45048824 soares m letramento um tema em tres generos
TRANSCRIPT
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 1/62
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 2/62
Copyright © 1998 by Magda Soares
P R OJ E TO G R AF IC O
Cristiane Línhares
CAPA
Mirella SpinelliRejane Dias
(Sobre o quadro As Meninas de Renoir)
COORDENAÇAo
CEALE/FaE - UFMG
E D IT O RA Ç AO E LE T R6 N IC A
C/arice Maia Scott i
REVISAo
Luiz PrazeresRosa Maria Drumond Cos taAna Caro lina Uns Brandão
Sumário
E D I TO R A R E S P ON S A v EL
Rejane Dias
To dos os d ire it os r es er vados pel a Au tên ti ca E di to ra .
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,
s ej a por m ei os mecân icos, e le trônic os , se ja v ia c ópi a
xerográfica sem a autor ização prévia da edi tora.
APRESENTAÇÃO
AUTÊNTICA EDITORA lTDA.
R ua Ai mor és, 981, 8 andar. Funcionários
30140-071. Belo Hor izonte. MG
Tel: (55 31) 3222 68 19
TELEVENDAS: 0800 283 13 22
www.autenticaeditora.com.br Letramento emverbete
O QUE É LETRAMENTO?
3
Dados In ter nac io nai s d e Cat al og aç ão n a Publ ic aç ão CIPCâm ar a B ras il ei ra d o l iv ro
CDU-372.4
Letramento em texto didáticoO QUE LETRAMENTO
EALFABETIZAÇÃO
27oares, Magda.
Letramento: um tema em três gêneros / Magda Soares. - 3. ed. -
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
128p.
ISBN 978-85-86583-16-2
1. Alfabet ização. 2. Leitura. 3. Escri ta. I . Título.
S6761Letramento em ensaio
LETRAMENTO: COMO DEFINIR,
COMO AVALIAR, COMO MEDIR
6
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 3/62
Apresentando acoleção 1 7
present ndo coleção
LINGUAGEM EDUCAÇÃO
o CEALE, Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita
da Faculdade de Educação da UFMG, criado em 1991,
tem procurado produzir e socializar o conhecimento sobre
a alfabetização, a leitura, a escrita e o ensino da língua
portuguesa e da literatura brasileira nas escolas. Para isso
tem realizado cursos, seminários, conferências, debates, as-
sim como viabilizado diferentes tipos de publicações quepossibilitem essa socialização.
A Coleção Linguagem Educação que o CEALE
inaugura - em parceria com a Editora Autêntica - com o
livro Letramento: um tema em três gêneros, propõe-se a
socializar estudos a respeito das relações entre os fenôme-
nos da linguagem, a escola e a sociedade, realizados por
pesquisadores tanto da UFMG como de outras instituições
nacionais e do exterior. Coloca-se, assim, como um espa-
ço aberto para interlocuções nessa área de estudos.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 4/62
8 ILetramento Apresentação I 9
A decisão pela escolha do tema fetramento para inau-
gurar o primeiro número da coleção apoia-se na necessi-
dade de se responder a inquietaçôes sobre os usos da
leitura e da escrita, cada vez mais colocadas pelas socie-
dades atuais. O número restrito de trabalhos sobre o tema,
e a excelência dos textos da professora Magda Soares,
respeitada pesquisadora na área de linguagem e educa-
ção, justifica plenamente a nossa escolha.
E LE
Apresentação
UM TEMA, TRÊS GÊNEROS
Ler um texto, como você está fazendo agora, é instau-
rar uma situação discursiva. Aliás, no caso deste texto que
você lê agora, essa situação discursiva já se iniciou no
momento mesmo em que você tomou nas mãos este livro,
observou a capa, uma ilustração, certas cores, um título,
um nome próprio, o da autora, folheou as primeiras pági-
nas, viu um sumário, que anuncia três textos ... e, sob a
influência desses elementos, chega a esta página e come-
ça a ler esta Apresentação - que leitura estará você produ-
zindo deste texto?
É a relação que agora se está estabelecendo entre nós -
entre mim, autora, e você, leitor ou leitora - que construirá
o sentido deste texto. Mas eu busco controlar esse sentido
que você construirá tomando as minhas precauçôes: estou
escrevendo este texto para um certo leitor, não para um
qualquer leitor genérico e abstrato, e é buscando interagir
com esse leitor, que imagino e pretendo, que escrevo este
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 5/62
10 I LetramentoApresentação I I I
texto como o estou escrevendo - neste estilo, com esta
organização, distribuindo assim as ideias, dividindo-as em
períodos e parágrafos assim como estou fazendo, lançando
mão de certos protocolos de leitura . O gênero desta
Apresentação está sendo o resultado da função que atri-
buo a ela e das condições especificas em que a produzo;
estou supondo: alguém tomou este livro nas mãos, e es-
tará se perguntando: um tema em três gêneros? que sen-
tido terá gênero aqui? e por que um mesmo tema em
três gêneros? para quê? Porque atribuo a esta Apresenta-
ção a função de responder a essas perguntas e porque
estou supondo um certo leitor, com certos interesses, com
certos conhecimentos prévios, com certa disposição para
ler esta Apresentação e folhear este livro, escrevo aqui
como estou escrevendo: neste gênero.
Os dois parágrafos anteriores terão deixado claro que
gênero aqui tem o sentido que lhe dá Bakhtin: cada esfera
de utilização da língua elabora seus tipos relativamente es-
táveis de enunciados, sendo isso que denominamos gê-
neros do discurso . E terão deixado claro também que o
gênero do discurso, no caso da interação por meio da escrita, é
resultado da função que o autor atribui ao texto, do leitor
específico para quem o autor escreve, das condições de
produção do texto. Por isso, um mesmo tema pode ser
desenvolvido em diferentes gêneros discursivos. Indo além
daquilo que é mais frequente dizer-se quando se discute,
numa perspectiva discursiva, o texto escrito - que, de um
mesmo texto, diferentes leitores constroem diferentes leitu-
ras - pretendeu-se aqui evidenciar outra coisa: que sobre um
mesmo tema podem (devem?) ser produzidos, em dife-
rentes situações discursivas, diferentes textos para dife-
rentes leitores, em função dos seus objetivos, interesses,
características - um mesmo tema em diferentes gêneros.
Um mesmo tema - letramento, este novo conceito re-
cém-introduzido no campo da Educação, das Ciências So-
ciais, da História, das Ciências Linguísticas.
Três gêneros - três diferentes textos produzidos em três
diferentes condições discursivas, com três diferentes funções
e objetivos, para três diferentes grupos de leitores, anterior-
mente publicados em três diferentes portadores.
Em primeiro lugar, um texto produzido para o leitor-
professor com o objetivo de esclarecer o significado deletramento; mais especificamente, um texto informativo,
descritivo e crítico, produzido para a seção Dicionário
crítico da Educação de uma revista pedagógica - o tema
letramento no gênero verbete.
Em segundo lugar, um texto produzido para o professor-
leitor-estudante, envolvido em atividades de aperfeiçoa-
mento e atualização profissional; mais especificamente,
um texto que procura provocar e orientar a reflexão do
professor, buscando suscitar e acompanhar os diversos e
nem sempre previsíveis caminhos do processo de apren-
dizagem, texto produzido para utilização em cursos, semi-
nários, oficinas de formação continuada - o tema
letramento no gênero texto didático.
Finalmente, um texto destinado a profissionais respon-
sáveis por, em diferentes instâncias, avaliar e medir letra-
mento e alfabetização, publicado originalmente como uma
monografia elaborada para um organismo internacional
(Unesco), portanto, para um técnico-leitor internacional
em busca de suporte teórico para suas atividades de ava-liação e medida de letramento e alfabetização; mais espe-
cificamente, um texto analítico, argumentativo, questionador,
em que ideias são submetidas a cuidadoso escrutínio - o
tema letramento no gênero ensaio.
Informações mais detalhadas sobre os objetivos e con-
dições de produção de cada um desses textos precedem
cada um deles; mas cabe aqui ainda responder a uma
última questão que o leitor desta Apresentação certamente
gostaria de ver respondida: que objetivo tem este livro em
que se propõe um só tema em três gêneros? Ou, dizendo
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 6/62
12 ILetramento
de outra forma: a que leitor se destina este livro? Há duas
respostas a essa pergunta.
A primeira resposta é que, embora os textos sejam, de
certa forma, recorrentes, não se repetem: a especificidade
da relação autor-leitor em cada texto conduz a uma situa-
ção discursiva diferente, que constrói um texto tam-
bém diferente; assim, os textos antes se somam que se
repetem, cada um ampliando, na sequência em que são
apresentados, o tema único letramento.
Asegunda resposta é que o que neste livro se pretende é
não apenas discutir uma conceituação de letramento e
alfabetização, em suas diferentes facetas e dimensões, mas
também sugerir ao leitor a possibilidade de interações dis-
cursivas diferenciadas sobre o mesmo tema, em textos es-
critos, em função de diferentes relações autor-leitor e
diferentes condições de produção, gerando textos de dife-rentes gêneros.
O leitor pretendido para este livro é, assim, aquele que
se interessa por letramento e alfabetização, por habilida-
des e práticas sociais de leitura e escrita, e que também se
interessa por uma análise discursiva das práticas de pro-
dução de texto e de leitura, e busca compreender as
relações autor - texto - leitor, e suas consequências na
produção de diferentes práticas discursivas e diferentes
gêneros discursivos.
LETR MENTO EM
VERBETE
o QUE É LETRAMENTO?
Texto'p ub li ca do n o p er ió di co P re se nç a P ed ag óg ic a , v . -l,n. 10 ,jullâgo: /996, n a s eç ão '' 'D i c ionário c r ít ic o da educação ,. .
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 7/62
erbete 1 1 5
Letramento é palavra recém-chegada ao vocabulário
da Educação e das Ciências Linguísticas: é na segunda
metade dos anos 80, há cerca de apenas dez anos, por-
tanto, que ela surge no discurso dos especialistas dessas
áreas. Uma das primeiras ocorrências está em livro de
Mary Kato, de 1986 (No mundo da escrita: uma pers-pectiva psicolínguística, Editora Ática): a autora, logo no
início do livro (p.7), diz acreditar que a língua falada
culta é consequência do letramento (grifo meu).': Dois
anos mais tarde, em livro de 1988 (Adultos não alfabeti-
zados: o avesso do avesso, Editora Pontes), Leda Verdiani
Tfouni, no capítulo introdutório, distingue alfabetização
de letramento: talvez seja esse o momento em que letra-
mento ganha estatuto de termo técnico no léxico dos
campos da Educação e das Ciências Linguísticas. Desde
então, a palavra torna-se cada vez mais frequente nodiscurso escrito e falado de especialistas, de tal forma
que, em 1995, já figura em título de livro organizado por
Ângela Kleiman: Os significados do etramento: uma
nova perspectiva sobre a prática social da escrita (grifo
meu, ver referência na nota 1).
I Ângela Kleiman levanta a hipótese de que Mary Kato f é que terá cunhado o termoletramento (ver nota ela p.17 em KLElMAN,A. (Org.). Os significados do letrarnento: uma
nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado ele Letras, 1995).
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 8/62
1 6 1 LetramentoVerbete 1 1 7
o que explica o surgimento recente dessa palavra? No-
vas palavras são criadas (ou a velhas palavras dá-se um
novo sentido) quando emergem novos fatos, novas ideias,
novas maneiras de compreender os fenômenos. Que novo
fato, ou nova ideia, ou nova maneira de compreender a
presença da escrita no mundo social trouxe a necessidade
desta nova palavra, fetramento?
Se a palavra letramento ainda causa estranheza a mui-
tos, outras palavras do mesmo campo semântico sempre
nos foram familiares: analfabetismo, analfabeto, alfabeti-
zar, alfabetização, alfabetizado e, mesmo, letrado e ile-
trado. Analfabetismo define o Novo Dicionário Aurélio
da Língua Portuguesa, é o estado ou condição de analfa-
beto , e analfabeto é o que não sabe ler e escrever , ou
seja, é o que vive no estado ou condição de quem não
sabe ler e escrever; a ação de alfabetizar isto é, segundo
o Aurélio, de ensinar a ler (e também a escrever, que o
dicionário curiosamente omite) é designada por alfabeti-
zação e alfabetizado é aquele que sabe ler (e escre-
ver). Já fetrado segundo o mesmo dicionário, é aquele
versado em letras, erudito , e iletrado é aquele que não
tem conhecimentos literários e também o analfabeto ou
quase analfabeto . O dicionário Aurélio não registra a pa-
lavra letramento . Essa palavra aparece, porém, num di-
cionário da língua portuguesa editado há mais de um
século, o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguc-
sa, de Caldas Aulete: na sua 3ª edição brasileira, o verbete
letramento caracteriza a palavra como ant. , isto é, an-
tiga, antiquada , e lhe atribui o significado de escrita ; o
verbete remete ainda para o verbo letrar a que, como
transitivo direto, atribui a acepção de investigar, soletran-
do e, como pronominal letrar-se , a acepção de adqui-
rir letras ou conhecimentos literários - significados bem
distantes daquele que hoje se atribui a fetramento (que,como já dito, não aparece no Aurélio, como também nele
não aparece o verbo letrar ).
Certamente, pois, não fomos buscar no letramento
dicionarizado por Caldas Aulete, e já por ele considerado
vocábulo antigo, antiquado, o termo fetramento com o
sentido que hoje lhe damos. Onde fomos buscá-Ia? Trata-se,
sem dúvida, da versão para o Português da palavra da
língua inglesa literacy.
Etimologicamente, a palavra literacy vem do latim lit-
tera (letra), com o sufixo -cy, que denota qualidade, con-
dição, estado, fato de ser (como, por exemplo, em
innocency, a qualidade ou condição de ser inocente). No
Webster s Diciionary, literacy tem a acepção de the condi-
tion of being literate , a condição de ser literate. e literate
é definido como educated; especially able to read and
write , educado, especialmente, capaz de ler e escrever.
Ou seja: literacy é o estado ou condição que assume aque-
le que aprende a ler e escrever. Implícita nesse conceito
está a ideia de que a escrita traz consequências sociais,
culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas,
quer para o grupo social em que seja introduzida, quer
para o indivíduo que aprenda a usá-Ia. Em outras pala-
vras: do ponto de vista individual, o aprender a ler e es-
crever - alfabetizar-se, deixar de ser analfabeto, tornar-se
2 o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa de Caldas Aulete teve as slIastrês primeiras edições em Lisboa (1881, 1925 e 1948); a quarta edição, l I'rillll irabrasileira, é de 1958 (a segunda edição brasileira é de 1963 e a terceira, dl:lda 110texto, é ele 1974). Como o dicionário sofreu numerosas modificações ao 1<lllgodlsuas sucessivas edições, só uma pesquisa nessas edições permitiria den-nnin.u Sl' Ipalavra letramento aparece desde a primeira edição, ou se foi introduzidn vm di< loposterior, ou se sofreu mudança em sua acepção ao longo do tempo. I'l'S'ILliS;ISdessa natureza em dicionários contribuem sobremaneira para a d;Jr:H,'~'I() dv f: It n , c . ; ,
idéias e fenômenos e para a identificaçào do processo de transform (11I dessesfatos, ideias e fenômenos ao longo do tempo.
3 Enquanto já incorporamos ao português a palavra letramento, correspondente aoinglês iiteracy, ainda não temos palavra correspondente ao inglês lüerate, quedesigna aque le que vive em estado ou na condição de saber ler e escrever; a palavraletrado ainda conserva, em Português, o sentido de versado em letras, erudito .
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 9/62
1 8 1 LetramentoVerbete 1 1 9
alfabetizado, adquirir a tecnologia do ler e escrever eenvolver-se nas práticas sociais de leitura e de escrita _
tem consequências sobre o indivíduo, e altera seu esta-
do ou condição em aspectos sociais, psíquicos, culturais,políticos, cognitivos, linguísticos e até mesmo econômi-
cos; do ponto de vista social, a introdução da escrita em
um grupo até então ágrafo tem sobre esse grupo efeitosde natureza social, cultural, política, econômica, linguístí-ca. O estado ou a condição que o indivíduo ou ogrupo social passam a ter, sob o impacto dessas mudan-ças, é que é designado por literacy.
É esse, pois, o sentido que tem fetramento palavra quecriamos traduzindo ao pé da letra o inglês literacy. tetre-,
do latim littera,e o sufixo -mento, que denota o resultado de
uma ação (como, por exemplo, em ferimento, resultado da
ação de ferir). Letramento é, pois, o resultado da ação deensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condi-
ção que adquire um grupo social ou um indivíduo comoconsequência de ter-se apropriado da escrita.
