a escritora laureada com o prémio nobel deste ano, alice · pdf filea escritora...

3

Click here to load reader

Upload: lekhanh

Post on 16-Mar-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A escritora laureada com o Prémio Nobel deste ano, Alice · PDF fileA escritora laureada com o Prémio Nobel deste ano, Alice Munro, nasceu em 1931 em Winghamem, na província de

A escritora laureada com o Prémio Nobel deste ano, Alice Munro, nasceu em 1931 em Winghamem, na província de Ontário, no Canadá. Já em 2009 recebera o Man Booker Prize, e tinha sido distinguida três vezes (1968, 1978, 1986) com o Governor General's Award, o mais importante galardão literário do Canadá, além de outros prémios dentro e fora do seu país de origem.

A Real Academia Sueca selecionou-a por ser uma "mestre do conto contemporâneo". De facto, a sua produção, escrita em Inglês, tem sido fundamentalmente de contos ("short-stories" ou "short fiction") − a forma "menor" tornada "maior" nesta mesma língua por um longo rol de escritores e escritoras, entre eles, e do país vizinho, os Estados Unidos da América, Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne, Henry James, Ernest Hemingway, Richard Wright, Eudora Welty, Flannery O' Connor, Carson McCullers, Raymond Carver ou Donald Barthelme.

Alice Munro conta com treze livros de contos, escritos entre o final da década de 1960 e 2012, fora seis compilações de contos, e um único romance, Lives of Girls and Women (1971). Tem sido frequentemente referida como a Chekhov canadiana, o que denota uma necessidade de legitimação, pois o grande autor russo é canonicamente considerado o mestre na forma que A.O. Scott no New York Times referiu com "estudo", em contraste com a elaboração da arte maior da sonata ou da sinfonia. No entanto, segundo a conhecida escritora também canadiana, Margaret Atwood, para quem Munro é uma das grandes ficcionistas em Inglês do nosso tempo, a fama, especialmente ao nível internacional, demorou a chegar exatamente por causa da forma narrativa curta que ela escolheu. Raymond Carver, caracterizando o grande mestre Chekhov, sintetiza, quanto a mim, aquilo que poderá aproximar os dois autores: "stories that shrive us as well as delight and move us, that lay bare our emotions in ways only true art can accomplish". Também para o editor de Munro em Portugal, Francisco Vale (Relógio d'Água), a contista canadiana "é a mais legítima herdeira da simplicidade de [Anton] Tchekov; com uma escrita aparentemente simples [consegue] criar personagens complexas que, à partida, são usuais, vulgares, que podemos encontrar em qualquer rua ou

Page 2: A escritora laureada com o Prémio Nobel deste ano, Alice · PDF fileA escritora laureada com o Prémio Nobel deste ano, Alice Munro, nasceu em 1931 em Winghamem, na província de

