a construção do discurso da história literária na literatura

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1 Carlos Manuel Ferreira da Cunha A construção do discurso da história literária na literatura portuguesa do século XIX Centro de Estudos Humanísticos Universidade do Minho Braga 2002

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  • 1

    Carlos Manuel Ferreira da Cunha

    A construo do discurso da histria literria

    na literatura portuguesa do sculo XIX

    Centro de Estudos Humansticos

    Universidade do Minho Braga

    2002

  • 2

    NDICE GERAL

    Prlogo 13

    I. O discurso da histria literria em Portugal 15

    1. O termo e o conceito de discurso: arqueologia e genealogia 16

    2. O discurso da histria literria: pluralidade e construtividade 21

    3. Para uma histria da histria literria 24

    3.1. A histria literria como histria civil: a secularizao do saber 26

    3.2. Da histria literria histria da literatura 29

    3.3. A nacionalizao da histria literria 33

    3.4. A histria literria e a legitimao cientfica: do historicismo idealista

    ao positivismo 34

    NOTAS 39

    II. A nacionalizao da literatura 49

    1. O imaginrio nacional: nao, narrao e tradio 56

    2. Da repblica das letras s letras da repblica: iluminismo e romantismo 60

    3. Os irmos Schlegel e De lAllemagne: romantismo vs. iluminismo 64

    4. A nao literria 68

    4.1. A nao lingustica de Herder 68

    4.2. A literatura popular/nacional: da Questo Homrica

    ao Volksgeist herderiano 72

    4.2.1. A homerizao romntica de Cames 83

    4.3. Literaturas originais e imitativas: uma cartografia romntica ou as

    duas Europas 90

    NOTAS 101

    III. A histria literria como histria profunda da nao: modelos, funo

    e motivao 129

    NOTAS 150

    IV. A histria literria em Portugal: a construo da cultura nacional 161

    1. A necessidade de uma histria literria 161

  • 3

    2. A politizao da nao cultural: romantismo e liberalism 171

    3. A delimitao das fronteiras culturais 185

    3.1. O tico e o esttico 185

    3.2. O esprito nacional 191

    NOTAS 195

    V. A histria literria e a narrativa da nao 217

    1. A construo da histria literria e o Curso Superior de Letras 218

    2. As origens e a falta de originalidade da literatura portuguesa 220

    3. Nao moral vs. nao tnica: a polmica de 1872 232

    4. O discurso tnico e a questo das origens: germanismo vs. romanismo;

    idealismo vs. positivismo 242

    5. A periodizao: progresso e decadncia 256

    5.1. Gongorismo: assincronia e reabilitao 279

    5.2. Uma genealogia romntica: retroactividade e redeno 284

    NOTAS 287

    VI. A inveno da Tradio 331

    1. Tefilo Braga e a inveno da tradio nacional 333

    1.1. A escola trovadoresca portuguesa 340

    1.2. A literatura popular e a nacional-literatura 342

    2. A inveno do lusismo e a(s) genealogia(s) da nao 347

    3. Tefilo Braga e a fundao da histria da literatura portuguesa:

    do romantismo ao positivismo 354

    NOTAS 366

    VII. Prticas dicursivas identitrias 393

    1. As comemoraes camonianas 393

    1.1. A con/sagrao de Cames como smbolo da nacionalidade: biografia e

    histria 393

    1.2. O paradoxo histrico dOs Lusadas: as duas almas de Cames 398

    1.3. O Tricentenrio de 1880: ideologia e universalizao 405

  • 4

    2. O discurso da histria literria no ensino liceal: ao servio da nao 412

    2.1. Das humanidades clssicas ao Portugus: lngua e histria nacionais 414

    2.2. A histria da literatura nos Liceus 424

    NOTAS 431

    VIII. Concluso 457

    NOTAS 464

    BIBLIOGRAFIA 467

    NDICE ONOMSTICO 499

  • 5

    "All literary works (...) are 'rewritten', if only

    unconsciously, by the societies wich read them;

    indeed there is no reading of a work wich is not

    also a 're-writing'." (Eagleton, 1983: 11)

    Prlogo

    Estas palavras introdutrias procuram explicitar e justificar algumas opes quanto

    estruturao deste trabalho e circunscrio do seu objecto material, uma vez que nos

    ocuparemos do seu objecto formal no primeiro captulo.

    Uma das maiores dificuldades com que nos deparmos consistiu na diviso e organizao

    dos materiais estudados, em parte devido natureza do objecto de estudo, mas tambm em

    virtude da prpria dimenso do tempo histrico, que no pode ser reduzido a um esquema

    diacrnico unilinear, pois cada sincronia contm diacronias diferentes (cf. Koselleck, 2000: 159).

    De igual modo, impossvel reduzir os autores a um pensamento monolgico, dadas as

    alteraes e revises que efectuam das suas obras e as conexes (parciais ou integrais) que

    estabelecem com outros autores e com outras obras.

    Por outro lado, os temas e as ideias literrias dominantes no sculo XIX esto articulados

    entre si, pelo que qualquer separao acaba por ter um carcter artificial. Alm disso, torna-se

    impossvel estudar todas as questes de modo exaustivo, pelo que procurmos estabelecer uma

    linha dominante neste trabalho, centrada na noo de literatura nacional, que lhe serve de

    referncia estruturadora (cf. II.1). Assim, demos um certo relevo forma como o discurso da

    histria literria conduziu a uma nova leitura de Cames (cf. II.4.2.1 e VII.1), mas no

    pretendemos de modo algum elaborar uma histria da "recepo" da obra camoniana ao longo do

    sculo XIX. De certo modo, procurmos proceder como R. Koselleck, organizando os vrios

    captulos como "centros de interesses", mediante cortes semnticos transversais, seguindo uma

  • 6

    certa perspectiva diacrnica (id.: 20), o que por vezes implica algumas repeties de captulo

    para captulo.

    Em relao s fontes bibliogrficas, exclumos as obras manuscritas, como a do Cnego

    Joo da Anunciada, referida por Carolina Michalis de Vasconcelos (1990 [1904]), ou o estudo

    de Frei Fortunato de S. Boaventura que foi publicado em 1905 por Antnio Portugal de Faria:

    "Litteratos portugueses na Italia ou colleco de Subsidios para se escrever a Historia Litteraria

    de Portugal" (vl. 4 de Portugal e Italia). Neste ltimo caso, o manuscrito era conhecido por

    alguns estudiosos, pelo que teremos em conta a recepo que teve. No entanto, o facto de estes

    estudos terem permanecido inditos ao longo do sculo XIX explica a escassa influncia que

    exerceram.

    Um dos problemas maiores para quem se aventura neste mbito de estudos continua a ser,

    como sublinhavam muitos autores no sculo XIX (cf. IV.1), a ausncia de monografias

    especializadas sobre a histria das ideias literrias em Portugal. Por isso, as obras de Fidelino de

    Figueiredo (1916) e de Joo Palma-Ferreira (1985, 1986) foram de um prstimo inestimvel. A

    recente obra de Massaud Moiss (2000) permitiu, entre outros aspectos, a aferio de alguns

    resultados da investigao entretanto efectuada. A Histria da Histria em Portugal (1996), de

    Lus Torgal, Jos Amado Mendes e Fernando Catroga, foi um guia importante para o

    enquadramento historiogrfico dos autores estudados, proporcionando uma ampla perspectiva da

    dimenso institucional e social do ensino da histria nacional em Portugal.

    Por fim, gostaramos de salientar que a principal motivao para este trabalho proveio do

    estmulo, da orientao atenta e do rigor dos conselhos do Professor Doutor Vtor Manuel de

    Aguiar e Silva, a cujo magistrio esta dissertao deve o que for louvvel. Os defeitos e

    imperfeies, esses so imputveis apenas ao autor.

  • 7

    I. O discurso da histria literria em Portugal

    Ao longo do presente trabalho, procuraremos examinar o modo como se construiu o

    discurso da histria literria na literatura portuguesa do sculo XIX. Porm, um tal objecto

    material de estudo no pode ser apresentado sem uma prvia anlise dos termos que contm, de

    forma segmentada e articulada. De incio, h a difcil delimitao do conceito de discurso, da

    prpria concepo de histria e de literatura (conceitos que variam historicamente),

    complexidade que converge na prpria possibilidade da histria literria como disciplina, tendo

    em conta a especificidade do seu objecto e a sua articulao com a histria geral. Por outro lado,

    o prprio mbito temporal de tal projecto implica, no fundo, o estudo da fase fundacional de uma

    disciplina que emergiu no sculo XIX e que hoje objecto de uma profunda reflexo e

    renovao. Mas esta circunscrio temporal, em parte justificada e em parte convencional (o

    conceito de "sculo"), teve que ser muitas vezes transgredida, quer atravs de recuos temporais,

    quer mediante avanos at ao sculo XX, para estabelecermos "procedncias" e continuidades, e

    na medida em que a obra fundadora de Tefilo Braga se estende de 1865 at 1924. A

    circunscrio literatura portuguesa decorre naturalmente do facto de a histria literria se ter

    construdo em torno das naes e das culturas nacionais.

    O sintagma "discurso da histria literria" implica simultaneamente uma especificidade

    que o diferencia de outros tipos de discurso e uma dependncia de um discurso mais global, "o

    discurso da histria" (nacional), sob o signo do qual a histria literria se construiu. Tal

    articulao, dada a especificidade do fenmeno literrio, fonte de aporias e perplexidades, em

    virtude da "colonizao" da literatura pela histria, da porosidade disciplinar em que assenta a

    "histria literria" e da problemtica ideolgica da "identidade nacional" que lhe inerente.

    Em primeiro lugar, torna-se necessrio precisar o termo e o conceito de "discurso" e

    depois os sintagmas "discurso da histria" e "discurso da histria literria", sobredeterminado

    pelo respectivo gentlico. No sculo XIX, num sintagma como "histria da literatura portuguesa",

    a tnica colocada invariavelmente em "portuguesa". O mais importante na histria literria,

  • 8

    como veremos, consistia em traar o percurso diacrnico da nao portuguesa e do "esprito

    nacional" (a "alma portuguesa") atravs da sua literatura, que ento equivalia a cultura.

