a construção de um imaginário sobre o oriente atraves de animações norte-americanas
TRANSCRIPT
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE HISTÓRIA - Vespertino
DISCIPLINA: História da Ásia NOME: Augusto Nalini Aigner de Paula – matricula: 85873
A CONSTRUÇÃO DE UM IMAGINÁRIO SOBRE O ORIENTE ATRAVES DE ANIMAÇÕES NORTE-AMERICANAS
GUARULHOS 2014
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo discutir o imagético construído sobre o Oriente
Médio, em específico, os estereótipos sobre a violência e o terrorismo que recaem sobre a
região. Como instrumento desse debate utilizarei duas animações norte-americanas que se
dedicaram, em alguns momentos, a apresentar esses estereótipos sob a forma de sátiras.
Minha intenção é discutir qual o peso dessas sátiras animadas na construção de um
imaginário generalizante, o modo pelo qual desenhos animados podem influenciar no
julgamento de conceitos e servir como instrumentos de depreciação da imagem do Outro, a
doutrinação cotidiana de crianças e adultos feita no âmbito privado.
A motivação por esse recorte foi uma experiência familiar envolvendo um jogo chamado
“Head up”. O jogo consiste em utilizar um tablet como um cartão de mensagens que seria
posicionado na testa do jogador, para que assim ele não possa ler o que estiver escrito. Em
seguida, o tablet exibiria uma palavra e o grupo que estivesse vendo, deveria por meio de
mimicas ou dicas verbalizadas, fazer com que o jogador que segurava o tablet adivinhasse a
palavra em um menor tempo possível.
Esse jogo possui várias categorias: comidas, esportes, marcas, profissões e países. Essa
última categoria me surpreendeu, observei que quando a palavra a ser adivinhada era “Irã”, o
grupo que deveria dar dicas utilizou: “Odeia os Estados Unidos”, “Homem bomba”,
“Terrorismo”, “Árabes”, “radicalismo”. Mas quando o nome dos Estados Unidos apareceu, as
dicas foram: “McDonald’s”, “Cinema”, “Petróleo” e “donos do mundo”.
Como objetivo é adivinhar o maior número de palavras em menos tempo, as dicas
servem para facilitar isso, ou seja, tudo que é dito é pensado e falado quase que
automaticamente. Quando a palavra “Irã” surge na tela, provoca a memória de todos que a
estão observando e a partir das associações que fazem, precisam induzir o jogador ao mesmo
processo associativo porém ao contrário, partindo das dicas buscar o que se encaixa a elas e
associar a algo. O mais interessante é que enquanto o nome dos Estados Unidos aparecia, em
nenhum momento foi dito: “Odeia o irã”, “violento”, “imperialista” e “radical”. A associação à
violência e o ódio não é feita aos Estados Unidos, mas sim é alvo delas. Já ao Irã, cai o peso do
terrorismo e do Homem bomba quase que automaticamente, inclusive um estado que a maior
parte da população não é árabe, passa a ser reconhecido pelo o contrário.
Destaco a importância desse episódio para a composição desse trabalho, pois me
permitiu refletir sobre a construção e associação de estereótipos que há muito são disseminados
e já estão naturalizados. Acredito que nenhum membro da minha família seja defensor das
políticas externas norte-americanas, muito menos inimigos declarados de qualquer estado do
Oriente Médio, mas as associações feitas no jogo os inserem em longo e sistemático processo
de depreciação do Oriente que inconscientemente reproduzem, através de sátiras podem
induzir o espectador a comprar os conceitos que estão dispostas a vender.
O modo pelo qual essas generalizações são disseminadas discutirei através de algumas
animações norte-americanas, com o apoio bibliográfico de Edward Said e sua introdução a
Orientalismo1, que já discute a responsabilidade do conhecimento disseminado por quem
produz, tentarei levar a crítica que o autor faz aos orientalistas, para os veículos animados de
informação e se papel de formador de opinião. Seguindo essa linha, também é necessário
compreender a construção feita ao longo da história pelas potências mundiais, sobre o Outro.
Ella Shohat e Robert Stam2, discutem os processos de depreciação da cultura de povos e grupos
que estavam no caminho das forças imperialistas, em primeiro momento a Europa e depois os
Estados Unidos. O “Adão da terra virgem”3, veio ao Novo Mundo, carregando os preconceitos
do Velho.
