a agressÃo militar da federaÇÃo russa na ucrânia1

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1 As relações ucraniano-russas têm uma longa e controversa história, que remonta a centenas de anos. Seu tema principal é o desejo da Moscó- via e de seus sucessores - o Império Russo, a União da Repúblicas Socia- listas Soviéticas (URSS) e a Federação Russa (FR) - de impedir o estabeleci- mento de um Estado independente para o povo ucraniano e que o país se torne membro pleno da Comunida- de Europeia de Nações. A POLÍTICA DA RÚSSIA CONTRA A UCRÂNIA INDEPENDENTE Quando a Ucrânia conquistou sua independência em 1991, após o co- lapso da URSS, a elite russa a con- siderou como um infeliz ‘mal-en- tendido histórico’ que deveria ser corrigido o quanto antes. Segundo o presidente russo Putin, esse evento teria sido a maior catástrofe geopo- lítica do século XX. Os eventos de 2014-2015 provaram que essa visão foi apoiada amplamente pela socie- dade russa. Em janeiro de 2016, 64% dos russos apoiaram a agressão con- tra a Ucrânia. Na mente da liderança do Kremlin e grande parte da população, a Rússia está cercada por inimigos que que- rem capturar seus recursos naturais. O papel principal nessa ‘conspiração global’ é desempenhado pelo Oci- dente e liderado pelos EUA. Para sobreviver, a liderança russa acredi- ta na absoluta necessidade de recu- perar o controle sobre os territórios perdidos da antiga URSS e do ‘campo socialista’. O objetivo principal seria reconquistar a Ucrânia, aumentando os recursos demográficos, políticos, econômicos, militares e outros da Rússia. Na irracional visão de mun- do dos ‘sonhadores do Kremlin’, o restabelecimento do controle sobre Kiev – ‘a mãe de todas as cidades’, capital e lar ancestral da ortodoxia eslava oriental - é um interesse vital da Rússia. Em 26 de agosto de 1991, dois dias após a Verkhovna Rada 3 ter aprova- do o Ato de Independência da Ucrâ- nia, P. Voschanov, secretário de im- prensa do presidente Boris Yeltsin, anunciou em seu nome a posição ofi- cial das relações com as ‘repúblicas da União’, pela qual a Rússia se re- servava o direito de levantar a ques- tão da revisão das fronteiras. Dois dias depois, uma delegação oficial da FR, liderada pelo Vice-Presiden- te O. Rutskoy, foi a Kiev para forçar a liderança ucraniana a renunciar à recém-proclamada independência e ameaçou rever as fronteiras caso isso não ocorresse. Em 21 de maio de 1992, o Parlamen- to da FR aprovou decreto sobre a ava- liação legal das decisões dos órgãos supremos do Estado para mudar o status da Criméia, adotado em 1954. Por ele, o decreto do Soviete Supre- mo de 5 de fevereiro de 1954 sobre a transferência da região da Crimeia para a Ucrânia foi considerado nulo desde sua adoção. Em dezembro de 1992, o Congresso dos Deputados do Povo da FR autorizou o Parlamento a considerar o estatuto de Sevastopol e, em 9 de julho de 1993, para cum- prir este mandato. Em consequência, o Parlamento russo anunciou o esta- tuto federal de Sevastopol. A crença fundamental na transito- A AGRESSÃO MILITAR DA FEDERAÇÃO RUSSA NA UCRÂNIA 1 Paul Sokolov 2

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Page 1: A AGRESSÃO MILITAR DA FEDERAÇÃO RUSSA NA UCRâNIA1

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V. 6, n. 2 - Abril de 2019

As relações ucraniano-russas têm uma longa e controversa história, que remonta a centenas de anos. Seu tema principal é o desejo da Moscó-via e de seus sucessores - o Império Russo, a União da Repúblicas Socia-listas Soviéticas (URSS) e a Federação Russa (FR) - de impedir o estabeleci-mento de um Estado independente para o povo ucraniano e que o país se torne membro pleno da Comunida-de Europeia de Nações.

A políticA dA RússiA contRAA UcRâniA independente

Quando a Ucrânia conquistou sua independência em 1991, após o co-lapso da URSS, a elite russa a con-siderou como um infeliz ‘mal-en-tendido histórico’ que deveria ser corrigido o quanto antes. Segundo o presidente russo Putin, esse evento teria sido a maior catástrofe geopo-lítica do século XX. Os eventos de 2014-2015 provaram que essa visão foi apoiada amplamente pela socie-dade russa. Em janeiro de 2016, 64% dos russos apoiaram a agressão con-tra a Ucrânia.

Na mente da liderança do Kremlin e grande parte da população, a Rússia está cercada por inimigos que que-rem capturar seus recursos naturais. O papel principal nessa ‘conspiração global’ é desempenhado pelo Oci-dente e liderado pelos EUA. Para sobreviver, a liderança russa acredi-ta na absoluta necessidade de recu-perar o controle sobre os territórios perdidos da antiga URSS e do ‘campo socialista’. O objetivo principal seria reconquistar a Ucrânia, aumentando os recursos demográficos, políticos, econômicos, militares e outros da Rússia. Na irracional visão de mun-do dos ‘sonhadores do Kremlin’, o restabelecimento do controle sobre Kiev – ‘a mãe de todas as cidades’, capital e lar ancestral da ortodoxia eslava oriental - é um interesse vital da Rússia.

Em 26 de agosto de 1991, dois dias após a Verkhovna Rada3 ter aprova-do o Ato de Independência da Ucrâ-nia, P. Voschanov, secretário de im-prensa do presidente Boris Yeltsin, anunciou em seu nome a posição ofi-cial das relações com as ‘repúblicas

da União’, pela qual a Rússia se re-servava o direito de levantar a ques-tão da revisão das fronteiras. Dois dias depois, uma delegação oficial da FR, liderada pelo Vice-Presiden-te O. Rutskoy, foi a Kiev para forçar a liderança ucraniana a renunciar à recém-proclamada independência e ameaçou rever as fronteiras caso isso não ocorresse.

Em 21 de maio de 1992, o Parlamen-to da FR aprovou decreto sobre a ava-liação legal das decisões dos órgãos supremos do Estado para mudar o status da Criméia, adotado em 1954. Por ele, o decreto do Soviete Supre-mo de 5 de fevereiro de 1954 sobre a transferência da região da Crimeia para a Ucrânia foi considerado nulo desde sua adoção. Em dezembro de 1992, o Congresso dos Deputados do Povo da FR autorizou o Parlamento a considerar o estatuto de Sevastopol e, em 9 de julho de 1993, para cum-prir este mandato. Em consequência, o Parlamento russo anunciou o esta-tuto federal de Sevastopol.

