5 azul ou criadores de mundos paralelos, críticos do ... · caixeiro-viajante, jornalista,...
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5 Azul ou Criadores de mundos paralelos, críticos do próprio mundo
“E como sou filósofa — continuou Emília (...)” 185
Monteiro Lobato, Memórias da Emília
“Mas, quando você usa óculos verdes, tudo o que você vê parece verde. ” 186
Lyman Frank Baum, O mágico de Oz
“É tudo fantasia dela: não tem problema nenhum. Vamos!” 187
Lewis Carroll, Aventuras de Alice no País das Maravilhas
“(...) a tratara mal por causa desse país imaginário, que de imaginário nada tinha.”
C.S. Lewis, O leão, a feiticeira e o guarda-roupa 188
Conforme já mencionado anteriormente em capítulo introdutório, ao
proceder a eleição dos quatro autores que norteiam qual pontos cardeais o corpus
literário analisado nesta tese, tentei aliar predileção pessoal – minha leitura, ou
contato com o universo dos autores via outro suporte, p.ex., versão televisiva –
predominantemente no período da infância, com a relevância de cada título na
obra de cada um dos autores em questão, além de aferir qual apresentava, de
forma mais emblemática e bem-sucedida, a problemática abordada.
Todos os quatro autores de livros voltados para crianças aqui escolhidos
começaram suas produções literárias mirando a audiência adulta. Alguns optaram
por seguir na vereda da infância e outros administraram a luta vã com as palavras
conciliando os dois públicos ao longo da vida (por exemplo, o reverendo Dodgson
em convívio com o escritor Carroll; o pastor Lewis com o criador de Nárnia). Por
vezes, foi a frustração e o desencanto que os jogou para um campo anteriormente
inexplorado por eles. O fato é que, à parte da discussão sobre a dupla audiência e
as razões históricas que ampliaram o alvo consumidor da literatura infantil, Lewis
Carroll, Lyman Frank Baum, José Bento Monteiro Lobato e Clive Staples Lewis
foram motivados por crianças a criarem suas histórias. Ainda que a intenção
inicial tenha sido de entretenimento, considero que o desejo de superação do
185
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. São Paulo: Brasiliense, 1982. 186
BAUM, Lyman Frank. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996 . p. 109. 187
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. p.110. 188
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. In: As Crônicas de Nárnia. Edição em cores,
com os sete títulos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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material existente à época aliado ao olhar transformador / transgressor tenha
sempre pautado a escritura dos quatro pensadores. Reitero, sob pena de incorrer
em repetição e desgaste, a classificação dos criadores de fantasia / críticos da
realidade enquanto pensadores. Pensadores no sentido de intensa radicalidade,
possuidores de um lastro maior do que o termo filósofo. Note estando para além
da universidade, descomprometidos com o foco limitante do moto “publish or
perish”, retirando a poiésis verdadeiramente da práxis.
Os “wonderlanders” tinham como alvo principal crianças e crianças
próximas, queridas. Ainda que fosse só entretenimento – e penso que não era
apenas isso, ou melhor, se fosse para entreter, considerando a coerência, a
seriedade e o pensamento dos quatro, seria entretenimento crítico, estético e
educativo) –, foi elaborado com o melhor que os autores poderiam oferecer, pois é
certo que não ofereceriam nada que não fosse o melhor para seus filhos, afilhados
ou afeiçoados. O inglês Lewis Carroll (reverendo Charles Dodgson) focando nas
(depois famosas) meninas Alice Liddell e irmãs em passeios de bote na Inglaterra
vitoriana, o brasileiro José Bento Monteiro Lobato preocupado em fornecer à sua
prole uma dieta intelectual palatável que evitasse as traduções galegais, o
estadunidense Lyman Frank Baum para divertir seus quatro filhos e o irlandês
Clive Staples Lewis presenteando sua afilhada. Todos, ao se voltarem para as
crianças, talvez já estivessem cientes daquele modo diferenciado de perceber a
realidade que, muito mais do que ser algo exclusivo das crianças, se afina ao um
modo de ver a realidade que, percebe-se hoje, é prisma comum aos quatro grandes
autores.
Destaquei nos textos as passagens que remetam às críticas à Razão, à
Tradição, bem como trechos que subvertem o esperado ou que problematizam
questões importantes, caras à infância ou mesmo, pelo seu revés, que nunca ou
quase nunca são (ou não eram à época que os textos foram lançados), como a
morte, a arbitrariedade do signo, a crítica ferrenha ao antropocentrismo, o
questionamento do valor intrínseco do que está em registro escrito, dentre outros
temas. Excertos que explicitam ou que estimulam não só o pensar, mas que
também tenham a reflexão, o pensamento, a crítica como tópico. Que discutam a
postura dos adultos, muitas vezes de forma frontal, outras de maneira oblíqua.
Cumpre lembrar que não é um estudo de análise impressionista, com olhar de
microscópio. Os trechos literários cumprem uma função ilustrativa, pois é
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acreditando que é da relação única, individual e intransferível de cada leitor com o
texto é que se dará o insight filosófico que não pode ser aprendido ou apreendido
e muito menos transmitido.
5.1 Lyman Frank Baum e Oz
5.1.1 O Mágico de Oz
“Um conto de fadas moderno, escrito para divertir as crianças de hoje.”
Foi assim que Lyman Frank Baum definiu, em seu 1900, seu Mágico de Oz,
talvez o primeiro grande romance da literatura de fantasia americana. E depois de
tanto tempo, a história não dá sinal de ter perdido o fôlego. A primeira versão do
novo livro se chamava A cidade esmeralda de Oz 189
. Mas se dizia, à época, que
ter nome de pedra preciosa num título dava azar e, por isso, Baum o alterou para
O maravilhoso mágico de Oz. O lançamento aconteceu em maio de 1900, quando
o escritor acabava de completar 44 anos. Dez meses depois, já tinham sido
vendidos 100 mil exemplares, um número que deixou os editores exultantes.
Comenta Mario Vilela, em breve artigo introdutório à uma das edições brasileiras
do livro O Mágico de Oz.
O estilo de Baum era bastante simples, tão simples que o achavam, e ainda
acham, simplório. Só que muito do charme do livro estava exatamente aí. E as
crianças, sempre os críticos mais exigentes, nunca deixaram de se empolgar com
a história. A aventura da menina do Kansas que é levada por um ciclone para
uma terra mágica, onde vivem personagens como o Espantalho, o Homem de
Lata e o Leão Covarde, acabou se incorporando ao folclore do século XX, e não
apenas nos Estados Unidos. 190
189
Assim como o lobatiano Reinações de Narizinho possuiu uma versão anterior (“A menina do
narizinho arrebitado”). 190
VILELA, Mário. “O Mágico de Oz”. in: BAUM, L. Frank Baum. O Mágico de Oz: texto
integral. São Paulo: Ática, 1997. Trad. Luciano Machado. Il. Marcelo Pacheco. p. 7-8.
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Apresentei no capítulo inicial da presente tese minha tomada de posição
relativamente à imbricação vida-obra, que, para mim, assume um lugar de
destaque crítico. Não poderia ser diferente nos autores abordados. Neste sentido,
Baum e Lobato, ambos do Novo Mundo e homens do início do século XX,
possuem semelhanças em suas trajetórias. Ambos nutriam uma preocupação
aguda com a cultura mas não deixavam de fomentar certo afeto pelo comércio; e
ambos tinham em mente a comunicação com as massas, desde que para tanto,
apresentassem seus biscoitos finos, é claro. A ambientação rural, a paixão pela
indústria (não apenas a cultural, como o nascente cinema), a posição de que o
escritor não deveria nem precisava viver em torres de marfim são aspectos
curiosos que aproximam a vida e a obra do nova-iorquino com a do taubateense.
Moderno era um adjetivo muito bem aplicado bem ao criador de Dorothy.
Caixeiro-viajante, jornalista, músico, ator, produtor teatral, romancista, cineasta,
Lyman Frank Baum foi uma combinação muito americana de criador e
empresário, precursor (malsucedido, é verdade) de figuras como Disney e
Spielberg. Nasceu, em 1856, no estado de Nova York. Aos quinze anos, em 1871,
começou a imprimir um jornal mensal, com histórias e poemas que ele mesmo
escrevia. Em 1873, ele e um amigo lançaram outro jornal mensal, modestamente
intitulado O Império. Isso durou dois anos, até Baum virar criador de galinhas e
ator. O mais extraordinário é que ele tenha conciliado avicultura e dramaturgia.
Suas galinhas foram papando prêmios em exposições (anos depois, Baum até
escreveria uma monografia, bastante conceituada, em que ensinava como criar
esses bichos, o que o aproxima de um Lobato fazendeiro que enveredou, dentre
vários negócios como, por exemplo, a fabricação de compotas). E, de quebra, ele
percorria o estado de Nova York com uma trupe mambembe, que representava
peças de Shakespeare em teatros iluminados a vela e a lamparina.
Para divertir os quatro filhos, contava histórias que ele mesmo adaptava de
rimas infantis tradicionais. As crianças adoravam e Baum percebeu o potencial
disso. Em 1897, publicou um livro com tais histórias, Mamãe Ganso em prosa. O
último capítulo, a propósito, introduziria a personagem Dorothy, que voltaria em
O mágico de Oz. Pouco depois, Baum conheceu um ilustrador de muito talento,
W. W. Denslow. Da parceria entre os dois, surgiu em 1899, O livro do Papai
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Ganso, uma coletânea de rimas ilustradas que logo se tornou best-seller. Em
1900, Baum lançou mais dois livros nessa linha, sempre com desenhos de
Denslow.
Animado, escreveu e publicou no mesmo seu primeiro romance, partindo
de uma história de ninar que inventara para os filhos. Nascia então O mágico de
Oz, uma das narrativas mais famosas da literatura infantil. Denslow, de novo, era
quem assinava as ilustrações. As vendas foram enormes, e já em 1902, Baum
produzia, em Chicago, um musical inspirado no livro. A peça estreiou com tanto
êxito que rapidamente foi para a Broadway, o centro teatral de Nova York,
viajando pelo país durante vários anos. Baum se animou a escrever outros livros
sobre Oz, começando como A terra maravilhosa, em 1905, e incluindo mais doze
títulos até sua morte.
Era um otimista incorrigível e, como a Dorothy de O mágico de Oz,
sempre acreditou em sua própria estrada de tijolos amarelos. Logo depois de ter
lançado Mamãe Ganso em prosa, anotou algo que bem poderia resumir sua
carreira de autor: “Quando eu era moço, queria muito escrever um romance que
me tornasse famoso. Mas, agora que estou ficando velho, meu primeiro livro é
escrito para divertir as crianças. Pois, afora minha óbvia incapacidade para
escrever ‘grande literatura’, descobri que a fama é ilusória e, quando alcançada,
não vale a pena; já agradar uma criança é uma coisa adorável, que nos alegra e
tem suas próprias recompensas.” Parece bem irônica, para este estudo, a inclusão
da declaração de um dos autores para os quais defendo o estabelecimento do
estatuto de pensador, uma postura tão servil em relação à “grande literatura”. Mas
tanto a filosofia quanto a fantasia lidam com a complexidade, não com os
maniqueísmos.
Assim como Alice, todo o imaginário de Oz atingiu um patamar alto na
construção do inconsciente coletivo. E não apenas no Ocidente, como atesta o
escritor indiano Salman Rushdie. Em sua coletânea de ensaios, Cruze este linha
(ensaios e artigos 1992-2002), há o artigo intitulado “Lá em Kansas”, que analisa
o impacto cultural e a influência literária que O mágico de Oz tiveram nele. Chega
a afirmar que a primeira que ele assistiu ao filme, fez dele um escritor. Menino
ainda. Seu foco é mais direcionado à clássica adaptação cinematográfica, mas
existem insights que não devem ser descartados:
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A jornada de Kansas a Oz é um rito de passagem de um mundo em que os pais
substitutos de Dorothy, tia Em e tio Henry, não têm a capacidade de ajudá-la a
salvar seu cachorro, Totó, da saqueadora Miss Gulch para um mundo onde as
pessoas são do seu tamanho e no qual ela nunca é tratada como criança, mas
sempre como heroína. Ela conquista esse status por acaso, é verdade, não tendo
desempenhado papel algum na determinação com que sua casa esmaga a Bruxa
Má do Leste; porém, ao final da aventura, ela, sem dúvida, cresceu o suficiente
para calçar aqueles sapatos – aqueles famosos sapatos de rubi. “Quem haveria de
dizer que uma menina como você iria destruir a minha bela perversidade?”,
lamenta a Bruxa Má do Oeste enquanto derrete – um adulto que se torna menor
que uma criança e deixa seu lugar para ela. Enquanto a Bruxa Má do Oeste
“diminui”, vê-se Dorothy crescer. A meu ver, é muito mais satisfatória essa
explicação do poder recém-conquistado de Dorothy sobre os sapatos de rubi do
que as razões sentimentais fornecidas pela inefavelmente chocha Bruxa Boa
Glinda, e depois pela própria Dorothy, naquele final enjoativo que considero
pouco fiel ao espírito anárquico do filme.
Rushdie nos lembra bem, em trecho que optei por suprimir, por não julgar
pertinente ao nosso estudo, que os sapatos de rubi, os famosos e icônicos
sapatinhos vermelhos não constam do texto original de Baum, sendo uma licença
poética libérrima da passagem transmídia.
Dorothy tem um sobrenome, Gale [Vendaval]. E, de muitas formas, Dorothy é o
vendaval que sopra por esse cantinho de lugar nenhum. Ela exige justiça para seu
cachorrinho, enquanto os adultos cedem resignadamente à poderosa Miss Gulch.
Ao fugir, ela está pronta para interromper a inevitabilidade cinzenta de sua vida,
mas tem o coração tão bom que volta correndo quando o professor Marvel lhe diz
que tia Em está aflita por causa de sua fuga. Dorothy é a força vital desse Kansas,
assim como Miss Gulch é a força da morte; e talvez seja o torvelinho de Dorothy,
o ciclone de sentimento desencadeado pelo conflito entre ela e Miss Gulch, que
se torna realidade na grande cobra escura de nuvens que serpenteia pela pradaria,
devorando o mundo.
Lembro (ou imagino lembrar) que, quando assisti ao filme pela primeira vez, a
casa de Dorothy me pareceu mais uma pocilga. Eu tinha a sorte de ter uma casa
boa, confortável e, portanto, pensava comigo mesmo: se eu tivesse ido parar em
Oz, certamente ia querer voltar para casa. Mas Dorothy? Talvez devêssemos
convidá-la para morar conosco. Qualquer lugar parece melhor que aquilo.
O maduro Rushdie recupera o espanto de um Rushdie menino (ou como
ele próprio aventa, um Rushdie romantizado, transmutado pela própria memória),
que é exatamente o mesmo espanto do Espantalho, que não compreende o desejo
de Dorothy de largar uma exuberante e esmeralda cidade em Oz para retorna à
uma cinzenta e entediante fazenda no Kansas. Ela explica, com sua notória frase,
que “there’s no place like home”. O Espantalho aceita, mas fica patente que não
foi verdadeiramente convencido. Bem como Rushdie, que cogitou até hospedar a
dona de Totó.
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A primeira vez que assisti a O Mágico de Oz fez de mim um escritor. Muitos
anos depois, comecei a delinear a trama que acabou se transformando em Haroun
e o mar de histórias. Sentia com muita força que, se conseguisse tocar a nota
certa, devia ser possível escrever a história de maneira a ficar interessante tanto
para adultos quanto para crianças. O mundo dos livros é hoje uma área
seriamente categorizada e demarcada, na qual a ficção infantil é não apenas uma
espécie de gueto, como um gênero subdividido em escrituras para uma série de
diferentes grupos etários. 191
A Dorothy de O mágico de Oz, certamente por conta da atuação de Judy
Garland no clássico filme musical, se tornou altamente emblemática para nossa
história cultural. Contudo, para os objetivos do meu estudo, há uma outra
personagem muito mais rico, que oferece um manancial de meandros de
características e se encaixa perfeitamente para a discussão dos temas que ora
abordo: o Espantalho, que já evoquei como contraponto à defesa do Kansas
realizada por Dorothy. Todavia, por uma questão de método (ainda que queira
escapar do tradicionalismo, uma tese doutoral não tem como prescindir de certas
amarras) e padronização, sigamos com a abertura do texto, antes de desfolhar as
características da personagem e sua jornada por um cérebro:
Dorothy vivia num lugar em meio às grandes campinas do Kansas, com o tio
Henrique, que era fazendeiro, e com a tia Ema, sua mulher. A casa deles era
pequena, porque os toros de madeira com que foi construída tiveram que ser
carregados em carroças, por muitas milhas. A casa tinha quatro paredes, assoalho
e telhado, que formavam um cômodo. Nesse cômodo havia um fogão
enferrujado, um armário para os pratos, uma mesa, três ou quatro cadeiras e as
camas. Num canto ficava a cama do tio Henrique e da tia Ema, no outro, a cama
de Dorothy. 192
A ambientação do Kansas cinzento traz também uma nostalgia. A lida
cotidiana de uma rotina rural de pobreza sequestrou o viço de Tia Ema, outrora
jovem e bonita e agora, desprovida de riso, sorriso e de sanidade, pois fica
sobressaltada com algo tão normal e saudável quanto a expressão da alegria de
uma criança, conforme atesta o trecho:
Quando tia Ema chegou para morar ali, era uma mulher jovem e bonita. O sol e o
vento também a transformaram. Eles tiraram o brilho de seus olhos, que ficaram
de um cinza suave; tiraram ainda o vermelho de suas faces e lábios, que também
ficaram cinzentos. Ela era magrinha e fraca, e agora nunca ria. Quando Dorothy,
191
RUSHDIE, Salman. Cruze este linha (ensaios e artigos 1992-2002). São Paulo: Companhia das
Letras, 192
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 9 (Coleção Eu Leio).
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que era órfa, veio ficar com ela, tia Ema ficou tão assustada com o riso da criança
que tinha vontade de gritar e pôr a mão no coração toda vez que a voz alegre da
menina chegava aos seus ouvidos; e ainda hoje ela se espantava de que a menina
pudesse encontrar alguma coisa de que achar graça.193
O tédio é alterado pela inserção do fenômeno natural comum à região, um
ciclone é o elemento de transformação da realidade. Espécie de portal
interdimensional ou transporte, já que leva a própria casa que será transformada,
inadvertidamente, em arma que trará o desfecho fatal para a Bruxa Malvada do
Leste. Todos se preparam para o ciclone, mas apenas a Dorothy é permitido
desfrutar de um lindo lugar como Oz. Ela se espanta com as pessoas esquisitas, o
que não causa admiração, considerando que ela nunca deixou o monótono estado
do Kansas.
– Está vindo um ciclone, Ema. – gritou para a mulher. – Vou cuidar dos animais.
