50 anos depois, quem se importa?

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Memória EVLYN LOUISE ZILCH O s anos de chumbo, como conhecido por parte de quem viveu o Regime Militar, marcou profun- damente homens e mulheres e suas vidas foram transformadas. Mas não somente as vidas dos anos 60. O período mudou tudo o que aconteceria no fu- turo. 50 anos depois, os acontecimentos permaneceram na memória dos brasileiros. Homens e mulheres jovens ou nem tão jovens. O que ficou em suas lembranças? Guilherme Lima de Quadros tem 23 anos, vive em São Leopoldo e trabalha em Porto Alegre com seu pai. Ape- sar de conhecer pessoas que sofreram no período, pensa que de alguma forma o retorno ao regime ditatorial po- deria ser positivo. “Fico dividido se a ditadura foi um período de certa forma bom ou não. Sei que muitas pessoas desaparece- ram e foram censuradas. Meu tio, por exemplo, foi in- terrogado diversas vezes e acusado de comunista. Mas também, pelo que escuto das gerações mais antigas, as coisas funcionavam. Não havia tanto vandalismo. E hoje, mesmo que pareça que vivamos em uma democracia, nada de fato mudou, já que as grandes emissoras con- tinuam manipulando e censurando informações. É uma ditadura encoberta”. A estudante de Educação Física da Unisinos, Mônia Zilch, 26, é ainda mais enfática. “Para mim, a ditadura poderia retornar. Em um país como o Brasil, onde tudo está errado, é necessário radi- calismo para mudar as coisas”. Mateus Pinto Pereira é estudante do ensino médio e tem 19 anos. Para ele, o governo deveria exercer mais sua autoridade. “Ouvi coisas muito terríveis sobre a ditadura, prin- cipalmente em respeito à violência e à tortura. Acredito que a ditadura até poderia retornar, porém de uma forma muito diferente, onde não houvesse a violência extre- ma, física, emocional e psicológica que foi praticada. O país precisa de pulso firme, mas também de respeito”. Para quem viveu os anos de chumbo a opinião é dife- rente. O professor aposentado de Filosofia Laurício Neu- mann, 67 anos, de São Paulo das Missões, foi sequestra- do, interrogado e torturado por militares na ditadura. Ele deixa claro quais os motivos para crer que a ditadura nunca mais pode retornar ao país. “Em 1968, com 21 anos, vim para Viamão, para a faculdade de filosofia. Chegar lá era como ter a faca e o queijo na mão. Era tudo o que eu sonhava, o que eu queria, mas, ao mesmo tempo, não tinha clareza. Um mundo fascinante de abertura a tudo e assim comecei a participar do diretório de estudantes... Era tudo o que eu sonhava e queria na vida. Oportunidades, possibili- dades, espaços.” Assim Laurício inicia sua história. É um dos autores da Revista Mundo Jovem, que existe até hoje. Esta revista, que tem um caráter filosófico, social e teológico, possibilita a publicação de temas instigantes e questões importantes para a humanidade. Mas os acontecimentos em 64 não permitiram mais que a revista se mantivesse da mesma forma. Após o fechamento da faculdade de Viamão em 1970, a revista também foi perseguida e, com isso, seus autores. Neumann foi preso em 3 de setembro de 1970. “Acho que era depois das 11h da noite. Eu estava lá no jornal, quando sai já estava tudo muito deserto, es- curo, eu me dirigi para o ponto de ônibus. Estava com uma pasta, com material da universidade e na outra mão 50 anos depois, quem se importa? imagemrp | XXXX / 2014 | 10 imagemrp | XXXX / 2014 | 11 com uma dúzia de ovos e um saco de pão. Quando cheguei na parada de ônibus tinha um carro da polí- cia parado. Na hora eu não suspei- tei, comecei a suspeitar quando o ônibus andou e o carro da polícia me acompanhava, acompanhava o ônibus. Quando o ônibus chegou no centro da cidade, bem em frente a histórica