    1. O termo e o conceito de discurso:

    arqueologia e genealogia

    O lexema "discurso" polissmico, devido diversidade de abordagens a que foi sujeito

    pela teoria da linguagem e pela teoria da literatura e multiplicidade das suas aplicaes nas

    cincias humanas e sociais. Assim, articula-se com um conjunto de conceitos correlatos, que o

    restrigem ou ampliam (ao enunciado ou enunciao), de acordo com as teorias (lingustica,

    semitica, literria) em que se constri e das reas em que se aplica, o que, se condiciona as suas

    adaptaes e transposies para domnios diferentes, no impede a sua circulao

    interdisciplinar. Assim, para alguns autores, o conceito de discurso aproxima-se da parole

    saussuriana (ergon), mas outros situam-no domnio da langue (energeia), associando-o e

    confundindo-o respectivamente com o texto/enunciado ou com o sistema/enunciao (cf. Aguiar

    e Silva, 1988: 568-74). Roland Barthes, por exemplo, num famoso texto em que procura

    caracterizar "o discurso da histria", revela-se muito vago na definio do que entende por

    discurso -"La description formelle de mots suprieurs la phrase (que l' on appellera par

    commodit discours)"-, embora em termos prticos refira a necessidade de a lingustica do

    discurso dar conta, um pouco como a antiga Retrica, dos "universaux du discours (s' ils

    existent), sous forme d' units et de rgles gnrales de combinaison." (1982: 13).

    Face necessidade de clarificao deste conceito, que est na base do nosso objecto

    formal de anlise, importa pois situar e demarcar o que se entender aqui por discurso. Pela sua

    conciso e rigor, parece-nos vlida a definio proposta por Aguiar e Silva: "O discurso o

    processo semisico e social atravs do qual o sistema - a langue de Saussure - actualizado no

    objecto material e concreto que o texto." (Aguiar e Silva, 1990: 187; destaque nosso). Em

    termos de representao conceptual, o discurso aparece assim como um processo mediador entre

  • 9

    a langue e a parole, devendo ser analisado "em funo de emissores situados no tempo histrico

    e no espao social, isto , tendo em conta toda a problemtica da enunciao do discurso, desde

    os factores ideolgicos, socioculturais e econmicos que regulam a sua produo at aos efeitos

    sociais, psicolgicos e ideolgicos que o emissor procura obter." (Aguiar e Silva, 1988: 572).

    Trata-se, em suma, de constatar que o falante actualiza a langue atravs dos filtros estabelecidos

    pelas formaes discursivas, conceito que em M. Pcheux designa o que pode ser dito, em cada

    gnero, a partir de uma dada posio e conjuntura (id.: 573).

    Estes conceitos de discurso e de formao discursiva, numa perspectiva translingustica,

    de incidncia social e histrica, so um objecto privilegiado da obra de Michel Foucault, quer

    numa histria de tipo arqueolgico, quer numa perspectiva genealgica (1), embora a sua obra

    peque por negligenciar a dimenso lingustica do discurso, da enunciao propriamente dita.

    Desde o incio, Foucault procurou demarcar a indagao da "arqueologia" das cincias humanas

    (1966) e do saber (1969) do mtodo da histria das ideias, centrando-se na busca da

    descontinuidade nos eventos concretos, numa anlise marcadamente funcional (2).

    Para Foucault, o discurso um conjunto de enunciados pertencentes mesma formao

    discursiva, ao mesmo sistema de formao, para os quais possvel definir modalidades de

    existncia particulares (1969: 141). Considera assim que um enunciado pertence a uma formao

    discursiva como a frase pertence ao texto e uma proposio a um conjunto dedutivo, sendo a

    regularidade dos enunciados definida pela prpria formao discursiva (mais uma lei de

    coexistncia e uma modalidade de existncia do que um conjunto de regras externas) (id.: 152-3).

    Uma "formao discursiva" pois a lei de uma srie de enunciados (as estratgias e condies de

    possibilidade de um tipo de discurso), na sua repartio e relao, o conjunto das regras que

    preside formao dos enunciados particulares e dos outros "eventos discursivos" (objectos,

    conceitos, posies do sujeito e opes estratgicas), sendo os tipos de discurso regras de

    constituio de reas de conhecimento.

    A sua anlise implica por isso o estudo da derivao de regras de formao a partir de

    outras j existentes e da substituio de uma formao discursiva por outra. Mas o sistema

    enunciativo das formaes discursivas articula-se com outros sistemas (lgico, psicolgico,

    lingustico) e implica dimenses no discursivas (pr-discursivas), que dizem respeito sua

  • 10

    actualizao prtica, s prticas discursivas: "c' est un ensemble de rgles anonymes, historiques,

    toujours dtermins dans le temps et l' espace qui ont dfini une poque donne, et pour un aire

    sociale, conomique, gographique ou linguistique donne, les conditions d' exercice de la

    fonction nonciative." (id.: 153-4). Por sua vez, a funo enunciativa tem a ver com as escolhas

    estratgicas, que dependem da funo das prticas discursivas (v.g., o discurso pedaggico), das

    instncias que implicam o regime e os processos de apropriao do discurso (v.g., a relao

    mdico/doente, professor/aluno) e das posies de desejo em relao ao discurso (simbolizao,

    interdito, satisfao secundria).

    Neste sentido, Foucault procura demarcar o mbito do seu estudo em relao histria

    das ideias, privilegiando sobretudo a anlise da novidade, das contradies, dos factos

    comparativos e das transformaes. Assim, a anlise arqueolgica implica respectivamente,

    segundo Foucault, a considerao dos discursos como monumentos (como prticas que

    obedecem a regras) e no como meros documentos, atendendo aos discursos na sua

    especificidade (jogos de regras e modalidades), substituindo o estudo da obra pelo estudo dos

    tipos e regras das prticas discursivas, tomando o discurso como objecto (no se buscam as suas

    origens, mas o seu acontecer) (3). Deste modo, o seu objectivo no foi a escanso do discurso em

    grandes unidades (obras, autores, livros, temas), pelo que ps em uso uma srie de noes novas

    (formaes discursivas, positividade, arquivo) e definiu novos domnios (enunciados, campo

    enunciativo e prticas discursivas). Nesta medida, a arqueologia no fcil de definir e delimitar,

    visto ser uma anlise de tipo funcional: procura narrar as margens das cincias, os saberes laterais

    e annimos, atravessando as disciplinas existentes, reinterpretando-as, sendo acima de tudo uma

    perspectiva ou um estilo de anlise (id.: 177-80).

    O que torna o discurso uma prtica social precisamente a correlao dos elementos

    discursivos (as formaes discursivas) com os no discursivos (as prticas discursivas). Estamos

    j em pleno domnio da parole e da genealogia, em que o poder do discurso e os seus efeitos

    ocupam o primeiro plano face descrio arqueolgica. No entanto, a diferena entre estas

    abordagens sobretudo uma questo de nfase numa ou noutra perspectiva. Assim, quando um

    discurso ganha estatuto cientfico, "La formation rgulire du discours peut intgrer (...) les

    procdures de contrle" (1971: 68). Ao invs, esses procedimentos de controlo podem ganhar

  • 11

    corpo no prprio interior de uma formao discursiva: "ainsi la critique littraire comme discours

    constitutif de l' auteur" (ibid.). A figura do autor uma pea fundamental desta articulao entre

    a pesquisa arqueolgica e genealgica no campo dos estudos literrios. Por um lado, uma

    manifestao do reconhecimento do sujeito e da liberdade de expresso, mas no momento mais

    significativo desse processo, na instituio dos direitos de autor, est presente a vontade de

    "controlar" os sujeitos/autores e a circulao social dos seus discursos, do mesmo modo que em

    termos mais globais a sociedade moderna visava disciplinar o sujeito (4). Por outro lado, apesar

    da sua aparente materialidade, o autor resulta de uma construo discursiva complexa, como

    sucede com a crtica literria moderna, em que funciona como "princpio de uma certa unidade

    de escrita" (estilstica), como "campo de coerncia conceptual" (que permite resolver as

    contradies textuais), como unidade histrica (biografia) e foco de expresso que permite

    agrupar os seus textos como obra (1992: 53) (5).

    Estava assim preparado o terreno para a sua pesquisa genealgica, a que d, de certo

    modo, incio na Leon inaugural, no Collge de France (2/10/1970), centrada no discurso como

    forma de dominao, a partir da hiptese de que em todas as sociedades a produo do discurso

    controlada, seleccionada, organizada e redistribuda mediante um certo nmero de procedimentos

    que visam conjurar os seus poderes e perigos, dominar o acontecimento aleatrio e escapar sua

    materialidade (1992: 10-11). Estes procedimentos so externos (de excluso), servindo para

    dominar o poder dos discursos (o mais importante a "vontade de verdade"), ou internos (autor,

    comentrio e disciplinas) e reforam-se pela seleco dos sujeitos falantes (regras e condies de

    participao) (6). O autor aparece aqui como um dos procedimentos internos, que so princpios

    de classificao, ordenao e distribuio, para controlar/dominar o acontecimento e o acaso do

    discurso, o que no caso do autor se realiza pela construo de uma identidade que tem a forma da

    individualidade (7).

    No campo dos estudos literrios, o comentrio e a funo autor so indissociveis e

    inserem-se nas suas vrias disciplinas (em especial na crtica e na histria literrias) como

    princpios de produo discursiva e, concomitantemente, com uma funo restritiva. Em "A

    morte do autor", Roland Barthes punha j em correlao estes trs procedimentos internos de

  • 12

    controlo discursivo, destacando que a centralidade do autor permitia um maior controlo do

    comentrio crtico (8):

    "Dar um Autor a um texto impor a esse texto um mecanismo de segurana, dot-lo de um significado

    ltimo, fechar a escrita. Esta concepo convm perfeitamente crtica, que pretende ento atribuir-se a tarefa

    importante de descobrir o Autor (ou as suas hipstases: a sociedade, a histria, a psique, a liberdade) sob a obra:

    encontrado o Autor, o texto 'explicado', o crtico venceu; no h pois nada de espantoso no facto de,

    historicamente, o reino do Autor ter sido tambm o do Crtico, nem no de a crtica (ainda que nova) ser hoje abalada

    ao mesmo tempo que o Autor." (1984: 52) (9).

    possvel articular no campo dos estudos literrios a anlise crtica e genealgica de

    Foucault a vrios nveis. Os procedimentos internos (autor, comentrio, disciplinas) dependem

    fortemente dos procedimentos externos (ligados ao poder discursivo), como "a vontade de

    verdade" (o principal sistema de excluso discursiva), que leva a adoptar em cada poca o

    discurso que for legitimador da verdade (Foucault, 1992a: 15) e que exerce sobre os outros

    discursos uma espcie de presso e como que um poder de constrio, como se verifica na

    adopo permanente do discurso das cincias naturais, em particular da biologia, pelo discurso da

    histria e da histria literria. Este, como outros sistemas de excluso, apoia-se num suporte

    institucional (sistema de ensino, agremiaes e sociedades culturais e cientficas) e num conjunto

    de prticas de edio e conservao de textos e documentos (bibliotecas, arquivo). O

    procedimento fundamental deste suporte a seleco dos sujeitos falantes, na medida em que a

    vontade de saber reconduzida mais profundamente pela maneira como o saber se actualiza

    numa sociedade, pelo modo como valorizado, distribudo, repartido e atribudo (id.: 19-20), na

    constituio de sistemas de submisso dos discursos (id.: 46-7). Esta seleco funciona como

    um ritual de palavra, que define as qualificaes para participar nas sociedades de discursos, que

    tm por funo conservar ou produzir discursos, para os fazer circular num espao mais ou

    menos fechado (os escritores, as doutrinas e os grupos doutrinais). H, por fim, que ter em conta

    os modos de apropriao social, pois apesar de a educao dar acesso aos diferentes discursos,

    todo o sistema de educao uma maneira poltica de manter ou modificar a apropriao dos

    discursos.