– Correu em direção aos estábulos dos bois e dos cavalos. 194
O ciclone tinha colocado a casa, de forma muito suave pra um ciclone, numa
região de maravilhosa beleza. Havia encantadores gramados verdes por toda a
parte, com árvores imponentes carregadas de frutas suculentas e deliciosas.195
Enquanto ela observava com grande interesse a estranha e maravilhosa paisagem,
perebeu que vinha em sua direção um grupo de pessoas muito esquisitas, as mais
esquisitas que vira em sua vida. Elas não eram muito grandes como os adultos
que conhecia, mas também não eram muito pequenos. Pareciam ser da mesma
altura de Dorothy, que era uma menina bem crescida para sua idade, embora
fossem, pelo que aparentavam muito mais velhas.196
A narrativa segue e o leitor chega a um dos primeiros trechos importantes
do texto para nossa questão. Dorothy é chamada de feiticeira por ter matado a
bruxa. Logicamente, apenas alguém com poder no mínimo equivalente ao da
artífice de sortilégios recém aniquilada. Os munchkins conferem à Dorothy uma
identidade que não é a dela. Ou será que é? A responsabilidade do ato está
relacionada à culpabilidade do ato? Se não há dolo, não há crime? Poderia ser
uma discussão deslocada, mas que adquire relevância pois é a partir do fato (o
crime que salva o povo da opressão) que Dorothy tem nova identidade. Ou será
que a menina nunca teve a sua identidade construída no árido Kansas?
193
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 10 (Coleção Eu Leio). 194
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 10 (Coleção Eu Leio). 195
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 14 (Coleção Eu Leio). 196
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 15 (Coleção Eu Leio).
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– Seja bem-vinda, nobre feiticeira, à terra dos Munchkins. Estamos muito
gradecidos a você por ter matado a Bruxa Malvada do Leste e por ter libertado
este povo do seu jugo.
Dorothy ouviu isto espantada. Por que a mulherzinha a estaria chamando de
feiticeira e por que dizia que matara a Bruxa Malvada do Leste? Dorothy era uma
menina inocente e pacífica, que fora carregada para milhas e milhas de distância
de sua casa; e que em toda a sua vida nunca matara nenhum ser vivo.
Mas a mulherzinha estava esperando que ela respondesse. Então Dorothy falou,
hesitante:
– Você é muito gentil. Mas deve haver um engano. Não matei ninguém.
– Mas de qualquer forma sua casa matou – respondeu a velhinha com um sorriso.
– O que vem a dar no mesmo. – Veja! – continuou ela, apontando para um canto
da casa. – Ali estão as pontas dos pés aparecendo embaixo daquele toro de
madeira.197
E o enredo segue discutindo identidade (eu sou o que eu sei que sou ou
sera que eu sou o que penso que sou ou ainda, eu sou o que acham que sou?),
alteridade e diversidade (o estranhamento por verem o que é diferente do seu
horizonte de expectativas e a proposta de ser diferente, já que o que é tão comum
para uns, é tão bizarro para outros).
Dorothy não sabia o que responder, porque todos pensavam que ela era uma
bruxa e ela sabia muito bem que era apenas uma menininha que por acaso tinha
sido levada a uma terra estranha por um ciclone. 198
Totó despertava a maior curiosidade em todo mundo porque eles nunca tinham
visto um cachorro antes. 199
Entra em cena, o personagem fulcral, para nosso estudo, de O mágico de
Oz. Muito mais do que a jornada em busca do lar, da coragem ou de um coração,
o que ressalta para o meu viés, é a procura pelo cérebro, promovida pelo
Espantalho. Não obstante ser Dorothy a personagem principal e o ponto de partida
para o foco narrativo, é o Espantalho quem lidera as ações e as tomadas de
decisão do grupo, a partir de suas ideias. O que é aparentemente paradoxal ou, no
mínimo, irônico, já que é exatamente quem tem a cabeça cheia de palha que
apontará os caminhos.
Olhando de forma mais detida, tem-se que é algo mais profundo do que
mera blague ou algo fortuito. De maneira leve (uma provocação minha, para
lembrar do rótulo de estilo simplório a ele dado), Baum aponta o dedo em uma
197
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 16 (Coleção Eu Leio). 198
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 23 (Coleção Eu Leio). 199
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 23 (Coleção Eu Leio).
145
ferida profundíssima da filosofia tradicional ocidental, a saber: como considerar
que a Razão, a Racionalidade, a Reflexão, as Ideias estão presentes, se o seu
invólucro, ou melhor, se sua fonte, seu objeto, seu substrato, sua materialidade
(estejamos considerando a mente, ou mais anatômica, o cérebro e suas sinapses),
por definição, está ausente? Como o riso é também material de crítica e como o
livre-pensador não descarta nenhuma possibilidade a priori, eximo-me de culpa e
indago, provocativamente: depois da educação pela pedra, a filosofia da palha?
– Bom dia – disse o Espantalho com uma voz um tanto áspera.
– Você fala? – perguntou a menina admirada.
– Claro – respondeu o Espantalho. – Como vai você?
– Estou bem, obrigada. – respondeu Dorothy educadamente. – Como vai você?
– Não estou me sentindo muito bem. – disse o Espantalho sorrindo. – É
muito chato ficar espetado aqui em cima para espantar os corvos.
– Você não pode descer daí? – perguntou Dorothy.
– Não por causa dessa estaca espetada nas minhas costas. Se você fizer o favor de
tirar-me daqui, vou ficar muito grato.
Dorothy levantou os dois braços e tirou o Espantalho da estaca, o que foi fácil
porque, sendo cheio de palha, ele era bem leve.
– Muito obrigado – disse o Espantalho, logo que foi colocado no chão. – Estou
me sentindo um novo homem.
Dorothy ficou espantadíssima com isso porque lhe parecia muito estranho ver um
homem de palha falar, fazer mesuras e andar ao seu lado.
– Quem é você? – perguntou o Espantalho, depois de espreguiçar-se e bocejar. –
E para onde está indo?
– Meu nome é Dorothy. – disse a menina. – Estou indo para a Cidade de
Esmeralda para pedir ao Grande Oz que me faça voltar ao Kansas.
– Onde fica a Cidade de Esmeralda? – perguntou ele. E quem é Oz?
– Você não sabe? – retrucou ela surpresa.
– Não sei mesmo. Eu não sei nada. Sabe, sou empalhado, por isso não tenho
cérebro – respondeu com tristeza.
– Oh! – fez Dorothy. – Sinto muitíssimo por você.
–Será que, se eu for para a Cidade de Esmeralda com você, esse tal de Oz pode
me conseguir um cérebro?
– Não sei dizer – respondeu a menina. – Mas se você quiser, pode vir comigo.
Mesmo que Oz não lhe dê um cérebro, você não vai ficar em pior situação do que
está agora.
– Isso é verdade. – disse o Espantalho. – Sabe – continuou em tom de confidência
–, não me importo se minhas pernas, meus braços e meu tronco são empalhados,
porque não sinto dor. Se alguém pisa no meu pé ou espeta um alfinete em mim,
não tem importância, porque não sinto nada. Não gosto é que as pessoas me
chamem de bobo. Mas se minha cabeça é cheia de palha e não tem um cérebro
como a sua, como é que eu vou saber alguma coisa?200
Cumpre lembrar que não obstante a questão da identidade de Dorothy
tenha sido trazida à tona anteriormente em meio aos Munchkins, o que ocorreu foi
200 BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 27 (Coleção Eu Leio).
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uma atribuição. Assumiu-se que Dorothy era uma feiticeira, bruxa poderosa. Em
nenhum momento houve o instante do fundamento, isto é, a pergunta essencial: –
Quem é você? Apesar de ser desprovido de massa cinzenta, o Espantalho é,
efetivamente, o primeiro que pergunta quem é Dorothy. Na passagem seguinte,
retirada dos momentos iniciais da narrativa, há a defesa do primado da Razão,
afirmando que o cérebro como única coisa que vale a pena ter e, deslocando a
expectativa, puxando o tapete do leitor, ou por outra, estabelecendo um pacto com
ele, um armistício alicerçado na clássica “suspension of disbelief”: aceitem a
premissa “filosofantástica”: mesmo sem cérebro, o Espantalho não para de pensar.
O Espantalho, como não tinha cérebro, andava sempre em linha reta e por isso
metia o pé nos buracos e caía de comprido nos tijolos duros. Mas ele nunca se
feria e Dorothy o levantava e o punha de pé novamente, e ele voltava a
acompanhá-la rindo alegremente de si mesmo. 201
– Conte-me alguma coisa sobre você mesma e sobre sua cidade – disse o
Espantalho, quando ela terminou de comer.
Ela lhe contou tudo sobre o Kansas, como tudo era cinza e como o ciclone a
carregara para essa terra de Oz. O Espantalho, ouviu-a com atenção e comentou:
– Não entendo como você pode pensar em sair desta bela terra e voltar para esse
lugar seco e cinzento que você chama de Kansas.
– Isso é porque você não tem cérebro – respondeu a menina. – Não importa
quanto a terra da gente é triste e cinzenta. Nós, gente de carne e osso, preferimos
viver em nossa terra que em qualquer outra, por mais bonita que seja. Não há
lugar melhor que a casa da gente.”
O Espantalho suspirou e disse:
Claro que não posso entender isso. Se a cabeça de vocês fosse cheia de palha
como a minha, todos vocês iriam morar em lugares lindos. E ninguém viveria no
Kansas. Sorte do Kansas que vocês têm cérebro.202
– Se você ao menos tivesse um cérebro, seria um homem como qualquer outro e
melhor que alguns deles. O cérebro é a única que vale a pena ter nesse mundo.
Seja para um homem, seja para um corvo.
Depois que os corvos se foram, pensei muito sobre isso e decidi que ia tentar
conseguir um cérebro. Por sorte você veio e me tirou da estaca e pelo o que você
diz o Grande Oz vai me dar um cérebro logo que chegarmos à Cidade de
Esmeralda. 203
O Espantalho e Dorothy vão seguindo e encontram o Homem de Lata, que
descreve sua sina e sua saga. Com a adesão do Leão Medroso, o grupo fica
completo. Todavia, antes da trupe se caracterizar como a conhecemos, há um
201
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p.28 (Coleção Eu Leio). 202
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p.29 (Coleção Eu Leio). 203
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p.30-1 (Coleção Eu Leio).
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excerto que vale a pena recuperar, por conta da discussão que propicia.
Conversando estão Dorothy, o Homem de Lata e o Espantalho, que afirma:
– De qualquer forma, vou pedir um cérebro ao invés de um coração. Pois um
bobo, mesmo tendo coração, não sabe o que fazer com ele. Vou querer um
coração – respondeu o Homem de Lata. Um cérebro não faz uma pessoa feliz, e a
felicidade é a melhor coisa do mundo.
Dorothy não falou nada, porque não sabia qual dos dois amigos estava com a
razão. 204
Dorothy se abstém, não toma posição no dilema cérebro versus coração,
entre a Razão e a Emoção, “não sabia qual dos amigos estava com a razão”. Estar
com a razão é estar certo, mas… não é um ato falho, trazer a palavra razão não é
afirmar uma tomada de posição pela Razão? De qualquer forma, é sempre o
Espantalho que traz as soluções, não mágicas, mas pensadas. A leitura mais
aparente e fácil é a de que o que muitas vezes clamamos como ausências, como
lacunas, na verdade são presenças latentes em nós. Justo o Espantalho, que acha
que não tinha cérebro, tinha todas as ideias. A outra interpretação, mais calcada
em nossa linha de pensamento, é a seguinte: considerando que o Espantalho não
tem cérebro e assumindo que este órgão é a morada da Razão, o castelo das ideias,
isto não abria uma possibilidade de se termos soluções criativas para além do
“cérebro”, que emanassem de uma outra ordem que não à da razao? Um
pensamento advindo da fantasia? Anteriormente, no início do parágrafo, falo em
soluções não mágicas, mas pensadas. Retrato-me. Uma solução mágica de ideias
sem cérebro, oriundas da fantasia, provindas digamos… da palha? O Leão diz: a
gente quase acredita que você tem um cérebro na cabeça ao invés de palha.
Elementar, meu caro Leão. Um cérebro de palha. Que será, recordemos, a solução
do Mágico de Oz.
Eles se sentaram para pensar no que poderiam fazer e, depois de muito pensar, o
Espantalho falou:
– Há uma árvore grande bem perto do fosso. Se o Homem de Lata puder cortá-la,
ela vai cair atravessada sobre o fosso e poderemos passar facilmente.
– É uma excelente ideia – disse o Leão. – A gente quase acredita que você tem
um cérebro na cabeça em vez de palha. 205
204
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 39 (Coleção Eu Leio). 205
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 50 (Coleção Eu Leio).
148
Depois das peripécias da turma para salvar a vida da rainha dos ratos,
novamente é o Espantalho que “salva a lavoura”. Ao serem perguntados o que
como os ratos poderiam manifestrar seu agradecimento, o Homem de Lata não
vislumbra nada que poderia ser aceito como retribuição e gratidão. Nesse
momento, o Leão está adormecido no Campo das Papoulas Mortais e a ajuda dos
ratos seria imprescindível. Todavia, o ex-lenhador não atina e não afirma: “que eu
saiba, nada.” Resposta que seria esperada de um “cabeça oca”… Vejamos o que o
próprio texto de Baum indica:
– Que podemos fazer para recompensá-lo por ter salvo a vida de nossa rainha?
– Que eu saiba, nada – respondeu o Homem de Lata. Mas o Espantalho,
que estava tentando pensar e não conseguia, pois sua cabeça era cheia de palha,
respondeu rápido:
– Sim, você pode salvar nosso amigo, o Leão Medroso, que está
adormecido no campo de papoulas. 206
Outra questão que faz com que se discuta a importância da personagem
Dorothy para a trama é que ela não apresenta uma posição enfática, aguerrida, de
conquista em relação aos acontecimentos. Enquanto o Espantalho propõe,
Dorothy segue o destino, veleja nas circunstâncias. Na passagem que ocorre após
primeiro encontro com Oz e no qual ele pede para que matem a Bruxa Malvada
do Oeste (já que a do Leste foi morta com a chegada de Dorothy em Oz e
recordemos que as outras duas bruxas dos pontos cardeais restantes são bruxas
boas), a solução protagonizada pela garota surge magicamente. A solução,
novamente, não é pelo conhecimento, pela ciência. É pelo Acaso. Ou pela
Fantasia. Ao chegar em Oz, a menina do Kansas assassinou uma feiticeira. A
segunda bruxa que Dorothy mata também é de forma fortuita, ou ao menos, sem
intenção que pudesse prever a consequência, um momento de desmedida.
Dorothy ficou tão furiosa com isso que pegou um balde de água que estava perto
e despejou-o sobre a Bruxa, molhando-o da cabeça aos pés. A Bruxa deu um
grande grito de pavor e então, enquanto Dorothy olhava-a assustada, começou a
tremer e caiu no chão.
– Veja o que você fez! – gritou ela. – Num minuto vou me dissolver.
– Sinto muito – disse Dorothy, que estava realmente assustada em ver a
Bruxa se dissolvendo como açuçar mascavo diante de seus olhos.
– Você não sabia que a água pode me destruir? – perguntou a Bruxa
desesperada.
– Claro que não, como eu poderia saber? – respondeu Dorothy.
206
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 61-2 (Coleção Eu Leio).
149
Bem, em poucos minutos vou me dissolver inteira e o castelo sera seu. Sempre
fui má, mas nunca pensei que uma garotinha como você poderia me derreter e
acabar com minhas más ações. Veja… aqui vou eu! 207
O segundo encontro com Oz é quando numa espécie de acareação, ele é
desmascarado. Antes, Oz se apresentou para cada um dos quatro de maneira
distinta.
– Quem é você?
– Eu sou Oz, o Grande e Terrível. – disse o homenzinho com voz trêmula.
– Mas não me machuque, por favor, vou fazer tudo o que vocês desejam.
Nossos amigos olharam-no com surpresa e espanto.
– Pensei que Oz era uma cabeça – disse Dorothy.
– E eu, um animal feroz – disse o Homem de Lata.
– E eu pensei que Oz fosse uma bola de fogo – exclamou o Leão.
– Não. Todos se enganaram – respondeu o homem humildemente. Eu
estava fingindo.
– Fingindo! – gritou Dorothy. – Você não é um grande mágico?”
– Psst! Não fale tão alto – ele disse – que alguém pode ouvir e eu estaria
perdido. Todos imaginam que sou um grande mágico.
– E não é? – perguntou a menina.
– Nem um pouco, minha cara. Sou um homem comum.
– Você é mais que isso – disse o Espantalho irritado. – Você é um
impostor!
– Exatamente – declarou o homenzinho, esfregando as mãos como se isso
fosse motivo de satisfação. – Sou um impostor. 208
Cada um vê Oz (cada um vê o fenômeno) de uma forma e depois, vão se
dar conta, quando o desmascaram, no fundo não é nada daquilo (o fenômeno é o
que nos mostram nossos sentidos?). Oz é um animal feroz, uma bola de fogo, uma
cabeça? Não seria tudo ao mesmo tempo agora? Ou nada disso? Oz é fingimento,
é ficção. E orgulhosamente se mostra ciente da sua condição. O orgulho que Oz
tem em ser impostor expõe que está em curso, ao longo do enredo, em intenso
embate com o primado da Razão, uma outra linha de força, o primado da ficção, o
approach do imaginário, da elaboração ficcional! E Oz tem consciência de que
está criando para o Outro, para a sua plateia, dando ao povo, o circo ansiado. Um
a um, como se verá nos excertos abaixo que selecionei, tem seu pedido
“atendido”. É fácil fazê-los felizes. Ora, eles imaginavam que suas felicidades
viriam quando alcançassem o que estava em sua imaginação. A partir da
imaginação deles, Oz engendra, em sua imaginação, as soluções para eles.
207
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 92 (Coleção Eu Leio). 208 BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 107 (Coleção Eu Leio).
150
– Você não pode me dar um cérebro? – perguntou o Espantalho.
– Você não precisa de cérebro. Cada dia você aprende alguma coisa. Um
bebê tem cérebro mas pouco sabe. A experiência é única coisa que traz
conhecimento e, quanto mais tempo você fica na terra, mais você adquire
experiência
– Isso pode ser verdade – disse o Espantalho –, mas vou ficar muito infeliz, a
menos que você me dê um cérebro. 209
– E quanto à minha coragem? – perguntou o Leão ansiosamente.
– Com certeza você tem bastante coragem. Você só precisa de confiança
em si mesmo. Não existe nenhum ser vivo que não tenha medo quando enfrenta o
perigo. A verdadeira coragem é enfrentar o perigo mesmo tendo medo, e esse
tipo de coragem você tem.
– Talvez eu tenha, mas ainda assim tenho muito medo – disse o Leão. – Vou ficar
muito infeliz, a menos que você me dê um aquele tipo de coragem que faz
esquecer que se tem medo. 210
– E meu coração? – perguntou o Homem de Lata.
– Acho que você está errado em querer um coração. – respondeu Oz. – Ele
faz a gente infeliz. Se você soubesse… Você tem sorte em não ter coração.
– Isso é uma questão de opinião – disse o Homem de Lata. – De minha parte, vou
suportar toda a infelicidade, sem um lamento, se você me der um coração. 211
– E como vou voltar para o Kansas? – perguntou Dorothy.
