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SONTAG, Susan. Na caverna de Platão. In: Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 13-35.TRANSCRIPT
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SUSAN SONTAG
Sobre fotografia
Tradu~ao
Rubens Figueiredo
11 re impre ssao
-~-COMPANHIA DAS LETRAS
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P a ra N ic o le S te p ha n e
pyrigh: e 197 ,1974, 19 b)' USMI Sontag
Esrelivre foi I ublicad originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar,Srrnus& GiroLLX
Timi iginl1l
n p hor g rap hy
Capa
Angel Venosa
F o to d e c ap o
Fot ogr af ar ne ri an an ' n imo ( " 18'0 )./
Cole -0Virainia uthbert Ell i t, Buffalo, ova York
Prcparaaio
Oiacflio Nunes Ir.
Rl'visiio
D en i e P I'
A na ta ri a B ar bo sa
Da do s I nr er na co na u de ta l g ~\ -i o n a P u b hC il l{ io ( " l
( man Brasl lnn. do l . . r \TO. 5", B _ r . W n
S o n ta g , S u s an . 19)3-
ire fO logna iU l Susan Son ng ; t radu 0 Ruben Pigueiredo,
- Sao Pau lo Companh u d es Uoln.s . .2004.
Tuulo onglnal: Jl pborogrephy
B,bhognfi.
IS!!. ' 5- 5 -0490-4
J. Aru- t rO lo g l " l l f i . l 1 . F ot og r. af i; a 3 . F O I
( T I t ul o .
rafia ~nrrica
0)0-770.1
o S:lS:IWlaIlCO~
LFo t og r j 1 ;1 : P i lo s of i a ( l e ona nO.1
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Tudo c om efo u co m um ensa io - so bre a lguns do s p ro ble ma s,
e st et ic o s e m o ra is , p ro p os to s p e la o ni pr es en ca d a s i m ag en s[o to-
g ra fic as ; m as , q ua nta m ais e u p e ns av a s ob re 0 q ue s ao a s fo to s,
m a is c om p le xa s e s ug es ti va s e la s s e t or na va m . A ss im , u m e ns ai o
e ng en dra va o utr o, e e ste (p ar a m eu e sp an to ), a in da £ 1m o utr o, e
a ss im su ce ssi va me nte - u ma s eq Ue nc ia d e e ns ai os a r es pe ito d o
s ig nific ad o e d a e vo luc ao d as f oto s - a te e u te r i d o ta o lo ng e q ue
o a rgum ento e sbo cado no p r im eiro ensa io , e d o cum enta do e
e xp lo ra do p or m e io d e d ig re ss oe s n os e ns ai os s eg ui nt es , p od e s er
r eto ma do e a m plia do d e u m m od o m ais te a ric o; e p od e p ar ar .
O s e ns ai os fo ra m p ub li ca do s, p el a p ri me ir a v ez (d e £ 1m m o do
ur n p ou co d ife re nte ), n a New York Review of Books e t al ve z
ja m ai s t iv es se m s id o e sc ri to s s em 0 e st im ul o d os e di to re s, m e us
a m ig os R o be rt S il ve rs e B ar ba ra E ps te in , a m in ha o bs es sa o p el a
f ot og ra fi a. S ou g ra ta a e le s e a o m e u a m ig o D on E ri c L e vi ne p el os
c o ns el ho s p a ci en te s e p e l a a ju da i rr es tr it a.
s.s.
Maio, 1977
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Sumario
Na caverna de Platao 11
Estados Unidos, visto em fotos, de urn angulo sornbrio 37
Objetos de rnelancolia 63
oheroisrno da visao . 99
Evangelhos fotograficos 129
on1undo-irnagern.................................................................. 167
Breve antologia de citacoes 197
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NA CAVERNA DE PLATAO
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Ahumanidade permanece, de forma impenitente, na caverna
de Platao, ainda se regozijando, segundo seu costume ancestral,com meras imagens da verdade. Mas ser educado por fotos nao e 0
mesmo que sereducado por imagens mais antigas, mais artesanais.
Em primeiro lugar, existem a nossa volta muito mais imagens que
solicitam nossa atencao, 0 inventario teve inicio em 1839,e, desde
entao, praticamente tudo foi fotografado, ou pelo menos assim
parece. Essa insaciabilidade do olho que fotografa altera as condi-
coes do confinamento na caverna: 0nosso mundo. Aonos ensinar
urn novo c6digo visual, asfotos modificam e ampliam nossas ideias
sobre 0que valea pena olhar esobre 0que temos 0direito de obser-
var. Constituem uma gramatica e,mais importante ainda, uma
etica do ver.Por fim,0 resultado rnaisextraordinario da atividade
fotografica e nos dar a sensacao de que podemos reter 0mundo
inteiro em nossa cabeca- como uma antologia deimagens.
Colecionar fotos e colecionar 0mundo. Filmes e programas
de televisao iluminam paredes, reluzem e se apagam; mas, com
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fotos, a imagem e tambern um objeto, leve, de producao barata,
facilde transportar, de acumular, de armazenar. No filme Les cara-
biniers (1963), de Godard, dois lumpen-camponeses preguicosos
sao induzidos a ingressar no Exercito do rei mediante a promessa
dequepoderao saquear, estuprar, matar ou fazer 0que bern enten-
derem com osinimigos, e ficar ricos. Mas a mala com 0butim que
Michel-Ange e Ulyssetrazem, em triunfo, para casa, anos depois,
para suas esposas, contem apenas centenas de cartoes-postais de
monumentos, delojas de departamentos, de mamiferos, de mara-
vilhas da natureza, de meios de transporte, de obras de arte e de
outros tesouros catalogados de todo 0mundo. 0 chiste de Godard
parodia, nitidamente, a magia equivoca da imagem fotografica.As
fotos sao,talvez,os mais misteriosos de todos os objetos que com-
poem eadensam 0ambiente que identificamos como moderno.As
fotos sao,de fato,experiencia capturada, e a camera e 0brace ideal
da consciencia, em sua disposicao aquisitiva.Fotografar e apropriar-se da coisa fotografada. Significa por a
simesmo em determinada relacao com 0mundo, semelhante ao
conhecimento - e,portanto, ao poder. Supoe-se que uma queda
primordial-e malvista, hojeem dia- naalienacao,a saber,acos-
tumar aspessoasa resumir 0mundo na forma de palavras impres-
sas,tenha engendrado aquele excedente de energia faustica e de
dana psiquico necessario para construir as modernas sociedades
inorganicas, Mas a imprensa parece uma forma menos traicoeira
de dissolver0mundo, detransforrna-lo em urn objeto mental, do
que asimagens fotograficas, que fornecem amaior parte do conhe-
cimento que sepossui acerca do aspecto do passado e do alcance
do presente. 0 que esta escrito sobre uma pessoa ou urn fato e ,
declaradamente, uma interpretacao, do mesmo modo que as
rnanifestacoes visuais feitas a mao, como pinturas e desenhos.