Dispúnhamos, talvez, de uma palavra mais verná-cula : alfabetismo que o Aurélio (que não dicionarizaletramento, como já dito) registra, atribuindo a essa pala-vra, entre outras acepções, a de estado ou qualidade dealfabetizado . Entretanto, embora dicionarizada, alfabetis-
mo não é palavra corrente, e, talvez por isso, ao buscar
uma palavra que designasse aquilo que em inglês já sedesignava por literacy, tenha-se optado por verter a pala-vra inglesa para o português, criando a nova palavra fetramento. Curiosamente, em Portugal tem-se preferido o
termo literacia, mais próximo ainda do termo inglês. Valea pena citar as palavras de António Nóvoa em prefácio
que faz à obra recente de ]ustino Pereira de Magalhães,'porque elas abonam o uso de literacia e ainda afirmam adiferença entre esse termo e o termo analfabetismo, escla-recendo o sentido do primeiro: António Nóvoa lamenta
que Portugal vá fechar o século XX com níveis intolerá-veis de analfabetismo (talvez da ordem dos 15%) e comníveis ainda mais baixos de literacia, entendida aqui comoa utilização social da competência alfabética (grifos meus).
É significativo refletir sobre o fato de não ser de uso
corrente a palavra alfabetismo estado ou qualidade dealfabetizado , enquanto seu contrário, analfabetismo es-
tado ou condição de analfabeto , é termo familiar e deuniversal compreensão. O que surpreende é que o subs-tantivo que nega - analfabetismo se forma com o prefixogrego a n -, que denota negação - seja de uso corrente
na língua, enquanto o substantivo que afirma - alfabetis-mo - não seja usado. Da mesma forma, analfabeto, quenega, é também palavra corrente, mas nem mesmo temosum substantivo que afirme o seu contrário (já que alfabetizado nomeia aquele que apenas aprendeu a ler e a escre-
ver, não aquele que adquiriu o estado ou a condição dequem se apropriou da leitura e da escrita, incorporandoas práticas sociais que as demandam). A explicaçãonão é difícil e ajuda a clarear o sentido de alfabetismo ou fetramento.
Como foi dito inicialmente, novas palavras são criadas, oua velhas palavras dá-se um novo sentido, quando emergemnovos fatos, novas ideias, novas maneiras de compreenderos fenômenos. Conhecemos bem, e há muito, o estado ou
condição de analfabeto , que não é apenas o estado oucondição de quem não dispõe da tecnologia do ler e do
Na língua francesa, a palavra correspondente a iIliteracy é illettrisme, que se
distingue de analpbabétisme. analpbabête é o que não sabe ler e escrever; illettré é
o que lê e escreve mal, e não sabe fazer uso ela leitura e da escrita.
S Ler e escrever no mundo rural do Antigo Regime: um contributo para a bistôria da
alfabetização e da escolarização em Portugal. Universidade do Minho, Instituto de
Educação, 1994.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 10/62
20 I Letramento
escrever: o analfabeto é aquele que não pode exercer em
toda a sua plenitude os seus direitos de cidadão, é aquele
que a sociedade marginaliza, é aquele que não tem acesso
aos bens culturais de sociedades letradas e, mais que isso,
grafocêntricas; porque conhecemos bem, e há muito, esse
estado de analfabeto , sempre nos foi necessária uma pa-
lavra para designá-Io, a conhecida e corrente analfabe-
tismo.Já o estado ou condição de quem sabe ler e escrever,
isto é, o estado ou condição de quem responde adequada-
mente às intensas demandas sociais pelo uso amplo e dife-
renciado da leiturae da escrita,esse fenômeno só recentemente
se configurou como uma realidade em nosso contexto so-
cial. Antes, nosso problema era apenas o do estado ou
condição de analfabeto - a enorme dimensão desse pro-
blema não nos permitia perceber esta outra realidade, o
estado ou condição de quem sabe ler e escrever , e, por
isso, o termo analfabetismo nos bastava, o seu oposto _alfabetismo ou fetramento - não nos era necessário. Só
recentemente esse oposto tornou-se necessário, porque
só recentemente passamos a enfrentar esta nova realidade
social em que não basta apenas saber ler e escrever, é
preciso também saber fazer uso do ler e do escrever,
saber responder às exigências de leitura e de escrita
que a sociedade faz continuamente - daí o recente surgi-
mento do termo fetramento (que, como já foi dito, vem-
se tornando de uso corrente, em detrimento do termo
sltebetismoy» Curiosamente, o mesmo fenômeno ocor-reu na língua inglesa, em que illiteracy foi termo corrente
Um claro indicador de que a palavra letramento é nova no léxico da Língua
Portuguesa e ainda de circulação restrita à área acadêmica é a tradução que se fez
recentemente do termo literacy na versão para o Português da importante obra
Literacy and Orality, editada por David R. Olson e Nancy Torrance Cultura escrita
e oraiidade, Editora Ática, 1995): o termo literacy, tanto no título da obra quanto ao
longo de todos os capítulos, foi inadequadamente traduzido por cultura escrita ,ignorando-se o termo letramento (ou mesmo alfabetismoj, e prejudicando-se assim
enormemente a correta compreensão dos textos, já que a expressão culturaescritade forma nenhuma expressa o conceito que literacy nomeia.
Verbete I21
muito antes que o termo literacy emergisse: o Oxford En-
glish Dictionary registra o termo illiteracy desde 1660, ao
passo que seu contrário literacy só surge no fim do século
XIX. Certamente o surgimento neste momento do termo
literacy representa uma mudança histórica das práticas
sociais: novas demandas sociais de uso da leitura e da
escrita exigiram uma nova palavra para designá-Ias. (Ob-
serve-se que o que ocorreu na Grã-Bretanha em fins do
século XIX, motivando o aparecimento do termo literacy,
só agora, em fins do século XX, vem ocorrendo no Brasil,
motivando a criação do termo letramento.)
Quanto à mudança na maneira de considerar o signifi-
cado do acesso à leitura e à escrita em nosso país - da
mera aquisição da tecnologia do ler e do escrever à
inserção nas práticas sociais de leitura e escrita, de que
resultou o aparecimento do termo fetramento ao lado dotermo alfabet ização - um fato que sinaliza bem essa
mudança, embora de maneira tímida, é a alteração do cri-
tério utilizado pelo Censo para verificar o número de anal-
fabetos e de alfabetizados: durante muito tempo,
considerava-se analfabeto o indivíduo incapaz de escrever
o próprio nome; nas últimas décadas, é a resposta à per-
gunta sabe ler e escrever um bilhete simples? que define
se o indivíduo é analfabeto ou alfabetizado. Ou seja: da
verificação de apenas a habilidade de codificar o próprio
nome passou-se à verificação da capacidade de usar a
leitura e a escrita para uma prática social (ler ou escrever
um bilhete simples ). Embora essa prática seja ainda bas-
tante limitada, já se evidencia a busca de um estado ou
condição de quem sabe ler e escrever , mais que a verifi-
cação da simples presença da habilidade de codificar em
língua escrita, isto é, já se evidencia a tentativa de avalia-
ção do nível de fetramento e não apenas a avaliação da
presença ou ausência da tecnologia do ler e escrever.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 11/62
2 2 1 Letramento
A avaliação do nível de fetramento e não apenas da
presença ou não da capacidade de escrever ou ler (o índi-
ce de alfabetização é o que se faz em países desen-
volvidos, em que a escolaridade básica é realmente
obrigatória e realmente universal, e se presume, pois, que
toda a população terá adquirido a capacidade de ler e
escrever. Assim, de um modo geral, esses países tomam
como critério para avaliar o nível de letramento da popu-
lação o número de anos de escolaridade completados pe-
los indivíduos (4, 5 ou mais, dependendo do país que se
esteja considerando e ainda do momento histórico: o nú-
mero de anos de escolaridade tomado como critério cresce
ao longo do tempo, à medida que crescem as demandas
sociais de leitura e escrita): o pressuposto é que a escola,
em 4, 5 ou mais anos, terá levado os indivíduos não só à
aquisição da tecnologia do ler e do escrever, mas tam-
bém aos usos e práticas sociais da leitura e da escrita, a
uma adequada imersão no mundo da escrita. O que inte-
ressa a esses países é a avaliação do nível de fetramento
da população, não o índice de alfabetização e frequen-
temente buscam esse nível pela realização de censos por
amostragem em que, por meio de numerosas e variadas
questões, avaliam o uso que as pessoas fazem da leitura e
da escrita, as práticas sociais de leitura e de escrita de quese apropriaram.
Sendo assim, é importante compreender que é a tetre-mento que se estão referindo os países desenvolvidos
quando denunciam, como têm feito com frequência, Ín-
dices alarmantes de illiteracy (Estados Unidos, Grã-Bre-
tanha, Austrália) ou de illettrisme (França) na população;
na verdade, não estão denunciando, como se costuma crer
no Brasil, um alto número de pessoas que não sabem ler
e escreuer (fenômeno a que nos referimos nós, brasilei-
ros, quando denunciamos o nosso ainda alto índice de
analfabetismo), mas estão denunciando um alto número
Verbete 12 3
de pessoas que evidenciam não viver em estado ou con-
dição de quem sabe ler e escrever, isto é, pessoas que
não incorporaram os usos da escrita, não se apropria-
ram plenamente das práticas sociais de leitura e de es-
crita: em síntese, não estão se referindo a índices de
alfabetização mas a níveis de fetramento. Um exem-
plo é a pesquisa desenvolvida na segunda metade dos
ano 80 nos Estados Unidos, buscando identificar o nível
de letramento (literacy) de jovens americanos (faixa etá-
ria de 21 a 25 anos): em primeiro lugar, os instrumentos
utilizados avaliaram as habilidades de ler, compreender
e usar textos em prosa, como editoriais, reportagens, poe-
mas, ete. e de localizar e usar informações extraídas de
mapas, tabelas, quadros de horários, etc., o que eviden-
cia que o objetivo não foi verificar se os jovens sabiam
ler e escrever - se eram alfabetizados - mas se sabiamfazer uso de diferentes tipos de material escrito, com-
preendê-Ias, interpretá-Ias e extrair deles informações -
que nível de letramento tinham; em segundo lugar, a
conclusão da pesquisa foi que a illiteracy (a incapaci-
dade de ler e escrever, isto é, o analfabetismo) não era
um problema entre os jovens, a literacy (a capacidade
de fazer uso da escrita, isto é, o letramento) é que
constituía o problema.
A diferença entre alfabetização e fetramento fica
clara também na área das pesquisas em Educação, emHistória, em Sociologia, em Antropologia. As pesquisas
que se voltam para o estudo do número de alfabetizados
e analfabetos e sua distribuição (por região, por sexo,
por idade, por época, por etnia, por nível socioeconômico,
entre outras variáveis), ou que se voltam para o número
de crianças que a escola consegue levar à aprendizagem
da leitura e da escrita, na série inicial, são pesquisas
sobre alfabetização; as pesquisas que buscam identifi-
car os usos e práticas sociais de leitura e escrita em
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 12/62
2 4 1 Letramento
determinado grupo social (por exemplo, em comunidades
de nível socioeconôrnico desfavorecido, ou entre crian-
ças, ou entre adolescentes), ou buscam recuperar, com
base em documentos e outras fontes, as práticas de leitu-
ra e escrita no passado (em diferentes épocas, em dife-
rentes regiões, em diferentes grupos sociais) são pesquisas
sobre fetramento.
Uma última inferêricia que se pode tirar do conceito
de fetramento é que um indivíduo pode não saber ler
e escrever, isto é, ser analfabeto mas ser, de certa
forma, letrado (atribuindo a este adjetivo sentido vin-
culado a letramento). Assim, um adulto pode ser anal-
fabeto, porque marginalizado social e economicamente,
mas, se vive em um meio em que a leitura e a escrita
têm presença forte, se se interessa em ouvir a leitura de
jornais feita por um alfabetizado, se recebe cartas que
outros leem para ele, se dita cartas para que um alfabe-
tizado as escreva (e é significativo que, em geral, dita
usando vocabulário e estruturas próprios da língua es-
crita), se pede a alguém que lhe leia avisos ou indica-
ções afixados em algum lugar, esse analfabeto é, de
certa forma, fetrado porque faz uso da escrita, envol-
ve-se em práticas sociais de leitura e de escrita. Da
mesma forma, a criança que ainda não se alfabetizou,
mas já folheia livros, finge lê-Ios, brinca de escrever, ouve
histórias que lhe são lidas, está rodeada de material es-
crito e percebe seu uso e função, essa criança é ainda
analfabeta , porque não aprendeu a ler e a escrever,
mas já penetrou no mundo do fetramento já é, de
certa forma, fetrada. Esses exemplos evidenciam a exis-
tência deste fenômeno a que temos chamado tetremen-
to e sua diferença deste outro fenômeno a que chamamos
alfabetização, e apontam a importância e necessidade
de se partir, nos processos educativos de ensino e
Verbet e I 25
aprendizagem da leitura e da escrita voltados seja para
crianças, seja para adultos, de uma clara concepção des-
ses fenômenos e de suas diferenças e relações.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 13/62
t._,
~, o :.,
i ; ; ' j J i 1 : : ; , i . ~
\ t ~:t ~ ji,··:t:l TRAMI ~NTóEM
TEXTO DIDÁTICO
oQUE É LETRAMENTO
E ALFABETIZAÇÃO
.> . : : ; Y : 7 ) - ~ ~ ~ : ~ ' : : _ - - ~ ; : : ; : ~ :< ': -- ~~ ; ~:~ ; ; ic i E : : ; ; _ : _: ~ _ ;; ; ~ :; : - i: _ : ; ~ • . - ;~ ; : : : '~ ~ ~ : i; ~ - - = ; : ; _~ ;~ ~ : ~ ~ ~ - . ,: ~ : ; _ : _ ': ' : : ( . '~
2 : : . . . . re~t~~;p~pâ~ido:P;o€~1 ci t 1çãô:do 'i~~ t~ ~ ;?d~ ;A~êr .ré r,~O 'm :en t~ :~ :: i · :; : '::d~ ;;P :;/b~sS iDVQi :;d ~:j fO ,~~;~G , l W ç : ~ ~ :~ ;: a ie : d é ; ,M 'Ú n ; é i . ~ ( , é ; i n s i f; J ~ ;
: , ' , , ,-, ::, i : ~ 1 ~ - ': - . :- -,, :>., ,~ 4 ; ~ , ,.~ : :,: :l.· t)y ;, : ,: :; ~ : . ~ , , ,. , : '<:';,';','; '~:' I f . '~ ~ ' :' ,
; :: : : :; : d .e ; : a l ? l o : f f l o t : ; t t m ~ e ~ ; f .Q r - d :~ s ~ iJ u l i r Q d ó i ' . ~ f . i g ; ;m l w ú · j i :7 1 ;: . ~ Q t; t p :e m ;~ '::~,::f.'~:~ : : : : ~ - : : t ;~-' -> : :: :~ .~ . ;7~t~~~/~;-;~ . - t ; - ~ :. ~ ', , :; ; ~ ; -; , , ~~< ' :~ ~~ .~ :r.h.,;~':':''' ': .. -_ ,,,:~ _~ : :~:~......: . \ ~ . _ ; ~ ' . ',~ .:,,:: '·:sem,r.l'ltil~ .~é,.btuall~Q~o·{Jf:.'pFoféssó~'''··T.,..::-;.•..•.
~ ; . , : . ' : ~ ~ ~ , :~ ;:~ ~ ~ ;j. ~ - ~ ; :~ '; : : : : : ~ > . : ; : :~ :
2 < ~ : . - ' : ' ; , ~: ; . , ~; ,~::i~,:'~,:,-:~ ':: ' : ' -
:~:::i~~:'~ ~ ;~::~.,:; ,~ , it '·~ ;
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 14/62
T _ , ; _ J 2 9
Neste texto, vamos discutir conceitos e, portanto, pala-
vras, ou, se quiserem, vamos discutir palavras e, portanto,
conceitos: os conceitos alfabetização e letramento, as pa-
lavras alfabetização e letramen to.
Em um primeiro momento, gostaria de fazer um passeio
pelo campo semântico em que se inserem essas palavras,esses conceitos. São palavras de uso comum, conhecidas,
exceto talvez letramento, palavra ainda desconhecida ou
mal entendida, ou ainda não plenamente compreendida
pela maioria das pessoas, porque é palavra que entrou na
nossa língua há muito pouco tempo.
ALFABETIZAÇÃO
ALFABETIZAR ALFABETIZADO
ANALFABETISMO ANALFABETO
LETRAMENTO
LETRAMENTO ILETRADO
ALFABETISMO
Não precisamos definir essas palavras, porque estamos
familiarizados com elas, talvez com exceção apenas da
palavra letramento. Mas vou me deter nelas para conduzir
nossa reflexão em direção ao sentido de letramento.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 15/62
30 I Letramento
Vejamos as definições que aparecem no dicionário Au-
rélio:
ANALFABETISMO:estado ou condição de analfabeto
a n + alfabet + ismo~ ~
a-; prefixo grego(acrescenta-se um -n-quando a palavra a queé adicionado começacom vogal)indica:privação, falta de
Exemplos:acéfalo.
sem cabeça, sem cérebroamoral.
privado de moral
-ismo. sufixoindica:modo de proceder,
de pensar
Exemplos:heroismo:
procedimento de heróiservilismo:
procedimento servil
ANALFABETO: que não conhece o alfabeto,que não sabe ler e escrever
a n + alfabeto
Nas palavras analfabetismo e analfabeto aparece o pre-
fixo a (n)«
Analfabeto é aquele que é privado do alfabeto, a quefalta o alfabeto, ou seja, aquele que não conhece o alfabe-
to, que não sabe ler e escrever.