–Vamos ter que pensar sobre isso. – respondeu o homenzinho. 212
Com exceção de Dorothy – “vamos ter que pensar sobre isso” – , que
deseja a coisa mais material de todos, a sua casa, o retorno ao Kansas – diferente
de inteligência, coragem e amor – e que está fora de Oz. Mas ela é estrangeira,
forasteira. Como o próprio Oz, que é de Omaha. Os três amigos são criaturas
fantásticas, de Oz, então guardam uma lógica própria. Oz, posteriormente, traz
uma solução que não poderia ser ser chamada de deus ex machina no sentido
estrito, mas que guarda até uma proximidade, caso recordemos a origem da
expressão. Um balão os levará. Mas Totó faz com que Dorothy ainda permaneça
um pouco mais em Oz. E o mágico parte do mundo que tem o seu nome. Ao final,
como sabemos, a bruxa Glinda desvenda o enigma e mostra que a solução para a
demanda de Dorothy estava, assim no caso de seus companheiros, com ela
mesma. No caso, literalmente, debaixo de seus pés.
209 BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 110 (Coleção Eu Leio). 210
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. p.110 (Coleção Eu Leio). 211
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. p.110 (Coleção Eu Leio). 212
BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. .111 (Coleção Eu Leio).
151
5.2 C.S. Lewis e Nárnia
5.2.1 O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa
As Crônicas de Nárnia são compostas de sete títulos e o mais destacado
deles, o mais emblemático, o que foi escrito e publicado em primeiro lugar é O
leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Escrito após durante a Segunda Guerra
Mundial mas ambientado ainda durante o conturbado período, a obra, não é,
contudo, como dominam os especialistas e fãs da série, o primeiro da cronologia
narniana. Para o universo de Nárnia, Lewis escreveu livros que se passam antes e
depois dos acontecimentos, mas o abre-alas, o mais representativo da jornada ao
mundo no qual animais falam e reis e rainhas convivem com magias profundas e
ainda mais profundas é mesmo o título que ora abordo. As primeiras linhas do
texto – hoje canônico – da literatura de fantasia anglo-saxã o apresentam de
maneira bem tradicional, já indiciando ao leitor que o mesmo estabeleça uma
relação específica para o seu processo de fruição / apreensão, trazendo a
conhecida expressão Era uma vez... "duas meninas e dois meninos. Susana, Lúcia,
Pedro e Edmundo. Esta história nos conta algo que lhes aconteceu durante a
Guerra, quando tiveram que sair de Londres, por causa dos ataques aéreos. (…)".
213
A dura realidade da guerra em um livro para crianças é, a meu ver, sempre
muito interessante, pois mostra que não é por ter as crianças como público
primordial – mas não exclusivo – que as questões polêmicas e difíceis da
humanidade precisam ser pasteurizadas ou edulcoradas. É bem familiar para nós,
brasileiros, tal enfoque literário, pois A Chave do Tamanho e as traquinagens de
Emília com o intuito de pacificar o mundo em Guerra, foi escrito e lançado
anteriormente a opus magna de Lewis. A realidade aqui, aparece como
preparatória da realidade imaginária, da fantasia, desta outra dimensão paralela
que há de surgir. É essa realidade imaginária que tece uma ponte com a questão da
busca, mediada pela curiosidade que é a postura considerada como sendo
213
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.76
152
característica tanto da criança quanto o filósofo. A curiosidade é fundamntal para
o olhar inaugural que ainda se re-encanta com o cotidiano, que vê o fantástico
para além da frívola e tediosa rotina. O nome do segundo capítulo é “O que Lúcia
encontrou”, que vai reforçar o caráter de busca, de procura, que é exatamente a
postura filosófica. Também Alice (Através do espelho e o que Alice encontrou lá
é o título que muitas vezes é eclipsado), também Dorothy (ou talvez mais até o
Espantalho, mas de qualquer forma, é dos personagens dos universos destes
autores, deste topoi que falo), também a outra Lúcia (Narizinho), são
exploradoras.
Pouco depois, espiavam uma sala onde só existia existia um imenso guarda-
roupa, daqueles que têm um espelho na porta. Nada mais na sala, a não ser uma
mosca morta no peitoril da janela.
– Aqui não tem nada! – disse Pedro, e saíram todos da sala.
Todos menos Lúcia. Para ela, valia a pena tentar abrir a porta do guarda-roupa,
mesmo tendo quase certeza de que estava fechada à chave.” (…)
“Sentiu-se um pouco assustada, mas, ao mesmo tempo, excitada e cheia de
curiosidade? 214
No seu caminho exploratório, Lúcia Pevensie tem sua identidade posta em
xeque, como, por exemplo, no clássico momento que Alice encontra a Lagarta.
Agora é um fauno que fica desconcertado com a aparição:
Mas você é, desculpe, o que chamam de menina?
Claro que sou uma menina – respondeu Lúcia.
– Então é de fato uma humana?
– Evidente que sou humana! – disse Lúcia, bastante admirada. (…)
Era um fauno. Quando viu Lúcia, ficou tão espantado que deixou cair os
embrulhos. – Ora bolas!, exclamou o fauno. 215
Pude pontuar várias questões da ordem da filosofia que mereceriam um
estudo independente. Todavia, trata-se de um capítulo que possui como viés a
ilustração do desenvolvimento crítico, realizado pelos textos literários, na
discussão dos primados e dos paradigmas da filosofia e de sua relação como
outros modos possíveis de fazer filosofia. Um outro tema possível é a questão da
arbitrariedade do signo linguístico, conforme o trecho que nomeia e situa: “Filha
214
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.77 215
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.78
153
de Eva das terras longínquas de Sala Vazia, onde reina o verão eterno da bela
cidade de Guarda-Roupa”216
Também em Nárnia, os livros são considerados como algo valioso,
conforme se percebe ao adentrarmos, com Lúcia, o quarto do Sr. Tumnus. A
ironia dos títulos reforça o deslocamento do antropocentrismo tradicional (no
capítulo Era um fauno). Ainda assim, é uma reflexão que não deixa de ser
tributária da tradição, na referência clássica ao deuses Sileno e Baco, do panteão
helênico.
Num canto, uma porta. "O quarto do Sr. Tumnus", pensou Lúcia. Encostada à
parede, uma estante cheia de livros, que ela ficou examinando enquanto ele
preparava o chá. Os títulos eram esquisitos: A vida e as cartas de Sileno; As
ninfas e suas artes; Homens, monges e guardas do bosque; Estudo da lenda
popular; É o homem um mito? 217
Quando Lúcia já não podia comer mais, o fauno começou a falar. Sabia histórias
maravilhosas da vida na floresta. Falou das danças da meia-noite; contou como as
ninfas, que vivem nas fontes, e as dríades, que vivem nos bosques, aparecem para
dançar com os faunos. Falou das intermináveis caçadas ao Veado Branco, branco
como leite, que, se for apanhado, permite que a pessoa realize todos os desejos. E
dos banquetes, e dos bravos Anões Vermelhos procurando tesouros nas minas
profundas e nas grutas. Depois falou do verão, quando os bosques eram verdes e
o velho Sileno vinha visitá-los num jumento enorme, e, algumas vezes, até o
próprio Baco.” (…)
A melodia dava a Lúcia vontade de rir e chorar, de dançar e dormir, tudo ao
mesmo tempo. 218
Lúcia, em êxtase, tomada pela hybris, algo rotineiro para um fauno, mas
verdadeiramente incomum para uma menina do século XX e, mais ainda, para o
leitor que entra em contato com a história. Um êxtase que tira a criança de seu
“juízo” e que discute a hegemonia da Razão. “– E agora, Filha de Eva, já sabe o
caminho?” – Sei, estou vendo o guarda-roupa.” 219
Lúcia agora já está
independente em seu caminho. Ela sabe o caminho. Precisa, é certo, de uma tábua
de salvação, de uma imagem da realidade conhecida (Não há lugar como o lar,
diria Dorothy), mas ao mesmo tempo, foi afetada pela fantasia e não será jamais a
mesma depois de seu encontro com o Sr. Tumnus e Nárnia.
Lúcia saiu correndo da sala vazia e achou os três no corredor.
– Tudo bem; já voltei.
216
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.79. 217
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.79. 218
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.80. 219
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.82.
154
– Do que você está falando, Lúcia? – perguntou Susana.
– O quê! – disse Lúcia, admirada. – Mas vocês não ficaram preocupados?
– Então, você andou escondida, hein? – disse Pedro. – Coitada da Lúcia! Ficou
escondida e ninguém reparou! Você tem de ficar escondida mais tempo, se quiser
que alguém se lembre de ir procurá-la.
– Mas eu estive fora muitas horas – disse Lúcia.
Os outros se entreolharam.
– Sua boba! – disse Edmundo, batendo de leve na cabeça. –Completamente boba!
– O que você está querendo dizer, Lu? – perguntou Pedro.
– Exatamente o que eu disse. Entrei no guarda-roupa logo depois do café. Fiquei
fora muito tempo, tomei chá… Aconteceram muitas outras coisas.
– Não fique bancando a boboca, disse Susana. Saímos da sala agora mesmo e
você ainda estava lá.
– Ela não está bancando a boboca – disse Pedro. – Está imaginando uma história
para se divertir, não é, Lúcia?
– Não é não, Pedro. É… um guarda-roupa mágico. Lá dentro tem use quiserem,
vamos ver.
Os outros não sabiam o que pensar, mas Lúcia estava tão agitada que todos a
acompanharam à sala. (…) – Vamos, entrem, vejam com seus próprios olhos. 220
Lúcia agora tem um confronto com a realidade. A realidade só é realidade
para aquele que o observa? Os irmãos não vivenciaram a experiência, e é claro,
que pela sua condição de mais nova dos irmãos, sua visão de mundo é facil e
rapidamente desqualificada, como ignorância das regras do mundo (“não é assim
que se brinca, é necessário deixar que sintam falta de você”), como limitação
intelectual (Susana e Edmundo a chamam de boboca). Pedro com uma postura
que é ainda mais profundamente discriminatória, diz que não é que esteja sendo
boboca, mas está tão somente imaginando uma história para se divertir. Assim,
imaginação é equivalente a diversão, mediada pela efabulação. E nada além. Ao
final, a frase que fecha e equaciona: os outros não sabiam o que pensar. Saber e
pensar estão frontalmente abalados, pois o que eles possuem não é suficiente.
Lúcia convoca a seguirem para verificarem através da percepção o que ela
experimentou. Mas como se sabe, Lúcia terá que esperar um pouco mais antes de
ter seus irmãos comungando da vivência de Nárnia. E antes disso, o descrédito, já
que o guarda-roupa negaceia e mostra apenas um fundo comum e sólido. Mais à
frente, é Edmundo, o garoto que mais provocava e tripudiava de Lúcia que vai ver
que tudo o que é sólido se desmancha no ar. Será o segundo a adentrar nos
domínios da Feiticeira Branca. Os irmãos mais novos, talvez os que ainda não
totalmente comprometidos. Pedro e Susana, ainda “embarcam” na ação que ocorre
em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Contudo, já em Príncipe Caspian, o
220
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.82
155
mais velho dos irmãos Pevensie, ao conversar com a caçula sobre o seu destino e
o de Susana, afirma que não retornará à Nárnia pois “Aslam diz que já estamos
grandes demais” 221
“Lúcia saiu correndo da sala vazia e achou os três no corredor. – Mas não
é mentira coisa nenhuma. Palavra de honra! Há um minuto tudo estava diferente.
Palavra que estava.” 222
Verdade e mentira. O que é verdade, o que é mentira?
Mentira para um, verdade para outros? A verdade se altera de acordo com a
subjetividade? Ou trata-se de uma causa sui? Lúcia lida com tal dilema filosófico
e mais ainda com a discussão da dinâmica do real. Será que o real se desvela e se
revela ao seu bel-prazer? Tudo estava diferente. Palavra que estava. Lúcia se
aferra na palavra (na linguagem) como âncora para referendar sua experiência.
Ledo engano. Outro excerto: “Mas queria pelo menos dar uma espiada, porque,
naquela altura, ela própria já começava a se perguntar se Nárnia e o fauno não
passavam de um sonho.” 223
Lúcia foge do dilema ético per se. E se aproxima da
seara metafísica, ao aventar a possibilidade onírica. Pois o sonho é uma fantasia já
aceita, legitimada pela Razão. Uma realidade transfigurada que tem a chancela do
mundo real. Nem os outros estavam errados, nem Lúcia propriamente certa. Uma
saída de consenso. Lewis vai construindo seu topos gradualmente e um a um, os
irmãos vão aceitando o portal para o mundo paralelo. Edmundo, que, talvez muito
mais por uma postura de implicância com a pequena irmã do que porque
desacreditar de Nárnia, é o segundo a penetrar, solitário, no guarda-roupa mágico.
E faz um interessante mea culpa, que, além de tudo reforça a posição de Lewis
sobre a questão dos mundos paralelos. Já dentro no guarda-roupa, já situado em
Nárnia, “Edmundo tiritava de frio. Lembrou-se então de que andava à procura de
Lúcia. Lembrou-se também de que a tratara mal por causa desse país imaginário,
que de imaginário nada tinha.”224
Outra discussão importante é posta em questão logo no início do livro,
quando Edmundo encontra a Feiticeira Branca e ela, investiga sua natureza,
indagando não “quem é ele”, mas sim “o que é ele?”. Uma radical diferença de
posicionamento e uma profunda problemática filosófica aparece, para além
daquela que está configurada como pulsão narrativa mais explicita que é o
221
LEWIS, C.S. Príncipe Caspian, in: As crônicas de Nárnia. p.285 222
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.82. 223
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.83 224
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.84
156
surgimento do mal, na figura da antagonista (antes mesmo do surgimento do herói
supremo do universo narniano: o leão Aslam). Não é casual o fato da ordem de
entrada em cena das personagens que são os motores narrativos do enredo – pois
as personagens principais, até por identificação com os leitores são as quatro
crianças – (o guarda-roupa, a feiticeira e o leão) é inversa à do título do livro. Mas
retomando a questão posta por Jadis, que abre para a criança (na verdade, para
qualquer leitor), a possibilidade da diversidade, ao questionar a condição humana
como única, hegemônica e tácita. Não pergunta “Quem é você?”, mas sim, o que é
você? E três vezes.
– Ei, você! O que é você? – perguntou a dama, cravando os olhos em Edmundo.
– Eu… eu… meu nome é Edmundo – respondeu ele, meio atrapalhado. Não
estava gostando nada do jeito dela. A dama franziu as sobrancelhas.
– É assim que você fala a uma rainha?
– Perdão, Majestade, mas eu não sabia.
– Não conhece a rainha de Nárnia? – exclamou ela, mais severa. – Pois vai passar
a me conhecer, daqui por diante. Repito: o que é você?
– Queira desculpar, Majestade. Não estou sabendo o que a senhora quer dizer. Eu
ainda estou na escola… pelo menos estava… agora estou de férias.
– Mas o que é você? – tornou a rainha. – Por acaso um anão que cresceu demais e
resolveu cortar a barba?
– Não, Majestade; eu nunca tive barba, sou ainda um menino. Um menino! Quer
dizer, um Filho de Adão?
Edmundo ficou parado sem dizer nada. Já se sentia todo confuso.
– Seja lá o que for, acho que se trata também de um débil mental. Responda logo,
se não quer que eu perca paciência. Você é humano? 225
As crianças têm destaque nas narrativas selecionadas como
questionadoras, argutas, não conformistas, curiosas, com pendores filosóficos.
Mas ocasionalmente há adultos que também possuem o tal olhar diferenciado, de
encantamento, que “embarcam na onda” das crianças e se lançam tanto no
imaginário pelo prazer da fruição ou instigados por um mood reflexivo. Não nos
livros de Alice nem em O Mágico de Oz, mas Dona Benta e Tia Nastácia são as
representantes brasileiras. Na obra de C. S. Lewis, poderíamos citar o Tio André
que tem destaque em O sobrinho do mago e participação especial em O leão, a
feiticeira e o guarda-roupa. Tio André, inclusive, demonstra uma postura que
surpreende as crianças mais velhas – Pedro e Susana – que já esperavam que ele
desacreditassem tanto da história quanto da própria Lúcia, quando foram lhe pedir
auxílio e amparo:
225
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.85
157
Na manhã seguinte, resolveram contar tudo ao professor. Depois escreveremos a
papai, se o professor achar que Lúcia não está boa da cabeça (…)
Escutou-os com toda a atenção, dedos cruzados, sem interrompê-los até o fim da
história. Ficou calado durante muito tempo. Tossiu para limpar a garganta. E
disse a coisa que eles menos podiam esperar:
– E quem disse que a história não é verdadeira? 226
– Lógica! – disse o professor para si mesmo. – Por que não ensinam, mais lógica
nas escolas? – E dirigindo-se aos meninos, declarou: – Só há três possibilidades:
ou Lúcia está mentindo; ou está louca; ou está falando a verdade. Ora, vocês
sabem que ela não costuma mentir, e é evidente que não está louca. Por isso,
enquanto não houver provas em contrário, temos que admitir que está falando a
verdade.
Susana olhou para ela muito séria: o professor não estava brincando.
– Mas como é que pode ser verdade, professor?
– E por que você duvida?
– Bem – disse Pedro –, então, se é verdade, por que não encontramos sempre o
tal país fantástico ao abrir a porta do guarda-roupa? Não havia nada lá quando
olhamos; nem Lúcia teve coragem de fingir que havia.
– E isso prova o quê? – perguntou o professor.
– Ora, ora, se as coisas são verdadeiras, estão sempre onde devem estar.
– Tem certeza, Pedro?
Ele não foi capaz de responder.
– Mas ela não teve tempo! – disse Susana – mesmo que esse país existisse, Lúcia
não teve tempo de ir lá. Veio correndo atrás de nós, logo que saímos da sala.
Demorou menos de um minuto, e ela diz que passou horas lá.
– Pois é exatamente isso que me faz acreditar na história. – disse o professor. –
Se, de fato, existe nesta casa uma porta aberta para um outro mundo (e devo dizer
que esta casa é muito estranha, e eu mesmo mal a conheço), e se Lúcia conseguiu
chegar a esse mundo, não ficaria nada admirado se ela houvesse encontrado lá
um tempo diferente; assim, podia muito bem acontecer que, embora ela ficasse
muito tempo lá, a gente não percebesse isso no tempo do nosso mundo. Lúcia, na
idade dela, não deve saber disso. Logo, se estivesse fingindo, deveria ficar
escondida durante mais tempo, para depois contar a mentira.
– Mas, professor, acha mesmo que pode existir outro mundo, em qualquer lugar,
tão pertinho? Será possível?
– É muito possível – disse o professor, tirando os óculos para limpá-los. – Eu
gostaria de saber o que estas crianças aprendem na escola! – murmurou para si
mesmo. 227
E este seria o fim da história se as crianças não se sentissem na obrigação de
explicar ao professor por que quatro casacos tinham desaparecido do guarda-
roupa. E o professor (um sujeito de fato fora do comum) não lhes disse que
deixassem de ser bobos ou inventar histórias. Acreditou.
– Não! – disse ele. – Realmente. Não creio que valha a pena entrar pelo guarda-
roupa para procurar os casacos. Por esse caminho, nunca mais irão a Nárnia.
