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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03044
A CONCEPÇÃO FORMATIVA EM SÊNECA: A INTERIORIDADE
COMO FORMA DE LIBERTAÇÃO DO MUNDO EXTERIOR
PEREIRA MELO, José Joaquim (DFE/PPE/UEM-GTSEAM)
A decadência da polis levou o homem livre grego a deixar de fazer parte de uma
estrutura política simples (a polis) para se inserir em uma grande pátria, complexa (o
império), que não dependia de sua participação para que a máquina administrativa
funcionasse. Sua cidadania foi esvaziada nessa nova estrutura: os deveres "do agora" do
homem helenístico já não eram os deveres cívicos de um determinado Estado, mas os de
qualquer membro de uma cidade sem fronteiras (FERREIRA, 1992).
Com a destruição de seus antigos valores, o cidadão (coletivo) tornou-se súdito
(indivíduo); por extensão, as decisões relativas às coisas públicas passaram a ser tomadas
sem a sua contribuição, do mesmo modo que as novas decisões e o desenvolvimento dos
novos estados aconteciam independentemente do seu querer (REALE, 1994).
Ao perder espaço para exprimir sua opinião e participar na esfera pública, o cidadão
grego foi privado daquilo que o diferenciava de outros homens, tornando-se apenas uma
peça a mais na engrenagem do Império, que, ao mesmo tempo em que se consolidava
(PETIT, 1987), exigia do cidadão novas habilidades, diferentes das antigas virtudes
cívicas. Como não encontrava mais na cidade, e em seus antigos valores, o conteúdo para a
própria vida, o indivíduo passou a buscar em si mesmo, na sua interioridade, novas
motivações para viver.
O resultado dessa descoberta do cidadão como indivíduo decretou, de vez, a
decadência dos costumes clássicos que davam "sabor" e "valor" à sua existência e colocou,
no centro das discussões, as novas exigências para a formação desse novo homem
(SÁNCHEZ, 2000).
Assim, a vida pública, como centro de reflexões, foi substituída pela vida privada.
Ou seja, as preocupações coletivas cederam lugar às preocupações individuais. A grande
preocupação dos filósofos dos novos tempos era encontrar um meio para libertar e/ou
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adequar esse homem dos rigores e dos males da vida, o que ensejou um fluente debate
entre as escolas filosóficas da Antiguidade sobre a questão da felicidade.
Ao que parece, tais escolas concordavam em um ponto: o summum bonum
(supremo bem) levaria a uma vida feliz, o fim último da vida humana. O mesmo consenso
não é observado quanto ao entendimento do motivo pelo qual se deveria buscar esse bem.
Por um lado, se o homem se identifica com a virtude; se ela é suficiente para uma vida
feliz, ele deveria buscá-la por ela mesma ou pela felicidade que traria consigo? Por outro
lado, se ela não é suficiente, o que se deveria buscar: o repouso, o prazer, a ausência da
dor, favores da fortuna, entre outros?
Não pretendemos dissertar sobre a polêmica, mas simplesmente analisar como uma
delas, o estoicismo, se posicionou.
Para a doutrina estóica, a virtude é inseparável da vida feliz e basta-se a si mesma;
não é necessário, portanto, valer-se de outros expedientes para realizá-la (LEÓN SANZ,
1997).
Essa polêmica ecoa em algumas das reflexões de Sêneca, a exemplo de quando ele
definiu que o processo de ensino da felicidade ocorre ao longo da existência humana. De
seu ponto de vista, durante os primeiros anos da vida, o homem aprende que a felicidade
significa a satisfação sensível de tendências e desejos. Passada esta fase, pouco ou nada é
feito para reverter esse quadro enganoso. Por isso, não seria surpreendente o entendimento
da felicidade, e até da perfeição, como bens relativos ao corpo, aos sentidos, à posse de
bens, ao destaque social e político, às honrarias. A contundência do magistério senequiano
em relação à felicidade, no entanto, foi maior quando o filósofo dissertou sobre a tendência
natural do homem para buscá-la. Para ele, esse bem superior é um objetivo comum a todos
os homens, ricos e pobres, sábios e ignorantes, soberanos e súditos, livres e escravos
(GARCIA GARRIDO, 1969). Ou seja, apesar das marcadas diferenças entre eles, os
homens convergiriam para esse fim.
