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  intuitio ISSN 1983-4012 Porto Alegre Vol.4 Nº. 1 Julho 2011 p. 180-193 A co-pertença entre ser e fundamento em Heidegger The co-belonging among being and ground in Heidegger Victor Hugo de Oliveira Marques * _________________________________________________________________________ ___________________________________________________________________________ *  Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]  Resumo: Consoante Heidegger, a inferência aristotélica, em certo modo, de por o ser como fundamento, por alguma razão não pode ser prescindida, pelo contrário, o ser dá-se como fundamento. A idéia que passou a representar o ser na qualidade de fundamento, de acordo com Heidegger, foi equivalente a idéia em que os escolásticos representaram Deus. Isto, portanto, assegurou a inserção da noção religiosa de Deus, objeto essencial da teologia, para dentro da filosofia, resultando na transformação da metafísica em onto-teo-logia. Para Heidegger, o ser é aquilo que manifesta o ente enquanto ente. A causa sui, assim pensada, não manifestaria originariamente o fundamento, haja vista que ela se refere ao ente e não ao ser. O que significa dizer que, o fundamento co-pertencente ao ser não pode ser determinado em caráter ôntico, mas deve ser tematizado a partir da diferença ontológica. Sendo assim, a idéia de fundamento em Heidegger é expressa mediante a compreensão do  λόγος  de Heráclito, i. é, aquele discurso que unifica o que está disperso e deixa chegar à linguagem as coisas tais quais elas se mostram na realidade. O fundamento é, neste âmbito, a unidade ontológica do ente enquanto ente. Há, então, do ponto de vista heideggeriano, não apenas uma inferência de caráter metafísico entre ser e fundamento, todavia, uma co-pertença ontológica, um movimento circular entre ambos, na medida em que, enquanto o ser se dá como fundamento, este, por sua vez, é condição ontológica de sua manifestação. Palavras-Chave: Heidegger. Ontologia. Fundamento. Abstract: According to Heidegger, the Aristotelian inference, in a sense, of being as foundation, for some reason, cannot be without, on the contrary, being giving up as a foundation. The idea which was representing the being as foundation, according to Heidegger, was equivalent to the idea that the scholastics represented God. This, therefore, secured the insertion of the religious notion of God, the essential object of theology into the philosophy, resulting in the transformation of metaphysics into onto-theo-logy. For Heidegger, being is that which expresses the beings as beings. The causa sui, well thought through, not originally manifested the ground, given that it refers to the entity and not to being. What does it mean that the ground belonging together to the being cannot be determined on an ontic character, but should be themed from the ontological difference. Thus, the idea of Heidegger’s ground is expressed through the understanding of Heraclitus’s  λόγος , namely, that one speech that unifies what is dispersed and let’s get to the language the things as they show themselves in reality. The ground is in this context, the ontological unity of beings as beings. There is, then, Heidegger's point of view, not just an inference of character between being and metaphysical foundation, however, ontological co-owned, a circular motion between them, in that while the being is given as a reason, this in turn, is the ontological condition of its manifestation.

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  • intuitio ISSN 1983-4012 Porto Alegre Vol.4 N. 1

    Julho 2011 p. 180-193

    A co-pertena entre ser e fundamento em Heidegger

    The co-belonging among being and ground in Heidegger

    Victor Hugo de Oliveira Marques*

    _________________________________________________________________________

    ___________________________________________________________________________

    * Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Gois. E-mail: [email protected]

    Resumo: Consoante Heidegger, a inferncia aristotlica, em certo modo, de por o ser como fundamento, por alguma razo no pode ser prescindida, pelo contrrio, o ser d-se como fundamento. A idia que passou a representar o ser na qualidade de fundamento, de acordo com Heidegger, foi equivalente a idia em que os escolsticos representaram Deus. Isto, portanto, assegurou a insero da noo religiosa de Deus, objeto essencial da teologia, para dentro da filosofia, resultando na transformao da metafsica em onto-teo-logia. Para Heidegger, o ser aquilo que manifesta o ente enquanto ente. A causa sui, assim pensada, no manifestaria originariamente o fundamento, haja vista que ela se refere ao ente e no ao ser. O que significa dizer que, o fundamento co-pertencente ao ser no pode ser determinado em carter ntico, mas deve ser tematizado a partir da diferena ontolgica. Sendo assim, a idia de fundamento em Heidegger expressa mediante a compreenso do de Herclito, i. , aquele discurso que unifica o que est disperso e deixa chegar linguagem as coisas tais quais elas se mostram na realidade. O fundamento , neste mbito, a unidade ontolgica do ente enquanto ente. H, ento, do ponto de vista heideggeriano, no apenas uma inferncia de carter metafsico entre ser e fundamento, todavia, uma co-pertena ontolgica, um movimento circular entre ambos, na medida em que, enquanto o ser se d como fundamento, este, por sua vez, condio ontolgica de sua manifestao.

    Palavras-Chave: Heidegger. Ontologia. Fundamento.

    Abstract: According to Heidegger, the Aristotelian inference, in a sense, of being as foundation, for some reason, cannot be without, on the contrary, being giving up as a foundation. The idea which was representing the being as foundation, according to Heidegger, was equivalent to the idea that the scholastics represented God. This, therefore, secured the insertion of the religious notion of God, the essential object of theology into the philosophy, resulting in the transformation of metaphysics into onto-theo-logy. For Heidegger, being is that which expresses the beings as beings. The causa sui, well thought through, not originally manifested the ground, given that it refers to the entity and not to being. What does it mean that the ground belonging together to the being cannot be determined on an ontic character, but should be themed from the ontological difference. Thus, the idea of Heideggers ground is expressed through the understanding of Heraclituss , namely, that one speech that unifies what is dispersed and lets get to the language the things as they show themselves in reality. The ground is in this context, the ontological unity of beings as beings. There is, then, Heidegger's point of view, not just an inference of character between being and metaphysical foundation, however, ontological co-owned, a circular motion between them, in that while the being is given as a reason, this in turn, is the ontological condition of its manifestation.