Imagens fotografadas nao parecem manifestacoes a respeito do
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mundo, mas sim pedacos dele, miniaturas da realidade que qual-
quer urn pode fazer ou adquirir.
Asfotos, que brincam com a escalado mundo, sao tambem
reduzidas, ampliadas, recortadas, retocadas, adaptadas, adultera-
das.Elasenvelhecem, afetadas pelasmazelashabituais dosobjetos de
papel; desaparecem; tornam-sevaliosase saovendidas e compradas;
sao reproduzidas. Fotos, que enfeixam 0mundo, parecem solicitar
que asenfeixemos tambem, Saoafixadas em albuns, emolduradas e
expostas em mesas,pregadas em paredes, projetadas como diaposi-
tivos. Iornais e revistas aspublicam; a policia as dispoe em ordem
alfabetica; osmuseus asexpoem, os editores ascompilam.
Durante muitas decadas, 0 livro foi0mais influente meio de
organizar (e, em geral, miniaturizar) fotos, assegurando desse
modo sua longevidade, senao sua imortalidade - fotos sao obje-
tos frageis, faceis de rasgar e de extraviar - , e urn publico mais
amplo. A foto em urn livro e,obviamente, a imagem de uma ima-gem.Mas como e,antes de tudo, urn objeto impresso, plano, uma
foto, quando reproduzida em urn livro,perde muito menos desua
caracteristica essencial do que ocorre com uma pintura. Contudo,
o livro nao e urn instrumento plenamente satisfat6rio para por
grupos de fotos em ampla circulacao. A sequencia em que asfotos
devem ser vistas esta sugerida pela ordem das paginas, mas nada
constrange 0 leitor a seguir a ordem recomendada, nem indica 0
tempo a ser gasto em cadafoto. 0 filme Si j'a v a is qua tr e d r omada i-
re s (1966), deChris Maker,urna reflexao argutamente orquestrada
sobre fotos detodos ostipos etemas, sugere urn modo mais sutil emais rigoroso deenfeixar (eampliar) fotos. Tanto a ordem como 0
tempo exato para olhar cada foto sao impostos; e ha urn ganho em
term os de legibilidade visual e impacto emocional . Mas fotos
transcritas em urn filmedeixam de serobjetos colecionaveis, como
ainda sao quando oferecidas em livros.
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, . , . , .
Potos fo rnecem um testemunho. Algo de que ouvimos fala r
mas de que duvidamos parece comprovado quando nos mostram
uma foto. Numa das versoes da sua uti lidade, 0 registro da camera
incrimina. Depois de inaugurado seu uso pela policia par is iense,
no cerco aos CO 11 1 IllU r la rd s , em junho de 1871, as fotos tornaram-se
uma uti l ferramenta dos Estados modernos na vigilancia e no con-
trole desuas populacoes cada vez mais rnoveis . Numa outra versao
de sua utilidade, 0 registro da camera jus tifica. Uma foto equivale
a uma prova incontestavel de que de terminada coisa aconteceu. A
foto pode dis torcer ; mas sempre existe 0 pressuposto de que a lgo
existe, ou exist iu , e era semelhante ao que esta na imagem. Quais-
quer que sejam as l imiracoes (por amadori smo) ou as pretensoes
(por talento artist ico ) do fot6gra fo individual , uma foto - qual -
quer foto - parece te r uma relacao mais inocente, e portanto mais
acurada, com a realidade visivel do que outros objetos mimeticos,
Os virtuoses da imagem nobre, como Alfred Stieglitz e Paul
Strand, que cornpuserarn fotos de grande forca, e inesqueciveis
durante deca'das, ainda tencionavam, antes de tudo, mostrar algo
"que existe", assim como 0 dono de uma Polaroid, para quem as
fotos sao uma forma pratica e rapida de tomar notas, ou 0 foto-
gra fo compulsivo com sua Brownie que ti ra instan taneos como
suvenires da vida cotidiana.
Enquanto uma pintura ou uma descricao em prosa jamais
pod em ser out ra co isa que nao uma interpre tacao est ritamente
selet iva, pode-se tratar uma foto como uma transparencia estri ta-
mente selet iva. Porern, apesar da presuncao de veracidade que con-
fe re autoridade, inte resse e seducao a todas as fotos, a obra que os
fot6grafos produzem nao constitui uma excecao generica ao
cornercio usualmente nebuloso entre arte e verdade. Mesmo
quando osfotografos estao muito mais preocupados em espelhar a
realidade, ainda sao assediados por imperativos de gosto e de cons-
ciencia. Os componentes imensamente talentosos do projeto foto-
gra fico do fina l da decada de 1930 chamado Cont ribu icao para a
Seguranca no Trabalho nas Fazendas (entre osquais estavam Wal-
ker Evans, Dorothea Lange, Ben Shahn, Russel Lee)tiravam inume-
ras fotos frontais de urn de seus meeiros ate seconvencerem de que
haviam captado no filme a feicao exata - a expressao precisa do
ros to da Figura fotografada, capaz de amparar suas pr6prias ideias
sobre pobreza, luz, dignidade, textura, exploracao e geometr ia. Ao
decidir que aspecto dever ia ter uma imagem, aoprefer ir uma expo-
s icao a outra, os fot6grafos sempre impoem padroes a seus temas.
