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Synesis, v. 8, n. 2, p. 182-202, ago/dez. 2016, ISSN 1984-6754 © Universidade Católica de Petrópolis, Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil
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A ANTROPOLOGIA LASCASIANA E A VISÃO DO ESTADO DE NATUREZA NO SÉCULO XVI THE LASCASIAN ANTHROPOLOGY AND THE VISION OF THE STATE OF NATURE IN SIXTEENTH CENTURY
PEDRO BROCCO
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE, BRASIL
Resumo: O presente estudo pretende expor algumas das linhas fundamentais sobre as concepções antropológicas e de filosofia moral implícitas na colonização espanhola na América do século XVI, bem como nos discursos que pretenderam promover uma reforma moral da empresa colonizadora, questionando diretamente seus fundamentos antropológicos e éticos. Dentro deste quadro mais geral, o objetivo principal do trabalho será o de abordar a atuação de Bartolomé de Las Casas (1474-1566) e os efeitos de seus escritos apologéticos e denunciatórios no interior de um projeto teórico acerca de uma etnologia comparada e de uma visão sobre o estado de natureza e o nativo americano. Palavras-chave: Bartolomé de Las Casas. Estado de natureza. Século XVI. Abstract: This study aims to expose some of the key lines on the anthropological and moral philosophy implicit in the concepts of the Spanish colonization of America in the sixteenth century, as well as speeches intended to promote moral reform of the colonizing company, directly questioning their anthropological and ethical foundations. Within this broader context, the main objective of the work will be to address the work of Bartolomé de Las Casas (1474-1566) and the effects of his apologetic and denunciative writings and within a theoretical project about a comparative ethnology and an insight into the state of nature and of the native American.
Artigo recebido em 07/10/2016 e aprovado para publicação pelo Conselho Editorial em 10/12/2016. Doutorando em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/4343409634486318. E-mail: [email protected].
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Keywords: Bartolomé de Las Casas. State of Nature. Sixteenth Century. Introdução
O presente estudo terá como objetivos apresentar visões em disputa no interior do
projeto colonizador espanhol nas Américas. As Índias de Castela tiveram como início
colonizador, após a chegada da armada de Colombo, a fundamentação do domínio real
consubstanciada nas bulas alexandrinas e com a posterior utilização destas como instrumento
legal de domínio com as leituras dos Requerimientos.
Há no embasamento de tal forma de colonizar uma visão específica sobre a alteridade
nativa. Seja pela via do bárbaro, seja pela via do escravo por natureza, a visão espanhola sobre
aqueles que já ocupavam o solo americano apresenta contornos condizentes com o projeto
colonizador que se escolhe implementar. Essa será a preocupação deste trabalho, isto é:
mostrar que a visão que dá embasamento ao início da colonização é criticada e sofre tentativas
de reforma. Os reformadores serão, principalmente, alguns frades dominicanos que atuaram
nas Américas e que ficaram na Espanha ligados às Universidades: acadêmicos, itinerantes,
professores, bispos, cuja figura mais proeminente será a de Francisco de Vitoria, da Ordem
dos Pregadores. Neste estudo, daremos atenção especial a Bartolomé de Las Casas, em especial
à sua visão sobre os nativos e sobre o estado de natureza do qual fariam parte, em suas disputas
retóricas, políticas, morais e teológicas contra aqueles partidários de uma visão diferente e
oposta, ligada à concepção do início da colonização espanhola, tendente à exploração do
trabalho indígena na qualidade de semi-escravo. Estariam, no entanto, Las Casas,
Montesinos, Vitoria e os outros dominicanos de sua época engajados em um movimento de
questionamento da legitimidade do domínio da Coroa espanhola das terras do Novo Mundo
ou, antes, atuavam como reformadores da moral colonizadora? Neste sentido, caberia
situarmos esses debates a partir de um pano de fundo concernente às ideias acerca da ética
colonizadora situadas no contexto dos debates.
1. O domínio das terras bárbaras: bulas alexandrinas, Requerimiento e o início da
empresa colonizadora
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As Bulas alexandrinas, cujo nome deriva do Papa que as concedeu, Alexandre VI,
foram os primeiros documentos jurídicos aplicados na América. A Bula Inter Coetera, de 4
de maio de 14931, de Alexandre VI, assegurou a posse das terras descobertas e por descobrir
à Coroa de Castela e Leão. No entanto, houve no total cinco documentos relativos às Índias
expedidos e assinados pelo Papa Alexandre VI, todos favoráveis à Coroa espanhola.
Entre o retorno de Cristóvão Colombo de sua primeira navegação à América (15 de
março de 1493) e sua segunda viagem (25 de setembro de 1493), o corpo diplomático
espanhol agiu rapidamente junto à Santa Sé para que fosse assegurada, juridicamente, a posse
das terras recém-descobertas. No breve período, portanto, que antecedeu a segunda ida de
Colombo às terras americanas, Alexandre VI assina os seguintes documentos: a) primeira
Bula Inter Coetera, 03 de maio de 1493; b) a Eximiae devotionis2, 03 de maio de 1493; c) a
segunda Inter Coetera3, 04 de maio de 1493; d) a Piis fidelium4, 25 de junho de 1493; e) a
Dudum siquidem5, 25 de junho de 1493.