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    Pressupostos da Questo

    A metafsica aristotlica caracterizada, primeiramente, pela busca das causas () e dos princpios (). Ela, ainda, foi responsvel pelo estudo do ser enquanto ser ( )1, ou seja, uma cincia capaz de reconhecer que tudo que possui uma natureza que lhe pertence apenas como ser2. Mediante a isto, comenta Reale (2002)3 que Aristteles, ao tratar da Metafsica, faz a inferncia da ontologia a partir da aitiologia (estudo das causas), ou mesmo, argumenta que tanto as causas quanto os princpios, por se comportarem como princpios supremos, so capazes de explicar no uma realidade em particular, mas a realidade enquanto tal4. Portanto, o ser objeto da ontologia satisfaria esta realidade na sua totalidade no como um atributo, e sim como algo essencial:

    [...] como estamos procurando os primeiros princpios e as causas supremas, evidentemente deve haver algo a que eles pertenam como atributos essenciais [...] do ser enquanto ser que tambm ns teremos de descobrir as primeiras causas5.

    Com efeito, resta saber, que noo de ser se incluiria em tal propsito? Em muitos sentidos se pode dizer que uma coisa 6, diz Aristteles. Concomitantemente, esta polivocidade de sentidos est vinculada a um nico e fundamental sentido, que segundo ele, se refere a , comumente traduzida por substncia. Comentando Aristteles, Ross (1979) explica que a uma espcie de ser no sentido mais estrito e mais completo, haja vista que todas as outras coisas apenas so simplesmente porque guardam alguma relao definida com a ela. Deste modo, o ser, enquanto tudo que , se faz um e tudo que um, s pela unidade relacional com a . Ela, portanto, a referncia principal para Aristteles, pois, considerada como a natureza fundamental do qual todos os outros significados se referem estruturalmente: , portanto, como o fundo do ser7. Neste sentido, a ontologia aristotlica,

    1 Lembrando que tanto Parmnides quanto Herclito, anteriormente a Aristteles, j haviam travados disputas

    sobre o ser e o devir. (Nota. do Autor). 2 ROSS, D. A metafsica de Aristteles. In: ARISTTELES. Metafsica Trad. Leonell Vallandro. Porto Alegre:

    Globo, 1969, p.3. 3 REALE, G. Aristteles Metafsica. Sumrio e Comentrios. Trad. Marcelo Perine. So Paulo: Loyola, 2002, v.

    III, p.152. 4 A sabedoria [que passou a se chamar Metafsica] no deve ser apenas a cincia ou conhecimento das causas,

    mas o conhecimento das causas primeiras ou mais universais [...] o mais amplo de todos os conhecimentos e o mais difcil, j que sendo os seus objetos os mais universais, esto mais afastados que quaisquer outros dos sentidos; tambm o conhecimento mais preciso porque seus objetos so os mais abstratos e os menos complexos; os mais instrutivos; o mais auto suficiente ou independente; e aquele a que mais autoridade assiste, porquanto , inter alia, o conhecimento das causas finais de todas as coisas (ROSS, D. A metafsica de Aristteles. In: ARISTTELES. Metafsica Trad. Leonell Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969, p.1-2). 5 ARISTTELES. Metafsica. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969, 1 1003a, 26-32.

    6 ARISTTELES. Metafsica. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969, 1003a, 33.

    7 REALE, G. Aristteles Metafsica. Sumrio e Comentrios. Trad. Marcelo Perine. So Paulo: Loyola, 2002, v.

    III, p.154.

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    ainda de algum modo, uma usiologia, um estudo da 8. Esta dupla identificao do ser tanto aitiologia como usiologia proporcionou tradio metafsica a possibilidade de, em certo sentido, compreender o ser na responsabilidade da fundao9. Esta constatao aristotlica de uma possvel relao entre ser e fundamento, para Heidegger, no totalmente descartada, pelo contrrio, o ser d-se como fundamento10. Isto porque, para o mesmo, a tradio no deve ser compreendida e feita uso, enquanto aprisionamento do passado, seno para a liberdade do dilogo com o que foi e continua sendo11. De modo semelhante Ser e Tempo, este dilogo apropriativo e transformador com a tradio, o que ele denominou por: destruio12. A questo do ser, portanto, para o mesmo, o ponto de toque entre a filosofia e o homem, sobretudo, o homem ocidental; j que a pergunta pelo ser possui sua origem no mundo grego, mas no somente isso. A histria do ocidente, como um todo, co-participa da prpria filosofia, como origem grega. A filosofia, enquanto filosofia, ela mesma, a questo da prpria existncia ocidental13. Excetuando os devidos exageros heideggerianos, de fato, pensar o ser, pensar a prpria histria ocidental, no que diz respeito importncia e a influncia filosfica de vertente grega.

