a corrida dos ratos - rafaelrrezende.files.wordpress.com fileprestes a amanhecer; estávamos como...
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VII
Guerra
Eu estava atordoado com o relato e já tinha fumado uns três ou quatro
cigarros enquanto o escutava e aquilo tinha me embrulhado o
estômago, sem falar na ansiedade que me consumia por causa da
revolução, que estava a poucas horas de acontecer; apesar do cansaço
físico, meu sono tinha desaparecido e agora Dom me lançava uma
questão insolúvel, pelo menos às minhas percepções. Dom esfregava
os olhos e passava as mãos na cabeça, parecia esgotado e o dia estava
prestes a amanhecer; estávamos como cães vadios encostados no
canto, sem reação e assim ficamos durante instantes intermináveis.
Logo que amanheceu, Maria entrou acelerada no quarto, com uma
energia vibracional muito mais intensa que a nossa, parecia ter tomado
uma garrafa de café e nos olhou com um olhar de desaprovação que só
as mulheres sabem dar; fez cara de nojo e gritou, “Que porra é essa?
Que porra é essa? Vocês dois estão um lixo! Parecem a foto de Che
Guevara morto. Levantem e vamos fazer a revolução, ou vamos
perder o momento certo e vai tudo por água abaixo”.
Maria era determinada e agora estava mais determinada do que nunca!
Estava prestes a se tornar a primeira-dama da revolução e não deixaria
essa chance escapar jamais; sua mãe, desde a infância quis
transformá-la numa princesinha: vestia a pequena Maria como uma
burguesinha bem nascida, levava-a à Disney desde o berço e fê-la
amar o Mickey e iam juntas ao shopping para realizarem, desde a mais
tenra idade, o ritual sagrado do consumo; colocou-a na aula de
etiqueta para que se portasse com refinamentos inacessíveis aos
homens do povo, obrigou-a a entrar no curso de Direito porque queria
transformá-la numa juíza, criou-a na igreja para que se casasse
virgem, com um belo e bem sucedido rapaz, que professasse a mesma
fé na religião e no dinheiro.
Assim como toda a classe burguesa, Maria fora criada para acreditar
que a miséria era uma fatalidade, e não um esquema bem montado
para manter todo o povo com medo de chegar a essa situação-limite, e
jamais atentar contra os padrões estabelecidos; fora criada para
acreditar que um edifício bem construído era fruto da competência do
arquiteto, e não das mãos dos peões que trabalharam meses sob o sol
para levantar cada alicerce, cada laje, cada parede, carregando sacos
de pedra e cimento nas costas; fora criada para viver como um
parasita, delegando aos empregados as tarefas mais simples, como
lavar um prato, arrumar um quarto, trocar um pneu, etc.; fora educada
a viver para adquirir bens e objetos, a existir em nome dos benefícios,
dos confortos, das garantias e das facilidades e a buscar vantagens
pessoais em todas as situações; a típica mentalidade burguesa dos
‘bem-nascidos’.
Os planos de sua mãe tinham fracassado, pelo menos de uma certa
maneira: seis meses após seu ingresso no curso de direito, numa
faculdade renomada e caríssima, abandonou o sonho da mãe pra fazer
Ciências Sociais na USP; mas é claro que a maioria de seus amigos
também era proveniente das classes média e alta paulistana, todos
educados com a mesma mentalidade dela e com os mesmos
privilégios; por mais que lutassem contra os traços de sua formação
familiar, carregariam sempre consigo as marcas dessa domesticação
cultural.
E foi o que aconteceu com Maria, que apesar de tentar renegar os
valores e princípios que foram os pilares de sua educação familiar,
apenas direcionou-os para outro lado, oposto ao gosto de sua mãe,
provavelmente como um exercício de autoafirmação; encravou esses
mesmos princípios em terreno próprio: encontrou um homem bem
sucedido, mas era ignorante e bandido, vindo da favela mas com a
chance de se tornar um dos grandes nomes da política brasileira após a
revolução; Maria continuou, pelo menos na minha percepção, com
aquele oportunismo ensinado por sua mãe, mas talvez ela tenha
evoluído o oportunismo a um novo nível e ao invés de se adaptar às
exigências do mundo para se dar bem, queria fazer o mundo se
adaptar às suas exigências.
Ela se dizia marxista para legitimar inconscientemente sua ação
revolucionária, mas ela queria apenas conquistar o poder, e jamais
entregá-lo ao povo, como qualquer marxista burguês... e na USP está
cheio de marxista burguês. Ela queria que sua mãe se orgulhasse dela,
mas isso só aconteceria se ela se tornasse rica e poderosa, e Maria
estava prestes a jogar isso na cara de sua mãe, com todo o rancor,
quando tomássemos o poder.
Já tínhamos produzido o vídeo explicativo da revolução e o
transmitiríamos ao vivo para o mundo inteiro, a partir de duas grandes
redes de televisão aberta, no horário da abertura das Olimpíadas; era
um vídeo pedagogicamente explicado, com legendas em inglês, de
modo que as pessoas do mundo inteiro, em todas as classes e níveis
socioculturais, pudessem compreender claramente nossos objetivos,
nossas intenções e nossos métodos.
