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Oo ALBERTO S. SANTOS A ARTE DE CAÇAR DESTINOS Prefácio de Fernando Alves

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ALBERTO S. SANTOS

A ARTE DE CAÇAR DESTINOS

Prefácio de

Fernando Alves

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Índice

Prefácio: Da ara votiva à sala da identidade . . . . . . . 11

Correr o Fado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

O Génio do Candil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

O Dono do Mastro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

Maria Carriça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161

A Sombra da Deusa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173

A Filha da Viúva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211

Onde o Rio Acaba . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241

Posfácio: O bom uso das palavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 287

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Prefácio

Da ara votiva à sala da identidade*

Há uns anos, convidado pelo autor de A Arte de Caçar Des-

tinos, visitei a aldeia de Quintandona, por coincidência, uma

das joias da sua notável realização pública. À boca da aldeia,

saltou-me ao caminho um diabo em teatrais maquinações.

Cuidei de ligar o gravador. Tratava-se, afinal, de um diabrete

do grupo residente, os ComoDEantes. Com variadas manhas

e ruidoso espalhafato, o actor conduziu-nos ao coração do

povoado, passando pelo cruzeiro, pela muito antiga capela,

pelo centro cultural instalado na Casa do Xiné, pelo lavadouro

tradicional onde algumas mulheres trajadas à moda de outros

tempos reproduziam, para deleite dos visitantes, uma cena

quotidiana da época dos meus pais. Nesse dia, se esse fosse

o seu intento, o nosso inesperado anfitrião e mestre de ceri-

mónias podia ter convocado rumores ainda mais perdidos na

memória do lugar, tentando reproduzir os estranhos grunhi-

dos de javalis que em certas noites de eclipse se escutavam na

Cidade Morta, ali tão perto.

A esse lugar, chamado Monte Mozinho, onde nasceu a

mais extensa citânia da Península Ibérica e onde terá existido

a antiga Cividade Gallaeci, terra dos Galegos, somos agora

levados por um dos contos deste livro. Assim em “A Sombra

da Deusa”, sentimos que o narrador nos desvenda um manus-

crito encontrado num baú misterioso e que, ao partilhar com

o leitor informação privilegiada, o conduz muito perto da ara

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votiva à deusa, depois de revelada a razão mais funda por que

um espírito invisível se pode manifestar num carvalho. Nessa

geografia de druidas, espectros e maldições, foi em tempos

necessário o sacrifício de dois jovens enamorados para que o

espírito do lugar fosse pacificado. São coisas que se escutam

falando com os antigos.

Entretanto, indo o leitor nesta viagem ao fundo do tempo,

pode acontecer que sinta, como se um longínquo relâmpago

lhe iluminasse a página, a respiração da Deusa-Javali ou a fra-

grância da poção mágica feita com bagas de visco recolhidas

por foice de ouro.

Quintandona é ainda o cenário de um outro conto deste

livro, aquele que nos apresenta a desdita de Caramuja, caída

nas malhas da Inquisição. Acusada de feitiçaria, Caramuja es-

cuta de quem por ela, livremente, se enfeitiçara, a revelação de

um fio indelével ligando Prometeu a Lúcifer e desmonta as ar-

madilhas teológicas dos doutos juízes do Santo Ofício, citando

prudentemente os Santos Evangelhos. Algumas das perguntas

de Caramuja podem deixar o leitor muito fragilizado, caso este

proteja a pele em improvisada toga ou aparelhado de sotaina.

“Senhores juízes”, ousa a feiticeira, "temos de nos entender: se

dizem que eu expulso o Diabo dos corpos das pessoas ende-

moninhadas, acham que ele ia gostar de mim? Porque quere-

ria fazer um pacto comigo?"

Quando as lemos, quando as vemos mais de perto, as feiti-

ceiras podem ser desconcertantes. Assim como estas histórias

resgatadas pelo autor, não ao bolor das gavetas do Concílio de

Basileia ou à bula do Papa Inocêncio viii que decreta a existên-

cia de bruxas, mas a outros registos porventura mais fidedignos.