Viver feliz, meu irmão Galião, todo mundo quer, mas ninguém sabe ao certo o que torna a vida feliz; e não é fácil conseguir a felicidade, uma vez que, quanto mais ardentemente cada um procura, se erra o caminho, mais dela se distancia; se o caminho o leva no sentido oposto, a própria velocidade aumenta a distância (Sobre a Vida Feliz, I,1).
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Nos dizeres senequianos, esse anseio pela felicidade é natural no homem. É esse
“desejo natural” que o impele para o bem maior, para uma vida feliz, ou seja, para
plenitude humana. No entanto, ele ponderava que essa caminhada é pontuada por inúmeros
equívocos, já que existem aqueles que buscam a falsa felicidade, que confundem o
verdadeiro bem com aparências, o verdadeiro prazer da felicidade com o prazer dos
sentidos (LEÓN SANZ, 1997) ou com aqueles promovidos pela fortuna. Para Sêneca, o
caminho para o domínio da felicidade plena seria o oposto dessa direção: passaria
necessariamente/obrigatoriamente pela razão.
Tais ensinamentos eram inspirados no estoicismo, em seu postulado de que viver
feliz significa “viver em conformidade com a natureza”. Para o estóicos, a Natureza é
prenhe de racionalidade: o mundo compõe-se como um corpo orgânico, solidário, e
orquestrado por algo superior, a razão universal, ou seja, deus. Como tudo e todos estão
submetidos a essa ordem universal, a exortação estóica segue a Natureza, tem o sentido de
uma vivência virtuosa. Em outros termos, se a Natureza é bondosa e plena de
racionalidade, o homem deve orientar sua vida nessa direção — bem e razão —, para,
assim, poder viver segundo a virtude. Na medida em que o homem tem como atributo a
racionalidade e que o mundo é ordenado pela razão universal, viver em “conformidade
com a Natureza” significa “viver de acordo com a razão”, quer dizer, viver em perfeita
sintonia com a razão universal (LI, 1993, p.14-15), que a todos submete pelo destino.
Ao se entregar a esse destino, o homem tem como fator definitivo sua natureza
racional, pois a direção de sua plenitude – do bem que lhe é inerente – é traçada pela
perfeição da razão. Para Sêneca, “a nossa felicidade depende exclusivamente de termos em
nós uma razão perfeita” (Cartas a Lucílio, 92,2).
A razão está presente em todos os homens, indicando que todos têm a mesma
origem, o que justamente explica que todos pertençam a uma mesma família (RINTELEN,
1965). Apesar dos seus dotes superiores, a alma se acha presa ao corpo humano, como em
um cárcere. Em grande medida, é limitada e impedida por ele de se alçar às alturas da
perfeição, à felicidade almejada.
Motivado por essa situação, o homem busca, na esfera do irracional, aquilo que é
requisitado pela natureza humana, ou seja, pelo racional. Desse modo, por sua debilidade e
má formação, pretensiosamente, o homem requer algo que não lhe é próprio, um bem
exclusivo da alma. Em face disso, o que de início pode ter cintilado como possibilidade de
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felicidade plena é, inúmeras vezes, causa de tristeza profunda no final. O que deveria ser
fator de união entre os homens acaba por originar uma luta encarniçada entre eles.
Por isso, Sêneca é contundente em afirmar que o caminho para a felicidade,
escolhido pelas massas, pelo vulgo, pode conduzir a uma perda irreparável (GARCIA
GARRIDO, 1969). É o que está contido na exortação que ele faz a Novatus, seu irmão
mais velho: “Por isso, o mais importante é não seguirmos, como ovelhas, o rebanho
daqueles que nos precedem, dirigindo-nos não aonde é preciso ir, mas aonde vamos”
(Sobre a Vida Feliz I,3). Sêneca considera importante afastar-se da multidão, uma vez que
essa, em seu pensar, desumaniza o homem e torna-o avaro, luxurioso e cruel, o que foge
dos desígnios da natureza.