Dom sabia ser claro e persuasivo e Maria aparecia junto com ele no
vídeo, para criar uma identificação com o público feminino e mostrar
que nossa intenção era incluir todas as parcelas da população em
nosso governo revolucionário. Sabíamos que a imprensa do mundo
todo repercutiria a informação de modo massivo e em tempo real e
estaríamos instantaneamente sob a ameaça de uma invasão
estrangeira, e não tínhamos a menor estrutura contra um ataque
externo. Dom confiava em sua diplomacia e em seu carisma, mas
agora, com aquela cara desfigurada e o ânimo fragmentado, Dom
precisava mais do que nunca da atitude focada, decidida e quase
fascista de Maria pra fazer a revolução acontecer.
Dom levantou-se do chão, ergueu a cabeça e falou bem alto: “Cansei
da Poesia! Agora vou traficar armas na África!, foi o grito de
libertação de Rimbaud contra o circo literário... e eu... eu grito que
cansei do aquário da Universidade! Agora eu vou nadar com os
tubarões!” e olhou determinado pra Maria, que ligou os chuveiros de
dois banheiros e mandou que entrássemos imediatamente e
recuperássemos nossas forças, e disse isso já puxando-nos pelo braço.
Saímos do banho e ela tinha preparado um balde enorme e cheio de
gelo pra enfiarmos a cabeça e sairmos cheios de energia pra fazer a
revolução. Mergulhei a cabeça no balde e meus pensamentos se
aceleraram absurdamente, senti novas sinapses desbravando meu
cérebro com violência e minhas pupilas dilatando como se o universo
fosse penetrar meus olhos. Tomei uma lata de energético gelado que
Maria nos trouxe da geladeira e ainda adicionou algumas pedras de
gelo, acendi o primeiro cigarro do dia e saí para o quintal.
Maria estava com Dom porque sabia que ele precisaria de ajuda; Dom
era genial em muitos aspectos, mas sem a presença de Maria naquele
momento dos planos, a revolução não se concretizaria ou seria um
desastre. Ela não foi à Brasília acompanhar Marcinho, seu namorado,
pois sabia que Marcinho, apesar de limitado intelectualmente, saberia
realizar sua tarefa de modo impecável, pois já tinha tomado as bocas
de fumo da grande Vitória; Marcinho já tinha experiência em fazer
guerra, e em Brasília ele apenas a realizaria de modo mais radical e
sério, com uma equipe bem treinada e sem medo de morrer.
O que eu, Dom e Maria tínhamos a realizar no Rio de Janeiro era mais
complexo e importante, pois tomaríamos as redes de TV pra nos
comunicarmos ao vivo com o mundo todo, além de confundirmos a
polícia com várias equipes realizando diferentes ataques em diferentes
lugares do Rio, ao mesmo tempo, e assim desviar o foco de nosso
principal alvo, que eram as redes de TV. Maria veio conosco ao Rio
porque sabia que precisaríamos dela e porque queria muito ser a
primeira-dama da revolução em rede nacional e internacional; queria
ter certeza que não fracassaríamos na realização dos planos.
Dom saiu do banho ainda angustiado e aquele semblante começou a
irritar Maria, apesar dela se manter calada. Ele olhou-a nos olhos e
começou a dizer, “Qual o valor do poder humano, do poder político?
Qual o valor das riquezas produzidas pelo homem? Maria, o que nos
motiva a chegar onde queremos chegar? Maria, não se entorpeça com
o poder, apenas me responda essas questões pra que eu possa fazer a
revolução em paz!”, e Maria se irritou definitivamente e partiu para o
ataque verbal, com toda a sua determinação: “Porra Dom, você é um
frouxo do caralho! Depois de cinco anos organizando o Movimento e
preparando a revolução, depois de toda a energia gasta nesse
empreendimento, agora que estamos prestes a tomar o poder você vai
se acovardar, vai vir com essa conversinha de consciência? Vai tomar
no cu!”; Maria se aproximou de Dom, chacoalhou seus ombros e,
“Hoje é o grande dia! Vamos tomar o poder e fazer do nosso jeito,
vamos fazer história... Os homens jamais se esquecerão de nós,
estaremos em todos os livros de história e seremos inspiração pra
muitos outros povos que querem derrubar seus líderes corruptos e
escravistas! Dom, eles são o crime organizado, e nós vamos derrubá-
los!”.
Maria viu que o ânimo de Dom não melhoraria em pouco tempo, e
sabia que mesmo com aquela frouxidão momentânea, Dom era
essencial para o sucesso da revolução, então tentou argumentar já
quase em desespero, porém mantendo-se controlada e, “Dom, você
está parecendo aqueles intelectuais frouxos que tanto criticou quando
começamos o Movimento. Você sempre quis transformar essa porra
desse país, sempre quis fazer justiça aos desgraçados... lembre-se dos
planos que temos pra libertar a mentalidade do povo; lembre que
mandaremos imprimir e distribuir gratuitamente uma infinidade de
livros para o povo, entre eles Shakespeare, Dostoievski, Foucault e um
monte de gente boa... proibiremos essa publicidade criminosa que se
pratica abertamente e sem pudor, aprisionando as consciências e
transformando a mentira num sucesso, mandaremos prender os
corruptos e faremos justiça na prática e não apenas nos artigos
científicos ou meios de expressão da internet...”.