A crença fundamental na transito-

A AGRESSÃO MILITAR DAFEDERAÇÃO RUSSA NA UCRâNIA1

Paul Sokolov2

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riedade da independência da Ucrâ-nia determinou a política russa em relação ao país desde 1991. Em um relatório público4, o Serviço de In-teligência Estrangeira da Rússia de-finiu como otimista um cenário em que os processos centrípetos seriam melhorados até criar uma confedera-ção dentro da Comunidade dos Esta-dos Independente (CEI). Este cená-rio também enfatizou a possibilidade de ‘transição para um sistema fede-ral em alguns países do Common-wealth. O relatório declarou uma es-pécie de Doutrina Monroe russa, ou uma nova edição da Doutrina Brezh-nev, ou seja, que o Ocidente deveria coordenar suas atividades na área da antiga URSS com o Kremlin.

O presidente russo Boris Yeltsin de-clarou que o principal objetivo da política russa em relação à CEI era “criar uma união econômica e polí-tica integrada de Estados capazes de reivindicar um lugar legítimo na co-munidade internacional”5, meta dei-xada intacta pelo presidente Vladi-mir Putin. O documento estratégico russo afirmava que a CEI era “o terri-tório de nossos principais interesses vitais no campo da economia, defesa, segurança, proteção dos russos, que é a base da segurança nacional do país; a cooperação efetiva com os países da CEI é um fator que resiste a tendên-cias centrífugas na própria Rússia”6. Assim, a estabilidade política e eco-nômica dos Estados da CEI tornou-se dependente das relações amistosas com a Rússia.

Os processos de crise que determi-naram a agenda política e econômi-ca na FR durante a década de 1990 como a rebelião anticonstitucional de Yeltsin de 19937, o genocídio do povo checheno na 1ª e 2ª guerra che-chena, uma série de atos terroristas, guerras ‘coloniais’ na Moldávia, Taji-quistão e Geórgia, manifestações se-

paratistas em várias regiões da Rús-sia (repúblicas do Cáucaso do Norte, Tartaristão, Bascortostão, Yakutia, Tuva, Sverdlovsk, etc.), hiperinfla-ção e declínio catastrófico no PIB, criminalização da sociedade e do Es-tado, dentre outros, determinaram a estratégia revanchista russa por qua-se 10 anos.8

Lidando com complexos problemas políticos e econômicos domésticos, o Kremlin teve que manter a ilu-são de boas relações com a Ucrânia nos anos 90. Em 5 de dezembro de 1994, a FR assinou o Memorando sobre Garantias de Segurança rela-tiva à adesão da Ucrânia ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nu-cleares (Memorando de Budapeste), juntamente com os EUA e o Reino Unido, se comprometendo, dentre outros, a:

respeitar a independência, a so-berania e as fronteiras existentes da Ucrânia (Art. 1); abster-se da ameaça ou uso da força contra a integridade territorial ou inde-pendência política da Ucrânia, e que nenhuma de suas armas jamais serão usadas contra a Ucrânia, exceto em legítima defe-sa ou de outra forma, em confor-midade com a Carta das Nações Unidas (Art. 2); abster-se de co-erção econômica destinada a sub-ordinar ao seu próprio interesse o exercício pela Ucrânia dos direitos inerentes à sua soberania e, assim, obter vantagens de qualquer espé-cie (art. 3).

Em 1997, a Ucrânia e a FR concluí-ram o Tratado de Amizade, Coope-ração e Parceria, segundo o qual as partes se comprometeram a:

respeitar a integridade territori-al de cada um e a inviolabilidade das fronteiras existentes entre eles (Art. 2); construir relações mútuas com base nos princípios do respeito mútuo da igualdade

soberana, integridade territori-al, inviolabilidade das fronteiras, solução pacífica de controvér-sias, não-utilização ou ameaça do uso da força, incluindo meios econômicos e outros de pressão, o direito dos povos a livremente dispor do seu próprio destino, não ingerência nos assuntos in-ternos, respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamen-tais, cooperação entre os Estados, cumprimento consciencioso das obrigações internacionais e outras normas universalmente recon-hecidas do direito internacional (Art. 3).

A linha da fronteira que a FR se com-prometeu a respeitar, foi especifica-da nos mapas em 2003 pelo Acordo sobre a Fronteira entre a Ucrânia e a Rússia. No entanto, nos anos seguin-tes, a Rússia dificultou o processo de demarcação.

O governo russo encabeçado por Putin desacelerou os processos de ‘desintegração’ e galvanizou a elite econômica e política através de mé-todos de ‘incentivos’. Em seguida, implementou estratégias internacio-nais. A primeira foi testar a reação dos EUA e seus aliados. Para isso, a Rússia recorreu ao uso da questão da energia contra a Ucrânia (crise em torno da ilha de Tuzla em outubro de 2003 e as ‘guerras do gás’ de ja-neiro de 2006 e janeiro de 2009) e a Geórgia (a guerra de agosto de 2008). Após esses eventos, o Kremlin for-mou uma ideia de que as elites oci-dentais, especialmente na Europa, teriam a disposição de fazer conces-sões ao agressor em detrimento dos Estados da região dos mares Cás-pio-Báltico-Negro. A reação passiva dos países ocidentais nesses eventos contribuiu significativamente para a convicção da liderança russa de sua impunidade e encorajou o Kremlin a ações agressivas contra os Estados do antigo campo soviético e socialista.

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A Revolução Laranja de 2004 tornou-se um ponto de virada para Putin, pois foi encarada por ele como uma derrota pessoal. Em 2004, a Rússia tentou pela primeira vez o separatis-mo ‘ucraniano oriental’. Em novem-bro daquele ano, o conselho regional de Luhansk votou para criar a Repú-blica do Sudeste e um congresso de deputados das 17 regiões da Ucrânia, principalmente do leste e do sul, foi realizado em Severodonetsk, na re-gião de Luhansk com a presença de uma delegação russa, liderada pelo prefeito de Moscou, quando discuti-ram a criação de um estado federal do Sudeste com capital em Kharkiv.Em abril de 2008, durante a Cúpula da OTAN em Bucareste, Putin disse ao presidente dos EUA, George W. Bush que a Ucrânia não era um Es-tado e que se ela se unisse à OTAN, ficaria sem a Crimeia e sua parte oriental. Tais ideias formaram a base da visão estratégica russa sobre uma nova fase de expansão, provavel-mente formulada em uma reunião conjunta do Conselho de Segurança e do Conselho de Estado da FR em dezembro de 2008.

