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A DITADURA BRASILEIRA EM OBRAS DE AUTORIA FEMININA: TESTEMUNHO E MEMÓRIA THE DICTATORSHIP IN BRAZILIAN WOMEN WORKS AUTHOR: TESTIMONY AND MEMORY Cecil Jeanine Albert Zinani 1 RESUMO: A ditadura, como um acontecimento excepcional, tornou-se tema de discussão em muitas áreas, inclusive na literatura. Contemporaneamente, essa reflexão tem como foco manter viva a lembrança de eventos, a fim de que não se repitam. Nesse sentido, as obras A doce canção de Caetana, de Nélida Piñon, e Tropical sol da liberdade, de Ana Maria Machado, contribuem para atingir esse objetivo, abordando a temática da ditadura, no romance de Piñon, por meio de uma visão a distância; no de Ana Maria Machado, pela vivência cotidiana, com o exame da questão do exílio. Palavras-chave: Ditadura. Memória e testemunho. Exílio. ABSTRACT: Dictatorships, as exceptional events, have become theme of discussion in many areas, including literature. Contemporarily, this reflection has as its focus keeping the remembrance of events alive, so as not to repeat themselves. In this sense, the books A doce canção de Caetana, by Nélida Piñon, and Tropical sol da liberdade, by Ana Maria Machado, contribute to reach this goal, by aproaching the theme of dictatorship, in Piñon’s novel, through a distant view; in Ana Maria Machado’s, through everyday living, with the examination of the issue of exile. Keywords: Dictatorship. Memory and testimony. Exile. 1 INTRODUÇÃO O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência, a memória e a história, porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade) Beatriz Sarlo O sobrevivente, aquele que passou por um “evento” e viu a morte de perto, desperta uma modalidade de recepção nos seus leitores que mobiliza a empatia na mesma medida em que desarma a incredulidade. Márcio Seligmann-Silva 1 Professora nos Programas de Pós-Graduação Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade e Doutorado em Letras e do Curso de Letras da Universidade de Caxias do Sul. Pesquisadora na mesma Universidade. E-mail: [email protected].

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  • A DITADURA BRASILEIRA EM OBRAS DE AUTORIA FEMININA:

    TESTEMUNHO E MEMRIA

    THE DICTATORSHIP IN BRAZILIAN WOMEN WORKS AUTHOR:

    TESTIMONY AND MEMORY

    Cecil Jeanine Albert Zinani1

    RESUMO: A ditadura, como um acontecimento excepcional, tornou-se tema de discusso em muitas

    reas, inclusive na literatura. Contemporaneamente, essa reflexo tem como foco manter viva a

    lembrana de eventos, a fim de que no se repitam. Nesse sentido, as obras A doce cano de Caetana, de

    Nlida Pion, e Tropical sol da liberdade, de Ana Maria Machado, contribuem para atingir esse objetivo,

    abordando a temtica da ditadura, no romance de Pion, por meio de uma viso a distncia; no de Ana

    Maria Machado, pela vivncia cotidiana, com o exame da questo do exlio.

    Palavras-chave: Ditadura. Memria e testemunho. Exlio.

    ABSTRACT: Dictatorships, as exceptional events, have become theme of discussion in many areas,

    including literature. Contemporarily, this reflection has as its focus keeping the remembrance of events

    alive, so as not to repeat themselves. In this sense, the books A doce cano de Caetana, by Nlida Pion,

    and Tropical sol da liberdade, by Ana Maria Machado, contribute to reach this goal, by aproaching the

    theme of dictatorship, in Pions novel, through a distant view; in Ana Maria Machados, through everyday living, with the examination of the issue of exile.

    Keywords: Dictatorship. Memory and testimony. Exile.

    1 INTRODUO

    O passado sempre conflituoso. A ele se referem, em

    concorrncia, a memria e a histria, porque nem sempre a

    histria consegue acreditar na memria, e a memria

    desconfia de uma reconstituio que no coloque em seu

    centro os direitos da lembrana (direitos de vida, de justia, de

    subjetividade)

    Beatriz Sarlo

    O sobrevivente, aquele que passou por um evento e viu a morte de perto, desperta uma modalidade de recepo nos seus

    leitores que mobiliza a empatia na mesma medida em que

    desarma a incredulidade.

