a desconstrução do império e a construção da repúblicaem

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A DESCONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO E A CONSTRUÇÃO DA REPÚBLICAEM NAÇÃO CRIOULA , DE JOSÉ EDUARDO AGUALUSATHE DECONSTRUCTION OF THE EMPIRE AND THE CONSTRUCTIONOF THE REPUBLIC IN NAÇÃO CRIOULA BY JOSÉ EDUADO AGUALUSA Ana Beatriz Demarchi Barel RESUMO Publicado em 1997, Nação crioula, de José Eduardo Agualusa, é uma obra construída sob a aparenteforma de um romance epistolar. Neste romance, no qual a história se articula através dacorrespondência entre um português, sua madrinha francesa, sua amada angolana, e o escritor Eça deQueiróz, o autor se dedica ao exame das relações triangulares entre Portugal, Brasil e África,focalizando o momento de fratura do Império colonial português no Atlântico Sul. A estrutura doromance dialoga com a estrutura política do sistema colonial português e revela, através da obraliterária, as representações, no imaginário lusófono, das relações entre os três continentesneste momento histórico. PALAVRAS-CHAVE Romance Epistolar; Imaginário e Representações; Relações História e Literatura; Colonialismo e Pós-Colonialismo ABSTRACT Published in 1997, Nação crioula by José Eduardo Agualusa, is a work constructed under the apparentform of an epistolary novel. In this novel, in which the story is articulated by the correlation between aPortuguese, the French godmother, his beloved Angolan, and the writer Eça de Queiroz, the authorengaged in the examination of the triangular relations between Portugal, Brazil and Africa, focusingon the moment of fracture of the Portuguese colonial empire in the South Atlantic The structure of thenovel dialogues with the political structure of the Portuguese colonial system and reveals, through theliterary work, the representations in the imaginary lusophone of relations between the threecontinents in this historic moment.

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 A DESCONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO E A CONSTRUÇÃO DA REPÚBLICAEM NAÇÃO CRIOULA, DE JOSÉ EDUARDO AGUALUSATHE DECONSTRUCTION OF THE EMPIRE AND THE CONSTRUCTIONOF THE REPUBLIC IN NAÇÃO CRIOULABY JOSÉ EDUADO AGUALUSAAna Beatriz Demarchi BarelRESUMO Publicado em 1997, Nação crioula,de José Eduardo Agualusa, é uma obra construída sob a aparenteforma de um romance epistolar. Neste romance, no qual a história se articula através dacorrespondência entre um português, sua madrinha francesa, sua amada angolana, e o escritor Eça deQueiróz, o autor se dedica ao exame das relações triangulares entre Portugal, Brasil e África,focalizando o momento de fratura do Império colonial português no Atlântico Sul. A estrutura doromance dialoga com a estrutura política do sistema colonial português e revela, através da obraliterária, as representações, no imaginário lusófono, das relações entre os três continentesneste momento histórico.PALAVRAS-CHAVERomance Epistolar; Imaginário e Representações; Relações História e Literatura; Colonialismo e Pós-ColonialismoABSTRACTPublished in 1997, Nação crioulaby José Eduardo Agualusa, is a work constructed under the apparentform of an epistolary novel. In this novel, in which the story is articulated by the correlation between aPortuguese, the French godmother, his beloved Angolan, and the writer Eça de Queiroz, the authorengaged in the examination of the triangular relations between Portugal, Brazil and Africa, focusingon the moment of fracture of the Portuguese colonial empire in the South Atlantic The structure of thenovel dialogues with the political structure of the Portuguese colonial system and reveals, through theliterary work, the representations in the imaginary lusophone of relations between the threecontinents in this historic moment.KEYWORDSEpistolary novel; Imaginary and Representations; Relations History and Literature; Colonialism andPost-Colonialism“Ao longo de quatro demorados séculos construímos um império, vastíssimo, é certo, masinfelizmente imaginário.”(AGUALUSA, 1997, p. 133)“..Mas que bandeira é estaQue impudente na gávea tripudia?” ( CASTRO ALVES, 1959, p. 362)Publicado em 1997, Nação crioula,de José Eduardo Agualusa, é uma obraconstruída sob a aparente forma de um romance epistolar. Neste romance, no qual ahistória se articula através da correspondência entre um português, sua madrinhafrancesa, sua amada angolana, e o escritor Eça de Queiróz, o autor se dedica aoexame das relações triangulares entre Portugal, Brasil e África, focalizando omomento de fratura do Império colonial português no Atlântico Sul.Original pelo tratamento subversivo

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da estrutura clássica do romanceepistolar, pela visão precisa dos três pilares do colonialismo português e pela leitura