(Ao pé da letra, significa aquele que não sabe nem o alfa, nem o
beta - atfa e beta são as primeiras letras do alfabeto grego; em
outras palavras: aquele que não sabe o bê-a-bâ.)
Em analfabetismo, aparece ainda o sufixo -ismo. a
palavra significa um modo de proceder como analfabeto,
ou seja: analfabetismo é um estado, uma condição, o modo
de proceder daquele que é analfabeto.
T _ ~ , , ~ . J\1
ALFABETIZAR:ensinar a ler e a escrever
alfabet + izar~
-izer. sufixoindica:tornar, fazer com que
Exemplos:suavizar: tornar suaveindustrializar:
tornar industrial
Alfabetizar é tornar o indivíduo capaz de ler e escrever.
ALFABETIZAÇÃO: ação de alfabetizar
Alfabet + iza r + ção~
-çêo: sufixo que formasubstantivosindica: açãoExemplos:traição: ação de trairnomeação:
ação de nomear
Alfabetização é a ação de alfabetizar, de tornar alfa-
beto .
Causa estranheza o uso dessa palavra alfabeto , na
expressão tornar alfabeto . É que dispomos da palavraanalfabeto mas não temos o contrário dela: temos a
palavra negativa, mas não temos a palavra positiva.
É no campo semântico dessas palavras que conhecemos
bem - analfabetismo, analfabeto, alfabetização, alfabeti-
zar - que surge a palavra letramento. Como surgiu essa
palavra e o que ela quer dizer?
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 16/62
3 2 1 Letramento
LETR MENTO
Conhecemos as palavras letrado e iletrado.
LETRADO: versado em letras, erudito
ILETRADO: que não tem conhecimentos literários
uma pessoa letrada = uma pessoa erudita, versada em'letras (letras significando literatura, línguas);
uma pessoa iletrada = uma pessoa que não tem conhe-cimentos literários, que não é erudita; analfabeta, ou qua-se analfabeta.
O sentido que temos atribuído aos adjetivos letrado e
iletrado não está relacionado com o sentido da palavra
letramento.
A palavra letramento ainda não está dicionarizada, por-
que foi introduzida muito recentemente na língua portu-
guesa, tanto que quase podemos datar com precisão suaentrada na nossa língua, identificar quando e onde essa
palavra foi usada pela primeira vez.
Parece que a palavra letramento apareceu pela primei-ra vez no livro de Mary Kato: No mundo da escrita: uma
perspectiva psicolinguística, de 1986. [Consulte o rodapé,se quiser a referência completa.]' Na página 7, a autoradiz o seguinte:
Acredito ainda que a chamada norma-padrão, ou língua falada culta,
é conseqüência do letramento, motivo por que, indiretamente, é
função da escola desenvolver no aluno o domínio da linguagem faladainstitucionalmente aceita. (grifo meu)
1 KATO, Mary A. No mundo da escrita: uma perspectiva psicounguisuca. São Paulo:Ática, 1986. (Série Fundamentos)
Texto didático I 3 3
A palavra letramento não é, como se vê, definida pelaautora e, depois dessa referência, é usada várias vezes nolivro; foi, provavelmente, essa a primeira vez que a pala-vra letramento apareceu na língua portuguesa - 1986.
LEIA SE QUISER :
É interessante verificar que a substantivo do verbo letrar, quepalavra letramento aparece há significava o que hoje chamamosum século atrás, no dicionário de soletrar. Estarnos, pois, dianteCaldas Aulete, já ali indica da elo caso de uma palavra quecomo palavra antiga ou anti- morreu e ressuscitou em
quada, palavra fora de uso, e 1986 ... É este um belíssimocom um sentido que não é o exemplo de como a língua éque a palavra letramento tem algo realmente vivo, de como ashoje; segundo o Dicionário Cal- palavras vão morrendo e nascendodas Aulete, letramento significa- conforme fenômenos sociais e
va o mesmo que escrita, culturais vão ocorrendo.
Depois da referência de Mary Kato, em 1986, a palavra
letramento aparece em 1988, no livro que, pode-se dizer,lançou a palavra no mundo da educação, dedica páginas àdefinição de letramento e busca distinguir letramento dealfabetização: é o livro Adultos não alfabetizados: o avessodo avesso, de Leda Verdiani Tfouni, um estudo sobre omodo de falar e de pensar de adultos analfabetos. [Consulte orodapé, se quiser a referência completa.F
Mais recentemente, a palavra tornou-se bastante cor-rente, aparecendo até mesmo em título de livros, por exem-plo: Os significados do letramento, coletânea de textos
organizada por Ângela Kleiman, livro de 1995; Alfabetiza-ção e letra men to, da mesma Leda Verdiani Tfouni, ante-riormente mencionada, livro também de 1995. [Consulte orodapé, se quiser as referências cornpletas.P
2 TFOUNI, Leda Verdiani. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. São Paulo:Pontes, 1988. (Coleçào Linguagem/Perspectivas),
3 KLEIMAN, Ânge1a 13.(org.). Os significados do letrarnento: uma nova perspectiva
sobre a prática social da escrita, Campinas, SI': Mercado de Letras, 1995.
TFOUNI, Leda Verdiani. Alfabetizaçâo e letramento. S' lO Paulo: Cortez, 1.995.(ColeçãoQuestões de nossa época).
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 17/62
3 4 ILetramento
Na busca de esclarecer o que seja letramento, talvez
seja interessante refletirmos sobre o seguinte: vivemos sé-
culos sem precisar da palavra letramento; a partir dos
anos 80, começamos a precisar dessa palavra, inventamos
essa palavra - por quê, para quê?
Por que aparecem palavras novas na língua?
Resposta
Na língua sempre aparecempalavras novas quando fenô-menos novos ocorrem, quan-do uma nova idéia, um novofato, um novo objeto surgem,são inventados, e então é ne-cessário ter um nome paraaquilo, porque o ser humano
não sabe viver sem nomear ascoisas: enquanto nós não asnomeamos, as coisas parecemnão existir.
Um exemplo
Hoje em dia se usa com muitafrequência a palavra globaliza-
çâo, abrimos o jornal e lá está apalavra globalização; poucosanos atrás, ninguém usava essapalavra, não no sentido com quea estamos usando atualmente.Por que surgiu a palavra.globa-lização? Porque surgiu umfenômeno novo na economiamundial e foi preciso dar umnome a esse fenômeno novo -surge assim a palavra nova.
V E IA O U T R OS EX E M P L O S. SE Q U I S E R :
Um exemplo mais familiar de sur-
gimento de uma nova palavra é o
caso da palavra televisão, que foi
íntroduzída na língua nos anos 50,época em que apareceu esse novo
meio de comunicação e foi preci-
so dar um nome a ele.
Outros exemplos são as palavras
ligadas ao uso do computador: há
uma série de palavras que estão
entrando na língua, por exemplo,
micreiro; que designa a pessoa usu-
ária do mícrocornputador, inter~
nauta, ou seja, a pessoa que na-vega na Internet, e ainda a intro-
dução, no nosso vocabulário coti-
diano, de palavras da área da infor-
mática, como acessar; significando
estabelecer contato, e dele/ar, que
vem subst ituindo a pa lavra apagar.
Portanto: o termo letramento surgiu porque apareceu
um fato novo para o qual precisávamos de um nome, um
fenômeno que não existia antes, ou, se existia, não nos
Textodidático I35
dávamos conta dele e, como não nos dávamos conta dele,
não tínhamos um nome para ele.
Três perguntas precisam agora ser respondidas:
Qual é osignificado dessapalavra letramento?
Por que surgiuessa nova palavra,letramento?
Onde fomosbuscar essa novapalavra, letramento?
Comecemos por responder à última pergunta.
ONDE FOMOS BUSCAR A PALAVRA LETRAMENTO?
Na verdade, a palavra letramento é uma tradução para
o português da palavra inglesa literacy, os dicionários de-finem assim essa palavra:
LITERACY:the condition of being literate
littera + cy
t tpalavra latina = letra -cy: sufixo
indica:qualidade, condição, estado
Exemplo:innocency.
condição de inocente.
Traduzindo a definição acima, literacy é a condição
de ser letrado - dando à palavra letrado sentido diferen-
te daquele que vem tendo em português. [Recorra à pági-
na 32, se precisar recordar qual é esse sentido.] Em inglês,
o sentido de literate é:
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 18/62
3 6 1 ~ _ ~LITERATE: educated; especially able to read and write
educado; especificamente, que tem a habilidade
de ler e escrever
Literate é, pois, O adjetivo que caracteriza a pessoa que
domina a leitura e a escrita, e literacy designa o estado ou
condição daquele que é literate, daquele que não só sabe
ler e escrever, mas também faz uso competente e frequen-
te da leitura e da escrita.
Há, assim, uma diferença entre saber ler e escrever, ser
alfabetizado, e viver na condição ou estado de quem sabe
ler e escrever, ser letrado (atribuindo a essa palavra o senti-
do que tem literate em inglês). Ou seja: a pessoa que apren-
de a ler e a escrever - que se torna alfabetizada - e que
passa a fazer uso da leitura e da escrita, a envolver-se nas
práticas sociais de leitura e de escrita - que se torna letrada
- é diferente de uma pessoa que não sabe ler e escrever - é
analfabeta - ou, sabendo ler e escrever, não faz uso da
leitura e da escrita - é alfabetizada; mas não é letrada, não
vive no estado ou condição de quem sabe ler e escrever e
pratica a leitura e a escrita.
o adjetivo letrado e seu feminino letrada serão usados no
restante deste texto com um signif icado que não é o que
têm por enquanto) nos dicionários: serão usados para
caracterizar a pessoa que, além de saber ler e escrever,
faz uso frequente e competente da leitura e da escrita.Serão usados também os adjetivos i etradoliletrada comoseus antônimos.
Estado ou condição: essas palavras são importantes para
que se compreendam as diferenças entre analfabeto, alfabe-
tizado e letrado; o pressuposto é que quem aprende a ler e a
escrever e passa a usar a leitura e a escrita, a envolver-se em
práticas de leitura e de escrita, torna-se uma pessoa diferente,
adquire um outro estado, uma outra condição.
T . ~ , ; _ J 3 7Socialmente e culturalmente, a pessoa letrada já não é
a mesma que era quando analfabeta ou iletrada, ela pas-
sa a ter uma outra condição social e cultural - não se
trata propriamente de mudar de nível ou de classe social,
cultural, mas de mudar seu lugar social, seu modo de
viver na sociedade, sua inserção na cultura - sua relação
com os outros, com o contexto, com os bens culturaistorna-se diferente.
Há a hipótese de que tornar-se letrado é também tornar-se
cognitivamente diferente: a pessoa passa a ter uma forma
de pensar diferente da forma de pensar de uma pessoa
analfabeta ou iletrada.
SE D E SE JA R L E R P E S Q UI SA S Q U E E X PL O RA M E SS A H IP Ó TE S E:
o livro de Leda Verdiani Tfouni Luria, relatada no livro desse
já citado, Adultos não alfabeti- autor traduzido para o portu-
zados. o avessodo avesso relata guês como Desenvolvimento
pesquisa baseada nessa hípó- cognitivo: seus fundamentos
tese; uma pesquisa clássica nessa culturais e sociais, São Paulo:
área é a do psicólogo russo Ícone, 1990.
Tornar-se letrado traz, também, consequências línguís-ticas: alguns estudos têm mostrado que o letrado fala de
forma diferente do iletrado e do analfabeto; por exemplo:
pesquisas que caracterizaram a língua oral de adultos
antes de serem alfabetizados e a compararam com a lín-
gua oral que usavam depois de alfabetizados concluíram
que, após aprender a ler e a escrever, esses adultos pas-saram a falar de forma diferente, evidenciando que o
convívio com a língua escrita teve como consequências
mudanças no uso da língua oral, nas estruturas linguís-ticas e no vocabulário.
SE Q U IS ER L ER U M P O U C O M A IS S OB RE I S SO :
Mary Kato, no livro já citado, duçào do capítulo, páginas 10
No mundo da escrita, trata a 12, e o item A fala pré-
dessa questão no capí tulo 1: letramento e pós-letramento ,
leia, particularmente, a intro- páginas 22-23.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 19/62
3 8 1 Letramento
Enfim: a hipótese é que aprender a ler e a escrever e,
além disso, fazer uso da leitura e da escrita transformam
o indivíduo, levam o indivíduo a um outro estado ou
condição sob vários aspectos: social, cultural, cognitivo,
linguístico, entre outros.
Tentamos responder, até aqui, a uma das três perguntas
da página 35:
RESPONDIDA?
Qual é o
significado dessa
palavra letramento?
Por que surgiu
essa nova palavra,
letramento?
Onde fomos
buscar essa nova
palavra, letramento?
Busquemos, agora, a resposta à primeira pergunta.
FINALMENTE, UMA DEFINiÇÃO DE LETRAMENTO
Chegamos finalmente à palavra e ao conceito letra-
mento:
letra mento
1 - 1 -forma portuguesa da
palavra latina littera
-mento: sufixo
indica:
resultado de uma ação
Exemplo:
ferimento:
resul tado da ação de feri r
Portanto: letramento é o resultado da ação de letrar-
se , se dermos ao verbo Ietrar-se o sentido de tornar-se
letrado .
Texto didático 1 3 9
LETRAMENTO
Resultado da ação de ensinar e aprender as
práticas sociais de leitura e escrita
O estado ou condição que adquire
um grupo social
ou um indivíduo
como consequência de ter-se apropriado
da escrita e de suas práticas sociais
Observação importante: ter-se apropriado da escri-
ta é diferente de ter aprendido a ler e a escrever: aprender
a ler e escrever significa adquirir uma tecnologia, a de
codificar em língua escrita e de decodificar a língua escri-ta; apropriar-se da escrita é tornar a escrita própria , ou
seja, é assumi-Ia como sua propriedade .
o E XE M PL O A BA IX O P O DE T OR N AR M A IS C LA R A E SS A D IF ER EN Ç A; L EI A- O, S E U LG A R N EC E SS ÁR IO .
Retomemos a grande diferença entre alfabetização e le-
tramento, entre alfabetizado e letrado [senecessário, reveja
as pp.36, 38]: um indivíduo alfabetizado não é neces-
sariamente um indivíduo letrado; alfabetizado é aquele
Grupos indígenas são sociedades
ágrafas, i sto é, sociedades sem
escrita [observe, na palavra ágrafa,
a presença do pref ixo grego a-,
já discutido: a-grafa = sem grafia,
sem escrita].
Alfabetizar índios significa dar a
eles acesso à tecnologia de leitura
e de escrita, o que ostornará alfa-
betizados, mas não letrados.
Introduzir no grupo práticas
sociais de leitura e de escrita (a
lei tura de livros, a escri ta de car-
tas, o registro por escri to de sua
cultura, a troca documentada em
recibos, a sinali zação de habi-
tações, caminhos e locais com
palavras e frases, ete.) significa
mudar seu estado ou condição:
ele passa a ser um grupo dife-
rente nos aspectos cultural, social,
político, linguístico, psíquico.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 20/62
40 I Letramento
indivíduo que sabe ler e escrever; já o indivíduo letrado, o
indivíduo que vive em estado de letramento, é não só
aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa social-
mente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita,
responde adequadamente às demandas sociais de leitura e
de escrita.
LETRAMENTO DEFINIDO NUM POEMA
Uma estudante norte-americana, de origem asiática, Kate
M. Chong, ao escrever sua história pessoal de letramento,
define-o em um poema; a tradução do poema, com as
necessárias adaptações, é a seguinte [para a referência
do livro em que o poema foi publicado, na língua origi-
nal, veja o rodapé].
.\ Mcl.AUGHUN, M. & VOGT, M.E. Portfolios in Teacber Education. Newark, De:
Internatíonal Reading Association, 1996.
Texto didático I41
o QUE LETRAMENTO?
Letramento não é um gancho
em que se pendura cada som enunciado,
não é treinamento repetitivo
de uma habilidade,
nem um martelo
quebrando blocos de gramática.
Letrarnento é diversão
é leitura à luz de vela
ou lá fora, à luz do sol.
São notícias sobre o presidente,
o tempo, os artistas da TV
e mesmo Mônica e Cebolinba
nos jornais de domingo.
É uma receita de biscoito,
uma lista de compras, recados colados na geladeira,
um bilhete de amor,
telegramas de parabéns e cartas
de velhos amigos.
É viajar para países desconhecidos,
sem deixar sua cama,
é rir e chorar
com personagens, heróis e grandes amigos.
É um atlas do mundo,
sinais de trânsito, caças ao tesouro,
manuais, instruções, guias,
e orientações em bulas de remédios,
para que você não fique perdido.