A discussão e as animações
Analisaremos então, duas animações do canal de televisão privado FOX. A
primeira, Os Simpsons, é mundialmente conhecida pelo teor de humor e críticas a
sociedade, em muitos momentos se envolve em polêmicas justamente por produzir
sátiras preconceituosas. Tratarei do 7º episódio da 20ª temporada, “Mypods and
Boomsticks”, exibido nos Estados Unidos em 30 de Novembro de 2008.
O episódio em questão foi alvo de crítica da comunidade muçulmana da Grã
Bretanha pelo exagero na sátira e desrespeito à cultura islâmica4. Na trama, o
personagem principal Homer Simpson, pai de Bart, Lisa e Meg, marido de Marge
Simpson, conhece os pais de Bashir, novo amigo de Bart. Quando Homer descobre que
1 SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. SP, Cia das Letras (Cia de Bolso). 2007. “Prefácio da Edição de 2003” (pp. 11 – 26). 2 SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. SP: Cosac e Naify, 2006. Cap. 4. “Tropos do Império” (199 – 260) 3 SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. SP: Cosac e Naify, 2006. Cap. 4. “Tropos do Império” (pp. 206) 4 Noticia retirada de: <http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL951888-7084,00-EPISODIO+DE+OS+SIMPSONS+GERA+POLEMICA+APOS+CHAMAR+MUCULMANO+DE+TERRORISTA.html>
os três são muçulmanos, influenciado por seus amigos acredita que está diante de
terroristas e que precisa arrancar deles a verdade e proteger sua família, no melhor
estilo de Jack Bauer5. Homer vai até a casa dos pais de Bashir e escuta o plano do pai de
explodir um shopping da cidade de Springfield, mas o que Homer não escuta é que na
realidade o pai de Bashir foi contratado para demolir o antigo prédio e evitar todos os
possíveis riscos inerentes à explosão.
Acredito que a proposta do episódio, seja a mesma que propus na introdução
desse trabalho, questionar a construção de um imaginário sobre o Oriente, os amigos
de Homer utilizam como referência sobre o caráter dos pais de Bashir, a série 24h. Uma
série de televisão tem o poder de definir se uma pessoa é terrorista ou não, até mesmo
legitimar uma atitude defensiva. Quando convencido de estar lidando com terroristas,
Homer convida o casal para jantar e envenena o bolo a ser servido na sobre, inclusive,
na mente do pai da família Simpson, preparar um bolo com a bandeira dos Estados
Unidos e servi-lo, despertaria um súbito ódio no casal muçulmano e eles entregariam
suas identidades destruindo o bolo. O mesmo argumento de Homer sobre a necessidade
de se proteger do desconhecido atacando primeiro, é criticado por Said sobre a postura
norte-americana na invasão do Iraque e Afeganistão
Se a proposta do episódio realmente era apresentar o peso da mídia na
construção de estereótipos e a influência cotidiana sobre as pessoas, acredito que a
tarefa foi cumprida. Contudo, ainda é preciso o cuidado com o retrato do Outro, levando
em conta todas as profissões do mundo, porque o pai de Bashir tinha que trabalhar com
bombas e explosões de prédios? Se o intuito era criticar a construção generalizante feita
pelos norte-americanos, porque não apresentar aspectos que valorizem o islamismo e
quebrem estereótipos? Apesar da crítica ser interessante, perde parte de seu valor ao
continuar reproduzindo o que planeja criticar.
A próxima animação a ser analisada dará maior margem para a discussão das
séries e dos comportamentos que o episódio de Os Simpsons criticou. Family guy lida
com a questão do terrorismo de forma totalmente contrária ao episódio discutido
5 Personagem da série norte-americana, 24 horas, exibida pelo canal FOX. É um agente da Unidade Contra Terrorista (UCT) que possui a filosofia “Os fins justificam os meios”, é recorrente Bauer utilizando de violência e transgressão de crimes para cumprir suas missões.
acima, o estereótipo não apenas é exibido mas reforçado, seguido da depreciação de
grupos. Mas antes de tratar de episódios específicos da série, é importante entender em
qual contexto está inserida e qual sua proposta e de seu criador.
As questões de Family Guy
A série animada de televisão, foi criada em 1998 por Seth Macfarlane6, cancelada
em 2002 e relançada em 2005, mantendo-se até agora no ar. Ao todo, foram produzidas
12 temporadas com 210 episódios.