Maria acariciou o rosto barbado de Dom, olhou-o com ternura e disse
“Dom, você vai conquistar o Brasil e o mundo com seu carisma, sua
genialidade... imagine-se falando com o mundo todo, podendo
discursar de modo envolvente, como você sabe fazer, e levar as
pessoas ao entendimento do mundo ao seu redor. Dom, as pessoas se
apaixonarão por você... foi por isso que me apaixonei por você”, e
Dom, ao ouvir isso, acariciou o rosto de Maria correspondendo ao
carinho e ambos se olharam por alguns instantes. Dom, apesar de
saber de seu namoro com Marcinho, e de certa forma respeitar a
relação, não resistiu e perguntou-lhe, “E você ainda sente algo quando
me vê ou quando chega perto de mim?”, e Maria sabia que a resposta
poderia mantê-lo naquele estado de frouxidão e passividade ou talvez
arrancá-lo daquele limbo; deu um sorriso de cumplicidade, mostrou-se
receptiva e, “Você tem uma capacidade enorme de perder o foco... por
que quer saber? Apenas pra ter certeza que todas as pessoas ao seu
redor estão fascinadas por você? Você sempre teve essa necessidade, é
verdade, mas isso importa agora?”.
Dom olhou-a e viu a receptividade em seus olhos, como só uma fêmea
experiente sabe olhar, e a beijou; beijaram-se demoradamente e com
uma intensidade que foi aumentando; esfregaram-se com paixão,
arrancaram as roupas um do outro e transaram intensamente, sentindo
os cheiros, as energias e experimentando todas as possibilidades
sensíveis daquele momento. Há tempos não sentiam essa energia
revigorante que uma trepada sincera pode trazer; entregaram-se ao
fascínio que um exercia sobre o outro, e mesmo Maria, que ia viver
aquele momento apenas pela funcionalidade que traria à revolução,
entregou-se aos resquícios de paixão que ainda sentia por Dom e os
ânimos de ambos foram renovados.
Maria abriu um sorriso sincero como não fazia há algum tempo e
sentiu uma sensação de vida genuína percorrer seu corpo e instalar-se
em sua mente, e pensou sobre a força da conexão entre as pessoas;
mesmo essa conexão descompromissada e infiel produzia efeitos
fantásticos dentro de si, e imaginou um contexto em que os humanos
se amassem mutuamente, se respeitassem mutuamente, e por alguns
instantes seus olhos marejaram. Estava tão embrutecida pela obsessão
da revolução, que aquela sensação tinha quase se extinguido de seu
interior; naquele momento ela percebeu que ainda havia vida genuína
dentro de si.
Dom sentiu suas energias vitais voltarem completamente, como se há
menos de cinco minutos ele não estivesse completamente prostrado e
entregue. Sentiu as forças do universo apossarem-se dele e já estava
disposto a conquistar o mundo inteiro, mesmo às custas de sua alma.
Dom e Maria conectaram-se de modo sinérgico durante as horas
seguintes, e acredito que esse tenha sido um dos fatores essenciais
para o sucesso da revolução, talvez uma dessas coisas inexplicáveis
que Nelson Rodrigues cismava enxergar no futebol, a visita do
imponderável. Dom e Maria sabiam o que tinham que fazer e
simplesmente fizeram, sem questionar o que quer que fosse em suas
consciências; eu apenas me adaptei a essa lógica, pois funcionava tão
avassaladoramente bem que não havia outra possibilidade que não
fosse seguir aquele fluxo.
Dom chamou nossa equipe, formada por vinte soldados além de nós
três, organizou-os e preparou-os pra sair em seis carros e dar uma
volta de reconhecimento no perímetro que faríamos até as redes de
televisão; já tínhamos mapeado as delegacias próximas, e elas seriam
atacadas por outras equipes em sincronia com nossa invasão às redes
de TV.
O Rio de Janeiro estava muito movimentado por causa das
olimpíadas, muitos turistas passeavam por toda a Zona Sul, a Mônaco
carioca, deslumbravam-se com a natureza exuberante, com a vista de
Ipanema, com as bundinhas brasileiras e nem imaginavam o que
estava prestes a acontecer; torravam seus dólares e seus euros na
intenção de vivenciarem a intensidade da experiência no Brasil e não
se arrependeriam, pois veriam o povo tomar o poder de maneira
apoteótica, hollywoodiana.
Protestos estavam programados para acontecer e várias ruas da cidade
já estavam bloqueadas para evitar que qualquer manifestação
atrapalhasse o circo do entretenimento global, e isso tudo contribuía
para o sucesso de nossos planos.
Eu dirigia o primeiro carro e junto comigo estavam Dom, Maria e
Juninho, um dos soldados do Movimento, passávamos pela orla da
praia de Ipanema e vimos a imensidão quase apocalíptica do morro
‘dois irmãos’ se levantando brutalmente sobre a geografia do Rio.
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Brasília, a ‘Grande Prostituta’, já era território de Marcinho e Éder
que conduziam a revolução por lá e já se adiantavam nos preparativos,
de tão ansiosos que estavam para derrubar os poderosos; Marcinho
parecia uma debutante de quinze anos esperando ansiosamente a
viagem à Disney e o encontro com o Mickey; ele realizaria um sonho
de infância, cultivado em suas noites de abandono e solidão: meter
fogo nos prédios do governo e em tudo o que estivesse pela frente,
metralhar as delegacias e sequestrar os políticos! Marcinho se sentia
numa ‘colônia de férias do caos’! O caos o seduzira e sua intenção,
antes de tomar o poder, era destruir tudo ao seu redor sem dó nem
piedade, queria rir malevolamente dos poderosos como os demônios
riem de nós.