Letramento é, sobretudo,
um mapa do coração do homem,
um mapa de quem você é,
e de tudo que você pode ser.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 21/62
42 I Letramento
Se você deseja uma explicação do poema, leia esta
página e a página seguinte; se julga desnecessária
essa explicação, passe logo à página 44.
o QUE LETRAMENTO?
Letramento não é um gancho
em que se pendura cada som enunciado,
não é treinamento repetitivo
de uma habilidade,
nem um martelo
quebrando blocos de gramática.
Letramento é diversão,
É leitura à luz de vela
Ou lá fora, à luz do sol.
São notícias sobre o presidente,o tempo, os arti stas da TV,
e mesmo Mônica e Cebolinha
nos jornais de domingo.
Letramento não é alfabe-
tização: esta é que é um pro-
cesso de pendurar sons em
letras ( ganchos ); costuma
ser um processo de treino,
para que se estabeleçam as
relações entre fonemas e gra-
femas, um processo de des-
monte de estruturas linguís-
ticas ( um martelo quebran-
do blocos de gramática ).
Letramento é prazer, é lazer,
é ler em diferentes lugares
e sob diferentes condições,
não só na escola, em exer-
cícios de aprendizagem.
Letramento é informar-se
através da lei tura, é buscar
notícias e lazer nos jornais,
é interagir com a imprensa
diária, fazer uso dela, sele-
cionando o que desperta
interesse, divertindo-se com
as tiras de quadrinhos.
É uma receita de biscoito,
uma lista de compras, recados colados na
geladeira,
um bilhete de amor,
telegramas de parabéns e cartas
de velhos amigos.
É viajar para países desconhecidos,
sem deixar sua cama,
é rir e chorar
com personagens, heróis e grandes amigos.
É um atlas do mundo,
sinais de trânsito, caças ao tesouro,
manuais, instruções, guias,
e orientações em bulas de remédios,
para que você não fique perdido.
Letramento é, sobretudo,
um mapa do coração do homem,
um mapa de quem você é,
e de tudo que você pode ser.
Tex to di dá tico I43
Letramento é usar a lei tura
para seguir instruções (a re-
ceita de biscoito), para apoio
à memória (a lista daquilo
que devo comprar), para a
comunicação com quem está
distante ou ausente (o reca-
do, o bilhete, o telegrama).
Letramento é ler histórias
que nos levam a lugares desco-
nhecidos, sem que, para isso,
seja necessário sair da cama
onde estamos com o livro nas
mãos, é emocionar-se com as
histórias lidas, e fazer, dos
personagens, amigos.
Letramento é usar a escri ta
para se orientar no mundo
(o atlas), nas ruas (os sinais
de trânsito), para receber
instruções (para encontrar
um tesouro para montar
um aparelho para tomar um
remédio), enfim, é usar a es-
crita para não ficar perdido.
Letramento é descobrir a si
mesmo pela leitura e pela
escrita, é entender-se, lendo
ou escrevendo (delinear o
mapa de quem você é), e é
descobrir alternativas e possi-
bilidades, descobrir o que
você pode ser.
Texto didático 1 4 5
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 22/62
4 4 1 Letramento
o poema mostra que letramento é muito mais que alfa-
betização. Ele expressa muito bem como o letramento é um
estado, uma condição: o estado ou condição de quem
interage com diferentes portadores de leitura e de escrita,
com diferentes gêneros e tipos de leitura e de escrita, com
as diferentes funções que a leitura e a escrita desempe-
nham na nossa vida. Enfim: letramenro é o estado ou condi-ção de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas
sociais de leitura e de escrita.
LE IA SE Q UI SE R :
Há uma palavra que talvez seria palavra alfabetismo. Ao contrá-mais adequada para designar esse rio de letramento, é uma palavra
estado ou condição que estarnos dicionarizada, com a seguinte defi-denominando letramento. a nição no Dicionário Aurélio:
Alfabetismo = estado ou qualidade de alfabetizado
De uma forma sintética, é o mes- Uma curiosidade: em Portugal,mo sentido de Ietr am eruo . A lfabe- tem-se usado a palavra literacia,
USlnO teria a vantagem de apre- não se conhece a palavra letra-
sentar-se como o antônimo ele anal- mento - literacia é uma rranspo-fabetismo que, como vimos (página sição muito mais próxima da pala-30 ), é o estado ou condição ele anal- vra l i teracy, do inglês. [Se quiser[abeto . Mas é a palavra let ra m ent o um exemplo do uso da palavra
que se vem impondo, na área elos literacia na literatura educacionalestudos sobre a leitura e a escrita. portuguesa, leia o rodapé.P
Tentamos responder, até agora, a duas das três pergun-
tas da página 35:
, Antônio Nóvoa, um conhecido autor português ele obras na área da Educação,afirma, ao prefaciar Lima obra recente (Ler e escrever no mundo rural do Antigo
Regime: um contributo para. a história da alfabetização e da escolarizaçâo em
Portugal, de justir.o Pereira de Magalhães, 1994):
P o r tuga l vai fechar O século XX com níve i s intoleráveis ele analfabeti smo ( talvez ela ordem
dos 15%) e C0111 níveis ainda mais baixos de literacia, entendida aqui como a utilizaçãosocial ela competência alfab éti ca . (grífos meus). A citação faz mais que comprovar o usoela palavra lüeraaa em Portugal: se pensarmos na situação brasileira, concluiremos quetambém nós fecharemos o século XX na mesma situação - com níveis intoleráveis d eanalfabetismo e níve is baíxíssimos d e letrarnenro, ou lireracia, ou alfabetísrno.
RESPONDIDA? RESPONDIDA?
Qual é o
significado dessa
palavra letramento?
Por que surgiu
essa nova palavra,
letramento?
Onde fomos
buscar essa nova
palavra, letramento?
Qual é a resposta para a última pergunta?
POR QUE SURGIU A PALAVRA LETRAMENTO?
A palavra analfabetismo nos é familiar, usamos essa
palavra há séculos, ela já está presente em textos do tem-
po em que éramos Colônia de Portugal. É um fenômeno
interessante: usamos, há séculos, o substantivo que nega
(recorde a análise da palavra analfabetismo na página 30:
a(n) + alfabetismo = privação de alfabetismo), e não sentí-
amos necessidade do substantivo que afirmasse: alfabetis-
mo ou letramento. Por que só agora, no fim do séculoXX, a palavra letramento tornou-se necessária?
Como já foi dito anteriormente [recorde o item Por que
aparecem palavras novas na língua? Página 34], palavras
novas aparecem quando novas ideias ou novos fenômenos
surgem, Convivemos com o fato de existirem pessoas que
não sabem ler e escrever, pessoas analfabetas, desde o Brasil
Colônia, e ao longo dos séculos temos enfrentado o proble-
ma de alfabetizar, de ensinar as pessoas a ler e escrever;
portanto: o fenômeno do estado ou condição de analfabe-
to nós o tínhamos (e ainda temos ... ), e por isso sempretivemos um nome para ele: analfabetismo.
À medida que o analfabetismo vai sendo superado, que
um número cada vez maior de pessoas aprende a ler e a
escrever, e à medida que, concomitantemente, a sociedade
vai se tornando cada vez mais centrada na escrita (cada
vez mais grafocêntrica , um novo fenômeno se evidencia:
não basta apenas aprender a ler e a escrever. Aspessoas se
alfabetizam, aprendem a ler e a escrever, mas não necessa-
riamente incorporam a prática da leitura e da escrita, não
4 6 1 LetramentoTexto didático 1 4 7
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 23/62
necessariamente adquirem competência para usar a leitura
e a escrita, para envolver-se com as práticas sociais de
escrita: não lêem livros, jornais, revistas, não sabem redigirum ofício, um requerimento, uma declaração, não sabem
preencher um formulário, sentem dificuldade para escrever
um simples telegrama, uma carta, não conseguem encon-
trar informações num catálogo telefônico, num contrato de
trabalho, numa conta de luz, numa bula de remédio ... Esse
novo fenômeno só ganha visibilidade depois que é minima-
mente resolvido o problema do analfabetismo e que o de-
senvolvimento social, cultural, econômico e político traz
novas, intensas e variadas práticas de leitura e de escrita,
fazendo emergirem novas necessidades, além de novas alter-
nativas de lazer. Aflorando o novo fenômeno, foi preciso
dar um nome a ele: quando uma nova palavra surge na
língua, é que um novo fenômeno surgiu e teve de ser nome-
ado. Por isso, e para nomear esse novo fenômeno, surgiu a
palavra letramento.
LEIA SE OUISER :
Também na língua inglesa, a
palavra que nega - illiteracy -
foi usada mui to antes que a que
afirma - literacy: desde o sécu-
lo XVII os dicionários de língua
inglesa registram a palavra illi-
teracy, enquanto só no final do
século XIX passam a registrar
literacy. Isso quer dizer que o
fenômeno que se evidenciou
entre nós neste fim do século XX,
exigindo a palavra letramento,
já se evidenciara nos Estados
Unidos e na Inglaterra no final do
século XIX... estamos atrasados
em apenas um século ...
Estarão agora respondidas as três perguntas da página 35?
RESPONDIDA? RESPONDIDA?ESPONDIDA?
Qual é o
significado dessa
palavra letramento?
Onde fomos
buscar essa nova
palavra, letramento?
Por que surgiu
essa nova palavra,
letramento?
Compreendido o que é letramento, por que surgiu a pa-
lavra letramento, qual a origem da palavra letramento, pode-
se voltar à diferença entre letramento e alfabetização:
ALFABETIZAÇÃO: ação de ensinar/aprender a ler e a escrever
LETRAMENTO: estado ou condição de quem não apenas sabe ler e
escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita
cultiva = dedica-se a atividades de leitura e escrita
exerce = responde às demandas sociais de leitura e escrita
Precisaríamos de um verbo letrar para nomear a ação de
levar os indivíduos ao letramento ... Assim, teríamos alfabeti-
zare letrarcomo duas ações distintas, mas não inseparáveis,
ao contrário: o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja: ensi-
nar a ler e a escrever no contexto das práticas sociais da
leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao
mesmo tempo, alfabetizado e letrado.
LEIA, SE O UI SE R A PR OF UN DA R- SE N AS D IF ER EN CA S E NT RE A LF AB ET IZ AD O E LETRADO :
Um adulto pode ser analfabeto e
letrado:não sabe ler nem escrever,
mas usa a escrita: pede a alguém
que escreva por ele, dita uma
carta, por exemplo (e é interes-
sante que, quando dita, usa as
convenções e estruturas linguís-
ticas próprias da língua escrita,
evidenciando que conhece as
peculiaridades da língua escrita)
- não sabe escrever, mas conhece
as funções da escrita, e usa-as,
lançando mão de um instru-
mento que é o alfabetizado (que
funciona como uma máquina de
escrever. . .) ; pede a alguém que
leia para ele a carta que recebeu,
ou uma notícia de jornal, ou uma
placa na rua, ou a indicação do
rotei ro de um ônibus - não sabe
ler, mas conhece as funções da
escrita, e usa-a, lançando mão do
alfabetizado. É analfabeto, mas
é, de certa forma, letrado, ou tem
um certo nível de letramento.
Uma criança pode ainda não ser
alfabetizada, mas ser letrada:
uma criança que vive num con-
texto de letramento, que convive
com livros, que ouve histórias
lidas por adultos, que vê adultos
lendo e escrevendo, cultiva e
exerce práticas de leitura e de
escrita: toma um livro e finge
que está lendo (e aqui de novo
é interessante observar que,
quando finge ler, usa as conven-
ções e estruturas linguíst icas
próprias da narrativa escrita) ,
toma papel e lápis e escreve
uma carta, uma história. Ainda não
aprendeu a ler e escrever, mas é,
de certa forma, letrada, tem já
um certo nível de letramento.
Uma pessoa pode ser alfabeti-
zada e não ser letrada: sabe ler
e escrever, mas não cultiva nem
exerce práticas de leitura e de
escrita, nào lê livros, jornais,
revistas, ou nào é capaz de
interpretar um texto lido: tem
dificuldades para escrever uma
carta, até um telegrama - é alfa-
betizada, mas não é letrada.
48 I letramentoTexto didático 1 4 9
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 24/62
Alfabetizado e/ou letrado - uma nova pergunta se im-
põe:
Como diferenciar o apenas alfabetizado do letrado?
É difícil a resposta a essa pergunta, porque letramento
envolve dois fenômenos bastante diferentes, a leitura e a
escrita, cada um deles muito complexo, pois constituído
de uma multiplicidade de habilidades, comportamentos,
conhecimentos:
Ler É um conjunto de habilidades e comporta-
mentos que se estendem desde simplesmente
decodificar sílabas ou palavras até ler Gran-
de Sertão Veredas de Guimarães Rosa ...
uma pessoa pode ser capaz de ler um bi-
lhete, ou uma história em quadrinhos, e não
ser capaz de ler um romance, um editorial
de jornal. .. Assim: ler é um conjunto de
habilidades, comportamentos, conhecimen-
tos que compõem um longo e complexo
continuum: em que ponto desse continuum
uma pessoa deve estar, para ser considera-
da alfabetizada, no que se refere à leitura?
A partir de que ponto desse continuum
uma pessoa pode ser considerada letrada,
no que se refere à leitura?
Escrever É também um conjunto de habilidades e
comportamentos que se estendem desde sim-
plesmente escrever o próprio nome até es-
crever uma tese de doutorado ... uma pessoa
pode ser capaz de escrever um bilhete, uma
carta, mas não ser capaz de escrever uma
argumentação defendendo um ponto de vis-
ta, escrever um ensaio sobre determinado
assunto ... Assim: escrever é também um
conjunto de habilidades, comportamentos,
conhecimentos que compõem um longo e
complexo continuum: em que ponto desse
continuum uma pessoa deve estar, para ser
considerada alfabetizada, no que se refere à
escrita? A partir de que ponto desse conti-
nuum uma pessoa pode ser considerada
letrada, no que se refere à escrita?
Conclui-se que há diferentes tipos e níveis de letramen-to, dependendo das necessidades, das demandas do indi-
víduo e de seu meio, do contexto social e cultural.
LE TRA M E N TO É U MA P AL AV RA P LU RA L ? L EI A S E Q U IS ER :
Na literatura educacional e linguís- o que evidencia o reconhecimento
tica em língua inglesa, a palavra de que há diferentes tipos e níveis
literacy vem sendo frequente- de lueracy. Deveríamos talvez usar
mente usada no plural - lit eracies, le tramento no plural - tet ram eruos i
analfabeto e alfabetizado, alfabetizado e letrado:
conceitos imprecisos
50 I LetramentoTexto didático \5 \
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 25/62
Eleições de 1996. O jornal Folha de São Paulo, em 19
de julho de 1996, publica a seguinte notícia:
U R U
n d i d t u r s s ã o i n n p u g n d s
apõsteste d e l f b e t i z ç ã o
da Ag~nda Fol ha . em BaUIU
o juiz eleitoral de Itapetininga[airo Sampaio Incane Filho , 38,impugnou 20 dos 80 candidatosa prefeito e vereador das cidadesde ltapetininga, Sarapuí e Alam-bar i, na região de Sorocaba (87km aoeste de São Paulo).
A impugnação foi mo tivadapelo fato de oscandidatos terems ido r eprovado s em um tes te dealfabetização realizado pelo juiz,no Fórum de Itapetininga.
Ineane Filho disse que fez otexto com base na exigência con-
tida na Lei Complementar nO64/90, de 1992,do TRE (TribunalRegional Eleitoral), que proíbeanalfabetos de serem candidatosa cargos eletivos.
O juiz afirmou que convocouos 80 candidatos que disseramter l- grau incompleto e mostra-ram dif iculdades no preenchi-mento doa document os para oregistro de suas candidaturas.
O s testes com oscandidatos fo-r am fei to s ind ividua lmen te .Seus nomes são mantidos em si-gi lo . Pedi a todos que les sem einterpr etas sem um texto de um
jornal infantil. Em seguida, pedique cada um redig isse um texto ,expondo sua lógica , disse.
Segundo lncane Fi lho, e rro sgramaticais Dio foram levadosem conta. Apenas observei seocandidato tem condições de en-t ender um texto, pois uma vezeleito, ele YlÚ ter de trabalharcom leis edocurnentos.
A assessoria de imprensa doTRE informou que o tri bunaltransmitiu uma recomendaçãoaos juízes para que em caso dedúvida , l açam um teste de al-fabetização nos candidatos.
Baseado numa lei que proíbe analfabetos de serc111
candidatos a cargos eletivos , o juiz submeteu candidatos
a prefeito e a vereador a um teste de alfabetização .
Que razões levaram o JUIZ a
supor que 80 candidatos eram
analfabetoS?
Duas razões:
1ª) tinham 1Q grau incompleto;
2ª) mostraram dificuldades no
preenchimento dos docu-
mentos para o registro de
suas candidaturas.
Portanto: para o juiz, um alfabetizado seria alguém que
tivesse o 1º grau completo e preenchesse formulários sem
dificuldades.