Diante da empresa orquestrada que aliou um corpo diplomático célere e a expedição
de cinco documentos eclesiásticos em um período de pouco mais de um mês, não há que se
negar o valor jurídico-político de tais documentos ainda que oriundos de uma autoridade
eclesiástica. Antes de se retirar a característica eminentemente jurídica de tais documentos,
1 Há duas Bulas Inter Coetera, uma de 3 de maio e outra de 4 de maio de 1493. 2 Trata-se de um documento que basicamente repete o conteúdo da Bula Inter Coetera, reiterando, porém, que se outorgava a Castela os privilégios, graças, liberdades imunidades e faculdades que já se havia outorgado anteriormente a Portugal. Essa Bula surge com vistas a amainar os previsíveis protestos portugueses à Inter Coetera. 3 A segunda Inter Coetera ampliava as doações contidas na Inter Coetera do dia anterior: atribuía à Coroa espanhola o domínio integral e exclusivo sobre as terras e povos revelados por Cristóvão Colombo. 4 Trata-se de Bula que concede amplas faculdades em matéria espiritual ao frade Bernardo Boyl, religioso e diplomata espanhol. Aqui podemos ver que, muito antes de Antônio Vieira, as Coroas ibéricas já se valiam de religiosos com habilidades diplomáticas enviados em missões secretas. Boyl, com efeito, ao final de 1476, era secretário do futuro rei espanhol Fernando II, o Católico, que o envia para negociar com os franceses. Boyl acompanha Colombo em sua segunda viagem à América, em 1493, como missionário e Vicário Apostólico nas Índias Ocidentais, título outorgado pelo Papa Alexandre VI. Regressa à Espanha em 1494 ante a dificuldade de não conseguir se comunicar com os indígenas. Cf. Boyl, Bernardo, na Gran Enciclopedia Aragonesa. Acesso em 26 de agosto de 2015. 5 Bula que reafirmava a direito castelhano às ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas e por descobrir, as quais, navegando ou caminhando para o Ocidente ou Meio-dia, estejam quer nas partes ocidentais, meridionais e da Índia. Cf. ANDRADE DA SILVA, Dinair. “Tensões entre Castela e Portugal a propósito dos descobrimentos atlânticos: um estudo das bulas alexandrinas”. In Anais Eletrônicos do IV Encontro da ANPHLAC. Salvador, 2000. Acesso em 26 de agosto de 2015.
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deve-se examinar os fundamentos sobre os quais se construíram o sentimento de validade e
eficácia de tais documentos, e em que medida, por exemplo, a teoria de Francisco de Vitoria
(ca. 1486-1546) aponta para uma fundamentação distinta, pois o jurista da Corte de Castela,
no limiar do século XVI, diante da situação inusitada e desconhecida da descoberta do Novo
Mundo, tinha duas alternativas para responder às questões levantadas pela descoberta: utilizar
os modelos e instrumentos que o mundo jurídico medieval oferecia ou trilhar um novo
caminho6.
O modelo jurídico medieval ao qual nos referimos tem como fundamento a teoria
dos dois poderes ou das duas espadas, cuja raiz remonta a Santo Agostinho. Em De Civitate
Dei, Agostinho cria a distinção entre os dois amores e as duas cidades, de acordo com a qual
a cidade terrena seria um tirocínio para a cidade celeste. A comunidade dos fiéis, assim, seria
a representante da cidade de Deus que está nos céus. Até o período das Cruzadas, o conceito
de Cristandade possuía carga majoritariamente espiritual, designando o conjunto daqueles
que se consideravam cristãos e professavam a fé cristã. A partir de determinado momento,
quando a Europa se vê ameaçada pelos sarracenos, o Papa João VIII pede ajuda a Bizâncio
para a defesa da Cristandade, dando-lhe uma característica mais mundana e secular, ao invés
da carga exclusivamente espiritual. Neste sentido, e já dando continuidade à sobreposição
entre o poder temporal e o poder espiritual que acontece durante o reinado de Carlos Magno,
a Ecclesia acaba por se confundir, paulatinamente, com a Cristandade e com os poderes
seculares, fazendo-se um autêntico Estado, com todos os poderes civis daí derivados, inclusive
enfrentando militarmente potências terrenas. Daí derivará uma extensa história, que não será
aqui abordada, onde se encontrarão, em uma Itália dividida, os guelfos, partidários do Papa,
e os gibelinos, partidários do Imperador do Sacro Império, em uma guerra de sucessão
secularíssima, entre os séculos XII e início do XIV, na qual estará envolvido ninguém menos
do que Dante Alighieri.
Dante Alighieri traz, aliás, em seus escritos políticos como a Monarchia, a
formulação da teoria dos dois poderes: o poder temporal-secular é um desdobramento de
uma autoridade universal celeste, que desce sobre o imperador temporal sem qualquer
6 Cf. RUIZ, Rafael. Francisco de Vitoria e os direitos dos índios americanos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 45.
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mediação. Tais teses, aceitas e ventiladas no medievo, seguirão dois caminhos mais ou menos
simultâneos: i) sofrerão uma hipertrofia com a utilização, por parte da Igreja e dos Pontífices,
da fundamentação segundo a qual estes seriam, enquanto vicários de Cristo e herdeiros do
trono de Pedro, os representantes máximos do poder da Cristandade e, neste sentido,
estariam acima dos reis e imperadores; e ii) o outro caminho começa a ser trilhado já na
Idade Média com a crítica da teoria dos dois poderes e a limitação do poder soberano do
Pontífice por autores como Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham. Entre os pensadores
medievais que se vincularam à cosmovisão segundo a qual o Pontífice teria tanto autoridade
espiritual quanto secular, sendo quanto a esta a autoridade máxima, podemos citar o
agostiniano Egídio Romano e Henrique de Susa, apelidado o Ostiense, autor do século XIII
para quem Cristo, ao assumir a natureza humana, fora constituído rei do universo. Assim, os
príncipes então existentes haviam perdido seus direitos e os transferiram para o próprio
Cristo. Constituído São Pedro como chefe da Igreja, ocorre a intermediação entre o próprio
Cristo e os sucessores de Pedro, os Papas7.
