação dos acordos firmados pelos Estados

da Bacia Platina.

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2.4. CONVENÇÃO DE ESTOCOLMO E ASSEMBLEIA GERAL DAS

NAÇÕES UNIDAS (1972)

Para que houvesse uma tentativa de atenuação dos atritos entre Brasil e

Argentina, foram criadas diversas medidas diplomáticas no que concerne ao

aproveitamento hídrico da Bacia do Prata, conforme mencionado na subseção

anterior. Todavia, os diversos acordos firmados entre o final da década de 1960 e o

início da década de 1970 não foram suficientes para a diminuição das hostilidades.

Segundo Belo (2009, p. 1356):

Após tais medidas acreditou-se que os conflitos regionais relacionados às questões hídricas cessariam. No entanto, os tratados e os atos políticos e diplomáticos não foram suficientes para dar fim aos sucessivos conflitos. Assim, as relações entre a Argentina e o Brasil na década de 1970 continuaram a se caracterizar pelas questões relacionadas ao aproveitamento hídrico da Bacia do Prata, mais precisamente, a construção da barragem de Itaipu, e a consolidação da parceria político-econômica entre o Brasil e o Paraguai, isolando o país portenho das negociações e de futuros empreendimentos que envolvesse a questão. Para além do isolamento político, as medidas tomadas para a construção de Itaipu prejudicavam economicamente a Argentina, como no episódio da usina de Corpus, pois a construção da barragem de Itaipu, em Foz do Iguaçu, inviabilizariam as obras da usina argentina, que seria construída logo abaixo de Itaipu no rio Paraná, reduzindo sua potencialidade e elevando o custo do quilowatt gerado.

Por conta desses fatores, a política externa argentina se baseou, a partir de

1970, na ideia de inviabilizar o projeto de Itaipu tanto na esfera regional como em

âmbito internacional. Aproveitando-se das discussões sobre o meio ambiente que

estavam a ser discutidas durante a Conferência de Estocolmo de 1972, a delegação

argentina apresentou uma emenda que considerava o processo de consulta prévia

para a utilização de recursos naturais compartidos.

Esta proposição não foi aprovada, e sua discussão foi retardada para a XXVII

Assembleia Geral das Nações Unidas. Em posição contrária, o Brasil se defendia ao

propor “que nenhum Estado estava obrigado a suprir informações em condições que

prejudicassem sua segurança nacional, o seu desenvolvimento econômico, ou os

seus esforços para a melhoria do meio ambiente” (MELO, 2009, p. 9).

A controvérsia seguiu, então, para a XXVII Assembleia Geral das Nações

Unidas (AGNU), a ser realizada em agosto de 1972. Nas negociações bilaterais, o

Chanceler brasileiro, Mario Gibson Barboza, e o argentino, Brigadeiro Eduardo

McLoughlin, chegaram a um Acordo, e propuseram em conjunto durante a

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Assembleia a resolução 2995, conhecida como Acordo de Nova York. Neste Acordo

ficou definido que o Brasil poderia construir Itaipu, informando a Argentina quanto

aos dados técnicos do projeto. A resolução também previa que, caso este último

país se sentisse lesado pela construção da hidrelétrica, poderia recorrer a um

tribunal internacional (MELO, 2009).

Todavia, o Acordo de Nova York foi denunciado6 pela Argentina em julho

1973, pois os resultados práticos quando havia a necessidade de sua aplicação

foram pífios, em especial no caso do enchimento da represa de Ilha Solteira pelo

Brasil no mesmo ano. Assim, a Argentina buscou retomar, na esfera internacional, o

princípio da consulta prévia. Possuindo o apoio necessário do grupo dos países não

alinhados, foi aprovada em âmbito da Assembleia Geral, em 1973, a Resolução

3129, que estabelecia, com caráter não coercitivo, o princípio da consulta prévia

para a realização de exploração de recursos em áreas sucessivas (FILHO, 2005).

2.5. ASSINATURA DO TRATADO DE ITAIPU

Em abril de 1973, o Brasil e o Paraguai assinaram o Tratado de Itaipu,

reservando para eles mesmos o direito do aproveitamento hidrelétrico da usina a ser

construída do rio Paraná, assim como estatuiu a criação de uma empresa binacional

responsável pela construção do empreendimento. Todavia, o Paraguai, em uma das

cláusulas, se reservava do direito de não obstruir a construção de outros projetos ao

longo do curso do rio onde este país fazia fronteira com a Argentina. Conforme

demonstrado por Filho (2006, p 10):

As obras descritas no presente anexo poderão sofrer modificações ou adições, inclusive nas suas cotas e medidas, por exigências técnicas que se verificarem durante sua execução. Ademais, se por exigência da mesma natureza ficar demonstrada a necessidade de redução substancial da cota do coroamento da barragem, será considerada a conveniência da execução adicional de outro aproveitamento hidrelétrico a montante conforme previsto no “Relatório Preliminar” supracitado.

Este fato evidencia a política pendular paraguaia em relação aos seus dois

maiores vizinhos, buscando aproveitar-se da disputa regional para conseguir

concessões de ambos os lados. Posteriormente, alguns meses depois da assinatura

do Tratado de Itaipu, o Paraguai ratificou um tratado em conjunto com a Argentina

6 A denúncia de um tratado internacional é um ato unilateral pelo qual o Estado manifesta a sua

vontade de deixar de ser parte deste acordo (REZEK, 2011).

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para a construção da hidrelétrica de Yacyretá, colocando em prática também

projetos relacionados à construção da hidrelétrica de Corpus (MELO, 2009).

Após a assinatura do Tratado, o principal ponto abordado estava relacionado

aos ciclos de funcionamento de Itaipu, pois enquanto a frequência no Brasil é de 60

hz, a do Paraguai é de 50 hz. Por conta disso, o governo paraguaio alegava que a

mudança de ciclos por parte deste país não ocorreria, pois traria um transtorno

enorme ao ter que trocar todos os equipamentos que faziam uso de energia para

funcionar. Ademais, a frequência da Argentina também era de 50 ciclos, o que

tornaria impraticável atender à sugestão brasileira.

