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62 Topoi, v. 14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 62-85 | www.revistatopoi.org A ditadura nas representações verbais e visuais da grande imprensa: 1964-1969 Rodrigo Patto Sá Motta* RESUMO O artigo consiste em estudo das representações divulgadas pela grande imprensa do eixo Rio-São Paulo sobre o regime militar em sua fase inicial, o período entre 1964 e 1969. Para analisar os discursos emiti- dos pelos seis diários enfocados na pesquisa foram privilegiados os textos dos editoriais e as caricaturas políticas, elementos que se destacam em meio às representações visuais e verbais dos jornais. O propó- sito é perceber melhor as ambiguidades da imprensa que, cindida entre o amor à liberdade e a devoção à ordem, adotou atitudes tanto de apoio quanto de crítica ao Estado autoritário. Palavras-chave: ditadura; imprensa; caricatura; representações; política. ABSTRACT e article focuses on Rio and São Paulo media representations concerning the military regime in its initial phase, from 1964 to 1969. e analysis takes into consideration the editorials and the political cartoons published by six daily newspapers examined in the research. is study offers a better understanding of the paradoxical attitudes of the daily press. Split between love for liberty and devotion to social order, the newspapers were both supportive and critical of the dictatorship. Keywords: dictatorship; press; caricature; representations; politics. Artigo recebido em 19 de dezembro de 2012 e aceito em 26 de março de 2013. * Doutor em história econômica pela Universidade de São Paulo, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista de produtividade científica do CNPq, nível 2. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: rodrigopsamotta@ gmail.com.

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    A ditadura nas representaes verbais e visuais da grande imprensa: 1964-1969

    Rodrigo Patto S Motta*

    RESUMOO artigo consiste em estudo das representaes divulgadas pela grande imprensa do eixo Rio-So Paulo sobre o regime militar em sua fase inicial, o perodo entre 1964 e 1969. Para analisar os discursos emiti-dos pelos seis dirios enfocados na pesquisa foram privilegiados os textos dos editoriais e as caricaturas polticas, elementos que se destacam em meio s representaes visuais e verbais dos jornais. O prop-sito perceber melhor as ambiguidades da imprensa que, cindida entre o amor liberdade e a devoo ordem, adotou atitudes tanto de apoio quanto de crtica ao Estado autoritrio.Palavras-chave: ditadura; imprensa; caricatura; representaes; poltica.

    ABSTRACTe article focuses on Rio and So Paulo media representations concerning the military regime in its initial phase, from 1964 to 1969. e analysis takes into consideration the editorials and the political cartoons published by six daily newspapers examined in the research. is study oers a better understanding of the paradoxical attitudes of the daily press. Split between love for liberty and devotion to social order, the newspapers were both supportive and critical of the dictatorship.Keywords: dictatorship; press; caricature; representations; politics.

    Artigo recebido em 19 de dezembro de 2012 e aceito em 26 de maro de 2013.* Doutor em histria econmica pela Universidade de So Paulo, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista de produtividade cientca do CNPq, nvel 2. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: [email protected].

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    Introduo

    Este artigo o primeiro resultado de pesquisa ainda em andamento, que tem como objeto as re-presentaes divulgadas pela grande imprensa acerca do regime militar.1 Mais precisamente, o olhar se concentra na fase entre abril de 1964 e novembro de 1969, e a escolha do recorte nal deve-se inteno de avaliar o impacto do AI-5 no discurso jornalstico. Para captar e analisar as representaes publicadas nos jornais, a opo foi considerar tanto os discursos verbais como os visuais, privilegiando os textos dos editoriais, no primeiro caso, e as caricaturas polticas, no segundo. Analisando ao mesmo tempo essas duas formas de expresso, mas com a devida ateno s especicidades de cada tipo de linguagem, espera-se obter quadro mais amplo das representaes jornalsticas sobre o regime militar.

    De certo modo, os anos 1960 e 1970 foram o auge da grande imprensa tradicional, se forem consi-deradas a vendagem e a circulao dos dirios. Eram vendidos aproximadamente 5 milhes de jornais e os dirios mais inuentes haviam passado por reformas recentes, tornando-se empresas mais slidas. Tambm houve diversicao no perl da imprensa, com a entrada em cena de dirios que disputavam o pblico de mais baixa renda. O acirramento da competio e as presses exercidas pelo regime militar levariam reduo do nmero de jornais no incio dos anos 1970, gerando fenmeno de concentrao nas empresas maiores, ao mesmo tempo que as tiragens aumentavam.2

    Alm da competio acirrada e o desao da modernizao, na segunda metade dos anos 1960 a grande imprensa teve de lidar com outro grande dilema, o Estado autoritrio. Decerto, toda a grande mdia (salvo ltima Hora) apoiou a interveno militar, contribuindo para congurar o notvel apoio civil conferido ao Golpe de 1964. Entretanto, seu apoio no implicava concordncia plena com a pauta poltica da ala extrema-direita do novo regime, que pretendia golpear duramente as instituies liberais em nome da segurana e da ordem (a este respeito, as peculiaridades do Estado e dO Globo sero abor-dadas a seguir). Em sua maioria, os jornais perlavam com a ala liberal dos apoiadores de 1964, que temperavam seu amor pela liberdade com notvel transigncia a intervenes autoritrias para defesa do status quo. Por isso, como ser mostrado, as relaes da imprensa com o regime militar foram marcadas por complexidades e ambiguidades, variando entre o apoio entusistico e a crtica, situao semelhante, alis, que viveram outros setores da sociedade.

    Analisar os discursos jornalsticos do perodo abre novas possibilidades para pensar temas candentes na historiograa. Uma das questes em discusso hoje o apoio civil aos militares, e o debate sobre a existncia de consenso social em torno do regime autoritrio, na contramo dos trabalhos que enfati-zam as lutas e estratgias de resistncia.3 Nessa direo, o estudo da grande imprensa assume impor-tncia particular por sua capacidade de inuenciar a formao da opinio, ou melhor, das opinies do pblico e da sociedade, em uma poca em que a televiso ainda estava em consolidao.

    Antes de prosseguir importante apresentar e justicar a escolha do corpus. Os seis peridicos es-tudados pertencem ao chamado eixo Rio-So Paulo: O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, Correio da

    1 A pesquisa nanciada pelo CNPq (Bolsa de Produtividade) e pela Fapemig (Programa Pesquisador Mineiro). Agradeo a contribuio dos bolsistas de Iniciao Cientca que trabalharam no projeto (Aline Lemos, Izadora Fernando e Getlio Mendes) e a dos que se engajaram nele recentemente (as Junqueira e Camila Mono).2 Sobre tiragens, circulao e reformas na grande imprensa do perodo, BAHIA, Juarez. Jornal, histria e tcnica. Histria da imprensa brasileira. 4. ed. So Paulo: tica, 1990; BARBOSA, Marialva. Histria cultural da imprensa no Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007; ABREU, Alzira A. de. A imprensa em transio: o jornalismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro: FGV, 1996; RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Modernizao e concentrao: a imprensa carioca nos anos 1950-1970. In: NEVES, Lcia M. B.; MOREL, Marco; FERREIRA, Tania M. B. (Org.). Histria e imprensa: representaes culturais e prticas de poder. Rio de Janeiro: Faperj; DP&A, 2006. p. 426-435.3 REIS FILHO, Daniel Aaro. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, e tambm os trabalhos reunidos na coletnea organizada por Denise Rolemberg e Samantha Quadrat: A construo social dos regimes autoritrios: legitimidade, consenso e consentimento no sculo XX. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010.

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    Manh, Jornal do Brasil, O Globo e ltima Hora. Eles foram escolhidos por sua capacidade de circulao e inuncia, inclusive entre grupos sociais, alm das cidades em que eram produzidos. Embora seja pro-blemtico pretender fazer histria de mbito nacional com dados apenas das duas capitais, por outro lado, em vista de sua ampla circulao, esses veculos so representativos do discurso jornalstico que chegava a parcelas inuentes da sociedade brasileira. A tiragem mdia de cada um desses dirios variava entre 100 e 250 mil exemplares (cerca de 1 milho na soma dos seis), o que signicava aproximadamente 20% dos jornais produzidos em todo o pas. relevante ressaltar, tambm, que cada exemplar era lido por quatro pessoas,4 portanto, a circulao era bem superior tiragem. Trata-se de boa amostra da grande imprensa da poca, com a presena tanto de jornais que cooperaram com a ditadura, quanto de veculos que entraram em choque com o poder autoritrio.