Igreja da Matriz, que é o ponto final, tinha um outro carro da polícia parado. Quando chego na esquina, havia mais um carro da polícia e também na se- guinte. Em frente à entrada da pensão onde vivia, havia mais dois carros da polícia. Um total de 6 carros. Aí quando eu subi a escada, o primeiro quarto à direita era o nosso, a porta estava entreaberta. Com o cotovelo empurrei a porta e aí o cano do fuzil apontava na minha cara. Eles já estavam dentro do quarto, com os outros colegas já presos, o material todo encaixo- tado. Levaram tudo, tudo, tudo. E só estavam aguardando por mim. Botaram o capuz. O tempo todo que eu fiquei preso eu não sabia onde é que eu estava. Tu não fa- zes ideia. Tu escutas barulhos de carro, de gritos, mas tu não sa- bes em que mundo tu estás. Então fomos levados encapuzados para um local e eu lembro que tinha que subir escadas, bastante es- cadas e aí já fomos direto para a sessão de tortura. Mais tarde eu fui saber que esse local era o atual Palácio de Polícia em Porto Alegre. Nós ficávamos no segundo e terceiro piso, onde eram as ce- las, as salas de tortura, enfim... As torturas... o que que eu vou te dizer? São as mais perversas possíveis. Têm livros, filmes, ví- deos que mostram. Eu acho que dá pra ter mais ou menos uma ideia do que é possível imaginar o que seja uma sessão de tortura. Mas não tem como descrever. Só é. Isso é impossível. A única coisa que eu me pergunto é como é que é possível um ser humano, que se diz humano, que é pai, que tem filhos, tratar outro ser humano com tamanha selvageria? Isso é inacreditável. Inacreditá- vel. Você não faz ideia da dimensão da selvageria, da brutalidade, da irracionalidade. Eu trago seque- las até hoje, tanto físicas quanto emocionais. Choques nos órgãos ge- nitais, no ânus... Esse negócio de pontapé, de soco, isso é carinho! O pior são os choques elétricos na boca, nos ouvidos, nos órgãos ge- nitais. Você fica tão inchado que parece uma abóbora. Fica tudo inflamado, tudo arrebentado. E não tem tratamento, você tem que aguentar no osso. Quem consegue sobreviver é sorte. E depois o pau de arara. O pau de arara é cruel. Afinal, você fica pendurado que nem uma galinha estacada para ser assada. Isso você aguenta uns mi- nutos, mas não aguenta por muito tempo. O corpo todo fica pendurado com as pernas amarradas e na outra ponta com os braços amarrados. E aí... socos, coices e pontapés nos rins. Isso é cruel, é terrível. E de- pois a coluna não aguenta. Isso foi em 70 e há poucos anos atrás tive que fazer duas cirurgias por cau- sa de uma hérnia de disco, entre a 3ª e a 4ª vértebra. Descobri que era por causa das torturas. Isso é sob o aspecto físico. Sob o aspecto emocional, um psiquiatra me dis- se uma vez que não tem escovão de aço nem produto químico nem ácido que consiga apagar isto. Ele disse que ou eu tinha que aprender administrar e a conviver com isso ou então eu iria acabar me tortu- rando, ou seja, uma segunda tortu- ra, estregando minha vida, minhas relações e a vida das pessoas que estavam ao meu redor. Eu acho que não tem mais como eu voltar a ser uma pessoa normal.” Você não faz ideia da dimensão da selvageria, da brutalidade, da irracionalidade. Eu trago sequelas até hoje, tanto físicas quanto emocionais” Professor Laurício Neumann: um depoimento para não esquecer “Um psiquiatra me disse uma vez que não tem escovão de aço nem produto químico nem ácido que consiga apagar isto” “Com o cotovelo empurrei a porta e aí o cano do fuzil apontava na minha cara” “Na hora eu não suspeitei, comecei a suspeitar quando o ônibus andou e o carro da polícia me acompanhava” ARQUIVO PESSOAL

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Entrevistas sobre os 50 anos da ditadura.