Por conta das pressões paraguaias, ficou definido que Itaipu funcionaria nos

dois ciclos, com metade das turbinas atuando em cada ciclagem. Para que a energia

excedente importada pelo Brasil pudesse ser aproveitada, foi construída a usina de

Furnas próxima à Itaipu para que a frequência pudesse ser modificada para o

aproveitamento em território brasileiro (PINTO, 2009).

2.6. O CONSÓRCIO ARGENTINO PARAGUAIO PARA A CONSTRUÇÃO

DE YACYRETÁ-APIPÉ E CORPUS

Após a assinatura do Tratado de Itaipu por Brasil e Paraguai, a Argentina,

temendo que o Estado Guarani saísse por completo de sua órbita de influência, não

tardou a rediscutir a criação da hidrelétrica de Yacyretá-Apipé em um trecho onde o

rio Paraná é contíguo aos dois países. As conversas sobre a criação desta usina

datam desde o ano de 1927, e eventualmente a discussão ressurgia. Nas palavras

de Pinto (2009, p. 71): “De tempos em tempos, as negociações sobre Yacyretá-

Apipé, adormecidas nos arquivos diplomáticos de Buenos Aires e Assunção eram

retomadas. Foi o que aconteceu”.

Assim, um tratado que firmava a construção de Yacyretá-Apipé foi

completado apenas oito meses após a assinatura do Tratado de Itaipu entre Brasil e

Paraguai, tendo também utilizado o texto deste último como base. Em conjunto com

este acordo, também foi reiniciada a conversa entre guaranis e portenhos sobre a

construção da usina de Corpus. Este tema este foi o responsável por acirrar mais

ainda as relações já tensas entre Brasil e Argentina, visto que, para que as duas

usinas argentino-paraguaias e Itaipu fossem construídas, haveria a necessidade de

conciliação dos projetos por parte de Brasília e Buenos Aires (QUEIROZ, 2012).

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2.7. CONCILIAÇÃO DE PROJETOS: O ACORDO TRIPARTITE

O principal problema acerca da construção da usina de Corpus estava na

necessidade de conciliação deste projeto com o de Itaipu. A hidrelétrica argentina se

situaria em um trecho do rio Paraná entre Itaipu e Yacyretá-Apipé, apenas a cerca

de 260 km de distância da hidrelétrica paraguaio-brasileira (NOHLEN; FERNÁNDEZ,

1981). Assim, a maneira como Brasil e Argentina planejavam construir suas

hidrelétricas tornava os projetos inviáveis, já que:

No âmago do problema estava a definição do nível das barragens das duas hidrelétricas, aspecto este considerado o ponto fulcral de uma dissonância técnica, política e diplomática que se interpunha entre brasileiros e argentinos e que ditaria o tom da disputa vicinal neste episódio da hidropolítica platina. Enquanto o Brasil planejava Itaipu com uma descarga d’água a 105 metros acima do nível do mar, a Argentina dizia-se disposta a erguer Corpus a 120 metros, o que tornava os dois projetos incompatíveis, pois o lago formado a partir desta altitude fatalmente “afogaria” as turbinas de Itaipu reduzindo, em pelo menos 1/6, sua capacidade energética (QUEIROZ, 2012, p.255).

No ponto de vista da chancelaria brasileira, o projeto de Corpus e a

necessidade de adequação com a hidrelétrica de Itaipu foi um instrumento utilizado

pela Argentina com o objetivo de obrigar o Brasil a expor seus projetos de acordo

com o princípio da consulta prévia, que há muito tempo já havia sido descartado das

negociações platinas (QUEIROZ, 2012). Ademais, também havia a preocupação por

parte do Brasil que o projeto de Corpus não saísse do papel, sendo um artifício de

mera retórica da chancelaria argentina (FAJARDO, 2004).

O período entre 1973 e 1978 foi marcado por muita tensão nas negociações,

e não surtiram efeitos práticos através das conversas entre os dois países e o

Paraguai. Esse período foi marcado pelo fechamento das fronteiras da Argentina

com o Paraguai em 15 de agosto de 1973, dois dias após a assinatura do Tratado

de Itaipu; e o fechamento do túnel de Las Cuevas-Caracoles na Argentina, ponto de

ligação entre o Brasil e o Chile, o que obrigou os caminhões brasileiros e chilenos a

fazerem um desvio de mais de dois mil quilômetros (QUEIROZ, 2012).

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Imagem 2 – O Mapa do Desacordo entre Itaipu e Corpus

Fonte: Queiroz (2012).

A situação conflituosa entre Brasil e Argentina se arrefeceu a partir da posse

de João Baptista Figueiredo como presidente do Brasil em março de 1979. O novo

mandatário brasileiro definiu como ação prioritária a resolução do litígio na Bacia do

Prata como forma de aprofundar as relações na região, e por isso, em outubro de

1979, pouco tempo após a sua posse, foi assinado na cidade de Puerto Stroessner o

Acordo Tripartite Itaipu-Corpus (FAJARDO, 2004).

A disparidade de poderes entre Brasil e Argentina também foi crucial para o

fim da disputa. O país portenho passava por um período de grave estagnação

econômica, e via na parceria com o Brasil a possibilidade de superá-la. Na opinião

de Fajardo (2004, p. 100): “a partir de uma avaliação realista da grande diferença de

poder existente entre os países, o governo de Buenos Aires decide investir na

possibilidade de cooperação regional em detrimento da manutenção de antigas

disputas geopolíticas”.