    Algumas consideraes tericas e comentrios sobre a bibliograa

    A imprensa comeou a ser pesquisada h dcadas, mas, de maneira semelhante a outros campos, os trabalhos de investigao se adensaram em perodo recente, a partir do amadurecimento das universidades e dos cursos de ps-graduao. Os trabalhos pioneiros foram escritos por Nelson Werneck Sodr e pelo jornalista Juarez Bahia, no m dos anos 1960.5 Desde ento, muitas pesquisas foram realizadas, a maioria tendendo a enfocar um s jornal ou a imprensa de uma das grandes capitais. No caso dos dirios paulis-tas, h que mencionar os estudos pioneiros de Maria Helena Capelato e Maria Lgia Prado e, tambm, trabalhos mais recentes, como os de Maria Aparecida Aquino e Beatriz Kushnir.6 Para a imprensa carioca podem ser citadas, alm dos trabalhos de Alzira Alves de Abreu e seus parceiros, as pesquisas de investiga-dores da rea de comunicao, entre eles Marialva Barbosa e Ana Paula Ribeiro Goulart.7

    Observando esses trabalhos percebe-se que h ainda poucas pesquisas sobre a grande imprensa durante o regime militar. Alm disso, estudos dedicados aos grandes dirios so menos numerosos do que as pesquisas sobre a imprensa alternativa, talvez mais atraente pelo charme de fora de resistncia ditadura.8 Chama a ateno, tambm, a virtual inexistncia de trabalhos que tentem dar conta, simul-taneamente, do quadro carioca e paulista.

    Quanto s caricaturas, as publicaes se dividem entre obras de orientao catalogrca/memoria-lstica e trabalhos acadmicos, os ltimos provavelmente em menor nmero. Estudos pioneiros aparece-

    4 BAHIA, Juarez. Jornal, histria e tcnica, op. cit. p. 372.5 No entanto, ambos abordaram a fase da ditadura supercialmente, j que foram escritos em ns dos anos 1960. SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1966 e BAHIA, Juarez. Jornal, histria e tcnica, op. cit.6 Eis as referncias completas: CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo: 1920-45. So Paulo: Brasiliense, 1989; CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Lgia. O bravo matutino: imprensa e ideologia no jornal O Estado de S. Paulo. So Paulo: Alfa-mega, 1980; MOTA, Carlos Guilherme; CAPELATO, Maria Helena. Histria da Folha de S.Paulo (1921-1981). So Paulo, 1980; KUSHNIR, Beatriz. Ces de guarda. Jornalistas e censores, do AI-5 Constituio de 1988. So Paulo: Boitempo, 2004; AQUINO, Maria Aparecida. Censura, imprensa, Estado autoritrio (1968-1978): o exerccio coti-diano da dominao e da resistncia: O Estado de S. Paulo e Movimento. Bauru: Edusc, 1999. Aquino foi uma das poucas autoras a analisar mais de um peridico.7 ABREU, Alzira Alves de; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; KORNIS, Monica. Mdia e poltica no Brasil: jornalismo e co. Rio de Janeiro: FGV, 2003; ABREU, Alzira A. de. A imprensa em transio, op. cit.; BARBOSA, Marialva. Histria cultural da imprensa no Brasil, 1900-2000, op. cit.; RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Modernizao e concentrao, op. cit.8 No se questiona a importncia das pesquisas sobre a imprensa alternativa, e neste campo h trabalhos muito bons, listados a seguir. No entanto, a grande imprensa deveria receber igual ou maior ateno, devido ao fato de atingir pblico maior. BRAGA, Jos Luiz. O Pasquim e os anos 70: mais pra epa que pra oba... Braslia: Ed. UnB, 1991; CHINEM, Ri-valdo. Imprensa alternativa: jornalismo de oposio e inovao. So Paulo: tica, 1995; KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionrios, nos tempos da imprensa alternativa. 2 ed. So Paulo: Edusp, 2003.

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    ram nos anos 1980, como os trabalhos de Marcos Silva e Isabel Lustosa, a que se seguiram mais alguns autores, sem congurar ainda, ao meu juzo, um campo slido. Falta maior acmulo de trabalhos e o aprofundamento nas reexes sobre as metodologias de pesquisa, investimentos que valem a pena em vista da importncia da linguagem caricatural nos embates polticos. As pesquisas sobre caricaturas expresso que engloba tanto as caricaturas propriamente ditas como tambm as charges e os cartuns revelam quadro semelhante ao notado para a imprensa diria: h mais estudos sobre as publicaes dos peridicos alternativos, com destaque para O Pasquim e a obra de Henl, e muito pouco sobre os dese-nhos publicados nos veculos tradicionais. De forma semelhante, tambm, os pesquisadores dividem-se entre a historiograa e a rea de comunicao.9

    Reiterando, nesta apresentao sero analisadas as representaes verbais e visuais da grande im-prensa, mais precisamente, os editoriais e as caricaturas/charges, com ateno s peculiaridades e s convergncias entre as duas formas de discurso. Os jornais so encarados, ao mesmo tempo, como fonte e objeto. Trata-se de compreender sua atitude diante do regime militar, levando em conta o papel da imprensa na divulgao de informaes, ideias e valores, com potencial para construir consensos, mas, tambm, para mobilizar a oposio.

    As reexes de Jrgen Habermas sobre o papel da imprensa na constituio de uma esfera pblica tornaram-se clssicas, contribuindo para destacar a relevncia poltica dos jornais e a necessidade de estud-los. No entanto, nesta direo, muitos trabalhos seguiram caminhos simplistas, reduzindo os peridicos ao papel de mero instrumento nas estratgias discursivas burguesas ou estatais.10 Avaliao adequada das fontes de inspirao poltica da grande imprensa demanda olhar mais cuidadoso. Natu-ralmente, trata-se de empresas inseridas no sistema capitalista, portanto, contrrias a mudanas sociais radicais. Alm disso, os jornais sofrem inuncia do Estado, seja de ordem nanceira, na forma de van-tagens ou publicidade ocial, seja pela ameaa de aes coercitivas. No obstante, a trajetria poltica dos jornais revela posicionamentos com distines marcantes, como se ver a seguir. A razo que a imprensa tambm sofre a inuncia do pblico, da sua clientela; por isso, estratgias de mercado, em certas situaes, marcam as escolhas polticas dos editores. Por outro lado, fundamental considerar a opinio poltica dos proprietrios da empresa ou de seus editores que, s vezes, adotaram estratgias arriscadas motivados por suas convices.

    Para avaliar a fora da imprensa h que se levar em conta tambm a resposta do pblico, que no deve ser considerado uma massa amorfa. preciso cautela ao avaliar os efeitos reais dos peridicos, assim como de qualquer outra forma de impresso. O simples fato de determinado impresso circular e ser lido no implica recepo unvoca: pode haver apropriaes diferentes e usos diversos do pretendido pelos editores, de modo que anlises ingnuas devem ser evitadas. Por limitaes de espao no ser possvel fazer estudo de recepo/apropriao, embora existam possibilidades interessantes a explorar.11 De qualquer modo, evidente que os jornais exerciam impacto signicativo, pelo menos assim acre-ditou o regime militar ao se ocupar de censur-los e prender jornalistas e chargistas.12 Nessa linha de