A classe média fica horrorizada com essa ‘violência gratuita’, mas a
idiotice e a cegueira mental não lhes permite ver que nada é gratuito;
não compreendem os denominados ‘vândalos’ quando quebram as
vidraças dos grandes bancos, quando apedrejam prédios públicos,
quando ateiam fogo em ônibus ou em carros da polícia. Vivem da
ilusão moral da finalidade consciente de todas as coisas, da
racionalidade fundamental das escolhas individuais e coletivas,
acreditam na busca do bem-estar como atividade racional de qualquer
indivíduo normal e que qualquer um que assim não viva, atenta contra
o bem e o progresso social. Será que sabem que a busca do conforto,
do bem-estar, da ‘felicidade’ nada tem a ver com progresso ou
evolução, mas com um adestramento, uma educação, uma
domesticação dos ânimos e dos comportamentos? Educação para o
consumo, o atual ritual social. No entanto, nem todos são
domesticáveis e onde há coerção e domesticação, há também
resistência e reivindicação libertadora. Se a violência se revelou
selvagem, ‘gratuita’, é porque a coerção que ela contesta é igualmente
selvagem e ‘gratuita’.
Nós éramos o efeito colateral desse Sistema Totalitário Mercantil, do
acesso controlado à ‘felicidade’, da ética totalitária da abundância e
queríamos a liberdade que esse sistema prometeu dar e não deu.
Liberdade verdadeira causa arrepios em muita gente e um enorme
prazer em outros tantos.
Éder também parecia ter prazer naquilo tudo, mas estava mais sério,
introspectivo, talvez pensando nas consequências da revolução, em
como seria o dia de amanhã e o desenrolar da revolução. A maioria de
nós evitava pensar em como seria o dia seguinte à revolução; parecia
estupidez, e de fato era, mas sabíamos de algum modo que aquilo não
duraria muito. Éder talvez fosse o mais sóbrio de todos, apesar do
tormento que o assolava e o desequilibrava em alguns momentos; na
verdade, todos estávamos atormentados, uns mais, outros menos, e a
energia do caos parecia estar nos possuindo.
As equipes de Brasília estavam distribuídas em pousadas simples e
baratas, nas periferias da cidade, bem distantes do centro de poder, e
também estavam fazendo reconhecimento dos locais de ataque e
acertando os últimos detalhes antes do grande momento. Tinham
muitas armas pesadas e muita munição, muitos coquetéis molotov e
um exército com muitos homens, em sua maioria meninos, ex-
detentos dos centros correcionais para menores infratores, recrutados e
treinados formando o maior exército de desprezados já visto! Eram
adolescentes e jovens revoltados, maltratados pelos pais, torturados
pela polícia, abandonados pela justiça, um exército de pessoas que não
tinham nada a perder e avançava sem medo para a vitória ou para a
morte, tanto fazia. Eram como vermes devoradores, escondidos nas
brechas e esperando o momento de saírem do esconderijo e
consumirem os alicerces da sociedade.
Ao longo do dia, algumas equipes realizaram os sequestros de figuras
importantes, que estavam previstas em nossos planos. O único
sequestro frustrado foi o do Ministro da Fazenda, pois sua escolta era
um pouco maior e mais bem armada e na troca de tiros nossos
soldados acabaram metralhando tudo e matando o Ministro. Alguns
soldados nossos foram mortos também e, de raiva, os outros atearam
fogo a todos os carros do comboio do Ministro, parando o trânsito
numa importante via de Brasília no final da tarde.
As redes de televisão não sabiam o que transmitir, pois os jogos
olímpicos estavam prestes a iniciar e a notícia do assassinato do
Ministro estragaria toda a festa e colocaria o país em alerta. Como as
instituições tem uma dificuldade para lidar com a verdade, esperaram
ainda algum tempo antes de veicular a notícia para ter uma posição
oficial da presidência da república.
No início da noite, quando a polícia e as forças armadas começaram a
investigar o caso, os soldados do Movimento já estavam todos
fortemente armados e com aqueles lenços no estilo Yasser Arafat
amarrados até a metade do rosto; lotavam carros grandes e pick-ups
que tinham alugado em Brasília e se dirigiam aos alvos dos ataques. A
equipe de Marcinho tinha duzentos homens e se dirigiu ao Palácio do
Planalto e estava especialmente instruída pelo próprio Marcinho a usar
o máximo de violência possível; ao longo do trajeto, Marcinho repetia
“não existem cidadãos de bem nem pais de família, são todos agentes
e defensores desse sistema. São todos inimigos!” e aquilo foi
impregnando nas mentes e nos corações dos que o acompanhavam, e
toda essa lógica era aprofundada pelo som frenético do Skrillex que
tocava em seu carro e acelerava aquelas consciências.
Ele estava concentrado e seu rosto estava quase sem expressão, seus
olhos revelavam determinação e suas pupilas estavam excessivamente
dilatadas; apesar da cocaína o estimular bastante e o deixar agitado,
Marcinho estava tão concentrado que conseguia se manter parado e
segurando o fuzil com firmeza. Beijou seu patuá, apertou suas guias
numa das mãos, deu uma longa tragada no cigarro que estava fumando
e mandou o motorista encostar o carro, e atrás deles parou o comboio.