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Page 1: 50 anos depois, quem se importa?

MemóriaEVLYN LOUISE ZILCH

Os anos de chumbo, como conhecido por parte de quem viveu o Regime Militar, marcou profun-damente homens e mulheres e suas vidas foram transformadas. Mas não somente as vidas dos

anos 60. O período mudou tudo o que aconteceria no fu-turo. 50 anos depois, os acontecimentos permaneceram na memória dos brasileiros. Homens e mulheres jovens ou nem tão jovens. O que ficou em suas lembranças?

Guilherme Lima de Quadros tem 23 anos, vive em São Leopoldo e trabalha em Porto Alegre com seu pai. Ape-sar de conhecer pessoas que sofreram no período, pensa que de alguma forma o retorno ao regime ditatorial po-deria ser positivo.

“Fico dividido se a ditadura foi um período de certa forma bom ou não. Sei que muitas pessoas desaparece-ram e foram censuradas. Meu tio, por exemplo, foi in-terrogado diversas vezes e acusado de comunista. Mas também, pelo que escuto das gerações mais antigas, as coisas funcionavam. Não havia tanto vandalismo. E hoje, mesmo que pareça que vivamos em uma democracia, nada de fato mudou, já que as grandes emissoras con-tinuam manipulando e censurando informações. É uma ditadura encoberta”.

A estudante de Educação Física da Unisinos, Mônia Zilch, 26, é ainda mais enfática.

“Para mim, a ditadura poderia retornar. Em um país como o Brasil, onde tudo está errado, é necessário radi-calismo para mudar as coisas”.

Mateus Pinto Pereira é estudante do ensino médio e tem 19 anos. Para ele, o governo deveria exercer mais sua autoridade.

“Ouvi coisas muito terríveis sobre a ditadura, prin-cipalmente em respeito à violência e à tortura. Acredito que a ditadura até poderia retornar, porém de uma forma muito diferente, onde não houvesse a violência extre-ma, física, emocional e psicológica que foi praticada. O país precisa de pulso firme, mas também de respeito”.

Para quem viveu os anos de chumbo a opinião é dife-rente. O professor aposentado de Filosofia Laurício Neu-mann, 67 anos, de São Paulo das Missões, foi sequestra-do, interrogado e torturado por militares na ditadura. Ele deixa claro quais os motivos para crer que a ditadura nunca mais pode retornar ao país.

“Em 1968, com 21 anos, vim para Viamão, para a faculdade de filosofia. Chegar lá era como ter a faca e o queijo na mão. Era tudo o que eu sonhava, o que eu queria, mas, ao mesmo tempo, não tinha clareza. Um mundo fascinante de abertura a tudo e assim comecei a participar do diretório de estudantes... Era tudo o que eu sonhava e queria na vida. Oportunidades, possibili-dades, espaços.”

Assim Laurício inicia sua história. É um dos autores da Revista Mundo Jovem, que existe até hoje. Esta revista, que tem um caráter filosófico, social e teológico, possibilita a publicação de temas instigantes e questões importantes para a humanidade. Mas os acontecimentos em 64 não permitiram mais que a revista se mantivesse da mesma forma. Após o fechamento da faculdade de Viamão em 1970, a revista também foi perseguida e, com isso, seus autores. Neumann foi preso em 3 de setembro de 1970.

“Acho que era depois das 11h da noite. Eu estava lá no jornal, quando sai já estava tudo muito deserto, es-curo, eu me dirigi para o ponto de ônibus. Estava com uma pasta, com material da universidade e na outra mão

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com uma dúzia de ovos e um saco de pão. Quando cheguei na parada de ônibus tinha um carro da polí-cia parado. Na hora eu não suspei-tei, comecei a suspeitar quando o ônibus andou e o carro da polícia me acompanhava, acompanhava o ônibus.