Family guy (no Brasil “Uma família da pesada”), apresenta a vida da família
Griffin, o casal Peter e Lois, seus filhos Chris, Meg e Stewie, por último o amigo de Peter,
Brian (um cão que fala e é escritor de livros). Muitos episódios contam também com a
participação dos amigos de Peter, entre eles Quagmire, Cleveland e Joe.
É uma série de comédia baseada em sátiras de filmes, séries, personalidade e
culturas, segundo seu criador Family Guy gosta de colocar um espelho na cara da
sociedade e dizer: Sociedade, vocês são feios e muitos não gostam do que estão
fazendo”7. Portanto, são frequentes os episódios envolvendo o uso de estereótipos para
apresentar personagens ou critica-los. Em geral, um episódio tem três tramas: Os
problemas de Peter, o cotidiano de seus filhos com a esposa e as desventuras de Brian
e Stewie (um bebê de personalidade adulta que sonha em dominar o mundo e matar
sua mãe), com o avançar dos episódios, as tramas vão se entrelaçando. Mas o
verdadeiro momento em que a série produz ou reproduz críticas à sociedade, são os
Flashbacks. Frequentes em todos os episódios, em geral fazem alusão a episódios
polêmicos do mundo, filmes e séries, personalidades e política. São esses momentos,
que por ironia, também rendem muitas críticas a própria série.
No tocante ao posicionamento político da série existem questões interessantes.
O criador, diretor, roteirista e também dublador de vários de seus personagens, Seth
Macfarlene. É defensor do Partido Democrata norte americano, inclusive doou US$
6 Ator, diretor, dublador, roterista e produtor norte-americano. Criador das séries Family Guy (1998), American Dad (2005) e The Cleveland Show (2007). <http://www.biography.com/people/seth-macfarlane-20624525#family-guy&awesm=~oE46E3jX6zboOf> 7 A frase citada faz parte do segundo episódio da sexta temporada de Family Guy, um episódio especial em comemoração aos 100 episódios da série, dirigido, escrito e apresentado por Seth Macfarlene, exibido originalmente em 4 de outubro de 2007, pelo canal norte-americano FOX.
200.000, para a campanha a presidência de Barack Obama em 2008 e também para as
comissões democratas do congresso estadunidense8, além das contribuições de parte
dos lucros da série, para as campanhas de busca a Osama Bin Laden. É difícil não prever
que Macfarlene, com toda a influência que tem sobre o processo criativo da série, não
transmita seu posicionamento político, principalmente com o 4º episódio9 da quarta
temporada, no qual Peter coloca um nariz de palhaço e brinca com George W Bush no
Salão Oval, fazendo-o rir como uma criança, quando um globo de vidro que está em sua
mesa cai no chão e se quebra, Bush chora também como uma criança.
Sobre os episódios de Family Guy que estão no foco da discussão, três serão
discutidos. O motivo da escolha foi a forma como retratam os palestinos, os terroristas
do 11 de setembro e Osama Bin Laden, se encaixando perfeitamente com a discussão
sobre a generalização e reprodução de estereótipos, além da prática da vexação e
redução da cultura do outro.
O primeiro é o episódio Quagmire’s Baby10, sexto da 8ª temporada, a cena a ser
discutida inicia no oitavo minuto. Nela, Peter, Quagmire e Joe estão sentados no
habitual bar que passam o tempo e Peter está insatisfeito com o rádio usado que
comprou de Quagmire, diz que o aparelho é inútil como o despertador palestino que
comprou uma certa vez. Nessa hora entra um flashback e Peter está dormindo ao lado
de Lois, quando chega o despertador marca 7 horas da manhã, uma voz masculina e
furiosa grita “Allahu Akbar” e o despertador explode o quarto. Se observarmos o
restante do capítulo, veremos que mais nada se relaciona com esse flashback, em geral
é essa a dinâmica dos episódios de Family Guy, ao próximos analisados também
obedecerão a mesma dinâmica.