Os princípios dessa expansão foram consagrados nos documentos estra-tégicos russos sobre política externa e de segurança - a Estratégia de Se-gurança Nacional da FR, o Conceito de Política Externa Russa, a Doutri-na Militar da FR e o Conceito de De-senvolvimento Social e Econômico de Longo Prazo da FR.

Para implementar a estratégia do Kremlin, as autoridades russas cria-ram um sistema abrangente para obrigar os Estados da CEI a se uni-rem, o qual incluiu ferramentas político-diplomáticas, econômicas, energéticas, de propaganda e, se fos-se necessário, pressão militar com o uso extensivo de tecnologias de sub-versão, teoricamente desenvolvidas

e testadas na prática durante a época da União Soviética de Stálin.

O paradigma da ‘guerra híbrida’ de-veria se tornar parte desse complexo sistema de pressão. O entendimento oficial russo moderno deste paradig-ma foi delineado no relatório geral do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas da FR em uma reu-nião geral da Academia de Ciências Militares da FR, em janeiro de 2013.

Uma direção importante da política russa em relação à Ucrânia era a sub-versão. Em 2006, o Serviço de Segu-rança Federal - Federal’naya Sluzhba Bezopasnosti (FSB) estabeleceu uma unidade para atividades em redes so-ciais (Center 18). Serviços especiais russos se intensificaram criando re-des de inteligência na Ucrânia. Vá-rias estruturas de influência russa em todo o espectro político - desde a direita e clerical até o comunista - iniciaram suas atividades. Depois de 2004, os serviços secretos russos formaram uma extensa rede de orga-nizações anti-ucranianas nas regiões do sudeste e da Crimeia, que eram controladas ou mesmo dirigidas por agentes russos como o Partido das Regiões, Partido Comunista, Par-tido Socialista Progressivo, Partido Rodina, a ‘Unidade Russa’, vários grupos ortodoxos focados nas ideias do ‘mundo russo’, grupos políticos separatistas (‘A República Donetsk’), formações paramilitares especial-mente na Criméia (cossacos, clubes de luta, a organização ‘Oplot’, estru-turas de segurança que foram usadas ativamente durante a ‘Revolução da Dignidade’, e o ‘titushky’). A maioria desses grupos não tinha amplo apoio público, mas interagiram ativamen-te com órgãos de segurança pública durante o governo do presidente Yanukovych.

A partir de 2008, o Kremlin lançou

campanhas de propaganda e ope-rações especiais de informação na mídia impressa, televisão e Internet como preparação para a agressão. Vários livros sobre a futura guerra russo-ucraniana foram publicados. A base ideológica da propaganda rus-sa era o conceito de ‘Mundo Russo’, formado em 1970 pela intelligentsia liberal de Moscou e retomado em 2010 pelo Patriarca Kirill da Igreja Ortodoxa Russa. A propaganda russa cobriu três principais públicos: oci-dental, ucraniano e russo. O princi-pal objetivo no Ocidente era ‘provar’ que a nação ucraniana era artificial e que o Estado ucraniano estava con-denado por nunca ter sido um suces-so. Entre os ucranianos, espalharam mitos sobre a eterna unidade com o povo russo, o chamado ‘povo russo trino, artificialmente dividido’, os benefícios de se unir ao moderno ‘Império Russo’ e a ‘URSS-2’ sob a li-derança de Vladimir Putin. Ao mes-mo tempo, buscavam ‘provar’ que as elites ucranianas eram incapazes de governar um Estado independente, destacando a corrupção, o fracas-so em firmar compromissos, etc. A sociedade russa estava infectada de ideias de chauvinismo, superiorida-de imperialista, inferioridade de ou-tras nações e a propaganda russa não hesitou em espalhar as mentiras.

A política cultural russa foi integra-da na estratégia global de eliminação do Estado ucraniano. A propaganda russa foi usada pelas indústrias de cultura e entretenimento, cinema, show business, programas de televi-são e ‘rádios culturais’ supostamente não-políticas e sua expansão foi deli-berada e persistente.

A política energética russa tinha objetivos semelhantes. Em 2009, a segunda ‘guerra do gás’ resultou em uma forte pressão russa sobre a Ucrânia no setor energético, crian-

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do oportunidades para o esgota-mento financeiro da sua economia. Como uma ferramenta para ganhar influência na Ucrânia, usaram ca-nais para ‘exportar corrupção’ para a União Europeia.

Na Crimeia, foram várias tentati-vas de separação da Ucrânia - 1992, 1994-199511, sem amplo apoio da população da península12, assim a Rússia evitou provocar manifesta-ções separatistas.13 O Kremlin colo-cou, então, suas esperanças na ‘des-criminalização’ de crime de agentes públicos (incluindo policiais), que frequentemente serviam a grupos criminosos. O Partido das Regiões e o Partido Comunista tornaram-se pilares da influência russa e desem-penharam papel fundamental na subsequente ocupação da Crimeia.14

Desde o final dos anos 1980, quando o povo tártaro começou a retornar à Crimeia, o Kremlin explorou e ali-mentou a luta entre os russos étnicos e os tártaros, retirando as barreiras para os sentimentos xenófobos en-tre os moradores de língua russa da península. Após a anexação ilegal da Crimeia, esta política evoluiu para uma perseguição em grande escala dos tártaros e outros grupos por mo-tivos étnicos e religiosos.

Um dos fatores-chave da política an-ti-ucraniana da Rússia na Crimeia e a posterior ocupação ilegal da penín-sula foi a Frota do Mar Negro da FR (BSF FR). De acordo com uma série de acordos assinados pela Ucrânia e a Rússia entre 1994 e 199715, a Rús-sia poderia estacionar a frota por um período de 20 anos vários locais em Sevastopol e Henichesk (região de Kherson) e poderia manter até 25.000 militares na Crimeia.16 Na realidade, as instalações foram usa-das como base para conduzir opera-ções subversivas de reconhecimento

e propaganda e outras atividades an-ti-ucranianas.