    9 SILVA, Marcos. Caricata Repblica. So Paulo: Marco Zero, 1990; LUSTOSA, Isabel. Histrias de presidentes: a Repblica no Catete. Petrpolis: Vozes, 1989. Em anos recentes, alguns historiadores produziram teses sobre o tema, como Elio Flores (Repblica s avessas: narradores do cmico, cultura poltica e coisa pblica no Brasil contemporneo) e Maria Fran-cisca Pires (Cultura e poltica: entre Fradins, Zeferinos, Granas e Orelanas).10 HABERMAS, Jrgen. Mudana estrutural da esfera pblica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.11 No caso das caricaturas, sua inuncia efetiva sobre o debate poltico se verica nos casos de guras inventadas para atacar, respectivamente, Carlos Lacerda e a direita militar: o corvo e o gorila. Essas duas construes caricaturais produziram resultados profundos e duradouros, ao ponto de os grupos atingidos pela zombaria terem se mobilizado para dar resposta aos atacantes, principalmente por meio da estratgia de se apropriar daquelas representaes para alterar seu contedo crtico. MOTTA, Rodrigo Patto S. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.12 O caso mais clebre ocorreu em 1970, quando uma edio dO Pasquim estampou, na capa, charge que fazia troa de D. Pedro I e do 7 de Setembro. A edio foi recolhida e os jornalistas permaneceram na cadeia por alguns dias. Em 1964,

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    raciocnio, outra considerao importante diz respeito ao perl social do pblico leitor. As pessoas que liam esses dirios pertenciam, na maioria, a grupos privilegiados na escala social.13 Essa constatao no reduz a relevncia do objeto: dado o carter elitista da vida poltica brasileira, as opinies e o estado de esprito das classes mdia e alta tm grande relevncia, tanto no apoio como na oposio ao governo.

    O estudo das caricaturas mobiliza problemas tericos e metodolgicos especcos, que demandam ateno. Um dos desaos tericos no estudo de imagens saber se a representao visual corresponde verdade, ou realidade. Isso pode parecer deslocado no caso das caricaturas, que so, declaradamente, distores e deformaes, raiando ao grotesco. Mas as coisas no so assim to simples. Embora carre-gando, zombando ou fazendo galhofa, a caricatura almeja trazer tona a verdade, ao menos facetas dela.

    A inspirao terica para lidar com as imagens visuais apoia-se, seletivamente, nas reexes da ico-nologia e da semiologia, embora elas tenham estudado imagens de outra natureza, salvo um penetrante ensaio de Ernst Gombrich sobre o arsenal do cartunista.14 Da iconologia, reteve-se a nfase em inter-pretar o sentido das imagens, tratando-as como fontes de informao a serem submetidas crtica.15 Da semiologia so inspiradoras as reexes sobre os laos entre linguagem verbal e visual, que usam recursos semelhantes, como metfora, metonmia e ironia. importante estar atento combinao en-tre imagem e texto, este exercendo a funo de ancoragem ao dirigir o olhar no sentido da compreenso desejada pelo autor do desenho.16

    No entanto, em certos casos a leitura das caricaturas dispensa grandes acrobacias interpretativas, j que se trata de linguagem visual com vocao para atingir o grande pblico. O caricaturista deseja ser compreendido pela maioria, s vezes at mesmo os analfabetos, por isso, salvo situaes especiais, raramente os desenhos so hermticos. Muitas vezes, o principal trabalho reconstruir os contextos e identicar personagens, com ateno, tambm, s convenes desta arte que depende da criatividade e do gnio individual, mas, igualmente, caudatria de cdigos de linguagem construdos ao longo de quatro sculos.

    Praticada pelo menos desde o sculo XVII,17 a caricatura foi incorporada imprensa no sculo XIX. Os grasmos cmicos atuam no comentrio dos acontecimentos e atos dos lderes polticos, quase como crnicas visuais, auxiliando os jornais em seu papel de produzir notcias e inuenciar a opinio poltica. Frequentemente, as imagens expressam, mais que opinies pessoais, o ponto de vista do jornal, s vezes reduzindo-se charge editorial, cujo papel ilustrar e xar o pensamento da empresa. Ainda assim, alguma autonomia para o desenhista existia em certos casos, embora situaes de desencontro frontal com a linha editorial no durassem muito, como se ver no caso de Claudius e o Jornal do Brasil.

    Nos jornais em foco atuaram vrios artistas de grande talento. Alm de Claudius destacaram-se, tam-bm, Henl, Ziraldo, Fortuna, Augusto Bandeira, Lan, Jaguar, Orlando Mattos, Hilde, entre outros. Com criatividade e humor, eles marcaram o modo como o pblico dos jornais imaginou e compreendeu as disputas polticas do contexto. O trao conciso e a utilizao de recursos usuais do humor (contraste,

    o chargista Claudius tambm foi detido, em represlia a suas crticas contra os militares.13 BAHIA, Juarez. Jornal, histria e tcnica, op. cit. p. 372-373. Deve-se abrir exceo para o caso de ltima Hora, que tinha grande penetrao popular, embora fosse lido por segmentos de elite tambm.14 GOMBRICH, Ernst. O arsenal do cartunista. In: GOMBRICH, Ernst. Meditaes sobre um cavalinho de pau e outros en-saios sobre teoria da arte. So Paulo: Edusp, 1999. A liao de Gombrich escola da iconologia pode ser questionada, mas, de qualquer forma, ele pertencia ao Instituto Warburg, local onde ela se originou.15 PANOFSKY, Erwin. Estudos de iconologia. Lisboa: Estampa, 1986. Alm de Panofsky, outros nomes do Instituto Warburg so referncias importantes para estas reexes, como Ernst Gombrich e Michael Baxandall. Para um balano sobre os m-ritos e limites da iconologia e da semiologia, ver: BURKE, Peter. Testemunha ocular. Histria e imagem. Bauru, SP: Edusc, 2004. p. 213-223.16 O conceito de ancoragem foi desenvolvido por BARTHES, Roland. Rhtorique de limage. In: BARTHES, Roland. Oeuvres compltes. Tome II. Paris: ditions du Seuil, 2002. p. 573-588.17 LIMA, Herman. Histria da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1963. p. 6-9.

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    surpresa, rebaixamento, deformao) tornam a caricatura propcia para a crtica poltica em perodos au-toritrios. Como o sentido da mensagem dbio, ambguo, maiores as chances de burlar a represso e a censura. Por isso, sobretudo depois do AI-5, as caricaturas serviram de meio para manifestar crticas su-tis ao Estado, expressando argumentos que no poderiam ser apresentados por meio dos textos verbais.

    A grande imprensa no perodo 1964-1969: entre a liberdade e a ordem

    Na pesquisa que originou este texto foram coletados milhares de caricaturas e editoriais. Evidente-mente, impossvel usar todo esse material no espao de um artigo, da a necessidade de selecionar com cuidado e sintetizar. Infelizmente, e pela mesma razo, tampouco ser possvel analisar com o devido detalhe todas as charges citadas. Outra opo seria reduzir o nmero de imagens para poder analis-las minuciosamente, mas, neste caso, se perderia a oportunidade de oferecer um quadro mais abrangente.

    De incio, importante considerar os dilemas da grande imprensa diante do regime autoritrio, cindida entre a devoo liberdade e o amor ordem, oscilante entre o desejo de autonomia e a depen-dncia e os favores do Estado. Por convico e por interesse, as empresas jornalsticas so favorveis liberdade de manifestao, notadamente quando as restries atingem-nas tambm. Por isso, quando o regime militar adotou medidas para cercear a imprensa e agrediu os valores liberais tradicionais (opi-nio, manifestao, garantias individuais), a maioria dos veculos jornalsticos mostrou-se descontente.

    Exceto O Globo, todos os jornais analisados criticaram a censura e a intensicao da legislao au-toritria, e todos se apresentaram como adeptos dos valores liberais e democrticos, inclusive O Globo. Porm, a intensidade das crticas variou bastante, assim como a disposio para correr riscos. Para faci-litar a anlise, pode-se dividi-los em dois blocos, agrupados de acordo com as atitudes adotadas diante da ditadura: O Estado de S. Paulo (OESP), Jornal do Brasil (JB), Folha de S.Paulo (FSP) e O Globo, de um lado, e Correio da Manh (CM) e ltima Hora (UH), na outra ponta.