    Mrcio Seligmann-Silva

    1 Professora nos Programas de Ps-Graduao Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade e Doutorado

    em Letras e do Curso de Letras da Universidade de Caxias do Sul. Pesquisadora na mesma Universidade.

    E-mail: [email protected].

  • Acontecimentos excepcionais, como a ocorrncia de grandes guerras,

    catstrofes, revolues, convertem-se em tema de reflexo, no apenas da histria,

    porm de numerosas reas do conhecimento, tais como filosofia, sociologia, cincia

    poltica, psicologia, entre outras, procurando investigar causas, processos e efeitos

    dessas situaes infaustas, na tentativa de, primeiramente, resgatar a memria dos

    eventos, e, posteriormente, melhor dimensionar as consequncias desses fatos no

    cotidiano das pessoas bem como na trajetria da humanidade. A literatura, na qualidade

    de arte que promove uma modalidade de conhecimento do ser humano sobre si mesmo

    e sobre o outro, tambm se apropria dessa temtica, contribuindo tanto para o

    desenvolvimento de uma conscincia crtica quanto para a construo e permanncia da

    memria.

    Muito embora o tema ditadura seja considerado eminentemente masculino,

    vozes femininas tm contribudo para a reflexo, com a publicao de ensaios

    relevantes, em que discutem questes cruciais como o exlio2, corolrio da ditadura, ou

    com a escrita de narrativas, em que so relatadas experincias muito significativas que

    envolveram tanto a vida privada como o fazer pblico. Como a ditadura um fenmeno

    bastante comum, especialmente, na Amrica Latina, h muitas escritoras que se

    dedicam ao tema. Entre elas, possvel destacar, por exemplo, Elsa Osorio que, no

    romance H vinte anos, Luz (1999), rememora um dos captulos mais dramticos da

    ditadura argentina que foi o roubo de crianas e o relevante papel do movimento das

    Mes e Avs da Praa de Mayo, no sentido de tentar reaver seus filhos e netos,

    devolvendo-lhes a identidade que fora usurpada pelas foras da represso. Outro

    romance muito importante sobre a ditadura argentina foi escrito por Luisa Valenzuela,

    trata-se de Romance negro com argentinos (2001), que aborda o tema por meio da

    memria, na medida em que elementos da realidade novaiorquina evocam passagens,

    inclusive, da Guerra das Malvinas. A ditadura chilena mote para Marcela Serrano,

    Isabel Allende, por exemplo, que focalizam, entre outras temticas, a questo do exlio.

    A Nicargua foi palco de uma ditadura sangrenta, patrocinada pelo cl dos Somoza, e

    teve em Gioconda Belli uma voz relevante na obra A mulher habitada (2000), que

    2 Sobre a questo do exlio ver ROLLEMBERG, Denise. Exlio. Refazendo identidades. Revista da

    Associao Brasileira de Histria Oral. n 2. Rio de Janeiro, jun. 1999. p. 39-73.

  • apresenta, paralelamente, o perodo da conquista espanhola e a ditadura do sculo XX.

    Emblemtico foi o papel das irms Mirabal, em sua oposio ao regime do general

    Trujillo, na Repblica Dominicana, resgatado por Julia Alvarez, na obra No tempo das

    borboletas (2001). Essas obras so elaboradas com a utilizao de processos narrativos

    sofisticados em que focalizao, espao, tempo, personagens apresentam uma estrutura

    complexa, abrindo espao, inclusive, para aspectos do inslito e do fantstico. As

    representaes da ditadura, realizadas por escritoras, no se restringem a expresses

    confessionais, porm abordam aspectos como represso, exlio, tortura.

    No Brasil, Nlida Pion e Ana Maria Machado, entre outras autoras,

    ficcionalizam a ditadura em obras publicadas na dcada de oitenta do sculo XX, de

    perspectivas bastante diversas. Enquanto Machado evidencia a represso e o exlio na

    figura de personagens, algumas do mundo real, que sofreram a barbrie, Pion ressalta

    ecos do regime poltico instaurado em Braslia que chegam at a longnqua cidade de

    Trindade e o descrdito alienante, resultado da propaganda do governo, ancorada na

    vitria do Brasil na Copa do Mundo de 1970. A partir dessa perspectiva, este estudo tem

    o propsito de verificar de que maneira a ditadura brasileira foi representada

    ficcionalmente pelas autoras, valendo-se de aspectos relacionados memria e ao

    testemunho.