Com o mesmo entendimento, tempos mais tarde, orienta Lucílio, seu discípulo
preferido, a buscar a interioridade e, realimentado com esse exercício superior, contribuir
mais efetivamente para a sociedade.
Assim, Sêneca defendia como fundamental o viver intimista, que ele qualificava
como ócio produtivo, como situação privilegiada para a reflexão sobre a virtude e sobre o
bem dos concidadãos. Isso traria como resultado benefícios não apenas de ordem pessoal,
mas também de ordem coletiva, incluindo-se a república universal. Criaria condições
também para que o indivíduo possuísse a si mesmo e rompesse com as condições que
levavam à alienação, ou seja, com aquilo que, instalando-se na esfera do azar, do
irracional, do caótico, o dispersaria. Sêneca relacionava tais condições com o mundo dos
negócios, dos prazeres, da relação com a massa, dos benefícios patrocinados pela fortuna,
entre outros. O intimismo corresponderia à negação desse mundo pujante de problemas e
de falso brilho que levava o homem a se perder. Somente se libertando desse raio de ação é
que o homem que se pretendia sábio poderia identificar a própria interioridade com o logos
divino, com o arquiteto do universo harmônico. Ao recolher-se em seu intimo, ele criaria
condições para o desenvolvimento de um dialogo consigo e de uma contraposição de sua
existência com a orientação da razão.
Vale considerar que o exílio interior que Sêneca recomendava assumia, em dadas
ocasiões, tonalidades elitistas e aristocráticas, o que explica sua reserva em relação às
massas. Entretanto, isso não tinha o sentido de segregação e/ou de falta de interesse para
com os outros homens, pois, para ele, o homem que transitasse pela sabedoria tinha a
consciência do seu dever para com a sociedade; não seria feliz se ficasse recluso
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egoisticamente em seu intimismo. Ao recomendar que o indivíduo fosse responsável pela
produção da virtude e da verdade, fazia-o em favor de um melhor serviço aos seus pares.
Esta era a forma peculiar com que Sêneca se propunha a ensinar a prática da solidariedade
entre os homens. Assim, aquele que tivesse o domínio do saber teria consciência de bastar-
se a si mesmo, mas também de seguir naturalmente a tendência da natureza. Para ele,
rigorosamente, solidão não é uma situação prazerosa, até porque é antinatural. É humana a
necessidade de companhia que leve à amizade, uma relação que promove o
compartilhamento de alegrias e prazeres, bem como auxilia a suportar as adversidades
próprias da vida.
Dentre as múltiplas possibilidades decorrentes da amizade entre aqueles que
transitassem pelo saber, ele enumerava: juntar-se na ação/prática da virtude, promover o
intercâmbio de sabedoria, dividir afetos e sentimentos superiores, servir de apoio/suporte
para enfrentar as dificuldades que a fortuna pudesse impor a qualquer um. Os amigos, na
concepção senequiana, correspondiam ao modelo de vida ideal e, por extensão, poderiam
contribuir para o processo formativo na busca da felicidade.
Desse modo, a filantropia senequiana tinha um caráter humanístico e, ao mesmo
tempo, de distanciamento; portanto, era seletiva, não tinha vínculo com a demagogia e com
as concessões tão prezadas pelo vulgo (MARTIN SANCHEZ, 1985) e que eram vetores do
desequilíbrio da alma, cujo resultado seriam comportamentos e ações promovidas pela
irracionalidade.
Pergunta-se, portanto: o que constituiria a verdadeira natureza do homem, para
Sêneca? A resposta é simples: algo que exigiria o delineamento de metas saudáveis,
guiadas pela razão. “Uma vida feliz é a que está em conformidade com a sua natureza e
isso só pode acontecer se, antes de mais nada, a alma está sã e em perfeito estado de saúde”
(Sobre a Vida Feliz III, 3).