Embora em certo sentido acamera de fa to capture a real idade, enao -
apenas a interprete, asfotos sao uma interpretacao do mundo tanto
quanto as pinturas e os desenhos. Aquelas ocasioes em que t ira r
fotos e relativamente imparcial, indiscriminado e desinteressadonao reduzem 0didati smo da at ividade em seu todo. Essa mesma
passividade - e ubiquidade - do registro fotografico constitui a
"rnensagem" da fotografia, sua agressao,
Imagens que idealizam (aexemplo da maioria das fotografias
de moda e de animais) nao sao menos agressivas do que obras que
fazem da banalidade uma vi rtude (como fotos de turmas escola-
res, naturezas-mortas do t ipo mais arido e re tra tos de frente e de
perfi l de urn cr iminoso). Existe uma agressao implicit a em qual -
quer emprego da camera. Isso esta tao evidente nas duas primeiras
decadas gloriosas da fotografia, 1840e 1850, quanta em todas asde-
cadas seguintes, durante as quais a tecnologia permitiu uma difu-
sao sempre crescente da mental idade que encara 0 mundo como
uma colecao de fotos potenciais. Mesmo para mestres tao pionei-
ros como David Octavius Hil l e Ju lia Margare t Cameron , que usa-
yam a camera como urn meio de obter imagens a manei ra de urn
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pintor, 0 intuito de tirar fotos situava-se a uma grande distancia
dos propositus dos pintores. Desde 0seu inicio, a fotografia impli-
cava a captura do maior numero possivel de temas. A pintura
jamais teve urn objetivo tao imperioso. A subsequente industriali-
zacao da tecnologia da camera apenas cumpriu uma promessa
inerente a fotografia, desde 0 seu inicio: democratizar todas as
experiencias ao traduzi-las em imagens.
Aquelaepoca em que tirar fotos demandava urn aparato caro
e complicado - 0passaternpo dos habeis, dos ricos e dos obsessi-
vos- parece, defato, distante daera das comodas cameras debol-
soque convidam qualquer um a tirar fotos. Asprimeiras cameras,
feitasna Franca ena Inglaterra no inicio da decada de 1840,so con-
tavam com os inventores e os aficionados para opera-las. Uma vez
que, na epoca, nao existiam fotografos profissionais, nao poderia
tampouco ha eramadores, e t irar fotos nao tinha nenhuma uti li-
dade social clara; tratava-se de uma atividade gratuita, ou seja,
artistica, embora com poucas pretensoes a ser uma arte. Foi apenas
com a industrializacao que a fotografia adquiriu a merecida repu-
tacao de arte. Assim como a industrial izacao propiciou os usos
sociaispara asatividades do fotografo, a reacao contra esses usos re-
forcou a consciencia da fotografia como arte.
Em epoca recente, a fotografia tornou-se urn passatempo
quase tao difundido quanto 0sexoe adanca - 0que significaque,
como toda forma dearte demassa, a fotografia nao epraticada pela
maioria das pessoas como uma arte. E sobretudo urn rito social,
uma protecao contra a ansiedade e um instrumento de poder.
Comemorar as conquistas de individuos tidos como mem-
bros da familia (etarnbem de outros grupos) eo usa popular mais
antigo da fotografia. Durante pelo menos urn seculo a foto de casa-
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mento foiuma parte dacerimonia tanto quanta asformulas verbais
prescritas. As cameras acompanham avida da familia. Segundo urn
estudo sociologico feito na Franca, a maioria das casas tern urna
camera, mas as casas em que ha criancas tern uma probabilidade
duas vezes maior de ter pelo menos urna camera, em comparacao
com as casas sem criancas. Nao tirar fotos dos filhos, sobretudo
quando pequenos, e sinal de indiferenca paterna, assim como nao
comparecer a foto de formatura e urn gesto de rebeldia juvenil.
Por meio de fotos, cada familia constroi urna cronica visualde
simesma - urn conjunto portatil de imagens que da testemunho
da sua coesao. Pouco importam as atividades fotografadas, con-
tanto que as fotos sejam tiradas e estimadas. A fotografia setorna
urn rito da vida em familia exatamente quando, nos paises em
industrializacao na Europa e na America, a propria instituicao da
familia corneca a sofrer uma reformulacao radical. Ao mesmo
tempo que essa unidade claustrofobica, a familia nuclear , eratalhada de urn bloco familiar muito maior, a fotografia sedesenvol-
via para celebrar, e reafirmar simbolicamente, a continuidade
ameacada ea decrescente amplitudeda vida familiar. Essesvestigios
espectrais, as fotos, equivalem a presenca simbolica dos pais que
debandaram. Urn album de fotos de familia e, em geral, urn album
sobre a familia ampliada - e,muitas vezes,tudo 0que dela resta.
Assim como asfotos dao aspessoas a posse imaginaria deum
passado irreal, tambem asajudam atomar posse deum espaco em
que se acham inseguras. Assim, a fotografia desenvolve-se na
esteira de uma das atividades modern as mais tipicas: 0turismo.
Pela primeira vez na historia, pessoas viajam regular mente, em
grande numero, para fora de seu ambiente habitual, durante bre-
ves periodos. Parece decididamente anormal viajar porprazer sem
levar uma camera. As fotos oferecerao provas incontestaveis de
que a viagem serealizou, de que a programacao foi cumprida, d~
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que houve diversao. Asfotos documentam sequencias de consumo
realizadas longe dos olhos da familia, dos amigos, dos vizinhos.
Mas adependencia da camera, como 0equipamento que torna real
aquilo que a pessoa vivencia, nao seenfraquece quando as pessoas
viajam mais. Para os sofisticados que acumulam fotos-trofeus de
sua viagem de navio rio acima pelo Nilo, ate 0lago Alberto, ou de
seus catorze dias na China, tirar fotos preenche a mesma necessi-dade dos veranistas de classe media baixa que fotografam a torre
Eiffelou as cataratas do Niagara.
Urn modo de atestar a experiencia, tirar fotos e tambem urna
forma derecusa-la- aolimitar a experiencia a uma busca do foto-
genico, ao converter a experiencia em uma imagem, urn suvenir.