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Pois que las hay, las hay, mas, por algum motivo, os galegos as

chamam de meigas. Já ouvimos, algum dia, falar das bruxas la-

vadeiras vestidas de branco. Diz-se que passam de noite pelos

povoados e que se ouvem os seus risos enquanto batem a roupa

nas pedras lisas junto ao rio. Pensei nelas quando escutei o riso

das mulheres no lavadouro de Quintandona. Talvez nesse dia

Alberto S. Santos estivesse já arquitectando a história da Cara-

muja, enquanto o Diabo fazia tropelias junto à Casa da Viúva.

A minha infância foi feita de serões mágicos numa aldeia

da Beira, escutando histórias que poderiam casar com estas.

A história de uma mulher altiva e desconhecida que descia a rua

principal, noite alta, sem dirigir palavra a quem a saudasse e de-

saparecendo como surgira, num silêncio de chumbo. E aquela

outra da luz que dançava toda a noite na encosta da serra. E a

da encruzilhada onde um homem encontrou, em noite de lua

cheia, uma cabrinha e, vendo que lhe não fugia, pegou nela e

levou-a às costas, após o que a cabrinha foi aumentando de

peso, a tal ponto que a não podia já suster; e, quando decidiu

pousá-la, sentiu um estouro e a cabrinha desapareceu.

Assim, neste livro. Assim, no conto “Correr o Fado”, quando

se escuta, na quietude da noite, “uma espécie de silvo misturado

pelo chispe de galopes”. O viajante chegado da cidade também

escutara muitas histórias fantásticas, relatos dos “mundos ex-

traordinários dos bruxedos, vidências, mezinhas, encantamen-

tos, seres estranhos que apareciam em poços, minas e fontes e

outras extravagâncias do pensamento humano”. Mas dessa vez

confrontou-se com a desgraça medonha dos corredores do fado

e conheceu um buscador da alma humana, um buscador de

ondas e radiações, cuja arte bebia no veio mais fundo do saber

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dos antigos vedores da minha infância, que chegavam com as

suas varinhas e os seus pêndulos e descobriam nascentes de

água na terra seca. Tal como Jonas, o rapaz que fora encontrado

num cesto de vindimas no lugar de Pedrantil, vai descobrir, com

um golpe de sachola, um baú antigo onde estava escondido um

candil. E o candil guardava um génio cujos poderes espalham o

assombro num dos contos deste livro.

Nesse conto, intitulado “O Génio do Candil”, confirma-se

que Alberto S. Santos é uma espécie de Aladino contempo-

râneo que não precisa de obedecer aos ditamos do Grande

Feiticeiro. Ele penetra, por conta própria, na caverna miste-

riosa onde se encontra a lâmpada mágica. E alcança os seus

propósitos sem esfregar a lâmpada fortuitamente. Não é esse

o método por ele adoptado para libertar o génio que lhe po-

deria dar tudo. Ele surpreende o génio da lâmpada, investi-

gando incessantemente, pois almeja algo mais inacessível do

que os favores da filha do sultão. O ficcionista Alberto S. Santos

prefere encontrar o génio da lâmpada nos incunábulos, nas

estantes mais escondidas dos alfarrabistas, nos fundos das bi-

bliotecas, nos arquivos paroquiais. É disso exemplo este livro

que nos revela o mais esconso da alma humana, sem perder a

oportunidade de nos ilustrar, de nos lembrar que o candil de

Pedrantil faz parte do espólio do Museu Municipal de Penafiel,

encontrando-se “à vista de todos, na Sala da Identidade, com

o génio representado através do holograma que não se apaga”.

Fernando Alves

* Por decisão do autor do Prefácio, este texto não segue o novo Acordo Ortográfico.

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Correr o Fado

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Cada vez que chegava a uma qualquer aldeia de Portugal,

instalava-se um burburinho de alegria e agitação à minha volta.

A algazarra era sobretudo protagonizada pelos rapazes excita-

dos que corriam à  volta do carro que me transportava junta-

mente com as amostras que faziam a minha profissão.