    OESP, FSP, O Globo e JB apoiaram a revoluo decididamente, por sua repulsa aos rumos que parecia tomar o governo Goulart. A adoo da expresso revoluo (e eles no usavam aspas) revela o modo positivo como encararam o novo regime, que utilizava esse termo para obter legitimidade. Como os outros setores liberais e conservadores da sociedade brasileira, a grande imprensa preferiu os riscos da interveno militar s ameaas de um processo de esquerdizao com apoio no Estado, tendncia que identicaram no governo deposto. Nos primeiros anos, pelo menos at o AI-5, esses dirios rei-vindicaram a revoluo como obra sua tambm, e reclamaram o direito de inuenciar seus rumos. Eles aferraram-se ao argumento de que os ideais de 1964 estavam ancorados na defesa da liberdade, supostamente ameaada por Goulart e aliados, e quando os novos governantes passaram a agredir a sua concepo de liberdade reclamaram o retorno aos princpios de 31 de maro, como se todos os atores de 1964 se identicassem com os mesmos valores. Era posio ambgua, um liberalismo pronto a fazer concesses ao autoritarismo. Entretanto, isso no signica que a ligao com os valores liberais fosse irrelevante ou apenas retrica, pois, como ser mostrado, no momento da crise de 1968 quase todos divergiram da soluo ditatorial.

    Nas primeiras semanas aps a interveno militar de 1964, os quatro dirios do primeiro bloco (OESP, FSP, JB e O Globo) apoiaram as medidas repressivas, que acharam necessrias para consolidar a nova ordem. Porm a j comearam a aparecer nuanas a diferenci-los, pois o entusiasmo com a operao limpeza variou a depender do veculo, de modo que o melhor analis-los separadamente.

    Entre os quatro, o menos entusistico na adeso aos expurgos foi o JB, que temperou seu apoio com pedidos de moderao e respeito s leis, para no ferir as instituies em vigor e evitar injustias. Em editorial de 6 de maio de 1964, por exemplo, o JB fez declarao de engajamento na revoluo e, com

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    base nessa liao, pediu ao governo que limitasse o escopo dos expurgos, para diminuir a intranquili-dade e no propiciar aos adversrios do novo regime um argumento crtico ecaz. Apesar de tais nuan-as, o JB era simptico ao novo regime, o que causou diculdades para um de seus chargistas, Claudius, cuja opinio era diferente. Os desenhos de Claudius imediatamente aps o Golpe mostram desconforto com o novo poder, como a ironia sobre o Castelo dominando o Palcio da Alvorada (gura 1: a met-fora do castelo representava tanto o presidente Castelo Branco como o poder militar), ou a denncia jocosa das arbitrariedades do expurgo anticomunista (gura 2). Suas charges implicavam dissonncia com a linha editorial e, por isso, suas publicaes no JB foram escassas nos meses seguintes. Neste caso, houve desencontro entre a disposio crtica do chargista e a moderao do jornal e, provavelmente por essa razo, em 1966 ele saiu do JB. Pouco depois, Claudius foi contratado por UH e CM, jornais mais de acordo com seu perl, e ali publicou ataques bastante agressivos ao regime e ao seu aparato repressivo nos anos de 1967 e 1968.

    Figura 1: ClaudiusFonte: Jornal do Brasil (16 abr. 1964).

    Figura 2: ClaudiusFonte: Jornal do Brasil (7 abr. 1964).

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    No caso da FSP houve entusiasmo ainda maior com a nova situao poltica, principalmente o go-verno Castelo Branco, que o peridico recebeu com esperana e otimismo. Os caricaturistas da Folha, Orlando Mattos e Nelson Coletti, deram expresso visual s opinies do jornal em numerosas charges editoriais. Nos primeiros meses do governo Castelo Branco saram muitas caricaturas simpticas (e, naturalmente, insossas) ao general presidente na FSP, retratado como dirigente comprometido com a reconstruo do Brasil e el a valores liberais. Nessa linha, eles tentaram afastar o presidente da ala radical do regime que desejava intensicar as medidas autoritrias. Para xar esse ponto, os chargistas da FSP criaram uma gura caricatural, a senhora falsa democracia, que pressionava Castelo Branco para o fechamento do regime, principalmente o cancelamento de eleies (gura 3). O jornal defendia a importncia das eleies e da liberdade e apostava fazendo presso tambm que Castelo seria capaz de evitar o recrudescimento autoritrio, como nas caricaturas em que aparece conrmando a realizao de eleies e segurando a linha-dura pelo rabo (guras 4 e 5). Os ataques falsa democra-cia, veladamente, implicavam crticas ao jornal dominante em So Paulo, o Estado, que demandava o adiamento das eleies de 1965.

    Figura 3: Orlando MattosFonte: Folha de S.Paulo (4 fev. 1965).

    Figura 4: Orlando MattosFonte: Folha de S.Paulo (13 fev. 1965).

    Figura 4: Orlando MattosFonte: Folha de S.Paulo (16 set. 1964).

    Entre os que apoiaram a interveno militar, o mais engajado foi sem dvida o Estado, cujo pro-prietrio, Jlio de Mesquita Filho, nos editoriais do dirio, descreveu-se como revolucionrio e cons-pirador de primeira hora. Conduzido por Julinho Mesquita, OESP esteve a servio de sua viso sobre o signicado do 31 de maro, cuja verdadeira essncia ele pretendia encarnar. Neste caso, temos exem-plo extremo das ambiguidades dos liberais democratas que apoiaram a represso poltica. Mas, aos olhos dos editores de OESP, no havia qualquer dubiedade: seguindo linha de pensamento apresentada por Carlos Lacerda nos anos 1950, o jornal dos Mesquita defendia que a revoluo deveria durar de dois a trs anos, seguindo o modelo das ditaduras da Repblica Romana. Aps essa interveno, rpida e intensa, que deveria erradicar os males do pas, a saber, o getulismo, o comunismo e a corrupo, o poder deveria ser devolvido aos civis, com pleno restabelecimento das instituies liberais democrticas.

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    Como desejasse incurso ditatorial breve, o OESP no concordava com alteraes na Constituio, nem com o estabelecimento de mecanismos autoritrios duradouros.

    O Estado foi um dos primeiros jornais da grande imprensa revolucionria a criticar Castelo Bran-co. O tradicional dirio considerou o presidente excessivamente moderado nos expurgos e equivoca-damente inclinado acomodao com lideranas do regime anterior. No agradou ao jornal o fato de Castelo Branco apresentar medidas reformistas ao Congresso, como projetos de reforma agrria e de estabelecimento de voto para os analfabetos, iniciativas semelhantes s defendidas por Goulart.18 Entre abril de 1964 e o nal de 1965, o OESP foi uma espcie de porta-voz da linha-dura. Alm de exigir maior dureza contra os comunistas e subversivos, OESP contribuiu para a construo de outro inimigo do novo regime, a corrupo. O tema fazia parte do imaginrio liberal desde os anos 1950, mas, nas repre-sentaes veiculadas contra o governo Goulart, a corrupo foi tema secundrio diante da proeminncia do argumento anticomunista.19 Com o advento do novo regime comeou a construo do tema dos dois inimigos da revoluo, o par subverso e corrupo, com contribuio destacada do Estado.20

    As charges de Hilde e Biganti acompanharam com delidade a linha editorial de OESP. Por vezes, eles se limitaram a ilustrar os textos, mas, em outros casos, foram mais criativos, elaborando artifcios visuais que ofereciam novas possibilidades para representar as posies do jornal. Na fase inicial, em que prevalecia a simpatia por Castelo Branco, Biganti adotou a metfora do Castelo em sentido positivo, como smbolo da mudana de 1964. A fortaleza representava a solidez do novo poder e sua capacidade de preservar a ordem (gura 6). Os chargistas do Estado apoiaram os expurgos e as cassaes com en-tusiasmo mpar, como se pode ver nas guras 7 e 8. Dedetizadores (a empresa se chama 31 de maro) e navios (notem-se os smbolos nas bandeiras: a foice e martelo no barco afundado, a bandeira pirata no que estava sob ataque) serviram como metforas para evocar a operao limpeza das instituies, assim como para mencionar o ataque ao comunismo e corrupo. Essas charges ajudaram a cons-truir as representaes visuais dos inimigos a combater, agregando um tema novo, as ratazanas, bichos repelentes mobilizados para aludir sujeira que se pretendia limpar (gura 9). No caso da gura 9, importante notar a representao da Revoluo como uma senhora com ares de dona de casa, soluo visual muito utilizada nas charges que tem relao com o gnero feminino da palavra revoluo, mas tambm signica meno ao apoio de grupos femininos de direita ao Golpe. Na imagem, a senhora usara o porrete para abater a serpente comunista e se preparava para pegar outro bicho repelente, um rato, que representa a corrupo. Esta interpretao se sustenta na leitura de editorial anterior, que havia mencionado o combate corrupo como o segundo objetivo do novo poder e, tambm, porque o rato congura metfora tradicional para a idia de sujeira e corrupo. At o nal da vigncia do pri meiro Ato Institucional, os chargistas do Estado continuaram apoiando as medidas repressivas, como a proibio da UNE e a demisso de funcionrios pblicos, a includo o grupo de professores de medicina da USP expurgado em outubro de 1964 (guras 10 e 11).21