Sobre o trecho em questão vamos começar pelo despertador, como se não
bastasse o fato dos palestinos já serem malvados e com uma inclinação para ações
explosivas, os produtos palestinos também vão ter o mesmo comportamento, ou seja,
8 Informação retirada de: <http://www.newsmeat.com/celebrity_political_donations/Seth_MacFarlane.php> 9 MUDANÇA RADICAL. Seth Macfarlene. Estados Unidos, Fox Broadscast Company, 5 de junho de 2005, 25 mins de duração, sonoro. 10 QUAGMIRE’S BABY. Seth Macfarlene. Estados Unidos, Fox Broadscast Company, 15 de Novembro de 2009 (exibição original), 25 mins, sonoro.
não confie em nada que venha com a palavra “palestino”. São associações como essa,
palestino – muçulmano – bomba, referidas na introdução do trabalho, facilmente
disseminadas em apenas alguns segundos dessa animação e que possuem um impacto
muito grande na formação de conceitos pela sociedade. Por mais que seja argumentado
que não se deve julgar com tanta severidade esse fragmento de cena, que ninguém é
realmente influenciado por algo tão pequeno, é necessário a preocupação com a
construção do imaginário do espectador, nos “links” que a mente fará ao ouvir, ver ou
ler, a palavra “palestino” novamente. O que surpreende com essa cena é o reducionismo
ao qual Macfarlene condena os palestinos, como se esse fosse um único grupo,
homogêneo e terrorista.
Já tratando de associações, uma interessante pode ser feita com a frase “Allahu
Akbar”11 que há muito vem sido representada com conotações negativas e associadas
diretamente ao terrorismo e fanatismo religioso, quase como a cimitarra12 é associada
ao “árabe cruel”, todo terrorista que se prese precisa esbravejar a frase para se encaixar
no perfil criado, ou então não é terrorista. O maior exemplo disso foi o ataque a
Hiroshima e em seguida a Nagasaki com armas nucleares em 6 e 9 de agosto de 1945,
nenhum norte americano gritou a frase que traz tanto medo, logo, não se enquadram
no perfil de terrorista. Não é preciso regressar até o fim da Segunda Guerra Mundial
existem exemplos mais recentes que se enquadram nesse perfil de investida norte
americana, a invasão do Afeganistão em 2001 é um bom exemplo. Mas em nenhuma
das “intervenções” a terrorismo é sequer associada ao país.
Essa analogia com o mau, construída sobre “Allahu Akbar” também passa por
um processo de naturalização. Quando um jogador de basquete ao marcar a sexta da
vitória grita eufórico a dita frase enquanto é entrevistado, causa estranhamento aos
11 “Deus é o maior” Contudo, o próprio site que publica esse definição, afirma que ela possui um significado simplificado segundo o Instituto Brasileiro de estudos Islâmicos (IBEI), “Quando dizemos “Allahu Akbar”, significa que todas as coisas que imaginamos serem grandes se tornam insignificantes quando comparadas ao Criador”. <http://www.ibeipr.com.br/discursos.php?id_discurso=25> 12 O significado de cimitarra na colocação acima, remete à crítica de Andrew Wheatcroft sobre as atribuições negativas construídas pelo Ocidente, sobre o instrumento. Presente em “De turbante e cimitarra”, Capítulo 12 de Infiéis: o conflito entre a cristandade e o Irá (638 -2002)
ouvintes. Larry Johnson, ex-jogador dos Knicks, até onde o público sabe não é e nunca
foi terrorista, estava apenas agradecendo a Alá pela vitória na NBA13.
A segunda cena faz parte do episódio Hanna Banana14, quinto da oitava
temporada e se inicia no quinto minuto. Nesse, o flashback é mais rápido, Peter está na
sala com um macaco que habitou o armário de seu filho mais velho, Chris, por 9 anos. O
macaco diz que sua esposa o deixou e levou todos os seus bens, em seguida Peter se
compadece do animal e lamenta por ele ter perdido tantas coisas e compara com as
perdas sofridas pelo povo norte americano por ataques suicidas de homens bombas
incapacitados mentalmente. Logo entra o flashback e vemos a base de um prédio, uma
voz masculina e irada grita “Allahu Akbar” e um homem vestido com uma túnica branca,
turbante e barba longa, vem pedalando em alta velocidade uma bicicleta vermelha e se
choca com a base do prédio, lançando o homem ao lado e amaçando a bicicleta.