restaurante do Canadá". A própria Munro, numa entrevista de 2001 a The Atlantic, refere Chekhov como um dos contistas que conheceu nas páginas de The New Yorker, e com quem diz ter aprendido muito. Ao lado do autor russo, alinha Eudora Welty, Flannery O'Connor Katherine Ann Porter e Carson McCullers, todas elas dos Estados Unidos.1 Com todos eles, confessa, partilhou o interesse em escrever sobre "emotions and places”. É de facto de lugares de emoções e emoções de lugares que trata a ficção de Alice Munro. Lugares que reconstroem uma paisagem física, mas principalmente humana do mundo rural do seu Ontário natal (Huron County), o chamado "Sowesto", povoado por anti-heróis e predominantemente anti-heroínas, procurando equilíbrios precários na imprevisibilidade da vida, observando-se mutuamente numa procura frequentemente frustrada de auto-conhecimento e salvação − "People's lives . . . were dull, simple, amazing and unfathomable − deep caves paved with kitchen linoleum" (Lives of Girls and Women). O mundo representado por Munro não é benévolo, muito menos simples − é, afinal, segundo a expressão de uma das suas personagens, ''a wilderness, in which we may indeed get our station changed, but the move will be out of one wilderness station unto another'' ("A Wilderness Station"), ecoando as palavras do teólogo escocês do século XVIII, Thomas Boston; ou, na expressão de Margaret Atwood, o lugar onde se deve estar preparado para encontrar Deus ou a perdição, o que vai dar ao mesmo.2 É com a mesma modéstia e simplicidade com que reagiu à honra do Nobel que Alice Munro fala da sua escrita. Se escolheu o conto, diz ela, era porque era a forma mais facilmente exequível para uma mãe, "aprendendo a escrever nas lascas do tempo” que lhe sobrava dos cuidados com os três filhos; sobre a construção das suas histórias, disse um dia que era simplesmente o trabalho que gostava de fazer e que se assemelhava a "apanhar qualquer coisa no ar" (''Family Furnishings''). Na perspetiva com que contrói magníficos retratos de mulheres enclausuradas em vidas estreitas no meio dos campos ou de cidadezinhas "with long memories and stashes of bones in the closets" (Atwood 2008), percebe-se a frustração da mulher de classe média, educada, casada, dona de casa e mãe que, nos anos 60, se sentiu plenamente identificada com "the problem that has no name", tão eloquentemente analisado por Betty Friedan em The Feminine Mystique (1963). Nos anos 30 e 40, diz-nos também Atwood, nem sequer era credível que alguém, no Canadá, aspirasse a ser escritor (decerto, ainda mais uma mulher), muito menos vindo daquelas bandas. Percebe-se, pois, melhor quando encontramos personagens femininas cujo talento estiola ou desfalece na rotina de umas aulas de música ou pintura às meninas da terra; ou excentricidades lidas como loucura segundo os códigos de respeitabilidade, ou pecado segundo os rigorosos princípios protestantes (Murile em "A Real Life"; Rose em "Royal Beatings" e "Beggar Maid"). Mas não deixamos de encontrar também sinais de emancipação nos retratos de mulheres, quer seja através da arte, do sexo ou da auto-consciencialização.

1 Com base no facto de Alice Munro se ter estreado na revista The New Yorker, publicando regularmente nela os seus contos, foi adoptada nos anos 70 pelos Estados Unidos como uma das "suas" melhores contistas. 2 "You are likely to run into quite a few signs in Sowesto wheat fields telling you to be prepared to meet your God, or else, your doom - felt to be much the same thing." (Introdução a Alice Munro's Best: A Selection of Stories, Douglas Gibson Books, 2008)

Page 3: A escritora laureada com o Prémio Nobel deste ano, Alice · PDF fileA escritora laureada com o Prémio Nobel deste ano, Alice Munro, nasceu em 1931 em Winghamem, na província de

Na introdução à edição de 1996 das Selected Stories (Vintage), Munro observa que ao longo de trinta anos as suas histórias se tornaram mais longas, mais desarticuladas, mais exigentes e mais estranhas. No entanto, sobre a mesma edição, diz-nos o romancista americano John Updike que nela encontrou "a well-meditated complexity and multiplicity of plot, an intense clarity of phrase and image, an exceptional psychological searchingness and honesty" (The New York Times, October 27, 1996). É essa expressão clara, essa imagem perfeita e oportuna, para nos dar com aparente simplicidade a complexidade das emoções humanas, que Alice Munro consegue nos seus textos. Com o que ela chama "honestidade". E com muita ironia, mesmo virada para si própria e para a relação entre realidade e ficção, quando surpreendemos, por exemplo, a voz narradora em elocuções como estas: "How hard it is for me to believe that I made that up" ("Differently") ou "I got rid of the older brother, the alcoholic; three tragic destinies were too much even for a book, and certainly more than I could handle" ("Epilogue: The Photographer"). Em português, só a partir de 2007 os leitores tiveram acesso à obra de Alice Munro pela mão de Francisco Vale, da Relógio d’Água. Saíram entretanto seis antologias de contos − Fugas (tradução de Margarida Vale de Gato), O amor de uma boa mulher Demasiada Felicidade, O Progresso do amor, Amada vida e A Vista de Castle Rock" (todos estes na tradução de José Miguel Silva). A mesma editora conta publicar, até ao final do ano, Vidas de raparigas e mulheres (título ainda provisório). "Just keep reading!", foi a mensagem de Alice Munro aos leitores de todo o mundo, numa entrevista logo após o anúncio da atribuição do Nobel. Aos leitores, em Portugal, deixemos este mesmo convite, e que seja também à descoberta de Alice Munro. Isabel Caldeira Professora Associada Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, Estudos Anglo-Americanos Faculdade de Letras Universidade de Coimbra