No entanto, o juiz admitiu que, embora não tendo o 1º
grau completo e revelando dificuldades para preencher
documentos de registro de candidatura, o candidato a pre-feito ou vereador poderia ser considerado alfabetizado:
Segundo o juiz, que compor-
tamentos o candidato deveria
demonstrar, para não ser con-
siderado analfabeto?
o candidato deveria:
• Ler e interpretar um texto;
• redigir um texto sobre o
texto lido.
O juiz definiu ainda o nível do texto que o candidato
deveria ser capaz de interpretar e o critério de correção
das respostas do candidato:
Segundo o juiz, o candidatodeveria ser capaz de ler e in-
terpretar que tipo de texto?
Segundo o juiz, com que crité-
rios os resultados do candida-
to deveriam ser avaliados?
• texto de um jornal infantiL.
• não levar em conta erros
gramaticais;• verificar se o candidato tinha
entendido o texto.
5 2 1 LetramentoTexto didático 1 5 3
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 26/62
o juiz admitiu, pois, que um candidato a prefeito ou
a vereador poderia não ter o 1º grau completo, poderia
enfrentar dificuldades para preencher documentos,
mas deveria ser capaz de ler e interpretar um texto de
jornal infantil, e de redigir um texto sobre o que lera,
mesmo cometendo erros gramaticais; e justificou essescritérios:
Por que o juiz considerou que
ser capaz de entender um tex-
to era o critério adequado para
avaliar se o candidato a pre-
feito ou vereador poderia ser
considerado alfabetizado?
• Porque, se eleito, ele teria de
trabalhar com leis e docu-
mentos (que deveria saber
ler e interpretar).
o juiz mostrou ter dois conceitos de alfabetização:
um conceito genérico, aplicável a qualquer pessoa - ter o
1º grau completo e ser capaz de preencher documen-tos, sem dificuldades;
um conceito especifico, aplicável a pessoas que exercem a
função de prefeito ou vereador - ser capaz de ler e
interpretar textos legais e documentos oficiais.
TAL VEZ VO C Ê QU E IR A R EF LE TIR U M PO U CO M AIS S OBRE E SS E E PISÓ DIO :
• A alfabetização que o juiz
considera necessária a prefei-tos e vereadores estará sendo
avaliada num teste que mede
a capacidade de ler e inter-
pretar um texto ele jornal
infantil?
• Fica claro que, para o juiz, as
práticas sociais que envolvem
a língua escrita necessárias a
prefeitos e vereadores são as
de leitura ele textos legais e
documentos oficiais - é esta
uma concepção adequada?
• Será que se pode concordar que
o nível de alfabetização de um
indivíduo deve ser definido pelas
exigências das práticas sociais
específ icas que ele precisa ter com
a escrita, segundo sua inserção
no mundo elo trabalho?
• Pense: o juizprocura avaliar o nível
de alfabetização ou o nível de
letramento dos candidatos?
Mas continuemos, porque o episódio não termina aí.
Cerca de vinte dias depois, em 7 de agosto, o mesmo
jornal Folha de São Paulo publica a seguinte notícia:
L F E T l Z Ç O
TREaprova
candidatura
d e r ep ro vado s
em tested a Re p o rt a ge m Loc al
o plenário do Tribunal RegionalEleitoral aprovou ontem a candi-datura de 30 polí ticos que foramreprovados em um teste de alfabe-tização aplicado pelo juiz eleitoralde Itapetininga, [airo Sampaio In-cane Filho,38.
O juiz havia impugnado as can-didaturas de políticos das cidadesde Itapetininga, Sarapuí e Alamba-ri, todas na região de Sorocaba (87km a oeste de São Paulo). Elestive-ram que ler o texto de um suple-mento infant il de um jornal e es-crever algosobre o que leram.
Incane Filho convocou para esseteste 80candidatos que afirmaramnão ter o primeiro grau completo.Os testes sebasearam na lei com-plementar n 64/90, de 1992, queproíbe analfabetos de serem can-didatos a cargos eletivos.
O TRE reformou a sentença dojuiz, considerando que os candi-datos tinham rudimentos da al-fabetização e que, portanto, nãopoderiam ser considerados analfa-betos. Para chegar a essa conclu-são, os juizes utilizaram a defini-ção do dicionário Aurélio para apalavra analfabeto .
O TRE deverá julgar hoje outrosonze recursos apresentados peloscandidatos impugnados daquelascidades, Aaplicação de testes de al-fabetização é uma orientação dopróprio TRE a todos os juizes elei-torais do Estado.
Entre os candidatos impugnadospelo juiz Incane Filho , havia umex-prefeito e seis vereadores. JoséLuiz Holtz (PSDB), ex-prefeito deSarapuí, considerou a decisão dojuiz de I tapetininga um absur-do . Seu candidato a vice tambémfoi impugnado.Segundo o juiz Incane Filho , o
teste que aplicou não levou emconsideração os erros gramaticais,mas apenas a capacidade dos can-didatos deentender um texto.
Depois de eleitos, eles terão detrabalhar com leis e documentos ,afumou ojuiz.
54 I LetramentoTex to d idá ti co I 55
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 27/62
o Tribunal Regional Eleitoral - TRE - foi contrário ao
conceito de alfabetização do juiz, considerando que os
candidatos reprovados não eram analfabetos porque tinham
rudimentos da alfabetização :
Qual o critério do TRE paraconsiderar que os candidatosnão eram analfabetos?
A definição do didonário Auréliopara a palavra analfabeto .
Recorde a definição de analfabeto do dicionário Aurélio(página 30):
ANALFABETO: que não conhece o alfabeto,
que não sabe ler e escrever
Portanto: o TRE considerou que os candidatos sabiam
ler e escrever (já que tinham alguma ou algumas séries do
1º grau e, embora com dificuldades, enfrentaram os docu-
mentos de registro da candidatura) e, assim, não eram
analfabetos.
O juiz eleitoral e o TREmostraram ter conceitos diferentes
de alfabetização: o juiz eleitoral avaliava antes o letramentoque a alfabetização dos candidatos - embora desconhecesse
o conceito de letramento, preocupava-se com as práticas
sociais de leitura e escrita que eles deveriam ter; o TREavaliou
apenas a alfabetização dos candidatos, porque se satisfez
com os rudimentos de leitura e escrita que tinham, desco-
nhecendo seu nível de letramento, pois não considerou suas
habilidades de usar a leitura e a escrita.
Esse episódio evidencia:
• a imprecisão do conceito de alfabetização - pessoas
ou grupos têm conceitos diferentes, o conceito varia de
acordo com a situação, com o contexto;
• o fenômeno do letramento ainda é pouco percebido
em nossa sociedade.
Analfabeto-alfabetizado, letrado-iletrado:
variações segundo as condições sociais e históricas
Um bom exemplo da variação do conceito de alfabeti-
zação ao longo do tempo e da dependência entre o fenô-
meno do letramento e as condições culturais e sociais é a
comparação entre os critérios que foram no passado utili-
zados e os que hoje são utilizados para definir quem é
analfabeto ou quem é alfabetizado nos recenseamentos da
população brasileira.
Até a década de 40, o formulário do Censo definia o
indivíduo como analfabeto ou alfabetizado perguntando-lhe
se sabia assinar o nome: as condições culturais, sociais e
políticas do país, até então, não exigiam muito mais que
isso de grande parte da população. As pessoas aprendiam
a desenhar o nome, apenas para poder votar ou assinar
um contrato de trabalho.
A partir dos anos 40, o formulário do Censo passou a usar
uma outra pergunta:sabe ler e escrever um bilhete simples?Apesar da impropriedade da pergunta [se quiser saber por
quê, leia o quadro a seguir], ela já expressa um critério para
definir quem é alfabetizado ou analfabeto que avança em
relação ao critério de apenas saber escrever o nome: definir
como analfabeto aquele que não sabe ler e escrever um bi-
lhete simples indica já uma preocupação com os usos sociais
da escrita, aproxima-se, pois, do conceito de Ietramento, e
revela uma outra expectativa com relação ao alfabetizado-
uma expectativa de que seja também letrado.
5 6 I LetramentoTexto didático 1 5 7
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 28/62
A IM PR OP RIE DA DE D A P E RG U NT A D O C EN SO - L EIA S E Q U I SE R: :
Reflita sobre as seguintes
questões:
• Quais podem ser as atitudes
dos indivíduos diante da per-
gunta Você sabe ler e escre-
ver um bilhete simples: A
pessoa pode dizer que sim,
por envergonhar-se de dizerque não; ou pode dizer que
não, por temer que lhe
apresentem um bilhete sim-
ples e lhe peçam para lê-Io ...
Pode-se confiar nas respostas
a essa pergunta?
• Um outro problema: em cada
domicílio, um indivíduo res-
ponde por todos que ali habi-
tam, ou seja, um indivíduo ava-
lia a habilidade de todos os
outros de ler e escrever um
bilhete simples ; pode-se con-
fiar nessa avaliação?
•Ainda um terceiro problema:
o que é um bilhete simples ?
é um bilhete com poucas pa-
lavras? com apenas duas ou três
linhas? com apenas orações
simples, ou coordenadas, sem
subordinadas? com apenas
palavras de uso comum?• Mais um problema: saber ler e
escrever um bilhete simples é ser
apenas alfabetizado? ou é já ter
um certo nível de le tramento?• Finalmente: nas atuais condi-
ções da sociedade brasileira,
basta saber ler e escrever um
bilhete simples para ser consi-
derado alfabetizado? ou para ser
considerado letrado:
Conclua: que inrerpretacão pode-se
dar aos índices de analfabetismo
da população brasileira definidos
pelo Censo?
A mudança de critério para a avaliação dos índices
de analfabetismo no Brasil revela mudanças históricas,
sociais, culturais. A comparação dos critérios utilizados
aqui com os utilizados em países do Primeiro Mundo
pode ser esclarecedora.
ANALFABETISMO NO PRIMEIRO MUNDO?
É surpreendente quando os jornais noticiam a preocu-
pação com altos níveis de analfabetismo em países como
os Estados Unidos, a França, a Inglaterra; surpreendente
porque: como podem ter altos níveis de analfabetismo
países em que a escolaridade básica é realmente obriga-
tória e, portanto, praticamente toda a população conclui
o ensino fundamental (que, nos países citados, tem dura-
ção maior que a do nosso ensino fundamental- 10 anos
nos Estados Unidos e na França, 11 anos na Inglaterra). É
que, quando a nossa mídia traduz para o português a
preocupação desses países, traduz illiteracy (inglês) e
illetrisme (francês) por analfabetismo. Na verdade, não
existe analfabetismo nesses países, isto é, o número de
pessoas que não sabem ler ou escrever aproxima-se de
zero; a preocupação, pois, não é com os níveis de anal-
fabetismo, mas com os níveis de letramento, com a difi-
culdade que adultos e jovens revelam para fazer uso
adequado da leitura e da escrita: sabem ler e escrever,
mas enfrentam dificuldades para escrever um ofício, pre-
encher um formulário, registrar a candidatura a um em-
prego - os níveis de letramento é que são baixos.
Q U ER S AB ER C OM O SE AVAUA O N í V EL D E L E T RA M E N TO D A POPULAÇÃO?
Na segunda metade dos anos 80, e usar informações de vários
realizou-se, nos Estados Unidos, tipos de texto - editorial de
uma pesquisa para definir a nível jornal, notícias, poemas - e ques-
de literacyde jovens adultos ame- tões para avaliar a habilidade
rícanos; o instrumento por meio de extrair corretamente infor-
do qual esse nível foi avaliado mações de quadros de horá-
evidencia o que se considera ser, rio, de mapas, de tabelas.
nesse país, literate ou illiterate: Obviamente, não se avaliava o
o teste incluiu questões para ava- nível de alfabetização dos jovens
liar a capacidade de interpretar e adultos ..
No Brasil,há já algumas poucas pesquisas que procuram
avaliar o nível de letramento de jovens e adultos; a ten-dência tem sido considerar como alfabetizado (o termo mais
adequado seria letrado) o indivíduo que tenha pelo menos
completado a 4ª série do ensino fundamental, com base
no pressuposto de que são necessários no mínimo quatro
anos de escolaridade para a apropriação da leitura e da
escrita e de seus usos sociais. Quando se calcula o analfa-
betismo no Brasil com base nesse critério, o índice cresce
assustadoramente ...
5 8 1 Letramento Texto didático \ 59
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 29/62
CONDiÇÕES PARA O LETRAMENTO
Termos despertado para o fenômeno do letramento-
estarmos incorporando essa palavra ao nosso vocabulário
educacional - significa que já compreendemos que nosso
problema não é apenas ensinar a ler e a escrever, mas é,
também, e sobretudo, levar os indivíduos - crianças e adul-
tos - a fazer uso da leitura e da escrita, envolver-se em
práticas sociais de leitura e de escrita.
No entanto, infere-se, de tudo que foi dito, que o nível
de letramento de grupos sociais relaciona-se fundamen-
talmente com as suas condições sociais, culturais e econô-
micas. É preciso que haja, pois, condições para ofetramento.
Uma primeira condição é que haja escolarização real e
efetiva da população - só nos demos conta da necessida-
de de letramento quando o acesso à escolaridade se am-pliou e tivemos mais pessoas sabendo ler e escrever,
passando a aspirar a um pouco mais do que simplesmente
aprender a ler e a escrever.
Uma segunda condição é que haja disponibilidade de
material de leitura. O que ocorre nos países do Terceiro
Mundo é que se alfabetizam crianças e adultos, mas não
lhes são dadas as condições para ler e escrever: não há
material impresso posto à disposição, não há livrarias, o
preço dos livros e até dos jornais e revistas é inacessível,
há um número muito pequeno de bibliotecas. Como épossível tornar-se letrado em tais condições? Isso explica
o fracasso das campanhas de alfabetização em nosso país:
contentam-se em ensinar a ler e escrever; deveriam, em
seguida, criar condições para que os alfabetizados passas-
sem a ficar imersos em um ambiente de letramento, para
que pudessem entrar no mundo letrado, ou seja, num mundo
em que as pessoas têm acesso à leitura e à escrita, têm
acesso aos livros, revistas e jornais, têm acesso às livrarias e
bibliotecas, vivem em tais condições sociais que a leitura e
a escrita têm uma função para elas e tornam-se uma ne-
cessidade e uma forma de lazer.
E IS D OI S E X EM PL O S - L EI A-O S SE Q UISER CO MP RO VA Ç Ã O DE S SA S AFI RM AÇÕ ES;
LETRAMENTO E ESCOLA,
LETRAMENTO E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
• Quais as conseqüências de tudo isso para a escola?
• Para a educação de jovens e adultos?
• O que significa alfabetizar?
• O que significa letrar'?
• Quais as diferenças entre alfabetizar e letrar ?
• Como alfabetizar letrando ?
• Quando se pode dizer que uma criança ou um adulto
estão alfabetizados? Quando se pode dizer que estão
letrados?
• Quais são as condições para que o aprender a ler e a
escrever seja algo que realmente tenha sentido, uso e
função para as pessoas?
Lembre-se do Mobral: pesquisas
mostraram que pessoas alfabeti-zadas por esse movimento esta-
vam, um ano depois, desalfa-
betizadas : tinham aprendido aler e a escrever, mas, por im-
possibilidade de uso da leitura e
da escrita, por ausência, em seu
meio, de demandas de leitura eescrita, por falta de acesso a
materialimpresso,tinhamperdido
a habilidade de ler e escrever.
Tinham sido alfabetizadas, mas
não lhes foi possibilitado torna-
rem-se letradas.
o contrárioaconteceu, por exem-
plo, em Cuba: quando houve alia revolução e independência, noinício dos anos 60, fez-se no país
uma campanha de altabetízação
intensa, que realmente alfabetizou
todaa populaçãoem pouco tempo;mas não se fez s ó isso, produzi-
ram-se materiais de leitura queeram levadosaosmais longínquosríncões do país, qualquer pequena
povoação recebia livrospara dar
continuidade à campanha de alfa-betização.O povocubano tornou-
se alfabetizado e letrado.
60 I Letramento
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 30/62
É sempre bom terminar com perguntas e não com solu-
ções; diz o grande escritor português Saramago:
Tudo no mundo está dando respostas,
o que demora é o tempo dasperguntas.
Aí estão as perguntas; busquemos as respostas,
LETR MENTO EM
ENS IO
LETRAMENTO:
COMO DEFINIR, COMO
AVALIAR, COMO MEDIR
M o no gr afi a e la bo ra da p or s olic it aç ão d a S eç ão de Es t at ís ti ca daU N E S C O , em Paris, publicada em inglês, em março de /992. co m
o t ít ul o L it er ac y A s se ss m en ta nd i ts i m pl ic at io ns f or S ta ti st ic iJ lMea sur ement , t ra duz id apa ra o francês e o e spanho l; a qui se .
a pre se nta p ela p rim eira v ez a tra du ção p ara o português,
Tradução preliminar para o português: Raquel Luciana de Souza e Roberval Araújo de Oliveira.
Revisão ela tradução preliminar: Sueli Campos Paiva. Versão para o português da autora.