Porém, naquele dia 21 de junho de 1955, uma escura se-

gunda-feira, primícias de um verão falhado, não fora assim. As

ruas de Luzim eram um imenso deserto. O silêncio que as to-

mava apenas se cortava pelos uivos vindos do monte, guinchos

da natureza, ventos ou animais, que, quando se buscam, nunca

se sabe quem são.

— Olalá, isto está estranho!… — balbuciei para os meus bo-

tões, enquanto repuxava a barbicha, como se a força que lhe

imprimia fosse capaz de destapar os segredos que por ali pai-

ravam.

Com as mãos no volante, espreitei o redor pelo para-brisas

em busca das almas da terra. Mas aquelas oito horas matinais

só viam portas fechadas. Abri ligeiramente o vidro. Meti o nariz

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de fora e farejei o trovão que estalava nas serranias marcoen-

ses, do outro lado do rio.

Estacionei o  Ford Taunus verde em frente à  igreja, abri

a porta, saí devagar e enfiei o horizonte pelas janelas das casas.

Nem sinal de vida por aquelas bandas. Encostei-me no rebordo

do guarda-lamas, ajeitei o  chapéu preto de abas largas e  tirei

o maço dos Definitivos do bolso da gabardina. Puxei um cigarro

e bati-o ritmadamente na palma esquerda em busca da nico-

tina. Acendi o  fósforo e  deixei-o por algum tempo a  queimar

o pau, devagar, como se o lume amarelado me ajudasse a ilu-

minar os pensamentos e também aquele grave dia cinzento.

— Que raio se passa aqui?! Por onde anda esta gente? — per-

guntei ao meu cigarro, enquanto volutas azuis escapavam por

entre os dedos, misturando-se com o ar de chumbo. — Não se

vê vivalma!…

De repente, pareceu-me que os reposteiros de uma das casas

se animavam de vida. Não tinha a certeza, mas pareciam vultos,

pardas silhuetas espreitando para fora com olhos de medo.

Chovera naquela noite. O chão estava encharcado. Nunca

vira um verão começar tão mal, a ponto de me obrigar a dor-

mir na Pensão Aires, em Penafiel, por não ter conseguido che-

gar a  tempo a  Luzim, no dia anterior, tamanha a  tormenta.

A  terra molhada transparecia que fora recentemente pisada

por animais. Cavalos. Viam-se, bem delineadas, as patas des-

ferradas no chão molhado. Talvez um único animal, ou dois,

que passaram várias vezes em ambas as direções.

— Pelo menos, há animais por aqui!  — pensei, atirando

a ponta do cigarro ao chão, enquanto ouvia o subtil ruído ris-

cado que faz a beata acesa contra a água.

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Inquietou-me aquele ambiente de terra abandonada, apenas

povoada por sombras escondidas. Mas estava ali com uma mis-

são: visitar o cliente da aldeia, José de Miravale, dono da única

mercearia da freguesia, amigo de toda uma vida, que fazia do

seu quarto de hóspedes a minha morada sempre que chegava.

Na verdade havia outra razão, dela já falarei.

Via Luzim como um dos mais belos recantos do país, que,

enquanto caixeiro-viajante, tinha de calcorrear. A aldeia esten-

dia-se encosta abaixo, desde o topo de um monte até às águas

corredias do Tâmega, como se os seus habitantes fossem os es-

petadores permanentes num anfiteatro, em cujo palco se desen-

rolava o ato eterno da majestosa exuberância da natureza verde.

Embora escondido na sua total ruralidade, este lugar parecia

um pedaço recortado de um qualquer paraíso, ali adossado

a uma paisagem milenar. Sim, milenar, porque a todas as vezes

que estacionava em Luzim o dono da mercearia falava-me das

gravuras que os seus antepassados haviam deixado nas pedras

daqueles montes, nas mamoas, no menir e em tantas coisas fan-

tásticas em que eu não acreditava e que o meu escasso tempo de

estadia nunca me permitira comprovar.