  • 13

    Foucault destaca deste modo a interdependncia entre as prticas discursivas e as prticas

    sociais, com as suas instituies, numa dimenso interdiscursiva e interdisciplinar (10). Essa

    articulao funcional, sem esquecer a anlise discursiva, relevante no discurso da histria

    literria, enquanto prtica discursiva institucional, com funes especficas em termos sociais

    (particularmente no sistema de ensino e em relao ao capital literrio/simblico nacional). As

    formaes discursivas e os discursos que possibilitam aparecem assim inseridos no mbito das

    prticas discursivas de uma dada sociedade e na esfera institucional em que so legitimadas, ao

    servio do "poder simblico", que segundo P. Bourdieu o "poder de construir o dado pela

    enunciao, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a viso do mundo e, deste

    modo, a aco sobre o mundo (...); poder quase mgico que permite obter o equivalente daquilo

    que obtido pela fora (fsica ou econmica), graas ao efeito especfico de mobilizao, s se

    for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrrio." (1989: 14). Mas o poder simblico da

    enunciao e a eficcia simblica da linguagem na construo da realidade (a sua

    "performatividade simblica") dependem das prticas discursivas sociais e exigem um

    reconhecimento, que depende da posio do enunciador e da sua localizao institucional, das

    "condies de felicidade discursiva" institucionalizadas: "Il n'y a pas de pouvoir symbolique sans

    une symbolique du pouvoir." (1982: 73) (11).

    O funcionamento do campo literrio (campo especfico de foras e de lutas de

    concorrncia) e das suas formaes discursivas dependem, segundo Bourdieu, da relao entre

    um habitus (sistema de disposies; crena e illusio) e um campo, que uma rede de relaes

    objectivas entre as posies e as tomadas de posio dos seus agentes num espao de produes

    possveis (domnio, luta, intercmbio, etc.) (1992: 321 ss.), que resultam da distribuio das

    espcies de capital ou poder, cuja posse governa a obteno dos ganhos especficos postos em

    jogo no campo (v.g., poder, prestgio). I. Even-Zohar aproxima esta sociologia do "campo

    literrio" (que denomina Instituio) (12) da concepo formalista da literatura como sistema,

    concebendo-o como uma estratificao dinmica, em que a concorrncia de posies/opes

    conduz luta de certos modelos e reportrios para ocupar o centro do sistema (sendo as posies

    vencidas remetidas periferia), conduzindo canonizao (e descanonizao) de certos

    princpios, autores e textos.

  • 14

    A aplicao ao mbito dos estudos literrios das quatro dimenses do discurso que

    Foucault definiu na sua Archologie du Savoir (1969) exige algumas precaues

    epistemolgicas, mas permite obter resultados reveladores das articulaes entre o saber e o

    poder, em particular no que respeita emergncia das "literaturas nacionais". A este nvel,

    merece destaque o estudo de Vassilis Lambropoulos, que procura adaptar a pesquisa de Foucault

    literatura grega moderna (13), e de modo particular canonizao de um autor em que o tico

    (o nacional) supera o esttico, em que o aspecto ideolgico faz esquecer a escassez do valor

    literrio (14). A partir daqui, procura construir um modelo genealgico aplicvel literatura, em

    que a prpria definio de discurso central: "Discourses, those explicatory systems wich map

    and master areas of tought, knowledge, and craft, strive for domination over institutions; they

    aspire to naturalize them and impose absolute games, thereby effecting the identification of the

    game with the world." (1988: 237-8).

    Desta definio facilmente se conclui uma aproximao s caractersticas da arqueologia

    apontadas por Foucault, considerando Lambropoulos a literatura como uma instituio social

    dominada por diferentes discursos em diferentes perodos histricos e simultaneamente afectada

    pelos discursos que dominam outras instituies contemporneas, como a crtica. Desse modo,

    uma genealogia deve ocupar-se das prticas dicursivas, analisando a constituio do discurso

    crtico em vrios perodos e o impacto de outros discursos dominantes (lingustico, poltico, etc.),

    abandonando-se, como em Foucault, a anlise de autores e obras para se estudarem as prticas de

    escrita e de leitura e os seus lugares institucionais, descrevendo-se os contornos, os limites e os

    mecanismos operativos do discurso dominante (15).

    Outra dimenso desta geneologia a que corresponde definio dos discursos na sua

    especificidade, buscando mais a descontinuidade do que a continuidade, situando os discursos na

    sua historicidade, enquanto fenmenos culturais nicos, situados, determinados e irredutveis. A

    autoridade de um discurso na instituio literria exercida pela imposio de certas regras e

    limitaes na construo e circulao das obras de arte, o que circunscreve a liberdade criativa do

    autor, do crtico, do professor e do pblico leitor. No seu perodo de dominao, certas normas

    artsticas definem a esttica dominante, afectando directamente as prticas da escrita e da leitura.

    Este estudo efectua-se mediante um estudo interdisciplinar e comparativo que confronta o

  • 15

    discurso dominante com os discursos marginalizados e as instituies vizinhas, que procura

    mostrar os seus mecanismos de incluso e excluso, revelando, por exemplo, a censura e a

    reviso, na sua dimenso ideolgica.

    O facto de a anlise genealgica dar mais importncia aos discursos considerados na sua

    especificidade e nas suas diferenas e de preferir a anlise das prticas discursivas, implica a

    descrio dos seus mecanismos de operao e das regras de dominao. Tal como Foucault

    rejeitara outro tipo de unidades discursivas, como a obra, Lambropoulos critica as bases das

    noes romnticas sobre a obra de arte, o autor, a influncia, o progresso, a tradio, e os seus

    suportes filosficos. A genealogia, na sua perspectiva, desmascara a viso idealista das histrias

    da literatura, que considera serem catlogos de obras-primas, vendo a literatura como uma

    instituio social e a sua histria como uma histria de interpretaes e de conflitos

    interpretativos, de competio dos discursos pelo poder institucional (id.: 38; destaque nosso),

    sendo a genealogia "an interpretation of interpretations - a critical metacommentary" (id.: 41-2).

    Recusa assim a histria da literatura como uma histria dos talentos e dos seus triunfos, das

    pocas (e do "esprito" de cada poca). A histria da literatura deve, segundo Lambropoulos,

    analisar a complexa interaco entre o desejo artstico, a vontade interpretativa e o gosto do

    pblico, embora sem adoptar o modelo evolucionista, que suporta as ideias de progresso

    intelectual e de continuidade cultural, "tpicas da utopia humanista". Segundo Lambropoulos,

    isso implica o exame das noes de literariedade e qualidade, para explicar, por exemplo, como

    que certos gneros saem de moda e certas obras so marginalizadas, como que certos discursos

    invadem o territrio (v.g., a filosofia) (16).

    Decorrente desta perspectiva agonstica, a anlise das transformaes centra-se- nos

    usos culturais que as vrias escolas do a um escritor (17), na descrio sistemtica, em termos

    histricos, do modo como as obras se tornam discurso-objectos e emergem como obras de arte,

    no seio das restries institucionais, das comunidades interpretativas e das prticas discursivas

    institudas. Voltado para o uso do "capital simblico" (Bourdieu) ou do "capital cultural"

    (Guillory) da literatura, Lambropoulos afirma que a verdadeira questo poltica e no

    epistemolgica (18). Porm, entendemos que este axioma deve ser postulado ao contrrio, mais

  • 16

    que no seja para se poder constatar que a questo poltica. Caso contrrio, os pressupostos

    sobredeterminam (quando no subvertem) os resultados da pesquisa.

    Sem adoptarmos acriticamente o programa genealgico de Foucault e a aplicao de

    Lambropoulos, pensamos que se trata de uma metodologia com mltiplas virtualidades, com a

    inegvel vantagem de o programa deste ltimo autor se relacionar directamente com o objecto

    formal do nosso trabalho, com a construo do discurso da histria literria e com o seu conceito

    estruturador, a ideia de literatura nacional. No menos importante o facto de conceder uma

    forte ateno s prticas discursivas e dimenso performativa e institucional dos discursos.

    2. O discuro da histria literria:

    pluralidade e construtividade

    A histria literria, porque histria, partilha com a histria geral o tipo de discurso

    (narrativo) e toda a sua complexa problemtica, para alm dos seus problemas especficos,

    relativos sobretudo natureza do seu objecto. Porm, preciso ter em conta a plurissignificao

    do termo e do conceito de histria (19) e a diversidade das suas prticas discursivas, com graus e

    nveis de exigncia distintos (20). Sem esquecermos estas diferenas epistemolgicas, lgicas e

    ontolgicas em relao aos vrios usos do discurso da histria, sincrnica e diacronicamente,

    nomeadamente a nvel das prticas discursivas e sociais, importa focar as similaridades que

    comporta, sobretudo em torno da sua dimenso narrativa (21).

    No discurso da histria tambm confluem, na interseco com outras formaes

    discursivas, um conjunto de prticas discursivas diversas, que podemos diferenciar pelo facto de

    serem produtoras de novos conhecimentos ou de servirem apenas como meios de divulgao,

    com pretenses distintas, ora a um nvel da "esfera pblica" (como O Panorama), ora no espao

    do sistema de ensino. Por outro lado, essas prticas discursivas imbricam-se com frequncia no

  • 17

    que poderamos designar como as "representaes" da identidade ("discurso identitrio"), que

    tiveram como momento paradigmtico as comemoraes do Tricentenrio de Cames, em 1880.