    No obstante, alega Heidegger que a modalidade discursiva nos primrdios gregos, caracterizada por um discurso daditivo, ou seja, que se d por si mesmo, prescindindo de ulteriores representaes; dirigida e dominada, na poca de sua vigncia na Modernidade Europia, por representaes do cristianismo14, sustentada anteriormente pela Idade Mdia. Isto quer dizer que, o modo originrio da filosofia grega em seu discurso apofntico15 de deixar e fazer ver as coisas tais como elas mesmas so ao ser compreendido na linguagem latina pelos medievos cristos, foi acometido pelo processo de representao e objetivao, que engendrou aquilo que comumente Heidegger denomina por encobrimento. Para melhor expor este possvel velamento, necessrio o uso

    8 REALE, G. Aristteles Metafsica. Sumrio e Comentrios. Trad. Marcelo Perine. So Paulo: Loyola, 2002, v.

    III, p.155. 9 DUBOIS, Christian. Heidegger: introduo a uma leitura. Trad. Bernardo Barros Coelho de Oliveira. Rio de

    Janeiro: Zahar, 2004, p.76. 10

    HEIDEGGER, M. O princpio do fundamento. Trad. Jorge Telles Meneses. Lisboa: Piaget, 1999, p.78. 11

    HEIDEGGER, Martin. Que isto a filosofia? In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979a, p.15. 12

    HEIDEGGER, Martin. Que isto a filosofia? In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979a, p.20. 13

    HEIDEGGER, Martin. Que isto a filosofia? In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979a, p.16. 14

    HEIDEGGER, Martin. Que isto a filosofia? In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979a, p.14. 15

    [...] o que dito na lngua grega , de modo privilegiado, simultaneamente aquilo que em dizendo se nomeia. Se escutarmos de maneira grega uma palavra grega, ento seguimos seu lgein, o que expe sem intermedirios. O que ela expe o que est a diante de ns (HEIDEGGER, Martin. Que isto a filosofia? In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979a, p.16).

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    de uma fenomenologia hermenutica16, enquanto modo de dar-se do ser na histria do pensamento ocidental; que a seu ver, compreende como o ser em sua originariedade no dar-se das coisas mesmas17 foi assumindo outras determinaes, velando, por sua vez, a sua co-respondncia ao fundamento.

    Ademais, importante dizer que, este artigo, se trata do modo como Heidegger tematiza o fundamento em seus escritos tardios, ou seja, ps-anos 30, no qual, a empreitada da analtica do Dasein revertida na viragem (Kehre)18. Para tanto, se utiliza como caminho desvelador, a seqncia de conferncias de 1955 a 1957, a saber: Que isto a filosofia?; O princpio da identidade e Constituio onto-teo-lgica da metafsica19, bem como algumas intuies de suas aulas sobre O princpio do fundamento ministradas durante o semestre de inverno de 1955/56 na Universidade de Freiburg im Breisgau. Segundo o comentrio de Stein (1979), apesar destas se constiturem em textos que esto inclusos na dita segunda fase heideggeriana com respeito aos que controversamente no concordam com tal distino possuem por pressupostas, questes j trabalhadas na analtica existencial de Ser e Tempo, por exemplo: a questo do ser, a relao entre ser e o homem e a diferena ontolgica. Ainda, as trs conferncias se aproximam pela temtica do fundamento. Na primeira, a questo pensada mediante a pergunta pelas razes que levaram o fundamento a se identificar com a causa. J a segunda, questiona o que no ser corresponde a equivalncia entre identidade e fundamento. E na terceira, o que favoreceu para que o fundamento fosse pensado como causa sui (causa de si). De

    16 [...] a fenomenologia deve mudar de orientao, no mais se contentar em ser descrio do que se d ao olhar,

    mas interrogao do dado que aparece, no mais como um espetculo a ver, mas como um texto a compreender. Compreender, interpretar, j era aquilo que Dilthey, aps Schleiermacher, fizera com a teoria sob o ttulo de hermenutica [...] A fenomenologia hermenutica dever, pois, decifrar o sentido do texto da existncia, esse sentido que precisamente se dissimula na manifestao do dado. (DARTIGUES, Andr. O que a fenomenologia? 9. ed. Trad. Maria Jos J. G. de Almeida. So Paulo: Centauro, 2005, p.115). 17

    STEIN, E. Compreenso e finitude. Estrutura e movimento da interrogao heideggeriana. Iju: Uniju, 2001, p.251). 18

    Segundo a maioria dos comentadores e estudiosos em Heidegger, existe um processo de continuidade e ruptura no estudo do mesmo. Pode-se, portanto, dizer da existncia de um primeiro e um segundo Heidegger. Esta mudana, denominada comumente, reverso ou converso (Kehre) se determina no fato de que no a existncia humana a porta de acesso ao ser, mas este mesmo que torna possvel a abertura para a compreenso da existncia humana. Isto , Heidegger em sua segunda fase, abandona a analtica do Dasein enquanto condio de possibilidade de compreenso do ser, projeto este, to caro em Sein und Zeit (1927), que no fora concluda, para se debruar sobre o prprio ser. Para o segundo Heidegger, mais importante que tentar determinar de que modo o ser pode se manifestar nas relaes existenciais, demonstrar o quanto na histria do pensamento ocidental se aprofundou este esquecimento. Ao faz-lo, imediatamente se refere ao ser, pois, radica na essncia do ser, que quando o desocultar-se assim se desoculta, pertence a este desocultar-se um ocultar-se, isto , um retirar-se (HEIDEGGER, M. O princpio do fundamento. Trad. Jorge Telles Meneses. Lisboa: Piaget, 1999, p.105). O prprio Heidegger critica sua obra de 1927 Sein und Zeit. Na Introduo de 1949 ao texto Was ist Metaphysik? Heidegger afirma a respeito de Sein und Zeit: Em Ser e Tempo ser no outra coisa que tempo, na medida em que tempo designado como pr-nome para a verdade do ser, pr-nome cuja verdade o acontecimento (wesende) do ser e assim o prprio ser. (HEIDEGGER, Que Metafsica?. In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979e, p.60) 19

    As trs conferncias, Que isto a filosofia?; O princpio da identidade e a Constituio onto-teo-lgica da metafsica, foram proferidas respectivamente em agosto de 1955, junho de 1957 e fevereiro de 1957. (Nota do Autor).