Ao acrescentar “em conformidade com a sua natureza”, Sêneca afastou-se do
adágio estóico, “viver em conformidade com a Natureza”. Isso pode ser explicado pelo seu
entendimento de que o instinto de conservação capacitava o ser vivo para buscar o que lhe
fosse conveniente, dava-lhe consciência de si mesmo e possibilitava-lhe viver de acordo
com a sua própria natureza (NOVAK, 1999).
Assim, admirador incondicional, se não adorador da natureza, Sêneca acreditava
que a perfeição humana consiste em viver em conformidade com o que pede a própria
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natureza do homem; em seguir, na ação individual, a harmonia que mostra o cosmo; em
buscar em si mesmo, em sua natureza, os nobres valores individuais, a sua excelência, sem
depender nem servir a ninguém, mas, com independência superior, fazer-se senhor de tudo;
em se entender como espetáculo digno da atenção e da complacência dos deuses, pela sua
virtude; enfim, em se assemelhar às divindades, impassíveis e serenas (ARTIGAS, 1952).
É isso que constitui uma vida plena e feliz.
Os ensinamentos senequianos não se referem a uma aceitação passiva, conformista
e cega da ordem natural, regida por leis invariáveis e inflexíveis que comandariam tanto o
universo físico quanto o humano. Sua preocupação era ensinar uma busca consciente de
harmonia com a natureza, a busca da conformidade com a natureza, que sabiamente
determina tudo. Sabedoria seria buscar esta harmonia com a razão inteligente e superior
que governava o universo (HOFFMANN, 2009). Sêneca foi incisivo, então, ao sentenciar:
“o destino guia quem o segue, arrasta quem lhe resiste” (Cartas a Lucílio, 107, 11). Em
seus conselhos a Lucílio, alertou:
Que o destino nos encontre sempre prontos, sempre de boa vontade. Uma alma verdadeiramente grande é aquela que se confia ao destino. Mesquinho e degenerado, pelo contrário, é o homem que tenta resistir, que ajuíza mal da ordem do universo e que acha preferível corrigir os deuses do que emendar-se a si próprio! (Cartas a Lucílio, 107, 12).
Como atribuía à alma o status de divindade, cujo hospedeiro seria o corpo, Sêneca
considerava que seria possível o homem atingir a sabedoria. Essa prerrogativa estaria no
homem bom e virtuoso: “dentro de nós reside sim espírito divino que observa e rege os
nossos actos, bons e maus" (Cartas a Lucílio, 41, 2) e, por extensão, possibilita a perfeição,
a vida feliz.
Se vires um homem intrépido no meio do perigo, insensível aos desejos vulgares,
feliz no meio da adversidade, tranqüilo em plena procela, contemplando os outros homens
do alto, olhando os deuses de igual para igual - acaso não sentirás por um tal homem uma
onda de veneração? Não dirás: "Há aqui algo de superior, de demasiado elevado para poder
considerar-se equivalente ao miserável corpo em que está encerrado?". Sobre esse homem
desceu uma força divina; a sua alma sublime, com perfeito domínio sobre si, que passa
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pelas coisas sem descer ao seu nível, que se ri dos temores e dos desejos vulgares, é uma
alma movida por uma energia celeste (Cartas a Lucílio, 41,4-5).
Em razão destas características, Sêneca considera que o homem é um ser
misterioso: como a alma, é “algo divino", a natureza humana guarda certo parentesco com
a divindade, o que qualifica o homem para ser cidadão do Cosmo. A alma é a raiz de toda a
perfeição, da vida feliz, mas pode ser afetada pelo corpo, sua dimensão frágil. “Que
diferencia hay, por tanto, entre a naturaleza de dios y Ia nuestra? Lo mejor de nosotros es
el espíritu, en él nada existe aparte del espíritu. Todo él es razón." (Cuestiones Naturales, I,
praef., 14). Além disso, tendo em vista que a estrutura física humana é inferior à de muitos
outros animais, ele afirma: "a alma é que nos dá nobreza" (Cartas a Lucílio, 44, 5).