Quando estavam todos os carros em frente ao Palácio, Marcinho
mandou o motorista arrancar com o carro em direção ao gramado do
Palácio, e aproximando-se viram seguranças que já se preparavam
para atirar, mas a equipe de Marcinho os metralhou sem dar chance e
continuou atirando em direção ao Palácio, acertando muitos vidros e
destroçando as colunas. Seguiram com os carros até o limite onde
havia um espelho d’água, saíram dos carros e metralharam toda a
fachada do Palácio durante um bom tempo.
Marcinho comandava toda a ação, estava na linha de frente e seus
soldados faziam como ele; pegou um coquetel molotov numa das
pick-ups e dirigiu-se à porta do Palácio que já estava com os vidros
estilhaçados, meteu o pé na porta, como sempre quis fazer, e entrou
definitivamente naquele lugar sagrado e intocável, pelo menos até
então.
Invadiu outros ambientes do Palácio que estava vazio e quando
encontrou um auditório acarpetado, acendeu seu coquetel molotov e o
lançou bem no símbolo da república federativa do Brasil, que
imediatamente ficou em chamas e começou a se espalhar pelo chão e
pelo teto.
Em seguida, empunhou seu fuzil e começou a atirar nas cadeiras
luxuosas, na mesa de madeira maciça e no lindo lustre que enfeitava o
ambiente, e fazia isso como uma espécie de vômito lançado contra
aquela ostentação criminosa. Marcinho saiu daquele ambiente, viu-se
num hall amplo e cheio de seus soldados que entravam com coquetéis
molotov acesos pra meterem fogo em tudo e gritou “Isso aqui é a casa
dos criminosos! Vamos incendiar a cena do crime porraaaaa!”, e seus
soldados berraram ensandecidos enquanto corriam para destruir tudo.
Unidades da polícia e do exército foram chamadas para conter o
ataque, mas quando abriram os portões de seus batalhões para se
dirigirem ao Palácio, foram metralhados por nossas equipes que já
esperavam de tocaia, e mataram todos os agentes da polícia e soldados
do exército que tinham sido destacados para aquela missão, como
Marcinho tinha instruído. Depois entraram nesses batalhões e atearam
fogo em tudo.
A equipe de Éder tinha ido à Câmara dos deputados realizar o mesmo
ritual de destruição que Marcinho realizava no Palácio do Planalto, e
também encontraram pouca resistência, pois a maioria dos políticos
estava no Rio de Janeiro acompanhando a abertura das Olimpíadas, e
só havia alguns poucos seguranças que foram rapidamente
metralhados sem chance de reação.
Os soldados do Movimento saíram dos carros e atacaram a Câmara
antes das ordens de Éder, de tão ansiosos que estavam pra colocar
aquele ódio pra fora e direcionar aos corruptos e aos símbolos de
respeitabilidade oficial. Éder observava a sede de vingança que havia
em seus soldados; eram iconoclastas e não poupavam nada que
estivesse à sua frente, metralharam tudo e logo começaram a jogar os
coquetéis molotov em todos os ambientes da Câmara.
Enquanto o ataque ao Palácio do Planalto estava sendo violento,
porém controlado pelo pulso firme de Marcinho, o ataque à Câmara
era violento e descontrolado, cada um fazia o que queria e todos iam
colocando seus ódios, raivas e frustrações pra fora. Uns pegaram os
funcionários da Câmara engravatados e os submeteram a humilhações,
espancamentos, outros chegaram atirando em quem aparecesse na
frente, algumas mulheres foram estupradas, cabeças foram cortadas e
aquilo parecia cena de guerra civil africana ou árabe em estágio
avançado de ódio.
Éder achou que havia um estranho descontrole nos soldados do
Movimento, como se seus ódios estivessem sendo potencializados,
espiritualmente potencializados, talvez porque Éder fosse ligado à
busca pelo entendimento da espiritualidade, mas ele disse depois que
sentiu uma espécie de névoa, uma maresia maligna que permeava todo
o ambiente e tornava os atos de barbárie menos absurdos. “As portas
do inferno estavam escancaradas e nós, os demônios, nos fartávamos
com as vísceras abertas da humanidade”, foram as palavras de Dom
para explicar no interrogatório policial após nossa prisão, o caos
criado por nós.
A essa altura, a Agência Brasileira de Inteligência e o centro de
inteligência da Polícia Federal já estavam em chamas, muitos corpos
estavam espalhados, queimados e o sangue já manchava a terra e
atormentava nossas consciências. Brasília estava em chamas, como
uma espécie de sacrifício macabro ao deus da vingança.
A Revolução e as câmeras
No Rio de Janeiro já tínhamos invadido as sedes das duas redes de TV
que planejáramos; entramos numa das sedes sem falar nada, apenas
apontando os fuzis e rendendo quem estivesse à nossa frente;
fechamos as portas da emissora e não deixamos ninguém entrar ou
sair; eu, Maria e Dom nos dirigimos à sala do diretor geral, pois
sabíamos que ele estaria de plantão na abertura das Olimpíadas. Maria
estava vestida com muito estilo e despojamento, roupas claras e leves,
salto alto, como uma mulher de negócios.
“Como é seu nome?”, perguntou Maria entrando sem cerimônia na
sala do diretor; quando o sujeito ia questionar a invasão, viu o fuzil na
minha mão e arregalou os olhos com uma surpresa e um desespero,
como quem acha que algo jamais o atingirá em sua torre de marfim.
