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  • 8/18/2019 A Cultura Da Cultura Popular

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    A CULTURA DA CULTURA POPULAR

    Henrique Bergamo

     No meio do caminho tinha uma pedra

    tinha uma pedra no meio do caminho

    tinha uma pedra

    no meio do caminho tinha uma pedra.

    Drummond de Andrade

    Eram três Andrades.

    O primeiro Mário, o operário de Vargas, o queridinho (bem comportado) da nação.

    Bom mestiço, que para ser oficializado, foi esbranquiçado, hetero-falseado. Por que

    preto, pobre e homossexual não cabia na tradição. E ainda não!

    O bom selvagem, o mau selvagem O bom preto, o mau preto -

    O bom pobre, o mau pobre: caldo grosso de Mários, Oswalds, Rousseaus e depois deles

    Foucaults)

    O bom moço da nação

     \ainda Mário\

    Bem vestido, empoado, enlatado na erudição.

    Viajou como estrangeiro pelo

    BraZil em busca de um BraSil

    na  "Viagem da Descoberta do Brasil", visitando as cidades históricas em Minas.

    (sonhava talvez em ser francês, e quantas vezes não o foi na companhia do casal Lévi-

    Strauss?)

    Em 1924 anotou em seu caderninho a obra do Aleijadinho e tantas outras impressões

    desse país desconhecido.

    Quatro anos depois, 1928, volta a percorrer o BraZil, desta vez o nordeste, numa viagem

    agora denomina de etnográfica.

    Sempre em busca da erudição, Mário o pianista, Mário o cantor, formado pelo

    Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Bacharel em ciências e letras,

    professor de estética, história da arte e da música, escritor, romancista, ensaísta,

    musicólogo, etnomusicólogo, etnólogo e poeta.

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    Ah, também estudou filosofia e alemão.

    Em 29 rompe com Oswald e em 39, cria sua própria “república”  a Sociedade de

    Etnologia e Folclore de São Paulo, tornando-se o seu primeiro presidente.

    Nos tempos das logias 

    Mais ou menos destemperadas

    Pelos ismos da nova

    Medianeidade morna das academias

    Ainda é Mariano o nosso modelo

    (de pesquisa, de ciência)

    E viva a etno(musico)logia!

    Hora do intervalo na faculdade. Próximo à cantina um grupo reúne-se para tocar. Flauta,

    zabumba, triângulo e pandeiro. Cantam e dançam. Desconheço o ritmo, a escala é

    mixolídio. A pulsação vibrante. Em torno deles, um pequeno ajuntamento. A música

    tem um estilo folclórico, popular, alguma coisa do nordeste brasileiro. Estamos no sul,

    com certeza não é algo próximo.

    Reconheço um dos participantes do grupo. Lembro de tê-lo visto numa atividade em

    sala de aula, ensinando os passos de um estilo de dança chamado coco, marcado com

    batidas fortes no pé direito e apoio do esquerdo. Atividade feita em roda.

    Entre meus colegas, localizo alguns que se dedicam ao estudo da música popular,

    especificamente as manifestações catalogadas na lista da cultura popular. A biblioteca

    abriga algumas dissertações de alunos e professores sobre maracatu, congada e o

    fandango, especialmente o paranaense. Boi de mamão, Folguedos, Bumba meu boi e

    outros bichos juntam-se à lista.Volto-me para as paredes e um cartaz convida para o Colóquio de Etnomusicologia.

    Outro anuncia um show do Grupo Omundô. Garibaldis e Sacis, samba de raiz. A

    pergunta se constrói – o que intentamos com a cultura da cultura popular na academia?

    Ocorre-me a velha falácia entre cultura popular e erudita, a interdisciplinaridade que

    trouxe para a música antropólogos, etnólogos, musicólogos, psicólogos, sociólogos,

    etnomusicólogos, engenheiros, todos falando de música. Pilhas de papéis, dissertações,

    teses, TCCs, artigos – todos pela via do “logos” científico.

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     Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.

    O segundo Andrade, moderno, ainda moderno na pós-modernidade. Não foi aceito na

    USP para a cátedra de filosofia.

    Vaiado na semana de 22, (só a música pálida de Novaes acalmou os ânimos da platéia

    com seu piano tupiniquim) branco, de família abastada.

    logos x fagos

    logias x fagias

    Oswáld Antropofágico, nem BraZil, nem BraSil

    Tupi, or not tupi that is the question.