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    modo breve, Heidegger quer compreender porque a metafsica essencializou o ser do ente, velando-o de sua apario originria. mediante este caminho heideggeriano de compreenso da temtica do fundamento que seguir o presente artigo.

    A identificao metafsica do fundamento como causa

    Por princpio, toma-se o dilogo que Heidegger faz com os gregos, sobretudo, no que diz respeito discusso sobre a noo de filosofia, encontrada em sua conferncia Que isto a filosofia?. De acordo com o filsofo alemo, o pensamento grego era constitudo a partir do , que, por sua vez, se refere ao verbo grego , que significa a fala. Observa ainda Heidegger, que o , a fala, em sua constituio mais originria, diz sem intermedirios20, ou seja, no se d por representao. O que significa dizer que no necessita de uma subjetividade que o represente, como asseverou a metafsica da modernidade. Este modo no-representativo da fala grega de acesso imediato ao mundo foi considerado por Heidegger o ncleo da compreenso dos pensadores originrios, a saber: Herclito e Parmnides, pois eles ainda no podiam ser chamados de filsofos21.

    Ademais, o originrio grego designava o recolhimento do ente no ser, era aquele falar que harmonizava a totalidade do ente em unidade com o ser, semelhantemente compreenso do pi (Um [] Tudo) encontrado no fragmento 50 de Herclito. Deste modo, o ser se dava para a compreenso no , este discurso que recolhe o ente em sua harmonia com o ser. Efetivamente, esta unidade no duraria por muito tempo. O movimento de sada da correspondncia do ser do ente com o acontece, segundo Heidegger, quando, interpelados pelas contendas dos sofistas, que possuam explicaes compreensveis a todos, os pensadores originrios tiveram de se auto-determinarem Filsofos22. Isto significa dizer que a antiga harmonia entre os entes recolhidos no ser co-existentes no discurso grego, na qualidade de , transposta em aspirao pelo 23. A contraposio aos sofistas, portanto, forneceu razes aos filsofos para que o ser pudesse estar posto

    20 HEIDEGGER, Martin. Que isto a filosofia? In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein.

    So Paulo: Abril Cultural, 1979a, p.16. 21

    HEIDEGGER, Martin. Que isto a filosofia? In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979a, p.17. 22

    A palavra grega philosopha remonta palavra philsophos. Originariamente esta palavra um adjetivo como philrgyros, o que ama a prata, como philtimos, o que ama a honra. A palavra philsophos foi presumivelmente criada por Herclito. Isto quer dizer que para Herclito ainda no existe a philosopha. (HEIDEGGER, Martin. Que isto a filosofia? In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979a, p.17). 23

    HEIDEGGER, Martin. Que isto a filosofia? In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979a, p.17.

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    na base de uma aspirao que guiaria o pensamento filosfico, algo j no mais dado na harmonia do , e sim, algo a ser buscado. Por conseguinte, Heidegger entende que tanto Scrates como Plato, no embate com os sofistas, tentando preservar a originariedade do grego, colocaram como preocupao essencial de toda a filosofia a pergunta pelo ser. Esta mudana, posteriormente, confirmada por Aristteles quando este afirma: E, em verdade, a questo que outrora se levantou, que ainda hoje levantada e sempre o ser, que sempre matria de dvida a saber, o que o ser [...]24. Isto confirma no somente a passagem do dado imediato na linguagem grega para designar algo ainda a ser acessado, mas tambm que a harmonia do ser no substituda pela busca de um ente (tomado como ser) que subjaz a todos os entes, ou seja, a . Pois, lembra Heidegger, que neste mesmo excerto, Aristteles faz uma identificao entre a pergunta pelo ser e a pergunta pela : [...] a questo que outrora se levantou, que ainda hoje levantada e sempre o ser, que sempre matria de dvida a saber, o que o ser identifica-se com a questo: que a substncia?25. por este motivo que Heidegger compreende que a pergunta pelo ser feita pelos filsofos (Scrates, Plato e Aristteles) , na verdade, a pergunta pela entidade, ou seja, pela substncia: O ser do ente consiste na entidade. Esta, porm a determinada por Plato como ida, por Aristteles como enrgeia26. Com efeito, bom lembrar que, como comenta Maras (2000), existem grandes equvocos nas tradues dos principais conceitos aristotlicos. O conceito comumente traduzido por substncia, i. , aquilo que est debaixo, o que est de p, ou mesmo aquilo que subjaz. Isto, explica Maras (2000), devido traduo que Ccero fez para o latim. Na verdade, o termo latino substantia traduo de outro termo aristotlico: hypostasis e hipokeimenon. O termo , originariamente, quer dizer: os bens, a fortuna, as propriedades de algo27, ou seja, se refere quilo que uma coisa possui. Assim como Maras, tambm j havia alertado Heidegger (2006) sobre o mesmo equvoco. O ensaio Cincia e pensamento de sentido (1953) mostra que as tradues dos termos originrios gregos para o latim provocaram verdadeiros equvocos de compreenso resultando naquilo que se eternizou por metafsica, ou seja, como ele mesmo assevera em Ser e Tempo, houve o esquecimento do ser e sua conseqente tomada pelo ente.

