a cultura da cultura popular
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A CULTURA DA CULTURA POPULAR
Henrique Bergamo
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Drummond de Andrade
Eram três Andrades.
O primeiro Mário, o operário de Vargas, o queridinho (bem comportado) da nação.
Bom mestiço, que para ser oficializado, foi esbranquiçado, hetero-falseado. Por que
preto, pobre e homossexual não cabia na tradição. E ainda não!
O bom selvagem, o mau selvagem O bom preto, o mau preto -
O bom pobre, o mau pobre: caldo grosso de Mários, Oswalds, Rousseaus e depois deles
Foucaults)
O bom moço da nação
\ainda Mário\
Bem vestido, empoado, enlatado na erudição.
Viajou como estrangeiro pelo
BraZil em busca de um BraSil
na "Viagem da Descoberta do Brasil", visitando as cidades históricas em Minas.
(sonhava talvez em ser francês, e quantas vezes não o foi na companhia do casal Lévi-
Strauss?)
Em 1924 anotou em seu caderninho a obra do Aleijadinho e tantas outras impressões
desse país desconhecido.
Quatro anos depois, 1928, volta a percorrer o BraZil, desta vez o nordeste, numa viagem
agora denomina de etnográfica.
Sempre em busca da erudição, Mário o pianista, Mário o cantor, formado pelo
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Bacharel em ciências e letras,
professor de estética, história da arte e da música, escritor, romancista, ensaísta,
musicólogo, etnomusicólogo, etnólogo e poeta.
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Ah, também estudou filosofia e alemão.
Em 29 rompe com Oswald e em 39, cria sua própria “república” a Sociedade de
Etnologia e Folclore de São Paulo, tornando-se o seu primeiro presidente.
Nos tempos das logias
Mais ou menos destemperadas
Pelos ismos da nova
Medianeidade morna das academias
Ainda é Mariano o nosso modelo
(de pesquisa, de ciência)
E viva a etno(musico)logia!
Hora do intervalo na faculdade. Próximo à cantina um grupo reúne-se para tocar. Flauta,
zabumba, triângulo e pandeiro. Cantam e dançam. Desconheço o ritmo, a escala é
mixolídio. A pulsação vibrante. Em torno deles, um pequeno ajuntamento. A música
tem um estilo folclórico, popular, alguma coisa do nordeste brasileiro. Estamos no sul,
com certeza não é algo próximo.
Reconheço um dos participantes do grupo. Lembro de tê-lo visto numa atividade em
sala de aula, ensinando os passos de um estilo de dança chamado coco, marcado com
batidas fortes no pé direito e apoio do esquerdo. Atividade feita em roda.
Entre meus colegas, localizo alguns que se dedicam ao estudo da música popular,
especificamente as manifestações catalogadas na lista da cultura popular. A biblioteca
abriga algumas dissertações de alunos e professores sobre maracatu, congada e o
fandango, especialmente o paranaense. Boi de mamão, Folguedos, Bumba meu boi e
outros bichos juntam-se à lista.Volto-me para as paredes e um cartaz convida para o Colóquio de Etnomusicologia.
Outro anuncia um show do Grupo Omundô. Garibaldis e Sacis, samba de raiz. A
pergunta se constrói – o que intentamos com a cultura da cultura popular na academia?
Ocorre-me a velha falácia entre cultura popular e erudita, a interdisciplinaridade que
trouxe para a música antropólogos, etnólogos, musicólogos, psicólogos, sociólogos,
etnomusicólogos, engenheiros, todos falando de música. Pilhas de papéis, dissertações,
teses, TCCs, artigos – todos pela via do “logos” científico.
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Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
O segundo Andrade, moderno, ainda moderno na pós-modernidade. Não foi aceito na
USP para a cátedra de filosofia.
Vaiado na semana de 22, (só a música pálida de Novaes acalmou os ânimos da platéia
com seu piano tupiniquim) branco, de família abastada.
logos x fagos
logias x fagias
Oswáld Antropofágico, nem BraZil, nem BraSil
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todos os importadores de consciência enlatada.
Malinowisky nos dá uma latinha, os Levis-Satrausss outra e tantas outras que cabem nas
prateleiras da nossa academia.