    18 Ver editoriais das seguintes edies: 11/4, 14/4 e 14/5/1964.19 MOTTA, Rodrigo Patto S. Jango e o golpe de 1964 na caricatura, op. cit.20 Editorial de 21/4/1964, Os postulados da Revoluo.21 A interpretao de que os pinos de boliche derrubados na gura 11 representam os professores e cientistas aposentados na USP e no Instituto Butant deve-se data, meno ao art. 7o do Ato Institucional (na bola), e tambm ao uso de con-venes grcas para representar homens do saber (os culos, as barbas). Note-se que havia tambm alguns ratos negros entre os pinos derrubados, provavelmente para sugerir a presena de corruptos entre os expurgados.

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    Figura 6: BigantiFonte: O Estado de S. Paulo (8 abr. 1964).

    Figura 8: BigantiFonte: O Estado de S. Paulo (26 abr. 1964).

    Figura 10: HildeFonte: O Estado de S. Paulo (16 jun. 1964).

    Figura 11: BigantiFonte: O Estado de S. Paulo (10 out. 1964).

    Figura 9: BigantiFonte: O Estado de S. Paulo (14 abr. 1964).

    Figura 7: HildeFonte: O Estado de S. Paulo (21 abr. 1964).

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    Quanto s crticas do Estado a Castelo Branco, as caricaturas atacaram sua suposta aproximao com os derrotados em 1964. Em um desses desenhos, Hilde representou o fantasma de Jango condu-zindo Castelo Branco a assinar o projeto do voto dos analfabetos (gura 12), iniciativa que acabaria depois derrotada pelo Congresso. Inmeras caricaturas de OESP abordaram temas assemelhados, apontando suposta traio ao que o Estado considerava os ideais de maro. No nal de 1965, no quadro das eleies estaduais e da edio do AI-2, OESP afastou-se ainda mais de Castelo Branco. Julinho de Mesquita defendeu o adiamento das eleies e, com o resultado desfavorvel no Rio e em Minas Gerais, em que venceram candidatos da aliana PSD-PTB, ele se alinhou tese de que os elei-tos no poderiam ser empossados para impedir o retorno dos derrotados em 1964. Jlio de Mesquita Filho tambm discordou do AI-2, que criou eleies indiretas e extinguiu o antigo sistema partidrio, medidas que no interessavam candidatura de Carlos Lacerda, menina dos olhos do Estado.

    Figura 12: HildeFonte: O Estado de S. Paulo (24 jun. 1964).

    Figura 13: Orlando MattosFonte: Folha de S.Paulo (29 maio 1965).

    No caso da FSP, ao longo de 1965 ela tambm perdeu entusiasmo com Castelo Branco, mas por motivos diferentes do Estado. O motivo do seu incmodo era o aumento progressivo das aes au-toritrias do governo, sobretudo no que toca liberdade de imprensa e de expresso. No editorial de 29 de maio de 1965, por exemplo, a FSP denunciou a censura s editoras e o texto foi acompanhado de charge aludindo queima de livros, imagem tradicional para evocar a intolerncia s ideias (gura 13). Na mesma linha, foram publicados editoriais e charges contra a censura aos jornais, notadamente criticando o governo pela iniciativa de editar a Lei de Imprensa, no incio de 1967, considerada uma agresso liberdade (gura 14).

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    O JB tambm diminuiu o apoio ao regime militar, sobretudo quando o autoritarismo se aguou no m de 1965. Assim como a FSP e OESP, o JB mostrou-se insatisfeito com o aparato legislativo criado no m do mandato de Castelo Branco que, alm da Lei de Imprensa, editou nova Lei de Segurana Nacional (mais dura que a anterior, em vigor desde 1953) e implantou nova Constituio, elaborada pelo Executivo e apreciada supercialmente pelo Congresso Nacional.

    Entre os dirios em foco, o jornal da famlia Marinho foi o nico a no contar com caricatu - ras polticas no perodo. Por vezes ele republicou charges de jornais estrangeiros, como fez com dese-nho proveniente de Portugal alusivo ao Golpe de 1964. Produzida certamente por algum veculo da direita portuguesa, que O Globo no identicou, a imagem faz aluso dupla derrota de Goulart e dos comunistas (gura 15), e vitria da ordem e progresso no Brasil. A ausncia de charges polticas regulares era compensada por editoriais e reportagens bastante engajadas em favor da revoluo, que o jornal gostava de adjetivar como democrtica. Mobilizado para ganhar a opinio pblica em favor do novo regime,22 O Globo usou (e abusou) da estratgia de publicar matrias de tom alarmista que comprovariam os crimes atribudos ao regime deposto, a saber, o envolvimento com o comu-nismo, notadamente o internacional, e os vnculos com a corrupo. Foram publicados manchetes e textos sensacionalistas sobre temas como a priso de espies chineses e checos, a descoberta de planos terrveis dos comunistas (incndios, execues em massa, depredaes) e at a denncia de um improvvel crcere secreto mantido no subsolo do prdio da UNE.23 Aps a nfase inicial no tom anticomunista, O Globo assestou baterias tambm contra a corrupo, sobretudo a partir de editorial de ttulo signicativo: Incio de uma era de honestidade e decncia.24

    22 Em uma de suas raras crticas a Castelo Branco, o jornal demandou maior cuidado do governo para trabalhar a opinio em favor do regime, sob o risco de perder a batalha para os propagandistas da oposio. A iniciativa de publicar matrias sensacionalistas sobre os derrotados de 1964 leva concluso de que o jornal resolveu fazer sua parte nesse combate.23 Edies de 9/5, 16/5, 23/5, 25/5, 18/6 e 23/6/1964. Embora no tenha a inteno de analisar a fundo o tema da recep-o/apropriao das representaes jornalsticas, vale a pena citar o resultado de uma pesquisa de opinio feita pelo Ibope em So Paulo, em maio de 1964. Ante a pergunta se achavam acertada ou errada a cassao de mandato dos deputados comunistas, 74% dos entrevistados responderam armativamente. Ao mesmo grupo foi perguntado se achava acertada ou errada a priso de sindicalistas ligados aos comunistas, e a resposta de 72% dos entrevistados foi positiva. Os resultados da pesquisa esto no acervo do Arquivo Edgar Leuenroth (Unicamp).24 Publicado em 18/4/1964.

    Figura 14: Orlando MattosFonte: Folha de S.Paulo (22 jan. 1967).

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    No obstante apoiasse os expurgos, por vezes O Globo pediu moderao ao governo, reclamando contra prises de artistas (por exemplo, da pintora Djanira e do apresentador de TV Carlos Imperial) que, em sua opinio, seriam equivocadas e contraproducentes.25 Comparando com FSP, OESP e JB, O Globo foi o mais el a Castelo Branco, mantendo os elogios ao marechal at mesmo no momento do AI-2, quando os outros se afastaram. O jornal de Roberto Marinho aprovou a institucionalidade autoritrio-liberal legada por Castelo Branco ao pas. Para O Globo, o apoio ao novo Ato Institucional (o AI-2) era dever de patriotismo, pois sem ele a revoluo democrtica caria desprotegida em relao a seus inimigos. Na mesma linha, e sempre declarando amor democracia, o dirio fez a defesa do voto indireto para presidente, na sua viso uma prtica mais ajustada realidade nacional, pois o pas no suportaria o choque das eleies diretas. Nas entrelinhas, pode-se perceber a certeza (e o temor) de que os lderes do novo regime seriam incapazes de ganhar eleio nacional por sufrgio universal.26 Assim, O Globo mostrava-se concorde com um regime ditatorial morno, capaz de conciliar autoritarismo com alguns resqucios de instituies liberais, o que de fato foi o cerne do regime militar brasileiro durante parte de sua vigncia.