Neste sentido, percebe-se claramente o papel da resolução do contencioso

de Itaipu através da assinatura do Acordo Tripartite de Cooperação Técnico-

Operativa entre Brasil, Argentina e Paraguai em 1979 como fator que propiciou o

início da cooperação entre os dois países. Quanto ao tema, Candeas (2005) pontua

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que os entendimentos relacionados ao tema foram responsáveis pelo fortalecimento

e mela modificação dos laços, findando a possibilidade de um conflito para dar lugar

a um projeto de cooperação entre Brasil e Argentina. Para Spektor (2002, p. 137-

138):

Encerrada a negociação sobre Itaipu, a diplomacia brasileira estava em condições de reavaliar o lugar do vizinho em seu marco conceitual. Assim, buscou-se uma agenda capaz de refletir os interesses paralelos que ambas as nações tinham naquela conjuntura e outorgou-se fôlego ao programa de convergência em assuntos de defesa e política internacional. Se, ao longo do século XX, a política externa brasileira foi guiada pela necessidade imperiosa de evitar que o vizinho – único poder sul-americano capaz de ombrear o Brasil em oportunidades e responsabilidades no cenário regional e internacional – lhe turvasse os horizontes, depois de Itaipu a prevenção como método brasileiro de administração havia caducado. Não havia mais motivos de angústia para a atuação diplomática brasileira na América do Sul, mas a Argentina, por seu vulto, ainda demandava algum tipo de postura. A integração regional foi a resposta.

A resolução do litígio sobre o aproveitamento hídrico da Bacia Platina através

do Acordo Tripartite lançou as bases para o que viria a se tornar a Declaração de

Iguaçu de 1985 e o Tratado de Assunção de 1991. Na declaração de 1985 é criada

uma comissão mista para que fossem estudadas perspectivas sobre a cooperação e

integração econômica entre Brasil e Argentina. Por sua vez, o Tratado de Assunção

consolidou essas perspectivas ao estatuir o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL),

que, além de Brasil e Argentina, também contou com a participação de Paraguai e

Uruguai (FAJARDO, 2004).

Assim, houve um avanço considerável nas relações Brasil-Argentina a partir

de 1979 que modificou de maneira permanente os laços bilaterais. O Acordo

Tripartite Itaipu-Corpus foi um pilar responsável pela atenuação da rivalidade entre

brasileiros e argentinos em relação ao aproveitamento hídrico na região platina,

permitindo assim a consolidação dos princípios, normas e regras estabelecidos no

Tratado da Bacia do Prata.

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CAPÍTULO 3 – O REGIME HIDROPOLÍTICO DA BACIA DO PRATA

Após uma breve explicação sobre a teoria dos regimes internacionais no

primeiro capítulo e sobre o contexto político vivenciado na Bacia do Prata durante as

décadas de 1960 e 1970 como propulsores para a formação de um arranjo

institucional hidropolítico na região no capítulo subsequente, esta seção se dedica a

unificar a perspectiva das partes anteriores com o objetivo de elucidar os aspectos

concernentes a este regime em particular, analisando diversos fatores e nuances

verificados desde sua formação até o seu pleno estabelecimento.

Antes de se focar a estes aspectos, contudo, é necessário explicar a razão

pelo qual a discussão dos Estados platinos sobre a utilização das águas da Bacia do

Prata em relação ao aproveitamento para a produção de energia e para a

navegação pode ser considerada um regime internacional de fato. Da mesma forma,

pretende-se classificar o regime, com base nos seus aspectos intrínsecos, quanto ao

grau de formalidade do arranjo e à expectativa de convergência dos atores.

Posteriormente, são analisados os aspectos que delineiam a formação do

regime e os fatores envolvidos que resultaram em sua manutenção mesmo com as

dificuldades enfrentadas. Ademais, busca-se fazer uma análise da efetividade e da

eficiência deste regime através da observação de fatores endógenos e

comportamentais. Por fim, para dar maior robustez à análise do regime hidropolítico

platino, são utilizadas as perspectivas de Wendt sobre a anarquia para dar maior

especificidade à classificação do regime em questão.

3.1. O TRATADO DA BACIA DO PRATA E A CRIAÇÃO DO REGIME

Conforme mencionado no primeiro capítulo, de acordo com Levy et. al (1994),

um regime é composto pela convergência de expectativas de determinados atores

em uma área-temática específica através da delimitação de princípios, normas e

regras. Dentro desta perspectiva, há uma diferenciação dos termos para dar maior

esclarecimento ao tema. Assim, de modo superficial, os princípios estão

relacionados à orientação de metas dentro de uma arena específica, seja ela

política, econômica, ambiental, dentre outros; as normas são os direitos e

obrigações gerais operantes em uma área temática específica; e as regras são os

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mecanismos presentes em acordos formais que garantem a implementação e o

cumprimento de princípios e normas.

Neste sentido, o primeiro artigo do Tratado da Bacia do Prata de 1969 já

deixa bem claro que a sua proposta era de fato à construção de um regime

internacional. Nesta parte do documento são especificados uma série de princípios e

normas que vinculariam os Estados participantes a conjugar esforços para o

desenvolvimento da região de modo harmônico e para a sua integração física, e que

para isto contava com o estabelecimento de instrumentos jurídicos para à facilitação

da navegação e para o aproveitamento hidrelétrico das águas (CIC).

Assim, a sua entrada em vigor em 14 de agosto de 1970, após a ratificação

dos cinco países banhados pela bacia, então, pode ser considerado um marco

normativo no estabelecimento de um regime internacional hidropolítico platino. A

formulação deste tratado e o seu estabelecimento também demonstram a

formalização da expectativa de convergência dos atores em relação ao

aproveitamento hídrico da Bacia Platina.

Através do resgate da definição de regimes proposta por Levy et al. (1994),

pode-se afirmar, então, que o Tratado da Bacia do Prata representa o nascimento de

um regime internacional hidropolítico clássico, ou seja, onde o grau de formalidade é

elevado e há a convergência de expectativa dos atores em uma área temática

específica, no caso, quanto ao aproveitamento hídrico da Bacia Platina.