    Apesar de o nosso objecto de estudo ser a emergncia e a constituio da histria

    literria em Portugal, procuraremos dar conta das vrias manifestaes do discurso da histria

    literria, que no se restringe ao manual ou curso de literatura portuguesa, estando, v.g.,

    presente de modo intenso na crtica literria, na medida em que esta procura dar conta da

    dimenso histrica da literatura e situar/avaliar os escritores no seu tempo e em relao aos seus

    antecedentes. L. A. Rebelo da Silva, por exemplo, tem o hbito de desenvolver longas snteses

    histricas da literatura para enquadrar o autor ou o movimento que pretende analisar. Por outro

    lado, apesar de Herculano, A. P. Lopes de Mendona e Rebelo da Silva nunca terem escrito uma

    histria da literatura, possvel reconstruir (aproximadamente) pelo conjunto dos seus artigos

    uma perspectiva diacrnica da evoluo da literatura portuguesa, embora se devam ter em conta

    as mudanas de pensamento que se registam nos seus percursos. Por outro lado, em Tefilo

    Braga, pioneiro ou fundador da histria da literatura portuguesa, encontramos uma obra

    multmoda, formada por biografias, monografias epocais, bibliografias e snteses, que no seu

    conjunto, apesar das continuidades, revela pelo menos trs momentos distintos, por vezes

    contraditrios, como se pode verificar pelas duas revises que efectuou do seu primeiro

    "macrotexto" de 1870-2 (cf. VI). Neste caso, privilegimos as snteses em forma de compndio

    que Tefilo escreveu (1875, 1885 e 1909-18), sem esquecer as outras obras.

    Em todos os momentos, tornou-se evidente o carcter "construtivo" do discurso da

    histria literria, em que interfere, sem excepes, a perpectiva ideolgica dos sujeitos

    enunciadores. R. Barthes considera trs domnios fundamentais no discurso da histria: a

    enunciao, o enunciado e a significao que produz (1982). De modo global, coloca a nfase no

    carcter construtivo do discurso histrico, como o faz noutro estudo Siegfried Schmidt (1995

    [1985]), acentuando a sua natureza narrativa, do mesmo modo que H. White (1978, 1987,

    1993), que pe a tnica na sua dimenso potica. Deste modo, R. Barthes comea por analisar

    os aspectos lingusticos da enunciao histrica, que caracteriza pelo ocultamento deliberado do

    sujeito e do fenmeno enunciativos, com o fim de produzir um efeito de real (iluso

  • 18

    referencial), construindo um discurso assertivo e aparentemente objectivo, na medida em que

    faz refluir o discurso para o enunciado e para o referente (22). Em suma, trata-se da "castidade

    da histria" (Fustel de Coulanges), do que Nietzsche, mais castico, designava a hipocrisia dos

    "eunucos da histria" (apud Foucault, 1988: 599).

    O que est em causa em Nietzsche a perspectiva do historiador. Foucault retoma este

    tpico em Nietzsche, la Genealoga, la Historia : "Los historiadores tratan de borrar, en la

    medida de lo posible, aquello que puede traicionar, en su saber, el lugar desde el que miran, el

    momento en el que estn, el partido que toman - lo insoslayable de su pasin.". Assim, o

    historiador simula "un discreto anulamiento ante lo que mira". (1988: 54). Da a necessidade,

    como observa J. Lozano, de prestar ateno aos enunciados e de observar as suas

    transformaes, a fim de "descubrir las estrategias de un enunciador que se empea en

    ocultarse." (1987: 210).

    Este uma aspecto essencial do discurso histrico e em seu torno travam-se os principais

    conflitos da "vontade de verdade", na medida em que impossvel contornar ou escamotear a

    natureza discursiva/narrativa da Histria e o facto de ser escrita (construda) por um sujeito

    histrico, o que constitui um permanente desafio "vontade de verdade" objectiva e cientfica

    (23).

    A interpretao comea na seleco e ordenao das "fontes", mas manifesta-se

    sobretudo na seleco e ordenao do universo diegtico, atravs do acto narrativo, segundo

    uma certa perspectiva (focalizao). , alis, naqueles dois processos que assenta a narratividade

    (24). A histria literria uma narrativa na medida em que um narrador relata a transio

    atravs do tempo de um estado de coisas para um estado de coisas diferente. O que ele

    selecciona e a forma especfica de concatenao desses dados no pode ser nunca uma operao

    inocente, na medida em que implica a construo especfica de uma "histria". Por outro lado,

    como refere A. Danto, a perspectiva do historiador, que conhece o "futuro do passado", permite-

    lhe saber as causas/efeitos e a explicao do que para os contemporneos era desconhecido,

    semelhana dos narradores romanescos, destacando no passado o que o "futuro do passado" lhe

    mostrou ser relevante (1985: 349-51).

  • 19

    Por outro lado, o prprio modo de ordenao depende de um conjunto de pressupostos

    (concepo de con/sequncia e causa/lidade) e, mais globalmente, da viso do mundo do

    historiador. Na histria literria, este facto evidente na seleco dos textos e autores e na

    organizao com que so agrupados entre si e em relao sucesso diacrnica (25). A

    perspectiva que preside seleco, agrupamento e organizao faz com o discurso histrico

    esteja imbudo de uma radical dimenso hermenutica e valorativa (26). Na realidade, esta

    terceira dimenso do discurso histrico, a significao ideolgica (imanente ou transcendente),

    resulta das outras duas, a enunciao e o respectivo enunciado. Segundo R. Barthes, o discurso

    histrico visa "preencher" o sentido da Histria, seleccionando factos e sobretudo os seus

    significados, para os organizar, a fim de combater o vazio da pura srie (1982: 19).

    O reconhecimento da natureza lingustica e construtiva do discurso da histria

    relativamente consensual no pensamento contemporneo, segundo graus diferenciados e com

    consequncias epistemolgicas distintas (27). No mbito da narratologia, a distino entre

    diegese (a se situam tambm as res gestae) e discurso veio pr em relevo a sua

    interdependncia: "A diegese um "construto tropolgico", s adquire existncia atravs do

    discurso de um narrador e por isso essa existncia indissocivel das estruturas textuais, das

    microestruturas estilsticas como das macroestruturas tcnico-compositivas." (Aguiar e Silva,

    1988: 717). Por outro lado, como demonstra A. Danto, a histria enquanto cincia pressupe

    uma relao referencial da linguagem com a realidade, mas a conscincia que os homens tm

    dos eventos (as representaes histricas) torna-se parte desse evento, no sendo possvel mudar

    a representao sem ao mesmo tempo mudar a realidade, na medida em que a linguagem faz

    parte do mundo representado por ela (1985: 305, 323-7). As estruturas narrativas penetram a

    nossa conscincia dos eventos de modo paralelo quele em que a teoria modela as observaes

    na cincia, sendo a narrao sobretudo um dos modos de representar o mundo, com a sua

    linguagem, "to so great a degree that our image of our own lives must be deeply narrational."

    (id.: xiii). Em suma, a transcendentalidade da histria posta em causa porque o discurso da

    histria emerge e reside na construo discursiva que a produz (28).

    Mas este reconhecimento da natureza construtiva do discurso da histria no se d sem

    consequncias. Destacaremos sobretudo trs, quanto ao estatuto do objecto, do discurso e da

  • 20

    disciplina. Assim, comea-se por questonar a "objectividade dos factos". Segundo Barthes, o

    enunciado do discurso histrico produz "existentes" (seres) e "ocorrentes" (eventos), salientando

    que as classes de unidades de contedo do enunciado histrico (indcios/informantes, entimemas

    e funes) e a sua sucesso (indicial ou metafrica, funcional ou metonmica e reflexiva ou

    estratgica) so as mesmas da narrativa de fico, resultando de uma seleco prvia (critrios) e

    de uma organizao especfica (1982: 18) (29).

    Outra face do actual reconhecimento da importncia do discurso na construo da histria

    assenta em princpios opostos aos que conduziram crena positivista na sua objectividade

    factual. Se a histria enquanto discurso no pode deixar de ser "literatura", em termos de

    representao do passado no pode evitar uma dimenso textual constitutiva (como a literatura),

    pois o passado s acessvel atravs de textos (arquivos, documentos, discursos, etc.), sendo

    uma representao textual de outras representaes discursivas (30). Dissolve-se assim a

    fronteira entre texto e contexto. Se os contextos so construes narrativas ou representaes, so

    ainda e sempre textos (31).

    Se no aderimos de forma global a um "textualismo" estreme, que em muitos casos uma

    espcie de contrafuga do documentalismo oitocentista, parece-nos claro que o discurso da

    histria literria construdo atravs de um conjunto de textos produzidos pelos historiadores da

    literatura e pelos crticos literrios (32), que deram forma, desde finais do sculo do sculo

    XVIII, histria das literaturas nacionais, que antes no existiam, mas que se institucionalizam

    ao longo do sculo XIX. Trata-se pois de um construto discursivo inseparvel de um certo

    conceito epocal de literatura como expresso da sociedade e das culturas nacionais, articulado

    com a emergncia dos Estados-nao e das novas prticas literrias dos movimentos romnticos.

    Assim, pode dizer-se que a "literatura nacional" e a histria literria/da literatura se engendram

    mutuamente e no se podem compreender sem esta interdependncia fundadora.

  • 21

    Notas

    I.1.

    (1)- Arqueologia designa em Foucault, "le thme gnral d' une description qui interroge le dj-dit au niveau de son

    existence: de la formation nonciative qui s' exerce en lui, de la formation discursive laquelle il appartient, du

    systme gnral d' archive dont il relve. L' archologie dcrit les discours comme des pratiques spcifies dans l'

    lment de l' archive." (1969: 173). Como habitual em Foucault, esta definio inclui uma srie de conceitos a

    definir ou j definidos, mas no coincidentes com as noes correntes dos termos: formao enunciativa, formao

    discursiva, prticas discursivas e arquivo.

    A sua transio para a "genealogia", para a questo do "poder", acarretou a subordinao da questo da

    "vontade de saber" "vontade de poder" que lhe subjaz e consequente incluso das epistemai num conjunto mais

    vasto de estratgias e dispositivos de dominao (cf. A. Rocha, 1994).

    (2)- Porm, a nfase colocada por Foucault na descontinuidade (tanto a nvel arqueolgico como genealgico) no

    implica, como observa Paul Rabinow, que ele tenha uma filosofia da histria da descontinuidade, visto que tambm

    foca continuidades de longa durao nas prticas culturais (1984: 9).

    (3)- "Gense, continuit, totalisation: ce sont l les grands thmes de l' histoire des ides, et ce par quoi elle se

    rattache une certaine forme, maintenant traditionnelle, d' analyse historique." (1969: 181).

    (4)- A ateno concedida por Foucault funo autor insere-se, no fundo, na temtica central do "sujeito" que

    norteou a sua pesquisa. Nas suas prprias palavras, em entrevista de 1982: "the goal of my work during the last

    twenty years has not been to analyze the phenomena of power, nor to elaborate the foundations of such an analysis.