A literatura examinada nos autoriza, portanto, a reconhecer que o episódio das bulas
alexandrinas e a fundamentação jurídica da tomada das terras americanas por parte de Castela
deita raízes muito mais no movimento medieval da teoria dos dois poderes e em sua leitura
hipertrofiada, ao ponto de o Papa realizar uma doação, instrumento jurídico por excelência,
de partes do globo terrestre para os reis de Castela, mediante documentos utilizados durante
décadas como “justos títulos” da posse das terras americanas por parte dos castelhanos. Daí
podemos traçar uma genealogia da cosmovisão que forma a eficácia desses justos títulos
perante os próprios espanhóis e terceiros: mais familiar à teoria política agostiniana do que
ao tomismo-aristotélico.
A Bula Inter Coetera utiliza ao menos dois institutos jurídicos, além de um mandato
missional com exclusividade para Castela. Valendo-nos do trabalho de Rafael Ruiz,
analisaremos em separado o aparecimento desses três tópicos no texto da Bula.
No que diz respeito à doação, podemos ler:
7 Cf. DOUGNAC RODRÍGUEZ, Antonio. Manual de Historia del Derecho Indiano. México, D.F.: UNAM, 1994, p. 28.
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Todas e cada uma das terras preditas com a autoridade de Deus onipotente, concedida a Nós por São Pedro, como Vigário de Jesus Cristo, com todos os domínios das mesmas, com suas cidades, acampamentos militares, lugares e vilas, com todos os seus direitos e jurisdições, doamos, concedemos e damos a Vós, e a vossos herdeiros e sucessores dos Reinos de Castela e de Leão, para sempre, e com a mesma autoridade apostólica investimo-vos a Vós e a vossos herdeiros e sucessores como senhores das mesmas com plena, livre e absoluta autoridade.8
Além do instituto da doação, há também, animando a Bula, o do encargo, isto é: o
Papa, como condição da doação, estabelece para a Coroa espanhola o encargo da missão
espiritual:
Nós, louvando muito ao Senhor por esse vosso santo e louvável propósito, encorajamo-vos e requerimo-vos para que esses povos recebam a Religião Católica Cristã. E, além disso, mandamo-vos em virtude da santa obediência que (...) procureis enviar às mesmas terras firmes e ilhas homens bons, temerosos de Deus, doutos, sábios e experientes para que instruam os naturais na Fé Católica e lhes ensinem bons costumes, pondo nisso toda a diligência que convier (Ruiz, 2002, p. 75).
Ainda há que ser citada a exclusividade da missão: o Papa confere exclusividade aos
Reis de Castela e Leão para o recebimento do encargo da empresa de evangelização, proibindo
quaisquer outros reinos de se aventurarem na empresa sem a autorização dos reis castelhanos,
inclusive para a prática de atividades econômicas:
E absolutamente proibimos quaisquer pessoas de qualquer dignidade, mesmo que seja Real ou Imperial, estado, grau, ordem ou condição, sob pena de excomunhão latae sententiae, de irem por causa das mercadorias ou por outra qualquer causa sem especial licença vossa ou de vossos herdeiros ou sucessores às ilhas e terras firmes descobertas ou por descobrir (idem, ibidem).
Há nesses trechos selecionados três pontos principais que formarão a base dos
questionamentos e problematizações da doutrina vitoriana a respeito da validade, da
legitimidade e da ética da colonização espanhola. Tomando a Bula Inter Coetera como pano
de fundo, podemos destacar então os três pontos basilares para toda a teoria de Vitoria e dos
teólogos-juristas da Escola de Salamanca: i) qual o fundamento de autoridade apto a sustentar
8 RUIZ, Rafael, op. cit., p. 74. Rafael Ruiz utiliza, como referência para o estudo das Bulas, a obra de Venancio D. Carro, OP.
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a doação perpétua feita pelo Papa aos Reis de Castela e Leão?; ii) se a evangelização pode ser
feita com quaisquer meios, mesmo contra a vontade dos índios; iii) se o Papa tem autoridade
para proibir os outros reis até mesmo de comerciarem nas novas terras descobertas (idem, p.
76).
Há também outro documento de fundamental importância para a ética colonial
espanhola antes de Francisco de Vitoria: O Requerimiento, redigido pelo jurista Juan López
de Palacios Rubios, em 1513, vinte anos após as Bulas alexandrinas, que deveria ser lido para
os índios antes de terem suas terras tomadas pelos conquistadores espanhóis.
O teor do documento, apesar de longo, merece ser transcrito, pois veremos
novamente o fundamento medieval da teoria dos dois poderes, com um agravante adendo:
este documento passa a ser lido para sujeitos que nada compreendiam da língua e cultura
espanholas:
Deus, o Senhor, entregou a um homem chamado São Pedro o poder sobre todos os povos da terra, a fim de que ele fosse senhor e dominador sobre todos os homens do mundo (...) Todos lhe devem obediência, pois ele devia ser a cabeça do gênero humano inteiro, onde quer que vivessem ou morassem os homens, sob qualquer espécie de lei, em qualquer sorte de seita ou fé. Ele entregou-lhe o mundo como reino e domínio seu (...) [devendo] julgar e governar todas as nações cristãs, aos mouros, judeus, pagãos, e aos demais povos de qualquer seita ou fé. Chamaram-no de Papa, i.e., admirável e grande pai e dominador de todos os homens. A esse São Pedro obedeciam e honravam como senhor e rei e dominador do universo aqueles que viveram em seu tempo e, do mesmo modo, procedeu-se para com todos os que foram eleitos para o Pontificado depois dele. Ora, acontece (...) que um desses Papas doou aos reis espanhóis as ilhas e terras recém-descobertas, de modo que Suas Majestades, por força daquela doação, são reis e senhores das ditas ilhas e terras. Até agora, quase todos os aborígenes a quem foi explicada essa situação reconheceram a autoridade dos reis espanhóis e aceitaram a verdadeira fé. Suas Majestades acolheram-nos com paz e mansidão e ordenaram que fossem tratados como súditos e vassalos seus. Agora também vós sois convidados a reconhecer a Santa Igreja como senhora e dominadora do mundo inteiro e a prestar a vossa homenagem ao Rei espanhol, como a Senhor vosso. Se assim não acontecer, agiremos violentamente contra vós e obrigar-vos-emos a dobrar a cerviz sob o jugo da Igreja e do Rei, como convém a vassalos rebeldes, com a ajuda de Deus. Privar-vos-emos das posses e reduzir-vos-emos a vós, vossas mulheres e filhos à escravidão. E, desde já, queremos declarar que só vós sereis culpados pelo sangue derramado e pela
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desgraça que cair sobre vós, não porém Suas Majestades nem estes cavaleiros que conosco vieram (idem, pp. 76-77)9.