    Sendo assim, prossegue Heidegger, a heraclitiana que se harmonizava no transposta para a pi aristotlica, na qual perscruta o ser na condio de aitiologia, i. , a pergunta fundamental grega, a questo do ser, inferida a partir da busca das causas. Isto, mais uma

    24 ARISTTELES. Metafsica. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969, Z 1 1028b, 2ss.

    25 ARISTTELES. Metafsica. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969, Z 1 1028b, 2ss.

    26 HEIDEGGER, Martin. Que isto a filosofia? In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein.

    So Paulo: Abril Cultural, 1979a, p.18. 27

    MARAS, Julin. Aristteles. Conferncia do curso: Los estilos de la filosofa. 2000. [Online] Disponvel em . Acesso em: 24/02/2011, p.4.

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    vez, confirma o fato de que a sabedoria () cultivada pelos pensadores originrios pensada por Aristteles como filosofia. Esta passagem a pouco elucidada no apenas a mudana de um estgio do pensamento a outro, e sim, a passagem que vincula a compreenso do ser tanto a uma aitiologia (estudo das causas) quanto a uma usiologia (estudo da ), ao passo que tal inferncia atrelou a questo do ser questo de fundamento. Contudo, a noo de ser dada por Aristteles, critica Heidegger, no justificaria tal aproximao. Ora, se o modo de compreenso do ser, a partir das causas e da substncia, foi a condio de possibilidade para um pensar fundamentado, que problemas h nesta relao entre ser e fundamento para que Heidegger rejeite tal possibilidade?

    Em Ser e Tempo, Heidegger alega que o problema da categoria aristotlica substncia aparece mais claramente na modernidade quando Descartes a toma em termos cristos de ens creatum para determinao tanto da res cogitans quanto da res extensa, na qualidade de fundamento. Neste sentido, o problema da fundamentao mediante a substncia, est no fato de que ela por ser um ente no necessrio em si mesmo, necessita de um outro ente cuja substncia seja per si. Esta substncia necessria em si mesma transferida para Deus. Logo, tanto a extensio quanto Deus so entes que acabam possuindo determinaes comuns, i. , tem como fundamento o ser pensado como substncia. Esta determinao comum, a partir do ser de ambos os entes, sendo um finito e outro infinito, no especificada por Descartes, explica Heidegger. Dizer Deus no o mesmo que o mundo , mesmo assim tais proposies so ditas. Uma possvel soluo para este impasse, Heidegger lembra, foi proposto j pelos escolsticos que afirmavam uma analogia do ser entre os entes, baseada na metafsica aristotlica.

    Porm, na viso heideggeriana, Descartes no conseguiu esclarecer os fundamentos da universalidade do ser que se aplicava aos entes finitos e ao ente infinito. Isto, para Heidegger, a tomada do ntico pelo ontolgico, porque o ntico deve ser sustentado pelo ontolgico, a expresso substncia exerce significado ora ntico ora ontolgico, principalmente sobre uma desfocada importncia do ntico-ontolgico28. Se isto se comprova, questiona Heidegger: Em que sentido pensado o ser para que as coisas tais como razo e causa sejam apropriadas para caracterizarem e assumirem o sendo-ser do ente?29. Neste sentido, h problemas em pensar o ser como fundamento na medida em que o ser se caracteriza pela busca das causas (aitilogia) e com a substncia (usiologia), pois se assim o , de que modo a causa ou a substncia fundamento? Isto ainda implica dizer que a pergunta pelo ser j no pode ser mais vista num contexto realista, como se ele existisse independente do homem, como pensava a tradio metafsica aristotlica e medieval. foroso, para Heidegger, na

    28 HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Disponvel em: http://kosilova.textdriven.com/narod/studia4/suz.pdf. Acesso

    em: 11/11/2009, p.92. (Traduo nossa). 29

    HEIDEGGER, Martin. Que isto a filosofia? In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979a, p.18.

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    pergunta pelo ser, distinguir as condies ontolgicas de possibilidade para aambarcar a prpria pergunta que acessa o ser.

    A identificao metafsica do fundamento como identidade

    Por segundo, o dilogo heideggeriano com a proposio do princpio de identidade (A=A), discute de que modo o ser deve ser compreendido, enquanto identidade, no fundamento. A partir da conferncia O princpio da identidade de 1957, Heidegger apresenta a importncia da mudana no conceito de identidade que fora tematizada pelo idealismo alemo de Hegel. Na medida em que a identidade se apresenta mediada por uma relao com ela mesma (pois, A s A, con-sigo mesmo), e no mais em sua proposio metafsica de mera mesmidade dos entes (A=A), o princpio de identidade, deste modo, velaria uma relao sinttica da unio numa unidade30. Neste sentido, Heidegger d crditos ao idealismo especulativo hegeliano por ter desvelado a mediao na constituio da identidade, que at ento era encoberto por uma pura abstrao da mesma. Com efeito, esta unio na unidade, ao contrrio de Hegel, no tem uma funo dialtica para a constituio da identidade; mas, fenomenologicamente, diz respeito tanto diferena ontolgica quanto unidade do ente no ser. Pois, a frmula A=A, de algum modo, encobre esta unidade ontolgica de A A, na medida em que ela apenas trabalha abstratamente a identidade dos entes. Isto implica dizer que, na verdade, a identidade quer afirmar como todo e qualquer ente 31.