Ensaio 163
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 31/62
INTRODUÇÃO
o permanente desafio, enfrentado mundialmente, para
a universalização do letramento - do acesso pleno às habi-
lidades e práticas de leitura e de escrita - está intimamente
relacionado com um outro desafio: o de avaliar e medir oavanço em direção a essa meta. Dados tornam-se, assim,
necessários, tanto para evidenciar se os objetivos estão
sendo alcançados como para estabelecer políticas ou con-
trolar programas de alfabetização e letramento. Por essa
razão, desde escolas até instituições e organizações nacio-
nais e internacionais estão continuamente buscando dados
e produzindo índices e estatísticas sobre níveis de domínio
de habilidades de leitura e de escrita e de uso de práticas
sociais que envolvem a escrita, por meio de avaliações e
medições.
Os processos de obtenção desses dados apresentam,
porém, sérios problemas de natureza técnica, conceitual,
ideológica e política.
Problemas de natureza técnica são, sem dúvida, os mais
evidentes e urgentes: relacionam-se com os processos de
tomada de decisão para a definição de procedimentos de
avaliação, a construção de instrumentos de medida, a or-
ganização e processamento dos dados.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 32/62
66 I Letramento Ensaio 1 6 7
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 33/62
o conceito de letramento envolve, portanto, sutilezas e
complexidades difíceis de serem contempladas em uma
única definição. Isso explica por que as definições de
letramento diferenciam-se e até antagonizam-se e con-
tradizem-se: cada definição baseia-se em uma dimensão
de letramento que privilegia. Confrontem-se estes dois
autores:
Para estudar e interpretar o letramento c . . . ) , três tarefas são ne-cessárias. A primeira é formular uma definição consistente quepermita estabelecer comparações ao longo do tempo e atravésdo espaço. Níveis básicos ouprimários de leitura e escrita consti-tuem os únicos indicadores ou sinais flexíveis e razoáveis pararesponder a esse critério essencial c . . . ) o letramento é, acima detudo, uma tecnologia ou conjunto de técnicas usadas para a co-municação e para a decodificação e reprodução de materiaisescritos ou impressos:não pode ser considerado nem mais nemmenos que isso. (Graff, 1987a, p. 18-19, grifos do original).
As tentativas de definição (de letramento) estão quase semprebaseadas em uma concepção de letramento como um atributo
dos indivíduos; buscam descrever os constituintes do letramentoem termos de habilidades individuais. Mas o fato mais evidentea respeito do letramento é que ele é um fenômeno social C . . . ) Oletramento é um produto da transmissão cultural C . . . ) Uma defi-nição de letramento C . . . ) implica a avaliação do que conta comoletramento na época moderna em determinado contexto social...Compreender o que é o letramento envolve inevitavelmenteuma análise social... (Scribner, 1984, p.7-8, grifas do original).
Subjacentes a essas definições estão as duas principais
dimensões do letramento: a dimensão individual e a
dimensão social. Quando o foco é posto na dimensão
individual, o letramento é visto como um atributo pessoal,
parecendo referir-se, como afirma Wagner (1983, p.5), à
simples posse individual das tecnologias mentais com-
plementares de ler e escrever . Quando o foco se desloca
para a dimensão social, o letramento é visto como um
fenômeno cultural, um conjunto de atividades sociais que
envolvem a língua escrita, e de exigências sociais de uso
da língua escrita. Na maioria das definições atuais de
letramento, uma ou outra dessas duas dimensões é prio-
rizada: põe-se ênfase ou nas habilidades individuais de
ler e escrever, ou nos usos, funções e propósitos da língua
escrita no contexto social.'
Mas identificar essas duas dimensões que estão por trás
de diferentes definições é apenas um primeiro passo para
o enfrentamento do problema de formular uma definição
adequada de letramento. Sem dúvida, a identificação de duas
amplas categorias de definições - aquelas que enfocam a
dimensão individual do fenômeno e aquelas que enfocam
sua dimensão social- lança alguma luz sobre o problema,mas não é suficiente para sua completa elucidação, pois é
preciso ainda considerar a complexidade e a natureza he-
terogênea de cada dimensão.
As duas seções seguintes enfocam essa natureza com-
plexa e heterogênea das dimensões individual e social do
letramento.
A DIMENSÃO INDIVIDUAL DO LETRAMENTO
Mesmo que apenas sob a perspectiva da dimensão in-
dividual, é difícil definir letramento, devido à extensão e
diversidade das habilidades individuais que podem ser con-
sideradas como constituintes do letramento.
Uma primeira fonte de dificuldade, que atinge o cerne
mesmo da questão, é que o letramento envolve dois pro-
cessos fundamentalmente diferentes: ler e escrever. Nas
palavras de Smith:
Ler e escrever são processos frequentemente vistos como imagensespelhadas uma da outra, como reflexos sob ângulos opostos de
um mesmo fenômeno: a comunicação através da língua escrita.Mas há diferenças fundamentais entre as habilidades e conheci-mentos empregados na leitura e aqueles empregados na escrita,
assim como há diferenças consideráveis entre os processos
1 A habilidade de fazer uso do sistema numérico é, às vezes, incorporada ao concei-
to de letramento (ler, escrever, contar); neste estudo, porém, letramento está sendo
tomado em seu sentido literal, referindo-se exclusivamente à escrita e à leitura.
68 I Letramento Ensaio 169
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 34/62
envolvidos na aprendizagem da leitura e os envolvidos na apren-dizagem da escrita. (Srnith, 1973, p.117)
Apesar dessas diferenças fundamentais , as definiçõesde letramento frequentemente tomam a leitura e a escritacomo uma mesma e única habilidade, desconsiderando aspeculiaridades de cada uma e as dessemelhanças entre
elas (uma pessoa pode ser capaz de ler, mas não ser ca-paz de escrever; ou alguém pode ler fluentemente, masescrever muito mal).
Por outro lado, as definições de letramento que conside-ram as diferenças entre leitura e escrita tendem a concentrar-se ou na leitura ou na escrita (mais frequentemente na leitura),ignorando que os dois processos são complementares: sãodiferentes, mas o letramento envolve ambos. Bormuth (1973),por exemplo, declara que letramento é a habilidade de colo-car em ação todos os comportamentos necessários para de-sempenhar adequadamente todas as possíveis demandas deleiturd (p.72, grifo nosso), e Kirsch e Guthrie 0977-1978)argumentam que seria prudente usar o termo letramento
para referir-se à leitura, e a expressão competência cognitiua
para referir-se a habilidades gerais de ouvir, ler, escrever ecalcular (p.505, grífos do original).
Não levar em conta a coexistência, no conceito de le-tramento, desses dois constituintes heterogêneos - leiturae escrita - torna-se ainda mais sério, se se considera quecada um desses constituintes é um conjunto de habilidadesbastante diferentes, e não uma habilidade única.
A leitura, do ponto de vista da dimensão individual deletramento (a leitura como uma tecnologia ), é um con-junto de habilidades linguísticas e psicológicas, que seestendem desde a habilidade de decodificar palavras escri-tas até a capacidade de compreender textos escritos. Essascategorias não se opõem, complementam-se; a leitura é
um processo de relacionar símbolos escritos a unidades desom e é também o processo de construir uma interpreta-ção de textos escritos.
Desse modo, a leitura estende-se da habilidade de tra-duzir em sons sílabas sem sentido a habilidades cognitivase metacognitivas; inclui, dentre outras: a habilidade dedecodificar símbolos escritos; a habilidade de captar signi-ficados; a capacidade de interpretar sequências de ideiasou eventos, analogias, comparações, linguagem figurada,
relações complexas, anáforas, e, ainda, a habilidade defazer previsões iniciais sobre o sentido do texto, de cons-truir significado combinando conhecimentos prévios e in-formação textual, de monitorar a compreensão e modificarprevisões iniciais quando necessário, de refletir sobre osignificado do que foi lido, tirando conclusões e fazendojulgamentos sobre o conteúdo.
Acrescente-se a essa grande variedade de habilidades deleitura o fato de que elas devem ser aplicadas diferenciada-mente a diversos tipos de materiais de leitura: literatura,
livros didáticos, obras técnicas, dicionários, listas, enciclo-pédias, quadros de horário, catálogos, jornais, revistas, anún-cios, cartas formais e informais, rótulos, cardápios, sinaisde trânsito, sinalização urbana, receitas ...Como declara Smith(973), a leitura pode ocorrer nas mais diversas situações, de um recital público de poesia ao exame privado de listasde preço e horários de ônibus (p.103).
Assim como a leitura, a escrita, na perspectiva da di-mensão individual do letramento (a escrita como uma tec-nologia ), é também um conjunto de habilidades linguísticase psicológicas, mas habilidades fundamentalmente dife-rentes daquelas exigidas pela leitura. Enquanto as habili-dades de leitura estendem-se da habilidade de decodificarpalavras escritas à capacidade de integrar informaçõesprovenientes de diferentes textos, as habilidades de es-
crita estendem-se da habilidade de registrar unidades desom até a capacidade de transmitir significado de formaadequada a um leitor potencial. E, assim como foi obser-vado em relação à leitura, essas categorias não se opõem,complementam-se: a escrita é um processo de relacionar
70 I Letramento - 1 7 1
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 35/62
unidades de som a símbolos escritos, e é também um
processo de expressar ideias e organizar o pensamento
em língua escrita.
Desse modo, a escrita engloba desde a habilidade de
transcrever a fala, via ditado, até habilidades cognitivas e
metacognitivas; inclui a habilidade motora (caligrafia), a
ortografia, o uso adequado de pontuação, a habilidade deselecionar informações sobre um determinado assunto e
de caracterizar o público desejado como leitor, a habili-
dade de estabelecer metas para a escrita e decidir qual a
melhor forma de desenvolvê-Ia, a habilidade de organizar
ideias em um texto escrito, estabelecer relações entre elas,
expressá-Ias adequadamente.
Além disso, as habilidades de escrita, tal como as de
leitura, devem ser aplicadas diferenciadamente à produção
de uma variedade de materiais escritos: da simples assinatu-
ra do nome ou elaboração de uma lista de compras até aredação de um ensaio ou de uma tese de doutorado.
À luz dessas considerações sobre o grande número de
habilidades e capacidades cognitivas e metacognitivas que
constituem a leitura e a escrita, a natureza heterogênea
dessas habilidades e aptidões, a grande variedade de gê-
neros de escrita a que elas devem ser aplicadas, fica claro
que é extremamente difícil formular uma definição consis-
tente de letramento, ainda que nos limitássemos a formu-
lá-Ia considerando apenas as habilidades individuais de
leitura e escrita: quais habilidades e aptidões de leitura eescrita qualificariam um indivíduo como letrado ? que
tipos de material escrito um indivíduo deve ser capaz de
ler e escrever para ser considerado letrado ?
Respostas a tais questões são bastante problemáticas.
As competências que constituem o letramento são distri-
buídas de maneira contínua, cada ponto ao longo desse
contínuo indicando diversos tipos e níveis de habilidades,
capacidades e conhecimentos, que podem ser aplicados a
diferentes tipos de material escrito. Em outras palavras, o
letramento é uma variável contínua, e não discreta ou
dicotômica. Portanto, é difícil especificar, de uma manei-
ra não arbitrária, uma linha divisória que separaria o in-
divíduo letrado do indivíduo iletrado. Já em meados dos
anos 50, a monografia da UNESCO World Illiteracy at
mid-century (1957) reconhecia que o conceito de letra-
mento é muito flexível e pode cobrir todos os níveis de
habilidades, de um mínimo absoluto a um máximo inde-
terminado (p.19), e concluía que é de fato impossível
considerar pessoas letradas e iletradas como duas cate-
gorias distintas.
Contudo, as definições de letrado e iletrado apresenta-
das pela UNESCO em 1958, com o propósito de padroni-
zação internacional das estatísticas em educação, são uma
tentativa de fazer tal distinção:
É letrada a pessoa que consegue tanto ler quanto escrever comcompreensão uma frase simples e CUltasobre sua vida cotieliana.
É iletrada a pessoa que não consegue ler nem escrever comcompreensão uma frase simples e curta sobre sua viela cotidia-na. (UNESCO, 1958, p.4)
Considerando apenas a dimensão individual do letra-
mento, essas definições determinam quais habilidades de
leitura e escrita caracterizam uma pessoa letrada (ler e
escrever com compreensão), e a que tipo de material es-
crito essas habilidades devem ser aplicadas (uma frase
simples e curta sobre sua vida cotidiana). Entretanto, adefinição é arbitrária: qual é o fundamento para selecionar
uma certa habilidade (ler e escrever com compreensão - e
atente-se para a imprecisão da expressão com compreen-
são ) e um tipo específico de material escrito (uma frase
simples e curta sobre a vida cotidiana de alguém) como
o ponto do contínuo que define uma pessoa como letra-
da? Essa pergunta conduz à discussão apresentada na
seção seguinte.
n l , - _ E n s , J 7 3
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 36/62
A DIMENSÃO SOCIAL DO LETRAMENTO
Aqueles que priorizam, no fenômeno letramento, a suadimensão social, argumentam que ele não é um atributounicamente ou essencialmente pessoal, mas é, sobretudo,uma prática social: letramento é o que as pessoas fazem
com as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto
específico, e como essas habilidades se relacionam comas necessidades, valores e práticas sociais. Em outras pala-vras, letramento não é pura e simplesmente um conjuntode habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociaisligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envol-vem em seu contexto social.
Mas há interpretações conflitantes sobre a natureza dadimensão social do letramento: uma interpretação progres-sista, liberal - uma versão fraca dos atributos e impli-cações dessa dimensão, e uma perspectiva radical,
revolucionária - uma versão forte de seus atributos eimplicações.
De acordo com a perspectiva progressista, liberal dasrelações entre letramento e sociedade, as habilidades deleitura e escrita não podem ser dissociadas de seus usos,das formas ernpíricas que elas realmente assumem na vidasocial; o letramento, nessa interpretação fraca de suadimensão social, é definido em termos de habilidades ne-cessárias para que o indivíduo funcione adequadamenteem um contexto social - vem daí o termo letramento
funcional (ou alfabetização funcional , difundido a partirda publicação do estudo internacional sobre leitura e es-crita realizado por Gray, em 1956, para a UNESCO. Gray(1956) enfatiza a natureza pragmática do letramento quan-do adota o conceito de letramentofuncional que, comoafirma, surgira a partir de pesquisas e experiências sobreleitura desenvolvidas nas duas ou três décadas anteriores.Gray define o letramento funcional como sendo os co-
nhecimentos e habilidades de leitura e escrita que tornam
uma pessoa capaz de engajar-se em todas aquelas ativi-dades nas quais o letramento é normalmente exigido emsua cultura ou grupo .
O enfoque na funcionalidade como o atributo essencialdas habilidades de leitura e escrita influenciou significativa-mente a definição de letramento da Unesco, já citada, for-mulada com o objetivo de padronização internacional deestatísticas educacionais. Revendo, em 1978, a Recomenda-ção de 1958, a Conferência Geral da Unesco julgou necessá-rio introduzir um novo grau de letramento: embora mantendoa definição de 1958 de uma pessoa letrada, baseada emhabilidades individuais, anteriormente citada, introduz o con-ceito de pessoa funcionalmente letrada , fundamentado nosusos sociais da leitura e escrita:
Uma pessoa é funcionalmente letrada quando pode participarde todas aquelas atividades nas quais o letrarnento é necessá-
rio para o efetivo funcionamento de seu grupo e comunidade
e, também, para capacitá-Ia a continuar usando a leitura, aescrita e o cálculo para seu desenvolvimento e o de sua comu-
nidade. (Unesco, 1978a, p.I)
Letramento funcional significa, pois, adaptação, comona metáfora de Scribner (Scribner, 1984): Esta metáfora(letramento como adaptação) é proposta para caracterizarconceitos de letramento que enfatizam seu valor pragmáti-co ou de sobrevivência. (p.9) Scribner reforça a impor-tância do letramento funcional ou de sobrevivência:
A necessidade de habilidades de letramento na nossa vida diá-ria é óbvia; no emprego, passeando pela cidade, fazendo com-
pras, todos encontramos situações que requerem o uso da lei-
tura ou a produção de símbolos escritos. Não é necessário
apresentar justificativas para insistir que as escolas são obriga-
elas a desenvolver nas crianças as habilidades de letramento
que as tornarão aptas a responder a estas demandas sociais
cotidianas. E os programas de educação básica têm também a
obrigação de desenvolver nos adultos as habilidades que de-
vem ter para manter seus empregos ou obter outros melhores,
receber o treinamento e os benefícios a que têm direito, e assu-
mir suas responsabilidades cívicas e políticas. (p.y)
7 4 1 Letramento Ensaio I 75
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 37/62
Assim, letramento envolve mais do que meramente ler e
escrever. Como Kirsch e Jungeblut (1990) afirmam, letra-
mento não é simplesmente um conjunto de habilidades de
leitura e escrita, mas, muito mais que isso, é o uso dessas
habilidades para atender às exigências sociais. Acreditando
no poder do letramento para conduzir ao progresso social e
individual, os autores definem-no como o uso de informa-
ção impressa e manuscrita para funcionar na sociedade,
para atingir seus próprios objetivos e desenvolver seus co-
nhecimentos e potencialidades. (p.1-8)
Subjacente a esse conceito liberal, funcional de letramento,
está a crença de que consequências altamente positivas ad-
vêm, necessariamente, dele: sendo o uso das habilidades de
leitura e escrita para o funcionamento e a participação ade-
quados na sociedade, e para o sucesso pessoal, o letramento
é considerado como responsável por produzir resultados im-
portantes: desenvolvimento cognitivo e econômico, mobili-
dade social, progresso profissional, cidadania. 2
Uma perspectiva diferente sobre as relações entre letra-
mento e sociedade é proposta por aqueles que se filiam à
vertente anteriormente denominada de uma interpretação
radical, revolucionária dessas relações - sua versão for-
te . Enquanto que, na interpretação liberal, progressista (a
versão fraca ), letramento é definido como o conjunto de
habilidades necessárias para funcionar adequadamente em
práticas sociais nas quais a leitura e a escrita são exigidas,
na interpretação radical, revolucionária , letramento não podeser considerado um instrumento neutro a ser usado nas
práticas sociais quando exigido, mas é essencialmente um
conjunto de práticas socialmente construídas que envolvem
a leitura e a escrita, geradas por processos sociais mais am-
plos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores,
tradições e formas de distribuição de poder presentes nos
contextos sociais.