Percebem-se, assim, as profundas raízes medievais da teoria dos dois poderes a
animarem a tessitura do Requerimiento, aplicado e lido na América durante os primeiros anos
da colonização espanhola.
A inovação que representou a Escola de Salamanca e a doutrina de Vitoria pode ser
entendida partindo desses dois documentos expostos, a Bula Inter Coetera e o Requerimiento.
Com efeito, o que opera Vitoria e seus seguidores será o questionamento do fundamento dos
dois documentos, qual seja, a premissa principal de que Cristo e, consequentemente, o Papa,
não eram senhores do universo. Assim, os documentos jurídicos construídos a partir desse
fundamento seriam eivados de vícios de validade e legitimidade. Ao longo do século XVI,
em decorrência da ampla aceitação das teses de Vitoria, ver-se-á que os até então justos títulos
perderão sua eficácia. Os marcadores eficaciais das teses de Vitoria e de seus discípulos da
Escola de Salamanca vão sendo aferidos com base no teor das legislações que a Coroa
espanhola promulga em meados do século XVI, sobretudo com as Leyes Nuevas de 1542.
Os relatórios dos frades, sobretudo os que Las Casas elabora então para o imperador Carlos
V, foram tão vivos que o fizeram decidir retirar seu governo das Índias e devolver o domínio
aos indígenas, mas o pedido de alguns teólogos, entre eles Vitoria, aconselhou o monarca a
não pôr em prática a ideia da restituição e abandono das províncias indianas, pois isto
prejudicaria a cristianização dos indígenas. Carlos V não se retirou e decidiu elaborar uma
nova legislação para as Índias denominada Leyes Nuevas, contendo a aplicação das teses
vitorianas transformadas em doutrina legal.
2. Bartolomé de Las Casas: crítico da colonização exploradora e reformador dos
costumes
De acordo com o testemunho presente em sua Historia de las Indias, foi em 1514, aos
trinta anos, que começou Las Casas a ter uma postura de reação contra os abusos cometidos
9 A obra utilizada por Ruiz para o exame do Requerimiento é o livro clássico de Joseph Höffner, A Ética colonial espanhola do Século de Ouro. Cristianismo e dignidade humana. Rio de Janeiro: Presença, 1977, p. 206.
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pelos espanhóis em relação aos índios. Havia já nas Américas um movimento de crítica da
colonização espanhola tal qual vinha se desenrolando, e é provável que Las Casas tenha
assistido ou tomado conhecimento das então recentes pregações de Montesinos em La
Hispaniola, em sua luta por justiça em face da situação de exploração e desamparo dos nativos
indígenas.
Essas primeiras experiências darão a Las Casas embasamento para toda a sua atuação
posterior como missionário e bispo, além de escritor de uma série de relatos e de sua
monumental História das Índias. Seus escritos perfaziam-se dentro de uma concepção moral
e teológica, não podendo ser lidos como peças de denúncia nos moldes da militância política
moderna.
Las Casas fez parte de um extenso debate acerca do estatuto dos nativos americanos
que envolveu a teologia moral, a psicologia e a antropologia a partir da obra de Aristóteles.
Com base nas discussões nas quais Las Casas teve engajamento, podemos ler uma posição
teológica e moral a respeito das teses aristotélicas. Assim podemos compreender as disputas
de Valladolid de 1550. Antes de falarmos sobre elas, no entanto, cabe uma pequena digressão
sobre um dos escritos lascasianos mais famosos e, seguramente, o que teve maior circulação.
Engajando-se no movimento de discussão da “questão indígena” espanhola, a partir
das denúncias do Frei Antônio de Montesinos e, de forma geral, da atuação de toda a Ordem
dos dominicanos, Bartolomé de Las Casas inicia seu percurso já após o ano de 1511. Participa
de algumas discussões e juntas e, após voltar para a Espanha em 1540 com o objetivo de
melhor atuar junto à corte sobre assuntos relativos à colonização espanhola, participa da Junta
de 154210, quando pedem-lhe que escreva sua prolixa exposição. Las Casas termina então de
redigir a Brevísima relación de la destruición de las Indias em 8 de dezembro de 154211, e dedica
a obra aos círculos políticos, em primeiro lugar ao príncipe, a quem foi apresentada. Somente
dez anos depois a obra passa a circular e a se difundir entre um público mais extenso.
10 As Juntas eram grandes concílios que se reuniam, geralmente com representantes da Coroa presidindo-os, para promover o debate e discussão de determinados tópicos entre indivíduos notáveis, incluindo-se nesta categoria teólogos, humanistas e membros das universidades. 11 Saint-Lu, André. Presentación, in Las Casas, 1982.