Ele não sabia como reagir e ficou estático, nos olhando com terror;
Maria se aproximou, segurou seu rosto com força e perguntou, “Como
é seu nome, porra?”, e o sujeito, coagido por nós três, respondeu
tremendo, “Carlos...”, e eu, “Carlos de que, porra?”, e ele, “Carlos
Henrique...”, e Maria, “então Carlos Henrique, vamos para a sala de
controle central porque agora o Brasil vai acordar de seu longo sono!”,
e o levamos até a porta para que ele nos conduzisse até a sala de
controle central, onde se conduzia a programação de TV em tempo
real.
Por onde passávamos dentro daquela emissora, a cara das pessoas era
de terror, como se o fim do mundo tivesse chegado e o apocalipse
estivesse em curso; mulheres impecavelmente trajadas e com seus
crachás no peito choravam em desespero ou arregalavam os olhos
como se vissem assombrações; homens engravatados, também com
seus crachás de identificação, símbolo da rotulação corporativa e toda
essa babaquice de gestão de pessoas, sentiam suas pernas bambearem
de medo e seus olhos revelavam perplexidade diante de nossa ousadia.
Dom tinha uma Desert Eagle .50 em cada mão e exalava
autoconfiança por todos os poros; estava vestido com estilo, óculos
escuros e barba por fazer e já exercia um certo magnetismo por onde
passava; nossos soldados vinham logo atrás de nós para ocupar o
prédio e impedir qualquer tentativa de reação de qualquer um, pois o
prédio estava cheio de gente.
Chegando próximo à sala de controle, o âncora mais famoso da TV
brasileira, do jornal mais assistido e respeitado da TV brasileira estava
saindo de seu camarim e deu de cara conosco. Seu rosto estava
maquiado, seu cabelo estava milimetricamente bem penteado e seu
terno parecia ter acabado de chegar do alfaiate e com os olhos mais
arregalados que já vi nessa vida, ele nos olhou e disse “Isso não pode
ser real! Isso não pode ser real!” e foi se encostando na parede e se
encolhendo, e em sua mente devia ter a esperança de que aquilo fosse
bastidores de gravação, e ele tivesse sido pego de surpresa, ou
qualquer outra fantasia midiática que pudesse salvá-lo da realidade.
Dom, que ia logo atrás do diretor da emissora, colocou uma das armas
na cintura, tomou a frente e estendeu a mão para cumprimentar o
famoso âncora; tirou os óculos de sol e com um sorriso no rosto disse
“William, que surpresa encontrá-lo!”. O âncora olhou aterrorizado
para aquela mão estendida, estendeu a sua para cumprimentá-lo
também e continuou dizendo para si mesmo, mas em voz alta, “Isso
não pode ser real! Isso não pode ser real!”, e Dom puxou-o pra perto
de si com classe e disse “Aqui é Brasil, e no Brasil a realidade é muito
mais delirante do que a mais delirante das imaginações! Não quer vir
conosco para presenciar a libertação dos escravos?”, e o âncora
respondeu “Não, obrigado...”.
Dom sorriu, soltou a mão do sujeito e disse “é melhor você não ver
isso mesmo, é melhor arrumar as malas e fugir porque o povo já sacou
qual é a sua, e é possível que venham atrás de você... até os cães mais
adestrados podem atacar seus adestradores. E chama aquele seu
amigo, apresentador de reality show, pra fugir com você! Vocês já
ganharam bastante papel pintado pra enganar o povo”, e saiu andando
em direção à sala de controle que já estava à nossa frente, enquanto
nossos soldados se encarregaram de conter aquelas pessoas em seus
lugares.
Na sala de controle, Maria quase teve um orgasmo de tão excitada que
ficou; respirava fundo e não conseguia tirar o sorriso do rosto, estava
diante de sua apoteose, da fama, do estrelato como ‘a primeira-dama
da revolução’. Ela sabia da importância ideológica da revolução e
tudo mais, mas fazia semanas que só conseguia pensar na revolução
como apoteose midiática de si mesma, com muito glamour e estilo,
muitos famosos, champanhe, cocaína e maconha; acreditava que boa
parte dos famosos ‘alternativos’ apoiaria a revolução e participaria de
suas festas, festas que ela já programava para dar após a revolução,
apinhadas de artistas e gente da mídia, muitos holofotes e fotografias
para as revistas mais famosas do mundo.
Ficamos diante da máquina que colocaria nosso vídeo pra rodar e
diante do técnico que seria nosso porteiro para a fama revolucionária;
Maria tirou o pen drive da bolsa e o entregou carinhosamente ao
técnico, dando-lhe um beijinho no pescoço. Ele se arrepiou e colocou
o pen drive na máquina, procurou o arquivo, clicou e o vídeo
começou, com Dom falando calmamente e Maria ao seu lado,
cortando abruptamente a transmissão das Olimpíadas e surpreendendo
a todos os telespectadores:
“Querido povo brasileiro,
Há cinco séculos nós somos enganados por uma classe de corruptos,
que sempre criou meios de nos manter distraídos em relação à
exploração que praticam conosco.
Nós somos o Movimento, e venho convidá-los, nessa data
comemorativa de abertura das Olimpíadas, a pensarem no verdadeiro
significado de ser humano e de partilhar com o resto da humanidade
esse momento especial. Porque é que nos unimos no dia de hoje?