Street (1984), um dos representantes desta interpretação
alternativa da dimensão social do letramento, caracteriza-a
como o modelo ideológico de letramento, em oposição
ao modelo autônomo . De acordo com Street, letramento é
um termo-síntese para resumir as práticas sociais e con-
cepções de leitura e escrita (p.I), tem um significado polí-
tico e ideológico de que não pode ser separado e não pode
ser tratado como se fosse um fenômeno autônomo (p.8).
Street afirma que a verdadeira natureza do letramento são as
formas que as práticas de leitura e escrita concretamente
assumem em determinados contextos sociais, e isso depen-
de fundamentalmente das instituições sociais que propõem
e exigem essas práticas.
Provavelmente, a postura mais radical no quadro do mo-
delo ideológico de letramento é a de Lankshear (1987).
Colocando-se contra a pressuposição de que o letramento é
um instrumento de que as pessoas simplesmente lançam
mão para responder às exigências das práticas sociais, Lank-
shear afirma que é impossível distinguir letramento do con-
teúdo utilizado para adquiri-lo e transrnítí-Io, e de quaisquer
vantagens ou desvantagens advindas dos usos que são fei-
tos dele, ou das formas que assume (p.40). O que o
letramento é depende essencialmente de como a leitura e a
escrita são concebidas e praticadas em determinado contex-to social; letramento é um conjunto de práticas de leitura e
escrita que resultam de uma concepção de o quê, como,
quando e por quê ler e escrever.
Do ponto de vista desse conceito, as qualidades ine-
rentes ao letramento e suas consequências positivas, enfati-
zadas por aqueles que afirmam sua funcionalidade como
um instrumento para responder a demandas sociais e para
realizar metas pessoais, são negadas. Nessa perspectiva, o
2 A afirmação frequente de que o letramento traz, como consequência, a elevação
dos níveis cognitivo, econômico e social tem sido questionada por numerosos
estudos nas áreas da Psicologia, da Etnografia, da História: embora importante, a
discussão dessa questão ultrapassa os objetivos cio presente estudo. Para uma revi-são sobre este tema, ver Akinnaso, 1981.
7 6 1 Letramento
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 38/62
pressuposto é de que as consequências do letramento es-
tão intimamente relacionadas com processos sociais mais
amplos, determinadas por eles, e resultam de uma forma
particular de definir, de transmitir e de reforçar valores,
crenças, tradições e formas de distribuição de poder. As-
sim, os partidários da versão forte das relações entre
letramento e sociedade argumentam que as consequências
do letramento são consideradas desejáveis e benéficasapenas por aqueles que aceitam como justa e igualitária
a natureza e estrutura do contexto social específico no
qual ele ocorre. Quando não é esse o caso, isto é, quan-
do a natureza e a estrutura das práticas e relações sociais
são questionadas, o letramento é visto como um instru-
mento da ideologia, utilizado com o objetivo de manter
as práticas e relações sociais correntes, acomodando as
pessoas às condições vigentes. Por exemplo: aqueles que
criticam as sociedades capitalistas afirmam que o letra-
mento funcional, tal como é concebido nessas socieda-des, apenas reforça e aprofunda as relações e práticas
que proporcionam ou vantagens ou desvantagens eco-
nômicas, relações e práticas estruturadas socialmente;
como Lankshear afirma, o letramento funcional desig-
na um estado mínimo, essencialmente negativo e passi-
vo: ser funcionalmente letrado é ser capaz de estar à
altura das pequenas rotinas cotidianas e dos comporta-
mentos básicos dos grupos dominantes na sociedade
contemporânea . Cp.64)
Resultam dessa concepção alternativas revolucionárias ao conceito liberal, progressista de Ietramento funcio-
nal . Paulo Freire 0967, 1970a, 1970b, 1976) foi um dos
primeiros educadores a realçar esse poder revolucioná-
rio do letramento, ao afirmar que ser alfabetizado é
tornar-se capaz de usar a leitura e a escrita como um
meio de tomar consciência da realidade e de transfor-
má-Ia. Freire concebe o papel do letramento como sen-
do ou de libertação do homem ou de sua domestícação ,
dependendo do contexto ideológico em que ocorre, e
alerta para a sua natureza inerentemente política, defen-
dendo que seu principal objetivo deveria ser o de promo-
ver a mudança social.
Essa nova maneira de conceber o letramento foi pro-
posta no Simpôsio Internacional para o Letramento, acon-
tecido em Persépolis, em 1975, com o apoio da Unesco.'
Um conceito mais amplo de letramento funcional foi então
sugerido pelos participantes, propondo
...uma distinção entre as duas principais categorias de funciona-
lidade: a primeira, de caráter econômico, relacionada com a pro-
dução e as condições de trabalho; a outra, de caráter cultural,
relacionada com a transformação da consciência primária em
consciência crítica (o processo de conscientízação ) e com a
ativa participação dos adultos em seu próprio desenvolvimento.
(citado em Street, 1984, p.187)
Seguindo essa distinção, a Declaração de Persépolis
considerou o letramento como sendo
...não apenas o processo de aprendizagem de habilidades de
leitura, escrita e cálculo, mas uma contribuição para a liberação
do homem e para o seu pleno desenvolvimento. Assim concebi-
do, o letramento cria condições para a aquisição ele uma cons-
ciência crítica elas contradições da SOCiedade em que os ho-
mens vivem e dos seus objetivos; ele também estimula a iniciati-
va e a participação do homem na criação de projetos capazes
de atuar sobre o mundo, de transformá-lo e de definir os objeti-
vos de um autêntico desenvolvimento humano. (citado em Bhola,
1979, p.38)
Lankshear (987), citado anteriormente, em uma posi-
ção ainda mais radical, e endossando a distinção de O'Neil
entre adequadamente letrado e inadequadamente letra-
do (O'Neil, 1970), mas dotando-a de maior força política,
afirma que o letramento adequado aumenta o controle
3 Um estudo exaustivo de como os conceitos de lerramento e os programas para suapromoção evoluíram na Unesco, de ]946 a 1987, é desenvolvido por jones (1988).
78 I Letramento EnsaioI 79
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 39/62
das pessoas sobre suas vidas e sua capacidade para lidar
racionalmente com decisões, porque as torna capazes de
identificar, compreender e agir para transformar relações e
práticas sociais em que o poder é desigualmente distribuí-
do (p.74). Levine (982) faz a mesma afirmação, quando
enfatiza o papel do letramento no processo de produzir e
reproduzir - ou de falhar em reproduzir - a distribuição
social do conhecimento (p.264, grifo nosso).
Resumindo, os conceitos de letramento que enfatizam
sua dimensão social fundamentam-se ou em seu valor prag-
mático, isto é, na necessidade de letramento para o efetivo
funcionamento na sociedade (a versão fraca ), ou em seu
poder revolucionário , ou seja, em seu potencial para
transformar relações e práticas sociais injustas (a versão
forte ). Apesar dessa diferença essencial, tanto a versão
fraca quanto a versão forte evidenciam a relatividade
do conceito de letramento. porque as atividades sociais
que envolvem a língua escrita dependem da natureza eestrutura da sociedade e dependem do projeto que cada
grupo político pretende implementar, elas variam no tem-
po e no espaço. Graff 0987a) afirma que o significado e
contribuição do letramento não pode ser pressuposto, ig-
norando o papel vital do contexto socio-bistorico (p.17).
Nas palavras dele:
Estudos históricos documentam as mudanças de
concepção de letramento ao longo do tempo. estudos
antropológicos e etnográficos evidenciam os diferentes usos
do letramento, dependendo das crenças, valores e práticas
culturais, e da história de cada grupo social. Como afirma
Scribner 0984}
Em certo momento, a habilidade de escrever o próprio nomeera a comprovação de Ietrarnento, hoje, em algumas partes domundo, a habilidade de memorizar um texto sagrado é a prin-cipal demanda de letramento. O letramento não tem uma es-sência estática nem universal. (p.8)
O principal problema, que retarda mui tí ssimo os estudos sobre oletramento, seja no passado ou no presente, é o de reconstruiros contextos de leitura e escrita: como, quando, onde, por que e
para quem o letramento foi transmitido; os significados que lheforam atribuídos; os usos que dele foram fei tos; as demandas dehabilidades de letramento, os níveis atingidos nas respostas aessas demandas; o grau de restrição social à distribuição e difu-são do Ietrarnento, e as diferenças reais e simbólicas que resulta-ram das condições sociais de let ramento entre a população. (p.23)
Do ponto de vista histórico e antropológico, é, por
exemplo, significativo que a língua inglesa tenha incorpo-
rado o termo illiteracy (ausência de letramento) muito an-
tes que surgisse o termo literacy (letramento): segundo
Charnley & jones (979), o Oxford English Dictionary
registra o termo illiteracy desde 1660, enquanto que o ter-
mo positivo literacy só aparece registrado no final do sé-culo 19 (p.8). O surgimento do termo literacy nessa época
reflete certamente uma mudança histórica nas práticas so-
ciais: novas demandas sociais de uso da leitura e escrita
exigiram uma nova palavra para designá-Ias. Conse-
quentemente, um novo conceito foi criado.
É interessante observar que, em países onde demandas
sociais complexas de uso da leitura e escrita não estão
ainda amplamente disseminadas, a língua não oferece um
termo equivalente a literacy, no português do Brasil, por
exemplo, circulam os termos negativos analfabeto e anal-fabetismo há muito tempo, mas só recentemente foram
criados termos equivalentes a literacy - alfabetismo , le-
tramento . O conceito oposto a analfabetismo , signifi-
cando mais do que ser capaz de assinar o próprio nome
É, assim, impossível formular um conceito único de
letramento adequado a todas as pessoas, em todos os lu-
gares, em qualquer tempo, em qualquer contexto cultural
ou político.
4 Ver, por exemplo: Graff 0987a, 1987b), Schofield (1968), Resnick & Resnick (977),
Furet & Ozouf (977), Chartier & Hébrard (989), Chartier (1985).
, Ver, por exemplo: Goody 0968,1987), Levíne 0982, 1986), Heath (1983), Finnegan
(1988), Scribner & Cole (981), Wagner 0983, 1986, 1991), Schieffelin & Gilmore (986).
80 I LetramentoEnsaio 1 8 1
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 40/62
ou ler e escrever uma sentença simples, vai-se constituin-do à medida que novas demandas de comportamento le-trado vão surgindo no contexto social.
Pode-se concluir, então, que há diferentes conceitos deletramento, conceitos que variam segundo as necessidadese condições sociais específicas de determinado momentohistórico e de determinado estágio de desenvolvimento.
Além disso, do pomo de vista sociológico, em qualquersociedade, são várias e diversas as atividades de letramentoem contextos sociais diferenciados, atividades que assumemdeterminados papéis na vida de cada grupo e de cada indi-víduo. Assim, pessoas que ocupam lugares sociais diferentese têm atividades e estilos de vida associados a esses lugaresenfrentam demandas funcionais completamente diferentes:sexo, idade, residência rural ou urbana e etnia são, entreoutros, fatores que podem determinar a natureza do com-portamento letrado. Consequentemente, definir um conjun-
to universal de competências que evidenciassem o domíniode um letramento funcional é problemático: que parârne-tros escolher para selecionar e definir essas competências?Da mesma forma, na perspectiva de um letramento paraa libertação , pessoas ou grupos que têm ideologias dife-rentes e, consequentemente, diferentes objetivos políticospropõem diferentes práticas de letramento, determinadaspor seus valores, afirmações, ideais. Por exemplo: o con-ceito de letramento em sociedades em processo de mu-dança revolucionária (como em Cuba, nos anos 60, em
Nicarágua, nos anos 80) não é o mesmo que nos paísespoliticamente estáveis.
SOCiaiS e competências funcionais e, ainda, a valoresideológicos e metas políticas.
Reconhecendo esses múltiplos significados e varieda-des de letramento, Scribner (1984) defende a conveniênciade desagregar seus diversos níveis e tipos em um pro-cesso de decomposição (p.I8). A sugestão que faz Har-man de uma definição de letramento que distinga três
diferentes estágios representa uma tentativa de realizar essa desagregação :
o primeiro (estágio) é a concepção de letrarnento como um
instrumento. O segundo é a aquisição do letramento, a aprendi-
zagem das habilidades de ler e escrever. O terceiro é a aplicação
prática dessas habilidades em atividades significativas para o
aprendiz. Cada estágio é dependente do anterior; cada um é um
componente necessário do letramento. (Harman, 1970, p.228)
Um segundo exemplo de tentativas de desagregar o le-tramento é a tendência contemporânea, sobretudo em países
desenvolvidos, de qualificar o termo, fazendo distinções en-tre letramento básico e letramento crítico, letramento ade-
quado e inadequado, letramento funcional e integral,
letramento geral e especializado, letramento domesticador elibertador, letramento descritivo e ao aliatiuo , etc.
Uma tentativa mais radical de desagregar o letra-mento nos seus componentes é aquela proposta por au-tores que, em vez de considerarem o letramento comoconstituído de estágios ou componentes, ou como ne-cessitando ser qualificado, argumentam que é mais ade-
quado referir-se a letramentos, no plural, e não a umúnico letramento, no singular:
POSSíVEL UMA DEFINiÇÃO?
... seria, provavelmente, mais apropriado referirmo-nos a
letrarnentos do que a um único letramento , (Street, 1984, p.S)
... devemos falar de letramentos, e não de letramento, tanto nosentido de diversas linguagens e escritas, quanto no sentido de
múltiplos níveis de habilidades, conhecimentos e crenças, no
campo de cada língua e/ou escrita. CWagner, 1986, p.259)
... deveríamos identificar e estudar diferentes letramentos e nãosupor 01 .1 presumir um único letramento. (Lankshear, 1987, p.48)
A discussão anterior permite concluir que o conceitode letramento envolve um conjunto de fatores que variamde habilidades e conhecimentos individuais a práticas
8 2 1 Letrameoto. - 1 8 3 1. 11
I1
\1
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 41/62
Pode-se concluir que definir letramento é uma tarefa al-
tamente controversa; a formulação de uma definição que
possa ser aceita sem restrições parece impossível. Contudo,
como observa Cervero (1985), afirmar que uma definição
geral e comum a todos não é possível. .. não quer dizer que
não haja necessidade de uma definição geral e comum a
todos (p.53). Uma definição geral e amplamente aceita énecessária, especialmente quando se pretende avaliar e me-
dir níveis de letramento: sem ela, como determinar critérios
que estabeleçam a diferença entre letrado e iletrado, entre
diferentes níveis de letramento? Na seção seguinte, alguns
critérios comumente utilizados para avaliar e medir o letra-
mento serão examinados do ponto de vista dessa controvér-
sia conceitual.
Kirsch & Jungeblut, 1990); de acordo com estatísticas edu-
cacionais, tanto em países desenvolvidos quanto em paí-
ses em desenvolvimento, um número alarmante de crianças
não alcança o letramento nos primeiros anos do ensino
fundamental.? Entretanto, que letramento (ou não letra-
mento) está por trás desses dados? Se o letramento é um
contínuo que representa diferentes tipos e níveis de habi-
lidades e conhecimentos, e é um conjunto de práticas
sociais que envolvem usos heterogêneos de leitura e es-
crita com diferentes finalidades, que ponto, nesse contí-
nuo, deve separar adultos letrados de iletrados, em censos
populacionais e pesquisas por amostragem, ou crianças
bem sucedidas de crianças mal sucedidas na aquisição
do letramento, em contextos escolares?
As principais tentativas de enfrentamento desse pro-
blema são discutidas abaixo. Como a avaliação e medi-
ção do letramento dependem essencialmente de seu
propósito, a discussão é apresentada segundo as seguin-
tes categorias: avaliação e medição do letramento em
contextos escolares, em censos demo gráficos nacionais e
em pesquisas por amostragem.