    2 TESTEMUNHO E MEMRIA

    A memria sempre foi um aspecto relevante, ligada a eventos que produziram

    intensa comoo tanto naqueles que vivenciaram diretamente os fatos, quanto nos

    descendentes ou nos amigos das vtimas. Na histria recente, o genocdio do povo judeu

    produziu um abalo profundo, cujos estudos, at os dias atuais, alm de manter vivo o

    acontecimento, investigam o impacto desse fato nos sobreviventes e em seus

    descendentes. Coincidentemente, no mesmo perodo, a onda de ditaduras que se abateu

    sobre muitos pases da Amrica Central e do Sul, na segunda metade do sculo XX,

    tambm se tornou objeto de discusso e reflexo, originando diversos movimentos,

    entre eles, o Nunca Mais, na Argentina.

    A identidade social, como apontado por Pollak (1992), relaciona-se memria,

    que pode ser um fenmeno individual, ou, como considera Halbwachs (2006), coletivo.

  • No caso das grandes catstrofes, essa memria construda pelos participantes dos

    eventos de uma maneira peculiar. Na verdade, cada indivduo possui seus prprios

    registros de memria, os quais apresentam elementos semelhantes que podem ser

    constatados na memria de outros, formando uma espcie de fenmeno coletivo. O

    autor considera, como elementos constituintes da memria, os fatos efetivamente

    vivenciados pelo indivduo e, posteriormente, os eventos no presenciados, mas que o

    afetaram de alguma maneira por terem atingido seu grupo. Outro aspecto importante

    elencado refere-se constituio da memria por pessoas, personagens e lugares. Esses

    fatores acontecimentos, personagens e lugares podem ter existncia real ou, como

    ressalta Pollak, ser uma criao do imaginrio, na medida em que se constituem como

    projeo de outros acontecimentos, personagens ou lugares. Afirma o autor: [...] a

    memria um fenmeno construdo social e individualmente, quando se trata da

    memria herdada, podemos tambm dizer que h uma ligao fenomenolgica muito

    estreita entre memria e o sentimento de identidade (POLLAK, 1992, p. 204). No caso

    de ser considerada como um fenmeno coletivo, a memria tambm responsvel pela

    identidade do grupo. Nesse sentido, ressalta-se a relevncia da literatura que, por meio

    da fico, pode atuar como mantenedora da memria, auxiliando tanto na constituio

    quanto na manuteno da identidade de um grupo.

    Nos romances em estudo, escritos quase no final da dcada de 1980, j com um

    olhar crtico sobre os vinte anos de ditadura, h a reconstruo, pela via ficcional, de

    acontecimentos, lugares e personagens, reconstituindo a memria tanto daqueles que

    estavam no centro dos fatos, como ocorre com Tropical sol da liberdade, quanto dos

    que estavam distantes e que viveram por tabela os eventos, como em A doce cano

    de Caetana. Essa viso crtica possibilita, tambm, a desconstruo da iluso romntica

    de que, na realidade, nada estava ocorrendo, assinalando a alienao daquelas pessoas

    como o motivo que as tornou coniventes com o regime, ou, ainda, de que os exilados

    constituam uma famlia generosa com seus prprios membros. A obra de Machado

    utiliza a memria como resistncia e tambm como modalidade de constituio da

    identidade, na medida em que a personagem Lena, juntamente com a me, reorganiza o

    passado, buscando entend-lo e preserv-lo ou, como considera Seligmann-Silva (2003,

    p. 380), aquilo que transcende a verossimilhana exige uma reformulao artstica para

    sua transmisso.

  • O testemunho, ao dar voz subjetividade, contribuiu para organizar a memria

    dos fatos e tambm a histria, ainda que o discurso em primeira pessoa, sem

    comprovao, possa ser questionvel. Muito embora o testemunho pressuponha o

    conhecimento direto do fato, o processo narrativo utilizado para transmitir essa

    experincia problemtico, pois, de acordo com Sarlo (2007, p. 25), a narrao

    inscreve a experincia numa temporalidade que no a de seu acontecer (ameaado

    desde seu prprio comeo pela passagem do tempo e pelo irrepetvel), mas de sua

    lembrana. Dessa maneira, segue a autora, a narrativa do testemunho instaura um

    processo temporal que se transforma a cada repetio. A esse respeito Sarlo (2007, p.