Nem os casacos serviriam muita coisa agora. Hein? Que tem isso? É claro que
um dia vocês voltarão a Nárnia. Quem é coroado rei em Nárnia, sera sempre rei
em Nárnia. Mas não tentem seguir o mesmo caminho duas vezes. Na verdade,
vocês nem devem fazer coisa alguma para voltar a Nárnia. Nárnia acontece.
Quendo menos esperarem, pode acontecer. E não falem muito sobre o que
aconteceu, mesmo entre vocês. Sobretudo, não digam nada aos outros. A não ser
226
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.89 227
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.90
158
se descobrirem que eles próprios visitaram países do mesmo gênero. O quê?
Como irão saber? Ora, ora, não é nada difícil, não se incomodem. Coisas que as
pessoas dizem… Até pelo olhar… e lá se foi o segredo. Abram bem os olhos!
Céus! O que é que estão ensinando às crianças na escola? 228
Como tal tipo de pensamento em adultos não é convencional, mas é
exatamente o que defendo como sendo necessário para a construção de uma nova
crítica de fantasia bem como para um diferenciado modo do fazer filosófica – vale
notar que concebo como via de mão dupla, tanto como crítica de literatura
fantástica quanto como epistemologia – cumpre ressaltar alguns elementos
interessantes nos trechos acima incluídos. Trata-se de uma passagem que explicita
sua postura que me faz recordar a doutrina sensacionista: Nárnia acontece.
Quando menos esperarem, pode acontecer. O tio das crianças insiste na
necessidade de se aprender lógica nas escolas – o que louvável por ser um ramo
da filosofia – mas parece mais afinado com um tipo de filosofia ancestral,
originário, que para muitos, ainda não pode se chamada de filosofia por não se
caracterizar como tal. O enfoque do pensadores originários, também chamados de
pré-socráticos, mais abertos a soluções mais “fantásticas” para a compreensão do
mundo que os cercava. Ele, ao dizer “Não tentem seguir o mesmo caminho duas
vezes”, parece-me bem sintonizado com Heráclito de Éfeso no aforismo que a
contemporaneidade quase transformou em um clichê filosófico: um homem não
toma banho duas vezes no mesmo rio. O rio muda, muda o homem. Adiciona um
conselho muito interessante, de fina ironia, especialmente para as crianças que
estavam abaladas por estarem lidando como uma possibilidade que,
diferentemente da irmã, elas não conseguiam ver: “abram bem os olhos!”
Lewis continua escancarando a porta do armário filosófico quando
explicita a indignação do adulto, que, exasperado, diz: “O que estão ensinando às
crianças na escola? Lógica e filosofia!! É o que se deve ensinar!!” É digno de
nota, para dizer o mínimo, que uma narrativa de fantasia da Grã-Bretanha do
século XX toque em questões que já eram um incômodo para os adultos da época,
naquelas condições sócio-econômicas: se o que as crianças estavam aprendendo
iria lhes servir para exercerem plenamente sua condição humana! Ou seja, como
sempre rotulam a fantasia: uma temática alienante, em nada relacionada com a
nossa realidade brasileira da segunda década do século XXI.
228
LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.133-4.
159
5.3 Lewis Carroll Através do Espelho e no País das Maravilhas
A história de Alice, ou as suas histórias, já que por vezes são tomadas
como um mix coeso, e por outras, considera-se apenas as aventuras ocorridas
situadas no País das Maravilhas (descartando as peripécias acontecidas através do
espelho) e ainda as recriações, gerando algo inteiramente distinto, com
personagens dos dois livros ambientados em um dos mundos, como é o exemplo
recente da adaptação cinematográfica produzida, se plasmaram de tal maneira na
cultura globalizada e no inconsciente coletivo que qualquer análise sobre o
canônico texto incorre no risco de contribuir com platitudes ou com falas inócuas.
Infelizmente (ou felizmente), para o meu estudo, a personagem carolliano de
maior destaque se constituiu como fundamental para Alice ao subverter a lógica
com seu nonsense e o questionamento radical de problematizações tanto
ontológicas quanto de filosofia de linguagem.
Reitero minha justificativa pela extensão das citações literárias ora aqui
apresentadas. A ideia da perspectiva de análise (não utilizo o termo método não
apenas por não se configurar como tal, mas também por ser contrário) do que
denominarei no próximo capítulo como Encanto Crítico aposta na força do
literário, na pulsão filosófica que emana do próprio texto, o que faz com que seja
necessária a fruição em intensidade pela que por vees um diminuto excerto não
seja capaz de transmitir.
Optei por manter um semi-amálgama dos canônicos textos carollianos,
apresentando “as duas Alices” quase que fusionadas, já que utilizei um volume
único que agrupou ambos livros, a saber, Aventuras de Alice no País das
Maravilhas e Através do Espelho e o que Alice encontrou lá.
160
5.3.1 Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho e o que Alice encontrou lá
“De que serve um livro sem figuras nem diálogos” é um dos trechos mais
citados na literatura infantil universal, bem como em oficinas de leitura e contação
de histórias e até mesmo em cursos de produção editorial ou design gráfico
voltado para livros, dada seu teor de inovação e ousadia ao trazer a autoreferência
e a metalingaguem para um produto artístico-cultural para a criança, inicialmente,
do século XIX.
Seguindo com a leitura do texto, logo no início, verifica-se que há o
estabelecimento de um pacto com o leitor e que, a partir deste acordo, nada há de
tão extraordinário em ouvir um coelho dizer: “Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado
demais”. Há uma lembrança de que deveria ter havido estranhamento crítico, mas
não houve para o momento. Ou seja, já no início do texto, fica patente que a
subversão da lógica, do pensamento tradicional e esperado, o questionamento
constante e recorrente reflexão pautará os livros. De certa forma, “Através do
espelho…” é um prolongamento das problematizações que já emergem nas
passagens iniciais de País das Maravilhas.
Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irmã na
ribanceira, e de não ter nada que fazer; espiara uma ou duas vezes o livro que
estava lendo, mas não tinha figuras ou diálogos, e “de que serve um livro",
pensou Alice, “sem figuras nem diálogos?". 229
Não havia nada de tão extraordinário nisso; nem Alice achou assim tão esquisito
ouvir o Coelho dizer consigo mesmo: “Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais
(quando pensou sobre isso mais tarde, ocorreu-lhe que deveria ter ficado
espantada, mas na hora tudo pareceu muito natural). 230
tão de repente que Alice não teve um segundo para pensar em parar antes de se
ver despencando num poço muito fundo. 231
229
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.13 230
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.13 231
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.14.
161
Alice começa a pensar que coisas realmente impossíveis são raridade, o
que é uma outra forma de dizer que o impossível, o estranho, o insólito, das
unheimliche, é muito comum e frequente. Tal assunção é o início de caminho
reflexivo, de uma jornada de fazer filosófico que considera como natural o que
está fora dos padrões, o que não é simplesmente o que o mundo apresenta de
saída. Há que se ver o diferente, o que está fora da norma, do convencional, ou
como está presente em uma expressão do próprio texto de Carroll, aquilo que está
para além da “insípida realidade”.
Então, ocorre o esgarçamento identitário como complemento ao processo
de se indagar o entorno, o mundo das coisas e dos fenômenos. Por vários trechos,
Alice é questionada e, ao longo do processo, ela percebe que sua suma certeza,
isto é, “quem sou eu”, não pode ser tida como um dogma ou um axioma. A chave
se esconde no texto, quando Alice diz: “Ah, este é o grande enigma.” É
interessante acompanhar o crescente movimento de reflexão que culminará com a
afirmação de que ela sabe que está tudo errado e o momento que ela assume e
aceita que é Mabel, que sua identidade foi trocada por uma menina que,
anteriormente, Alice julgava saber muito menos do que ela, mas que agora, parece
ser uma persona bem mais adequada aos seus anseios e inquietações:
E aqui Alice começou a ficar com muito sono, e continuou a dizer para si mesma,
como num sonho: "Gatos comem morcegos? Gatos comem morcegos?" e às
vezes "Morcegos comem gatos?", pois, como não sabia responder a nenhuma das
perguntas, o jeito como as fazia não tinha muita importância. 232
Pois, vejam bem, havia acontecido tanta coisa esquisita ultimamente que Alice
tinha começado a pensar que raríssimas coisas eram realmente impossíveis. 233
Ai, ai! Como tudo está esquisito hoje! E ontem as coisas aconteciam exatamente
como de costume. Será que fui trocada durante a noite? Deixe-me pensar: eu era
a mesma quando me levantei esta manhã? Tenho uma ligeira lembrança de que
me senti um bocadinho diferente. Mas, se não sou a mesma, a próxima pergunta
é: "Afinal de contas quem sou eu?" "Ah, este é o grande enigma!" E começou a
pensar em todas as crianças da sua idade que conhecia, para ver se poderia ter
sido trocada por alguma delas.
"Ada com certeza não sou", disse, "porque o cabelo dela tem cachos bem longos,
o meu não tem cacho nenhum; é claro que não posso ser Mabel, pois sei todo tipo
de coisas e ela, oh! sabe tão pouquinho! Além disso, ela é ela, e eu sou eu, e… ai,
ai, que confusão é isto tudo! Vou experimentar para ver se sei tudo que sabia
232
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.16. 233
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.18.
162
antes. Deixe-me ver: quatro vezes cinco é doze, e quatro vezes seis é treze, e
quatro vezes sete é… ai, ai, deste jeito não vou chegar a vinte! Mas a tabuada de
multiplicar não conta; vamos tentar Geografia. Londres é capital de Paris, e Paris
é capital de Roma, e Roma… não, está tudo errado, eu sei! Devo ter sido trocada
pela Mabel!" 234
Nas narrativas infantis existem personagens coadjuvantes que adquirem tal
destaque que por vezes chegam mesmo a eclipsar a personagem principal. No País
das Maravilhas, não se poderia afirmar que há tamanha obnubilação, mas a
Lagarta Azul, como o Chapeleiro Louco, possui seu lugar cativo no imaginário
carrolliano. A primeiríssima fala pronunciada pelo lepidóptero larvar é uma das
mais clássicas indagações filosóficas da humanidade: “– Quem é você?”,
perguntou Lagarta. E a resposta que se segue é uma das mais pujantes cenas da
literatura: “Eu… mal sei, Sir, neste exato momento…” Anti-heroína por
excelência, Alice expõe seus predicados de humilde pensadora, ou seja, ao
escancarar suas certezas, é quando deixa transparecer toda sua potência
intelectual. Ainda que o apanhado de citações seja extenso, vale acompanhar a
verve de Carroll, no melhor do estilo, abusando do típico wit inglês:
Havia perto dela um cogumelo grande, quase da sua altura; quase da sua altura;
depois de olhar embaixo dele, e dos dois lados, e atrás, ocorreu-lhe que não seria
má idéia espiar o que havia em cima dele.
Esticou-se na ponta dos pés e espiou sobre a borda do cogumelo e seu olhar
encontrou imediatamente o de uma grande lagarta azul, sentada no topo, de
braços cruzados, fumando tranquilamente um comprido narguilé, sem dar a
minima atenção a ela ou a qualquer outra coisa. 235
A Lagarta e Alice ficaram olhando uma para a outra algum tempo em silêncio.
Finalmente a Lagarta tirou o narguilé da boca e se dirigiu a ela numa voz
lânguida, sonolenta.
"Quem é você?", perguntou Lagarta.
Não era um começo de conversa muito animador. Alice respondeu, meio
encabulada: "Eu… mal sei, Sir, neste exato momento… pelo menos sei quem eu
era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças
desde então."
"Que quer dizer com isso?" esbravejou a Lagarta. "Explique-se!"
"Receio não poder me explicar’, respondeu Alice, porque não sou eu mesma,
entende?
"Não entendo", disse a Lagarta.
234
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.26. 235
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.53-4.
163
"Receio não poder ser mais clara, Alice respondeu com muita polidez, pois eu
mesma não consigo entender, para começar; e ser de tantos tamanhos diferentes é
muito perturbador."
"Não é’, disse a Lagarta.
"Bem, talvez ainda não tenha descoberto isso", disse Alice; "mas quando tiver de
virar uma crisálida… vai acontecer um dia, sabe… e mais tarde uma borboleta,
diria que vai achar isso um pouco esquisito, não vai?"
"Nem um pouquinho", disse a Lagarta.
"Bem, talvez seus sentimentos sejam diferentes", concordou Alice; "tudo que sei
é que para mim isso pareceria muito esquisito."
"Você!’ desdenhou a Lagarta.‘Quem é você?"
O que as levou de novo para o início da conversa. Alice, um pouco irritada com
os comentários tão breves da Lagarta, empertigou-se e disse, muito gravemente:
‘Acho que primeiro você deveria me dizer quem é.’
"Por quê?" indagou a Lagarta.
Aqui estava outra pergunta desconcertante; e como não pudesse atinar com
nenhuma boa razão, e a Lagarta parecesse estar numa disposição de ânimo muito
desagradável, Alice deu meia-volta.
"Volte!" chamou a Lagarta. "Tenho uma coisa importante para dizer!"
Isso parecia promissor, sem dúvida; Alice se virou e voltou.
"Controle-se", disse a Lagarta.
"Isso é tudo?" quis saber Alice, engolindo a raiva o melhor que podia.
"Não", respondeu a Lagarta.
Alice pensou que podia muito bem esperar, já que não tinham mais nada a fazer e
talvez, afinal, ela dissesse alguma coisa que valesse a pena ouvir. Por alguns
minutos a Lagarta soltou baforadas sem falar, mas por fim descruzou os braços,
tirou o narguilá da boca de novo e disse: "Então acha que está mudada, não é?"
"Receio que sim, Sir", disse Alice. "Não consigo me lembrar das coisas como
antes… e não fico do mesmo tamanho poe dez minutos seguidos!"
"Não consegue se lembrar de que coisas?" perguntou a Lagarta.236
"Eu não sei", disse a Lagarta.
Alice não disse nada: nunca fora tão contestada em sua vida e sentiu que estava
perdendo a paciência.237
De extrema importância, apesar de ser uma passagem curta e discreta, é o
excerto acima, que apresenta o mutismo de Alice ao encarar o ápice da
contestação sofrida. Ao se sentir afrontada, nota que está perdendo a paciência. E
a narrativa segue, reiteradamente pondo a subjetividade de Alice em encruzilhada
de suspeita. A desconfiança da Pomba de que Alice é, na verdade, uma cobra, é de
uma mordacidade sofista à toda prova. E para reforçar o caráter de construção do
conhecimento por intermédio da aceitação da ignorância e da necessidade da
abertura às possibilidades trazidas pela fantasia, o diagnóstico da Duquesa
dirigido à menina: “Você não sabe grande coisa. E isto é um fato.”
236
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.58. 237
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.60.
164
"E justamente quando escolhi a árvore mais alta do bosque", continuou a Pomba,
elevando a voz a um guincho, "justamente quando estava pensando que
finalmente que me veria livre delas, elas têm de descer do céu se retorcendo!
Arre, Cobra!"
"Mas não sou uma cobra, estou lhe dizendo!’ insistiu a Alice. Sou uma…
uma…"
"Ora essa! Você é o quê?" perguntou a Pomba. "Aposto que está tentando
inventar alguma coisa!"
"Eu… eu sou uma menininha", respondeu Alice, bastante insegura, lembrando-se
do número de mudanças que sofrera aquele dia.
"Realmente uma história muito plausível!" disse a Pomba num tom do mais
profundo desprezo. Vi muitas menininhas com um pescoço desse! Não, não!
Você é uma cobra; e não adianta negar. Suponho que agora vai me dizer que
nunca provou um ovo!
"Provei ovos, sem dúvida!", disse Alice, que era uma criança muit sincera; ‘mas
Meninas comem quase tantos ovos quanto as cobras, sabe.’
"Não acredito nisso", declarou a Pomba; "mas, se comem, então são uma espécie
de cobra, é só o que posso dizer".
Era uma ideia tão nova para ela que Alice ficou em silêncio absoluto por um ou
dois minutos, o que deu à Pomba oportunidade para acrescentar: "Você está
procurando ovos, isso eu sei muito bem; o que me importa se é uma menininha
ou uma cobra?"
"Pois a mim, importa muito", Alice retrucou rápido (…) 238
"Por favor, poderia me dizer" perguntou Alice um pouco tímida, pois não sabia
se era de bom-tom falar em primeiro lugar, "por que seu gato tanto sorri?"
"É um gato de Cheshire", disse a Duquesa, "é por isso. Porco!"
Disse a última palavra com tão súbita violência que Alice deu um pulo; mas num
instante viu que era dirigida ao bebê, não a si. Diante disso, tomou coragem e
continuou:
"Não sabia que os gatos de Cheshire sempre sorriem; na verdade, não sabia que
gatos podiam sorrir."
"Todos podem", disse a Duquesa, e a maioria o faz."
"Não conheço nenhum que sorria", declarou Alice, com muita polidez, sentindo-
se muito contente por ter entabulado uma conversa.
"Você não sabe grande coisa", observou a Duquesa; "e isto é um fato." 239
Para encerrar o passeio pelo País das Maravilhas, três momentos que
abordam uma triangulação para o estudo: a desrazão (que tomada pela dicção do
senso comum pode ser visualizada em moldura mais chã, ou seja, a loucura), a
fantasia e a (insípida) realidade. No colóquio com o Gato de Cheshire, ele a alerta
para o fato de serem todos loucos ali e que Alice, ciente ou não, também comunga
desta condição, caso contrário, a menina lá não estaria. Depois, com o Grifo, ao
trocarem ideias a respeito da Rainha, afirma que é tudo fantasia dela. Dela, ada
Rainha, mas é possível uma leitura mais abrangente que tome a frase como um
238
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.64-5 239
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.70-1.
165
indicativo de que tudo é fantasia, propondo uma realidade fundada na fantasia. E,
ao final, uma aguda espetada no primado da Razão como nutriz da Realidade, ao
classificar a realidade como uma dimensão insípida, em oposição às exuberantes
maravilhas de “Wonderland”.
Alice tentou uma outra pergunta. "Que espécie de gente vive por aqui?" "Naquela
direção", explicou o Gato, acenando com a pata direita, "vive um Chapeleiro; e
naquela direção", acenando com a outra pata, "vive uma Lebre de Março. Visite
qual delas quiser: os dois são loucos." "Mas não quero me meter com gente
louca", Alice observou.
"Oh! É inevitável", disse o Gato; "somos todos loucos aqui". "Eu sou louco. Você
é louca."
Como sabe que sou louca?, perguntou Alice.
"Só pode ser", respondeu o Gato, ou não teria vindo parar aqui. 240
“O Grifo se sentou e esfregou os olhos; depois fitou a Rainha até que ela sumiu
de vista; em seguida disse com um risinho satisfeito, meio para si mesmo, meio
para Alice:
"Que engraçado!"
"Onde está a graça?" perguntou Alice.
"Ora, nela", disse o Grifo. "É tudo fantasia dela: nunca executam ninguém.