 do mundo que relaciona o universo lusófono à Europa – projeto pouco freqüente naLiteratura de língua portuguesa - Nação crioulailumina os mecanismos que atestama desestruturação do processo colonial português e os elementos que tornarampossíveis o surgimento dos movimentos abolicionistas, a formação doRepublicanismo tanto em Angola quanto no Brasil, a construção do Estado-Naçãopelas elites desses países, a complexa constituição de suas identidades nacionais,assim como suas particularidades, seus paradoxos e suas incongruências.Em Nação crioula, título que retoma o nome do último navio negreiro a teratravessado o Atlântico, realizando a rota do comércio de escravos entre a África e oBrasil, imbricam-se ficção e História a fim de analisar o momento no qual o universolusófono se questiona sobre os caminhos a seguir, por um lado, face àsespecificidades do século XIX e, por outro, face a suas próprias escolhas eprioridades.*O livro do angolano José Eduardo Agualusa, Nação Crioula,ocupa um lugarde destaque nocorpusda Literatura de língua portuguesa contemporânea. Já em sua3ª edição brasileira em 2008, intriga o leitor por sua forma e por seu fundo. O títuloestampado na página de abertura, Nação Crioula, acompanhado pelo aposto ACorrespondência Secreta de Fradique Mendes,e seguido da explicitação do gêneroliterário ao qual o filiou seu autor - romance - , cria a expectativa de umaexperiência de leitura epistolar, sensação que se confirma ao constatarmos, na páginaseguinte, a existência de um índice que remete a um conjunto de capítulosintitulados, todos, cartas.A este aposto, que nos envia ao universo epistolar dos séculos XVIII e XIX,agregam-se ainda duas outras informações que reforçam a base de erudição sobre aqual se alicerça Nação Crioula:a referência a um dos maiores nomes da LiteraturaPortuguesa do século XIX, Eça de Queiróz, e a promessa de revelações sobre um deseus mais bem construídos personagens, Fradique Mendes, ao acenar com a intençãode tornar pública sua correspondência pessoal. Pensamos, assim, estar diante de umromance que retoma os modelos celebrados pelo cânone: grande autor, formatoclássico, discurso metaliterário.No entanto, viradas as primeiras páginas, chegamos ao corpo do livro, quesurpreende, obrigando-nos a rever todos os critérios elencados até o momento,devido à originalidade do tratamento dado a estes elementos. E o leitor dá-se contade estar, certamente, diante, senão de uma grande obra, ao menos, de um excelenteexemplar de romance histórico contemporâneo.*

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A idéia de ter nas mãos mais um romance epistolar ou de missivas de umromantismo edulcorado e de humor leve se dissipa logo na primeira página da obra,ou melhor, na primeira página do primeiro dos vinte e seis textos escritos sob a formade cartas, e que constituem a matéria de Nação Crioula. O livro de José EduardoAgualusa, que combina uma visão crítica da História portuguesa a uma linguagemsem rebuços ou enfeites, aborda o intrincado tema do colonialismo europeu e suasrelações com o continente africano.

 No que diz respeito à organização formal e visual do livro, estruturado sob aforma de cartas, Nação Criouladá a impressão de constituir uma correspondência,na qual haveria uma troca entre um remetente e um destinatário e que, a umaexposição de situações, apreciações de fatos e informações, seguir-se-ia outro textode avaliação deste conteúdo, de acréscimo de informações e de detalhes. No entanto,após duas ou três cartas lidas, o leitor atenta para o fato de que a uma carta enviadanão corresponde uma resposta do destinatário em questão e, sim, uma retomada dapalavra pelo mesmo remetente, no caso, Fradique Mendes. Assim, ao concluirmos aleitura do livro, não estamos diante de um romance epistolar, no sentido próprio dotermo, uma vez que não temos em mãos as respostas às cartas enviadas pelonarrador, mas uma seqüência de cartas todas escritas por um único autor. Destaforma, o narrador detém o controle do enredo e das cartas, assumindo a pena dosdestinatários e, por conseqüência, calando sua voz.Enquanto lia a tua carta pensava que a podia ter escrito eu próprio háalguns anos atrás, quando era ainda muito jovem e acreditava conhecer tudo sobre as paixões da alma. Escreves: “O nosso amor nasceu furtivo eaté onde eu alcanço teria de continuar assim, criando pouco a poucosombras e rancor – que é o bolor dos sentimentos -, até por completoapodrecer.”...A tua segunda questão não tem resposta. (AGUALUSA, 1997, p. 47)A esta estrutura literária, de aparente romance epistolar em que osdestinatários só existem pelo seu silêncio, responde a estutura política do universocolonial na qual apenas o colonizador, no romance, o português Fradique Mendes,tem direito à voz e à palavra escrita, veículo do saber e, por conseqüência, da lei e dopoder.Vale lembrar que a estrutura do romance mantém uma relação estreita com oprocesso histórico das relações internas ao mundo lusófono. Assim, FradiqueMendes, personificação de Portugal, relaciona-se, cronologicamente num primeiromomento, com a África, onde conhece a negra Ana Olímpia e, num segundomomento, embarca, ainda que a contra-gosto, num negreiro, reconstruindo ocaminho – de colonizados mas também do colonizador – entre o continente africanoe o Brasil. O monopólio da palavra por Fradique Mendes deve, então, ser lido nãocomo uma contradição da elaboração estética de seu personagem e sim como aexplicitação dos paradoxos do processo colonial. Ainda que Fradique seja partidáriodo Abolicionismo, a detenção do discurso narrativo representa o poder e a força docontrole do processo colonial.Esta idéia é corroborada ainda pela arquitetura do romance. Das vinte e seiscartas que compõem o livro, todas são enviadas por Fradique Mendes, exceto aúltima, escrita por Ana Olímpia ao romancista Eça de Queiróz, em 1900. O únicomomento, portanto, em que temos acesso ao texto do destinatário,

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maisespecificamente, ao seu destinatário privilegiado, pois que se trata de sua mulher, éna última carta do livro. Vale observar que a carta escrita por Ana Olímpia é, de certamaneira, um grande resumo dos acontecimentos do livro, não deixando de ser, noentanto, a expressão de sua voz.Datando a última carta de Fradique Mendes de outubro de 1888, Agualusa fazcoincidir a morte do português, personagem de seu livro, com a abolição daescravatura no Brasil e, como conseqüência direta, com o fim do tráfico negreiro