Viajar setorna uma estrategia de acumular fotos. A propria ativi-
dade de tirar fotos e tranquilizante e mitiga sentimentos gerais de
desorientacao que podem ser exacerbados pela viagem. Os turis-
tas,em sua maioria, sentem-se compelidos a por a camera entre si
mesmos e tudo de notavel que encontram. Inseguros sobre suas
reacoes, tiram uma foto. Issoda forma a experiencia: pare, tire uma
foto eva em frente. 0 metodo atrai especialmente pessoas subme-
tidas a uma etica cruel de trabalho - alernaes, japoneses e ameri-
canos. Usar uma camera atenua a angustia que pessoas submetidas
ao imperativo do trabalho sentem por nao trabalhar enquanto
estao deferias, ocasiao em que deveriam divertir-se. Elastern algo a
fazerque e uma imitacao amigavel do trabalho: podem tirar fotos.
Pessoas despojadas de seu passado parecem redundar nos
mais fervorosos tiradores de fotos, em seu pais e no exterior. Todosque vivem numa sociedade industrializada sao gradualmente
obrigados a desistir do passado, mas em certos paises, como Esta-
dos Unidos e Iapao, a ruptura com 0passado foi especialmente
traumatica. No inicio da decada de 1970, a lenda do turista ameri-
cano atrevido, dos anos 50e 60, cheio de d6lares e de vulgaridade,
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foi substituida pelo misterio do turista japones, que selocomove
em grupos, recentemente liberto desua ilha-prisao gracas aomila-
gre do iene sobrevalorizado, em geral munido de duas cameras,
uma em cada lado do corpo.
A fotografia tornou-se urn dos principais expedientes para
experimentar alguma coisa, para dar uma aparencia de participa-
c;:ao.Urn amincio de pagina inteira mostra urn pequeno grupo de
pessoas de pe, apertadas umas contra asoutras, olhando para fora
da foto, e todas, excetouma, parecem espantadas, empolgadas, afli-
tas. 0 unico que tern uma expressao diferente segura urna camera
junto ao olho; ele parece seguro de si,quase sorrindo. Enquanto os
demais saoespectadores passivos, nitidamente alarmados, ter urna
camera transformou uma pessoa em algo ativo, urn voyeur: s6 ele
dominou asituacao. 0 queveem essaspessoas?Nao sabemos.E nao
importa. E urn Evento: algodigno desever - eportanto digno de
sefotografar. 0 texto do amincio, letras brancas ao longo da faixa
escura que corresponde aoterco inferior da foto, como noticias que
chegam por uma maquina deteletipo, consiste em apenas seispala-
vras: "...Praga ...Woodstock ...Vietna ...Sapporo ...Londonderry ...
LEICA" . Esperancas esmagadas, farras de jovens, guerras coloniais e
esportes de inverno sao semelhantes - igualados pela camera.
Tirar fotos estabeleceu uma relacao voyeuristica cronica com 0
mundo, que nivela0significado de todos os acontecimentos.
Uma foto nao e apenas 0resultado de urn encontro entre urn
evento e urn fot6grafo; t irar fotos e urn evento em si mesmo, e
dotado dos direitos mais categ6ricos - interferir, invadir ou igno-rar, nao importa 0que estiver acontecendo. Nosso proprio senso
de situacao articula-se, agora, pelas intervencoes da camera. Aoni-
presenca de cameras sugere, de forma persuasiva, que 0tempo
consiste em eventos interessantes, eventos dignos de ser fotografa-
dos. Isso, em troea, torna facil sentir que qualquer evento, urna vez
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em curso, e qualquer que seja seu carater moral, deve ter caminho
livre para prosseguir ate se completar - de modo que outra coisa
possa vir ao mundo: a foto. Ap6s 0 f im do evento, a foto ainda exis-
tira, conferindo ao even to uma especie de imortalidade (e de
import3.ncia) que deoutro modo de jamais desfrutaria. Enquanto
pessoas reais estao no mundo real matando a si mesmas ou
matando outras pessoas rea is, 0 fot6grafo se poe arras de sua
camera , c riando um pequeno elemento de outro mundo: 0mun-
do-imagern, que promete sobreviver a todos n6s .
Fotografar e , em essen cia, um ato de nao-intervencao, Parte
do horror de lances mernoraveis do fotojornalismo contempora-
neo, como a foto do monge vietnamita que segura uma lata de
gasollna, a de urn guerr ilheiro bengali no instante em que golpeia
com a baioneta um traidor arnarrado, decorre da consciencia de
que se tornou aceitavel em situacoes em que 0 fot6gra fo tern de
escolher entre uma foto e uma vida, opta pe1a foto. A pessoa que
interfere nao pode registrar; a pessoa que registra nao pode inter-
fer ir . 0 famoso filme de Dziga Viertov, Urn homem com urna cd-
meta (1929), oferece a imagern ideal do fot6grafo como alguem em
perpetuo rnovimento, alguern que se desloca em urn panorama de
e entos dispares com tamanha agilidade e rapidez que qualquer
inte rvencao esta fora de questao. [ a ne la i nd is c re ta (1954) de
Hitchcock, oferece a imagem complementar: 0 fot6grafo repre-
sentado por James Stewart tern uma relacao intensificada com
determinado even to, por meio da sua camera, j ustamente porque
esta com a perna quebrada e confinado a uma cadeira de rodas;
estar temporariamente irnobilizado 0impede de agi r sobre aquilo~
que ve e torna ainda mais importante tirar fotosjMesmo que
incornpat ivel com a intervencao, num sentido fisico, usar uma
camera e ainda uma forma de par t icipacao. Embora a camera se ja
um posto de observacao, 0 ate de fotografar e mais do que uma
observacao passiva. A exemplo do voyeurismo sexual, e urn modo
22
de, pelo menos tacitamente, e nao raro explicitamente, estimular 0
que estiver acontecendo a continuar a acontecer . Tirar uma foto e
ter urn interesse pe las coi sas como elas sao, pela permanencia do
s ta tu s q uo (pelo menos enquanto for necessario para tirar uma
"boa" foto) , ees tar em cumplicidade com 0que quer que tome urn
tema interessante e digno de se fotogra far - a te mesmo, quando
for esse 0 foco de interesse, com a dor e a desgraca de outra pessoa.