    24) considera que

    a narrao da experincia est unida ao corpo e voz, a uma presena real do sujeito na cena do passado. No h testemunho sem experincia, mas

    tampouco experincia sem narrao: a linguagem liberta o aspecto mudo da

    experincia, redime-a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a

    transforma no comunicvel, isto , no comum (grifo da autora).

    A literatura de testemunho, para Seligmann-Silva (2003, p. 373), uma face da

    literatura que vem tona na nossa poca de catstrofes e faz com que toda a histria da

    literatura aps 200 anos de auto-referncia seja revista a partir do questionamento de

    sua relao e do seu compromisso com o real. O termo real encontra-se assinalado

    para indicar que est sendo utilizado num sentido diferente daquele do romance realista

    e naturalista. Real, na acepo do autor, relaciona-se ao entendimento de trauma como

    um evento que justamente resiste representao (id. ib).

    Em seu estudo sobre a Shoah, o autor relata casos de escritores, vtimas de

    campos de concentrao, que precisaram utilizar a fico para darem seus testemunhos

    sobre os fatos que presenciaram, pois, apenas a passagem pela imaginao poderia dar

    conta daquilo que escapa ao conceito (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 380).

    Prossegue o autor: Mas a imaginao no deve ser confundida com a imagem: o que

    conta a capacidade de criar imagens, comparaes e sobretudo de evocar o que no

    pode ser diretamente apresentado e muito menos representado (id. ib.). Paralelizando

    com o caso brasileiro, a obra de Ana Maria Machado, ao trabalhar com a literatura,

    evoca a tortura e o exlio como modalidade de reelaborar o passado, sublimando-o por

    meio da pea teatral que a protagonista est escrevendo. De outra forma, memria e

  • testemunho, tratados por um vis irnico, podem ser observados na obra a doce cano

    de Caetana, objeto do prximo segmento.

    3 A DOCE CANO DE CAETANA: ENTRE SIMULACRO E ALIENAO

    A ironia uma potente mquina de desleitura..., assim Seligmann-Silva (2003,

    p. 371) inicia a discusso sobre o testemunho em obras de fico. Continua o autor, a

    leitura do texto irnico portanto vertiginosa, porque a todo o momento o cho sobre o

    qual ele trilha comea a ruir. [...] Podemos dizer, portanto, que a ironia implode a leitura

    na medida em que obscurece e desarticula as funes referenciais e comunicativas do

    discurso (2003, p. 371-372). Nada mais elucidativo que essas observaes para

    proceder leitura da obra A doce cano de Caetana, de Nlida Pion, tendo como foco

    a ditadura militar brasileira.

    Publicada em 1987, a obra A doce cano de Caetana apresenta o enredo

    ambientado numa pequena cidade, nos confins do Brasil, chamada Trindade, e gira em

    torno de uma atriz de circo mambembe, Caetana, que, aps 20 anos, decide voltar a essa

    cidadezinha. O retorno coincide com a realizao da Copa do Mundo de 1970, que

    sagraria o Brasil como tricampeo mundial. O ambiente de euforia, as personagens,

    embaladas pelo propalado milagre brasileiro e pelo sucesso da seleo, vivem em estado

    de alienao, negando quaisquer evidncias que se oponham a essa realidade imaginada.

    A obra de Pion vale-se do motivo do duplo, na modalidade de simulacro, para

    apresentar, de forma alegrica, aspectos relevantes da histria recente e, assim, manter a

    memria da ditadura brasileira, especialmente, de sua repercusso nos lugares mais

    ermos do territrio nacional. O enredo desenvolve-se com a exposio, em primeiro

    plano, do projeto de Caetana ao voltar para Trindade: encenar a pera La traviatta, de

    Giuseppe Verdi, tornando-se um simulacro (portanto, um duplo) de Maria Callas,

    soprano de muito sucesso e presena relevante no setor operstico a poca. Esse projeto

    envolve, especialmente, seu ex-amante Polidoro, espcie de coronel interiorano, o qual

    detentor dos recursos financeiros e do poder poltico que possibilitam a realizao do

    sonho da artista circense, configurando uma situao totalmente impossvel. Num

    segundo plano, esto os acontecimentos da cidade, entusiasmada com a atuao de Pel

  • e da seleo brasileira, entrelaados ao apoio enftico ao presidente Mdici e

    contrapostos aos ecos vindos de Braslia.