    My objective, instead, has been to create a history of the different modes by wich, in our culture, human beings are

    made subjects." (apud Rabinow, 1984: 7). Se a primeira caracterstica apontada funo autor a da apropriao

    penal, para limitar o efeito transgressivo dos discursos, ela enquadra-se na viso foucaultiana das cincias humanas

    (a arqueologia) como saber ao servio do poder (a genealogia), como modos de objectivao e dominao do

    sujeito/indivduo. Deste modo, "inquire o modo como as estruturas do poder moderno transformam o homem num

    sujeito individual, ao mesmo tempo objecto (e efeito) de poder, e objecto (e efeito) de saber" (A. Rocha, 1994: 5).

    De facto, para Foucault, a individualizao do homem produzida pela sociedade moderna tudo menos um

    privilgio: "Never, I think, in the history of human societies -even in the old Chinese society- has there been such a

    tricky combination in the same political structures of individualization techniques, and of totalization procedures."

    (apud Rabinow, 1984: 14; cf. 17-21).

    Para o estudo da "tica do sujeito" e da "esttica da existncia" em Foucault, cf. Aclio Rocha (1994: 24-9).

  • 22

    (5)- Para Foucault, os direitos de autor vieram aps a "apropriao penal": "Os textos, os livros, os dicursos

    comearam efectivamente a ter autores (...) na medida em que o autor se tornou passvel de ser punido, isto , na

    medida em que os discursos se tornaram transgressores" (id.: 47).

    Segundo Jouhaud, o primeiro campo literrio, na idade clssica, um "espace social autonome mais protg

    et asservi- comme le rsultat d' une rationalisation politique du champ culturel." (1990: 173). Assim, "la naissance

    de l' crivain est bien lie une politisation de la littrature comme activit spcifique au sein de l' ensemble des

    productions du champ culturel" (id.: 174).

    (6)- Prope-se assim dispor as suas anlises em dois conjuntos, um crtico e outro genealgico (1992a: 62). Quanto

    ao primeiro, pe em aco o princpio de renversement (cf. Ordem do Discurso ), i.e., as funes de excluso,

    limitao e apropriao discursiva, e versa sobretudo o terceiro procedimento externo de dominao do poder

    discursivo (excluso), a vontade de saber, quer em termos histricos (as vrias "escolhas de verdade"), quer pela

    anlise dos elementos de limitao dos discursos, como o autor, o comentrio e a disciplina, que so instncias de

    controlo discursivo. nesta perspectiva crtica que lhe interessa o modo como a crtica e a histria literrias nos

    sculos XVIII e XIX constituram a personagem do autor e a figura da obra (id.: 66).

    Quanto ao conjunto genealgico, rege-se pelos outros trs princpios (descontinuidade, especificidade e

    exterioridade) e pretende indagar como se formaram os discursos, com o apoio de que sistemas de constries e

    sries de discursos, a norma especfica de cada um e quais foram as suas condies de apario, crescimento e

    variao (ibid.). Como afirma Foucault, a genealogia concerne formao efectiva dos discursos, quer seja no

    interior dos limites do controlo, quer seja no exterior, sobretudo em termos de delimitao (id.: 67). Se a crtica

    analisa os processos de rarefaco, reagrupamento e unificao dos discursos, a genealogia estuda a sua formao,

    ao mesmo tempo dispersa e descontnua, mas as duas perspectivas nunca se separam (id.: 68-71).

    (7)- Cf. 1992a: 31. O autor caracterizado de modo semelhante na Leon e em "O que um autor ?".

    (8)- Segundo R. Barthes, "o autor reina ainda nos manuais de histria literria, nas biografias de escritores, nas

    entrevistas das revistas, e na prpria conscincia dos literatos" (1984b: 49). A prpria "imagem da literatura que

    podemos encontrar na cultura corrente tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa, na sua histria"; "a

    explicao da obra sempre procurada do lado de quem a produziu, como se, atravs da alegoria mais ou menos

    transparente da fico, fosse sempre afinal a voz de uma s e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a sua

    'confidncia'." (id.: 50).

    (9)- Noutro texto famoso, Barthes apontara como "vcio" da histria literria "le privilge 'centralisateur' accord l'

    auteur."; "Les consequences sont lourdes: en accomodant sur l' auteur, en faisant du 'gnie' littraire le foyer mme

    de l' observation, on relgue au rang de zones nbuleuses, lointaines, les objets proprement historiques"; "On dirait

    que dans notre histoire littraire, l' homme, l' auteur, tient la place de l' vnement dans l' histoire historisante: capital

    connatre sur un autre plan, il bouche pourtant toute la perspective; vrai en soi, il induit une vision fausse." (1979:

    143).

  • 23

    (10)- N. Fairclough adapta o conceito de discurso s cincias sociais e prope os seguintes nveis de anlise (1992:

    73):

    Texto

    Prtica discursiva

    (produo, distribuio, consumo)

    Prtica social

    Para alm de dar uma nfase ao nvel textual, que no encontramos em Foucault, o mrito desta teoria social do

    discurso consiste precisamente em interligar a prtica discursiva co0m o discurso enquanto prtica social, na sua

    relao com a ideologia e o poder, enquanto luta pela hegemonia (id.: 86-96).

    (11)- Com efeito, as ideologias so, como observa Fairclough "significations/constructions of reality (the physical

    world, social relations, social identities), wich are built into various dimensions of the forms/meanings of discursive

    practices, and wich contribute to the production, reproduction or transformation of relations of domination." (1992:

    87). Para tal, considera mais efectivas as ideologias embebidas nas prticas discursivas, na medida em que se

    naturalizam e adquirem o estatuto de "senso comum". nas instituies que se trava em particular a luta discursiva -

    particularmente no que Althusser designou "aparelhos ideolgicos do estado", como o sistema de ensino e de

    educao (id.: 87) - pela hegemonia, pela dominao da "ordem do discurso".

    (12)- Segundo a definio de Even-Zohar, "The 'institution' consists of the aggregate of factors involved with the

    maintenance of literature as a socio-cultural activity."; "In specific terms, the institution includes at least part of the

    producers, 'critics' (in whatever form), publishing houses, periodicals, clubs, groups of writers, government bodies

    (like ministerial offices and academies), educational institutions (schools of whatever level, including universities),

    the mass media in all its facets, and more." (1990: 37); "The nature of the production, as well as that of

    consumption, is governed by the institution" (id.: 38).

    (13)- H, no entanto, um equvoco na terminologia empregue por Lambropoulos, que usa genealogia como sinnimo

    de arqueologia, afirmando que, com base em Nietzsche, Foucault a rebaptizou desse modo (1988: 25).

    (14)- "Toward a Genealogy of 'Literature': The Institutionalization of Tradition in C. Th. Dimara' s A History of

    Modern Greek Literature " (1988: 23-43).

    (15)- Cf. pp. 33-6. Lambropoulos d como exemplo o estudo das edies, das verses populares e escolares, da

    recepo das obras. Pensa que a ordem cronolgica dos eventos, longe de ser linear e progressiva, uma srie de

    rupturas catastrficas ocasionadas quando um discurso derrota e substitui outro, estabelecendo novas regras de

    composio, produo e consumo, redefinindo a ideia da instituio (id.: 34).

  • 24

    (16)- Cf. p. 40. A leitura genealgica deve ser uma leitura antittica que suprima as fronteiras artificiais entre arte

    alta e baixa, boa e m, progressiva e reaccionria (id.: 37).

    (17)- Um poeta grego foi visto como o bardo da continuidade da raa, um poeta nacional alternativo, tornando-se

    ento objecto de vrias prticas discursivas (id.: 17).

    (18)- Cf. pp. 41-3. Por isso, defende ser necessrio resistir contra o estabelecimento da autoridade (fundadora de

    sentido e de verdade) e perturbar as hierarquias soberanas, chamando de novo os discursos marginalizados ou

    suprimidos. Mais do que reterritorializar, entende ser necessrio problematizar a histria (id.: 43).

    I.2.

    (19)- O termo histria tanto serve para designar o objecto do discurso, a "realidade" histrica (res gestae), como o

    discurso que permite o seu conhecimento (de historia rerum gestarum), o discurso. Em termos narratolgicos, esta

    diferena de nveis traduz-se na distino entre diegese (histria) e discurso (constitutivo da diegese). Mas a

    ambiguidade do termo permanece a outros nveis, na medida em que na nossa lngua, como em muitas outras, no

    h um termo diferenciador da Histria (disciplina com aspiraes cientficas) e da histria (narrativa ficcional). Cf.

    Jorge Lozano (1987: 115-21).

    (20)- Como observa Lus Torgal, h conhecimento histrico de graus diferentes (cientfico, pedaggico, memria

    colectiva, divulgao, etc.) (in Torgal, Mendes, Catroga, 1996: 9), a que poderamos acrescentar alguns gneros

    ficcionais, como o romance histrico.

    (21)- Se a teoria do discurso em Foucault nos permite uma perspectiva que integra o discursivo e o no-discursivo,

    no menos verdade que, como afirmmos, este autor peca por no enfatizar a anlise propriamente lingustica do

    discurso e por, deliberada e confessadamente, no ter em conta o papel da hermenutica, que considera uma

    metafsica. precisamente nestes aspectos secundarizados por Foucault que se concentra Roland Barthes no seu

    famoso ensaio "O discurso da histria" (1982 [1967]).

    (22)- O discurso deve ainda apagar a sua natureza constitutiva. Segundo R. Barthes, o discurso histrico supe "une

    double opration, fort retorse". Por um lado, "le rferent est dtach du discours, il lui devient extrieur, fondateur,

    il est cens le rgler". Por outro lado, "dans un second temps, c' est le signifi lui-mme qui est repouss, confondu

    dans le rfrent; le rfrent entre en rapport direct avec le signifiant, et le discours, charg seulement d' exprimer le

    rel, croit faire conomie du terme fondamental des structures imaginaires, qui est le signifi." (1982: 20). O

    discurso histrico assume assim um aparente estatuto de discurso constativo, mas na realidade sobrepe o

    significante ao referente, recusando-se a assumir o real como significado (o "facto" s existe no discurso, mas

    como se este fosse uma cpia do "real") (ibid.).

  • 25

    Segundo a anlise do discurso histrico efectuada por Jorge Lozano, este um dos processos mais fortes

    de todo um conjunto de estratgias de veridicidade e de estratgias de credibilidade, para produzir um efeito de

    verdade e a crena no que se enuncia, dando a impresso de que "a histria se conta a si mesma" (1987: 195-210).