Em 2008, começaram os preparati-vos para a agressão armada contra a Ucrânia. Unidades da inteligência militar russa executaram o reconhe-cimento do teatro de operações futu-ro na Crimeia e a Ucrânia Oriental. Depois de 2010, a inteligência do Estado Maior das Forças Armadas da FR e o FSB estudaram e prepararam áreas ucranianas para a guerra. Após o conflito militar com a Geórgia, em agosto de 2008, as lideranças militar e política da Rússia analisaram suas principais deficiências e iniciaram um trabalho intensivo para eliminá-las. Houve uma reforma militar em larga escala. Uma atenção especial foi dada para mudanças no marco re-gulatório e legal no campo da defesa e segurança tanto em nível nacional (nova edição da Lei Federal ‘On De-fense’ e da Doutrina Militar russa) como conceitual dos regulamentos departamentais (estatutos das Forças Armadas), melhorando e desenvol-vendo o potencial científico e tecno-lógico, criando sistemas modernos automatizados de controle, comuni-cações e inteligência, e criando no-vas formações e unidades militares.17

Treinamentos das Forças Armadas da FR foram realizados em várias regiões da Rússia e da Bielorrússia em diferentes momentos. De acor-do com o relatório anual do Secre-tário-Geral da OTAN em 2015, nos três anos anteriores a Rússia realizou pelo menos 18 exercícios militares de larga escala, alguns deles envol-vendo mais de 100.000 militares. Em particular, eles modelaram ataques nucleares em Estados membros da OTAN e parceiros. Os treinamentos serviram para disfarçar o movimento de tropas em preparação para a ane-xação ilegal da Crimeia e a agressão no leste da Ucrânia.

A Rússia aplicou o cenário de agres-são militar contra a Ucrânia durante um treinamento estratégico con-junto de suas Forças Armadas e da Bielorrússia chamado “West-2013”, entre 19 e 28 de setembro de 2013. Ao comparar a formação tática das tropas russas durante esse exercício e a formação tática das forças ar-madas envolvidas nas operações em Donetsk (agosto a outubro de 2014), observa-se uma abordagem idêntica. Então, a ocupação da Crimeia era apenas parte do plano geral de uma agressão russa em larga escala con-tra a Ucrânia. O conflito na Crimeia, desencadeado pelos serviços secretos e forças armadas russas, forneceu ra-zões políticas e propagandísticas para as tropas russas invadirem as regiões ucranianas orientais e meridionais, da mesma forma que ocorreu em agosto de 2008 na região da Ossétia do Sul, na Georgia.

Ao longo dos anos, o governo ucra-niano, estando sob pressão tanto da Rússia quanto dos países ocidentais, considerou as questões de defesa menos importantes. A reforma do exército foi limitada e ocorreu uma redução da força de combate, armas e equipamentos militares não foram atualizados e potencial do Sistema de Defesa Aérea diminuiu drasti-camente. O complexo militar-in-dustrial doméstico foi destruído, o treinamento de combate reduzido ao mínimo, os órgãos da adminis-tração militar perderam eficiência e o pessoal militar perdeu suas ha-bilidades de combate. Além disso, foram disseminadas ideias pacifistas nas forças armadas.

Quando Viktor Yanukovych, o Partido das Regiões e o grupo cri-minoso oligárquico que eles lide-raram, chegou ao poder, o Kremlin percebeu novas oportunidades para intensificar sua influência sobre a

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Ucrânia. Assim, em abril de 2010, Yanukovych e Medvedev assinaram os acordos de Kharkiv, que prorro-garam o prazo de permanência da Frota do Mar Negro na Ucrânia até 2042. Em junho de 2010, a Ucrânia anunciou a sua política não alinha-da, ou seja, a rejeição da integração euro-atlântica.

Como ficou claro mais tarde, Yanu-kovych e seu círculo interno não consideraram e não puderam con-siderar a integração europeia como uma meta estratégica da Ucrânia e usaram a política de aproximação com a UE para flertar com a maio-ria pró-europeia da sociedade ucra-niana e como um meio de manipular as forças políticas pró-europeias.18 Putin negociou um empréstimo de 15 bilhões de dólares e uma série de outras preferências econômicas em troca da recusa ucraniana de assinar o Acordo de Associação com a UE.

A liderança da FR implementou a etapa decisiva de sua estratégia com-plexa e multivariada para conquistar a Ucrânia que incluiu pelo menos dois cenários básicos. Primeiro, a principal tarefa era subordinar toda a Ucrânia, principalmente por mé-todos políticos e econômicos legais e garantir o isolamento político do país em relação ao Ocidente. Se-gundo, garantir sua adesão aos pro-jetos de integração da FR (as Uniões Aduaneiras e Eurasianas) e a Orga-nização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO). Caso perdessem o controle sobre a liderança ucraniana, previram a operação militar Chekist nas regiões do sudeste da Ucrânia e na Crimeia.

A estratégia russa baseou-se numa compreensão clara da natureza do regime que chegou ao poder na Ucrânia em 2010. Os funcionários do Estado indicaram a integração

europeia, a cooperação prática com o Ocidente e o reforço do setor de segurança e defesa em documentos oficiais como a Lei da Ucrânia sobre os Fundamentos da Política Interna e Externa (junho de 2010), a Estra-tégia de Segurança Nacional (junho de 2012) e mensagens do Presidente da Ucrânia para a Verkhovna Rada (2010, 2011, 2012). Mas, na verda-de, sabotaram sistematicamente sua implementação. Yanukovych e seu grupo formaram um ambiente cor-rupto sistêmico e, em estreita coo-peração com a Rússia, criaram seu próprio clã oligárquico - a chamada ‘Família’.

Foi quando o clã criminoso-oligár-quico de Donetsk conquistou o po-der político na Ucrânia, que a for-mação de uma suposta ‘identidade regional’ se intensificou nas regiões de Donetsk e Luhansk sob as bandei-ras das organizações regionais cor-respondentes do Partido das Regiões, Partido Comunista e outras forças pró-russas, incluindo algumas fora da área pública como, por exemplo, o programa-alvo regional ‘Patriotas da Região Luhansk’.19

Yanukovich nomeou pessoas intima-mente ligadas aos serviços secretos russos em postos-chave no setor da defesa e segurança, como Ministros da Defesa e o Chefe do Serviço de Se-gurança os quais, junto com agentes do serviço secreto russo, adotaram medidas sistemáticas para desorgani-zar o setor. O orçamento de defesa ficou em torno de 1% do PIB e em-presas ligadas a Yanukovych desvia-ram quantidades significativas desses fundos extremamente escassos.