    Pensado em sua originariedade, Heidegger compreende o apelo da identidade expressada pela frmula A A, pois agora ela diz tomando como referncia o ser do ente, e no mais uma simples mesmidade ntica de A=A. Isto pode ser melhor percebido, prossegue o mesmo, quando se volta a Parmnides, que enunciava a mesmidade entre pensar e ser32. O enunciado de Parmnides: (o mesmo pensar e ser), tem para Heidegger o seguinte significado originrio: que o mesmo, ou seja, a identidade ser no sentido de pertencer ao ser. Mas, no s ao ser, tambm ao pensar. Neste sentido, a identidade o que faz a relao de co-pertena entre ser e pensar, i. , h uma anterioridade de sentido no mbito da identidade frente a ser e pensar. Portanto, no se trata de apenas

    30 HEIDEGGER, M. O princpio da identidade. In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So

    Paulo: Abril Cultural, 1979b, p.179. 31

    HEIDEGGER, M. O princpio da identidade. In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979b, p.180. 32

    Pois bem, eu te direi cuidas tu da palavra escutada as nicas vias de indagao que so claramente vistas. A primeira, que e que no possvel no ser, o caminho de persuaso (pois segue a verdade). A outra, que no e que necessrio no ser, um caminho, te digo, inteiramente impraticvel. Pois, no conhecerias o no ente (no possvel) nem poderia, em palavras, diz-lo. [...] pois, o mesmo pensar e ser (PARMNIDES. Poema del Ser. Fragmentos. [Online]. Disponvel em: Acesso: 10/02/11, Frag. 2-3).

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    um simples pertencer entre pensar e ser, seno um comum-pertencer (Zusammengehrigkeit) entre ser e pensar a partir da identidade. Originariamente, Heidegger prope uma inverso, a identidade no aparece mais como um trao ou mesmo uma propriedade metafsica do ser, pelo contrrio, o ser um trao da identidade. Ela o horizonte de compreenso do prprio ser em um comum-pertencer com o pensar. A identidade recolhe em seu mbito tanto ser como pensar e estabelece a partir de si um comum-pertencer entre ambos.

    Deste modo, a partir da intuio originria de Parmnides, o sentido do ser na perspectiva de Ser e Tempo enquanto horizonte de compreenso do ser inferido como identidade, o comum-pertencer entre pensar e ser. Este comum-pertencer, no qual o pertencer determina aquilo que comum, segundo Heidegger, desvela ainda a relao entre homem e ser, ao passo que, o pensar co-pertencente ao homem, o pensar constitutivo do homem. Tessitura Heidegger, se o comum-pertencer determina a relao recproca entre homem e ser, ento, este se d como o horizonte de compreenso do fundamento. Isto porque, o fundamento que foi tematizado no racionalismo moderno a partir do princpio de identidade s possui este carter, se pensado originariamente a partir do comum-pertencer entre homem e ser. Tal compreenso fruto daquilo que Heidegger denomina por salto (Sprung)33, i. , da ruptura do pensamento representante da metafsica que propunha o ser identificado com a identidade enquanto fundamento no qual todo ente se funda. O ser encoberto enquanto identidade inferida juntamente com a idia de fundamento enquanto fundo do ente tende a cair num abismo (Abgrund), j que, heideggerianamente compreendido, o ser d-se na abertura (Da-sein) do homem, num comum-petencer. Se, mediante tal apresentao do ser, a mesmidade no fundamento possvel, o que se pode dizer do fundamento?

    A identificao metafsica do fundamento como Deus

    Por terceiro, a conferncia Constituio onto-teo-lgica da metafsica de 1957 trata justamente de como o fundamento perdeu seu estatuto originrio se identificando com a causa sui (causa de si).

    33 Para Heidegger o salto (Sprung) a exigncia feita ao pensamento que se prope pensar a verdade do ser. O

    que ele intenta romper radicalmente com a proposta da metafsica, e isto s possvel numa ruptura radical, sem possibilidades de linearidade ou progressividade do metafsico para o ontolgico, como verdade do ser. At os anos 30, Heidegger transitava lado a lado, tanto com Kant, como com Wittgenstein, nas determinaes dos limites de acesso ao ser nos mbitos da linguagem. Passado este perodo, e considerado um marco, Heidegger decide romper com a tradio ps-kantiana e tem a pretenso de abrir uma fenda entre o pensamento considerado por ele ainda muito metafsico para outra possibilidade do pensar esta fenda foi por ele denominado de salto (Sprung), passo para trs (Schritt zurch), transformao do pensar (Werwandlung des Denkens). Esta, por sua vez, concomitantemente bipolar, pois procura ao mesmo tempo abrir uma fenda com a metafsica e seu modo de pensar e cair nela de modo a retomar o pensamento metafsico naquilo que ele no conseguiu manifestar de mais essencial e originrio, a saber, o seu fundamento (MARQUES, V. H. O. O Abgrund (abismo) em Martin Heidegger. Monografia (Especializao em Filosofia e Existncia) Universidade Catlica de Braslia, Braslia, 2010, p.84).

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    Nesta, Heidegger inicialmente trava um embate com Hegel sobre o modo como se dialoga com a histria da filosofia. Ao contrrio de Hegel, Heidegger no utiliza a Aufhebung34, ou seja, aquilo que Hegel considera enquanto modo especulativo de negar e assumir para que haja o avano do pensamento. Em contraste, Heidegger parte daquilo que aquele denomina de passo de volta35 (Rck-gang), que pode ser compreendido como a ruptura com a tradio metafsica, bem como, com um mergulho na essncia da mesma: O pensamento recua diante de seu objeto, o ser, e pe o que foi assim pensado num confronto [...] enquanto lhe prepara, enfim, o mbito de sua residncia (HEIDEGGER, 1979, p.192). A inteno deste caminho , de algum modo, voltar o pensamento para ir de encontro diferena ontolgica relegada pela tradio metafsica no uso plurvoco do termo ser, e neste caso, partindo da crtica Aufhebung que propunha o avano do pensamento, o passo de volta vai do impensado, da diferena enquanto tal, para dentro do que deve ser pensado (HEIDEGGER, 1979d, p.193).