Vamos!" (…) "Qual é o problema dela? perguntou. O Grifo respondeu, quase
com as mesmas palavras de antes: "É tudo fantasia dela: não tem problema
nenhum. Vamos!" 241
“Ficou ali sentada, os olhos fechados, e quase acreditou estar no País das
Maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e tudo se transformaria em
insípida realidade…” 242
Através do Espelho e que Alice encontrou lá é um texto que foca bastante
na vereda da filosofia da linguagem e um frutífero estudo, que, infelizmente, não
foi possível encetar, seria uma leitura crítica com o viés de Wittgenstein. Por
outro lado, em termos metodológicos, seria uma contribuição tradicional, de uso
de uma clave filosófica para analisar um texto literário. O que tenciono
desenvolver é uma perspectiva filosófica que emerja da própria fantasia e não uma
instrumentalização externa para retirar pontos de contato, pontes entre a fantasia e
a filosofia.
De qualquer maneira, é patente que aqui e ali, é possível passagens que
impelem o leitor, no diálogo com o texto, a refletir, questionar e mesmo, por
240
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.76-8. 241
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.109-10 242
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.148.
166
abaixo, conceitos e concepções que farão sua mundividência ser alterada radical e
definitivamente. Humpty Dumpty confronta Alice que parecia estar conformada
com a estreita e sólida relação entre linguagem (nome) e ontologia (ser). Ao
repensar sua visão de mundo, acerca da arbitrariedade do signo linguístico e da
necessidade de significação para o ente, bem como da relação de poder imiscuída
do binômio ente-signo, Alice trafega em uma via filosófica de fluxo intenso.
"Não fique aí falando sozinha desse jeito", Humpty Dumpty disse, olhando para
ela pela primeira vez, "melhor me dizer seu nome e atividade…"
"Meu nome é Alice, mas…"
"Um nome bem bobo!" Humpty Dumpty a interrompeu com impaciência. O que
significa?’
"Um nome deve significar alguma coisa?" Alice perguntou ambiguamente.
"Claro que deve", Humpty Dumpty respondeu com uma risada curta. "Meu nome
significa meu formato… Aliás um belo formato. Com um nome como o seu, você
poderia ter praticamente qualquer formato."
"Por que fica sentado aqui sozinho?", disse Alice, não querendo iniciar uma
discussão.
"Ora, porque não há ninguém aqui comigo!"exclamou Humpty Dumpty. "Pensou
que não teria resposta para isso? Pergunte outra."243
"Quando eu uso uma palavra", disse Humpty Dumpty num tom bastante
desdenhoso, "ela significa exatamente o que eu quero que signifique: nem mais
nem menos."
"A questão é", disse Alice: "se pode fazer as palavras significarem tantas coisas
diferentes."
"A questão", disse Humpty Dumpty, "é saber quem vai mandar – só isto." 244
A ironia e o humor carrolliniano são dignos de nota, em especial no trecho
quando o Unicórnio se espanta e se encanta com a presença de uma criança
(Alice), que ele antes achava se tratar de mais um monstro fabuloso. E no instante
em que Alice confessa estar em situação análoga, é definido um pacto entre os
personagens no qual um passa a acreditar no outro, já que houve a comprovação –
por intermédio dos sentidos – da existência. E para finalizar, comprovando que
Carroll, assim como Baum, Lobato e Lewis, estava preocupado com a fruição
estética, com o entretenimento, mas que tinha como piso da sua produção literária
a crítica ácida e revolucionária, como deve ser a filosofia de boa cepa, vale um
detido olhar na última frase da narrativa que, definitivamente, convoca o leitor ao
243
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.239. 244
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e
o que Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.245.
167
exercício filosófico, conjugando os movimentos complementares de se fechar o
livro e de se abrir para o pensamento.
"O que… é… isso?" disse finalmente.
"Isto é uma criança!" Haigha respondeu animadamente, passando à frente de
Alice para apresentá-la e esticando as duas mãos bem abertas em direção a ela
com suas maneiras anglo-saxãs. "Nós só a encontramos hoje: tamanho real e duas
vezes mais natural."
"Sempre achei que elas eram monstros fabulosos!" disse o Unicórnio.
"É viva?"
"Sabe falar", disse Haigha solenemente.
O Unicórnio lançou para Alice um olhar sonhador e disse: "Fale, criança."
Alice não conseguiu conter um sorriso ao começar:
"Sabe, sempre pensei que os Unicórnios eram monstros fabulosos também!
Nunca vi um vivo antes."
"Bem, agora que nos vimos um ao outro", disse o Unicórnio, "se acreditar em
mim, vou acreditar em você. Feito?"
"Feito, se lhe agrada’, disse Alice."245
"Agora, Kitty, vamos pensar bem quem foi que sonhou tudo isso. É uma questão
séria, minha querida, e você não devia ficar lambendo a pata desse jeito… Como
se a Dinah não tivesse lhe dado banho esta manhã! Veja bem, Kitty, ou fui eu ou
foi o Rei Vermelho. Ele fez parte do meu sonho, é claro… mas nesse caso eu fiz
parte do sonho dele também! Terá sido o Rei Vermelho, Kitty? Você era a
mulher dele, minha cara, portanto deveria saber… Oh, Kitty, me ajude a resolver
isto! Tenho certeza de que sua pata pode esperar!" Mas a implicante gatinha só
fez começar com a outra pata, fingindo não ter ouvido a pergunta.
Quem você pensa que sonhou? 246
5.4 José Bento Monteiro Lobato e Sítio do Picapau Amarelo
Depois das estações Oz, Nárnia, País das Maravilhas e Através do
Espelho, chego ao Sítio do Picapau Amarelo. A vida e a obra de Monteiro Lobato
– em especial, para o interesse presente, a denominada obra infantil – já recebeu
todo tipo de ataque, bem como um sem-número de análises. Entre os estudos
laudatórios e os equívocos rastaqueras (e suas alternâncias, isto é, equívocos
245
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e
o que Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.263-4. 246
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que
Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.315.
168
laudatórios e estudos rastaqueras), apenas uma certeza: ainda há muito o que
pesquisar. Uma recente e premiada antologia de investigações em teoria literária
que tem como viga mestra a formação de novos pesquisadores de estudos
lobatianos foi organizada por Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini 247
.
Naturalmente, como toda antologia e seu caráter de feixe em torno de um eixo, há
de haver ensaios mais filiados ao núcleo da questão e outros tantos mais afastados
do seu cerne. Todavia, vale pinçar trechos de dois artigos que, ao abordar livros
geralmente menos incensados dentro da crítica lobatiana (Geografia de Dona
Benta e Aritmética de Emília, pertencentes ao conjuntos dos denominados mais
didáticos da obra infantil de Lobato), trazem boas contribuções para a presente
discussão, sobre a construção do conhecimento e os tênues limites entre real e
irreal, história e ficção, vida e obra, pessoa e personagem, narrador e autor,
fantasia e realidade. Esta tese é, tão somente, mera ampliação de um comentário
no qual acrescentaria: fantasia e filosofia…
Na voz das personagens do Sítio, há o espaço para o conhecimento erudito e para
o popular, para a ciência e a crendice, para o real e o irreal. Embora pareça
contraditório, é a presença das diferenças que caracteriza tão bem a estrutura da
obra infantil de Lobato, marcada por estratégias de comunicação que prevêem a
interação entre leitor e obra, bem como a identificação dos leitores com
personagens e com comportamentos adotados por estas, nas obras. As crianças
podem questionar, tomar decisões, apresentar conclusões, tendo sempre o aval do
adulto, que abre espaço para o diálogo, a crítica, a fim de que todos possam
alcançar a maturidade por meio do conhecimento adquirido. 248
Segundo Lajolo (apud Prado, 2006), quando os personagens discutem seu
estatuto de ficção, o espaço ficcional pode ganhar foros de realidade, e o leitor é
convidado a pisar cuidadosamente nos estreitos limites entre a fantasia e a
realidade, o narrador e o autor, a ficção e a história, o personagem e a pessoa. 249
247
LAJOLO, Marisa & CECCANTINI, João Luís. (Orgs.). Monteiro Lobato, livro a livro: obra
infantil. Imprensa Oficial / Editora UNESP, 2008.) 248
CARDOSO, Rosimeire Darc. “Geografia de Dona Benta: o mundo pelos olhos da imaginação”.
in: LAJOLO, Marisa & CECCANTINI, João Luís. (Orgs.). Monteiro Lobato, livro a livro: obra
infantil. Imprensa Oficial / Editora UNESP, 2008.) p. 301. 249
(p.284 - LUIZ, Fernando Teixeira. “Aritmética da Emília (1935): matemática para não
matemáticos?”. in: LAJOLO, Marisa & CECCANTINI, João Luís. (Orgs.). Monteiro Lobato,
livro a livro: obra infantil. Imprensa Oficial / Editora UNESP, 2008.)
169
5.4.1 O Saci
Oriundo da extensa pesquisa etnográfica e antropológica que resultou na
publicação O Sacy-Perêrê, resultado de um inquérito, de 1918, e embalado pelo
sucesso de receptividade de público e de vendas tanto de A menina do narizinho
arrebitado quanto de Narizinho Arrebitado (ambos de 1920), o multitalentoso e
plurifacetado José Bento Monteiro Lobato lançou um novo livro voltado para
crianças: O Saci, de 1921, que traz o menino de cidade grande às voltas com uma
criatura que demolirá suas certezas de forma definitiva.
A empáfia antropocêntrica do garoto letrado e urbano sofre um talho
vigoroso dado pelo duende genuinamente nacional. Discordo veementemente de
Evandro do Carmo Camargo (que faz questão de dizer que não acredita em sacis,
em tom de pilhéria regionalista, como espetada na SOSACI – Sociedade de
Observadores de Saci, criada no mesmo estado natal do pesquisador), em seu
artigo “Algumas notas sobre a trajetória editorial de "O Saci-Pererê", de Monteiro
Lobato”. Não apenas por acreditar em sacis, mas por frontalmente considerar que
O Saci não deve ser reduzido ao mero caráter utilitarista que Evandro do Carmo
Camargo quer impingir ao livro. A cartilha acadêmica indica que não deve
incorrer em postura de doxa, mas assumo que, em minha opinião, Camargo
incorreu em leitura ligeira.
O Saci é um livro curto, que não possui muita ação ou dramaticidade,
como, por exemplo, Caçadas de Pedrinho, Reinações de Narizinho ou O Picapau
Amarelo. É um livro de diálogos. Pedrinho troca ideias com Dona Benta, conversa
com Tia Nastácia, inquire Tio Barnabé e, principalmente, “duela” com o Saci.
Vários são os temas e os diálogos são tão elucidativos que fui tentado a (1) incluí-
los em sua extensão quase total; (2) pouco tergiversar, por receio de incorrer em
rala paráfrase do já exposto e, adicionalmente, por conta da posição metodológica
de discutir o quanto a ficção pode, ela própria, emanar suas saídas em um contato
menos intermediado pela teorização e pelo racionalismo.
Começando com Dona Benta, Pedrinho reflete criticamente para que a
inteligência não é exclusivamente humana, viés que perpassará todo o livro, isto é,
a crítica frontal e contundente ao antropocentrismo e a razão humana como única
170
forma de saber. “É uma coisa que o branco da cidade nega, diz que não há. Mas
há.”
– Mas então esses passarinhos raciocinam, vovó – têm inteligência...
– Está claro que têm, meu filho. A inteligência é uma faculdade que que aparece
em todos os seres, não só no homem. Até as plantas revelam inteligência. O que
há é que a inteligência varia muito de grau. É pequeniníssima nas galinhas e nos
perus, mas já bem desenvolvida no joão-de-barro. E é um colosso num homem
como Isaac Newton, aquele que descobriu a Lei da Gravitação Universal.250
– E também há sacis. – rematou Dona Benta.
Pedrinho calou-se. Embora nunca houvesse confessado a ninguém, percebia-se
que tinha medo de saci. Nesse ponto não havia nenhuma diferença entre ele, que
era da cidade, e os demais meninos nascidos e crescidos na roça. Todos tinham
medo de saci, tais eram as estórias correntes a respeito do endiabrado moleque
duma perna só.
Desde esse dia ficou Pedrinho com o saci na cabeça. Vivia falando em saci e
tomando informações a respeito. Quando consultou Tia Nastácia, a resposta da
negra foi, depois de fazer o pelo-sinal e dizer: “Credo!”:
– Pois saci, Pedrinho, é uma coisa que o branco da cidade nega, diz que não há –
mas há. Não existe negro velho por aí, desses que nascem e morrem no meio do
mato naquela tarde, que não jure ter visto saci. Nunca vi nenhum, mas sei quem
viu.
– Quem?
– O tio Barnabé. Fale com ele. Negro sabido está ali.Entende de todas as
feitiçarias, e de saci, de mula-sem-cabeça, de lobisomem – de tudo.
Pedrinho ficou pensativo.251
– Tio Barnabé, eu vivo querendo saber duma coisa e ninguém me conta direito.
Sobre o saci. Será mesmo que que existe saci?
(…) Pois, seu Pedrinho, saci é uma coisa que eu juro que “exéste”. Gente da
cidade não acredita – mas “exéste”. 252
Pedrinho soltou o saci e durante o resto da aventura tratou-o mais como um velho
camarada do que como um escravo. Assim que se viu fora da garrafa, o capeta
pôs-se a dançar e a fazer cabriolas com tanto prazer que o menino ficou com
arrependido por tantos dias ter conservado presa uma criaturinha tão irrequieta e
amiga da liberdade. 253
O garoto investiga, aprende, captura e liberta o saci. E aí começam os
diálogos, entre mestre e discípulo. O primeiro e primoroso diálogo filosófico do
saci com Pedrinho é longo, mas vale cada vírgula, cada ponto e vírgula, cada
ponto final.
E cutucou-a para ver se mexia. A folha, porém, não se mexeu.
250
LOBATO, Monteiro. O Saci. p.232. 251
LOBATO, Monteiro. O Saci. p.204. 252
LOBATO, Monteiro. O Saci. p.206. 253
LOBATO, Monteiro. O Saci. p.211.
171
– É folha mesmo, bobinho! – disse o saci dando uma risada. – Inda é muito cedo
para você “ler” a mata. Isto é livro que só nós, que aqui nascemos e vivemos toda
vida, somos capaz de interpretar. Um menino da cidade, como você, entende
tanto da natureza quanto eu de grego.
– Realmente, saci! Estou vendo que aqui na mata sou um perfeito bobinho. Mas
deixe estar que ainda ficarei tão sabido como você.
– Sim, como o tempo e muita observação. Quem observa e estuda acaba sabendo.
Aqui, porém, nós não precisamos estudar. Nascemos sabendo. Temos o instinto
de tudo. Qualquer desses bichinhos que você vê, mal sai dos casulos e já se
mostra espertíssimo, não precisando dos conselhos dos pais. Bem consideradas as
coisas, Pedrinho, parece que não há animal mais estúpido e mais lerdo para
aprender do que o homem, não acha?
O orgulho do menino ofendeu-se com aquela observação. Um miserável saci a
fazer pouco caso do rei dos animais! Era só o que faltava…
– O que você está dizendo – replicou Pedrinho – é tolice pura sem mistura.
O homem é o rei dos animais. Só o homem tem inteligência. Só ele sabe construir
casas de todo jeito, e máquinas, e pontes, e aeroplanos, tudo quanto há. Ah, o
homem! Você não sabe o que é o homem, saci! Era preciso que tivesse lido todos
os livros que li em casa da vovó…
O saci deu uma gargalhada.
– Que gabolice! – exclamou. – Casas? Qual é o bichinho que não constrói
sua casa na perfeição? Veja a das abelhas ou das formigas, ou os casulos.
Poderão existir habitações mais perfeitas? Todos aqui na mata moram. Cada um
inventa o seu jeito de morar. Todos moram. Todos, portanto, têm suas casinhas,
onde ficam muito mais abrigados do que os homens lá nas casas deles. O
caramujo, esse então inventou o sistema de carregar a casa às costas. É o mais
esperto. Vai andando. Assim que o perigo se aproxima, arreia a casa e mete-se
dentro.
– Casa, vá lá. – disse Pedrinho meio convencido. – Mas aeroplano? Que
bichinho daqui seria capaz de construir aviões como nós, homens, os
construímos?
Outra risada do saci.
– Olhe, Pedrinho, você está me saindo tão bobo que até me causa dó. Pois não vê
que o avião é máquina de voar mais atrasada que existe? Aqui os bichinhos de
asas estão de tal modo adiantados que nenhum precisa de mostrengos como o tal
avião. Todos possuem no corpo um aparelho de voar aperfeiçoadíssimo. Não vê
que voam, bobo? Outro dia assisti a uma cena muito interessante: Eu estava perto
duma lagoa cheia de patos quando passou um avião voando por cima de nossas
cabeças. Os patos entreolharam-se e riram-se. Você sabe, Pedrinho, que bicho
estúpido é o pato. Pos mesmo assim um deles disse com muita sabedoria: “Parece
incrível que os homens se gabem de ter inventado uma coisa que nós já usamos
há tantos milhares de anos…”
– Sim, mas nós sabemos ler e vocês não sabem.
– Ler! E para que serve ler? Se o homem é a mais boba de todas as criaturas, de
que adianta saber ler? Ler é um jeito de saber o que os outros pensaram. Mas que
adianta a um bobo saber o que outro bobo pensou?
Era demais aquilo. Pedrinho encheu-se de cólera.
– Não continue, saci! Você está me ofendendo. O homem não é nada do que você
diz. O homem é a glória da natureza.
– Glória da natureza! – exclamou o capetinha com ironia. – Ou está repetindo
como papagaio o que ouviu alguém falar ou então você não raciocina. Inda ontem
ouvi Dona Benta ler, num jornal os horrores da Guerra na Europa. Basta que
entre os homens haja isso que eles chamam Guerra, para que sejam classificados
como as criaturas mais estúpidas que existem. Para que guerra?
172
– E vocês aqui não usam guerras também? Não vivem a perseguir e comer uns
aos outros?
– Sim: um comer o outro é a lei da vida. Cada criatura tem o direito de viver e
para isso está autorizada a matar e comer o mais fraco. Mas vocês homens fazem
guerra sem serem movidos pela fome. Matam o inimigo e não o comem. Está
errado. A lei da vida manda que só se mate para comer. Matar por matar é crime.
E só entre os homens existe isso de matar por matar – por esporte, por glória,
com eles dizem. Qual, Pedrinho, não se meta a defender o bicho homem que você
se estrepa. E trate de fazer como o Peter Pan, que embirrou de não crescer para
ficar sempre menino, porque não há nada mais sem graça do que gente grande. Se
todos os meninos fizessem greve como Peter Pan, e nenhum crescesse, a
humanidade endireitaria. A vida lá entre os homens só vale enquanto vocês se
conservam Meninos. Depois que crescem, os homens viram uma calamidade, não
acha? Só os homens grandes fazem guerra. Basta isso. Os meninos apenas
brincam de guerra.
Pedrinho nada respondeu. Estava um tanto abalado pelas estranhas idéias do saci.