A desorganização do Ministério da Defesa da Ucrânia sob o pretexto de ‘reforma’ tornou impossível a gestão eficaz das Forças Armadas da Ucrâ-nia.20 Em 2010, o Comando Opera-

cional Conjunto foi dissolvido e, um ano depois, o Comando das Forças de Apoio. A partir de 2010, as operações de treinamento foram suspensas, a ‘destruição’ do sistema de defesa aé-rea ucraniano estava quase concluída e os sistemas de mísseis antiaéreos e plataformas de reconhecimento aé-reo mais modernas foram transferi-das para a Crimeia. As unidades das forças armadas, o Serviço de Guarda de Fronteiras e outras unidades do setor de segurança e defesa passa-ram as ser compostas principalmen-te por residentes locais. Edifícios históricos da Universidade Nacional de Defesa foram transferidos para a área jurídica.

O principal objetivo das restrições comerciais repentinas e injustifica-das impostas pela Rússia contra a Ucrânia no verão de 2013 e a campa-nha de propaganda correspondente na mídia foi dar a Yanukovych ra-zões para justificar a futura recusa em assinar o Acordo de Associação com a UE. As provocações armadas perto das fronteiras da Ucrânia per-seguiram os mesmos objetivos.21

Em novembro de 2013, as ações de Yanukovych provocaram protestos em massa em Kiev e outras cidades, considerados pelo Kremlin como uma chance de minar o potencial de resistência da Ucrânia. Com a esca-lada do confronto22 a liderança russa passou a admitir a possibilidade da perda do controle e utilizou, então, a mesma estratégia que havia sido ela-borada para contrabalançar o movi-mento de protesto de Bolotnaya em 2004-2005, na Rússia, em relação aos ‘anti-maidans’, na Ucrânia, os quais se tornaram, mais tarde, a base orga-nizacional para as manifestações do separatismo na Criméia e nas regiões leste e sul da Ucrânia.23

As ações do governo antes e duran-

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te os eventos que ficaram conheci-dos como Revolução da Dignidade levaram à rápida deterioração das relações da Ucrânia com os EUA e a UE. Putin e Yanukovych acertaram alguns acordos para integrar os seto-res da energia, finanças e indústria dos dois países e preparação para a adesão da Ucrânia à União Aduanei-ra, fazendo com que o país perdesse o contato direto com o Ocidente e se subordinasse ao Kremlin.

Apoiado pela liderança e pelos ser-viços de inteligência russos, Yanu-kovych tentou ‘afogar’ os protes-tos com uso da força o que levou a escalada da violência. Na segunda quinzena de fevereiro de 2014, o regime começou a perder o contro-le da situação.

Em 21 de fevereiro, 386 deputa-dos da Verkhovna Rada da Ucrânia votaram a favor de lei para evitar mais derramamento de sangue e Yanukovych fugiu de Kiev. Simul-taneamente, a alta administração de diversos ministérios (Defesa, As-suntos Internos, Receita), do Serviço de Segurança, Procuradoria Geral e autoridades executivas centrais e das administrações regionais e distritais deixaram seus postos. O presidente da Verkhovna Rada e seu vice re-nunciaram e o Estado mergulhou em um vácuo legal. Assim, no pon-to crítico da fase ativa das operações militares estratégicas da Rússia na Crimeia, no Leste e no Sul da Ucrâ-nia (20-22 de fevereiro de 2014) a liderança militar-política ucraniana havia desaparecido.

O parlamento ucraniano assumiu to-tal responsabilidade pelo destino do país e fez o possível para restaurar a ordem constitucional e a administra-ção dos assuntos do Estado. Em 22 de fevereiro de 2014, a Verkhovna Rada elegeu um novo presidente, restau-

rou as disposições da Constituição do país que havia sido abolida em 2010, uma nova liderança do setor de se-gurança e defesa foi nomeada, um novo governo foi formado e as ativi-dades do poder executivo em Kiev e regiões foram restauradas.

A AgRessão militAR RUssA con-tRA A UcRâniA

No verão de 2013, o Kremlin co-meçou a preparar a anexação ilegal da Crimeia e a agressão no leste da Ucrânia. Entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014, forças pró-russas foram consolidadas, grupos militares ilegais foram organizados (grupos de ‘autodefesa’), e a infraestrutura polí-tica e organizacional para a ocupação da península foi criada na Crimeia. Forças-tarefa foram mobilizadas no distrito militar do sul das Forças Ar-madas russas para garantir a segu-rança dos Jogos Olímpicos de Inver-no de 2014, no entanto, maiores do que o necessário.

A Rússia intensificou a atividade de serviços de inteligência na Ucrânia. No segundo semestre de 2013, o número de aeronaves de reconhe-

cimento russas que sobrevoaram o território da Ucrânia foram muito maiores que em períodos anteriores. O trabalho de agentes, guerra eletrô-nica e as atividades de inteligência imagética contra a Ucrânia foram intensificadas.

De acordo com um plano pré-prepa-rado, a partir de 20 de fevereiro de 2014 (antes de Yanukovych fugir de Kiev), reuniões com slogans separa-tistas foram organizadas em Sevasto-pol e Simferopol.24 Junto com agen-tes do FSB, Diretoria Principal de Inteligência do Estado Maior Russo, Serviço de Inteligência Externa da FR e suas forças de combate, cida-dãos russos incluindo esportistas, funcionários de empresas de segu-rança e ex-militares foram enviados à Crimeia para participar dos eventos da ‘Revolução da Dignidade’ juntan-do-se aos supostos ‘crimeanos irrita-dos’ para desestabilizar a situação.

Em 23 de fevereiro de 2014, o Vice-Presidente da Duma do Estado da Assembleia Federal da FR, V. Zhyry-novskyy, pediu que a Ucrânia fosse dividida em três partes e que ‘volun-tários’ russos fossem enviados para a

Ponte destruída no Leste da Ucrânia durante os conflitos

Ministério da D

efesa da Ucrânia/C

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Ucrânia. A imprensa russa provocou uma histeria coletiva sob os slogans ‘golpe fascista em Kiev’, ‘Junta ilegal de Kiev’ e a necessidade urgente de defender a população de língua russa da Ucrânia dos furiosos seguidores de bandeiras fascistas, propaganda que, em diferentes níveis de intensi-dade, ainda persiste.