"Sernpre pensei em fotografia como uma maldade - e esse
era urn de seus pontos prediletos, para mim", escreveu Diane
Arbus , "equando fotografei pela primeira vez,me senti muito per-
versa." Serurn fot6grafo profiss ional pode ser encarado como algo
maldoso, para usar 0termo de Darbus, se 0fot6grafo procura
temas considerados indecorosos, tabus, marginais. Mas temas
maldosos sao mais dificeis de encontra r hoje em dia. Eo que vern
a ser, exatamente, 0 aspecto perverso de tirar fotos? Se os fot6gra-
fos profissionais tern, muitas vezes, fantasias sexuais quando estao
atras da camera, t alvez a perversao resida no fato de que essas fan-
tas ias sejam, ao mesmo tempo, plaus iveis e muito impr6prias. Em
B lo w u p (D ep o is d a qu el e b e ij o) (1 9 66 )" An to n io n i leva urn foto-
grafo de moda a rondar convulsivamente em torno do corpo de
Veruchca, com a camera a clicar. Maldade, de fato! Com efeito, usar
uma camera nao e urn modo muito born de aproximar-se sexua l-
mente de alguem. Entre 0fot6grafo eseu tema, tern de haver distan-
cia.A camera nao estupra, nem mesmo possui, embora possa atre-
ver-se, intrometer-se, atravessar, distorcer, explorar e, no extrema
da metafora, assassinar - todas essas atividades que, diferen-
temente do sexo propriamente di to, podem ser levadas a efe ito a ,
distancia e com certa indiferenca,
Exis te uma fantasia sexual muito mais for te no extraordina-
r io fume de Michael Powell int itulado A to rtura d o m ed o (1 96 0),
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que nao trata de urn voyeur, como 0 titulo sugere, mas de urn psi>
copata que mata mulheres com uma arma oculta em sua camera,
enquanto as fotografa. Ele nao encosta nem uma vez em seus
temas. Nao deseja seus corpos; quer a presenca delas na forma de
imagens em filme- asimagens que asmostram experimentando
a propria morte -, que ele projeta numa tela, em casa, para seu
prazer solitario. 0 filme supoe uma ligacao entre impotencia e
agressao, entre 0olhar profissionalizado e a crueldade, que aponta
para a fantasia central, ligada a camera. A camera como falo e , no
maximo, uma debil variante da metafora inevitavel que todos
empregam de modo desinibido. Por mais que seja nebulosa nossa
consciencia dessa fantasia, ela e mencionada sem sutileza toda vez
que falamos em "carregar" e"mirar" a camera, em"disparar" a foto.
A camera de modelo antigo era mais dificil e mais complicada
de recarregar do que urn mosquete Bess.Acamera moderna tenta
ser uma arma de raios. Diz urn amincio:
AYashicaElectro-3 5 GT e acamera da eraespacialquesua familiavai
adorar, Tira fotos lindas, de diaou denoite.Automaticamente. Sem
nenhuma complicacao, E so mirar, focalizare disparar. 0 cerebro
eletronico da GT e seuobturador eletronico farao 0 resto.
Tal qual urn carro, uma camera e vendida como arma predatoria
- 0mais automatizada possivel, pronta para disparar. 0 gosto
popular espera uma tecnologia facil e invisivel. Os fabricantes
garantem a seus clientes que tirar fotos nao requer nenhuma habi-
lidade ou conhecimento especializado, que a maquina ja sabe tudoe obedece a mais leve pressao da vontade. E tao simples como virar
a chave de ignicao ou puxar 0gatilho.
Como armas e carros, as cameras sao maquinas de fantasia
cujo uso e viciante. Porem, apesar das extravagancias da lingua-
gem comum e da publicidade, nao sao letais. Na hiperbole que
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vende carros como sef~em armas, existepelo menos estaparcela
deverdade: exceto em tempo deguerra, oscarros matam mais pes-
so~sdo que asarmas.A camera/arma nao mata, portanto a meta-
fora agourenta parece nao passar de urn blefe - como a fantasia
masculina deter uma arma, uma faca ou uma ferramenta entre as
pernas. Ainda assim, existe algo predatorio no ato de tirar uma
foto. Fotografar pessoas e viola-las, ao ve-las como elas nunca seveern, ao ter delas urn conhecimento que elas nunca podem ter;
transforma aspessoas em objetos que podem ser simbolicamente
possuidos. Assim como a camera e uma sublimacao da arma, foto-
grafar alguem e urn assassinato sublimado - urn assassinato
brando, adequado a uma epoca triste e assustada.
No fim, aspessoas talvez aprendam a encenar suas agressoes
mais com cameras do que com armas, porem 0preco disso sera urn
mundo ainda mais afogado em imagens. Urn caso em que aspes-
soasestao mudando debalas para filmes e 0safari fotografico, que
esta tomando 0lugar do safari na Africa oriental. Os cacadores
levam Hasselblads em vez de Winchesters; em vez de olhar por
uma mira telescopica a fim de apontar urn rif le , olham atraves de
urn visor para enquadrar uma foto. Na Londres do final do seculo
XIX, Samuel Butler sequeixava de que havia "urn fotografo em cada
arb usto, rondando como urn leao feroz, em busca de alguem que
possa devorar" 0 fotografo, agora, ataca feras reais, sitiadas e raras
demais para serem mortas. As armas se metamorfosearam em
cameras nessa comedia seria, 0safari ecologico, porque a natureza
deixou de ser 0que sempre fora - algo de que aspessoas precisa-yam seproteger. Agora, a natureza - domesticada, ameacada,
mortal- precisa ser protegida das pessoas. Quando temos medo,
atiramos, mas quando ficamos nostalgicos, tiramos fotos.
A epoca atual e de nostalgia, e os fotografos fomentam, ativa-
mente, a nostalgia. A fotografia e uma arte elegiaca, uma arte ere-
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puscular, A maio ria dos ternas fotografados tern, justamente em
vir tude de serem fotografados, um toque de pathos . Urn tema feio
ou grotesco pode ser comovente porque foi honrado pela atencao
. do fotografo. Urn tema bela pode ser objeto desentimentos pesaro-
sos porque envelheceu ou decaiu ou nao existe mais. Todas as fotos
sao memento m a r i o Tirar uma foto e participar da mortalidade, da
vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Ius-ta rnenre por corta r uma fat ia desse momento e congela-la , toda
foto testemunha a dissolucao implacavel do tempo.