    Ora, como observa R. Barthes, a Histria institui-se no sculo XIX, quando "Le prestige du c' est arriv a

    une importance et une ampleur vritablement historiques. Il y a un got de toute notre civilisation pour l' effet de

    rel, attest par le dveloppement de genres spcifiques comme le roman raliste, le journal intime, la littrature de

    document, le fait divers, le muse historique, l' exposition d' objets anciens, et surtout le dveloppement massif de la

    photographie" (1982: 21).

    Este um efeito que conduz S. Joncheray a afirmar que "l' histoire littraire est d' abord une histoire

    raconte aux enfants. La reprsentation objective des vnements, des situations et de personnes historiques, cre

    un effet de rel capable d' occulter la subjectivit de ses rapprochements, et les impratifs du rcit." (1997: 34).

    (23)- Cf. Koselleck (2000: 161-85).

    Como admite Lus Reis Torgal, os principais problemas da Histria so a leitura e interpretao das fontes

    e a escrita, sendo decisivas as tcnicas de representao: ponto de vista, ordem da composio, modos de

    exposio, i.e., aspectos da narrao e da retrica (in Torgal, Mendes, Catroga, 1996: 8-9). Cf. Jos Mattoso (1988:

    16, 26-7, 29).

    (24)- "Their most general characteristic is that they refer to at least two time-separeted events though they only

    describe (are only about) the earliest event to wich they refer" (Danto, 1985 [1965], 143). Similar a definio de

    narratividade de Paul Ricoeur (1980 e 1983: 203 ss.).

    (25)- Cf. Perkins (1992: 19, 29-51) e J. Lozano (1987: 173).

    (26)- Segundo David Perkins, a exigncia de um ponto de vista pe em causa a objectividade, pois ele

    determinado pela personalidade, interesses e valores do historiador (1992: 13-4). assim inegvel que "lcriture

    de l' histoire comme histoire elle-mme dpassent toujours les faits et les vnements pour donner naissance une

    signification: morale, mtaphysique, sociale, rligieuse ou autres." (Moisan, 1987: 8).

    Nesta ptica, as histrias da literatura so, como sublinha V. Lambropoulos, "interpretations and revisions

    of its tradition, and therefore expressions of an aesthetic, philosophical, and political choice. Histories of literature

    are themselves immersed in literary tradition, thus offering only one of its possible versions from a culturally

    conditioned viewpoint." (1988: 24); "Every history of literature is in practice the history of an alternative literature."

    (id.: 27).

    (27)- As diferenas residem na importncia que conferem a este facto, sobretudo ao nvel da "cientificidade" da

    Histria, que em ltima instncia pode conduzir a um textualismo extremo, como na potica da desconstruo.

    Segundo K. Moxey, para os desconstrucionistas, "If the use of language is inevitably associated with metaphysical

    claims its sign systems cannot substantiate, then the writing of historical narratives can be regarded only as an

    exercise in mythmaking." (1994: 1). Assim, a elaborao das narrativas histricas perpetuaria os mitos metafsicos,

    mascarando a incapacidade da linguagem para significar (id.: 6).

  • 26

    Os historiadores tentam, de um modo geral, salvaguardar a dimenso cientfica da histria. Lus Torgal,

    por exemplo, no deixa de reconhecer que a histria uma espcie de " 'fico cientfica' e no uma 'fico

    literria' " e destaca "o drama do historiador no acto da 'escrita da histria'." (in Torgal, Mendes, Catroga, 1996:

    491). Os autores da Histria da Histria em Portugal reafirmam-no: "A histria uma cincia muito especial - ns

    diramos (...) que uma 'literatura cientfica' dotada de caractersticas prprias." (Torgal, Mendes, Catroga, 1996:

    9). Cf. Jos Mattoso (1988: 38-42).

    (28)- Num famoso artigo, H. White foca precisamente "The Value of Narrativity in the Representation of Reality"

    (1981), que consiste em dar coerncia e integridade, plenitude e fechamento "realidade", que no tem a

    organizao e a coerncia das narrativas. Cf. J. Lozano (1987: 115-7), Georges Duby (1995: 43-8) e Jos Mattoso

    (1988: 30).

    Como enfatiza A. Compagnon, "L' histoire est une construction, un rcit qui, comme tel, met en scne le

    prsent aussi bien que le pass; son texte fait partie de la littrature. L' objectivit ou la transcendance de l' histoire

    est une mirage, car l' historien est engag dans les discours par lesquels il construit l' objet historique. Sans

    conscience de cet engagement, l' histoire est seulement une projection idologique: telle est la leon de Foucault,

    mais aussi de Hayden White, de Paul Veyne, de Jacques Rancire et tant d' autres." (1998: 239).

    (29)- Algumas noes barthesianas abeiram-se das de Foucault, como a de "eventos discursivos" (objectos,

    conceitos, posies do sujeito e opes estratgicas). Por outro lado, nesta caracterizao sumria do enunciado

    histrico, Barthes aproxima-se parcialmente da tipologia tropolgica de H. White, que distingue modo narrativo e

    modos de implicao ideolgica (a significao barthesiana). A unidade de contedo entimemtica e o tipo de

    histria reflexiva de Barthes tm o seu equivalente no modo argumentativo de White. No que toca aos quatro estilos

    definidos por White, Barthes foca, embora com outros critrios, os modos metonmico e metafrico.

    (30)-A actual conscincia da omnipresena de uma dimenso retrica no discurso histrico conduz, no mnimo,

    conscincia de que "the past is necessarily transformed in the effort to represent it discursively." (Perkins, 1992:

    19). Como sublinha A. Compagnon, "Contrairement au vieux rve positiviste, le pass, comme l' on rpt satit

    toute une srie de thoriciens de l' histoire, ne nous est pas accessible autrement que sous la forme de textes -non

    pas de faits, mais toujours des archives, des documents, des discours, des critures-, eux-mmes insparables,

    renchrissent-ils, des textes qui constituent notre prsent." (1998: 238).

    Cf. LaCapra (1983, 1985), F. R. Ankersmit (1983, 1994), M. de Certeau (1975) e Gossman (1990), que

    pensam que a narrativa histrica diz mais da sua linguagem do que das circunstncias que quer relatar.

    Por seu turno, Jacques Le Goff denuncia a ficcionalidade no processo da monumentalizao dos

    "documentos": "O documento monumento. Resulta do esforo das sociedades histricas para impor ao futuro -

    voluntria ou involuntariamente- determinada imagem de si prprias. No limite, no existe um documento-verdade.

    Todo o documento mentira." (1984: 103).

    (31)- O New Historicism parte desta textualidade genrica, dando relevo, como sublinha L. Montrose,

    "historicidade dos textos" e "textualidade da histria" (apud Veeser, 1989: 20). Segundo D. LaCapra, porque o

    passado sempre mediado por textos, sendo os textos histricos um encontro/dilogo com o "outro", a histria

  • 27

    envolve "the roles of commitment, interpretation and imagination", "in that significant variation, alteration, or

    transformation." (1983: 29-30).

    De um modo global, o actual retorno da histria, e em particular da histria literria, est marcado por esta

    perspectiva textualista/formalista, cujo ponto de partida a proclamao derridiana de que "il n' y a pas hors-texte".

    Se o historiador do sculo passado dissolvia os textos no seu contexto (documento), hoje procede-se de modo

    inverso, considerando-se a histria e os contextos das obras como outros tantos textos (monumentos), no mbito de

    uma "Potica da Cultura" (S. Greenblatt), equivalente ao conceito amplo de literatura do passado, como esclarece

    Greenblatt: "Poesy then [1623] is a piece of a much larger whole encompassed by the term literature, a term whose

    modern equivalent would be cultural poetics, in the sense of the sum of written discourses through wich we

    apprehend and act upon the world and, more particularly, the discourses through wich we distinguish between the

    imaginary and the real." (1997: 471). Torna-se, no entanto, claro que esta amplitude agora intencional, pois

    permite uma completa textualizao da cultura e do mundo. Nesta ptica, a "Potica da Cultura" de Greenblatt

    coincide parcialmente com a "Potica da Histria" de White. Em ambas, os modelos e as narrativas tm o mesmo

    valor epistemolgico, porque construdas poeticamente. A diferena, como observa White, tica (1993: 27), o que

    Greenblatt bem sabe e assume, em termos ideolgicos e polticos.

    (32)- Como observa A. Compagnon, a histria literria s pode ser "une juxtaposition, une collation de textes et de

    discours fragmentaires lis des chronologies diffrentielles, les uns plus historiques, les autres plus littraires, en

    tout cas une mise l' preuve du canon transmis par la tradition" (1998: 239).

    3. Para uma histria da histria literria

    O sintagma "discurso da histria literria" no pode ser definido de modo esttico e

    definitivo, na medida em que tanto o conceito de histria como o de literatura (e a sua articulao

    na histria literria) sofreram alteraes histricas. Deste modo, necessrio ter em conta a sua

    dimenso arqueolgica e genealgica e averiguar a sua "procedncia" e "emergncia", a sua

    "localizao" institucional e social.

    A abrangncia do conceito de literatura para os romnticos e positivistas e a sua posterior

    restrio, com as teorias formalistas da literatura (formalismo russo, new criticism e estilstica),

    quando objecto de uma indagao histrica, manifestam claramente a historicidade da histria

  • 28

    literria. A evoluo do conceito de literatura faz com que as histrias da literatura do passado

    retratem sobretudo o que no seu tempo era considerado literatura. Alis, segundo Roland

    Barthes, o que o historiador da literatura deveria fazer era uma histria da "instituio literria"

    (1979: 6), da "funo literria", que incluiria necessariamente uma histria do prprio conceito

    de literatura: "Bien plus, que peut tre, littralement, une histoire de la littrature, sinon l' histoire

    de l' ide mme de littrature ?" (id.: 145).

    Uma histria da histria literria deve dar conta da sua existncia enquanto formao

    discursiva (com os seus objectos, conceitos, modalidades enunciativas e opes estratgicas), na

    sua articulao com outros discursos, e enquanto prtica discursiva, ou seja, como instituio

    social- a escola como regime e processo de apropriao social, de "normalizao"-, com os seus

    procedimentos externos de controlo discursivo (da seleco dos sujeitos falantes no discurso

    pedaggico constituio discursiva da "vontade de verdade") e a sua funo social, enquanto

    capital simblico e cultural das comunidades nacionais, de que dependem o estatuto e o valor do

    discurso literrio.