Para celebrar a competição? Para celebrar a eliminação do mais
fraco? Para ver as ‘grandes potências’ econômicas ficarem com a
maior parte das medalhas de ouro, como fazem com a riqueza do
planeta? Então as Olimpíadas são a celebração da exclusão dos mais
fracos, a exclusão da maioria dos humanos; as Olimpíadas são a
legitimação da lei do mais forte, a confirmação pelo esporte (o teatro
pedagógico da pós-modernidade) da superioridade de uns e da
inferioridade de muitos!
É nisso que vocês acreditam? É esse o pedaço de humanidade que
vocês dizem existir em vocês? Enquanto brigamos uns com os outros
por Flamengo e Vasco, homem e mulher, zona sul e zona norte, Brasil
e Argentina, além das porras dos partidos políticos, os poderosos
riem largamente de nossa ignorância, conseguindo nos manter cegos
para a verdade.
E a verdade é que, utilizando-se dos meios mais inteligentes e
refinados, os poderosos estão nos mantendo cativos e produtivos,
como gado... somos vigiados, coagidos e punidos para que sejamos
dóceis e previsíveis, pra que sejamos produtivos e repetitivos; e se
vocês ainda não enxergaram isso, é porque foram seduzidos por todo
o espetáculo do consumo e da fabricação de si mesmo.
Sei que vocês têm medo da mudança, medo da violência, da guerra,
da perda de seus empregos e de suas garantias; vocês estão
dominados pelo medo, mas é preciso que estejamos prontos para
reconstruir nosso país com base na verdade e na liberdade. Se vocês
ainda não sentiram falta da liberdade, é porque se acostumaram à
escravidão!”
Maria se aproximou da câmera, tinha escolhido um vestido muito
estiloso que definia suas curvas, um penteado despojado e um salto
alto que a deixou belíssima, passou à frente de Dom e,
“Esse corruptos, além de praticarem a corrupção, fazem seus
herdeiros ainda mais corruptos que eles! Eles aprendem a compor o
gesto, a interpretar humores, a mentir honestamente... aprendem a
leveza das palavras, aprendem a escolher o vinho, a espumar de
sorriso nos dentes, aprendem o ‘sim’ e o ‘não’ mais oportunos;
querem apenas a vantagem pessoal, jamais o bem coletivo e vão
eternizando a exploração do povo como algo comum. Querem
qualquer coisa que os coloque em posição de vantagem em relação a
nós, aí pode ser diretor de empresa pública, coordenador de
campanha, assessor de ministro, Ministro, diretor-executivo,
presidente da Caixa, embaixador em qualquer país aí por perto,
qualquer coisa! Não se enganem com esses bandidos respeitáveis!
Dom tomou novamente a palavra e continuou o discurso,
Sei que há pessoas obstinadas nos assistindo, pessoas que se
inspiraram; sei que em alguns corações há raiva, em outros há ódio
feroz talvez cultivado por anos, em outros corações sei que há emoção
esperançosa e até lágrimas duramente contidas, mas sei que vocês
não estão indiferentes ao que acontece no nosso país, nosso querido
Brasil que está sendo prostituído por essa corja de cafetões que
chamamos de políticos.
Multidões morrendo de fome enquanto esses bandidos dão festa pro
mundo assistir!
Nesse exato momento, enquanto nós invadimos as maiores emissoras
de TV do país e paramos com esse circo de entretenimento e
enganação pra falar um pouco de verdade, nossos soldados estão
tirando do poder essa corja de bandidos e mentirosos. Estamos
dominando Brasília e tirando os opressores de seus lugares de
conforto! Estamos desarticulando essa polícia corrupta e violenta,
esses capangas dos poderosos que só servem pra proteger a
propriedade privada e massacrar os pobres! Não podemos deixar
nossa segurança nas mãos de bandidos fardados!
Estamos dominando as capitais que apoiam o governo federal, e
implantando um governo comunitário, onde os cidadãos serão
ouvidos e a democracia deixará de ser apenas uma lenda.
Vamos transformar essa falsa democracia que é nosso Brasil
corrupto, desengonçado e ignorante, numa democracia libertária e
real para todos. Se democracia é o governo do povo, então vamos
governar nosso país com nossas próprias mãos! Nós não precisamos
ser uma potência econômica, não precisamos competir com o resto do
mundo, não precisamos devorar a Terra, não precisamos viver de
maneira competitiva... precisamos apenas viver como irmãos, de
maneira cooperativa, até que cheguemos a um estado em que os
indivíduos poderão se autogovernar.
Existem alternativas a esse modelo político econômico escravista que
está dominando todo o planeta, esse modelo demoníaco e excludente
que relega milhões de irmãos nossos à miséria e ao desaparecimento,
e nos relega à hipocrisia e à indiferença em relação ao sofrimento da
maioria de nossos irmãos!
Se dentro de vocês houver um canto engasgado de liberdade e justiça,
uma vontade de mudar esse país tão explorado e tão massacrado por
esses filhos-da-puta; se em seu coração houver o espírito dos deuses,
promova a mudança conosco! Nós somos a revolução! Nós somos a
transformação do mundo num lugar melhor!
Maria tomou novamente a palavra e,
Se vocês também querem revolucionar esse país e vê-lo administrado
por gente de verdade, amarre um lenço no rosto e venha para as ruas
apoiar o Movimento!