Ascameras cornecaram a duplicar 0mundo no momento em
que a pa isagem humana passou a experimenta r urn ritmo vertigi-
noso detransforrnacao: enquanto urna quantidade incalculavel de
formas de vida biologicas e sociais e destruida em urn curto espaco
de tempo, um aparelho setorna acess ivel para registrar aquilo que
esta desaparecendo. A melancolica Paris, de textura intricada, de
Atget e Brassa i, desapareeeu em sua maior parte. A exemplo dos
parentes e amigos mortos, preservados no a lbum de famili a, cu ja
presenca em fotos exoreiza uma parte da angustia e do remorso
inspirados por seu desaparecimento, as fotos dos arrabaldes agora
devas tados, das regi6es rurais desf iguradas e arrasadas, suprem
nossa relacao portati l eom 0 passado.
Uma foto e tanto uma pseudopresenca quanto uma prova de
ausencia. Como 0 fogo da lareira num quarto, as fotos - sobre-
tudo asde pessoas, de paisagens dis tantes e de cidades rernotas, do
passado desaparecido - sao esr irn ulos para 0sonho. 0 sentido do
inat ingive l que pode ser evocado por fotos a limenta , de forma di-
reta, sentimentos eroricos nas pessoas para quem a desejabil idade
e in tensifi cada pela distanc ia. A foto do amante escondida na car-
teira de uma mulher casada, 0cartaz de um astro do rock pregado
acima da carna de um adolescente, 0 broche de carnpanha, com 0
rosto de um polit ico, pregado ao paleto de urn e lei tor, a s fotos dos
filhos de um rnotori st a de taxi coladas no pa ineI do carro - todos
esses usos tali smanicos das fotos exprimem uma emocao sen ti-
mental e urn sentimento implici tamente magico: sao tentativas de
contatar ou de pleitear outra realidade.
Asfotos podem incitar 0desejo da mane ira mais dire ta e uti-l ita ria - como quando uma pessoa colec iona fotos de exemplos
anonimos do dese jave l com 0 fim de ajudar a masturbacao. 0
assunto e mais complexo quando as fotos sao usadas para est imu-
lar 0 impulso moral. 0 desejo nao tern historia - peIo menos eIe
e experimentado, em cada momento, como algo total mente em
primeiro plano, imediato. E susc it ado por meio de arquet ipos e e ,
nesse sentido, abstrato . Mas os sentimentos mora isestao embuti-
dos na histor ia, cujos personagens sao concretos , cujas s ituacoes
sao sempre especif icas . Ass im, regras quase opostas sao validas
quando se tra ta do emprego das fotos para despertar 0desejo e
para despertar a consc ienc ia. As imagens que mobili zam a cons-
ciencia estao sempre ligadas a de terrninada si tuacao historica.
Quanto mais genericas forem, menor a probabilidade de serem
efieazes.
Uma foto que traz noticias de uma insuspeitada regiao de
miseria nao pode deixar marca na opiniao publica, a menos que
exista um contexto apropriado de sentimento ede ati tude. As fotos
t iradas por Mathew. Brady e seus colegas dos horrores nos campos
de batalha nao diminuirarn em nada 0 entusiasmo das pessoas
para levar adiante a Guerra Civil . Asfotos de prisioneiros esquele-
tieos e esfarrapados em Andersonville inflamaram a opiniao
publica dos nortistas - contra 0SuI. (0 efeito das fotos de Ander-
sonvil le talvez se deva, em parte, a propria novidade que era, na
epoca, ver fotos.) A compreensao polit ica a que muitos america -
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nos haviam chegado na decada de 1960 lhes permitiu, ao olhar
para as fotos, tiradas po~e descendentes de
japoneses sendo transport ados para campos de prisioneiros na
costa oeste dos Estados Unidos em 1942, reconhecer qual era.de
fato 0tema das fotos - urn crime cometido pelo governo contra
urn grupo numeroso de cidadaos americanos. Poucas pessoas que
viram essas fotos na decada de 1940poderiam ter uma reacao tao
inequivoca: 0espaco para taljulgamento estava ocupado pelo con-
senso afavor daguerra. Fotos nao podem criar uma posicao moral,
mas podem reforca-la - e podem ajudar a desenvolver uma posi-
cao moral ainda embrionaria.
Fotos podem ser mais mernoraveis do que imagens em movi-
mento porque sao uma nitida fatia do tempo, e nao urn fluxo. A
televisao e urn tluxo de imagens pouco selecionadas, em que cada
imagem cancela a precedente. Cada foto e urn momento privile-
giado, convertido em urn objeto diminuto que as pessoas podemguardar e olhar outras vezes.Fotos como a que esteve na primeira
pagina de muitos jornais do mundo em 1972- uma crianca sul-
vietnamita nua, que acabara de ser atingida por napalm ameri-
cano, correndo por uma estrada na direcao da camera, de braces
abertos, gritando de dor - provavelmente contribuiram mais
para aumentar 0 repudio publico contra a guerra do que cern
horas de barbaridades exibidas pela televisao,
Seria born imaginar que 0 publico america no nao teria se
mostrado tao unanime em seu apoio a Guerra da Coreia setivesse
deparado com provas fotograficas da devastacao da Coreia, urn
ecocidio e urn genocidio, em certos aspectos, ainda mais completo
do que 0 intligido aoVietna uma decada depois. Mas a suposicao e
irrelevante. 0publico nao viu tais fotos porque nao havia, ideolo-
gicamente, espacropara elas. Ninguem trouxe para sua terra natal
fotos da vida cotidiana em Pionguiang, para mostrar que 0 ini-
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migo tinha urn rosto humano, a exemplo das fotos que FeliX
Greene e Marc Riboud trouxeram de Hanoi. Osamericanos live-
ram acesso a fotos do sofrimento dos vietnamitas (muitas delas
vinham de fontes militares e foram tiradas com intuitos bem dife-
rentes) porque os jornalistas sentiam-se respaldados em seus
esforcos para obter tais fotos, visto que 0evento fora definido por
urn numero significativo de pessoas como uma feroz guerra co lo -
nialista. AGuerra da Coreia foi entendida deoutra forma- como
parte da justa luta do Mundo Livre contra a Uniao Sovietica e a
China -, e,admitida essacaracterizacao, asfotos dacrueldade do
ilimitado poder de fogo americano nao seriam pertinentes.