    Os quatro dirios analisados at aqui, pertencentes ao bloco dos apoiadores do novo regime, rece-beram com frieza a escolha de Costa e Silva para chear o segundo governo revolucionrio. Costa e Silva foi ironizado nas caricaturas de modo mais intenso que Castelo Branco, que era respeitado por sua tentativa de reestruturao do pas segundo programa coerente. Costa e Silva foi visto como fraco continuador da obra de seu antecessor, posto que incapaz de apresentar projetos claros para o pas. O ponto mais sensvel das crticas, que viriam a se tornar mais fortes em 1968, dizia respeito fragilidade do ministrio, composto por guras inexpressivas politicamente e com grande peso de militares. No entanto, esses dirios buscaram se acomodar tambm com o novo presidente, princi-palmente quando ele comeou a dizer-se disposto ao dilogo com a oposio e a atitudes moderadas, na primeira fase do seu mandato. Aqui cabe uma exceo para O Globo, que criticou o governo pela

    25 Edies de 23/5/1964 e 8/1/1969.26 Editoriais de 8/10 e 19/10/1965. Importante aduzir que O Globo havia rompido violentamente com Carlos Lacerda, cuja imagem procurava demolir por essa poca (1965 e 1966) ao publicar matrias acusando-o de corrupo. Portanto, para esse jornal no existia a opo eleitoral do lder civil mais identicado com o golpe de 1964, de modo que as eleies diretas signicavam derrota certa para O Globo.

    Figura 15: Annimo e CostaFonte: O Globo (29 abr. 1964).

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    tentativa de aproximao com a oposio, reclamando que deveria governar com a situao para no enfraquecer a Arena.27

    No bloco minoritrio, formado pelos dirios UH e CM, temos os jornais que adotaram posies crticas mais fortes desde o incio do regime militar, inclusive permeveis a argumentos da esquerda. No caso de ltima Hora esse era o caminho natural, j que pertencia ao campo dos derrotados em 1964. Fundado em 1951 para apoiar Getlio Vargas, o UH tornou-se janguista em seguida e apoiou posies nacionalistas de esquerda no contexto pr-golpe. Por isso sofreu represso imediata, com invaso e depredao de suas dependncias nos primeiros dias de abril, cena denunciada em charge de Jaguar. O novo quadro trouxe diculdades polticas e econmicas para Samuel Wainer, o proprietrio, que em 1965 se desfez de empresas subsidirias e manteve apenas a matriz carioca.28 No UH, depois do Golpe, continuaram a pontuar jornalistas e chargistas simpticos s esquerdas, no obstante Wainer tivesse tambm preocupaes empresariais e comerciais. Na verdade, segundo suas memrias, Wainer desejava linha editorial mais amena, para evitar choques graves com os militares, mas seus auxiliares nem sempre o obedeceram.29 Inicialmente com Jaguar e, depois, com Henl e Claudius, o discurso visual de UH de-nunciou, de modo mais agudo do que qualquer outro jornal, as prises (gura 16), o empastelamento da imprensa (gura 17) e as torturas nos quartis (gura 18). Vale notar na ltima gura o ataque irnico ao discurso do governo sobre inexistncia de torturas. O chargista menciona a visita de inspeo do general Ernesto Geisel a instalaes militares do Nordeste, que resultou em declarao negando as denncias de tortura, e a imagem contradiz o discurso ocial.

    27 Editorial de 20/3/1967.28 LAURENZA, Ana Maria de Abreu. Batalhas em letra de forma: Chat, Wainer e Lacerda. In: LUCA, Tania Regina de; MARTINS, Ana Luiza (Org.). Histria da imprensa no Brasil. So Paulo: Contexto, 2008. p. 203.29 WAINER, Samuel. Minha razo de viver. Rio de Janeiro: Record, 1980. Alguns editoriais de UH em 1964 mostraram, efetivamente, uma disposio para acomodao com o novo regime. Wainer viveu no exlio durante vrios anos depois do Golpe, de modo que no era to simples controlar a linha editorial de seu jornal, j que no podia acompanhar o dia a dia da redao.

    Figura 16: JaguarFonte: ltima Hora (13 abr. 1964).

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    No caso do CM, tratava-se de jornal tradicional com longa histria de embates contra vrios go-vernantes da Repblica. Em 1963, o dirio passou ao controle de Niomar Sodr, que procurou mant--lo na linha de autonomia diante do Estado. O CM apoiou o Golpe e a derrubada de Goulart, embora fosse favorvel a reformas sociais; porm, em poucos dias entrou em choque com o novo governo, discordando das medidas autoritrias. As atitudes ambguas iniciais do jornal aparecem em algumas caricaturas de Augusto Bandeira, que oscilam entre a simpatia velada e a crtica sutil. Ressalto, em es-pecial, a bela charge da revoluo como gura feminina, que tenta forar o Congresso e os partidos a cuidarem do doente Brasil (gura 19); e uma caricatura do expurgo de Castelo Branco, representado como zeloso cabeleireiro ou faxineiro ideolgico da nao brasileira (gura 20).

    Quando cou claro que no haveria restabelecimento pleno da liberdade, UH e CM apresenta-ram as crticas mais ousadas e duras, fechando-se possibilidade de um modus vivendi com o regime militar. O CM afastou-se decididamente da redentora, que seus chargistas ironizaram em desenhos ferinos (guras 21 e 22),30 e passou a contar com um time de artistas engajados contra a ditadura mi-litar (Fortuna, Jota, Claudius, Mem de S, Rajo, Senna, Red). Nos anos de 1967 e 1968, momento das grandes passeatas e confrontos sangrentos, as caricaturas e charges de UH e CM denunciaram corajosamente a violncia policial (citando a PM e o Dops) e o terrorismo de direita, inclusive apon-tando as conexes deste com agentes do Estado (guras 23 a 25);31 encamparam alguns temas caros esquerda, como a denncia da inuncia imperialista norte-americana (guras 26 e 27);32 e publicaram desenhos simpticos s manifestaes de rua, com claro engajamento na luta contra o Estado militar,

    30 No caso da gura 22, note-se que o troglodita/gorila cassa com dois s em vez do .31 Vale notar a sustica no brao do delegado e seu bigodinho ao estilo de Hitler (na gura 25) e a referncia ao Esquadro da Morte (EM) no camburo policial que aparece na gura 24.32 Na gura 27, o baixinho de costas Castelo Branco (por causa do pescoo atarracado) e tambm pela ironia com Castle Filmes. A ironia sutil, mas o contedo poltico grave, a sugesto de que o presidente tinha relaes estreitas com os norte-americanos e seus dlares.

    Figura 17: JaguarFonte: ltima Hora (4 abr. 1964).

    Figura 18: JaguarFonte: ltima Hora (19 set. 1964).

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    Figura 19: Augusto BandeiraFonte: Correio da Manh (8 abr. 1964).

    Figura 21: FortunaFonte: Correio da Manh (31 mar. 1966).

    Figura 22: SennaFonte: Correio da Manh (26 out. 1966).

    Figura 20: Augusto BandeiraFonte: Correio da Manh (17 abr. 1964).

    Figura 23: JaguarFonte: ltima Hora (10 abr. 1968).

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    Figura 24: ClaudiusFonte: Correio da Manh (24 out. 1968).

    Figura 25: Mem de SFonte: Correio da Manh (11 dez. 1968).

    Figura 26: HenlFonte: ltima Hora (29 jun. 1967).