O homem deveria ser valorizado sobre qualquer outro objeto valorável, pois, pela
sua simples condição de homem, configura-se como algo especial: “O homem, para o
homem, deveria ser coisa sagrada” (Cartas a Lucílio 95,33).
Que nos intime a natureza, nossa primeira credora; a ela diremos: “Recebe uma alma melhor que aquela que me confiaste; não me esquivo nem busco evasivas. Tu tens, preparado pelo que tem boa vontade, aquilo que deste ao que não tinha consciência disso: toma-o” (Sobre a tranqüilidade da alma, XI, 3).
O pensador reivindica, assim, a supremacia do homem; este teria um porte superior
em face da Natureza, poderia tratá-la de igual para igual e, porque não, olhá-la de cima
para baixo.
Com base nessa compreensão, não se identifica em Sêneca a exortação estóica de
promoção do homem pela sua inserção no todo natural; pelo contrário, o que se observa é o
homem como obra mestra, como obra privilegiada que honra a Natureza criadora.
Acrescente-se que, em alguns momentos, sugere ao homem que busca a sabedoria,
e por extensão, a tranqüilidade da alma e a felicidade, que supere os deuses, pois, enquanto
estes têm a paz imperturbável, o sábio tem o mérito de, vivendo entre amarguras e
contrariedades, por meio de sua vontade, força e firmeza viril, sustentar suas conquistas e
atingir e manter o sossego do espírito (PÉREZ-VIZCAÍNOS, 1966), ou seja, a vida feliz
tão almejada por todos os homens.
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Essa orientação, ao que tudo indica, passa pela importância capital que Sêneca
atribui ao homem, o artifex vitae (artíficie da vida), na conquista pessoal do seu senhorio e
no combate vitorioso da dignidade, cujo resultado é concebido como o supremo bem. É
precisamente essa possibilidade de conquista que, segundo Sêneca, investe o homem da
dignidade plena; é ela que dá fundamentos para sua ousada declaração sobre a
superioridade humana diante dos demais seres e de sua equivalência a Deus: “ficarás muito
à frente do resto da humanidade e os deuses pouco se distanciarão de ti” (Cartas a Lucílio,
53, 11). O que Sêneca expõe como ideal não é a inteligência penetrante do Cosmo ou suas
leis, mas o ethos que afirma a personalidade daquele que domina, do que se torna senhor
de si mesmo, da sua própria vida (GARCÍA-BORRÓN, 1956) e da sua própria felicidade,
virtudes que são projetos da natureza.
No entanto, o homem, na busca pelo prazer mais intenso, com o olhar voltado para
o futuro, em regra, rompe - não sem grande luta - com os prazeres que poderiam lhe trazer
felicidade (GARCIA GARRIDO, 1969), quando, na realidade, deveria viver intensa e
virtuosamente o momento presente, pois nele se representa o passado e se vislumbra o
futuro, que, para o homem, é fonte de boas e más emoções. Estas se confirmam ou se
negam quando o futuro se faz presente (ZARAGUETA, 1966).
Por isso, na concepção senequiana, o homem não pode vacilar: deve ter sempre em
conta, de forma consciente, que a razão dotada de perfeição é a virtude, que se identifica
com o honestum (bem moral), gênese do verdadeiro bem, da felicidade. O bonum
honestum (bondade moral) é o único bem: o verdadeiro prazer resulta da posse do
verdadeiro bem. Verifica-se, assim, uma plena identificação entre a vida feliz e a vida
virtuosa, conquistas que se tornam direitos do homem: “Tudo o que possa contribuir para a
obtenção de uma vida feliz era um bem de pleno direito” (Cartas a Lucílio, 44,6); já os
desejos, levam à incerteza, à preocupação, pois a plenitude exige um caráter estável,
seguro, tranquilo, isento de temores.