    A emergncia da histria literria resulta fundamentalmente do historicismo romntico,

    que "construiu e difundiu uma concepo histrica do homem e das suas criaes culturais,

    transferindo-os, do teatro universal e atemporal em que a Ordem clssica os situava, para um

    espao e um tempo concretos e mutveis." (Aguiar e Silva, 1990: 27). Esta historicizao da

    literatura processa-se em articulao com os novos conceitos de histria, de literatura (1) e de

    literatura nacional, articulando-se na sua gnese e evoluo com a noo de identidade nacional,

    nos seus compromissos ideolgicos com os Estados-nao modernos. A histria literria

    contribuiu assim para a modelizao da "conscincia da identidade nacional" nos planos

    ideolgico, tico, cvico e moral. Por isso, alguns autores destacam, de modo retroactivo, a

    existncia de uma espcie de fase de incubao, ou "proto-histria", da histria literria, que, em

    ltima instncia, remontaria ao sculo XVI, com a dignificao das "lnguas vulgares" (2) e dos

    "clssicos" das lnguas vernculas (3), num movimento que convergiria na fundamentao das

    filologias nacionais, em finais do sculo XVIII.

  • 29

    Parece-nos, no entanto, possvel entender o processo de constituio da histria literria

    como um processo de progressiva distanciao da perspectiva universalista do homem e da

    cultura humana transmitida pelo pensamento renascentista/humanista e pela filosofia da histria

    iluminista, que se traduziu numa concepo histrica da cultura e da literatura centrada

    cronotopicamente numa esfera nacional. Nesta ptica, julgamos ser possvel distinguir dois

    grandes momentos na histria da histria literria at finais do sculo XIX. Numa primeira fase,

    a histria literria de raiz humanista e iluminista desloca-se da esfera cosmopolita do "saber

    humano" para um espao nacional, na medida em que se visa situar a cultura e o grau

    civilizacional de uma dada nao no mbito do progresso intelectual e civilizacional da

    humanidade, para aferir o seu grau de atraso ou adiantamento. Numa segunda fase, de matriz

    histrico-romntica, moldada pelos irmos Schlegel, com base em Herder e na Geistesgeschichte

    hegeliana, a histria literria subordina-se a uma filosofia da histria centrada no

    desenvolvimento autnomo, independente e diverso dos vrios "organismos nacionais", anulando

    parcialmente a ideia iluminista do progresso uniforme da humanidade, regulado pelo princpio da

    perfectibilidade. Nesta segunda fase, ainda visvel a transio de um paradigma idealista

    (romntico e hegeliano) da histria e da literatura para um paradigma positivista/cientista,

    moldado pelo mtodo das cincias naturais e pela crena de que no existem diferenas

    substanciais entre o mundo natural e o mundo humano.

    Em termos prticos, na sua evoluo, estes modelos sobrepem-se e estabelecem

    continuidades entre si, convergindo de modo particular no estudo e na fundamentao histrica

    das vrias culturas nacionais, quer estes se processem em termos comparativos com o progresso

    civilizacional da humanidade (sincronicamente), quer se estabeleam diacronicamente como um

    desenvolvimento autnomo de uma essncia nacional, postulada de modo idealista (como

    Volksgeist) ou positivista (como raa).

  • 30

    3.1. A histria literria como "histria civil":

    a secularizao do saber

    O termo e o conceito de historia literaria emergem no Renascimento, elaborados por F.

    Bacon em On the proficience and advancement of learning (1605) (4). Na sua influente

    classificao das cincias, Bacon divide o saber humano (por oposio aos conhecimentos da

    natureza e aos conhecimentos divinos) em trs partes, em funo das faculdades humanas

    (memria, razo e imaginao), colocando a histria literria ou das letras sob a gide da

    memria, a par de outras formas de histria (natural, poltica e eclesistica). A histria literria

    compreende a histria das letras, dos saberes escritos e das cincias (1991 [1605]: 315), e Bacon

    confere-lhe a primazia entre os saberes histricos, como uma espcie de "histria profunda" da

    humanidade:

    "Or, sans histoire des lettres, l' histoire du monde me parat ressembler la statue de Polyphme sans son

    oeil, c' est--dire qu' il lui manque l' organe qui montre le mieux l' esprit et la vie de la personne." (id.: 90).

    A histria "literria" baconiana, diferenciada da histria poltico-militar e da histria

    eclesistica, tem o propsito secularizar o "saber humano" em relao tutela da Igreja, tendo

    este projecto uma certa continuidade no iluminismo setecentista: "Le vecteur de la philosophie

    moderne tait le Brger (le bourgeois) s' mancipant de la sujtion absolutiste e de la tutelle de l'

    Eglise, le 'prophte-philosophe', ainsi qu' on l' a fort justement dnomm au XVIII.e sicle."

    (Koselleck, 2000: 32; cf. 25-31). Mas Bacon considerava que ainda estava por fazer a histria de

    todos os saberes desde as suas origens, das escolas em que se organizou, das suas descobertas,

    dos seus perodos de decadncia, das suas causas e circunstncias, de modo a poder dar s

    pessoas instrudas a sabedoria no uso e na administrao do saber.

    A Encyclopdie recorre a Bacon e ao seu sistema de classificao dos conhecimentos

    humanos, destacando a histria literria como "histoire des savants", que D' Alembert, no

  • 31

    "Discurso Preliminar", valoriza pela sua importncia filosfica. Em Frana, a expresso "histria

    literria" usada pela primeira vez em 1717 por Dom Antoine Rivet (1683-1749), cuja Histria

    Literria de Frana (1733-50) no vai alm do sculo XII. Na primeira metade do sculo XVIII,

    o termo histria literria usado de modo varivel, como ttulo de peridicos, de notcias

    bibliogrficas ou de grandes obras de erudio, encontrando-se dois tipos de obras de histria

    literria: as que procuram uma classificao de conjunto das produes impressas ou dos

    conhecimentos humanos; e as histrias literrias cujo campo mais vasto, quer se trate dos

    peridicos ou das grandes obras de sntese (5).

    O enlace recproco da histria literria (todas as produes do esprito, cincias e artes) e

    da histria civil (factos da vida social) de uma nao implicava uma subalternizao da histria

    poltico-militar e eclesistica, e o reconhecimento da importncia dos progressos culturais e

    intelectuais na evoluo histrica e social e do papel desempenhado pela burguesia no mbito da

    histria. Por isso, a historiografia do sculo XVIII e a histria literria de raiz iluminista so

    reveladoras de uma "mentalidade burguesa" em busca da reforma da sociedade (Antonio

    Maravall, 1972: 253-7, 265-6). Assim, a Histria converte-se num instrumento crtico, numa via

    de reforma intelectual e num apoio para as pretenses de reforma social. Ao instituir a nao

    como sujeito histrico, o discurso histrico procurava afirmar que a energia que move as

    transformaes sociais provm dos grupos "civis", fruto da "histria civil", que engloba a

    filosofia, a cincia, a moral, a arte, os costumes, o saber, a civilizao, as ideias, os modos de

    vida, etc. A continuidade com o projecto baconiano torna-se assim clara, mas agora, para alm da

    secularizao do saber, a motivao dominante parece ser a emancipao social e poltica do

    Terceiro Estado.

    A histria literria baconiana, retomada de certo modo pela "histoire des savants"

    iluminista, entroncar-se- com a histria literria de matriz romntica, na medida em que M.me

    de Stal, em De la littrature (1800), ao distinguir literatura "filosfica" (de pensamentos) e

    literatura de "imaginao" (as belas-letras), pretendia elaborar a histria dos progressos da

    civilizao e das culturas nacionais em relao com as suas "luzes". Alis, os dois modelos

    (iluminista e romntico) articulam-se nesta obra, perdurando depois esta matriz "dualista" da

    histria literria (cf. II.2).

  • 32

    Em Portugal, em pleno sculo XIX, a concepo de histria literria de F. Bacon est

    presente em vrias obras, e tanto o Primeiro Ensaio sobre Historia Litteraria de Portugal

    (1845), de Francisco Freire de Carvalho, como os Primeiros Traos d' Uma Resenha da

    Litteratura Portuguesa (1853), de Jos Silvestre Ribeiro, so histrias do "saber humano" no

    sentido baconiano, numa ptica iluminista, mas j circunscritos ao espao nacional, num

    processo que deriva da Academia Real das Cincias de Lisboa, que definia "literatura

    portuguesa" como a a lngua e a histria portuguesas (1792: I-II). A. P. Lopes de Mendona

    parece nortear-se ainda pela noo baconiana:

    "J lord Bacon dizia que a historia do mundo, sem a historia das lettras, era como a estatua de Polyphemo

    privado do seu olho solitario; e uma da glorias d' este seculo, que herdmos do seculo anterior, ter, pelas suas

    investigaes, reconhecido esta verdade, e haver procurado na historia do homem a historia da sociedade, na historia

    intellectual a historia politica, e no movimento das idas de uma pocha os phenomenos da civilizao externa, o

    factor mais ou menos directo das evolues sociaes." (1857: 25) (6).

    Mas sobretudo em Tefilo Braga que a lio de Bacon encontra eco. Alis, em termos

    histricos e epistemolgicos com Bacon que emerge a noo fundadora de "conhecimento

    civil" ou "cincia da vida social" (a Cincia Nova de Vico), que se pode considerar como o

    espao discursivo de onde procedem grande parte das disciplinas das cincias humanas e sociais,

    como a Sociologia, tendo uma influncia marcante em Comte (7). em Tefilo que esta tripla

    influncia de Bacon, Vico e Comte convergem de modo particular:

    "No seu livro De augmentis Scientiarum, Bacon considerava a Historia litteraria como a luz da Historia

    universal, por isso que levava genealogia das ideias que determinaram os factos; e no seu plano, a verdadeira

    historia resultava da investigao da origem de cada sciencia, da direco que seguiu, as controversias que suscitou,

    as escholas que desenvolveu, as suas relaes com a sociedade civil, e influencia reflexa d' esta na evoluo mental."

    (1903a: 101-2; cf. 1984a [1880]: 22; 1984 [1909]: 22, n. 1).

    No entanto, apesar das ambies de Bacon, o resultado mais importante desta fase

    "preparatria" da histria literria consistiu nos trabalhos de erudio setecentista, na "histria

    dos antiqurios" (8), com a constituio de reportrios bio-bibliogrficos de autores (bibliotecas)

    e a acumulao de "dados", monografias, crticas de obras, etc.. Margarida Vieira Mendes

  • 33

    considera esta elaborao de uma base de dados do patrimnio literrio nacional como uma obra

    fundamental do barroco portugus, fundador da filologia portuguesa (9). neste mbito proto-

    -histrico que se pode inserir a Biblioteca lusitana de Diogo Barbosa de Machado (1741-59, 4

    vl.s), que se apoiou, entre outros na Bibliotheca lusitana de Joo Franco Barreto (1662-5), e que

    teve como continuadores o Diccionario bibliographico portuguez de Inocncio F. da Silva

    (1858-70) e Brito Aranha e os trabalhos histrico-literrios da Academia Real das Cincias de

    Lisboa (10).