Quando voltasse para casa iria consultar Dona Benta para saber se era assim ou
não. 254
A longuíssima citação se justifica, é que vale a inclusão do livro em meu
estudo, pois trata-se do supra sumo da postura radicalmente contraria ao
antropocentrismo. É incrível como o garoto contesta, como o saci,
sucessivamente, vai demolindo cada questionamento seu, com o menino se sente
afrontado, triste, colérico, melancólico, em permanente dúvida.
Para matar o tempo, o saci começou a explicar a Pedrinho o que era a vida na
natureza.
– Você nunca poderá fazer idéia da vida encantada que temos por aqui. – disse
ele.
– Ora, ora! – exclamou o menino. – Não há nada o que os homens não saibam. 255
O duelo das posições no qual cada um quer desmerecer o outro é muito
empolgante, pois remete aos embates dos sofistas e dos demais filósofos nas
ágoras. Cumpre também, destacar o ideia de Pedrinho sobre o cognoscível
estruturado sobre a condição humana. Não há que o homem não saiba é dizer que
só o que existe é o que o homem conhece. O confronto acende uma fagulha tanto
no leitor que talvez nunca tenha se dado conta de tal problemática quanto gera
uma identificação com aquele que já se encontrou sozinho elocubrando acerca do
sentido da vida e quetais. A obra de Lobato, como um todo, valoriza o
conhecimento. E, naturalmente, o conhecimento adquirido pelo suporte livro. É
exemplar, em qualquer artigo, que aborda a importância da leitura em sua obra, o
254
LOBATO, Monteiro. O Saci. p.214-5. 255
LOBATO, Monteiro. O Saci. p.202.
173
episódio do livro comestível em A reforma da natureza. Eis porque o trecho
possui uma relevância e uma potência sem par. Escreve Lobato:
Vovó tem lá uma História Natural que conta tudo.
– O saci riu-se e tirou uma baforada do pitinho.
– Tudo? Ah, ah, ah!... Livros como esse não contam nem isca do que é, e estão
cheios de invenções ou erros. Basta dizer que para cada inseto seria preciso um
livro inteiro só para contar alguma coisa da vidinha deles. E quantos insetos
existem? Milhões…
– Em todo o caso – volveu Pedrinho – nós, homens, pomos o que sabemos nos
livros e vocês, sacis, não escrevem coisa nenhuma. Nunca houve livros entre
vocês, e quem não escreve obras não pode ensinar aos filhos o que sabe.
– Não temos livros – disse o saci – porque não precisamos de livros. Nosso
sistema de saber as coisas é diferente. Nós adivinhamos as coisas. Herdamos a
sabedoria de nossos pais, como vocês, homens, herdam propriedade ou dinheiro
Nascer sabendo! Isso é que é bom. Um pernilongo, por exemplo. Sabe como é a
vidinha dele? Nasce na água, saído de um ovinho. Logo que sai do ovinho ainda
não é um pernilongo – é o que vocês chamam de larva – uma espécie de peixinho
que nada e mergulha muito bem. Um dia essa larva cria asas, pernas compridas e
voa. E o que faz quando voa?
– Vai cantar a música do fiun e picar as pessoas que estão dormindo em suas
camas. É isso o que esses malvadinhos fazem.
– Muito bem! – tornou o saci. – E quem ensina o pernilongo a fazer isso?
Os pais? Não, porque depois de soltar os ovos na água os pais dos
pernilonguinhos morrem. Os livros? Não, porque eles não têm livros. Pois apesar
disso sabem tudo quanto precisam saber. Sabem que no corpo das gentes há
sangue, e que o sangue é o alimento deles. Sabem que as gentes moram em casas.
Sabem que a melhor hora de sugar o sangue das gentes é de noite, porque estão
dormindo. E sem que os pais lhes ensinem coisa nenhuma, ou que as aprendam
nos livros, os pernilonguinhos logo que saem da água vão em busca de casas,
entram, escondem-se nos escuros, esperam que todos durmam e sossegadamente
picam as pessoas e enchem de sangue as suas barriguinhas. 256
Note-se a postura do saci, bem mais que condescendente com os
pernilonguinhos do que com o bicho homem, o que, obviamente, é demonstração
do estilo ao reforçar a posição ideológica e filosófica do saci. Do saci, “duende
genuinamente brasileiro”, ou do saci das sobrancelhas em til, do saci de Taubaté?
– Depois escapam pelas janelas e voltam à mata ou outros sítios, em
procura de agüinhas paradas onde porem os ovos. E assim eternamente. Sabem
tudo direitinho. E ninguém os ensina. Logo, eles têm a ciência de tudo dentro de
si mesmos, como vocês têm tripas e estômago e pacuera.
Pedrinho teve de concordar que era assim mesmo. O saci continuou:
– E como fazem os pernilongos, assim também fazem todas as outras
vidinhas aqui da floresta. Cada qual nasce sabendo fazer o certo – e não erram.
Os grilos nascem sabendo abrir buracos. Há um inseto chamado bombardeiro. Se
outro maior o ataca, vira-se de costas e lança-lhe no foinho um líquido que se
256
LOBATO, Monteiro. O Saci. p.202.
174
evapora imediatamente e tonteia o inimigo. Quando este volta a si, o bombardeiro
já está longe. Quem o ensina a fazer isso? Ninguém. Nasce sabendo. Certos
besouros, quando querem pôr ovos, fazem o seguinte: pegam uma pequena
quantidade de esterco e a vão rolando pelo chão com as patas de trás. Para quê?
Para formar uma bola. Quando o esterco está uma bola bem redondinha, eles a
furam e botam lá dentro os ovos. Quem ensina esses besouros a fazer essas bolas
tão redondinhas? Os pais? Não! Algum livro? Não! Eles nascem sabendo.
– Sim. – disse Pedrinho. – Nascem sabendo e nós temos de aprender com
os nossos pais ou nos livros. Isso só prova o nosso valor. Que mérito há em
nascer sabendo? Nenhum. Mas há muito mérito em não saber e aprender pelo
estudo.
– Perfeitamente – concordou o saci. – Não nego o mérito do esforço dos
homens. O que digo é que eles são seres atrasadíssimos – tão atrasados que ainda
precisam por si mesmos. E nós somos seres aperfeiçoadíssimos porque já não
precisamos aprender coisa nenhuma. Já nascemos sabidos. Que é que você
preferia: ter nascido já comcom a ciência da vida lá dentro ou ter de ir
aprendendo tudo com o maior esforço e à custa de muitos erros?
O menino foi obrigado a concordar que o mais cômodo seria nascer sabendo.
– Sim, nesse ponto você tem razão, saci. Mas que é que faz todas essas
vidinhas viverem? Está aí uma coisa que minha cabeça não compreende.
– Ah, isso é o segredo dos segredos! – respondeu o saci. – Nem nós
sabemos. Mas o que acontece é o seguinte: dentro de cada criatura, bichinho ou
plantinha, há uma força que empurra para a frente. Esta força é a Vida. Empurra e
diz no ouvido das criaturinhas o que elas devem fazer. A vida é uma fada
invisível. É ela que faz o pernilongo ir picar as pessoas nas casas de noite; e que
manda o grilo abrir buraco; e que ensina o bombardeiro a bombardear seus
atacantes.
– Mas é invisível até para vocês, sacis, que enxergam mais coisas do que
nós homens?
– Sim. Eu que enxergo tudo nunca pude ver a fada Vida. Só vejo os efeitos
dela. Quando um passarinho voa, eu vejo o vôo do passarinho, mas não vejo a
fada dentro dele a empurrá-lo. 257
Comentário quase que desnecessário, resultado das minhas cicatrizes do
passado de bacharel em genética: obviamente que os defensores da taxonomia
evolutiva estrilarão e pedirão a palavra, justificando que o bombadeiro nem
possui a consciência de que precisa fazer isso e ademais que a propria posição do
saci (que antropomorfiza a etologia) é contraditória para quem está criticando a
espécie humana. Mas o que sei e o que quero é focar exatamente no desvio do que
está estabelecido. Puxar o fio que mostra que o que está em discussão é o excerto
ao expor uma questão, fazendo com que o leitor passe refletir sobre tudo aquilo o
que antes poderia pensar que estava definitivamente estabelecido desde sempre.
Tácito e atávico.
257
LOBATO, Monteiro. O Saci. p.202.
175
Em sequência, dois momentos do enredo que trazem à baila a
problemática existencial. Vida e Morte. A mordacidade do saci em chamar o
menino de nove anos de futuro “caco velho” é, para mim, um clássico.
– Então ela deve ser como a gasolina dos automóveis. Sem gasolina os
carros não andam.
– Perfeitamente – concordou o saci – mas com uma diferença: nos
automóveis a gente vê e cheira a gasolina, mas a Gasolina-Vida ninguém ainda
conseguiu ver nem cheirar.
– E morrer? Que é morrer? A Vida então acaba, como a gasolina do
automóvel?
– A Vida muda-se de um ser para outro. Quando o ser já está muito velho e
escangalhado, a Vida acha que não vale mais a pena continuar lidando com ele e
abandona-o. Vai movimentar um novo ser. A fada invisível diverte-se com isso.
Pedrinho ficou muito impressionado. A fada invisível também morava dentro
dele, e o empurrava para a frente. Era quem o fazia ter fome, ter sede e beber, ter
sono e dormir, querer coisas e procurá-las. Mas um dia essa boa fada enjoar-se-ia
dele. Por quê? Porque ele já estaria de cabelos brancos e sem os dentes naturais, e
com reumatismo nas juntas, e catacego e com a pele toda enrugada, e com o
coração tão fraco que até subir a escadinha da varanda seria uma proeza. E então
a fada torceria o nariz e enjoar-se-ia dele: – “Sabe que mais, Senhor Pedrinho?
Você está um caco velho e eu não gosto disso. Vou procurar outro ente. – e
abandoná-lo-ia e ele então morreria.
Essa idéia entristeceu Pedrinho, porque a idéia que não entristece ninguém é bem
outra: é a idéia de não morrer nunca, nunca…
Conversou a respeito com o saci.
– Ora, ora! disse este. – O que morre é o corpo só, a parte que em nós tem menos
importância. A grande coisa que há em nós, e nos diferencia das pedras e dos
paus podres, que é? A Vida. E essa não morre nunca – muda-se de um ser para
outro. Tal qual a eletricidade. Quando a pequena bateria daquela lâmpada elétrica
que você tem descarrega, a bateria morre – mas morreu a eletricidade? Não.
Apenas mudou-se. Saiu daquela bateria e foi para outra, ou foi para as nuvens, ou
foi para onde quis. Assim como a eletricidade não morre, a Vida também não
morre.
– Mas eu não queria que fosse assim – lamentou Pedrinho. – Tenho dó do meu
corpo. Estas mãos, por exemplo, disse ele abrindo-as. Estou tão acostumado com
elas… Desde pequinininho (sic) que estas mãos fazem tudo o que eu quero, e fico
triste de lembrar que um dia vão ficar paradas, mortas…
– Pior do que perder as mãos é perder os olhos – disse o saci. – Já reparou
como é triste não ter olhos, ou tê-los e não ver nada? Feche os olhos bem
fechados.
Pedrinho fechou-os bem fechados. O saci disse:
– Pois quando a fada invisível abandonar seu corpo, Pedrinho, seus olhos vão
ficar assim, cegos – como se não existissem. E nunca mais esses olhos, que hoje
vêem tanta coisa, verão coisa nenhuma. Nunca mais, nunca mais.
Pedrinho sentiu uma tristeza tão grande que quase chorou – mas o saci deu uma
grande risada.
– Bobo! O que nesses seus olhos enxerga, não são os olhos: é a fada invisível que
há dentro de você. A fada é como o astrônomo no telescópio; e os olhos são
como o telescópio do astrônomo. Qual é o mais importante: o telescópio ou o
astrônomo?
– É o astrônomo – disse Pedrinho.
176
– Pois então alegre-se, porque o astrônomo não morre nunca. O telescópio
é que se desarranja e quebra…
Longamente filosofaram os dois, lá debaixo da grande peroba que os abrigava do
sereno da noite. 258
Não obstante a discussão entre narrador e autor, é impossivel dissociar
certos modos e posturas no estilo do autor que se espelham no grid da narrativa. A
coragem de Lobato em colocar a morte assim, para as crianças, é de um teor
inovativo (recordando que o livro é de 1921, caminha para seu centenário). Em
Reinações de Narizinho, o Visconde morre. Mas o Visconde é “morrível”, pode
ser recosntruído infindas vezes. Não é uma morte definitiva. Agora em O Saci, é
uma discussão teórica de uma questão filosófica, com Pedrinho tendo consciência
da morte, da inexorabilidade do tempo, da finitude do corpo (com o qual, apesar
de jovem, já estabeleceu uma relação de afeto e posse, vide a passagem das mãos)
e em A Chave do Tamanho, ele explicita, com o gato que come e não há deus ex
machina para salvar ninguem, para edulcorar nada, apenas por se tratar de
narrativa para crianças. As crianças que morrem, morrem. Sem possibilidade para
a fantasia ressuscitar ninguém.
5.4.2 Memórias da Emília
Lobato foi, muitas vezes e por vários motivos, um inovador. Memórias de
Emília tem como tema, um assunto até então inédito na literatura para crianças: o
processo literário de um romance memorialista de uma personagem. O recurso
metalingüístico é usado com primor, não descartando nunca o humor e a fantasia
que beira o nonsense. Crítico e criativo, como costumava ser o estilo de Lobato, é
também o encaminhamento de Emília, repetidamente chamada de seu alter-ego. O
texto é de alto valor literário, por certo, já que muitas vezes reescreve os
acontecimentos ocorridos nos demais textos do universo do Picapau Amarelo.
Convoca o leitor a ter um posicionamento crítico, mesmo aquele que não conhece
258
LOBATO, Monteiro. O Saci. p.202.
177
o “ocorrido”. Ou seja, a construção do texto é hábil de tal forma que, mesmo
aqueles que leram as narrativas anteriores às quais a boneca faz alusão em suas
recreações de recriação, serão instados a raciocinar em profundidade.
Comecemos com um trecho de elevada octanagem filosófica. Emília e
Dona Benta entabulam uma discussão sobre a verdade, no momento em que
Emília anuncia que vai escrever suas memórias. Em outros textos como em A
Reforma da Natureza, ou A Chave do Tamanho, Emília chega a apresentar
características mais científicas, e agora, traços mais filosóficos. Dona Benta
estranha a postura de Emília, mas posteriormente admite que a boneca possui
laivos de filósofa.
— [Emília] Será a única mentira das minhas Memórias. Tudo mais verdade pura,
da dura — ali na batata, como diz Pedrinho.
Dona Benta sorriu.
— Verdade pura! Nada mais difícil do que verdade, Emília.
— Bem sei — disse a boneca. Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e
sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve
memórias arrumas as coisas do jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéia do
escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor
fica vendo um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha,
para dar idéia de que está falando a verdade pura.
Dona Benta espantou-se de que uma simples bonequinha de pano andasse com
idéias tão filosóficas.
— Acho graça nisso de você falar em verdade e mentira como se realmente
soubesse o que é uma coisa e outra. Até Jesus Cristo não teve ânimo de dizer o
que era a verdade. Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou: ‘Que é a verdade?’
ele, que era Cristo, achou melhor calar-se. Não deu resposta.
— Pois eu sei! — gritou Emília. Verdade é uma espécie de mentira bem pregada,
das que ninguém desconfia. Só isso. 259
Como observamos, a Condessa das Três Estrelinhas discute com Dona
Benta uma questão filosófica de alto nível, pertencente à área da Ética: O que é a
verdade? A mentira seria tão-somente a ausência de verdade ou seria o seu
reverso, a não-verdade? Assunto que poderia ser alongado e que é levado aos
leitores de forma agradável e estimulante. O trecho citado acima, intensamente
filosófico, logo de início já mostra qual será a faceta de Emília que pautará este
livro da Saga do Picapau Amarelo. Visconde, por sua vez, faz sua primeira
aparição de forma característica.
259
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.
178
— Minha idéia — disse o Visconde — é que comece como quase todos os livros
de memórias começam — contando quem está escrevendo, quando esse quem
nasceu, em que cidade etc. As aventuras de Robinson Crusoe, por exemplo,
começam assim: "Nasci no ano de 1632, na cidade de Iorque, filho de gente
arranjada etc."
— Ótimo! — exclamou Emília. Serve. Escreva: Nasci no ano... (três estrelinhas),
na cidade de (três estrelinhas), filha de gente desarranjada. 260
A idéia de Visconde é seguir a tradição literária, de maneira ortodoxa e
canônica, informando ao leitor dados relevantes do autor (ou personagem) que
está sendo lido. E o milho exemplifica com um clássico. Emília subverte o estilo
memorialista, distorcendo o discurso, carnavalizando-o, ocultando local e data de
nascimento.
Na passagem imediatamente anterior à citação abaixo, temos Emília
contando o episódio em que começou a falar e afirma que ficou um pouco acima
do nível. A boneca segue por uma digressão que define, de maneira emiliana, o
que é ser filósofo, o que é a vida... O ineditismo do trecho (em uma perspectiva
historiográfica da literatura infantil brasileria, quiçá mundial) certamente justifica
a sua inclusão integral.
— Tenha paciência, Emília — disse o Visconde. Ficou muito acima do nível,
porque a verdade é que você ainda hoje fala mais do que qualquer mulherzinha.
— Mas não falo pelos cotovelos, como elas. Só pela boca. E falo bem. Sei dizer
coisas engraçadas e até filosóficas. Inda há pouco Dona Benta declarou que eu
tenho coisas de verdadeiro filósofo. Sabe o que é filósofo, Visconde?
O Visconde sabia, mas fingiu não saber. A boneca explicou:
— É um bicho sujinho, caspento, que diz coisas elevadas que os outros julgam
que
entendem e ficam de olho parado, pensando, pensando. Cada vez que digo uma
coisa filosófica, o olho de Dona Benta e ela pensa, pensa...
— Ficam pensando o quê, Emília?
— Pensando que entenderam.
O Visconde enrugou a testinha e quedou-se uns instantes de olho parado,
pensando, pensando. Aquela explicação era positivamente filosófica.
— E como sou filósofa — continuou Emília — quero que minhas memórias
comecem com a minha filosofia de vida.
— Cuidado, Marquesa! Mil sábios já tentaram explicar a vida e se estreparam.
— Pois eu não me estreparei. A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A
gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu.
Piscar é abrir e fechar os olhos — viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-
acorda, até que dorme e não acorda mais. É portanto um pisca-pisca.
O Visconde ficou novamente pensativo, de olhos no teto.
Emília riu-se.
260
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.
179
— Está vendo como é filosófica a minha idéia? O Senhor Visconde já está de
olhos parados, erguidos para o forro. Quer dizer que pensa que entendeu... A vida
das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada
pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e
ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última
vez e morre.
— E depois que morre? — perguntou o Visconde.
— Depois que morre vira hipótese. É ou não é?
O Visconde teve de concordar que era.261
Reafirmamos que a extensão do trecho citado é incomum, entretanto,
possuímos nossas razões. Em toda a obra infantil de Lobato, não há outro
momento em que a fala de Emília seja tão complexa. Como vimos, o livro O Saci
também possui passagem de intenso e marcante calibre reflexivo. O lado
filosófico nunca eclodiu com tamanha força. Seria de se esperar que toda esta
digressão filosófica estivesse na boca do senhor sabugo, eminente sábio do sítio.