    A denominao das personagens um aspecto que chama a ateno, pois figuras

    recorrentes do mundo das artes e da mitologia so carnavalizadas, ou, como aponta

    Seligmann-Silva (2003), objeto de ironia : as prostitutas so chamadas de As Trs

    Graas; Virglio o professor; Gioconda (refere-se pera de Donizetti), a dona do

    prostbulo; Narciso, o delegado, entre outros. O nome do prefeito Pentecostes, numa

    aluso festa da Igreja Catlica em que os apstolos se apropriam do conhecimento

    para pregarem a doutrina, instaurando uma leitura irnica, a partir da sandice e da

    alienao dessa personagem, como pode ser constatado em diversas oportunidades, tais

    como esta: em uma festa de casamento, no seu af de tecer elogios ao governo federal,

    ao mesmo tempo em que no apenas agradece como d vivas ao presidente Mdici por

    seu empenho em prol do progresso da nao. Mesclando preferncia futebolstica com

    pretensos acertos polticos, Pentecostes demonstra toda a sua alienao e

    inconvenincia. Os discursos do prefeito, em verdade, replicam uma espcie de senso

    comum do lugarejo. O duplo dessa situao a realidade que emerge vez por outra, na

    fala de alguma personagem que dispe de um nvel maior de conscincia, sobrepondo-

    se alienao geral. Porm, essa aluso sufocada pela satisfao geral, uma vez que o

    povo, ao comungar das idias defendidas pelo prefeito, instaura um retorno a uma

    situao confortvel, sem questionamentos.

    A volta de Caetana cercada por um ritual inslito. Aps receber a carta da atriz

    anunciando seu retorno, Polidoro toma uma srie de providncias: usa sua influncia

    para mudar o trajeto do trem que h oito anos no passa mais por l, pois ela havia

    partido, h vinte anos, utilizando esse transporte; a reforma da sute presidencial do

    hotel Palace, de sua propriedade, com o resgate de mveis e objetos antigos, de modo

    que tudo ficasse exatamente igual ao que era na poca em que a atriz esteve l; a

    transformao da fachada suja e decrpita do cinema decadente, ironicamente chamado

    sis, por meio de painis e pinturas, simulando um teatro grego3, local para a

    apresentao da pera La traviatta, a ser estrelada por Caetana que no sabe cantar, mas

    3 Essa situao configura o efeito Potemkin, em que o general de Catarina, a Grande criou cidades de

    papel para que a soberana, ao passar de trem pelo interior da Rssia, no visse a real situao do pas.

  • que deseja, por uma noite apenas, ser a divina Callas. Ou seja, cria-se uma situao

    totalmente falsa, rplica de uma situao que no existe em que a iluso ocupa o lugar

    da realidade, negando-a. Essa modalidade de perceber a realidade configura uma

    representao do duplo, como apresentado por Clment Rosset. Ao discorrer sobre o

    duplo como conseqncia da negao do real, Rosset (1998, p. 11) afirma que nada

    mais frgil do que a faculdade humana de admitir a realidade, de aceitar sem reservas a

    imperiosa prerrogativa do real, argumentando que esse real s admitido sob certas

    condies e at certo ponto (id. ib.), o que significa que a realidade percebida de

    modo tal que possa ser suspensa ou transformada de acordo com as circunstncias.

    Rosset atribui essa capacidade a um mecanismo de defesa, inerente ao ser humano,

    como modalidade de proteger-se contra fatos desagradveis. A problemtica do duplo

    pode ser percebida em relao personagem, recriao do ambiente e histria do

    pas.

    A sociedade que se desenha em Trindade pode ser lida como uma alegoria do

    pas. Na situao real, existem problemas srios, com violao de direitos humanos,

    censura da imprensa, arrocho salarial, os quais so disfarados pela propaganda oficial

    que propala o milagre brasileiro, o ufanismo nacionalista, por meio do slogan Brasil:

    ame-o ou deixe-o, e a nfase no futebol. Nesse sentido, a narrativa desenvolve-se em

    duas camadas distintas, a aparente, cuja histria ocorre na cidadezinha, e a latente, que

    conta a histria do pas, utilizando um processo narrativo fragmentrio e obscuro,

    remetendo tambm para o duplo. A esse respeito, so oportunas as observaes de

    Piglia (1994, p. 38) relacionadas ao conto, o qual, na sua perspectiva, sempre conta duas

    hstrias. Nesse sentido, considera que cada uma das histrias contada de maneira

    diferente. Trabalhar com duas histrias significa trabalhar com dois sistemas diversos

    de causalidade. No caso da obra, as duas histrias esto interligadas, havendo

    reciprocidade de interveno, ou seja, a segunda histria, secreta, a princpio, resvala

    para dentro da primeira, alterando a percepo dos acontecimentos, possibilitando outra

    leitura.