3.2. O PROCESSO DE FORMAÇÃO E MANUTENÇÃO DO REGIME

PLATINO

A formação de um regime internacional na Bacia do Prata, conforme

demonstrado na subseção anterior, tornou-se efetiva a partir da entrada em vigor do

Tratado da Bacia do Prata, também conhecido como Tratado de Brasília. Todavia, o

seu debate se iniciou a partir da celebração da I Reunião dos Chanceleres da Bacia

do Prata, em 1967, que estabeleceu os primeiros detalhes sobre o que viria a ser o

arranjo hidropolítico platino.

Ademais, a formação do regime também esteve condicionada à conjuntura

política da região, desde o ressurgimento do litígio fronteiriço entre Brasil e Paraguai

no início da década de 1960 ao embate entre Brasil e Argentina quanto ao

aproveitamento hídrico da região. Assim, é necessário um resgate das premissas do

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segundo capítulo para entender o processo de formação e estabelecimento do

regime platino.

No período situado entre os anos de 1960 e 1966, a conjuntura platina não

era favorável ao estabelecimento de um regime internacional, visto que existia um

sério problema fronteiriço entre Brasil e Paraguai e uma longa disputa pela

hegemonia da região entre brasileiros e argentinos, que condicionava esses dois

atores a manter a rivalidade histórica em detrimento de uma abordagem mais

cooperativa (NOHLEN e FERNÁNDEZ, 1981; BUZAN E WÆVER, 2003; FILHO,

2005).

Com a assinatura da Ata das Cataratas em 1966, que promoveu um acordo

bilateral entre Brasil e Paraguai para o aproveitamento do rio Paraná no trecho onde

o rio é contíguo aos dois Estados, a Argentina, visando os seus interesses por estar

à jusante do rio, propôs no ano seguinte um encontro entre os chanceleres dos

países da Bacia Platina na tentativa de vinculá-los a um acordo jurídico em relação à

temática hídrica (PINTO, 2009; MELO, 2009). Surge neste momento o início da

proposição de um regime hidropolítico no Prata.

Os fatos anteriormente citados demonstram, então, que a iniciativa argentina

propulsionou a criação de um arranjo jurídico em uma temática onde não existe um

corpo específico estabelecido de normas, princípios e regras. Da mesma forma,

percebe-se que os atores envolvidos nos primórdios da construção do regime, o que

se manterá nos períodos posteriores, são estatais. A proposição argentina também

demonstra a necessidade de negociação para o estabelecimento de um regime,

visto que seria necessária a conciliação de interesses para o estabelecimento de

regras que abrangessem todos os integrantes da região.

A I e a II Reunião dos Chanceleres da Bacia do Prata estabeleceram, então,

os pilares para o que viria a ser o Tratado da Bacia do Prata, pois foram

estabelecidos um Comitê Intergovernamental Coordenador, responsável pela

formulação do tratado, e um estatuto para este organismo, assim como o modus

operandi da instituição que estava nascendo (FILHO, 2005). Assim, a conjunção de

iniciativa dos atores acabou por propiciar o cenário necessário para o

estabelecimento de princípios, normas e regras concretas em torno de um objetivo

em comum, fato este que culminou com o Tratado da Bacia do Prata na III Reunião

dos Chanceleres em 1969 e com o estabelecimento do regime.

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Apesar de o princípio da consulta prévia, anteriormente explicado, já ter sido

abandonado desde a I Reunião, ainda havia a discussão entre Brasil e Argentina,

principais lideranças da região, sobre o fornecimento de informações a terceiros. O

texto da Declaração de Assunção, firmado na IV Reunião de Chanceleres,

estabeleceu, então, que mesmo em rios de cursos sucessivos onde a soberania é

compartida, a única necessidade exigida é que os projetos para aproveitamento não

afetassem os vizinhos a jusante (MELO, 2009).

Da mesma forma, em trechos contíguos, a questão do aproveitamento estaria

condicionada apenas aos dois Estados através de acordo bilateral. A Argentina

ainda tentou utilizar-se de foros estabelecidos na Conferência de Estocolmo sobre o

Meio ambiente de 1972 e na XXVII Assembleia Geral das Nações Unidas para o

estabelecimento do princípio da consulta prévia, mas os acordos firmados não

possuíam força vinculante (FILHO, 2005).

No período situado entre o estabelecimento do Tratado de Itaipu entre Brasília

e Assunção em 1973 e a assinatura do Tratado Tripartite Itaipu-Corpus entre estes

dois Estados e a Argentina em 1979, o nível de tensão entre as duas principais

forças do continente aumentou consideravelmente. Para condicionar o Brasil a uma

conciliação de projetos, a Argentina ressuscitou os antigos projetos de Yacyretá-

Apipé e de Corpus com o Paraguai, o que obrigava o país mais à montante da Bacia

Platina a negociar alternativas em conjunto com o país portenho (QUEIROZ, 2012;

FILHO, 2005).

Posteriormente, com a conciliação de projetos através do estabelecimento do

Acordo Tripartite Itaipu-Corpus, as tensões entre Brasil e Argentina se atenuaram, e

resultaram em um processo de cooperação que se estendeu pelas décadas

seguintes, que acabou por englobar também os outros países da Bacia Platina

(FERRES, 2004). Assim, percebe-se uma mescla de liderança e imposição no

processo de manutenção do regime, visto que a decisão entre Brasil e Argentina,

movimentadas através de um pêndulo paraguaio, acabou por gerar efeitos a toda a

Bacia Platina.

A participação de Uruguai e Bolívia nas questões hídricas platinas teve um

peso reduzido, visto que estes dois Estados não tomaram parte nos litígios entre os

outros membros da bacia. Todavia, partindo da análise de que as decisões tomadas

com base no Tratado da Bacia do Prata estavam condicionadas ao princípio da

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unanimidade para a tomada de decisões, a participação desses dois Estados foi

importante para garantir a legitimidade das regras do regime (CAUBET, 2006).