Essa cena é tão interessante como a anterior, a utilização da frase de louvor a
Alá continua sendo representada como um grito de guerra, mas dessa vez existem dois
novos elementos que somam nessa representação distorcida do palestino: o
questionamento da mentalidade do homem que comente o “atentado” e a
representação de sua figura com vestes que há muito tempo estão estigmatizadas como
uniformes do terror. Questionar ou insinuar variações e problemas de capacidade
mental do Outro, se enquadra em um processo de depreciação e desconstrução de
grupos e povos, muito praticado pelas potências europeias durante as investidas
imperialistas sobre a África, o Oriente Médio e a Ásia, como bem descreve Ella Shohat15.
Agora utilizado pelos Estados Unidos os reducionismos e a “animalização”16 do Outro,
se transformam em recursos políticos para a legitimação de ações intervencionistas ou
tutelares.
13 O momento em questão foi na final dos “East games” da NBA em 1999, o time dos knics contra os Pacers. <https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=JCohyolkoao> 14 HANNA BANANA. Seth Macfarlene. Estados Unidos, Fox Broadscast Company, 8 de Novembro de 2009 (exibição original), 25 mins, sonoro. 15 SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. SP: Cosac e Naify, 2006. 16 “O processo de animalização faz parte do mecanismo mais amplo e difuso da naturalização, ou seja, a redução do elemento cultural ao biológico associando assim o colonizado a fatores vegetativos e instintivos em vez de associá-lo a aspectos culturais e intelectuais” (SHOHAT, STAM. 2006, pp. 201).
O último episódio a ser analisado, reúne todos os elementos acima discutidos
em Os Simpsons e Family Guy, se trata do 14º episódio, “PTV”, da quarta temporada.
Nele, a trama começa apresentando um deserto que a legenda nomeia de Afeganistão,
a câmera se aproxima e vemos várias cavernas, dentro delas Osama Bin Laden e um
grupo homens trajados de túnicas escuras, preparam as filmagens de um vídeo que iria
ameaçar os Estados Unidos, no meio do discurso, Osama se atrapalha com as palavras e
começa a fazer piada com isso, logo, todos começam a rir e fazer gozações. Bin Laden
pega uma galinha de borracha e diz que vai utiliza-la nos vídeos e que a mensagem teria
o mesmo significado que a dita por ele, em outro momento pega um óculos de Sol
gigante e coloca sobre o rosto e diz “Acho que vou usar esses, dão um caráter mais sério!
Morte aos Estados Unidos”.
Quando vai deixar os óculos e voltar a gravar, Stewie Griffin (o bebê) aparece na
caverna e luta contra Osama e seu grupo. Imediatamente quando se revela, Stewie é
atacado por paus pelos homens, mas derruba a todos ao som da música tema de
“Esquadrão Classe – A”17, quando todos estão vencidos, resta ao bebê Griffin a luta
contra Osama que imediatamente saca sua cimitarra, mas ela não é párea para a galinha
de borracha de Stewie. No fim, Osama é vencido por um bebê com uma galinha.
Vemos nessa cena os elementos que faltavam nas outras e que completam o
típico imaginário sobre o Oriente Médio, em primeiro momento o tão retratado deserto
que observado sob a ótica de Shohat, se encaixa em práticas reducionistas no âmbito
climático, uma hierarquização do clima definindo quem é civilizado e quem é selvagem,
o que é puro/impuro, racional/irracional, sadio/doentio18. No caso do deserto a cena
analisada já deixa claro em que posição hierárquica é representado, sendo assim, a
condição daqueles que na cena fazem parte do clima não poderia ser outra a não ser a
violência e o barbarismo, o perfil de “mulçumano” que Homer buscava ver em seus
vizinhos. Até a tão famigerada cimitarra, representada há muito tempo como símbolo
de violência, tão criticado por Andrew Wheatcroft, está no pacote dos signos clássicos
17 Série norte-americana criada em por Frank Lupo e Stephen J. Cannell, exibida pela emissora de televisão NBC, transmitida originalmente de 1983 a 1987. A série girava em torno de um grupo fictício de ex membros do exército dos Estados Unidos que atuavam agora como mercenários. <http://www.imdb.com/title/tt0084967/> 18 SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. SP: Cosac e Naify, 2006, (pp 206).
de um típico filme hollywoodiano da década de 196019 apresentados em apenas três
minutos e meio de cena.