E amarrou um lenço árabe até a metade do rosto e gritou, dando um
soco no ar,
REVOLUÇÃO!
Em seguida, Dom e Maria saíram de cena e o vídeo começou a
mostrar cenas emocionantes de pessoas ajudando umas às outras e
uma narração tocante falando a respeito de cooperação, amor,
equidade e valores que não são a matéria-prima dessa Babilônia que
habitamos.
Nosso vídeo apelava para a consciência dos indivíduos, mas também
parecia um filme publicitário, com muitos elementos de sedução dos
telespectadores; não havia outra maneira de nos comunicarmos com
os ignorantes que não fosse em sua própria linguagem, a da sedução
do consumo, e nós apelávamos para o consumo de uma ideia, a ideia
da Revolução. Tínhamos contratado uma produtora de vídeos
publicitários para colocar em ação nossas ideias e tornar nosso vídeo
bastante atrativo e popular. Maria tinha um apelo fashion, moderno e
independente, o estereótipo desejado pelas mulheres em geral; Dom
parecia um revolucionário de novela, com charme, carisma e um
discurso persuasivo. Além disso, o discurso tinha legenda em inglês,
para que suas palavras tivessem um alcance global imediato.
Toda revolução demanda uma dose de maldade, e agora não é o
momento para reflexões sobre esse aspecto, mas nós havíamos
estudado o povo como as empresas estudam seu público-alvo.
Houve uma comoção mundial instantânea por causa do nosso vídeo e
a cerimônia de abertura das Olimpíadas já era notícia secundária e
desimportante; recebemos milhões de mensagens de apoio de pessoas
de todas as partes do mundo em todas as redes sociais e sites de
compartilhamento da internet; o Anonymous mostrou apoio em seus
sites pelo mundo, a mídia NINJA começou a cobrir os acontecimentos
para evitar qualquer manipulação da informação, os Black Blocs e
muitos outros movimentos com ideais revolucionários, nos apoiaram
logo de cara e se puseram à disposição para qualquer tipo de trabalho
ou confronto. Na verdade, todos esses movimentos já estavam
organizados para protestarem contra as Olimpíadas, como haviam
feito na Copa da FIFA em 2014, tentando impedir a realização dos
jogos, bloqueando ruas, fazendo manifestações e sendo duramente
reprimidos e injustamente presos.
Com o advento de nossa revolução, o barril de pólvora estourou e
nossa rede de apoio se multiplicou pelo Brasil e pelo mundo; nosso
setor de Inteligência teve dificuldades para lidar com tantas adesões e
tantos novos soldados.
No entanto, os governos oficiais já se organizavam para interferir num
golpe de estado que lhes era desfavorável. Reuniões extraordinárias
foram convocadas na ONU e representantes dos principais países
membros se reuniram horas depois para deliberar sobre nossa
situação.
Porta-aviões americanos já estavam sendo direcionados para nossa
costa e bases americanas, instaladas em território brasileiro quando da
realização da Copa do Mundo, já estavam em alerta para qualquer
situação de emergência e fornecendo muitas informações sobre os
acontecimentos.
Nossa estratégia para conter esse contra-ataque já esperado era colocar
em prática o projeto virtual de postagem de mensagens e práticas
revolucionárias, que poderiam ser executadas por qualquer um, em
qualquer lugar e com pouquíssimos recursos, revolucionando o
cotidiano e as percepções das pessoas, tipo distribuir sementes de
maconha para serem plantadas nos canteiros das cidades, estimular o
escambo para diminuir a importância e o uso do dinheiro, pedir ao
povo que fechasse as delegacias colocando seus carros estacionados
na frente dos distritos policiais, etc.
Nosso objetivo era travar qualquer tentativa de reação do governo
federal, das forças armadas e das polícias, uma tarefa que precisava
ser executada em várias frentes e que precisava de muita criatividade
para ser realizada sem os instrumentos e métodos tradicionais. Como
éramos filhos da era tecnológica, tínhamos que pensar em meios que
estivessem fora do alcance dos métodos utilizados pelo governo e
pelas polícias, e foi o que fizemos. Espalhamos mensagens em forma
de vídeos e imagens, veiculados na internet e nas maiores emissoras
do país, estimulando as pessoas a mudarem de atitude, a apoiarem a
revolução e saírem às ruas.
Daquele momento em diante estávamos em guerra com o resto do
mundo. O Brasil era peça-chave dessa mundialização
homogeneizadora que se pratica sob o nome de neoliberalismo
democrático, e os senhores do mundo não permitiriam que uma
economia forte como a brasileira caísse nas mãos de gente como nós.
Tomando o poder, eles sabiam que o Brasil deixaria de ser a galinha
dos ovos de ouro que sempre foi, dando muitos lucros ao capital
estrangeiro e aos grandes bancos; o povo deixaria de ser tratado como
gado e de servir como escravo desse sistema, e isso seria uma enorme
perda aos gordos cofres desses senhores do mundo.
Sendo assim, restava-nos resistir, como já esperávamos também, e
nossa resistência seria, por um lado, a violência revolucionária, se
concretizando com os sequestros de figuras centrais do governo e dos
grandes bancos, os ataques armados às instalações oficiais, minando
seu poder de organização e estabelecendo um caos administrativo, e
por outro lado, estabelecer canais de comunicação com a população,
ouvindo suas demandas e necessidades e organizar meios de viabilizar
nosso governo revolucionário com o apoio do povo.