Com base nessa perspectiva, entende-se que não existe felicidade desvinculada de
virtude, posto que o único modo de obter essa segurança é posicionar-se acima da fortuna
(LÉON SANZ, 1997).
Aí estão para Sêneca os grandes obstáculos que o homem deveria superar em busca
da sua felicidade. Tal empreitada, para ele, é extremamente difícil, graças ao brilho do
mundo exterior que desorienta a alma: a fortuna exerce uma ação tirânica sobre o homem,
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obrigando-o a se colocar a seu serviço (ARTIGAS, 1952). Contrapondo-se a essa
realidade, em ensinamentos a Novatus, sentencia que a alma deve "estar pronta a utilizar os
dons da fortuna, sem ser escrava dela" (Da vida feliz, III, 3). Suas ponderações sobre a vida
feliz passam pela negação das perturbações e das tentações da fortuna, que atingem a
tranqüilidade da alma. Ele identifica um valor positivo na posse de riquezas, mas apenas
quando esta é usada estoicamente, sem o deslumbramento, a arrogância e o poder que elas
possibilitam. Os bens materiais devem prover o homem de uma vida digna, não escravizá-
lo (GARCÍA GARRIDO, 1969).
Nosso pensador ainda afirma: "¿En efecto, i, qué entiendes por hado? Estimo que es
Ia indefectibilidad de todos los sucesos y actos, indefectibilidad que ninguna fuerza puede
romper" (Cuestiones Naturales, lI, 36,1).
Em sua dimensão temporal, a fortuna se apresenta como uma questão fundamental,
como uma preocupação com o futuro. Pensando assim, o homem oferece serviços de
caráter quase ritual, tendo em conta agradar aos deuses e evitar obstáculos na busca
daquilo que entende por segurança e felicidade. “¿Y entonces?”, "¿en qué les afectan las
expiaciones y Ias conjuraciones, si los hados son inmutables? Déjame que defienda la
rígida doctrina de los que formulan reservas a estas prácticas, y estiman que no son más
que un alivio de la mente enferma” (Cuestiones Naturales, II, 35,1).
Para Sêneca, o homem que, com "sacrifícios rituais", acredita poder mudar os
destinos da fortuna não conhece os desígnios divinos: se é quase impossível mudar a
decisão de um homem sábio, como mudar a dos deuses? (GARCÍA GARRIDO, 1969).
Além disso, Séneca assevera:"Si juzgas que puedes conjurarlo con sacrificios o con la
cabeza de un ternero blanco como la nieve, no coneces la divindad. También decís que la
opinión de un sabio no puede cambiar; cuánto más la de dio" (Cuestiones Naturales, II, 36,
I).
Os bens que cobrem uma necessidade desencadeiam novas necessidades, as quais, por seu turno, fragilizam a felicidade, porque estabelecem, como numerador, os bens que se possuem e, como denominador, as necessidades que angustiam. Afirma ele que não se encontram bens que não aliciem novas necessidades. Com esta dinâmica, os bens não trazem paz, nem felicidade, não poupam desassossego, o que compromete a vivência dos bens superiores (GUIRAO, 1966), da tão desejada felicidade.
Por isso, Sêneca defende a idéia de que os bens materiais constituem a causa dos maiores sofrimentos humanos:
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Passemos aos patrimônios, o maior motivo das aflições humanas, Pois caso comprares todas as outras coisas pelas quais somos angustiados - mortes, enfermidades, medos, desejos, sofrimentos de dores e trabalhos - com os males que acarreta a nossa riqueza, essa parte pesará muito mais (Sobre a tranqüilidade da alma, VIII, 1).
Como ganham maior dimensão no campo das preocupações e da dedicação do
homem, os bens exaurem aos poucos suas forças, levando-o a uma progressiva condição
servil em relação ao que acumulou. Isso acontece porque se acredita que a felicidade é o
resultado da acumulação de bens e se esquece de que a paz de espírito é alcançada
mediante a sua renúncia (GUIRAO, 1966). Apegado aos bens materiais, o homem não
alcança essa paz, ele se coloca numa torrente que o arrasta para o “ter” e o “poder" e para
desejos que não são os seus, o que complica e desagrega sua caminhada, levando-o a
perder o seu perfil e pureza primitivos, assim como a sua espontaneidade.