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O corpo da obra se constitui basicamente em uma série de descrições e relatos
ininterruptos sobre matanças, destruições e outras barbaridades cometidas pelos espanhóis
durante cinquenta anos de colonização no Novo Mundo. Las Casas aparece como
testemunha ocular da maior parte dos fatos relatados, de modo que a esse respeito quase não
cita fontes e outras obras.
Assim, Las Casas pretende informar e denunciar matanças sistemáticas e seletivas da
população nativa do Novo Mundo pelos espanhóis, buscando com isso promover uma crítica
dos costumes até então adotados pelos colonizadores e uma reforma política acerca das
estruturas fundamentais da colonização e da relação da Coroa com os índios, que neste
sentido estariam submetidos a ela na condição de vassalos e, por isso, assim deveriam ser
respeitados.
Podemos ler, entre os inúmeros relatos de Las Casas, este em que se coloca como
testemunha ocular de um fato:
Saliéndonos a recibir [en un Pueblo de Cuba] con mantimientos y regalos [...] subitamente se le revistió el diablo a los cristianos y meten a cuchillo en mi presencia (sin motivo ni causa que tuviesen) más de tres mil animas... Saliendo a recibir todos los señores [de Cholula] [...] acordaron los españoles de hacer allí una matanza o castigo (como ellos dicen) para poner y sembrar su temor y braveza en todos los rincones de aquellas tierras.12
Uma questão central da obra lascasiana é o seu valor testemunhal. Las Casas coloca-
se como uma fonte confiável acerca dos fatos narrados e, a partir desses relatos, sua obra teve
intensa circulação na Europa entre os séculos XVI e XVIII, sobretudo entre os países inimigos
da Espanha, o que ajudou a criar a famosa “lenda negra” sobre o império espanhol, violento
e adepto de bárbaras práticas, tão bárbaras quanto os indivíduos contra os quais se
destinavam.
Entretanto, há que se ter em conta que Las Casas talvez pretendesse deslocar a noção
de bárbaro do ponto de vista do estrangeiro para o próprio interior da colonização, isto é,
para o próprio espanhol. Um trecho do relato lascasiano torna esta afirmação evidente:
12 Saint-Lu in Las Casas, 1982, p. 42.
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Y porque toda la gente que huir podía encerraba en los montes y subía a las sierras huyendo de hombres tan inhumanos, tan sin piedad y tan feroces bestias, extirpadores y capitales enemigos del linaje humano, enseñaron y amaestraron lebreles, perros bravísimos que en viendo un indio lo hacían pedazos en un credo, y mejor arremetían a él y lo comían que si fuera un puerco. Estos perros hicieron grandes estragos y carnicerías (Las Casas, 1982, p. 82).
Falando das bestas treinadas pelos espanhóis, mas aproximando-os sobremaneira no
quesito crueldade, Las Casas irá descrever em inúmeros relatos tratando de vários lugares
submetidos à colonização espanhola, uma reedição de uma mesma crueldade e barbaridade:
Hacían unas horcas largas, que juntasen casi los pies a la tierra, y de trece en trece, a honor y reverencia de Nuestro Redemptor y de los doce apóstoles, poniéndoles leña y fuego los quemaban vivos. Otros araban o liaban todo el cuerpo de paja seca: pegándoles fuego, así los quemaban. Otros, y todos los que querían tomar la vida, cortábanles ambas manos y delas llevaban colgando, y decíanles: «Andad con cartas», conviene a saber, llevad las nuevas a las gentes que estaban huidas por los montes. Comúnmente mataban a los señores y nobles desta manera: que hacían unas parrillas de varas sobre horquetas y atábanlos en ellas y poníanles por debajo fuego manso, para que poco a poco, dando alaridos, en aquellos tormentos, desesperados, se les salían las animas (ídem, p. 81).
Por fim, afirma Las Casas, dando um tom testemunhal à fala: “yo vide todas las cosas
arriba dichas y muchas otras infinitas” (idem, p. 82).
A nomenclatura de “bárbaro” tem uma importante história neste debate, e foi
utilizada para desqualificar os nativos americanos. Todavia, o termo barbaroi possui
circulação já entre os gregos. A palavra teria relação com o fato de o bárbaro não falar a língua
culta na perspectiva de quem o define. Entre os helenos, assim, os bárbaros seriam aqueles
povos do Norte, que viviam às margens do Mar Negro, entre eles os trácios e os citas. A
acepção do termo continua entre os romanos na utilização da nomenclatura em relação
àqueles que um dia invadiriam e suplantariam Roma.
3. Filosofia moral e antropologia filosófica no centro da questão
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Dentro de uma divisão mais ou menos generalista sobre a história da ética, teríamos: i)
uma ética objetiva; ii) uma ética subjetiva; iii) uma ética intersubjetiva13.
No contexto da ética objetiva, poderíamos situar de modo geral a ética greco-romana,
a partir da qual o homem está no mundo ou cosmos e possui uma finalidade, um telos, em
virtude da qual se orienta o seu agir prático. Em Platão temos, no Timeu, a imagem do
demiurgo que trabalha os contornos do cosmos e desdobra suas ações afetando assim os
rumos humanos dentro de um registro Providencial (Platão, 1981). Aristóteles já deita as
raízes de sua metafísica no Primeiro Motor imóvel, a partir do qual se desdobra a sua física,
isto é, as múltiplas relações entre os corpos do Universo, incluindo aí os corpos terrestres e
humanos. No entanto, Aristóteles partilha da concepção de ética “objetiva”, na medida em
que sua ética seria voltada para o bem e a virtude, finalidade em direção à qual se voltam os
fins dos homens no plano da ética, dando forma ao conceito de bem. Platão ainda se
encontrava vinculado a um outro registro antropológico e ético com respeito ao horizonte do
bem humano como estrutura do agir ético: a teoria das ideias e o modelo ideonômico, que será
posteriormente reformulado por Aristóteles (Lima Vaz, 2004, pp. 97-99).