José de Miravale era um homem sem idade, mas repleto da an-

cestral sabedoria das aldeias. Sempre lhe conheci os mesmos ca-

belos pretos tingidos de cãs, que lhe davam o aspeto de dálmata,

e a pele escura, bem curtida pela vida. Para além de um pequeno

negócio, cultivava os campos e roçava os montes, e nada acon-

tecia na freguesia que não fosse do seu conhecimento. Dizia-se

até que sabia mais das coisas da terra do que o próprio padre.

Bati-lhe à  porta fechada. O  silêncio foi a  resposta. Aguar-

dei que algo acontecesse. Mas nada! Os minutos desfilavam,

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inquietos e perturbantes, dentro de uma aldeia-fantasma. En-

quanto insistia com os nós dos dedos no vidro sujo, uma, duas,

três, quatro vezes, sem qualquer resultado, sentia-me uma espé-

cie de arlequim, sem público que me aplaudisse, numa vivên-

cia perdida naquela rua desalmada. Mirei o céu, que tremia em

perigosos e próximos reboantes estrondos, os profetas da chuva

grossa. Havia que tomar uma decisão: ou voltava a Penafiel, ou

entrava na venda do Se Zé de Miravale, esperando que ele apa-

recesse, ou que algo acontecesse.

Espreitei pelo vidro da porta, em busca de sinais, mas ape-

nas as sombras do dia pardo se mexiam nas paredes de arroz,

massa, açúcar e todas as bugigangas que ali se vendiam. Um

fio de vento trouxe novos esquisitos barulhos das redondezas:

uma espécie de silvo misturado pelo chispe de galopes no en-

torno da serrania. Vi-me, de repente, tomado por maior temor.

Estranho restolho que mais parecia uma tropa de equinos

a  aproximar-se vertiginosamente da rua principal, onde me

encontrava sozinho para a enfrentar, ao mesmo tempo que as-

sistia ao dia a fechar-se mais escuro e os trovões a derramarem

novas gordas lágrimas do seu pranto.

— Ah, Se Zé, vai perdoar-me, mas não tenho alternativa!

Parti o vidro com uma pedra, meti a mão pelo buraco e fiz

girar um pequeno ferrolho na madeira de carvalho. Estava

dentro da mercearia. Dei dois passos em frente, em direção

ao balcão devoluto. Nas minhas tantas chegadas, logo encon-

trava, por detrás da madeira gasta e polida, a figura do simpá-

tico merceeiro a rabear. Naquele momento, apenas as sombras

me faziam companhia, aninhando-se e  agigantando-se con-

forme as remexidas das árvores no exterior.

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Fixei-me num espelho, por detrás do balcão. Não me via.

Apenas o  vazio daquele espaço sombrio. Dei um passo em

frente. Pousei a  inquietação sobre a porta fechada que, atrás

do balcão, dava para a parte residencial da casa, por onde tan-

tas vezes entrei na companhia do Miravale.

Uma vez mais o espelho me chamou. Lá fora, o estrondeio

que deixara aumentava assustadoramente. Os lampejos dos

relâmpagos que fendiam os céus, por entre o manto das nu-

vens grávidas, iluminavam a sala com novas formas fantasma-

góricas. Questionei se estaria mesmo a  viver aquele sinistro

momento, se estava vivo e  acordado. E,  enquanto o  espelho

me respondia afirmativamente, fez-me ver, entre dois relâm-

pagos sucessivos, a imagem de um animal: um cavalo. Estar-

reci. Dos seus olhos parecia irradiar um misterioso feixe de luz

invisível que me dominava a  mente. Gelei com medo e  com

frio, estacado como alguém a quem se aponta uma arma nas

costas.

Decidi então contar até cinco e olhar para trás para me cer-

tificar da visão. As marcas no chão lamacento que encontrei

à chegada e os barulhos misteriosos que pareciam de uma ca-

terva de cascos de animais davam, na minha mente, vida àquela

imagem refletida no espelho.