Quando o ônibus chegou no centro da cidade, bem em frente a histórica Igreja da Matriz, que é o ponto final, tinha um outro carro da polícia parado. Quando chego na esquina, havia mais um

carro da polícia e também na se-guinte. Em frente à entrada da pensão onde vivia, havia mais dois carros da polícia. Um total de 6 carros. Aí quando eu subi a escada, o primeiro quarto à direita era o nosso, a porta estava entreaberta. Com o cotovelo empurrei a porta

e aí o cano do fuzil apontava na minha cara.

Eles já estavam dentro do quarto, com os outros colegas já presos, o material todo encaixo-tado. Levaram tudo, tudo, tudo. E só estavam aguardando por mim. Botaram o capuz. O tempo todo que eu fiquei preso eu não sabia onde é que eu estava. Tu não fa-zes ideia. Tu escutas barulhos de carro, de gritos, mas tu não sa-bes em que mundo tu estás. Então fomos levados encapuzados para um local e eu lembro que tinha que subir escadas, bastante es-cadas e aí já fomos direto para a sessão de tortura. Mais tarde eu fui saber que esse local era o atual Palácio de Polícia em Porto Alegre. Nós ficávamos no segundo e terceiro piso, onde eram as ce-las, as salas de tortura, enfim... As torturas... o que que eu vou te dizer? São as mais perversas possíveis. Têm livros, filmes, ví-deos que mostram. Eu acho que dá pra ter mais ou menos uma ideia do que é possível imaginar o que seja uma sessão de tortura. Mas não tem como descrever. Só é. Isso é impossível. A única coisa que eu me pergunto é como é que

é possível um ser humano, que se diz humano, que é pai, que tem filhos, tratar outro ser humano com tamanha selvageria?

Isso é inacreditável. Inacreditá-vel. Você não faz ideia da dimensão da selvageria, da brutalidade, da irracionalidade. Eu trago seque-las até hoje, tanto físicas quanto emocionais. Choques nos órgãos ge-nitais, no ânus... Esse negócio de pontapé, de soco, isso é carinho! O pior são os choques elétricos na boca, nos ouvidos, nos órgãos ge-nitais. Você fica tão inchado que parece uma abóbora. Fica tudo inflamado, tudo arrebentado. E não tem tratamento, você tem que aguentar no osso. Quem consegue sobreviver é sorte. E depois o pau de arara. O pau de arara é cruel. Afinal, você fica pendurado que nem uma galinha estacada para ser assada. Isso você aguenta uns mi-nutos, mas não aguenta por muito tempo. O corpo todo fica pendurado com as pernas amarradas e na outra ponta com os braços amarrados. E aí... socos, coices e pontapés nos rins. Isso é cruel, é terrível. E de-pois a coluna não aguenta. Isso foi em 70 e há poucos anos atrás tive que fazer duas cirurgias por cau-sa de uma hérnia de disco, entre a 3ª e a 4ª vértebra. Descobri que era por causa das torturas. Isso é sob o aspecto físico. Sob o aspecto emocional, um psiquiatra me dis-se uma vez que não tem escovão de aço nem produto químico nem ácido que consiga apagar isto. Ele disse que ou eu tinha que aprender administrar e a conviver com isso ou então eu iria acabar me tortu-rando, ou seja, uma segunda tortu-ra, estregando minha vida, minhas relações e a vida das pessoas que estavam ao meu redor. Eu acho que não tem mais como eu voltar a ser uma pessoa normal.”

“Você não faz ideia da dimensão da selvageria, da brutalidade, da irracionalidade. Eu trago sequelas até hoje, tanto físicas quanto emocionais”

Professor Laurício Neumann: um

depoimento para não esquecer

“Um psiquiatra me disse uma vez que não tem escovão de aço nem

produto químico nem ácido que consiga apagar

isto”

“Com o cotovelo

empurrei a porta e aí o cano do fuzil apontava na minha cara”

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comecei a suspeitar quando o

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