A ética subjetivista alojar-se-ia, na modernidade, em seu desdobramento racionalista,
cartesiano, a dar contornos para um sujeito, uma consciência dentro do discurso filosófico,
em grande parte desenvolvendo plenamente o projeto socrático. Seu desdobramento
derradeiro, porém, se dará com as éticas utilitaristas, em virtude das quais cada sujeito seria
apto a formular as regras de seu bem viver, dentro de um relativismo absoluto a respeito das
diferentes configurações do que seria a “vida boa”14. Tal ética seria articulável com o
liberalismo individualista, a partir do qual as políticas públicas seriam pensadas de modo a
atingir a maior felicidade possível para o maior número de indivíduos em sociedade.
13 Realizo aqui de forma geral uma divisão inspirada em Henrique C. de Lima Vaz (2004) em sua Introdução à Ética Filosófica 2 (Escritos de Filosofia V). 14 É interessante como Henrique C. de Lima Vaz aproxima Descartes a Hobbes na fundação da ética moderna. Se Descartes inaugura uma nova concepção das relações entre a razão e a psicologia em que o modelo prudencial aristotélico é substituído por uma técnica do governo das paixões, Hobbes eliminaria a razão da tensão com as paixões, pondo-as com primazia no conduta das ações: “Na esteira de Hobbes, o empirismo ético consumará o abandono da Razão prática, cujo conceito em sua acepção clássica acaba por cair em olvido na tradição da ética empirista, não tendo, de fato, nenhum lugar no universo conceptual do utilitarismo em todas as suas versões” (Lima Vaz, 2004, p. 41). Neste sentido é que se aproxima aqui a filosofia de Descartes de um desenvolvimento posterior das éticas utilitaristas.
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No âmbito da ética intersubjetiva, teríamos uma crítica às éticas objetiva e subjetivista,
de modo que o sujeito seria visto em um registro dialogal e intersubjetivo, no registro de um
Eu-Tu15, sem que possuísse liberdade absoluta com relação às definições possíveis da vida boa
e sem que devesse aderir a priori a uma concepção finalística e objetiva. As concepções de
vida boa seriam assim postas num plano comunicativo dentro do qual cada pessoa humana
possuiria a correlata dignidade para ser participante do discurso em virtude do qual se
formulariam as concepções éticas, por definição coletivas ou comunais.
Ocorre que, no que tange ao objeto deste estudo, parece-nos que quando se coloca em
jogo a aceitação de um universo de sociedades antes vistas como estranhas à própria
humanidade, estaríamos num plano distinto do plano da ética objetiva clássico aristotélico (é
dizer, do ponto de vista de uma polis grega). Apesar de utilizar como base argumentativa a
obra de Aristóteles e de Tomás de Aquino16, os estudiosos espanhóis do século XVI
argumentarão num sentido que se aproxima muito do da ética intersubjetiva, pois buscarão
justamente o reconhecimento da dignidade dos índios de serem partícipes, primeiro, de sua
própria condição como membros de uma sociedade legítima, isto é, cuja legitimidade
perpassa todas as suas instituições, da religião ao governo; e, em segundo lugar, seria uma
visão voltada para a configuração social indígena enquanto parte de uma comunidade
humana mais ampla, situável historicamente em um mesmo registro. Seria, assim, ao menos,
uma visão encorpada da que temos quando evocamos a ética aristotélica teleológica tendo em
vista apenas a sociedade grega do século IV a.C.
Para autores como Anthony Pagden (1982), a concepção de ética que perpassa as
discussões dos escolásticos espanhóis é fundamental. Na base dos debates sobre a questão
indígena estavam em jogo conceitos como liberdade e capacidade. Partindo da tradição
aristotélica e tomista, os escolásticos espanhóis, tendo início com Francisco de Vitoria,
contrapuseram sua leitura acerca das faculdades mentais dos índios, realocando a
15 Tipo de registro dialógico desenvolvido por Martin Buber (cf. Lima Vaz, 2004, p. 74). 16 Marcelo Neves, OP, afirma em sua tese de doutorado que Las Casas vai mais longe do que Santo Tomás de Aquino em alguns aspectos, entre eles o de refutar de modo definitivo a tese aristotélica de seres humanos inferiores por natureza, tendo como base a obra de Frei Carlos Josaphat, Las Casas: todos os direitos para todos (2000). Cf. NEVES, Marcelo, OP. A tolerância nos limites do cristianismo católico de Frei Bartolomé de Las Casas. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, 2006.
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problemática do registro de uma escravidão natural, para aquela do direito natural e do direito
divino a partir do qual o homem possui uma finalidade que passa pelo intelecto e pela razão.
O indígena, sob esse ponto de vista, teria capacidade racional e intelectual, ainda que essa
capacidade estivesse dormitando e existisse apenas em potência.
Para atualizar a potência intelectual dos nativos do Novo Mundo, colocou-se como
central o papel da educação moral dos índios, fato que mobilizou grande parte dos teóricos
dominicanos e jesuítas. Pondo-se o indígena numa posição em que lhe seria possível, uma
vez que possuiria a capacidade, de ser educado moralmente e intelectualmente, promoveriam
assim esses esforços a mudança qualitativa dos nativos da figura dos “escravos por natureza”,
lidos a partir de uma chave determinista, para a figura do indivíduo a ser tutelado, possuidor
de capacidades inerentes sob a forma de potencialidades aptas a serem desenvolvidas por um
meio que pudesse condicioná-lo para a virtude.
O meio, então, apareceria como concepção-chave dentro de uma ética das virtudes que
se preocuparia também com o hábito (ethismos) bem como o condicionamento e o
treinamento em direção a essas virtudes e ao desenvolvimento das capacidades.