Voltei-me, com o medo dos corajosos que não têm alterna-

tiva. Contudo, os olhos apenas vislumbraram sombras fugidias

e agitadas projetadas no vidro da porta e da montra. Impeli-me,

como uma mola, para a frente. Felizmente, a porta atrás do bal-

cão estava apenas encostada. Entrei, sem hesitar, e parei a meio

das escadas, vendo subtis formas animadas que fantasiavam

a alvura da parede à minha frente. Já não podia recuar. Tinha

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de me refugiar, com urgência, de algo que não sabia ao certo

o que era, mas que ainda me perturbava. Porém, desconhecia

o que iria encontrar no topo da escadaria: uma residência vazia

de gente, a família escondida, estranhos seres que pareciam ter

tomado a aldeia?!…

Pé ante pé, alcancei o topo da escadaria que tantas vezes su-

bira para me dirigir ao quarto de hóspedes. Sabia de cor a geo-

grafia da casa: à frente, a cozinha; à esquerda, a sala e, para trás,

os quartos. Nervosamente, sondei o  redor. Nada! Apenas um

silêncio tumbal cardado pelas restevas que vinham do exterior.

Um pequeno fio de luz que ardia no resto de uma vela justificava

os desenhos que se mexiam, dolentes e  disformes, e  que me

assustaram, segundos antes. Iluminava um oratório onde figu-

rava uma pequena imagem de Nossa Senhora, feita em pedra de

Ançã, o orgulho do dono da residência, que a comprara a uma

família falida, com capela na casa.

O silêncio cortado pelos uivos da natureza exterior enchia

a antecâmara que distribuía as funções da habitação. Uma porta

rangeu. Virei o rosto, receando um qualquer demónio em busca

de uma alma perdida. Cingi mais a gabardina ao corpo e enca-

fuei a cabeça com o chapéu, repuxando-lhe as abas, em busca

de maior proteção.

Três passos em frente foram os suficientes para empurrar

a porta da cozinha. A luz azul prateada que entrava pela janela

fumada denunciava um repasto matinal recente, com a louça de

barro por arrumar em cima da mesa. Na lareira, um fio de fumo

remoía o resto de dois madeiros, chupado pela chaminé larga

retangular. No alto, o  fumeiro carregado de salpicões, chouri-

ços e  presuntos, iguarias sempre abundantes, preparadas no

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último inverno. Aproximei-me. Aninhei-me e coloquei a mão

na trempe e nas escuras panelas de ferro de três pés. Estavam

ainda quentes.

— O  que se passa nesta casa e  nesta terra?! O  povo fugiu

para…. Aaarghhhhhhh… — gritei de pânico e dor.

Quando regressava à posição normal, um espeto metálico,

fino e  pontiagudo entrou-me carnes adentro, na nádega di-

reita, atravessando a gabardina, as calças e as cuecas e lanci-

nando-me o corpo impreparado.

— Tardo, filho de uma égua! — ouvi uma voz zunir com es-

tridência, nas costas.

Ia preparar-me para reagir e defender-me, mas já não pude.

O mundo apagou-se-me naquele instante, tirando-me as dores

do aguilhão e abrindo um espaço branco. Não sabia onde es-

tava, depois de sentir o golpe violento de um cajado na nuca. Só

via o branco. Talvez fosse essa a cor da morte.

2

Desconheço por que mundos viajei naquela jornada. Diria

que visitei as margens do rio que nos transporta ao Além. E não

poderei dizer que desadorei. No primeiro momento, vi um túnel

e, ao fundo, uma luz acolhedora. A minha alma desejou fundir-

-se nela. Mas, até lhe chegar, vários outros túneis derivavam em

ambas as direções, formando outros tantos labirintos. Achei

bela a morte assim vista. Descobri, finalmente, o rosto etéreo

do meu anjo da guarda. Apareceu-me, sorridente, abraçando-

-me com ternura, enquanto desfilava, num espelho, o filme da

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minha vida desde que descolei do útero materno e saí da em-

bocadura do vórtice que me convidava a seguir viagem até ao

dia da minha morte. Alegrei-me e arrependi-me de muitos atos

do meu tempo terreno, e acreditei, de verdade, que, agora sim,

voltava ao lugar de onde saíra trinta e dois anos antes, para en-

carnar numa nova aventura terrena, em busca da perfeição.