    Como sublinha Tefilo Braga, sem este trabalho prvio, a histria literria moderna no

    teria sido possvel:

    "Para chegar a estes resultados foi preciso o trabalho de uma gerao de eruditos, compilando factos,

    apurando materiaes bibliographicos e biographicos. Entre esses investigadores, destaca-se Bouterweck, que de 1801

    a 1819 publicou a sua obra monumental Historia da Poesia e da Eloquencia dos Povos modernos, em doze

    volumes" (1903a: 106).

    Nos oito tomos das Memrias da Academia h vrios estudos sobre a poesia e a

    eloquncia portuguesas, mas uma simples consulta mostra-nos de imediato a amplitude

    intensional e extensional do conceito de literatura, tpico da poca (11). Assim, por exemplo, o

    tomo VI dedicado exclusivamente a questes de direito (nacional) e no tomo I, com excepo

    da memria de Joaquim de Foyos, dedicada "Poesia Buclica", os temas repartem-se pelas

    moedas portuguesas, a origem dos juzes de fora, as formas de governo at ao estabelecimento da

    monarquia, etc. O tomo VII inclui, v.g., um estudo sobre agricultura e no oitavo encontra-se uma

    memria consagrada aos matemticos e outra navegao.

    A dificuldade de definio do ento recente conceito de literatura aparece

    paradigmatizada na perplexidade dos membros da terceira classe da Academia Real das Cincias

    de Lisboa, dedicada ao estudo da "Literatura portuguesa". Logo no "Prlogo" do primeiro tomo

    das Memrias de Literatura Portuguesa (1792) procura-se por isso uma clarificao do termo e

    do conceito de "literatura portuguesa":

    "varios fro os juizos, e mui vagas as idas sobre o que por este nome devia entender-se."; "Huns julgro

    que o estudo da Linguagem, que por mais pura era havida; outros que a Bibliografia nacional; outros que a Poesia;

    outros por fim varios outros objectos constituia, o que a Academia designava por Litteratura portugueza." (1792: I).

  • 34

    Assim, perante a necessidade de "huma definia, do que por Litteratura Portugueza se entende,

    e de quaes seja os limites naturaes deste genero de saber, que a Academia julgou assaz vasto",

    os acadmicos centraram-se sobretudo na qualificao "portuguesa" (em termos exclusivos),

    circunscrevendo a "literatura portuguesa" lngua e histria portuguesas:

    "De todos os ramos de erudio, que frma a Litteratura, nenhum pde ser proprio, e particular a hum

    povo, sena a lingua que falla, e a historia do que lhe aconteceo. Huma e outra lhe pertencem exclusivamente, e

    ambas entre si se soccorrem. (...) Sa por conseguinte a Lingua, e a Historia Portugueza, consideradas em todos os

    possiveis aspectos, e relaes, os dous objectos que constituem, o que a Academia quiz entender por Litteratura

    Portugueza; objectos na s entre si analogos, mas tambem diversos, e separados de toda a outra erudia, que, ou

    compete a pvos estranhos, ou pela generalidade dos seus assumptos, pertence a todo o genero humano sem respeito

    particular a nao alguma." (id.: II) (12).

    No obstante a amplitude do conceito de literatura da Academia, as Memrias de

    Literatura Portuguesa, segundo Fidelino de Figueiredo, "tm o notavel merito de haverem

    inaugurado, entre ns, os estudos de historia litteraria." (1916: 103). Poderamos acrescentar que

    elas tm um papel pioneiro na articulao entre a histria e a literatura e na sua delimitao a

    uma esfera nacional, j que se ocupam da "literatura portuguesa", entendida como um "ramo de

    erudio" exclusivamente portugus (a lngua portuguesa e a histria de Portugal). A grande

    novidade deste labor consiste assim na circunscrio do "saber humano" erudio nacional

    (13).

    Os "Apontamentos para a Historia Civil e litteraria de Portugal e seus domnios, coligidos

    a partir de Manuscritos que esto na Biblioteca Real de Madrid", publicados por J. F. Gordo no

    terceiro tomo das Memrias de Litteratura Portugueza, mostram a amplitude do conceito de

    "literatura" e da noo de "histria literria", na medida em que se trata de um catlogo das obras

    portuguesas manuscritas que o autor encontrou na biblioteca referida (genealogias, histria

    poltica, trovas do Bandarra, Gil Vicente, obras religiosas, comdias, sermes do P.e Antnio

    Vieira, etc.).

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    3.2. Da histria literria histria da literatura

    Como observa Aguiar e Silva, em meados do sculo XVIII, Voltaire e Diderot empregam

    as expresses "bela-literatura" e "belo literrio" para designarem um "especfico fenmeno

    esttico, especfica forma de produo, de expresso e de comunicao artsticas" (1988: 6), o

    que confere novos contornos ao conceito de literatura. Assim, devido especializao das

    cincias e autonomizao da esttica, nota-se a crescente distino, entre um conceito amplo de

    literatura (o saber humano" de Bacon), em que se incluem as cincias e as letras (14), e uma

    acepo restrita, em que se integram as humanidades e as belas-letras (poesia, eloquncia e

    histria).

    desta conjugao entre um "saber humano" nacional e a filosofia da histria dos

    iluministas que comear a emergir uma histria literria nacional, que com os dados adquiridos

    pela erudio anterior procura estabelecer um panorama das origens, progresso, decadncia e

    restaurao das letras (da cultura) em cada sculo e efectuar o estudo das instituies literrias

    (de ensino) nacionais.

    O Abade Correia da Serra, semelhana dos enciclopedistas e de M.me de Stal, j

    distingue vrios ramos no mbito da literatura, na sua "Vista Rapida sobre o Estado das

    Sciencias, e das Bellas-letras em Portugal", que claramente uma "histria literria", no

    obstante admitir uma certa especificidade da Poesia e da Eloquncia, na esfera das "belas-letras":

    " vista deste curto esboo da Historia Litteraria de Portugal, fica sendo manifesto que as Sciencias

    exactas, e as averiguaes historicas so, entre todos os ramos do Saber humano, as que mais tem florecido em

    Portugal nestes ultimos tempos. A Poesia, e a Eloquencia permanecram no mesmo estado, em que elRei D. Joz I as

    tinha deixado" [livres do mau gosto anterior, mas sem nada de novo] (1804: 441) (15).

    tambm pura "histria literria" o Primeiro Ensaio sobre Historia Litteraria de

    Portugal de Francisco Freire de Carvalho (1845), que na sequncia dos enciclopedistas e de J.

    Andrs distingue as cincias das boas-artes e boas-letras (16) e manifesta o intuito de traar a

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    histria da cultura intelectual em Portugal, a "origem, progresso, decadncia e restaurao dos

    nossos Estudos" (1845: 13). Por isso, o autor considera a Universidade de Coimbra como o

    "nobre Deposito da ba Litteratura Portugueza" (id.: 135) e afirma que a Academia Real de

    Histria enriqueceu a "litteratura Nacional" (id.: 173). Porm, ao referir-se Academia Real das

    Cincias de Lisboa, destaca que a sua diviso em trs classes obedecia necessidade de repartir

    "toda esta ampla vastido de objectos Litterario-Scientificos" dos "differentes ramos da

    Litteratura e erudio Patria, Antiguidades, Lingua, Grammatica e Diccionario", Filosofia,

    Economia e Matemtica, etc. (id.: 211). Nesta perspectiva iluminista, Freire de Carvalho situa no

    reinado de D. Manuel I o perodo ureo da "literatura" portuguesa, embora se note j um esforo

    para distinguir a erudio e o engenho/gosto e para diferenciar, como M.me de Stal, a Poesia e a

    Eloquncia enquanto "artes de engenho e imaginao" em relao filosofia e s "cincias

    severas" (17). Ao referir-se Arcdia de Lisboa, elabora de modo explcito a distino entre um

    sentido amplo e um sentido restrito de literatura, ao destacar a "grande influencia que teve sbre

    a Litteratura Portugueza em geral, e mais particularmente sbre a Eloquencia e a Poesia da

    Nao" (id.: 192; destaque nosso), sublinhando a beleza destas "esquecidas artes" e a "boa

    Litteratura Classica" (id.: 194) (18). No entanto, o conceito amplo de literatura prevalece. Para

    Freire de Carvalho, o reinado de D. Manuel I teria sido o "mais bello periodo da Litteratura

    Portugueza" em relao a todos os "ramos do saber humano":

    "as Letras chegaram em Portugal a tocar o seu Zenith; por quanto este Periodo reune em si os nomes

    illustres da maior parte dos grandes homens, que por seu fecundo ingenho, talentos e sabedoria immortalizaram os

    fastos litterarios da Nao Portugueza. Na verdade Erudio Sagrada e profana, Historia, Eloquencia, Poesia, estudo

    de Linguas, Jurisprudencia Canonica e Civil, Medicina, Mathematica, em uma palavra, todos os ramos do saber

    humano, por aquelle tempo conhecidos e professados nos paizes mais cultos da Europa, tudo chegou entre ns a um

    gro de perfeio e gosto mais facil de ser admirado, do que imitado." (id.: 73-4).

    A. C. Borges de Figueiredo efectua uma distino similar no Bosquejo Histrico da

    Literatura Clssica, Grega, Latina e Portugueza (1862 [1844]), de modo mais explcito. Na sua

    acepo geral, "A Litteratura exprime pela linguagem, debaixo de frmas diversas, os conceitos,

    sentimentos e paixes do espiritu humano" e compreende "todo o vasto campo das sciencias e

    das lettras, cujo dominio abraa toda a extenso do pensamento". Por seu turno, a literatura

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    "propriamente dicta (...) distincta das sciencias e da erudio", designando "o corpo das

    humanidades ou boas lettras, e as produces do genio em cada uma d' ellas", recebendo a

    designao de clssica "se se limita aos monumentos dos escriptores d' uma nao culta" (1862:

    17). Porm, no mbito da "literatura propriamente dita", distingue entre as letras humanas e as

    boas ou belas-letras, que considera diferentes quanto ao objecto, forma e finalidade. O Bosquejo,

    afirma, restringe-se s belas-letras (poesia, eloquncia e histria), que visam a utilidade e o

    prazer e dizem respeito ao "belo ideal do mundo intelectual" (id.: 18). Assim, se descontssemos

    o facto de Borges de Figueiredo partir de uma concepo ahistrica/clssica de "literatura"

    (poesia, eloquncia e histria), poderamos afirmar que a sua obra mais uma "histria da

    litera