    Contra todos os importadores de consciência enlatada.

    Malinowisky nos dá uma latinha, os Levis-Satrausss outra e tantas outras que cabem nas

    prateleiras da nossa academia.

    Dos dois Andrades, a academia adotou, é lógico, e foi pela sua lógica, o primeiro. O

    segundo não cabe na linearidade do pensamento científico, que embora nem tanto, deste

    mantém a linguagem. As não ciências que enciumadas da objetividade científica,

    copiam desta, a retórica e o dialeto erudito.

    Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O ladodoutor, o lado citações, o lado autores conhecidos.Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo

    em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de

    Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.O ladodoutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando

    politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixarde ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores

    anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo.Esquecemos o gavião de penacho.

    Padre Vieira, Malinowski, Mário, Lévi-Strauss os doutos do Império. Aqui a genealogia

    oswaldiana do nosso olhar para o outro. O olhar do colonizador, o olhar para o

    selvagem, o olhar rousseauniano, o outro a ser descrito, traduzido, sob a objetividade

    (ou sub, ou inter, não importa) – o outro transcrito.

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    bisbilhoteiro. Macunaíma especulativo, ID de um BraSil bizarro à vista do EGO um

    braZileiro, cujo ALTER não se deixava reconhecer.

    O segundo Andrade, que não deve ao Alter o ego de si, pré-colombiano, pré-freudiano

    no espírito e na carne, pós no pensar, encontra na sua terra, em si, o selvagem, não o

    bom rousseauniano, mas o antropófago, que não nega valor ao estrangeiro, mas não o

    copia, não aceita a sua problematização, mas incorpora seu valor, comendo-o.

    Só a Antropofagia nos une. Socialmente.Economicamente. Filosoficamente.Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos,de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados depaz.Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

    Só me interessa o que não é meu. Lei dohomem. Lei do antropófago.Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.

    A antropofagia virou “carne da vaca”, no dizer de Augusto de Campos. Mas ainda é

    fomento. De Mário nasceram os [vale tudo]ólogos, de Oswald os Antropófagos, as

    Tropicálias, os Bossa Novas, os Concretistas e o último Andrade: comedores do que

    tem valor, independente de fronteiras, comprometidos com o tempo e as novas trazidas

    pelo vento.

    Culturofagia, musicofagia, artefagia no lugar das logias.

    Mario que amava

    ||: Dina que amava Claude que amava a França que amava Rousseau que Oswald não

    amava, tanto que rompeu com Mário que amava :||

    No meio do caminho tinha uma pedra - diz o terceiro Andrade - tinha uma pedra no

    meio do caminho.

    Caminho pelos corredores da Faculdade, vej(o)uço nossa produção artística, vasculho as

    paredes e as estantes das bibliotecas, estamos miúdos, cada vez mais miudinhos.

    E as pedras continuam lá, espalhadas pelo meio do caminho.

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    Referências Bibliográficas:

    ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropofágico: em Piratininga Ano 374 da

    Deglutição do Bispo Sardinha  - São Paulo:  Revista de Antropofagia, Ano 1, 1928.

    Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf   . Acesso em 01 de

    novembro de 2013.

    ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau Brasil - São Paulo: Correio da Manhã,

    18 de março de 1924. Disponível em:

    http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf  . Acesso em 01 de novembro de

    2013.

    CAMPOS, Augusto de. Pós-Walds. São Paulo: O Estado de S.Paulo, 2011. Disponível

    em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,pos-walds,739633,0.htm . Acesso em:

    03 de novembro de 2013.

    COUTO, José Geraldo. Mário de Andrade: vida do escritor foi um "vulcão de

    complicações"- São Paulo: Folha de São Paulo, 1993. Disponível em:

    http://almanaque.folha.uol.com.br/semana3.htm . Acesso em 03 de novembro de 2013.

    MENDES RAMOS, Marilúcia et alii. Identidade nacional e nacionalismo estético em

    contos de Mário de Andrade. REVELLI Revista de Educação, Linguagem e Literatura

    da UEG-Inhumas v. 1, n. 1, março de 2009.

    MALINOWSKI, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. In: Etnologia, n.s.,

    n° 6 – 8, 1997.

    SOUZA, Luis Ricardo. Modernismo e cultura popular: o projeto estético de Mário

    de Andrade. Mediações – Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 10, n.1, p. 105-123,

     jan.-jun. 2005 ISSN 1414-0543