Em 28 de fevereiro de 2014, as for-ças armadas russas começaram uma verificação surpresa da prontidão de combate do distrito militar do Sul e da Frota do Mar Negro. Unidades militares distritais do ocidente tam-bém foram convocadas e 150 mil militares, 90 aeronaves, 120 helicóp-teros e 880 tanques estavam envol-vidos. Desde 1º de março de 2014, unidades de ataque foram desdobra-das nas regiões de Rostov, Voronezh, Kursk, Belgorod e Bryansk, na Rús-sia. Um grupo de ataque foi formado nas proximidades das fronteiras da Ucrânia. Moscou colocou as forças armadas em alerta total de combate para invadir o território leste e sul da Ucrânia.

Na noite de 27 de fevereiro de 2014,

as forças especiais russas ocuparam prédios administrativos do parla-mento e do governo da República Autônoma da Crimeia. No dia se-guinte, deputados da Verkhovna Rada da Crimeia decidiram convo-car um referendo sobre o status da península e nomearam S. Aksyonov chefe de governo da Criméia. A par-tir desse dia, as unidades de forças armadas da FR assumiram o controle de instalações de infraestrutura crí-tica, aeroportos, passagens e pontes, começaram a bloquear as unidades e instalações militares ucranianas na península e tomaram algumas delas, como as de telecomunicações, im-pedindo a transmissão televisiva da Ucrânia na península.

Imediatamente após a fuga de Yanu-kovych, os funcionários de diversos departamentos ucranianos na Cri-meia e em Sevastopol começaram a sabotar ordens de Kiev. Dos 20.000 militares das Forças Armadas, Servi-ço de Segurança, Departamento da Guarda do Estado, tropas de seguran-ça interna e agências de inteligên-cia estacionadas na Crimeia, apenas 6.000 migraram da península ocu-

pada para outras partes da Ucrânia. No entanto, apesar da superioridade numérica russa, da forte pressão psi-cológica e do bloqueio de unidades militares, algumas unidades das For-ças Armadas da Ucrânia mantiveram firme defesa e deixaram a península somente após receber ordem, em 24 de março de 2014.

A Rússia completou a ocupação da península nos primeiros dias de mar-ço, devido ao rápido aumento dos agrupamentos militares, cujo poten-cial de combate excedia em muito o das tropas ucranianas estacionadas na Crimeia.

No documentário de A. Kondrashov, “Criméia: O Caminho Para a Pátria” (março de 2015), Putin disse que es-tava pronto para usar armas nuclea-res durante operações de ocupação na Crimeia, caso o Ocidente interfe-risse. Ele também informou que ha-via liderado pessoalmente a opera-ção militar, durante a qual fuzileiros navais e forças-tarefa da inteligência russa bloquearam unidades militares ucranianas e destruíram os canais de comunicação especial das unidades ucranianas com Kiev. O documentá-rio também informou que o sistema militar radioelétrico do sistema de mísseis costeiros ‘Bastion’ foi usado para desligar o radar do destroier americano ‘Donald Cook’, estaciona-do no Mar Negro.

O Decreto n. 261 do Presidente da Ucrânia, de 07 de marco de 2014, suspendeu a resolução da Crimeia para realizar o referendo e o Tribunal Constitucional da Ucrânia decidiu que o referendo era inconstitucio-nal. No entanto, em 16 de março de 2014, o ‘referendo’ sobre a indepen-dência da República Autônoma da Crimeia foi realizado. Os chamados ‘observadores internacionais’ que as autoridades de ocupação russas per-

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mitiram participar eram represen-tantes dos partidos ultradireitistas, neonazistas e comunistas europeus e outras pessoas com visões nazistas e neostalinistas.25

Enquanto a população nativa da pe-nínsula - os tártaros da Crimeia - boi-cotaram o referendo, o mesmo teria coletado mais de 1,2 milhão de votos completos (representando 83,10% de todos os eleitores). Destes, 96,77% supostamente votaram pela reunifi-cação da Crimeia com a Rússia.26

Em 18 de março de 2014, o presiden-te russo Vladimir Putin, o autopro-clamado Chefe do Conselho de Mi-nistros da República Autônoma da Crimeia, S. Aksyonov, o Presidente da Verkhovna Rada da Crimeia, V. Konstantinov, e o autoproclamado prefeito de Sebastopol, A. Chaly, as-sinaram o tratado sobre a anexação da República da Crimeia e Sevasto-pol pela Rússia. Na reunião cerimo-nial, Putin fez um discurso mais uma vez salientando que os ucranianos e russos seriam um só povo e disse: “milhões de russos, cidadãos de lín-gua russa estão vivendo e vão viver na Ucrânia, e a Rússia sempre vai de-fender seus interesses”. Esta declara-ção havia sido feita durante a segun-

da fase da operação militar Chekist.

Para justificar a intervenção mili-tar, o Kremlin usou a carta enviada por Yanukovych ao presidente rus-so Vladimir Putin em 1 de março de 2014. Em 4 de março de 2014, o embaixador russo na ONU, Vitaly Churkin, disse na reunião do Conse-lho de Segurança que, de acordo com a carta, a Ucrânia estaria à beira de uma guerra civil, que as vidas e a se-gurança das pessoas, particularmen-te na Crimeia e no Sudeste, estavam ameaçadas e que, sob a influência

dos países ocidentais, atos de terror ocorriam, e que a carta apelava para que o Presidente da Rússia usasse suas forças armadas para estabelecer legitimidade, paz, lei e ordem, esta-bilidade e defender o povo da Ucrâ-nia. No mesmo dia, o autoproclama-do Chefe da República Autônoma da Crimeia fez um apelo semelhante.

Putin imediatamente solicitou ao Conselho da FR para usar o Exército na Ucrânia e, poucas horas depois, o Conselho apoiou unanimemente o pedido. Em 11 de março de 2014, o início do ‘maior exercício dos últimos 20 anos’ de tropas aéreas da Rússia foi anunciado e incluíam o lançamento aéreo de 3.500 militares na retaguar-da do ‘inimigo imaginário’. Os co-mandantes foram informados sobre o local do lançamento a bordo dos aviões e, durante o exercício, 1.500 paraquedistas desembarcaram em uma área de treinamento militar na região de Rostov - Rússia, nas proxi-midades da fronteira com a Ucrânia.