    A televiso apontada como modalidade alienao, pois desde o advento das

    telenovelas os vizinhos entretinham-se em esquecer suas vidas... (PION, 1997, p.

    50), e compara, promovendo a emergncia da segunda histria: E a prpria poltica,

  • antes uma prtica pblica perdera o lastro da paixo aps a ocupao de Braslia pelos

    militares (PION, 1997, p. 51). Continua:

    Murmurava-se at que em certas capitais aplicavam-se torturas cruis contra

    estudantes e comunistas. Ningum, porm, dava f a uma calnia assacada

    contra o presidente Mdici, o mais simptico general da revoluo, s

    vsperas de ter seu nome para sempre associado prxima conquista do

    tricampeonato no Mxico (PION, 1997, p. 51).

    As vozes discordantes so uma realidade, no entanto, perdem-se no alarido do

    povaru que aplaude a seleo brasileira, dominante na primeira histria. Entre essas

    vozes, encontra-se o professor Virglio que protesta ante o viva ao presidente Mdici

    (PION, 1997, p. 151), de Francisco, funcionrio do hotel, constrangendo-se com a

    saudao a uma ditadura que nos anos vindouros viria a sofrer o antema da histria

    (id. ib.).

    A ideia de simulacro perpassa tanto a apresentao de Caetana quanto a poltica.

    Remodelada a fachada do cinema, numa rplica de teatro grego, ocorre a apresentao

    de Caetana. O elenco da pera formado por amigos de Polidoro, entre eles o

    farmacutico Ernesto e o professor Virglio, e pelas prostitutas da casa de Gioconda,

    amigas da artista. Um acompanhante de Caetana, Balinho, o encarregado de tocar a

    vitrola com o disco da pera. Antes do final do primeiro ato, o delegado Narciso,

    subornado pela esposa de Polidoro, desliga o aparelho e quebra o disco, deixando as

    personagens sem ao. Descoberta a fraude, Caetana e seu grupo partem na boleia do

    caminho que os conduzira a Trindade.

    Na verdade, a mistificao encenada por Caetana no diferente da que envolveu

    grande parcela do pas na poca. Embalado ao som de Noventa milhes em ao, pra

    frente, Brasil, hino oficial da seleo brasileira, o povo acreditava que estivesse numa

    verdadeira corrente pra frente, negando-se a ver o pas real, como testemunhara

    Caetana, quando afirmava que conhecia a verdadeira histria do Brasil, os rostos

    descarnados e resignados que vimos por essas estradas. S encontrvamos homens

    condenados ao esquecimento. Quem lhes contaria a prpria histria ou falaria deles

    depois de mortos? (PION, 1997, p. 112). A vida circense, perambulando pelos mais

    recnditos lugares do pas, dotara Caetana de um apurado conhecimento da realidade,

    impensvel por grande parte dos habitantes de Trindade e, por extenso, do Brasil,

    intoxicados por um patriotismo de fachada, sustentado pela censura, pela propaganda

  • oficial e, em especial, pelo sucesso no futebol. Assim como falsa a cantora e sua

    apresentao, tambm mentirosa a situao do pas, no entanto, a cantora foi

    desmascarada de imediato, e a situao do Brasil levaria alguns anos ainda para se

    revelar.

    4 TROPICAL SOL DA LIBERDADE: O EXLIO E A IDENTIDADE PERDIDA

    Ana Maria Machado, celebrada autora de literatura infantil, investe, nessa obra,

    escrita em 1988, no tema da ditadura. Inversamente ao que ocorre na obra de Pion,

    essa temtica sai da segunda histria para assomar ao primeiro plano. A narrativa se

    desenvolve como tentativa de preservar a memria, por meio de uma pea teatral que a

    protagonista Lana, jornalista e militante de esquerda em 1964, pretende escrever. Para

    concretizar esse objetivo, Lana vale-se de inmeros testemunhos de amigos e colegas do

    meio jornalstico que sofreram represso, foram sequestrados, exilados. Mesclando

    personagens histricas e criaes ficcionais, a narradora resgata aspectos contundentes

    da ditadura brasileira e seu impacto na vida, inclusive, de cidados comuns.