Embora urn evento tenha passado a significar,exatamente,algo
digno de sefotografar, ainda e a ideologia (no sentido mais amplo)
que determina 0que constitui urn evento.Nao podeexistirnenhuma
prova, fotografica ou deoutro tipo, deurn eventoantes que0proprio
evento tenha sido designado e caracterizado como tal. E jamais e aprova fotografica que pode construir- maisexatamente,identificar
- oseventos; a contribuicao da fotografia semprevem aposa desig-
nacao de urn evento. 0que determina a possibilidade de ser moral-
mente afetado por fotos e a existencia de urna consciencia politica
apropriada. Semuma visao politica, asfotosdo matadouro dahisto-
ria serao,muito provavelmente,experimentadasapenascomoirreais
ou como urn choque emocional desorientador.
Anatureza do sentimento, ate de ofensamoral, que aspessoas
podem manifestar em reacao a fotos dos oprimidos, dos explo-
rados, dos famintos e dos massacrados depende tambem do
grau de familiaridade que ten ham com essas imagens.As fotos de
Don McCullin 9 0 S biafrenses magerrimos no inicio da decada
de 1970produziram menos impacto, para alguns, do que asfotosde
Werner Bischof das vitimas indianas da fome no inicio da decada
de 1950, porque estas imagens tornaram-se banais, e as fotos das
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familias de tuaregues que morriam de fome na Africa subsaariana,
publicadas em revistas de todo 0mundo em 1973, devem ter pare-
cido, a muitos, uma reprise insuportavel de uma exibicao de atro-
cidades agora ja familiar.
Fotos chocam na proporcao em que mostram algo novo.
Infelizmente,o custo disso nolo p ara de subir - em parte, por
conta da mera proliferacao dessas imagens de horror. 0 primeiro
contato de uma pessoa com 0 inventario fotografico do horror
supremo e uma especie de revelacao, a revelacao prototipicamente
moderna: uma epifania negativa. Para mim, foram as fotos de Ber-
gen-Belsen ede Dachau com que tope i por acaso numa l ivra ria de
Santa Monica em julho de 1945. Nada que tinha visto - em fotos
ou na vida real - me ferira de forma tao contundente, tao pro-
funda, tao instanranea. De fato, parece- me plausivel dividir minha
vida em duas partes, antesde ver aquelas fotos (eu tinha doze anos)
edepois, embora isso tenha ocorr ido rnuitos anos antes de eu com-
preender plenamente do que elas tratavam. Que bem me fez ver
essas fotos? Eram apenas fotos - de um evento do qual eu pouco
ouvira falar e no qual eu nao podia interferir, fotos de urn sofri-
mento que eu mal conseguia imaginar e que eu nao podia aliviar
de maneira alguma. Quando olhei para essas fotos , algo se partiu.
Algum limite foi atingido, e nolos6 0 do horror; senti-me irreme-
diavelrnenre afl ita, fer ida, mas uma parte de meus sentimentos
cornecou a sereresar : algo morreu; algo ainda esta chorando.
Sofrer e uma coisa; outra coisa e viver com imagens fotogra-
ficas do sofrimento, 0 que noloreforca necessaria mente a conscien-
cia e a capacidade de ser compassivo. Tarnbern pode corrompe-las.
Depois dever tais imagens , a pessoa tern aberto a sua frente 0carni-
nho para ver mats - e cada vez mais. As imagens paralisam. As
unagens anestesiam. Um evento conhec ido por meio de fo tos cer-
tarnente se torna mai real do que seria se a pessoa jamais tivesse
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visto as fotos - pensem na Guerra do Vietna, (Para UIIl contra-
exemplo, pensem no arquipelago de Gulag, do qual nao temos
nenhuma foto.) Mas, apos uma repet ida exposicao a imagens, 0
evento tambem setorna menos real.
A mesma lei vigora para 0mal e para a fo togra fia. 0 choque
das atrocidades fotografadas sedesgasta com a exposicao repetida,
assim como a surpresa e 0desnorteamento sentidos na primeira
vez em que seve um filme pornograf ico sedesgastam depois que a
pessoa ve mais a lguns. 0 sent imento de tabu que nos de ixa indig-
nados e pesarosos nao e muito mais vigoroso do que 0sentimento
de tabu que rege a definicao do que e obsceno. E ambos tern s ido
experimentados de forma dolorosa em anos recentes. ovasto cata- .logo fotografico da desgraca e da injus tica em todo 0mundo deu a
todos cer ta familiaridade com a atrocidade, levando 0horrivel a
parecer mais comum -levando~o a parecer familiar , dis tante ("e
so uma foto"), inevitave l, Na epoca das pr imeiras fotos dos cam-pos nazistas, nada havia de banal nessas imagens. Ap6s trinta anos,
t alvez tenhamos chegado a um ponto de saturacao, Nas ul timas
decadas, a fotografia "consciente" fez, no minimo, tanto para
amortecer a consciencia quanto fez para desperta-la,
o conteudo etico das fotos e fragil, Com a possivel excecao das
fotos daqueles horrores, como os campos nazistas,que adquiriram
a condicao de pontos de refe renc ia et icos, a maioria das fotos nao
conserva sua carga emociona l. Uma foto de 1900 que , na epoca,
produziu urn grande efeito por causa de seu tema, hoje, provavel-
mente, nos comoveria por ser uma foto tirada em 1900. Osatribu-
to s e os intu itos especi ficos das fo tos tendem a ser engol idos pe lo
pathos generalizado do tempo preterito.A distancia estetica parece
inserir-se na propria experiencia de olhar fotos, quando nio de
fo rma imediata, ce rtamente com 0correr do tempo. No fim, 0
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tempo termina por situar amaio ria das fotos, mesmo as mais ama-
doras, no nivel da arte.