Percebe-se, então, que o processo de formação do regime hidropolítico

platino e o seu processo de manutenção passou por diversas nuances ao longo das

décadas de 1960 e 1970. Apesar de a sua operacionalização ter passado a vincular

os Estados da Bacia do Prata a partir do ano de 1970, os resultados práticos da sua

implementação podem ser visualizados de maneira bem definida a partir de 1979,

com a assinatura do Tratado Tripartite Itaipu-Corpus entre o Paraguai, a Argentina e

o Brasil. Antes, porém, a sua atuação esteve limitada aos constrangimentos da

estrutura política da região, em especial na rivalidade brasileiro-argentina. Nas

palavras de Filho (2005, p. 135-136):

O diferendo Itaipu-Corpus levou o Governo argentino a tentar estabelecer um quadro jurídico preciso para o aproveitamento conjunto dos recursos da Bacia, que culminou na assinatura do Tratado da Bacia do Prata, que, pela sua natureza, pode ser entendido como um regime internacional. Contudo, a intenção dos atores de preservar suas soberanias e garantir a liberdade de executar obras de seu interesse, dentro de seus respectivos territórios, constituíam os princípios basilares do Tratado e, portanto, do regime internacional. Dessa forma, a cooperação estabelecida pelo elemento normativo do regime foi inibida pela implementação de uma política internacional, previamente negociada, cuja base era a manutenção dos interesses individuais de cada país, resultando em um baixo grau de institucionalização na Bacia. [...] Findo o impasse em torno da construção de Itaipu e iniciado o processo de redemocratização na Argentina e no Brasil, inicia-se uma fase de cooperação entre os dois países, que se estende a todos os Estados da Bacia do Prata.

Portanto, a manutenção do regime hidropolítico da bacia platina, bem como a

sua criação, desde o princípio esteve condicionada à preservação dos interesses

dos dois principais atores do cenário platino, Brasil e Argentina. Ademais, a

participação do Paraguai foi de fundamental importância para evitar um choque

direto entre as perspectivas brasileiras e argentinas quanto ao aproveitamento

hídrico na região, levando-os a condicionarem os seus projetos hidrelétricos à mesa

de negociação entre os três Estados. Por fim, a solução do impasse entre as duas

principais lideranças da região acabou por gerar os efeitos de cooperação previstos

em 1969 por toda a região platina.

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3.3. EFETIVIDADE DO REGIME HIDROPOLÍTICO PLATINO

Conforme demonstrado por Levy et al. (1994), a efetividade do regime pode

ser mensurada em âmbito legal, político e em uma visão orientada por objetivos.

Para que seja analisada a efetividade do regime hidropolítico estabelecido na Bacia

Platina entre décadas de 1960 e 1970, são levados em consideração os três

métodos supracitados de maneira separada. Assim, pode-se ter uma ideia mais

nítida de que a efetividade de um regime não está condicionada a apenas um fator

em detrimento dos demais, o que garante uma análise mais apurada dos efeitos

causados pelo regime aos Estados participantes.

Em âmbito legal, a efetividade de um regime está condicionada à regulação

de conflitos surgidos em seu leito por força de lei (LEVY ET AL., 1994). Levando em

consideração o contexto platino, onde o regime foi criado de modo a não influenciar

a soberania dos Estados membros, não foram previstos mecanismos de coerção

(FILHO, 2005). A busca pelos interesses individuais dos participantes, então, não

estava limitada pelas regras estabelecidas, o que acabou por gerar uma disputa

entre Brasil e Argentina por conta da divergência de interesses.

Os litígios surgidos na década de 1970 entre Brasil e Argentina decorrentes

da questão do aproveitamento hídrico do rio Paraná, que se arrastaram por mais de

uma década até serem resolvidos pela diplomacia dos dois países em conjunto com

o Paraguai (FILHO, 2005), não feriram os termos do Tratado de Brasília e da

Declaração de Assunção de 1971. A obrigação dos ratificantes desses acordos era

não causar danos sensíveis aos demais países à jusante e de promover a

integração da bacia.

Apesar de não haver mecanismos de solução de controvérsias estabelecidos

pelo próprio regime, os litígios surgidos em seu âmbito foram solucionados através

de um longo período de diálogo entre os seus participantes em respeito às regras

previamente estabelecidas. Portanto, pode-se dizer que, apesar de não restritivas,

as regras estabelecidas pelos acordos multilaterais entre os países banhados pela

bacia Platina nortearam o processo de solução de controvérsias entre os membros,

o que garantiu, assim, a efetividade legal do regime.

Por sua vez, a visão orientada por objetivos está relacionada ao

estabelecimento de metas e ao ajustamento de políticas para obtê-las. O artigo

primeiro do Tratado de Brasília, em conjunto com seu parágrafo único, mostra

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claramente as metas a serem obtidas com a ratificação de tal acordo, como é

demonstrado a seguir:

Artículo I. - Las Partes Contratantes convienen en mancomunar esfuerzos con el objeto de promover el desarrollo armónico y la integración física de la Cuenca del Plata y de sus áreas de influencia directa y ponderable.

Parágrafo Único: A tal fin, promoverán en el ámbito de la Cuenca, la identificación de áreas de interés común y la realización de estudios, programas y obras, así como la formulación de entendimientos operativos e instrumentos jurídicos que estimen necesarios y que propendan a: a) La facilitación y asistencia en materia de navegación. b) La utilización racional del recurso agua, especialmente a través de la regulación de los cursos de agua y su aprovechamiento múltiple y equitativo. c) La preservación y el fomento de la vida animal y vegetal. d) El perfeccionamiento de las interconexiones viales, ferroviarias, fluviales, aéreas, eléctricas, y de telecomunicaciones. e) La complementación regional mediante la promoción y radicación de industrias de interés para el desarrollo de la Cuenca. f) La complementación económica del área limítrofe. g) La Cooperación mutua en materia de educación, sanidad y lucha contra las enfermedades. h) La Promoción de otros proyectos de interés común y en especial aquellos que tengan relación con el inventario, evaluación y el aprovechamiento de los recursos naturales del área. i) El conocimiento integral de la Cuenca del Plata. (COMITÉ INTEGUBERNAMENTAL COORDINADOR).