    O ttulo da obra remete a dois aspectos significativos da nacionalidade: o hino

    nacional, smbolo da ptria por excelncia, e o movimento musical denominado

    Tropicalismo, que se revestiu, na poca, de esprito nacionalista, considerado

    subversivo pelo regime institudo e alienado pelos opositores da ditadura. Fragmentos

    da letra do hino nacional e de msicas da poca, incluindo enredos de escolas de samba,

    constituem mote para reflexes de Lena que, na casa de praia da me, rememora a vida

    passada, enquanto se restabelece de uma fratura no p que lhe tolhe os movimentos. O

    poema de Gonalves Dias remete ao exlio, distante nesse momento, mas que ainda

    reverbera dolorosamente e traz inmeras recordaes dos amigos e conhecidos que

    foram obrigados a se afastarem do pas, ou dos que assim agiram voluntariamente, e as

    consequncias que sobrevieram. Com a redemocratizao, muitos exilados resolveram

    no retornar mais como o caso da amiga Maria que no v mais razo para voltar ao

    Brasil, j que os pais morreram, os filhos casaram na Itlia e l nasceram os netos,

    afirma: As pessoas que mais amo esto aqui (MACHADO, 2005, p. 33). O marido

    enfatiza seu gosto por futebol e msica brasileira dizendo: Todos os craques do Brasil

  • esto jogando na Itlia. [...] Aqui que o dia todo se toca msica nossa. Que que vou

    fazer l? (MACHADO, 2005, p. 34).

    O exlio configurou-se como uma questo muito difcil de ser equacionada,

    devido aos problemas relacionados cultura e ao modo de vida dos pases que

    abrigaram os exilados. Rollemberg (2008) assinala que a privao da lngua materna foi

    o maior choque a que os exilados foram expostos. Constituiu grande dificuldade o fato

    de estar num lugar ao qual essas pessoas no pertenciam. No retorno, quando isso foi

    possvel, houve a sensao de estranhamento, uma vez que o pas era outro, as pessoas

    tambm estavam diferentes, ou seja, a permanncia do sentimento de no-pertencimento

    a lugar algum desestabilizou a identidade das vtimas. Era impossvel a realizao

    pessoal na ptria de adoo por falta de identificao, o mesmo ocorrendo em relao ao

    pas natal que no dispe da segurana, da educao e do desenvolvimento existentes

    nos pases que os receberam. Rollemberg (2008) aponta a crise de identidade que afetou

    as pessoas no exlio, ressaltando o comprometimento psicolgico, para quem o dia-a-

    dia foi um drama insuportvel, que levou, no limite, loucura ou at mesmo ao suicdio,

    evidenciando o quo dilacerante a dor do exlio pode ser (p. 3-4). Nas anotaes de

    Lena para a escrita da pea, est o caso de frei Tito que no suportou a devastao

    psicolgica causada pelo exlio, enforcando-se num convento prximo a Lyon. Esse

    mesmo fato citado por Rollemberg (2008, p. 21) que menciona tambm o caso de

    Dora, libertada na mesma poca, que se atirou na linha do metr em Berlim, em 1976

    Lena tambm refere-se s dificuldades de relacionamento entre alguns exilados

    que se sentiram invadidos pela utilizao indevida de seus endereos ou nomes, para

    enviar mensagens comprometedoras ou que constituram verdadeiras mfias,

    prejudicando os companheiros. Rollemberg registra casos dessa natureza, mas tambm

    enfatiza a formao de guetos com a organizao de festas que contriburam para a

    manuteno da identidade. Era uma tentativa de amenizar as inseguranas do exlio, de

    se resguardar da rejeio e dos preconceitos contra o estrangeiro, de evitar o

    estranhamento em relao sociedade, para muitos, de sobreviver (ROLLEMBERG,

    2008, p. 23). Essa modalidade de associao procura, por meio da reunio de pessoas

    que detm um passado comum, a reorientao de suas vidas e, tambm, a reformulao

  • do projeto poltico derrotado (id. ib.), o que possibilitou a organizao de movimentos

    em prol dos direitos humanos, da anistia, entre outros.