Desde 1º de março de 2014, uma sé-rie de protestos nas regiões leste e sul da Ucrânia, a chamada ‘Primave-ra Russa’, apoiavam a junção do sul

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Soldados ucranianos no leste do país

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e do leste da Ucrânia com a Rússia, coordenados e controlados pelo ser-viço de inteligência russo. Sob essa cobertura, grupos de assalto espe-cialmente treinados, liderados por oficiais russos, ocuparam edifícios administrativos nas regiões de Do-netsk, Luhansk, Kharkiv, bem como os departamentos do Serviço de Se-gurança em Donetsk e Luhansk.

conclUsão

Os fatos demonstram conclusiva-mente a preparação para a invasão em grande escala no território da Ucrânia para a restauração do re-gime fantoche de Yanukovych. O derramamento de sangue na Crimeia seria a razão para essa invasão.

Percebendo a gravidade da situação,

a nova liderança ucraniana come-çou a redistribuição das Forças Ar-madas da Ucrânia e das agências de segurança para as regiões leste e sul do país. A liderança tomou medidas para restaurar a capacidade do setor de segurança e defesa, administrar as capacidades das Forças Arma-das, estabelecer a Guarda Nacional, e realizar uma mobilização parcial. Batalhões de voluntários começaram sua formação. A situação nas regiões de Kiev, Dnipropetrovsk, Zapori-zhia, Mykolaiv, Kharkiv e Kherson foi rapidamente estabilizada. Uma provocação organizada das forças pró-russas em 2 de maio de 2014, em Odessa, não atingiu seu objetivo. Medidas sistemáticas foram toma-das para atrair apoio internacional aos esforços da Ucrânia para deter o agressor russo.27

A agressão da Rússia foi rejeitada, um amplo movimento patriótico surgiu em toda Ucrânia e soldados, volun-tários e cidadãos comuns frustraram os planos de ocupação de oito regiões do sul e leste da Ucrânia. Os russos tiveram que se voltar para ativida-des subversivas e terroristas em par-tes da Ucrânia que não controlavam. Mas, mesmo nas regiões de Donet-sk e Luhansk a atividade das tropas russas foi localizada. Em 25 de maio de 2014, em circunstâncias extrema-mente difíceis, foi realizada uma elei-ção presidencial livre, democrática e internacionalmente reconhecida, vencida por Petro Poroshenko.

Com o fracasso dos planos da blit-zkrieg contra a Ucrânia, começou a fase seguinte da agressão russa - a ‘guerra híbrida’ que ainda persiste.

1 Texto baseado no artigo “To the second anniversary of the Russian aggression against Ukraine”, apresentado no Instituto Nacional Ucraniano de Estudos Estratégicos. https://en.niss.gov.ua/articles/530. Tradução do texto original em inglês: Renato Matheus Mendes Fakhoury e Sérgio Luiz Cruz Aguilar.

2 Major do Exército da Ucrânia. Graduado no Instituto Militar de Zhitomir em rádio-eletrônica. Entre 2013 e 2015 cursou a Universidade Nacional de Defesa da Ucrânia. Foi oficial de Estado-Maior do Departamento de Política de Pessoal do Ministério da Defesa da Ucrânia.

3 Conselho Supremo. É o poder legislativo unicameral da Ucrânia.

4 “Russia - CIS: Does the position of the West need adjusting?”.

5 Decreto n. 940 de 14 de setembro de 1995 - “On Approval of the strategic course of the Russian Federation with the state members of the Commonwealth of Independent States”. http://kremlin.ru/acts/bank/8307.

6 Decreto n. 1010 de 31 de agosto de 2005 № 1010 “On Repeal of certain provisions of the Decree of the President of Russian Federation of September 14, 1995”. Decreto № 940 “On Approval of the strategic course of the Russian Federation with the state members of the Commonwealth of Independent States”. http://kremlin.ru/acts/bank/22799.

7 Decisão № 3-2 do Tribunal Constitucional da Federação Russa, 21 de setembro de 1993, que considerou ações e decisões do presidente russo como inconstitucionais e como tendo uma razão para a remoção do cargo de Presidente da Federação Russa “ou atuação de outros mecanismos especiais de sua responsabilidade. Em 24 de setembro de 1993, o X Congresso dos Deputados do Povo da Federação Russa considerou a ação do presidente da FR como uma rebelião do governo e chegou a uma decisão para terminar seus poderes.

8 Decisão № 3-2 do Tribunal Constitucional da Federação Russa, 21 de setembro de 1993. X Congresso dos Deputados do Povo da Federação Russa, 24 de setembro de 1993. https://www.prlib.ru/item/33335, http://kremlin.ru/acts/bank/4364.

9 Em 2010-2013, o saldo negativo dos pagamentos da Ucrânia estava crescendo rapidamente (de US$ 3 bilhões em 2010 para US$ 44 bilhões durante a presidência de Yanukovych). “The negative balance of Ukrainian payments in 2010-2013”. https://index.minfin.com.ua/ua/economy/balance/.

10 Os fatores da corrupção desempenham um papel especial na estratégia de política externa da Rússia, e esquemas corruptos são frequentemente implementados com a assistência da alta administração dos serviços secretos russos.

11 The referendum for Independence of Ukraine. https://archives.gov.ua/Sections/15r-V_Ref/index.php?11.

12 O Ato de Independência da Ucrânia foi confirmado por 54.19% dos habitantes da Crimeia e por 57.07% dos habitantes de Sevastopol.

13 O partido pró-russo “Unidade Russa”, liderado por S. Aksyonov, venceu as eleições para a Verkhovna Rada da Crimeia em 2010, com apenas 4,02% dos votos. Elections to the Crimean Verkhovna Rada in 2010. https://dic. Academic.ru/ dic.nsf/ruwiki/1457078.

14 Assim como na própria Rússia, os criminosos continuam a ser a base das autoridades de ocupação russas na Crimeia. A liderança russa nomeou Aksyonov (‘Goblin’) ‘chefe’ da Criméia, o qual veio do ‘Salem’, um dos mais brutais grupos criminosos organizados da Crimeia. V. Konstantinov, líder da estrutura chamada ‘Consol’, foi nomeado ‘chefe do parlamento’ da Crimeia.

15 Em especial, o Acordo entre a Federação Russa e a Ucrânia sobre o estado e as condições da permanência da Frota do Mar Negro russa em território ucraniano (1997).