    Figura 27: JotaFonte: Correio da Manh (11 fev. 1967).

    como na gura 28, em que a charge mostra um PM acorrentado enquanto padres, donas de casa e crianas deslam tranquilamente em marcha de protesto, com cartazes aludindo UNE e criticando a ditadura.

    Voltando o foco para os jornais de linha liberal-conservadora, nos casos da FSP, JB e OESP, o agra-vamento da violncia em 1968, bem como boatos sobre nova investida autoritria em gestao geraram crticas mais fortes ao regime. No obstante, em comparao com o tom adotado em UH e CM, os ataques do JB, da FSP e do OESP foram mais leves, tendendo a concentrar a carga nos ministros do governo. Costa e Silva foi ironizado algumas vezes como chefe de governo inoperante, mas as guras mais atacadas foram seus auxiliares. JB e FSP publicaram charges criticando as foras de represso, tema praticamente ausente de sua pauta em 1964. A PM e o Dops surgem nos traos de Lan e Orlando Mattos, assim como denncias contra o Esquadro da morte (guras 29 e 30).

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    Figura 28: Mem de SFonte: Correio da Manh (27 jun. 1968).

    Figura 29: LanFonte: Jornal do Brasil (1o maio 1968).

    Figura 30: Orlando MattosFonte: Folha de S.Paulo (5 dez. 1968).

    No caso do Estado, mais signicativa a diferena dos discursos emitidos em 1968 em compara-o com 1964. O jornal mantinha contatos com a direita militar e o habitual discurso anticomunista; entretanto, abandonou o tom de apoio represso estatal, defendendo agora a democracia contra o autoritarismo. As charges de Hilde e Biganti, que em 1964 clamavam por mais dureza nos expurgos, em 1968 passaram a atacar a legislao autoritria por atentar contra os ideais de maro, e a criticar Costa e Silva (o Dr. C&S) por violncias contra a democracia (guras 31 e 32).

    Aqui cabe observao importante: JB, FSP e OESP tambm criticavam a radicalizao dos seg-mentos da esquerda que antes do AI-5 j mostravam ter escolhido o caminho das armas. No entanto, nenhum dos trs dirios entendeu que novo ato autoritrio era necessrio para controlar a esquerda radical. Achavam que o Estado j dispunha de aparato suciente para defender-se de qualquer desao armado, e que a polarizao entre a direita e a esquerda radical levaria o pas ao abismo. Entendiam, tambm, que a crise de 1968 decorria, em parte, da incapacidade poltica e administrativa do governo Costa e Silva. JB e OESP defendiam uma reforma ministerial para mudar os rumos do governo e, jun-tamente com a FSP, esperavam que o impasse pela tentativa de punir o deputado Mrcio Moreira Alves

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    Figura 31: BigantiFonte: O Estado de S. Paulo (13 jun. 1968).

    Figura 32: HildeFonte: O Estado de S. Paulo (31 out. 1968).

    fosse contornado. Na viso desses dirios, a derrota do governo na votao do caso Moreira Alves no seria justicativa vlida para novo surto autoritrio.33 O AI-5, decididamente, no estava em seus pla-nos, inclusive porque seria previsvel o aumento da censura imprensa, o que efetivamente aconteceu.

    Novamente, a posio de O Globo foi diferente, com atitude mais simptica aos clamores autorit-rios da direita.34 Ele foi o nico entre os seis dirios a no manifestar discordncia com o novo surto autoritrio em preparao desde abril de 1968. O Globo criticou violentamente o que chamou agita-o e anarquia nas ruas, e demandou ao do governo para impedir a desordem. Em editorial de 3 de abril de 1968, armou que a opinio pblica exigia tranquilidade, cabendo ao governo erradicar a anarquia para preservar a democracia. No mesmo tom, voltou carga em 8 de outubro de 1968, dizen-do que a revoluo de 31 de maro estava sendo desaada pelos derrotados em 1964. Com seus textos alarmantes sobre os perigos circundando o regime militar e, supostamente, tambm a nao, O Globo emitiu mensagens que estimulavam o leitor a aceitar a nova onda autoritria.

    O impacto do AI-5 sobre a imprensa

    A decretao do AI-5, no primeiro momento, signicou a erradicao do debate poltico das pginas dos jornais. No dia 13 de dezembro de 1968, ociais militares foram despachados para as principais redaes para realizar trabalho improvisado como censores, e a permaneceram por algumas semanas. Por volta de abril/maio de 1969, os censores militares improvisados foram retirados e os jornais volta-ram a tratar de poltica, cautelosamente.35

    33 O deputado federal Mrcio Moreira Alves, do MDB, fez um discurso agressivo contra o Exrcito na Cmara dos Deputados, por isso a tentativa do governo de puni-lo, o que demandava a suspenso das imunidades parlamentares com aprovao do Congresso. Os textos a mencionarem o caso, em geral, destacam que a parte mais polmica do discurso foi quando sugeriu s mulheres boicotarem os jovens ociais. No entanto, o ponto que realmente desagradou os militares foi a armao de que o Exrcito havia se transformado em valhacouto de torturadores. Editorial de O Estado de S. Paulo, 5/11/1968.34 O cuidado em cultivar bom relacionamento com os governos autoritrios, provavelmente, tinha relao com o perodo estrategicamente importante vivido pela empresa, que, ento, construa seu imprio miditico.35 Logo a seguir entrariam em ao os censores prossionais da Diviso de Censura da Polcia Federal, embora o governo sempre negasse a existncia de censura de natureza poltica. Formalmente, a legislao do regime militar garantia a liberda-de de imprensa, salvo em situaes de atentado moral e aos bons costumes e de propaganda de ideias visando subverso da ordem. Na prtica, a censura imprensa foi realizada de maneira informal, ao arrepio do aparato legal.

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    No caso do Estado, a sua ltima manifestao poltica foi no dia 13 de dezembro, com o famoso editorial Instituies em frangalhos, que levou apreenso da edio. No texto, Jlio de Mesquita Filho fez crtica demolidora ao governo Costa e Silva, responsabilizando-o pela crise e pela derrota do pedido para punir o deputado Mrcio Moreira Alves.36 Segundo Mesquita Filho, o fracassado governo no tinha apoio da opinio pblica e nem do Congresso, e o regime estaria por um o, em vias de ser desmantelado. A interveno no jornal coincidiu com a enfermidade de Mesquita Filho, que parou de escrever os editoriais e morreu em poucos meses.

    Quanto ao Jornal do Brasil, a partir de maio de 1969 alguns editoriais apresentaram crticas leves ao governo, defendendo o retorno ao estado de direito. Em 21 de maio de 1969, editorial do JB armou que os brasileiros seriam democratas por convico e apenas tolerariam (com resignao impaciente) as interrupes da liberdade, desejando sua plena recuperao. O tom no de ataque pesado ao Estado, eles procuraram construir o texto com cuidado; mas criticaram o que consideravam excessivo cercea-mento das liberdades individuais.

    A Folha de S.Paulo foi mais cautelosa que o JB, e mais simptica ao novo presidente, Emlio G. Mdici, que foi recebido com elogios e at uma charge amigvel (gura 33). No entanto, o editorial (30/10/1969) que acompanha a charge falou do otimismo e das expectativas positivas geradas pelo dis-curso de posse de Mdici, que prometera restabelecer a plena normalidade democrtica. Sutilmente, o editorial mencionou a importncia do Poder Legislativo que, apesar das vicissitudes, na opinio do jornal continua sendo o rgo mais representativo da opinio nacional.

    Embora desaprovassem o AI-5, o JB, a FSP e OESP no desejavam romper com o regime e esta-vam dispostos a acomodar-se com a nova situao, principalmente quando cou claro que a economia entrara em ritmo vertiginoso de crescimento. Mesmo assim, o JB publicou crticas contra a violncia estatal e a tortura, como no editorial de 3 de dezembro de 1969 que, a propsito de episdio de violncia policial contra conhecido tenista, armou: espancamentos e torturas no podem ser tolerados, em caso nenhum. O texto no falou da tortura contra adversrios polticos, mas evidente que isso estava nas entrelinhas.