Assim, o Tratado previa a responsabilidade dos membros da Bacia do Prata

em fomentar um número considerável de metas sem estipular quais as políticas a

serem adotadas, sendo que estas ficariam a cargo dos próprios Estados-membros.

Neste sentido, por sua amplitude de metas e a posterior conclusão dos acordos

hidrelétricos entre Brasil, Paraguai e Argentina, assim como através da criação do

Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA) e da

Hidrovia Paraguai-Paraná em 1985 (FILHO, 2005), o regime internacional platino

propiciou o desenvolvimento de metas e o cumprimento de objetivos através do

estabelecimento de políticas entre os Estados, garantindo sua efetividade voltada

por finalidades.

A visão política, enfim, leva em consideração a capacidade de o regime afetar

o comportamento dos atores e criar novos padrões de interação. Este fato pode ser

percebido pelo fim da divergência entre Brasil e a Argentina em 1979, que permitiu o

início da construção da estabilidade estrutural através da cooperação, findando um

período marcado pela rivalidade entre os dois Estados (CANDEAS, 2005). O regime

também propiciou uma modificação das possibilidades de barganha do Paraguai em

relação aos seus vizinhos mais poderosos, que acabou por se beneficiar por conta

de sua posição estratégica na bacia (FILHO, 2005; QUEIROZ, 2012).

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Portanto, a efetividade do regime hidropolítico platino foi ganhando

consistência ao longo de um processo de avanços e de retrocesso até o final da

década de 1970. Este arranjo foi capaz de traçar metas a serem alcançadas através

da fomentação de políticas entre os Estados, assim como propiciou a alteração do

comportamento e as posições de liderança dentro do contexto regional, o que

acabou por promover a cooperação na Bacia Platina em detrimento dos antigos

conflitos existentes.

3.4. OS EFEITOS COMPORTAMENTAIS DO REGIME SOBRE OS

ESTADOS PLATINOS

Para se analisar os efeitos do regime em sua própria maturação e os efeitos

comportamentais inferidos nos Estados participantes, o método utilizado leva em

consideração o processo evolutivo do regime ao longo do tempo, que já foi explicado

nos tópicos anteriores. Pode-se, então, para fins elucidativos, delimitar a construção

do regime em cinco períodos: ausência de regime (antes de 1967), construção e

estabelecimento (1967-1970), conflitos de liderança (1971-1979) e consolidação

(após 1979).

No primeiro período, o que pode ser percebido é a situação de conflito entre

Brasil e Paraguai e a sua posterior atenuação rumo à cooperação e a desconfiança

argentina quanto ao aproveitamento energético brasileiro-paraguaio. Entre os anos

de 1967 e 1970, há o estabelecimento dos princípios normas e regras do regime

nascente, que, apesar de propor a integração da Bacia Platina, não foi suficiente

para atenuar os conflitos entre Brasil e Argentina por seus posicionamentos

dissonantes. De acordo com Spektor (2002, p. 126):

A iniciativa brasileira de levar adiante o ambicioso projeto hidrelétrico de Itaipu transformou os termos do diálogo internacional na região e fez com que Brasília e Buenos Aires se lançassem à atualização da estrutura do poder do Cone Sul. Nesse quadro, a Argentina buscava garantir regras rígidas que não punissem sua condição de australidade e de país a jusante na quase totalidade de suas fronteiras. Já o Brasil ambicionava adotar um corpo jurídico abrangente o bastante para abarcar a sua condição de montante na Bacia do Prata e de jusante na do Amazonas, sem ter com isso que condicionar o seu cronograma de obras à aprovação de Buenos Aires.

Este conflito seguiu até 1979, quando finalmente os ânimos se arrefeceram e

foi possível de fato produzir efeitos concretos. Para Levy et al. (1994), o

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comportamento dos atores de um regime é modificado quando as regras do jogo

fazem com que esta variação seja benéfica para as partes. Assim, dentre os efeitos

percebidos ao longo desses períodos, pode ser destacado o aumento do nível de

cooperação entre os Estados, em maior ou em menor grau ao longo do tempo;

observado com a própria formulação do regime e com o entendimento entre Brasília,

Assunção e Buenos Aires após a compatibilização de projetos. Da mesma forma, o

Acordo Tripartite Itaipu-Corpus também propiciou o aumento do aprendizado social,

ao apresentar mecanismos eficientes para se lidar com um problema vivenciado

dentro do contexto hidropolítico regional.

Além de promover efeitos no próprio arranjo e no comportamento de seus

participantes, os regimes também podem ocasionar efeitos em outras áreas-

temáticas. Todavia, a análise desse fator é dificultada pelo fato de os efeitos de um

regime em específico em outras áreas ser ilimitado, o que faz com que o seu estudo

sempre caia em algum grau de especulação (LEVY ET AL, 1994).

De acordo com Ferres (2004), a resolução do litígio entre Brasil e Argentina

propiciou o início da cooperação em âmbitos econômico, tecnológico e militares.

Ademais, a assinatura da Ata de Iguaçu, em 1985, considerada a base do que viria a

ser o MERCOSUL, foi possível devido ao ambiente favorável proporcionado pelo

entendimento platino quanto ao aproveitamento hídrico.

As identidades e os interesses também podem ser modificados pela

consolidação de um regime. Nas palavras de Levy et al. (1994, p. 33): “Regimes

sometimes operate at the constitutive level, shaping the identity (and therefore the

interests) of actors and, in the process, influencing the way actors behave as

occupants of the roles to which they are assigned”. Por isso, para melhor

compreender os efeitos do regime hidropolítico platino na definição de interesses e

identidades da região, serão apresentadas no tópico seguinte algumas perspectivas

da teoria construtivista de Wendt.