A virtude moral diz respeito à ação, ao conhecimento prático. Quando Aristóteles fala
sobre virtude moral de um homem, não se refere à sua sabedoria teórica, mas à sua índole e
ao seu caráter. Assim, para Aristóteles, a virtude moral resulta do hábito e não é natural, como
a categoria do “escravo por natureza”. O método de aprendizado da virtude moral, o
“aprender fazendo” em um condicionamento sustentado por práticas comunais seria, neste
sentido, político. E essa virtude estaria, portanto, estreitamente ligada e condicionada pelo
contexto político e regida pela comunidade: também é preciso uma comunidade virtuosa para
que se constituam indivíduos virtuosos. A prudência (phrónesis), seria também traduzida por
sabedoria prática (practical wisdom, em tradução canônica de W. D. Ross). O hábito seria a
realização contínua; a habitualidade de exercício da virtude é que define na prática se o
indivíduo é virtuoso ou não (Aristóteles, 1985).
A Segunda Escolástica ibérica, que tem lugar histórico a partir da Escola de
Salamanca, preocupa-se com questões voltadas para o campo da práxis, da filosofia moral, das
questões que tocavam o cotidiano e, portanto, ao registro da ética e, de forma especial, da
discussão da legitimidade das atuações coloniais nas Índias.
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Movidos em grande parte por uma influência de Aristóteles e Santo Tomás de
Aquino, os escolásticos espanhóis estavam assim plenamente situados na problemática da
fundamentação da conquista e colonização da América com base nas doações das bulas
alexandrinas; na discussão sobre um determinismo inato do indígena como “escravo natural”,
seguindo um trecho de Aristóteles na Política e, assim, fadado a ser uma espécie de semovente
apto ao domínio útil dos espanhóis; e, por fim, acerca dos títulos legítimos a partir dos quais
poderia construir a administração colonial da América.
Talvez o auge desses debates seja a chamada Disputa ou Controvérsia de Valladolid,
de 1550, quando se deu uma Junta na cidade de Valladolid para a discussão da questão
indígena mas, mais do que isso, nesta ocasião houve o embate direto entre duas versões ou
duas posições acerca do estatuto psicológico dos índios americanos. Deu-se então um debate,
longo, entre Juan Ginés de Sepúlveda, humanista e cronista do Império, e Bartolomé de Las
Casas.
Juan Ginés de Sepúlveda, erudito e humanista espanhol, havida haurido grande parte
de sua formação na Itália, empenhando-se no estudo das Letras e do humanismo clássico.
Versado em grego, traduziu algumas obras de Aristóteles, o que lhe conferia certa autoridade
no trato da obra do Filósofo. Com base nesses estudos e traduções, Sepúlveda adota a posição
aristotélica do primeiro livro da Política para sustentar que o índio americano era um servo
por natureza e, assim, possuía vocação unicamente para trabalhar e viver a serviço dos
espanhóis, que teriam capacidade intelectiva e volitiva para o domínio dos primeiros, meros
instrumentos voltados para o trabalho manual. Aristóteles assim se pronuncia no primeiro
livro da Política (Aristóteles, 1997, p. 32, 1260a). No entanto, há alguns comentários e
interpretações deste trecho que não fazem dele uma formulação aplicável de forma constante
e atemporal a todos os povos e todos os tempos. Aristóteles vivia de fato em uma sociedade
cuja base produtiva se encontrava nas mãos de trabalhadores escravos, um tempo em que
houve a expansão imperial da civilização helênica sem precedentes (uma expansão além da
mera influência cultural, embora englobando-a), embasada na contraposição radical entre os
helenos civilizados e os bárbaros estrangeiros.
De modo geral, os escolásticos espanhóis de Salamanca argumentam no sentido de uma
capacidade do índio para serem donos ou, em outras palavras, ter domínio civil, noção que
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se depreende como correlata de uma vocação para a capacidade civil (Pich, 2012). Assim,
Francisco de Vitoria argumenta que os índios são capazes de contrair matrimônio, possuir
governantes, cultivar o instituto da propriedade, ter sua própria religião. Fatos que
demonstrariam que os índios possuiriam capacidade para autogovernar-se, mesmo que com
algumas falhas morais ligadas a certos traços de sua configuração social, como a antropofagia
e a idolatria.
De qualquer forma, o que os escolásticos espanhóis tentam mostrar é que o conceito
de capacidade seria inerente ao gênero humano, e que assim se depreenderia que os índios
dotados de capacidade seriam passíveis de serem conduzidos ou instados à adoção de hábitos
virtuosos dentro de um processo educacional e moral. O que Las Casas faz em seus escritos é
confirmar o ponto de vista lógico e argumentativo dos escolásticos, mas a partir de um ponto
de vista empírico.
Sepúlveda afirma em um escrito que compôs as discussões na Junta de Valladolid de
1550, Democrates secundus17, três proposições básicas: que os índios são culturalmente
inferiores que os espanhóis e requerem tutoria; que os seus crimes nefandos e não-naturais os
privam de seus direitos de dominium; que o que dizem as bulas de doação é válido para
embasar as conquistas espanholas (Pagden, 1982, p. 119).
Las Casas e Vitoria refutam as duas últimas proposições básicas, cada qual a seu modo,
porém ambos dizem que a afirmativa de que os pecados ou crimes não-naturais dos índios
não são aptos a privá-los de direitos de propriedade, pois esse entendimento pressuporia uma
antropologia na qual as formas culturais são aceitas e apresentadas como indicativo de
disposições inatas. Neste sentido, esses pensadores ibéricos acabam deitando as bases do que
futuramente seria reconhecido como o campo disciplina da antropologia ou etnologia, ambas
assumindo o pressuposto de que as disposições culturais não são inatas e envolvem uma
atuação humana sobre sua própria história e conformação psicofisiológica, além de geográfica.