    Sem surpresa, dado o tom de seus editoriais de 1968, O Globo foi o dirio mais simptico ao AI-5, o que tornava desnecessrio enviar censores militares para sua redao. O jornal de Roberto Marinho evitou defesa aberta do novo AI e optou por linha cuidadosa, provavelmente para no agredir a opinio liberal. Mesmo evitando aderir inteiramente ao projeto ditatorial, as manifestaes do jornal em 1969

    36 O Estado defendia que o deputado merecia punio para desagravar a honra militar (editorial de 5/11/1968) e, com isso, pagava tributo a suas ligaes nos meios castrenses. Mas o jornal entendia que o caso no justicava o choque com o Congresso e uma crise de tamanhas propores.

    Figura 33: Orlando MattosFonte: Folha de S.Paulo (30 out. 1969).

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    mostraram manuteno do apoio ao regime. Editorial publicado em 4 de janeiro de 1969 xou a po-sio do jornal sobre o Ato. De acordo com o texto, O Globo nem apoiava nem condenava o AI-5, que poderia ser instrumento positivo caso bem utilizado pelo governo; mas, advertindo Costa e Silva, dizia ter sido escolha arriscada, pois se tratava do ltimo recurso do regime, que no teria mais margem para erro. Embora criticasse o que considerava alguns excessos repressivos, como a ofensiva macartista con-tra o Itamaraty, o jornal seguiu sustentando o regime, clamando pela unio da famlia revolucionria e convocando o governo a trabalhar pela nao, tirando proveito da compreenso do povo, que aceitaria como transio, como mal necessrio, uma fase de reajuste.37

    No caso de UH e CM, o AI-5 signicou o incio do m, que viria em pouco tempo. Os editores do CM tentaram enganar a censura, fazendo uma edio em 7 de janeiro de 196938 com textos que denunciavam a situao opressiva, sem mostrar as provas da impresso para os ociais de planto. V-rios jornalistas foram presos e tambm a dona do jornal, Niomar Sodr. Os proprietrios de CM e UH acabaram por desanimar ante as diculdades do novo quadro, em que um cerco nanceiro organizado pela ditadura se combinou com o acirramento da concorrncia no mercado jornalstico. Ambos foram vendidos e, com suas linhas editoriais desguradas, acabaram fechando as portas.

    No que toca s caricaturas publicadas aps 13 de dezembro de 1968 e ao longo de 1969, percebe-se o mesmo efeito devastador observado nos textos verbais. Desenhistas que antes criticavam em termos cidos o regime militar passaram a tratar de temas andinos e corriqueiros (o calor, o trnsito, os bura-cos no asfalto). Alis, a situao complicada dos chargistas foi retratada em desenhos que mencionavam as diculdades do seu trabalho no novo contexto (gura 34). O nico tema poltico passvel de abor-dagem com menores riscos era o sistema partidrio, pedra de toque no discurso governista que negava a existncia da ditadura. No imediato ps-AI-5 o Congresso cou suspenso por vrios meses e essa es-pcie de estado de coma foi mencionada, com aluses sutis falta de perspectivas quanto ao futuro (a gura 35 retrata a renncia do senador Daniel Krieger presidncia da Arena e tambm vida pblica, e a gura 36 usa metfora infantil para mencionar, ironicamente, a incerteza sobre a continuidade do jogo partidrio).

    37 Editoriais de 11/2 e 25/1/1969.38 ANDRADE, Jeerson de; SILVEIRA, Joel. Um jornal assassinado: a ltima batalha do Correio da Manh. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1991. p. 42-44.

    Figura 34: JaguarFonte: ltima Hora (25 fev. 1969).

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    Entretanto, mesmo na situao de censura e insegurana reinantes, alguns chargistas conseguiram publicar mensagens visuais sobre temas politicamente delicados, embutindo crticas nas entrelinhas (ou nos entretraos). Essas caricaturas, embora muito sutis, so particularmente signicativas porque os editoriais polticos praticamente desapareceram em 1969. Alguns exemplos: utilizando o carnaval como metfora, era possvel sugerir a melancolia trazida pelo AI-5 (gura 37), assim como usar a baixa qualidade da programao televisiva para citar a presena da tortura, que era escamoteada pelo governo (gura 38); como era proibido noticiar as aes da esquerda armada, por vezes foram feitas aluses indi-retas, como a charge sobre um homem armado querendo passagem para Havana (gura 39); e a gura de Tiradentes serviu para evocar os discursos e prticas antissubversivas do governo, questionando o nacionalismo ocial (gura 40), enquanto Tio Patinhas foi utilizado para mencionar, ironicamente, a presena do capitalismo norte-americano (gura 41). Enm, os artistas do lpis encontraram meios sutis para contornar a censura, levando ao limite sua capacidade de criatividade a servio do humor po-ltico. Nessa linha, por vezes, seu trabalho tornou-se um espao de resistncia ao autoritarismo, embora seja ingnuo supor uma recepo unvoca do pblico.

    Figura 35: HildeFonte: O Estado de S. Paulo (10 jan. 1969).

    Figura 36: Orlando MattosFonte: Folha de S.Paulo (27 abr. 1969).

    Figura 37: LanFonte: Jornal do Brasil (11 fev. 1969).

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    Figura 38: LanFonte: Jornal do Brasil (11 dez. 1969).

    Figura 39: LanFonte: Jornal do Brasil (15 nov. 1969).

    Figura 40: JaguarFonte: ltima Hora (21 abr. 1969).

    Figura 41: AnnimoFonte: Correio da Manh (13 jun. 1969).

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    Para nalizar, algumas consideraes sobre os discursos da imprensa e as tentativas de construir consenso em torno da ditadura. Mesmo se desprezssemos a inuncia dos dirios de oposio para levar em conta apenas os jornais revolucionrios, a questo do consenso autoritrio permaneceria complexa. Todos os jornais da grande imprensa professavam valores democrticos e liberais, que eram apresentados como fontes originadoras do regime de 1964, de modo que no se empolgaram (e por vezes se opuseram) com o surto ditatorial de dezembro de 1968. Quando os militares pretenderam implantar uma ditadura sem rebuos, livre de compromissos com as instituies e valores liberais, eles encontraram fraco apoio na imprensa. Mesmo o dcil O Globo temperava seu apoio ao AI-5 com decla-raes de f liberal, sugerindo que aceitava a situao autoritria como recurso passageiro.

    Certamente, havia virtual consenso na grande imprensa quanto a polticas anticomunistas e antis-subversivas, tanto em 1964 quanto em 1969. Porm, a maior parte dos dirios achava que a represso poderia ser compatvel com respeito s instituies e, em caso de supresso destas, que o perodo de exceo fosse breve. Exatamente pela falta de consenso em torno de programa autoritrio claro, e por causa das representaes em torno dos chamados ideais liberais de 1964, todos os presidentes militares zeram promessas de retorno democracia plena, mesmo quando se ocupavam de golpe-la. Por isso, tambm, a preocupao demonstrada pelos lderes dos sucessivos governos em negar que o regime fosse uma ditadura.

    Os jornais da grande imprensa no se empolgaram com a obra poltica dos militares, principalmente quando a censura afetou sua liberdade, e evitaram adeso aos valores autoritrios. A falta de entusiasmo da imprensa em relao ditadura e as crticas ocasionais tiveram o efeito de colocar sob tenso o expe-rimento ditatorial, fortalecendo os argumentos da ala liberal do regime que pressionava por moderao. Porm, se verdade que a imprensa no apoiou integralmente o projeto ditatorial, salvo nos primeiros meses aps o Golpe, tambm no lhe fez oposio frontal, nem se disps a enfrentar o regime, exceto ltima Hora e Correio da Manh. Os grandes jornais, na maioria, se acomodaram situao poltica, comportamento, alis, comum na nossa cultura poltica.

    Em linhas gerais, os grandes dirios compactuaram com o regime e se adaptaram situao auto-ritria, notadamente quando o quadro econmico da primeira metade dos anos 1970 gerou nova fonte de legitimidade para a ditadura. Com isso, a imprensa contribuiu indiretamente para a continuidade do regime militar, embora alguns de seus veculos preram, hoje, cultivar outro tipo de memria sobre o perodo.