3.5. AS CULTURAS DE ANARQUIAS DE WENDT E SUA APLICAÇÃO AO

REGIME PLATINO

Conforme descrito nos tópicos anteriores, a formação e estruturação de um

regime hidropolítico platino, assim como a garantia do cumprimento de suas regras,

esteve condicionada primordialmente ao papel de Brasil e Argentina como

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lideranças regionais dentro de um contexto histórico específico. Levando-se em

consideração os fatores supracitados, analisar-se-á este regime em específico, com

a finalidade de expandir o que fora discutido neste capítulo, a partir da utilização de

algumas premissas de Wendt.

Neste sentido, a construção dos Estados está relacionada ao contexto social

na qual ele está inserido, que define sua identidade a partir da percepção de suas

características intrínsecas em relação ao outro. Da mesma forma, os interesses dos

Estados surgem através do processo social pelo qual suas identidades são

formuladas (WENDT, 1999). Assim, ao se analisar o contexto platino, o processo de

construção da identidade dos Estados brasileiro e argentino leva em consideração o

padrão de interação entre ambos desde as suas independências, que esteve

condicionado a percepção do outro como um rival na sua consolidação como Estado

e na busca por seus interesses na região platina.

Durante o início da década de 1960, período que iniciou o projeto de

discussão do aproveitamento hídrico das águas da Bacia do Prata, esta condição

tornou-se evidente, o que acabou por gerar um período conflituoso no

relacionamento entre Brasil e Argentina. O regime incipiente que, então, nascia,

estava condicionado a um posicionamento antagônico entre brasileiros e argentinos,

e surge dentro de um contexto que propicia a rivalidade como modo de interação na

região.

Por sua vez, o processo de construção das identidades e alcance de

interesses de Bolívia, Paraguai e Uruguai os levaram a condição de Estados-

tampões. De acordo com Buzan e Wæver (2003), esses países perderam parte de

seus territórios7 e foram mantidos somente para evitar uma escalada conflituosa

entre os principais expoentes da região. Assim, devido a este fato, o papel deles na

construção do regime foi o de legitimá-lo no caso de Uruguai e Bolívia e o de

amortecer os choques causados pela rivalidade central da região, no caso do

Paraguai.

7 A independência do Uruguai ocorreu após o fim da disputa de seu território, anteriormente

denominado Província Cisplatina e parte integrante do Império do Brasil, entre brasileiros e argentinos no episódio que ficou conhecido como Guerra da Cisplatina (1825-1828). Por sua vez, o Paraguai entrou em guerra com o Brasil, a Argentina e o Uruguai na chamada Guerra da Tríplice Aliança (1875-1870), e perdeu parte de seu território para a Argentina. A Bolívia acabou por perder territórios para o Chile na Guerra do Pacífico (1879-1883), incluindo o seu acesso ao mar, e para o Paraguai na Guerra do Chaco (1932-1935) (BUZAN; WÆVER, 2003).

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Partindo da definição de anarquia como a ausência de uma autoridade

centralizada, Wendt (1999) afirma que existem três culturas diferentes de anarquia,

que são moldadas com base nos padrões de interação entre os Estados baseadas

nas representações particulares subjetivas do outro como inimigo, rival ou amigo.

Assim, partindo dos conceitos previamente discutidos no capítulo 1, em culturas

Hobbesianas a percepção subjetiva está relacionada à percepção do outro como

inimigo, enquanto esta percepção é a de rival em culturas Lockeanas e de amigo em

culturas Kantianas. Deve-se destacar que as percepções não são imutáveis, e por

isso há a possibilidade de modificação de uma cultura em outra ao longo do tempo.

As culturas de anarquia podem ocorrer tanto no sistema internacional como

um todo como em subsistemas, categoria esta que para o próprio autor incluem os

complexos e subcomplexos de segurança definidos por Buzan e Wæver (WENDT,

1999). Assim, a região platina é considerada um subcomplexo regional de

segurança (BUZAN; WÆVER, 2003), o que propicia a construção de uma cultura de

anarquia própria baseada nas percepções subjetivas dos Estados que a compõe.

No período entre 1960 e 1979, o contexto platino esteve ligado

majoritariamente a uma cultura de anarquia Lockeana, visto que o princípio do

reconhecimento da soberania dos Estados é respeitado, apesar da ocorrência da

disputa territorial entre Brasil e Paraguai na região dos Saltos do Guairá ou Sete

Quedas, mas sem incorrer em medidas mais drásticas, apesar de este limiar, por

vezes, correr risco de ser violado (QUEIROZ, 2012). Ademais, há a percepção do

direito a existência do outro, assim como não há tentativas de conquista ou

dominação no período.

Esta lógica, todavia, ainda promove o uso da violência como modo de solução

de disputas, porém em uma esfera limitada. Este fato pode ser percebido na

discussão entre Brasil e Paraguai em um período anterior à assinatura da Ata das

Cataratas, em 1965, quando houve a mobilização de um contingente militar

brasileiro ao território das Sete Quedas e à apreensão de autoridades paraguaias.

Da mesma forma, o fechamento das fronteiras argentinas com o Paraguai em 1973

e o fechamento do túnel las Cuevas-Caracoles também demonstram atitudes hostis

dentro do contexto estudado.

Por fim, a conciliação de projetos firmada através do Tratado Tripartite Itaipu-

Corpus em 1979 pôs fim aos litígios referentes ao aproveitamento hidrelétrico na

região. Este fato acabou por propiciar uma mudança de percepção intersubjetiva dos

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Estados da região com relação à figura do outro, findando um período marcado pela

rivalidade. Em seu lugar, surge uma perspectiva de promoção da cooperação com

base em um processo de construção de laços de amizade e sem o uso da violência,

que permeia o teor de uma cultura Kantiana.