Ao exercer esse domínio tirânico sobre o homem, os bens materiais requerem um
novo modo de "ser" e de "agir", que invariavelmente o converte em escravo (BARREDA,
1966) desse seu novo senhor.
Seguindo as pegadas estóicas, Sêneca concebe que a virtude, o Supremo Bem, é
suficiente para proporcionar a suprema felicidade. Agregar-lhe qualquer outro valor, como
a fortuna, o prazer dos sentidos, a boa saúde e os bens materiais, entre outros, em nada a
favoreceria, assim como a desgraça não a afetaria (LÉON SANZ, 1997), em face da
firmeza de propósito que particulariza o homem por ela agraciado.
Semelhantemente, o que se mete à frente da virtude em nada a diminui; ela não será
menor, conquanto possa brilhar menos. Talvez ela não seja tão evidente e nítida à nossa
vista, mas permanece idêntica perante si mesma e, tal como o sol obscurecido por algum
obstáculo, continua a agir. Ou seja, contra a virtude têm os infortúnios, os sofrimentos e as
injúrias tanto poder como a névoa contra o sol! (Cartas a Lucílio, 92,18).
Assim, Sêneca põe em debate a necessidade e a importância de se desvincular a
felicidade de qualquer relação com a fortuna, ou com qualquer outra possibilidade acenada
pelo mundo exterior, pois esta comporta sempre um caráter de fragilidade e de insegurança
[...] a nossa felicidade depende exclusivamente de termos em nós uma razão perfeita, pois apenas esta impede em nós o abatimento e resiste à fortuna; seja qual for a sua situação, ela manter-se á imperturbável. O
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único bem autêntico é aquele que nunca se deteriora. O homem feliz, insisto, é aquele que nenhuma circunstância inferioriza; que permanece no cume sem outro apoio além de si mesmo, pois quem se sustenta com o auxílio dos outros está sujeito a cair. Se assim não fosse, começariam a ter ascendente sobre nós coisas que nos são exteriores. Haverá alguém que deseje estar na dependência da fortuna (Cartas a Lucílio, 92,2).
Ao defender essa idéia, Sêneca expõe alguns paradoxos. A única forma de se
atingir a plenitude prazerosa do bem, que o homem tanto busca, está na segurança
oferecida pela refúgio na interioridade (LÉON SANZ, 1997).
Fiel a esses referenciais, Sêneca considera que o único qualificado a adentrar aos
domínios da felicidade seria o sábio, porque este estaria em plena harmonia com o
universo e, portanto, em conformidade com a natureza, o que lhe garantiria a certeza de
não ser surpreendido por nada. O sábio, por ter vivenciado todos os obstáculos da vida,
está preparado para as adversidades, para as desventuras que podem acometer qualquer
um. Caso algo quer agradável quer desagradável acometesse alguém, seria encarado por
ele com tranqüilidade e sem surpresa, visto aquele evento também poderia ter sucedido
com ele. Ele agiria como se já esperasse aquela situação. Por isso, a orientação senequiana
a Lucílio: para o sábio nada lhe causa surpresa. Sêneca conclui que o sofrimento, em
grande medida, ocorre quando o acontecimento se faz novidade e/ou em situação não
esperada (HOFFMANN, 2009, p.59), surpreendendo o homem desavisado e mal preparado
para a vida.
Com isso, somente o sábio desfrutaria da felicidade em sua plenitude, somente ele
estaria revestido de todas as condições necessárias para vivê-la verdadeira e virtuosamente
em todos os seus quadrantes benfazejos e dadivosos: “O sábio autêntico vive em plena
alegria, contente, tranqüilo, imperturbável” (Cartas a Lucílio, 59, 14), porque não tem
medo de perder essa condição, visto que seus passos não se desviam da direção desse bem
maior (LÉON SANZ, 1997).