A quietude e a proximidade da felicidade plena só foram per-

turbadas pela lembrança da família. O anjo da guarda deu-me

então um copo com água fresca.

— Toma, é a água do esquecimento que deves tomar antes

de iniciarmos a viagem definitiva até à Luz.

Tomei o copo na mão direita e, de súbito, abriram-se-me os

olhos. Não cheguei a provar o sabor do esquecimento. Agora,

não pareciam de seres celestiais as inquisitivas cabeças, umas

conhecidas e outras não, que se debruçavam sobre mim, como

se estivessem a estudar um animal raro, algo que nunca tives-

sem visto, mas prontos para o dissecar.

— Felisberto! Acordaste?! —era o Miravale.

Felisberto sou eu. Felisberto Bonifácio da Fonte é a minha

graça. O objeto de tanta minúcia por parte de tantas cabeças.

A  consciência de que a  minha alma havia voltado à  peregri-

nação terrena, depois de quase se ter fundido na luz que me

chamava para a eternidade, foi logo anunciada pelas dores bi-

cudas que me picavam a nádega. Tentei remexer a cabeça para

a  frente para assentir na triste verdade do que o  meu amigo

acabava de perguntar, mas logo fui lembrado do golpe violento

que me pusera naqueles cuidados. A dor na nuca ainda era vil

e traiçoeira, como a estocada que a causou.

Desviei os olhos para outra cara. Era um outro rosto,

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desconhecido, que me desferia uma mirada de águia, de um

homem na casa dos cinquenta, moreno, de bigode farto, que

enrolava devagar como se a  cornucópia que formava não ti-

vesse fim à vista. Vestia umas calças brancas e um casaco lis-

tado a preto e branco com riscas verticais. O chapéu, também

ele branco, tinha-o na mão e pousou-o a um canto da mesa de

madeira já coçada pelo uso, antes de dar nota de si.

— Parece que temos homem, né? — perguntou, num tom

açucarado, fiando o infindável bigode.

Continuei a minha viagem pelas caras que me devassavam,

sem mexer muito, para não acordar os diabos que me habita-

vam o corpo. Parei numa outra, tão estranha como a anterior.

Um ancião, de cabelos brancos escorridos das abas da cabeça

redonda. O cocuruto estava deserdado de penugem, brilhando

o  caco com a  trémula chama da lanterna de petróleo mistu-

rada com a luz diurna que se esgueirava pela janela, apesar das

cortinas corridas. Os seus olhos azuis inquiriram-me, ferinos

como o aguilhão que me haviam espetado nas partes escondi-

das. Pressenti que era homem para me ler a mente e descobrir

na perfeição por que lugares mourejei antes de abrir os olhos.

A sua vestimenta era simples. Umas calças de sarja castanhas

e  uma suada camisa branca de fazenda barata. Ao pescoço,

usava um fio metálico que segurava um qualquer objeto es-

condido no peito. Não perguntou nada. Só respondeu ao outro

desconhecido numa voz carregada de erres afrancesados.

— O senhorr parrece estarr bem!

A dona Marcolina de Jesus, esposa do anfitrião, mas muito

mais nova do que o patrão da casa, eu já conhecia de muitas vin-

das. Devota de São João Batista, o santo da terra, grande fazedor

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de milagres na alma que me parecia santa daquela mulher que,

escondida numa mancha preta de vestes, desfiava contas no ro-

sário da Senhora de Fátima, adquirido e benzido numa das pe-

regrinações que saíam da aldeia, a pé, a pão e água, em direção

à Cova da Iria.

— Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco… — re-

moía a Marcolina, enquanto ajeitava o lenço na cabeça e me

olhava com curiosidade e um subtil sorriso de satisfação por

me ver de olhos já bem abertos, ou então por recear o escân-

dalo que seria justificar um morto em sua casa e que não lhe

pertencia por qualquer laço de afinidade ou de consanguini-

dade. Apesar do astigmatismo que lhe atrapalhava as vistas, os

olhos desceram-lhe para a minha mão, onde a íris jorrou feixes

negros, a  cor da reprovação, ao mesmo tempo que o sorriso

desvanecia.