A industrializacao da fotografia permitiu sua rapida absorcao
pelos meios racionais - ou seja, burocraticos - de gerir a socie-
dade. As fotos, nao mais imagens de brinquedo, tornaram-se parte
do mobiliario geral do ambiente - pedras de toque e confirmacoes
da redutora abordagem da realidade que e tida por realista. Asfotos
foram arroladas a service de importantes instituicoes de controle,
em especial a familia e a policia, como objetos simb6licos e como
fontes deinformacao.Assim, na catalogacao burocratica do mundo,
muitos documentos importantes nao sao validos a menos que
tenham, colada aeles,uma foto comprobat6ria do rosto do cidadao,
A visao "realista" do mundo compativel com a burocracia
redefine0
conhecimento - como tecnica e inforrnacao, As fotossao apreciadas porque dao inforrnacoes. Dizem 0que existe; fazem
urn inventario, Para os espioes, os meteorologistas, os medicos-
legistas, os arqueologos e outros profissionais da informacao, seu
valor e inestimavel. Mas, nas situacoes em que a maioria das pes-
soas usa as fotos, seu valor como informacao e da mesma ordem
que 0 da ficcao. A inforrnacao que as fotos podem dar comeca a
parecer muito importante naquele momento da hist6ria cultural
em que todos se supoern com direito a algo chamado noticia. As
fotos foram vistas como urn modo 'de dar inforrnacoes a pessoas
que nao tern facilidade para ler . 0 Daily News ainda se denomina
"Iornal de Imagens de Nova York",sua maneira de alcancar uma
identidade populista, No extremo oposto do espectro, L e Mo n de ,
urn jornal destinado a leitores preparados e bern informados, nao
publica foto nenhuma. A suposicao e que, para tais lei tores, uma
foto poderia apenas ilustrar a analise contida em uma materia.
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Urn novo significado da ideia de informacao construiu-se em
torno da imagem fotografica , Afoto e uma fina fatia deespaco bern
como de tempo. Num mundo regido por imagens fotograficas,
todas as margens ("enquadramento") parecem arbitrarias, Tudo
pode ser separado, pode ser desconexo, de qualquer coisa:basta
enquadrar 0tema de urn modo diverso. (Inversamente, tudo pode
ser adjacente a qualquer coisa.) A fotografia reforca urna visao
nominalista da realidade social como constituida de unidades
pequenas, em mimero aparentemente infinito - assim como 0
numero de fotos que podem ser tiradas de qualquer coisa e ilimi-
tado. Por meio de fotos, 0mundo setorna urna serie de particulas
independentes, avulsas; e a historia, passada e presente, setorna
urn conjunto de anedotas e de f a it s d i v er s .A camera torna a reali-
dade atomica, manipulavel e opaca. E uma visao do mundo que
nega a inter- relacao, a continuidade, mas confere a cadamomento
o carater de misterio. Toda foto tern multiples significados; defato,veralgo na forma de uma foto e enfrentar urn objeto potencial de
fasdnio. A sabedoria suprema da imagem fotografica e dizer: "Ai
esta a superficie. Agora, imagine _:. ou, antes, sinta, intua - 0que
esta alem, 0que deveser a realidade, seelatern esteaspecto" Fotos,
que em simesmas nada podem explicar, sao convites inesgotaveis
a deducao, a especulacao e a fantasia.
A fotografia da a entender que conhecemos 0mundo se 0
aceitamos tal como a camera 0 registra. Mas isso e 0 contrario de
compreender, que parte de nao aceitar 0mundo tal como eleapa-
renta ser. Toda possibilidade de compreensao esta enraizada nacapacidade de dizer nao. Estri tamente falando, nunca secom-
preende nada a partir de uma foto. E claro, as fotos preenchem
lacunas em nossas imagens mentais do presente e do passado: por
exemplo, as imagens de Jacobs Riis da miseria de Nova Yorkna
decada de 1880saoextremamente instrutivas para quem nao sabe
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que a pobreza urbana nos Estados Unidos no fim do seculo X IX e ra
de fato dickensiana. Contudo, a representacao da realidade pe Ia
dimera deve sempre ocultar mais do que revela. Como assinala
Brecht, uma foto da fabrica Krupp nao revelaquasenadaarespeito
dessa organizac;:ao.Em contraste com a relacao amorosa, que se
ba eia naaparencia, a cornpreensao sebaseia no funcionamento.B
o funcionamento seda no tempo edeve serexplicado notempo.S6
o que narra pode levar -nos a compreender,
o Limitedo conhecimento fotografico do mundo e que, con-quanto p a incitar a consciencia,jamaisconseguiraserumconhe-
cimento etico ou pol[rico.0 conhecimento adquirido por meio d e
foro era ernpre urn tipo de sentirnental ismo, seja ele cinico ou
humani taoHa de er urn conhecimento barateado- umaaparen-
ciade conhecimento, LImaaparencia de sabedoria;assimcomooato
de tirar foto e urna aparencia de apropriacao, uma aparencia d e
e tupro.A pr6pria mudezdoqueseria,hipoteticamente,compreen-
ivel na foto eo que con titui seu carater atraente e provocador.Aonipre en a das foto produz urn efeito incalculavel em nossa sen-
ibilidade etica.A munire temundo.ja abarrotado,deumadupli-
cata d mundo feita de imagens, a fotografia nos faz sentir que 0
mundo e mai aces [veldo que e na realidade.
A neces idade de confirmar a realidade e de realcar a expe-
riencia por meio de fotos e urn consumismo estetico em quetodos,
hoje, e tao viciad s . A s ociedades industriais transformam seus
cidada em dependen le de imagens; e a mais irresistivel forma d e
poluicao mental. Urn pungente anseio de beleza,de urn prop6siwpara ondar abaixo da uperficie.de uma redencao e celebracaode
corpo do mundo - todos es e elementos do sentimento er6tico
ao afirmados no prazer que temos com as fotos. Mas outrossen-
timentos, meno liberadores, tarnbern se expressam. Nio seria
errado falar de pessoas que tern uma c ompu l sao de fotografar~
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transformaraexperi~nciaemsinummododever.Porfun,teruma
experiencia setorna identico a tirar dela uma foto, e participar de
urn evento publico tende, cada vez mais, a equivaler a olhar para
ele,em forma fotografada. Mallarme, 0mais 16gicodos estetas do
seculo XIX, disse que tudo no mundo existe para terminar num
livro. Hoje, tudo existe para terminar numa foto.
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