Isto é dizer que não haveria um ethos ontológico, mas o ethos seria, em si, o resultado de
relações variáveis e contingentes e, por isso, passíveis de sofrer interferências e influências
17 O livro de Sepúlveda, em virtude de suas teses polêmicas, foi suprimido após o desfecho do Concílio, embora este tenha dado razão a Sepúlveda. Cf. KNIGHT, Alice J. Las Casas: The Apostle of the Indies. New York: The Neale Publishing Company, 1917.
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também variáveis e contingentes. Com isso se estaria afirmando que os índios, embora
possuíssem uma configuração cultural determinada, possuiriam também capacidade racional
para um aprendizado reflexivo de sua própria configuração histórica e uma disposição para
adotar outras formas de vida.
Las Casas, no entanto, lança mão de um grande número de dados históricos e
empíricos, fazendo “pesquisas de campo” como testemunha ocular dos acontecimentos que
se desenrolam e levantando uma opulenta bibliografia para sustentar que as comunidades
indígenas preenchem os requisitos de Aristóteles para a formação de uma verdadeira
sociedade civil. Por isso, Pagden afirma que a Apologética historia de Las Casas foi a primeira
tentativa de demonstrar, com base em evidências empíricas e levantamento bibliográfico, que
os índios seriam capazes de formar sociedades civis em bases aristotélicas (Pagden, op. cit., p.
121).
Las Casas é capaz de mobilizar com erudição uma série de obras canônicas do
humanismo europeu, contemplando historiadores antigos como Heródoto, Xenofonte,
Apolônio de Rodes e Diodoro Sículo; porém nenhum deles, certamente, afirma-o Pagden,
teve qualquer desejo de provar que por baixo das diferenças culturais entre as raças existia o
mesmo conjunto de imperativos sociais e morais, o que faz da Apologética historia a primeira
obra de etnologia comparada escrita em uma língua europeia (idem, pp.121-122).
Las Casas movimenta um arcabouço retórico para defender que haveria no humano
uma capacidade para a civilidade. No entanto, procura formular uma interpretação acerca do
conceito aristotélico de servo por natureza no sentido de criar uma clivagem entre duas
passagens da Política: a primeira delas seria a do primeiro livro e diria respeito ao bárbaro que
vive fora de qualquer tipo de vínculo social, o que seria raro; a segunda interpretação do servo
por natureza estaria no terceiro livro da Política e diz respeito a “bárbaros” que possuem
governos legítimos, ainda que formulados em termos de tirania e careçam de artes e exercícios
nas letras, mas governos legítimos e naturais (principatus). Essa parece ser também a
interpretação de Vitoria.
O tipo de barbarismo visto na interpretação de Las Casas seria relativo, visto que poria
em termos de relatividade duas ou mais formas culturais. O que se depreende daí é que Las
Casas colocaria todas as formações humanas com um lugar legítimo no interior de um registro
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histórico comum. A possibilidade de avaliar uma forma cultural por outra admitiria também
uma capacidade humana partilhada para a liberdade e a escolha de formas sociais
contingentes. Os critérios evolutivos pressupostos por Las Casas no interior desse registro
diriam respeito ao cultivo das letras e das artes liberais, bem como do domínio de técnicas e
tecnologias como a fundição do ferro e a construção de pontes, marcas da cultura europeia e
fatores determinantes para a supremacia militar sobre as sociedades americanas.
O que parece ser algo novo, com Las Casas, no entanto, é que essa visão do estado de
natureza não implica uma forma social fora da história e fora da matéria, no sentido de uma
ontologia metafísica: a visão lascasiana do “estado de natureza” com sua noção embutida de
“homem natural” ou “primitivo” opera um duplo deslocamento: primeiro, da interpretação
biológica e inatista das disposições humanas para a psicologia de corte aristotélico,
fundamentada na noção de potencialidades racionais e capacidades; segundo, do registro de
um certo psicologismo para o de formas culturais distintas e contingentes no registro comum
da história humana. O surgimento do conceito de história e de uma teleologia aí implícita
mediada por formas culturais distintas parece-nos, assim, algo novo e fundamental para a
moderna etnologia comparada.
Considerações finais
Procuramos marcar neste estudo a posição de algumas linhas gerais da obra
de Bartolomé de Las Casas acerca dos fundamentos de uma possível etnologia comparada
inerente ao seu esforço de reunir um corpo empírico de fatos e evidências que dariam base
tanto aos seus escritos denunciatórios quanto apologéticos. Com fundamento nas pesquisas
de Anthony Pagden sobre o tema, cumpre destacar a sincronicidade entre a obra de Las Casas
e a de outros escolásticos ibéricos, como Francisco de Vitoria, grande nome da Escola de
Salamanca. Tanto Vitoria quando Las Casas combateram o fundamento inatista do estado
natural de servidão atribuído aos índios, tese aceita para pavimentar a colonização espanhola
nos primeiros decênios do século XVI. Do Requerimiento às teses de Sepúlveda, vemos
ressurgir a teoria aristotélica sobre a servidão natural predicável aos servos, que o seriam assim
por uma disposição natural. No caso dos nativos americanos, a aceitação da tese implicaria
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uma tomada de posição no âmbito das colônias concebendo-os enquanto mera força de
trabalho útil. Com a elaboração dos discursos de Salamanca e de Las Casas, há um claro
esforço de reconhecimento de capacidade para a organização civil por parte dos indígenas e,
assim, um pressuposto de um reconhecimento jurídico de uma alteridade haurida por uma
dignidade plenificada. Deste modo também logo se desdobram as categorias da liberdade e
da vontade para compor o potencial anímico dos nativos americanos.
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