    Em meio s recordaes e aos registros de Lena, a pea de teatro comea a se

    materializar. Ao l-la, a me de Lena, Amlia, reconhece a cena, embora os nomes

    sejam outros, lembrando-se do que ocorrera com Lena e o marido, quando amigos

    comuns, tambm brasileiros exilados, haviam espalhado para todo o grupo que Lena e

    Arnaldo eram esquisitos e s poderiam ser espies ou informantes do SNI. Lena, que

    estava grvida, foi despedida da biblioteca e Arnaldo perdeu a bolsa de estudos. Houve

    complicaes na gravidez, e, por falta de recursos, o beb morreu. Nesse nterim, um

    companheiro, a quem Lena havia emprestado dinheiro em confiana, embora estivesse

    numa tima situao em seu retorno ao Brasil, negou-se a devolver o que devia, com a

    seguinte observao: Diz a essa mulher para parar de me encher o saco! No vou pagar

    porra nenhuma... Quem mandou ser otria? Grvida por grvida, Patrcia tambm est

    (MACHADO, 2005, p. 223).

    Outro aspecto lembrado pela protagonista refere-se represso e ao terror

    desencadeado por agentes que perseguiam os militantes mesmo no exlio. Entre eles

    destaca-se a figura histrica do delegado Srgio Fleury, celebrizado pelos mtodos de

    tortura exercida nos pores do DOI/COD. A tortura utilizada, em geral, para obter

    informaes, no entanto, seus efeitos sobre o torturado no cessam com o fim do

    processo. O resultado dessas sesses pode culminar com a morte do torturado ou em um

    trauma que acompanhar a vtima pelo resto de sua vida, como ocorreu com o frei

    dominicano Tito, torturado pelo delegado Fleury.

    5 CONSIDERAES FINAIS

    Nlida Pion e Ana Maria Machado, por meio de A doce cano de Caetana e

    Tropical sol da liberdade, apresentam uma contribuio substantiva, primeiramente, em

    relao escrita feminina, enriquecendo o rol de obras escritas por mulheres,

    comprovando, mais uma vez, que a competncia para produzir literatura de qualidade

  • no prerrogativa masculina. Virgnia Woof (1985) afirmava, no longnquo ano de

    1928, que, se uma mulher tivesse um quarto com chave e 500 libras de renda, poderia

    escrever sua poesia, ou seja, desde que haja condies, a mulher tem, efetivamente,

    capacidade para produzir literatura.

    Em segundo lugar, obras como essas organizam um espao de reflexo que

    possibilitam ampliar a discusso proposta por Sarlo, relativamente ao Nunca Mais, a

    fim de que a lembrana de eventos como o que foi vivenciado no Brasil, a partir de

    1964, permanea presente, constituindo uma memria viva que impea a repetio de

    fatos que tantos problemas e tanto sofrimento causaram a todos os envolvidos. Nesse

    sentido, a fico pode contribuir valiosamente para redimensionar o entendimento de

    eventos que abalaram a nao. A esse respeito, Seligmann-Silva (2003, p. 380)

    considera que apenas a passagem pela imaginao poderia dar conta daquilo que

    escapa ao conceito. [...] aquilo que transcende a verossimilhana exige uma

    reformulao artstica para a sua transmisso. Nesse sentido, a fico, ao reelaborar a

    memria e o testemunho, consegue representar uma experincia que seria intraduzvel

    como captulo da histria.

    Portanto, num perodo em que se rememora um passado problemtico, ao

    lembrar os cinquenta anos de ditadura no Brasil, a revisita desse evento, por meio da

    fico, tanto de carter documental, como na obra de Machado, quanto irnico, como na

    obra de Pion, contribuem no apenas para a compreenso do evento em si, como

    tambm para que no caia no ostracismo, ensejando a repetio da mesma histria.

    REFERNCIAS

    ALVAREZ, Julia. No tempo das borboletas. Traduo de La Viveiros de Castro. Rio

    de Janeiro: Rocco, 2001.

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    HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. Traduo de Beatriz Sidou. So Paulo:

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    Molina. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

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    Vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

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    Rosa Freire dAguiar. So Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

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    VALENZUELA, Luisa. Romance negro com argentinos. Traduo de Paloma Vidal.

    Belo Horizonte: Autntica, 2001.

    WOOF, Virginia. Um teto todo seu. Traduo de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova

    Fronteira, 1985.

    Recebido em 30/04/2014

    Aceito em 30/06/2014