16 The Agreement between the Russian Federation and Ukraine on the status and conditions of the RF Black Sea Fleet’s stay on Ukrainian territory (1997). https://zakon.rada.gov.ua/laws/show/643_076.

17 Em dezembro de 2011, o novo 49o Exército foi formado com quartel general na cidade de Stavropol, para conduzir operações no setor do Mar Negro. Composto por cerca de 35.000 militares, 350 carros de combate, até 1.000 blindados, 180 canhões e morteiros, e 220 canhões e sistemas de mísseis antiaéreos. Formation of a new 49th field army of Russian Armed Forces. https://structure.mil.ru/structure/okruga/details.htm? id=11254@egOrganization.

18 Durante o período pacífico de 2010-2013, a dívida pública e a com garantia pública da Ucrânia aumentou em mais de 267 bilhões de UAH (moeda ucraniana), ou 84%, incluindo a dívida externa - em mais de 11 bilhões de dólares

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(42%). Public and publicly guaranteed Debt of Ukraine over the peaceful 2010-2013. https://index.minfin.com.ua/ua/finance/debtgov.

19 Aprovado pela decisão do Conselho Regional Luhansk, em 25 de fevereiro de 2011.

20 Ao longo de 21 meses, de 1 de dezembro de 2011 a 30 de agosto de 2013, quatorze pedidos de mudanças na estrutura do Ministério da Defesa da Ucrânia foram emitidos. Changes in the structure of the Ministry of Defense of Ukraine from December 1, 2011 to August 30, 2013. http://www.mil.gov.ua/ministry/normativno-pravova-baza/nakazi-ministra-oboroni-ukraini/.

21 Em 17 de agosto de 2013, a lancha russa “FSB Border Service” disparou contra o navio de pesca ucraniano; 4 pescadores foram mortos e 1 foi capturado.

22 Espancamento brutal de estudantes na Praça da Independência em Kiev na noite de 30 de novembro de 2013, uma tentativa de dispersar o Euromaidan em 9-10 de dezembro de 2013, a adoção de leis repressivas contra os direitos civis (“leis ditatoriais”) em 16 de janeiro de 2014, assassinatos e seqüestros de manifestantes após 19 de janeiro de 2014, confrontos armados em fevereiro 18-20, 2014.

23 Brutal beating of students in Independence Square in Kyiv in the night on November 30, 2013. https://www.bbc.com/ukrainian/features-42179754. An attempt to disperse the Euromaidan on December 9-10, 2013. https://m.znaj.ua/society/revolyuts%D1%96ya-g%D1%96dnost%D1%96-2013-yakpochin avsya-majdan. The adoption of repressive laws against civil rights (“dictatorial laws”) on January 16, 2014. https://tsn.ua/blogi/themes/law/zakoni-16-sichnya-scho-voni-zminyat-dlya-kozhnogo-ukrayincya-330702.html. Murders and kidnapping of protesters after January 19, 2014. http://khpg.org/index.php?id=1432190640. Armed clashes on February 18-20, 2014. https://www.bbc.com/ukrainian/features-47163982 e https://www.unian.ua/ politics/1045248-krivavi-podiji-u-tsentri-kieva-18-20-lyutogo.html.

24 The departmental distinction of the Ministry of Defense - Medal “For the return of Crimea”. https://life.ru/t/%D0%BD%D0%BE%D0%B2%D0%BE% D1%81%D1%82%D0%B8/1513 48.

25 A comunidade internacional condenou veementemente a agressão da FR contra a Ucrânia e as violações flagrantes do direito internacional. Em 27 de março de 2014, a Assembleia Geral da ONU, por maioria absoluta de seus membros, adotou a resolução № 68/262 sobre o apoio à integridade territorial da Ucrânia. Em março de 2014, a UE, os EUA, o Canadá, a Austrália e vários outros países impuseram sanções à Rússia como um Estado agressor. The UN General Assembly resolution № 68/262 on support of the territorial integrity of Ukraine. https://www.un.org/en/ga/search/ view_doc.asp?symbol =A/RES/68/ 262. Sanctions on Russia as the aggressor state. https://www.state.gov/e/eb/tfs/spi/ukrainerussia/, https://europa.eu/newsroom/highlights/ special-coverage/eu-sanctions-against-russia-over-ukraine-crisis_en, https://en.wikipedia.org/wiki/International_ sanctions _during_the_Ukrainian_crisis e https://www.consilium.europa.eu/en/policies/sanctions/.

26 A escala de fraude é atestada pelo fato de que, em 1º de novembro de 2013, a população de Sebastopol era de 383.499 pessoas, enquanto que 474.137 pessoas (que representam 123% da população) apoiaram a adesão à Rússia no referendo. Results of referendum for accession of Crimea to Russia. https://www.bbc.com/news/world-europe-26606097, https://en.wikipedia.org/wiki/2014_Crimean_status_ referendum e https://www.theguardian.com/commentisfree/2014/mar/14/crimean-referendum-illegal-international-law.

27 Pela agressão armada contra a Ucrânia e a anexação da Crimeia, a Rússia violou flagrantemente o direito internacional e minou as bases da segurança europeia e global. De acordo com a resolução da Assembleia Geral da ONU № 3314 (XXIX), de 14 de dezembro de 1974, essas ações são qualificadas como um ato de agressão. A Rússia ignorou deliberada e desafiadoramente as disposições da Carta da ONU, a Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional relativos às Relações Amigáveis entre Estados, de 1965, a Declaração sobre a Inadmissibilidade da Intervenção e Interferência nos Estados, de 1982, a Ata final da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa, de 1975, e o Ato Fundador entre a OTAN e a Rússia, de 1997. UN General Assembly Resolution № 3314 (XXIX) of December 14, 1974, https://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/3314(XXIX). The UN Charter. https://www.un.org/en/sections/un-charter/un-charter-full-text/index.html. The Declaration on Principles of International Law concerning Friendly Relations between States under the UN Charter of 1965, https://www.un.org/en/ga/search/view_ doc.asp?symbol=A/RES/2625(XXV).

Série Conflitos Internacionais é editada pelo Observatório de Conflitos Internacionais da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP) - Campus de Marília – SP

As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas nesse material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem as visões do OCI ou da UNESP.

Editor: Prof. Dr. Sérgio L. C. AguilarLayout: Paula Schwambach MoizesISSN: 2359-5809Comentários para: [email protected]ível em: www.marilia.unesp.br/#oci

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