Amparado por esses bens maiores, o sábio senequiano basta a si mesmo porque está
em posso do logos e da verdade, da virtude e da felicidade. Suas necessidades estão
satisfeitas e ele pode adotar uma postura indiferente diante das coisas que o rodeiam, dos
acenos do mundo do exterior.
O sábio, que Sêneca apresenta como modelo de homem ideal, caminha na vida para
uma meta precisa a vida feliz. A vida feliz se alcança, nos dizeres senequianos, com a
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posse do bem mais precioso. Este, por sua vez, tem que ser buscado na alma, na realização
do razoável, de acordo com a mens sana (mente sã), que fundamenta a paz e a concórdia
interior. Não existe felicidade sem verdade e sem juízo correto. O homem feliz é aquele
cuja razão põe acordo entre ele e a natureza. O acordo com a natureza elimina as
perturbações, dando peso à tranqüilidade da alma. No entanto, o bem mais precioso não é
outro senão a virtude. Felicidade, sabedoria e virtude vivem irmanadas.
Contemplada em outra perspectiva, a vida feliz radica na conformidade com a
natureza ou, em outras palavras, com a posse da própria identidade. A felicidade é
fidelidade ao que o homem é. Felicidade, natureza e verdade são inseparáveis, dado que
toda ação concreta tem de estar em conformidade com o Logos divino. Na vida feliz tem
lugar uma sintonia perfeita entre o pensamento e a ação, entre a contemplação e a
atividade. A vida feliz não consiste em acumulação de poder ou riquezas nem no gozo do
prazer. Carente de necessidades, em posse de si mesmo e de virtude, o sábio desfruta da
vida feliz, sendo rico em sua austeridade, e livre em sua servidão ao destino. A essa
felicidade corresponde a tranqüilidade da alma (MARTÍN SANCHEZ, 1985), a virtude e a
tudo dela resultante.
Para evidenciar a coerência lógica do pensamento que identifica virtude e vida
feliz, Sêneca reflete acerca do paradoxo representado pela felicidade do sábio estóico em
meio às torrentes e dificuldades da vida. Na justificativa que montou para essa contradição,
ele argumenta que, na medida em que a vida do homem está marcada pelo sofrimento, pelo
medo, pela incerteza, pela escravidão, pelo falso brilho do mundo exterior, é necessário
buscar uma vida feliz que seja capaz de aceitar essas companhias. Nessa orientação, ele
põe em destaque que a natureza racional do homem transcende o meio que o cerca e o
honestum, garantia da vida bem-aventurada, representa uma ponte para a divindade (LÉON
SANZ, 1997) e, assim, além de atribuir dignidade à pessoa humana, capacita-a para
conquistar a felicidade tão almejada.
Segundo alerta senequiano, nesse exercício rumo à perfeição, a felicidade não pode
ser identificada com qualquer possibilidade oferecida pelo mundo exterior, porque se trata
de duas instâncias diametralmente opostas: a felicidade é uma condição perene e invariável
da alma que conquistou a perfeição (GARCIA GARRIDO, 1969) por meio de uma difícil
caminhada formativa até os domínios do Supremo Bem.
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Ao final desta discussão, destaca-se que Sêneca oferece à sociedade um modelo de
homem que entendia como ideal, um exemplo a ser imitado por seus concidadãos. Por isso,
esse referencial/modelo proposto pelo filósofo tinha substância formativa quer na doutrina
que veiculava quer na conduta/ação que recomendava à sociedade. Além disso, esse
homem tido como ideal, em seu magistério moral, ensinava mais do que a erudição, já que
o ponto alto dos seus exemplos são as práticas éticas e morais. Ao proceder assim, o
homem pensado por Sêneca poderia angariar amplo destaque social na medida em que
serviria como exemplo e orientador de ações e condutas num processo formativo dinâmico
e pleno para o seu tempo e para além dele, conforme atesta a sua resignificação ao longo
da História.
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