Remexi-me para me acomodar, mas as dores causadas nas

partes traseiras associadas a uma perna adormecida pelo pas-

sar do tempo na mesma posição voltaram a lembrar-me quão

bela era a morte, desde que já lá estivesse. Arrependi-me de

não ter tomado a taça com a água do esquecimento que o meu

anjo da guarda me oferecera para desencarnar e  percorrer

o túnel em direção à luz onde a minha alma se aquietaria uma

boa temporada.

Finalmente… Finalmente… ela! Sorria com a  dentadura

branca bem aprumada. Era um sorriso aberto, como o  dese-

nham os aliviados. No caso de Brígida, a professora primária,

tinha uma razão para se sentir aliviada. Prometera eu, a mim

mesmo e àquela jovem de vinte anos já dobrados, voltar a Luzim

o mais rápido que pudesse. Encantara-me o doce sotaque de

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Chaves com que me cobrira de mimos no mês anterior, quando

visitei pela última vez o José de Miravale. E prometera eu voltar

porque, em boa verdade, não poderia esconder a quem me per-

guntasse que era ela a outra razão que me trouxera de volta tão

rápido a Luzim. Aliás, não houve dia desse último mês que não

pensasse na professora primária daquela terra para determina-

dos acertos que estavam ainda por resolver. Talvez mais adiante

possa explicar as coisas bem mais agradáveis vividas durante

uma semana inteira na companhia da bela donzela que, com

ternura, me segurava a  mão direita, e  que era o  preciso local

onde os desaprovadores feixes negros dos olhos da Marcolina

viam o escândalo.

Confesso que, à vista de tão desarmante sorriso, me arrependi

de me ter arrependido de não ter tomado a água fresca do esque-

cimento. Sorri ao concluir que estava, afinal, no meu bom juízo

quando decidi abrir os olhos e recusar a gentil oferta do meu

anjo custódio, ao mesmo tempo que Brígida dava nota de si:

— Olá, Felisberto! Pensava que não voltavas! — Os cabelos

castanhos adornavam o delicado rosto, onde brilhavam duas

esmeraldas da cor da azeitona acabada de apanhar.

Já que tinha adiado o  encontro com o  anjo, decidi tomar

a vida com as duas mãos, e fi-lo literalmente. Cobri a mão de

Brígida que me segurava, delicadamente, com a  que me so-

brava e experimentei voltar a falar.

— Brígida, o  que me aconteceu?!  — perguntei ao sorriso

que me abraçava. —  Senhor João…?! Dona Marcolina?!…  —

questionei, sem mais palavras, que julgava desnecessárias,

face à evidência dos factos que todos deviam conhecer melhor

do que eu.

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Brígida acenou com a  cabeça e  com os olhos em direção

a Miravale, como que lhe endossando a tarefa das explicações

que o caso merecia. Este franziu a testa e esboçou um sorriso

forçado. Coisa rara num homem tão bem disposto, por natureza.

— Meu caro Felisberto, estou que não posso! Não sei como

te explicar o sucedido…

Há momentos em que o silêncio é um bom tempero para as

dificuldades. Foi dele que José de Miravale se tomou, enquanto

se remexia de um lado para o outro, até aclarar a garganta na

tigela de porcelana cheia do tinto carrascão que crescia todos

os anos enrolado às árvores, fiéis sentinelas da margem direita

do Tâmega.

Animado pelos dois goles vermelhos, pela coragem que o

simples ato de tomar uma tigela de vinho produzia num homem

da terra, mesmo sem que o álcool tivesse tempo para gerar qual-

quer efeito nos estômagos curtidos, o Miravale voltou à fala.

— Pois é, Felisberto… Tenho desculpas a pedir-te pelo su-

cedido… Nunca imaginei que fosse o meu bom amigo a entrar

na cozinha…

Os outros quatro assentiam com a cabeça, com gravidade.