Dos dois Andrades, a academia adotou, é lógico, e foi pela sua lógica, o primeiro. O
segundo não cabe na linearidade do pensamento científico, que embora nem tanto, deste
mantém a linguagem. As não ciências que enciumadas da objetividade científica,
copiam desta, a retórica e o dialeto erudito.
Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O ladodoutor, o lado citações, o lado autores conhecidos.Comovente. Rui Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo
em riqueza. A riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de
Jockey. Odaliscas no Catumbi. Falar difícil.O ladodoutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando
politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixarde ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores
anônimos. O Império foi assim. Eruditamos tudo.Esquecemos o gavião de penacho.
Padre Vieira, Malinowski, Mário, Lévi-Strauss os doutos do Império. Aqui a genealogia
oswaldiana do nosso olhar para o outro. O olhar do colonizador, o olhar para o
selvagem, o olhar rousseauniano, o outro a ser descrito, traduzido, sob a objetividade
(ou sub, ou inter, não importa) – o outro transcrito.
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bisbilhoteiro. Macunaíma especulativo, ID de um BraSil bizarro à vista do EGO um
braZileiro, cujo ALTER não se deixava reconhecer.
O segundo Andrade, que não deve ao Alter o ego de si, pré-colombiano, pré-freudiano
no espírito e na carne, pós no pensar, encontra na sua terra, em si, o selvagem, não o
bom rousseauniano, mas o antropófago, que não nega valor ao estrangeiro, mas não o
copia, não aceita a sua problematização, mas incorpora seu valor, comendo-o.
Só a Antropofagia nos une. Socialmente.Economicamente. Filosoficamente.Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos,de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados depaz.Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei dohomem. Lei do antropófago.Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
A antropofagia virou “carne da vaca”, no dizer de Augusto de Campos. Mas ainda é
fomento. De Mário nasceram os [vale tudo]ólogos, de Oswald os Antropófagos, as
Tropicálias, os Bossa Novas, os Concretistas e o último Andrade: comedores do que
tem valor, independente de fronteiras, comprometidos com o tempo e as novas trazidas
pelo vento.
Culturofagia, musicofagia, artefagia no lugar das logias.
Mario que amava
||: Dina que amava Claude que amava a França que amava Rousseau que Oswald não
amava, tanto que rompeu com Mário que amava :||
No meio do caminho tinha uma pedra - diz o terceiro Andrade - tinha uma pedra no
meio do caminho.
Caminho pelos corredores da Faculdade, vej(o)uço nossa produção artística, vasculho as
paredes e as estantes das bibliotecas, estamos miúdos, cada vez mais miudinhos.
E as pedras continuam lá, espalhadas pelo meio do caminho.
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Referências Bibliográficas:
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropofágico: em Piratininga Ano 374 da
Deglutição do Bispo Sardinha - São Paulo: Revista de Antropofagia, Ano 1, 1928.
Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf . Acesso em 01 de
novembro de 2013.
ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau Brasil - São Paulo: Correio da Manhã,
18 de março de 1924. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf . Acesso em 01 de novembro de
2013.
CAMPOS, Augusto de. Pós-Walds. São Paulo: O Estado de S.Paulo, 2011. Disponível
em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,pos-walds,739633,0.htm . Acesso em:
03 de novembro de 2013.
COUTO, José Geraldo. Mário de Andrade: vida do escritor foi um "vulcão de
complicações"- São Paulo: Folha de São Paulo, 1993. Disponível em:
http://almanaque.folha.uol.com.br/semana3.htm . Acesso em 03 de novembro de 2013.
MENDES RAMOS, Marilúcia et alii. Identidade nacional e nacionalismo estético em
contos de Mário de Andrade. REVELLI Revista de Educação, Linguagem e Literatura
da UEG-Inhumas v. 1, n. 1, março de 2009.
MALINOWSKI, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. In: Etnologia, n.s.,
n° 6 – 8, 1997.
SOUZA, Luis Ricardo. Modernismo e cultura popular: o projeto estético de Mário
de Andrade. Mediações – Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 10, n.1, p. 105-123,
jan.-jun. 2005 ISSN 1414-0543