É possível observar também uma prática muito comum do cinema e da televisão
ao retratar árabes e muçulmanos, a bipartição destes em malvado e estupido. Um
exemplo bem ilustrativo dessa imagem está presente no também desenho animado,
Aladdin20. Jaffar e os guardas do Sultão encarnam a maldade enquanto que o próprio
Sultão, líder de Agrabah, é retratado como um tolo que pode ser facilmente ludibriado.
A representação de Osama e seus homens caem nessa bipartição, enquanto estão
tentando matar um bebê a pauladas são perigosos, mas ao serem derrotados caem no
ridículo, ou melhor, a cena direciona para que isso seja pensado e interiorizado.
O modo como Seth Macfarlene lida com o violência do 11 de setembro é com a
chacota de seus protagonistas, o tipo de “desprezo simplista” que Said21 alerta sobre a
situação das atitudes dos Estados Unidos com seus opositores. O episódio do terrorista
sobre a bicicleta também representa bem esse ponto. A ideia é fazer com que o
terrorismo seja encarado como um ato de fanáticos religiosos, palestinos, mentalmente
desiquilibrados e tolos, que louvam a Alá antes de cometer suicídio, transformando o
que foi uma ameaça em piada, são esses os estigmas que o episódio de Family Guy em
questão apresenta.
Conclusão
Toda essa sabedoria belicosa é acompanhada pelas onipresentes
CNNS e Foxes deste mundo, juntamente com quantidades miríficas de
emissoras de rádio evangélicas e direitistas [...] todos reciclando as
mesmas fábulas inverificáveis e as mesmas vastas generalizações com
o propósito de sacudir a “América” contra o diabo estrangeiro”,
19 Filme inglês exibido originalmente em 1962, dirigido por David Lean e roteirizado por Robert Bolt e Michael Wilson. Baseado na obra de T. E. Lawrence, Seven Pillars of Wisdom. 20 Desenho animado norte-americano produzido e distribuído pela Walt Disney Pictures em 1992, dirigido por Ron Clements e John Musker. 21 SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. SP, Cia das Letras (Cia de Bolso). 2007. “Prefácio da Edição de 2003” (pp. 11 – 26)
estigmas que crianças, adolescentes ou adultos jogando um
simples jogo de associação de palavras no Brasil, reproduzem.22
Essa fala de Said, faz parte de um discurso do autor sobre o impacto da produção
de orientalistas, para utilização de dominação política e ao mesmo tempo de construção
de uma cultura para o Oriente que não existe, a mesma discussão vale para as cenas
discutidas acima. O posicionamento político do autor da série é claro, Macfarlene não é
orientalista, mas sua criação tem impactos sobre como o mundo vê (ou pensa que vê) o
Oriente, a série tem um papel como formadora de opinião e como tal é responsável pelo
o que produz. O impacto da informação não apenas acontece mas também é visível
quando vemos crianças, adolescentes e adultos do Brasil, em um simples jogo de
adivinhação e associação de palavras, repetindo os mesmos estigmas e estereótipos.
O intuito desse trabalho não é diminuir os atos terroristas do 11 de Setembro e
defender a figura de Osama Bin Laden, reduzir o atentado às Torres Gêmeas já foi feito
pela a série. O verdadeiro objetivo foi posto e reforçado em vários momentos do texto,
analisar animações norte-americanas e seu processo de criação do imaginário sobre o
Oriente e o peso reducionista de algumas dessas produções sobre a sociedade. A análise
de ambas, Os Simpsons e Family Guy é justificada pela ampla divulgação das séries no
mundo inteiro e o amplo espaço de jurisdição que a emissora Fox ganha, julgo ser muito
importante leva-las em consideração quando discutimos a temática, principalmente
quando o pais que as distribui é tão controverso.
BIBLIOGRAFIA
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. SP, Cia das Letras
(Cia de Bolso). 2007. “Prefácio da Edição de 2003” (pp. 11 – 26), “Introdução” (pp. 27 –
60) e “Posfácio” (pp. 438 – 467)
22 SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. SP, Cia das Letras (Cia de Bolso). 2007. “Prefácio da Edição de 2003” (pp. 17)
SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. SP: Cosac e Naify, 2006.
Cap. 4. “Tropos do Império” (199 – 260)
WHEATCROFT, Andrew. Infiéis: o conflito entre a cristandade e o islã (638 – 2002), RJ,
Imago, 2004. Cap. 12. “De turbante e cimitarra” (p.297 – 311)