Brígida apertou mais a minha mão, sempre vigiada pelos olhos

raposeiros da dona Marcolina, que decidiu sair, logo a seguir,

em direção à cozinha, não decifrava eu, naquele momento, se

entediada pelo deboche que as minhas mãos provocavam nas

da professora primária, se por um qualquer súbito afazer.

— Como assim?! Não vi vivalma quando cheguei… Parecia

uma terra abandonada…

— Esta terra tem andado com medo… o  povo anda com

muitos medos, Felisberto…

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— Homessa, e porquê esse medo?!

— Coisas estranhas e antigas que voltaram, Felisberto…

— Desembuche, homem! — insisti, com uma névoa de irri-

tação a assomar-me as vistas. — Nunca vi esta terra assim tão

deserta e cheia de mistérios!

Um dos desconhecidos tomou a  voz da explicação que

a José de Miravale tardava.

— É o fado!… O fado anda à solta em Luzim!

— O fado?! Aqui também se canta o fado?!

Não entendia o  que aquele homem de voz afável queria

dizer do alto do seu copioso bigode. Eu vivia na cidade do

Porto, conhecia o fado, a música nacional que se cantava so-

bretudo nos bairros típicos de Lisboa, mas também nas sere-

natas coimbrãs. Não imaginava era que o fado, embora sendo

certo e sabido que uma certa tristeza constasse da sua certidão

de nascimento, pudesse criar um clima de tensão e inquietude

naquela pequena aldeia.

O homem sorriu. Vim a saber, mais tarde, mas posso adian-

tar já que quem arrojou anunciar tal estranheza se chama João

Tadeu, unanimemente considerado benfeitor e homem bom da

terra, e que a sua voz adocicada lhe advinha das terras de Vera

Cruz. Não era mais do que um dos muitos brasileiros de torna-

-viagem que saltavam do Entre Douro e  Minho para a  outra

quadra do Atlântico e voltavam benfazejos com o seu dinheiro,

fatiotas brancas e alguma presunção.

— Não, Felisberto!… Aqui não se canta o fado… Aqui corre-

-se o fado! — sentenciou, finalmente, José de Miravale.

A  resposta deixou-me intrigado e,  a  bem dizer, irritado.

Todos o  leram no meu rosto quando fitei o  dono da casa,

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forçando-o, de olhos nos olhos, a melhores explicações. Ele não

aguentou os seus. Baixou-os e procurou, de seguida, os do João

Tadeu. O torna-viagem elevou a cabeça, enquanto continuava

na interminável tarefa de enrolar o eterno bigode. Porém, não

foi ele quem alumiou a minha curiosidade. Procurei os de Brí-

gida, mas só encontrei um encolher de ombros a adornar-lhe

o rosto delicado, já sem o sorriso que tanto me encantava. A se-

guir, os do francês, o homem que se escondia no seu mutismo.

Nada mais dissera desde que o ouvira atestar que eu estava bem.

Acompanhava tudo com um interesse que não era igual ao ge-

rado pelos temores dos da casa. Marcolina, essa, chegava com

um tabuleiro com presunto, salpicão, broa, cebola com sal e avi-

nhada, e ainda as azeitonas de sempre. E, é claro, uma infusa de

vinho tinto. Não seria dela que obteria também qualquer expli-

cação para as minhas dúvidas. Pelo menos, pareceu-me perce-

ber então a razão por que abandonara o quarto, minutos antes.

Marcolina, como boa dona de casa, sabia de centenária sabe-

doria que o vinho e as iguarias que as suas mãos entreteciam ao

longo do ano haveriam de afogar e curar as tensões que se abri-

gavam no quarto. Era tão fatal como o destino. Mas lá esgueirou,

pelo canto do olho, uma nova mirada reprovadora diretamente

deitada às minhas mãos.

Preso naquele quadro, remexi-me para mudar de posição.

As dores traseiras logo anunciaram que havia perguntas que

faltavam.

— E  quem me espetou o  aguilhão?!  — perguntei, aceso.

— E porque mo espetaram e me deram uma cajadada que quase

me matou?

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