Porém não é o que ocorre. É a desmesurada boneca que assume uma postura
filosófica, que curiosamente não podem ser classificadas como oriundas da
célebre “torneira de asneiras”, por serem muito concatenadas e dignas de reflexão
“de olho parado”. Emília se autodefine como filósofa
— Escute, Visconde — disse ela. Tenho coisas muito importantes a conversar
com Quindim. Fique escrevendo. Vá escrevendo. Faça de conta que estou
ditando. Conte as cosas que aconteceram no sítio e ainda não estão nos livros.
— A história do anjinho de asa quebrada serve? — indagou o Visconde.262
Muitas vezes, não apenas Visconde ou Emília apresentam uma inclinação
para o racionalismo. A curiosidade natural da infância assume ares de protocolo,
denotando a presença do método científico no Sítio. “— Ninguém queria saber de
outra coisa senão ver, cheirar, apalpar, conversar com o anjinho.”263
[grifos
nossos]. Investigação cientifica ou a doutrina das sensações. Reflexão a partir do
sensível para atingir o cognoscível. Todos no Sítio estão extasiados com a
novidade que é o anjinho. A curiosidade intensa faz com que o Sítio de Dona
Benta seja uma autêntica comunidade de investigação, usando o método
científico, como se estivessem avaliando um mero fenômeno físico, químico ou
biológico.
261
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 262
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.
263 LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.
180
Observemos no trecho, a boneca:
Uma criatura do céu não pode saber nada das coisas da terra, de modo que o
anjinho se mostrou duma ignorância absoluta de tudo quanto aqui por baixo a
gente sabe até de cor. Teve de ir aprendendo com Emília, a professora. 264
— (...) [Emília] Sabem que a professora do anjinho sou eu? Eu, sim!... Tenho-lhe
ensinado mil coisas. Pergunte-lhe, por exemplo, o que é flor.”
— Flor — respondeu ele — é um sonho colorido e cheiroso, que com as raízes as
plantas tiram do escuro da terra e abrem no ar. Foi como Emília me ensinou.
Todos se admiraram da poesia daquela definição (...)
Voltando no texto e a uma descrição da relação entre o Anjinho e a
boneca. Discípulo e mestra que não se entendiam tão bem assim...
Quem ficava atrapalhado era o Anjinho. Emília tinha um modo desnorteante de
pensar. Assim, por exemplo, as suas célebres ‘asneirinhas’. Muitas vezes não
eram asneiras — eram modos diferente de encarar as coisas, como quando
explicou ao anjinho o caso das frutas do pomar.
Emília possui um modo desnorteante de pensar. Ao ser diferenciada, suas
opiniões traduzem uma forma distinta de ver, de perceber as coisas. A consciência
está presente todo o tempo, ainda que aparentemente ela fale os maiores
disparates. O modo desnorteante de pensar é o que dá uma outra significação para
o ente “flor”. Todos se admiram com a poesia da definição. O espanto é um sinal
de que a fantasia não é o que se espera, mas o filósofo é aquele que se espanta
com o impacto cotidiano.
— Ela está monopolizando o anjo, vovó! — queixava-se a menina. Não o larga,
atropela o dia inteiro o coitadinho com as tais filosofias da vida. Eu, se fosse a
senhora, tomava o anjinho dela.
Mas Dona Benta achava graça naquilo e ia deixando. 265
É mais uma passagem que salienta o lado filosófico da espevitada boneca,
as tais filosofias de vida. Mesmo que Emília apresente tons inspirados por Apolo,
seu comportamento é sempre distinto do sabugo. Ainda que Visconde ofereça
uma certa resistência a ser transformado em anjo, as crianças terminam por
conseguir seu objetivo. Ele sempre aceita as peripécias da menina, da boneca e do
garoto, é obedientíssimo! Não é da natureza do sabugo se indispor com quem quer
264
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.
265 LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.
181
que seja, ele está sempre a agir de acordo com a ordem estabelecida. No caso, a
ordem é bem bizarra — passar por anjo para uma multidão de crianças ansiosas e
convencê-las — e daí o seu estranhamento. Quase sempre, Visconde segue a
corrente, não transgride, não ultrapassa obstáculos. Fosse Emília, teria enfrentado
e não arredaria o pé, fazendo algo com o que não concorda. É ele quem comenta.
— Depressa, Emília! — gritou o menino.
— Ele está resistindo — respondeu de longe a boneca. Diz que não tem vocação
para ser anjo...
— Traga-o à força! Depressa! Não há tempo a perder.
Emília puxou-me pelo braço e eles me agarraram, me enfiaram na camisola, me
pregaram as asas e polvilharam tudo com uma nuvem de farinha de trigo. Fiquei
um anjo esquisitíssimo — mas anjo.266
Dando prosseguimento ao episódio do anjo de araque, a fim de marcar
mais uma passagem de inspiração da boneca, diz-nos Lobato
— Quê? — berrou de repente uma menina. Anjo de cartola? Onde já se viu isso?
De fato. Na pressa da arrumação os meninos esqueceram-se de tirar da minha
cabeça a célebre cartolinha, de modo que lá estava o anjo de cartola na cabeça,
muito branca, porque também fôra polvilhada de farinha de trigo.
Emília salvou a situação. Trepando no caixãozinho, pediu silêncio e disse:
— Vou explicar o motivo da cartola. Dona Benta nos contou que a cartola é uma
invenção inglesa; daí a nossa idéia de botar uma cartolinha na cabeça dele como
homenagem às crianças inglesas que o vinham visitar.
Os inglesinhos entreolharam-se. A explicação era boa. Mas continuaram a
estranhar o anjo.
— Os que conheço dos livros de figura — disse um — são muito mais bonitos.
São gordinhos. Esse é magro como um bacalhau.
Emília explicou:
— É que andou doente. O pobrezinho quebrou a asa num tombo que deu lá nas
estrelas. Está sarando; logo fica gorducho como antes. Não notam que está com a
asa esquerda caída? Quebrou-a bem no encontro. Tia Nastácia já botou cola-tudo.
— Mas a cara dele não é de anjo — observou outra criança. Parece cara feita com
faca. Verdadeira cara de pau.
— É da doença — insistiu Emília. Vocês que não tem asas não imaginam como
quebradura de asa esquerda desfigura um pobre anjo...
Apesar das belas explicações as crianças inglesas continuavam de nariz torcido.
Não conseguiam engolir aquele anjo tão feio.267
Com muita perspicácia e seu raciocínio rápido, Emília tenta ocultar que o
anjo não passa de um engodo. Levando-se se em conta a distância entre o
266
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 267
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.
182
esperado (o verdadeiro anjinho) e o obtido (o Visconde travestido de anjo), até
que a marquesa saiu-se muito bem. Rainha da argumentação lógica, quando
possui para tudo uma resposta (desculpa?), Emília deixa transparecer todo o seu
racionalismo. Deixa transparecer seu poder de fogo criativo, simultaneamente.
Emília é um primoroso exemplo de modo de compreensão filosofantástico.
Encanto crítico. Atender às demandas da compreensão bebendo da fonte do
inconcebível para, com sensibilidade estética (encanto = fantasia), perscrutar com
lâmina teórica (crítico = filosofia). Atentemos para um trecho mais adiante, ainda
no episódio do pseudo-anjo, quando a falcatrua é desvelada e Emília vai de
racional a passional em pouquíssimo tempo, saindo em defesa do sabugo:
— Sim, sou Peter Pan, e já sei de tudo. Esse é anjo é falso — é o tal Visconde
disfarçado em anjo. O anjinho verdadeiro está escondido em qualquer parte.
(...)
— [Peter Pan] (...) Fizemos uma viagem longuíssima, por ordem do Rei, para
visitar o anjinho, e ao chegarmos vocês nos impingem um macaco de sabugo!
(...)
— Macaco de sabugo dobre a língua! — gritou Emília. O Visconde é um
verdadeiro sábio, estimadíssimo de todos daqui, até de Dona Benta. Retire o
macaco!... 268
Aqui, temos o reverso do que usualmente acontece nas aventuras do
Picapau Amarelo. Emília vive menosprezando e desmerecendo o sabugo,
destratando-o repetidamente. Não admite, contudo, que o façam, ou melhor, que o
façam em seu lugar. Quando Peter Pan desacata o Visconde, a boneca parece
acometida da mannia (mannia = loucura divina sagrada) de Dioniso, que irrompe
do inconsciente, agindo de forma desenfreadamente passional.
Como já dito anteriormente, o Sítio do Picapau Amarelo é uma espécie de
comunidade de investigação, conceito do filósofo americano Matthew Lipman. É
uma espécie de ágora tupiniquim, onde todos se reúnem para conversar, aprender
e travar discussões filosóficas. Os serões de Dona Benta — não apenas o livro
com este título, mas os encontros desse tipo que permeiam toda a obra lobatiana
— explicitam isso. De maneira natural, o texto de Lobato estimula o pensamento
crítico-filosófico no leitor. E, além disso, aqui e ali, instiga o leitor a ser
independente e verificar se as dicas fornecidas nas pílulas de referências
filosóficas lhe apetecem. Em nosso estudo, podemos citar como exemplo o
268
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.
183
episódio narrado no qual Dona Benta e o Almirante Brown — inglês que veio
trazer as crianças para verem o anjo —, conversam sobre o Burro Falante.
— Dona Benta gozou o atrapalhamento do inglês.
— Foi o que sucedeu no começo, Almirante. Fiquei também atrapalhada, sem
saber o que pensar. Depois fui me acostumando. Hoje acho tão natural que esse
burro fale, como acho natural que uma laranjeira produza laranjas. Todas as
tardes chego até aqui para dois dedos de prosa. Além de falante o nosso
Conselheiro é um puro filósofo.
— De que escola?
— Um filósofo estóico. Costumo ler-lhe trechos das "Meditações" de Marco
Aurélio. Os comentários que ela faz mereciam ser escritos e publicados. 269
Lançando de uma intensa intertextualidade que mescla linguagens (p.ex.,
literatura e cinema), presente em toda a sua obra (alguns exemplos de maior
destaque são aqui analisados Reinações de Narizinho, Memórias da Emília e O
Picapau Amarelo), Lobato traz o Capitão Gancho e Popeye para o Sítio. Ambos
querem capturar o anjinho. As crianças decidem enfrentar Popeye — que já havia
derrotado o Capitão Gancho —, mesmo sabendo que é uma loucura. Emília, após
desvendar o segredo de Popeye (quanto tempo dura o efeito do espinafre que lhe
confere a força), sugere a Pedrinho que ele e Peter Pan ataquem Popeye. A
princípio, Pedrinho, ignorando o trunfo da boneca, acha uma loucura, uma idéia
absurda. Mas depois rende-se ao brilhantismo da Marquesa de Rabicó:
Emília agarrou Pedrinho, fê-lo abaixar e cochichou-lhe qualquer coisa ao ouvido.
A cara do menino expandiu-se.
— Ahn! — exclamou. Se é assim, então já não está mais aqui quem falou. Tudo
muda de figura. Que idéia excelente, Emília! A melhor idéia que você teve em
toda a sua vida... 270
A passagem enfatiza a sagacidade de Emília, verdadeira usina de idéias.
Curioso notar que a Razão é valorizada como uma qualidade extremamente
desejável. O excerto seguinte vai na mesma linha, enaltecendo a astúcia de
Emília. O objetivo da boneca é a lata de espinafre que está dentro da figueira,
árvore na qual Popeye está encostado. Engendra, então, um truque.
269
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 270
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.
184
Mas para subir à figueira era preciso empregar a astúcia e Emília empregou a
astúcia.
— Senhor Popeye — disse ela com um arzinho de santa que sabia fazer nas
ocasiões graves, sabe que esta figueira dá uns figuinhos muito gostosos? Os
sanhaços e morcegos regalam-se... 271
No décimo capítulo de Memórias de Emília, o momento intitulado
“Diálogo entre a boneca e o milho. A esperteza de Emília e a resignação do
Milho” é luminar, dispensando comentários adicionais:
Está bem — disse ela. Minhas Memórias vão a galope. Quero provar ao mundo
que faço de tudo — que sei brincar, que sei aritmética, que escrever memórias...
— Sabe escrever memórias, Emília? — respondeu o Visconde ironicamente.
Então isso de escrever memórias com a mão e a cabeça dos outros é saber
escrever memórias?
— Perfeitamente, Visconde! Isso é que é o importante. Fazer coisas com a mão
dos outros, ganhar dinheiro com o trabalho dos outros, pegar nome e fama com a
cabeça dos outros: isso é que saber fazer as coisas. Ganhar dinheiro com o
trabalho da gente, ganhar nome e fama com o nome da gente é não saber fazer as
coisas. Olhe, Visconde, eu estou no mundo há pouco tempo, mas já aprendi a
viver. Aprendi o grande segredo da vida dos homens na terra: a esperteza! Ser
esperto é tudo. O mundo é dos espertos. Se eu tivesse um filhinho, dava-lhe um
só conselho: "Seja esperto, meu filho!"
— E como lhe explicava o que é ser esperto? — indagou o Visconde.
— Muito simplesmente. — respondeu a boneca. Citando o meu exemplo e o
seu, Visconde. Quem é que fez a “Aritmética”? Você. Quem ganhou nome e
fama? Eu. Quem é que está escrevendo as Memórias? Você. Quem vai ganhar
nome e fama? Eu...
O Visconde achou que aquilo estava certo mas era um grande desaforo.
— E se eu me recusar a escrever? Se eu deixar as Memórias neste ponto, que é
que acontece?
Emília deu uma grande risada.
— Bôbo! Se fizer isso, pensa que me aperto? Corro lá com Quindim e êle me
acaba o livro. Bem sabe que Quindim me obedece em tudo, cegamente. É inútil,
Visconde, lutar contra os espertos. Êles acabam vencendo sempre. Por isso
abaixe a crista e continue... 272
271
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 272
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.
185
5.4.3 O Picapau Amarelo
O leitor indubitavelmente notará que, pela extensão e pela abrangência, e também
pelo fato de se tratar de material recente, Monteiro Lobato, livro a livro: obra infantil 273
vem se configurando como uma referência bibliográfica recorrente no presente texto. À
luz dos estudos lobatianos, vem se aproximando de se tornar uma obra de referência, a
despeito de alguns poucos artigos erráticos ou excessivamente contidos. No artigo da
pesquisadora Mariana Baldo Gênova sobre o livro O Picapau Amarelo, ela – felizmente –
enfatiza o real e o fantástico presentes no livro. O subtítulo – Um mundo de verdade e de
mentira – é a pista oculta que ela explora. Concordo com Gênova, em parte. Quando
afirma que Lobato consegue a perfeita articulação entre conteúdo crítico e fantasia, a
pesquisadora é percuciente e sagaz, vai ao cerne do problema. Apenas complementaria
afirmando que, para mim, a fantasia é o conteúdo critico, é o próprio conteúdo crítico.
Sim, o radar Lobato tratava das suas causas ideológicas, políticas e éticas, dentre outras,
em seus livros. E o fazia de forma militante? Não. E muito menos comprometeu a
literariedade dos seus textos. Trafega no gume sutil da faca que possui como uma das
faces da lâmina de leitura de mundo, a crítica, e como outra, a criação.
Mesclando realidade e fantasia, Lobato tematiza, nas suas obras para crianças,
seus pensamentos sobre diferentes questões políticas, seus ideais, suas causas,
seu inconformismo. Enquanto o militante Lobato lutava por causas que
objetivavam o desenvolvimento do Brasil, o escritor apostava nos textos infantis
como meio para formar crianças críticas, independentes e conscientes de seu
papel na sociedade. 274
Filosoficamente, Dona Benta e seus netos tergiversam aproximando certos
temas como Justiça, Bondade das criaturas fabulosas como gigantes, anões, fadas
e sacis. O Mundo da Fábula existe, com todos os seus personagens (que são
elencados de forma aparentemente exaustiva, mas demonstra uma posição
abrangente que pode inclusive ter a função de ampliar o repertório ao apresentar
personagens de várias épocas da literatura, não apenas de contos de fadas, mas até
mesmo Dom Quixote, figura pela qual Lobato, obviamente, tinha imenso apreço,
273
LAJOLO, Marisa & CECCANTINI, João Luís. (Orgs.). Monteiro Lobato, livro a livro: obra
infantil. Imprensa Oficial / Editora UNESP, 2008.) 274
GÊNOVA, Mariana Baldo de. “O picapau amarelo: o espaço ideal e a obra-prima”. in:
LAJOLO, Marisa & CECCANTINI, João Luís. (Orgs.). Monteiro Lobato, livro a livro: obra
infantil. Imprensa Oficial / Editora UNESP, 2008.) p .410
186
como se pode verificar em Dom Quixote das Crianças). Tal existência é
demonstrada e aceita, de forma cabal, materializada, palpável. Dona Benta diz:
tanto existe que tenho uma carta.
O Sítio de Dona Benta foi se tornando famoso tanto no mundo de verdade como
no chamado no Mundo de Mentira. O Mundo de Mentira, ou Mundo da Fábula, é
como gente grande costuma chamar a terra e as coisas do País das Maravilhas, lá
onde moram os anões e os gigantes, as fadas e os sacis, os piratas como o Capitão
Gancho e os anjinhos como Flor das Alturas. Mas o Mundo da Fábula não é
realmente nenhum mundo de mentira, pois o que existe na imaginação de
milhões e milhões de crianças é tão real como as páginas deste livro. O que se dá
é que as crianças logo que se transformam em gente grande fingem não mais
acreditar no que acreditavam.
Só acredito no que vejo com meus olhos, cheiro com o meu nariz, pego com
minhas mãos ou provo com a ponta da minha língua, dizem os adultos –mas não
é verdade. Eles acreditam em mil coisas que seus olhos não vêem, nem o nariz
cheira, nem os ouvidos ouvem, nem as mãos pegam.
– Deus, por exemplo – disse Narizinho. – Todos crêem em Deus e ninguém
anda a pegá-lo, cheirá-lo, apalpá-lo.
– Exatamente. E ainda acreditam na Justiça, na Civilização, na Bondade –
em mil coisas invisíveis, incheiráveis, impegáveis, sem som e sem gosto. De
modo que se as coisas do Mundo da Fábula não existem, então também não
existem nem Deus, nem a Justiça, nem a Bondade, nem a Civilização – nem
todas as coisas abstratas.
– Eu sei o que quer dizer “abstrato – É tudo quanto a gente não vê, nem
cheira, nem ouve, nem prova, nem pega – mas sente que há.
– Muito bem. Logo, o Mundo da Fábula existe, com todos os seus
maravilhosos personagens.
– E tanto existe – declarou Dona Benta – que tenho aqui uma carta muito
interessante, recebida hoje.”
– É de mamãe, já sei! – murmurou Pedrinho, aborrecido, com medo que
fosse carta de Dona Antonica chamando-o para a cidade.