Neste sentido, o Brasil passou a enxergar a Argentina como um parceiro

estratégico no processo de desenvolvimento de laços regionais em detrimento à

posição de rivalidade que outrora existira. Por outro lado, a Argentina, percebendo a

disparidade entre os dois países, percebe o Brasil como uma oportunidade para sair

de um período de estagnação econômica (FAJARDO, 2004).

A Declaração de Iguaçu de 1985 e o Tratado de Assunção de 1991

propiciaram o incremento das relações bilaterais entre as antigas maiores

rivalidades da Bacia Platina, que também acabou por englobar a participação de

Paraguai e Uruguai no processo de integração regional. Estes fatos, então, marcam

a consolidação da cultura Kantiana que fora iniciada em 1979, tornando a hipótese

de um conflito na Bacia Platina obsoleta.

Percebe-se, então, que a construção de um regime que abarcou a questão do

uso das águas dos rios platinos e o fim dos litígios entre as duas lideranças

regionais foram fatores determinantes no processo de modificação dos padrões de

interação entre os Estados da região. O primeiro fator foi importante na criação de

uma perspectiva comum para o aproveitamento hídrico, além de criar uma fonte de

diálogo entre os países banhados por esta bacia para a resolução de seus

problemas comuns. O segundo, que ocorreu sob a égide do regime, findou a

possibilidade de conflitos na região. Somados, ambos propiciaram a construção de

uma cultura de anarquia mais estável dentro do contexto platino a partir da interação

social entre os participantes.

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CONCLUSÃO

Nesta monografia buscou-se delinear os aspectos concernentes ao regime

hidropolítico platino no que se refere ao seu processo de formação, consolidação e

de modificação de padrões de interação entre os seus participantes entre 1966 e

1979. Para avaliar estas questões, foram assinaladas as premissas de Levy, Young

e Zürn sobre regimes internacionais e alguns conceitos de Wendt que permeiam o

escopo de atuação deste campo de estudos.

Levando-se em consideração o problema exposto, a construção de um

regime hidropolítico na Bacia Platina foi fator que propiciou a transformação dos

padrões de interação entre os Estados da Bacia do Prata. A estruturação deste

arranjo forneceu um foro de diálogo entre os participantes, ao mesmo tempo em que

as interações resultantes deste processo social fomentaram, ao longo do tempo, a

transformação da cultura de anarquia presente no contexto platino.

O processo de construção do regime passou por diversas nuances ao longo

do tempo. O surgimento de um conjunto de normas e regras ocorreu com a entrada

em vigor do Tratado da Bacia do Prata em 1970, sendo que a Declaração de

Assunção em 1971 também foi um marco normativo importante dentro deste

processo. O debate sobre esse tema surgiu da necessidade de Brasil e Argentina

em estipularem um conjunto de regras sobre o aproveitamento hídrico da região

baseado nos seus interesses em relação à condição de montante e jusante na Bacia

Platina, o que aumentou a identificação de rivais entre esses dois Estados.

A análise permite inferir que o regime hidropolítico da Bacia do Prata nasceu

em um contexto onde havia um predomínio da rivalidade na região, característica de

uma cultura de anarquia Lockeana. A possibilidade de um conflito limitado também

esteve presente nos períodos anteriores ao estabelecimento da Ata de Iguaçu, em

1966, entre Brasil e Paraguai em relação à questão fronteiriça; e no período entre

1973 e 1979, marcado pelo aumento das tensões entre Brasil e Argentina no

período entre a assinatura do Tratado de Itaipu entre brasileiros e paraguaios e o

Tratado Tripartite Itaipu-Corpus.

Viu-se também que a garantia da soberania era um dos princípios

estabelecidos nas normas e regras criadas durante o período, e por isso a atuação

do regime, em um primeiro momento, estava condicionada à conjuntura política da

estrutura da região. A posição de Brasil e Argentina como principais lideranças da

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região norteou o processo de criação do regime, o que causou um entrave no

processo de consolidação das práticas estabelecidas por conta do posicionamento

dissonante desses dois Estados.

Contudo, com a posse de João Baptista Figueiredo e a posterior assinatura

do Tratado Tripartite Itaipu-Corpus em 1979, que previu a compatibilização de

projetos hidrelétricos entre brasileiros, argentinos e paraguaios, a percepção de

Brasil e Argentina modificou no sentido de fomentar a cooperação em detrimento da

perspectiva histórica de rivalidade. No contexto regional, esse fator findou os litígios

existentes na Bacia do Prata e marcou o início de uma cultura Kantiana na Bacia

Platina, tendo como base a amizade, que acabou por ser consolidada com a

Declaração de Iguaçu em 1985 e o Tratado de Assunção em 1991.

A efetividade do regime, assim, foi ganhando consistência ao longo de um

longo processo de negociação que culminou com a modificação dos padrões de

interação dos atores participantes. Este arranjo, ademais, foi capaz de traçar metas

a serem alcançadas através da fomentação de políticas entre os Estados, assim

como propiciou a alteração do comportamento e as posições de liderança dentro do

contexto regional, o que favoreceu um cenário prevalecente de cooperação na Bacia

Platina após um período de choque de perspectivas entre os participantes.

Portanto, este estudo nos levou à conclusão de que o arranjo hidropolítico

platino já nasce como um regime clássico baseado na convergência de expectativas

dos atores e no grau de formalidade. Ademais, a solução dos litígios existentes na

Bacia do Prata ao longo das décadas de 1960 e 1970 propiciou uma mudança

estrutural. No entanto, é importante notar turning points de alternância nas culturas

anárquicas que definiram a natureza desse regime com base nos conhecimentos

coletivos dos Estados banhados por seus rios, que saíram de uma lógica de

anarquia Lockeana rumo à consolidação de uma perspectiva Kantiana no

subcontinente platino.

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