    Assim, segundo Heidegger, o modo de explicitar o carter metafsico de Hegel, na aplicao do passo de volta, retomar sua obra Cincia da Lgica (1812). a partir desta que Hegel abre o problema do fundamento. Problema este que implica necessariamente uma noo de ser. Em um pequeno texto posto no incio desta obra intitulado Qual deve ser o comeo da cincia?, Hegel apresenta o problema do comeo das cincias e da filosofia, mas no s, com ele pe ainda, o problema de todo e qualquer comeo. Sem adentrar nas mincias e problemticas travadas por Hegel neste texto bem como em todo seu pensamento, a concluso hegeliana para o problema do comeo : se o puro ser deve constituir o imediato mesmo, sendo reconhecido como o comeo e tem por mediao o puro saber como componente dialtico (momento negativo), ento o comeo necessariamente um resultado36.

    Apesar da tese hegeliana afirmar o comeo como um resultado, Heidegger nota que no final de seu texto sobre o comeo Qual deve ser o comeo da cincia? Hegel afirma: y Deus tendra el

    34 A categoria hegeliana da Aufhebung, ponto terminal do processo tridico e ponto de partida para o

    movimento em direo de nova sntese, vem em geral traduzido por supresso. Prefiro o termo sobressumir, em que melhor se preservam os trs sentidos sublinhados por Hegel: tirar (tollere), elevar (elevare) e conservar (conservare) (STEIN, E. Nota do tradutor. In: HEIDEGGER, M. Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979, p.192). 35

    O passo de volta enquanto modo de dilogo com a histria do pensamento, no algo to claro no pensamento heideggeriano. Isto implicou em interpretaes equivocadas, das quais Heidegger mesmo tinha conscincia. Por isso, Heidegger faz um alerta naquilo que se compreende por passo de volta: Com esta explicao quer-se manter distncia a outra interpretao falsa da expresso passo de volta, que facilmente se insinua; a saber, a opinio de que o passo de volta consiste no retorno aos primeiros pensadores da filosofia ocidental. Sem dvida, o para onde ao qual conduz o passo de volta somente se desenvolve e se mostra atravs do exerccio do passo (HEIDEGGER, M. A constituio onto-teo-lgica da metafsica. In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979c, p.183). 36

    HEGEL, G. W. F. Cincia da Lgica. Trad. Augusta e Rodolfo Mondolfo. Buenos Aires: Solar, 1968, p.66.

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    derecho incontrastable de que el comiezo se hiciera com l37. Isto implica em dizer que, alm do comeo ser um resultado, Hegel tambm admitiria como ponto de partida das cincias o ente Deus, sem prejuzo aparente. Se Deus, sob alguma hiptese, pode ser posto como comeo da cincia, esta por sua vez, s pode ser enquanto Teologia. Recorda o nosso filsofo ainda que a metafsica para os gregos possua um duplo sentido: ontologia e teologia38, o que sculos mais tarde favoreceu a entrada de Deus na filosofia, justificando, ademais, a atitude hegeliana de possibilitar a Deus como comeo. Esta indicativa aponta para o que Heidegger chama de carter onto-teo-lgico da metafsica na modernidade. Com efeito, a metafsica se caracterizaria como onto-teo-logia, no somente pela bivalncia do sentido metafsico grego, o que seria um mero simplismo, mas, tambm pelo modo como foi estruturado seu principal objeto: o ser enquanto ser. Tal carter onto-teo-lgico metafsico, na medida em que suporta a insero de Deus, torna-se, conseqentemente, problemtico, afirma Heidegger, no por uma crtica de vis atesta, seno pela impropriedade do pensar a essncia da metafsica.

    Se Deus consegue entrar na filosofia, no seria menos improvvel pensar que foi justamente pela prpria concesso filosfica, j que, esta por ser o livre engajar no ente enquanto tal ela que determina que e como Deus entra dentro dela39. Sendo assim, questiona Heidegger, de que modo a filosofia permitiu que Deus entrasse nela? A resposta a esta pergunta sugere novamente a relao

    inferida pela metafsica entre ser e fundamento. O ser foi aproximado idia de primeiro princpio ou causa ltima, enquanto fundamento das coisas existentes: Pois, o ser do ente mostrou-se, desde o comeo da Filosofia, e neste prprio comeo como fundamento40. Esta, logo, tornou possvel sistematizar racionalmente a idia religiosa de Deus, como causa sui (causa-se), o que se nota tanto na escolstica, quanto nos racionalistas modernos como Descartes, Spinoza Leibniz e, como visto, em Hegel, enquanto absoluto.

    37 E Deus teria o direito incontestvel de que o comeo se fizesse com ele (HEGEL, G. W. F. Cincia da

    Lgica. Trad. Augusta e Rodolfo Mondolfo. Buenos Aires: Solar, 1968, p.72). [Traduo nossa]. 38

    A metafsica para Aristteles ontologia, pois, H uma cincia que investiga o ser como ser e os atributos que lhe so prprios em virtude de sua natureza (ARISTTELES. Metafsica. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969, 1,103a, 21); bem como teologia, quando, ora, si esta cincia [Metafsica] tem ambas as qualidades requeridas, pois, dizemos que Deus uma das causas de todas as coisas, um dos primeiros princpios; e uma tal cincia, s Deus pode possuir, ou Deus mais do que qualquer outro (ARISTTELES. Metafsica. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo, 1969, , 2, 983 a, 7-10). 39

    HEIDEGGER, M. A constituio onto-teo-lgica da metafsica. In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979c, p.194. 40

    HEIDEGGER, M. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979d, 71.