– Errou, meu filho. A cartinha que recebi foi do Pequeno Polegar. 275
As condições foram aceitas e passada uma semana começou a mudança dos
personagens do Mundo da Fábula para as Terras Novas de Dona Benta. O
Pequeno Polegar veio puxando a fila. Logo depois, Branca de Neve com seus
sete anões. E as Princesas Rosa Branca e Rosa Vermelha. E o Príncipe Codadade,
com Aladino, Xarazada, os gênios e o pessoal todo das “Mil e Uma Noites.” E
veio a Menina da Capinha Vermelha. E veio a Gata Borralheira. E vieram Peter
Pan com os Meninos perdidos do “País do Nunca”, mais o crocodilo atrás e todos
os piratas; e a famosa Alice do “País das Maravilhas”; e o Senhor de La Fontaine
em companhia de Esopo, acompanhados de todas as suas fábulas; e Barba Azul
com o facão de matar mulher; e o Barão de Munchausen com as suas famosas
espingardas de pederneira; e os personagens todos dos contos de Andersen e
Grimm. Também veio D. Quixote, acompanhado de Rocinante e do gordo
escudeiro Sancho Pança.276
275
LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 787. 276
LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 792.
187
Na primeira das citações abaixo, com sua pena ferina, Lobato põe na fala
da iconoclasta Emília sua ácida crítica à tradição literária em contraponto à
produção cultural para crianças que despontava na forma dos primeiros filmes de
longa-metragem dos estúdios de Walt Disney. Para muitos, o trecho seguinte se
caracteriza como contraditório ou no mínimo, paradoxal. Não no meu entender.
Lobato, ao elogiar Disney e também a Grécia, com uma das mais criativas
definições da cultura helênica – a Grécia foi a verdadeira juventude da
Imaginação Humana – se afina com o modernismo e, vai mais ainda longe,
trazendo para a contemporaneidade, a reflexão do que é cânone e da possibilidade
da convivência de posições estéticas contrárias. Ante o estigma de conservador,
Lobato se encanta com o cinema, que teria uma força e um impacto equivalentes à
discussão do livro eletrônico como trampolim ou cadafalso para a leitura e a
literatura.
– Quem é esse Disney?
– Oh, um gênio! – berrou Emília. – O maior gênio moderno – maior que
Shakespeare, que Dante, que Homero todos estes cacetões que a humanidade
tanto admira. Faz desenhos animados, mas com uma graça de a gente chorar de
gosto. A fita de você, Branca, é o suco dos sucos!277
Ah, a Grécia foi a verdadeira juventude da Imaginação Humana. Depois da
Grécia essa imaginação foi ficando adulta e graça – lerda. Nunca mais teve o
poder de criar maravilhas verdadeiramente maravilhosas 278
Dona Benta respondeu:
– Os gregos, minha filha, sabiam por palpite todas as coisas que os modernos
sabem por experiência; isto é, sabiam sem certeza – adivinhavam. Foram os
adivinhadores do mundo. As nossas certezas modernas baseiam-se na
experiência. As certezas dos gregos baseavam-se na intuição, isto é, numa
espécie de adivinhação. Não há teoria moderna que não esteja esboçada na obra
dum antigo sábio grego.279
Cabe ressalvar também, o fundamental resgate da intuição, filiada nos
pensadores originários, tipo de pensamento contrário à tradição judaico-cristã,
que, por sua vez, vai se agigantar, após a clivagem platônica-aristotélica.
Obviamente tal posição de valorização – “não há teoria moderna que não esteja
esboçada” – denota a grecofilia, um dos pontos de convergência entre a filosofia
277
LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 804. 278
LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 809. 279
LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 813.
188
de Lobato e o pensamento nietzschiano, conforme discuti em minha dissertação
de mestrado, anteriormente citada.
O livro O Picapau Amarelo é a explicitação de um libelo à imaginação, à
intuição, à fantasia. Se O Saci é a cunha que vai trincar o antropocentrismo e,
consequentemente, a Razão humana, O Picapau Amarelo é um quase manifesto
em defesa do lugar da imaginação no rol das atividades humanas, é a sua
valorização como meio de obtenção de conhecimento. Lobato intercala,
habilmente, momentos nos quais discorre sobre tal reflexão com passagens que
trazem esteticamente trabalhadas. É o faz de conta emiliano que traz as soluções.
É a imaginação apontando caminhos, a fantasia fornecendo a fagulha quando nem
mesmo a força para extrair ideias consegue ser exitosa, conforme se lê abaixo:
A atrapalhação foi tanta que Emília teve de largar do binóculo para assumir o
comando. Idéias! Venham idéias! Emília dava murrinhos na cachola, a ver se saía
alguma idéia boa. No começo não saiu nada; depois um sorriso de triunfo
brilhou-lhe nos olhos.
– Acalmem-se! Ainda há “o supremo recurso” – disse a diabinha.
Todos se voltaram para ela, suspensos.
– Fale, Emília, fale! – implorou Dona Benta.
– Há o “faz-de-conta”! Quando tudo parece perdido, eu recorro ao “faz de-conta”
e salvo a situação”. 280
- Pois muito bem – declarou Dona Benta. - Nossa próxima viagem de aventuras
sera pela Grécia – e dará um livro.
- Que lindo livro vai ser! – exclamou Emília - VIAGEM DO SÍTIO PELO
OCEANO DA IMAGINAÇÃO GREGA.
- Comprido demais, Emília. Os títulos devem ser curtos, se não ninguém decora.
Veja: OS LUSÍADAS, A ILÍADA, A ODISSÉIA, O INFERNO, A ENEIDA…
- Então fica sendo a A EMILEIDA, propôs a diabinha – mas ninguém concordou
por ser desaforo: a viagem não era só dela, era de todos.
- Pois que seja A SITIEIDA…
- E por que não A ASNEIREIDA? – lembrou Narizinho.
Emília pôs-lhe a língua.281
Pensou, pensou e nada. Pela primeira vez na vida não encontrava solução para
um caso. Súbito, riu-se.
- Ah, meu Deus, que boa eu sou! Pois basta aplicar o faz-de-conta, esse
meu remédio que não falha nunca.
- E aplicou o faz-de-conta.
Erguendo os olhinhos para o céu, murmurou: “- Faz de conta que aquela flecha
não estava envenenada! Faz de conta que eu não espetei o coração de tia
Nastácia! Faz de conta que nao estive com o deus do Amor, nem lhe pedi o arco
emprestado. Faz de conta que ele só me deu duas flechas e não três!”
Nem bem fez Emília essa invocação e já tia Nastácia melhorou. Deu uma
risadinha e parou com os suspiros. 282
280
LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 819. 281
LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 832.
189
5.4.4 Reinações de Narizinho
Reinações de Narizinho é o livro-síntese do universo do Sítio do Picapau
Amarelo. E como tal, é narrativa de inclusão recorrente nas análises da obra
infantil lobatiana. Para os objetivos do presente estudo, contudo, lancei mão,
diferentemente dos demais títulos, de poucas citações. Reitero que a inclusão do
livro no corpus literário da tese se justificou tão-somente pelo fato de ser enredo
emblemático dentro da história da literatura para crianças no Brasil, e em especial,
como já explicitado, dentro da obra lobatiana. Trata-se do abre-alas que apresenta
os personagens. Além disso, também se justifica pela ambientação do fantástico
no Reino das Águas Claras e na festa para os amigos dos País das Maravilhas. É
uma espécie de teaser do que será magistralmente explorado em O minotauro
(que foi analisado na minha dissertação de mestrado) e em O Picapau amarelo,
livros que guardam um diálogo intenso, por conta da sequência dos
acontecimentos.
O trecho de abertura do texto é bem descritivo, apresentando por
intermédio da ambientação, todo um mundo e um ritmo que convida o leitor. E o
convida a fruir a história com redobrada atenção, já que engana-se quem acha que
a velha de sessenta anos vive triste e sozinha naquele deserto. Já é clássico, até
pela comparação que se costuma fazer com “A menina do narizinho arrebitado”,
texto publicado em 1921 e que sofreu sensíveis modificações até se tornar o
primeiro capítulo das Reinações de Narizinho (1931). Uma das mais conhecidas
para os especialistas é o fato de que, na primeira versão, as aventuras de Narizinho
no Reino das Águas Claras não passarem de um sonho e na segunda versão, tudo
o que acontece debaixo da água possui o mesmo estatuto de tudo o que acontece
na vigília. Lobato abole as fronteiras do onírico e, no espaço do Sítio do Picapau
Amarelo (para o qual o acesso não se dá nem por intermédio de ciclone, nem de
buraco e nem mesmo pela passagem por uma mágico guarda-roupa, o que salienta
a radicalidade do escritor brasileiro em relação aos demais), tudo é possível.
Numa casinha branca, lá no sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha de mais
de sessenta anos. Chama-se dona Benta. Quem passa pela estrada e a vê na
282
LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 837.
190
varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de ouro na ponta do nariz…
segue seu caminho pensando:
– Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto…
Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia
da mais encantadora das netas – Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou
Narizinho, como todos dizem. Narizinho tem sete anos, é morena como jambo,
gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos.”283
“Uma vez, depois de dar comida aos peixinhos, Lúcia sentiu os olhos pesados de
sono. Deitou-se na grama com a boneca no braço e ficou seguindo as nuvens que
passeavam no céu, formando ora castelos, ora camelos. E já ia dormindo,
embalada pelo mexerico das águas, quando sentiu cócegas no seu rosto.
Arregalou os olhos: um peixinho vestido de gente estava de pé na ponta do seu
nariz.
Vestido de gente, sim! Trazia casaco vermelho, cartolinha na cabeça e guarda-
chuva na mão – a maior das galantezas! O peixinho olhava para o nariz de
Narizinho com rugas na testa, como quem não está entendendo nada do que vê.284
Como se sabe, o texto segue na descrição do Reino das Águas Claras,
apresentando as personagens aquáticas como o Príncipe Escamado (óbvio jogo de
palavras com a tradição das “traduções galegais” e seus Príncipes Encantados), o
Doutor Caramujo, o Mestre Cascudo, o Major Agarra-e-não-larga-mais,
moluscos, bernardos eremitas, até que a entrada em cena de uma baratinha de
mantilha subverte o esperado, de forma radical.
A senhora por aqui? – exclamou este, admirado. Que deseja?
– Ando atrás do Pequeno Polegar – respondeu a velha. Há duas semanas que
fugiu do livro onde mora e não o encontro em parte nenhuma. Já percorri todos
os reinos encantados sem descobrir o menor sinal dele.
– Quem é esta velha? – perguntou a menina ao ouvido do príncipe. Parece que a
conheço...
– Com certeza, pois não há menina que não conheça a célebre dona Carochinha
das histórias, a baratinha mais famosa do mundo.”
E voltando-se para a velha:
– Ignoro se o Pequeno Polegar anda pelo meu reino. Não o vi, nem tive notícias
dele, mas a senhora pode procurá-lo. Não faça cerimônia…
– Por que ele fugiu? – indagou a menina.
Não sei – respondeu dona Carochinha – mas tenho notado que muitos dos
personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda a vida
presos dentro delas. Querem novidade. Falam em correr mundo a fim de se
meterem em novas aventuras. Aladino queixa-se de que sua lâmpada maravilhosa
está enferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o dedo noutra roca
para dormir outros cem anos. O Gato de Botas brigou com o marquês de Carabás
e quer ir para os Estados Unidos visitar o Gato Félix. (…). Andam todos
revoltados, dando-me um trabalhão para contê-los. Mas o pior é que ameaçam
fugir, e o Pequeno Polegar já deu o exemplo.
283
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 3. 284
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 3.
191
Narizinho gostou tanto daquela revolta que chegou a bater palmas de alegria, na
esperança de ainda encontrar pelo seu caminho algum daqueles queridos
personagens.
– Tudo isso – continuou dona Carochinha – por causa do Pinóquio, do Gato Félix
e sobretudo por causa de uma tal menina do narizinho arrebitado que todos
desejam muito conhecer. Ando até desconfiada que foi essa diabinha que
desencaminhou Polegar, aconselhando-o a fugir.
O coração de Narizinho bateu apressado.
– Mas a senhora conhece essa tal menina? – perguntou, tapando o nariz com
medo de ser reconhecida.
– Não a conheço – respondeu a velha. – mas sei que mora numa casinha branca
na companhia de duas velhas corocas.
Ah, por que foi dizer aquilo? Ouvindo chamar dona Benta de velha coroca,
Narizinho perdeu as estribeiras.
– Dobre a língua! – gritou vermelha de cólera. Velha coroca é vosmecê, e tão
implicante que ninguém mais quer saber das suas histórias emboloradas. A
menina do narizinho arrebitado sou eu, mas fique sabendo que é mentira que eu
haja desencaminhado o Pequeno Polegar, aconselhando-o a fugir. Nunca tive essa
“bela idéia”, mas agora vou aconselhá-lo, a ele e a todos os mais, a fugirem dos
seus livros bolorentos, sabe? 285
Hoje em dia, qualquer desenho animado para consumo incessante na
televisão toca no ponto da autoreferencialidade, da metalinguagem. Mas nas
primeiras décadas do século passado, em uma narrativa voltada para crianças,
trata-se de algo realmente revolucionário a revigorar os cânones da literatura para
crianças e pavimentar o caminho para um gênero genuinamente brasileiro. Era
fazer a criança pensar que (1) aqueles personagens possuíam a consciência de que
eram personagens e (2) se assim era, dentro do texto, por que não seríamos nós,
leitores, talvez os personagens de alguma trama superior, de um Escritor-Mor?
Narizinho, como Emília ainda está na condição de “muda de nascença”, assume
postura emilíssima, de rebeldia, iconoclasta e transgressora, ao criticar o cânone
da literatura tradicional que era oferecida às crianças da época.
(…) Viu que a fala da Emília ainda não estava bem ajustada, coisa que só o
tempo poderia conseguir. Viu também que era de gênio teimoso e asneirenta por
natureza, pensando a respeito de tudo de um modo especial todo seu. Melhor que
seja assim, filosofou Narizinho. As idéias de vovó e Tia Nastácia a respeito de
tudo são tão sabidas que a gente já as adivinha antes que elas abram a boca. As
idéias de Emília hão de ser sempre novidades. 286
Era este o assunto predileto das conversas da menina com a boneca. Faziam
planos de toda sorte, cada qual mais amalucado. Emília tinha idéias de verdadeira
louca. 287
285
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 7. 286
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 16. 287
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 17.
192
Dona Benta, de fato, nunca tinha dado crédito às histórias maravilhosas de
Narizinho. Dizia sempre: “Isso são sonhos de criança. 288
Repetindo algumas frases do texto para puxar um fio de meada. “As ideias
de Emílias são sempre novidade.” “Emília tinha ideias de verdadeira louca.” E
complemento, como diria o Gato de Cheshire, somos todos loucos. Interessante
que, por vezes, salta aos olhos o descrédito tipicamente adulto por parte de Dona
Benta. As histórias maravilhosas entram na equação como equivalente a sonho de
criança. Dupla desqualificação. O sonho é desqualificado e a criança,
tradicionalmente, também. Mas é o fantástico (corporificado como uma boneca
falante, como borboeletograma, como o tecido do vestido preparado pelas
costureiras do Reino das Águas Claras ou ainda, como a visita e a hospedagem
dos amigos do País das Maravilhas289
) que fará a avó rever seus posicionamentos.
Mas depois que a menina fez a boneca falar, dona Benta ficou tão impressionada
que disse para a boa negra:
– Isto é um prodígio tamanho que estou quase crendo que as outras coisas
fantásticas que Narizinho nos contou não são simples sonhos, como sempre
pensei.290
Narizinho respondeu ao convite por meio dum borboletograma. Não sabem o que
é? Invenção de Emília. Como não houvesse telégrafo para lá, a boneca teve a
idéia de mandar a resposta escrita em asas de uma borboleta. Agarrou uma
borboleta azul que ia passando e rabiscou-lhe na asa, com um espinho (…) 291
Emília tem a mania de ser franca. Nunca viveu em sociedade e ainda não sabe
mentir. Não é aqui como o nosso visconde de Sabugosa, que fala, fala e ninguém
sabe nunca o que realmente está pensando, não é verdade?
O visconde fez um gesto que tanto podia ser sim como não. 292
– Mas quem é que fabrica esta fazenda, dona Aranha? – perguntou ela, apalpando
o tecido sem que Narizinho visse.
– Este tecido é feito pela fada Miragem. – respondeu a costureira.
– E com que a senhora o corta?
– Com a tesoura da Imaginação.
– E com que agulha o cose?
– Com a agulha da Fantasia.
– E com que linha?
– Com a linha do Sonho.
– E… por quanto vende o metro?
288
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 18. 289
Breve ressalva: o País das Maravilhas lobatiano, conforme já se nota, é muito mais abrangente
do que o narrado por Carroll nos livros de Alice. 290
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 18. 291
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 28. 292
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 46.
193
Narizinho, já mais senhora de si, deu-lhe uma cotovelada.
– Cale-se, Emília. Os peixinhos podem assustar-se com as suas asneiras e fugir
do vestido. 293
– Que arrumação é essa, Pedrinho?
– Não é nada, vovó. Uma simples festinha que vamos dar aos nossos amigos do
País das Maravilhas.
Que dizer que vamos ter novamente aqui o príncipe e aqueles bichinhos do
mar?...
Pedrinho riu-se.
– A senhora não entende disto… Eu disse amigos do País das Maravilhas, e não
do Reino das Águas Claras. Há muita diferença. 294
O Sítio do Picapau Amarelo se destacam por várias ousadias estéticas para
a época e mesmo hoje em dia, guarda em si, inovações que eternizam a obra
lobatiana como paradigma dinâmico que se constantemente se atualiza à medida
que novos olhares podem surgir a partir de uma leitura, sem amarras, do próprio
texto. Para encerrar o capítulo, um trecho literário, que acentua a nossa fruição,
nosso encanto; e em dueto com um excerto analítico, que aguça a nossa
tenacidade, nosso lado crítico. Escreve Lobato, ainda em Reinações de Narizinho:
“Estavam todos à janela, regalando os olhos naquele espetáculo nunca visto no
mundo, quando Emília se pôs a filosofar.” 295
Se pôs a filosofar… Me pergunto
quantos personagens de literatura infantil universar se puseram a filosofar?
Pensar, claro. Refletir, é possível que outros tantos. Mas… filosofar?! Excelente
forma de seduzir a criança (ou o leitor, de modo mais abrangente) para uma
aventura que está ao seu alcance e que a levará para mundos insuspeitos! E para
arar o terreno para o capítulo seguinte, que apresenta de forma mais detalhada a
proposta que ainda está se configurando, está tentando alçar voo, a frase de
Richard Kearney, atando as pontas da ciência, da arte, da imaginação e da
realidade numa invejável costura e que resume o que Baum, Carroll, Lobato e
Lewis desenvolveram em seus mundos de fantasia: “Tanto a criação científica
quanto a poética derivam de uma poiesis mais profunda na qual a imaginação e a
realidade constroem e reconstroem uma a outra.” 296
293
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 59. 294
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 88. 295
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 46. 296
KEARNEY, R. (1991). p. 89. “Scientific and poetic creation both derive from a deeper
poiesis wherein imagination and reality make and remake each other.”