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    A co-pertena originria entre ser e fundamento

    Tendo traado todo este percurso, o que se pode ainda considerar? A idia de fundamento no qual o ser foi inferido, dentro do conjunto da histria da metafsica para Heidegger obscura, uma vez que no se estabelece o modo como as relaes entre ontologia e fundamento se do em seu ponto de toque, a saber, o ser. A noo de fundamento no qual o ser faculta ser inferido, considerada originariamente na perspectiva de Heidegger, no possui relaes com a aitilogia, nem com a uisiologia, nem com a teologia; seno tem a ver com o pensamento grego heraclitiano. Ao contrrio de outros, Herclito no estava preocupado com a reflexo sobre o fundamento, se detia, antes de tudo, naquilo que nos toca os ouvidos, os olhos, a lngua, a pele, i. , o sentido encontra-se no que sentimos41. Seu discurso se perfaz no . Este termo, por sua vez, to equvoco quanto o ser em sentido aristotlico. Todavia, retomando Homero42, Herclito privilegia a acepo deste termo a partir do recolhimento. Deste modo, , pode ser compreendido como reunio de coisas sob um determinado critrio, sendo que, tais coisas, no se referem s palavras simplesmente, seno, do mesmo modo, a seres (entes).

    O grego de vertente heraclitiniana, tido como originrio por Heidegger, aquele que deixa-estar-a43, ele recolhe fundando tudo no universal e recolhe tudo a partir do nico. Este recolher fundando, em nada se assemelha noo aristotlica de pr tudo num substrato comum. Pelo contrrio, um discurso que no seu curso deixa-estar-a os entes nele recolhidos tal qual eles so. O fundar o prprio ato de ser recolhido, recolhido em uma linguagem que no uma representao objetiva. O fundar desvelar na linguagem aquilo que foi recolhido enquanto tal. A empreitada heideggeriana na tematizao do fundamento, de modo geral, pode ser vista assim, como um alargamento da noo predicativa da metafsica moderna racionalista, remetendo-a a num nexo considerado mais originrio, que articula e congrega os primeiros nveis de inteligibilidade na abertura ao sentido que facticamente se 44. O heideggeriano, ainda, recolhe no uma representao de objetos, que pode ser universalizada; mas numa perspectiva fenomenolgica, recolhe a constatao ftica do sentido e por isto mesmo, depara-se com a presena enigmtica da finitude. Com efeito, a noo de fundamento em Heidegger constituda mediante um horizonte de compreenso: a adoo acrtica do fundamento como carter transcendental do ser/modalidade

    41 SCHLER, D. Herclito e seus (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001, p.15.

    42 Logos designa muitas coisas. Homero emprega o verbo lego, da mesma raiz de logos, para o processo de

    recolher alimentos, armas e ossos, para reunir homens. Cada uma dessas operaes implica comportamento criterioso; no se renem armar, por exemplo, sem as distinguir de outros objetos. Concomitantemente, logos significa uma reunio de coisas sob determinado critrio (SCHLER, D. Herclito e seus (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001, p17). 43

    HEIDEGGER, M. A constituio onto-teo-lgica da metafsica. In: Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Abril Cultural, 1979c, p.200.

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    principal da manifestao45. Isto implica em duas coisas: primeiramente, Heidegger no questiona a tradio metafsica no aspecto de se pensar ou no a real necessidade de se pr um fundamento, i. , ele simplesmente aceita a idia de que tudo se move num fundamento. Por outro lado, muito mais que dizer o que o fundamento, do ponto de vista quiditativo, como se portou toda tradio considerada metafsica, o mais importante elucid-lo em um horizonte de compreenso capaz de propiciar seu desvelamento. pensar em suas condies de possibilidade, como algo mais fundamental que sua prpria determinao, haja vista a recorrncia dos equvocos de seus precedentes, depois de instalado o fundamento a necessidade de justap-lo aos limites no tematizados previamente.

    Por fim, a relao entre ser e fundamento, em Heidegger, , com efeito, uma aceitao da intuio metafsica, desde que, no se compreenda que o ser fundamento na acepo de fundo do ente, ou seja, o ser no o substratum no qual o ente est assentado, como tematizou a tradio metafsica. A insistncia nesta perspectiva, afirma Heidegger, como de fato ocorreu com o pensamento metafsico racionalista moderno, acarretou no uma determinao de um fundamento evidente, mas um a-fundamento, i. , o ser na medida em que inferido como fundamento, se re-vela como um abismo (Abgrund). Este abismo em si mesmo preldio da inferncia possvel entre ser e fundamento. A indeterminabilidade do ser, no em sentido hegeliano (imediato indeterminado), mas caracterizado como o ser da diferena, o faz se relacionar com o fundamento em um paradigma distinto. Ele co-pertence ao fundamento na medida em que este compreendido como um discurso recolhedor e unificador dos entes numa unidade que o ser, compreend-los numa linguagem que os fundamente, no representando, mas desvelando-os enquanto tal.

    Assim sendo, o comum-pertencer (Zusammengehrigkeit) entre ser e fundamento, apresenta e sustenta a circularidade entre ser e homem, na medida em que o homem capaz de linguagem, linguagem esta presente em sua existncia finita, que tem como nico fundamento, um fundamento a-fundado (Abgrund), ou seja, a prpria finitude. , portanto, nesta perspectiva que se d em Heidegger, a co-pertena entre ser e fundamento.

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    44 BLANC, Mafalda Faria. O fundamento em Heidegger. Lisboa: Piaget, 1984, p.183.

    45 BLANC, Mafalda Faria. O fundamento em Heidegger. Lisboa: Piaget, 1984, p.184.

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