AVALIAÇÃO E MEDiÇÃO DO LETRAMENTO:EM BUSCA DE CRITÉRIOS
Sendo difícil ou mesmo impossível definir letramento,
enfrenta-se a falta de uma condição essencial para sua
avaliação e medição: uma definição precisa que permita
determinar os critérios a serem utilizados para distinguir
pessoas letradas de iletradas, ou para estabelecer diferen-
tes níveis de letramento.
Na ausência dessa condição, as avaliações e medições
de letramento realizadas, quer através de censos popula-cionais, quer de pesquisas por amostragem, quer, ainda,
em sentido mais restrito, realizadas por sistemas escola-
res ou escolas, produzem dados imprecisos. Segundo os
censos populacionais, quase um bilhão de membros da
população mundial adulta (de idade acima de 15 anos)
são iletrados (Unesco 1990); conforme pesquisas por
amostragem, o letramento é hoje um grande problema
até mesmo em países desenvolvidos (ver, por exemplo,
AVALIAÇÃO E MEDi ÇÃO DO L ETRAMENTO
EM CONTEXTOS ESCOLARES
Nas sociedades contemporâneas, a instância respon-
sável por promover o letramento é o sistema escolar (em-bora não seja impossível, como Scribner & Cole (1981)
6 Por exemplo: no Brasil, assim como em muitos países do Terceiro Mundo, uma
grande porcentagem de crianças (em torno de 50%) repetem o primeiro ano de
escolaridade, porque são consideradas não alfabetizadas; McGill-Franzen & Alling-
ton (991) informam que, na América do Norte, um número jamais alcançado de
crianças estão repetindo os primeiros anos, basicamente porque estão atrasadas
no desenvolvimento da leitura (p.87). Para lima revisão crítica de dados referentes
à América Latina, ver Roca (1989).
; 11
I III
, I
1 ~ ~
8 4 1 Letramento Ensaio 1 8 5I I
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 42/62
demonstraram, ser letrado sem ter tido escolarização), se-gundo Cook-Gumperz (1986), é consenso social, nos diasde hoje, que o letramento é tanto o objetivo quanto oproduto da escolarização (p.16)J Mas o que se entendepor esse letramento proposto como objetivo e produto
da escolarização, e como é ele avaliado e medido emcontextos escolares?
Para resolver o conflito entre a falta de uma definiçãoprecisa de letramento e a necessidade de sua avaliação emedição, o sistema escolar enfrenta condições simultanea-mente favoráveis e desfavoráveis.
Condições favoráveis advêrn do fato de que o letramen-to é, no contexto escolar, um processo, mais que um pro-
duto; consequentemente, as escolas podem fazer uso deavaliações e medições em vários pontos do contínuo que éo letramento, avaliando de maneira progressiva a aquisi-ção de habilidades, de conhecimentos, de usos sociais e
culturais da leitura e da escrita, evitando, assim, o proble-ma de ter de escolher um único ponto do contínuo paradistinguir um aluno letrado de um iletrado, uma criançaalfabetizada de uma não alfabetizada.
Por outro lado, da natureza teleológica do sistemaescolar advêm condições desfavoráveis para o enfrentamentodo conflito entre a falta de uma definição precisa de letra-mento e a necessidade de sua avaliação e medição. As esco-las são instituições às quais a sociedade delega aresponsabilidade de prover as novas gerações das habilida-
des, conhecimentos, crenças, valores e atitudes considera-dos essenciais à formação de todo e qualquer cidadão. Paraalcançar tal objetivo, o sistema escolar estratifica e codificao conhecimento, selecionando e dividindo em partes o
que deve ser aprendido, planejando em quantos períodos(bimestres, semestres, séries, graus) e em que sequênciadeve se dar esse aprendizado, e avaliando, periodicamente,em momentos pré-determinados, se cada parte foi suficien-temente aprendida. Desse modo, as escolas fragmentam ereduzem o múltiplo significado do letrarnento: algumas
habilidades e práticas de leitura e escrita são selecionadas
e, então, organizadas em grupos, ordenadas e avaliadasperiodicamente, através de um processo de testes e provastanto padronizados quanto informais. O conceito de letra-mento torna-se, assim, fundamentalmente determinado pelashabilidades e práticas adquiridas através de uma escolari-zação burocraticamente organizada e traduzidas nos itensde testes e provas de leitura e de escrita. A consequênciadisso é um conceito de letramento reduzido, determinadopela escola, muitas vezes distante das habilidades e práti-cas de letramento que realmente ocorrem fora do contexto
escolar - um letramento escolar, nas palavras de Cook-Gumperz (986):
A instituição escola redefiniu o letramento, tornando-o o que
agora se pode chamar de letramento escolar, ou seja, um siste-ma de conhecimento descontextualizado, validado através do
desempenho em testes (p.14).
Essa estreita relação entre letramento e escolarizaçãocontrola mais do que expande o conceito de letramento, eseus efeitos sobre a avaliação e medição do letramento sãosignificativos, embora não sejam os mesmos em países de-
senvolvidos e em desenvolvimento.Nos países desenvolvidos, onde os sistemas escolares
são rigorosamente organizados, o letramento escolar é,em geral, definido por meio do estabelecimento de deter-minados padrões de progresso desejado em leitura e es-crita, e os níveis alcançados pelos estudantes tendo comoparâmetro esses padrões são considerados uma represen-tação adequada de letramento. Devido ao caráter teleoló-gico do sistema escolar, esses padrões de progresso são
, A história das relações entre letramento e escolarização esclarece bastante os atuais
procedimentos de avaliação e medição cio letramento em contextos escolares, mas
essa discussão ultrapassa os objetivos deste texto; para uma revisão crítica, ver Cook-Gumperz (1986).
I
8 6 1 Letramento
Ensaio\ 'õ 7
Em primeiro lugar, a maioria dos países em desenvolvi-
: [ 1
: 1 1
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 43/62
definidos, em grande parte, por testes padronizados e/ou
informais; como consequência, o fenômeno complexo e
multifacetado do letramento é reduzido àquelas habilida-
des de leitura e escrita e àqueles usos sociais que os testes
avaliam e medem. Desse modo, os critérios segundo os
quais os testes são construídos é que definem o que é
letramento em contextos escolares: um conceito restrito e
fortemente controlado, nem sempre condizente com as
habilidades de leitura e escrita e as práticas sociais necessá-
rias fora das paredes da escola.
Essa é, provavelmente, uma explicação (dentre ou-
tras) para o fato de o letramento ainda ser um grande
problema entre adultos de países desenvolvidos, apesar
de, neles, a educação fundamental obrigatória atingir prati-
camente a todos: tendo alcançado um letramento esco-
lar, os adultos são capazes de comportamentos escolares
de letramento, mas são incapazes de lidar com os usos
cotidianos da leitura e da escrita em contextos não esco-
lares. Por exemplo, Kirsch & ]ungeblut (1990) alegam
que os problemas de leitura e escrita identificados em
adultos jovens na América do Norte evidenciam um do-
mínio limitado das habilidades e estratégias de processa-
mento de informação necessárias para que os adultos
sejam bem-sucedidos ao enfrentarem uma vasta gama de
atividades no trabalho, em casa, em suas comunidades.
Do mesmo modo, uma análise dos problemas de leitura
e escrita de jovens adultos na Grã-Bretanha (ALBSU,1987)revela que eles enfrentam dificuldades na vida cotidiana
e também no trabalho, o que sugere que, talvez, o con-
ceito de letramento adotado pela escola esteja de certa
forma em dissonância com aquilo que é importante para
as pessoas em sua vida diária.
Nos países em desenvolvimento, os efeitos da estrei-
ta relação entre escolarização e letramento são bastante
diferentes.
mento ainda não provê educação fundamental para todos e,
obviamente, esse fato tem sérias implicações para a avalia-
ção e mesmo para a conceituação de letramento. Por um
lado, como a escolarização é a principal responsável, nas
sociedades contemporâneas, por promover e garantir o le-
tramento, a incapacidade do sistema escolar em oferecer
uma escolarização universal resulta em altos índices de anal-fabetismo e baixos níveis de letramento: quase toda a popu-
lação analfabeta do mundo encontra-se em países em
desenvolvimento, enquanto que o índice de analfabetismo
nos países desenvolvidos pode ser considerado desprezível
(Unesco, 1990, p.4). Por outro lado, e como consequência
do fato de o analfabetismo resultar da falta de escolariza-
ção, o conceito de letramento nos países em desenvolvi-
mento é bastante diferente do conceito mais difundido nos
países desenvolvidos: nesses, ser iletrado significa ter difi-
culdades para ler e escrever; naqueles, ser iletrado significa
ser incapaz de ler e escrever. Por essa razão, enquanto que
nos países desenvolvidos o letramento é o principal pro-
blema, e não o não-letrarnento (o analfabetismo), como afir-
mam Kirsch & ]ungeblut (990), nos países em
desenvolvimento, pelo contrário, o não-Ietramento (o anal-
fabetismo) é o principal problema, não o letramento.
Em segundo lugar, nos países em desenvolvimento,
apesar de os sistemas escolares serem em geral rigidamen-
te regulamentados, a adesão às normas e regulamentos
não é rigorosamente controlada, de modo que se torna
difícil assegurar padrões de resultados. No caso do le-
tramento, a ausência de padrões estabelecidos de forma
mais geral permite a utilização de critérios vagos e aleató-
rios de avaliação e medição, de modo que alunos da mes-
ma faixa etária ou série evidenciam o domínio de
habilidades de leitura e escrita bastante diferenciadas e
níveis variados de letramento escolar. Quase sempre, nos
países em desenvolvimento, em geral sociedades com
,
I
t
1 ' 1I '
I : ;
1 1
I i
I:
I iI
I I I
1 :1 1
I
._ _ 1 1
Ensaio I 89
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 44/62
divisões sociais marcantes, os padrões de letramento defini-
dos pelas escolas variam de acordo com o status social e/
ou econômico do aluno: os padrões são, quase sempre,
consideravelmente mais altos para os alunos das classes
altas. Assim, tornar-se letrado ou mesmo apenas alfabeti-
zado numa escola de classe alta tem um significado bas-
tante diferente de tornar-se letrado ou alfabetizado numa
escola de classe trabalhadora; de fato, os alunos das clas-ses trabalhadoras são sub-escolarízados e sub-letrados em
comparação com os alunos das classes altas. Desse modo,
como afirma Lankshear (1987), a transmissão e a prática do
letramento na escola contribuem para a manutenção de
padrões desiguais de distribuição de poder e de vantagens
dentro da estrutura social Cp.131).8
Em síntese, dois pontos principais devem ser enfati-
zados em relação à avaliação e medição do letramento em
contextos escolares. O primeiro deles diz respeito ao con-
ceito de letramento escolar, que decorre dos critérios defi-nidos pela escola para avaliar e medir as habilidades de
leitura e escrita: um conceito limitado, em geral insuficien-
te para responder às exigências das práticas sociais que
envolvem a língua escrita, fora da escola. O segundo pon-
to diz respeito aos diferentes efeitos educacionais e sociais
desse letramento escolar em países desenvolvidos e em
desenvolvimento: nos países desenvolvidos, sistemas edu-
cacionais fortemente organizados prescrevem padrões es-
tritos e universais para a aquisição progressiva de níveis
de letramento, enquanto que, nos países em desenvolvi-mento, um funcionamento inconsistente e discriminatório
da escola gera padrões múltiplos e diferenciados de aqui-
sição de letramento.
K Na verdade, Lankshear não se refere, nessa citação, exatamente aos países em
desenvolvimento, mas sim às SOCiedades capitalistas modernas; entretanto, apesarele O problema que ele aponta não se limitar, certamente, apenas aos países emdesenvol vimento, el e é, sem dúvida alguma, mais acentuado nesses países.
Essas questões têm uma influência significativa na defi-
nição de critérios para a avaliação e medição do Ietrarnen-
to em censos populacionais, como se discute a seguir.
AVALIAÇÃO E MEDiÇÃO DO LETRAMENTO
EM CENSOS POPULACIONAIS
Afirmar que um conceito único de letramento não é
possível, tanto para a sociedade como um todo quanto
em contextos escolares, não implica que esse conceito
único não seja necessário; de fato, uma definição precisa
é indispensável para fundamentar programas de coleta
de dados sobre o letramento, como no caso de censos
demográficos nacionais.
Nesses casos, o problema a enfrentar é que, apesar de o
letramento, como foi discutido, não ser algo que as pesso-
as ou têm ou não têm - ele é um contínuo, variando donível mais elementar ao mais complexo de habilidades de
leitura e escrita e de usos sociais - em levantamentos censi-
tários, questões práticas exigem que o letramento seja trata-
do como uma variável discreta e não contínua. Como um
dos propósitos dos censos demográficos é fornecer infor-
mação estatística sobre letramento e analfabetismo, os ins-
trumentos de avaliação não podem deixar de determinar um
ponto de cisão no contínuo do letramento que distinga pes-
soas alfabetizadas ou letradas de analfabetas ou iletradas, e
não podem deixar de usar a enganosa dicotomia alfabeti-zado , letrado , versus analfabeto , iletrado ,
Tradicionalmente, os levantamentos censitários coletam
dados sobre o letramento basicamente através de um de
dois processos: o primeiro é a autoavaliação, ou seja, o
próprio informante responde se é alfabetizado, letrado, ou
se é analfabeto, iletrado; o segundo é a obtenção de infor-
mação sobre a conclusão, ou não, pelo informante, de
uma determinada série escolar, ou seja, a obtenção de dado
~ I LetramentoEnsaio 1 9 1
sobre a escolarização formal. A definição de letramento e nível ou níveis de letramento; em segundo lugar, porque a
I ·
I I
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 45/62
os critérios para avaliá-Io variam, assim, enormemente, pois
dependem do ponto específico escolhido, seja pelo recen-
seado seja pelo recenseador, como linha divisória entre in-
divíduos alfabetizados e analfabetos, letrados e iletrados, ao
longo do contínuo que é o letramento.
Na verdade, a decisão sobre que ponto escolher como
linha divisória é determinada pelo estágio histórico da so-
ciedade em análise, ou seja, por suas condições culturais,
sociais e econômicas específicas num determinado mo-
mento, e depende das práticas reais de usos da leitura e da
escrita e dos processos através dos quais esses usos são
transmitidos naquelas condições específicas e naquele
momento. Assim, a linha divisória escolhida para distinguir
o alfabetizado , o letrado do analfabeto , do iletrado
varia de sociedade para sociedade: pessoas classificadas
como alfabetizadas ou letradas em um determinado país
não o seriam em outro. Mais ainda: em um mesmo país,os conceitos de alfabetizado e analfabeto, de letrado e
iletrado variam ao longo do tempo: à medida que as con-
dições sociais e econômicas mudam, também as expecta-
tivas em relação ao letramento mudam, e aqueles
classificados como alfabetizados ou letrados em detenni-
nado momento podem não sê-lo em outro.
A própria escolha entre coletar dados sobre o letramen-
to através de autoavaliação ou de identificação de nível de
escolarização depende do estágio de desenvolvimento so-
cial e econômico da sociedade e, consequentemente, deseu sistema escolar.
Os países em desenvolvimento optam, em geral, pela
coleta de dados através do processo de autoavaliação 3 A a
avaliação feita pelo próprio informante sobre suas habilida-
des de leitura e escrita é considerada a mais adequada, por
várias razões: primeiramente, porque as práticas sociais de
leitura e escrita não estão suficientemente difundidas entre a
população, não sendo pertinente, por isso, pretender avaliar
educação fundamental universal e obrigatória ainda não
foi inteiramente alcançada, de modo que o critério de ní-
vel de escolaridade seria improcedente; além disso, e em
terceiro lugar, porque os sistemas escolares estão organi-
zados de modo inconsistente e não são homogêneos, fun-
cionando em níveis de qualidade muito diferentes, de modo
que haveria pouca concordância sobre o que pode signifi-car a conclusão de determinada série escolar em diferentes
regiões, em diferentes escolas.
Os países desenvolvidos, ao contrário, geralmente utili-
zam-se de dados sobre nível de escolarização para aferir o
grau de letramento da população: considera-se necessária a
conclusão de um certo número de anos de escolarização
formal para caracterizar a população letrada, porque a vida
social exige habilidades e práticas de letramento em inúme-
ras e diferentes ocasiões, a educação fundamental básica para
todos já foi praticamente atingida, e os sistemas escolaressão rigorosamente organizados.
Entretanto, tanto a autoavaliação quanto informações
sobre conclusão de série escolar são processos problemá-
ticos para a coleta de dados a respeito do letramento,
como se discute a seguir.
Autoava iação
Informações sobre o letramento através de autoavalia-
ção, coleta das em censos demográficos nacionais, são ob-
tidas por meio de uma ou mais perguntas feitas aoindivíduo, perguntas que traduzem uma definição prévia
daquilo que se convencionou ser letramento. Entretanto,
apesar da tentativa de garantir confiabilidade aos dados
derivando as perguntas de uma definição de letramento
decidida previamente, as informações através de autoava-
liação sofrem de algumas deficiências sérias.
A primeira deficiência é resultado da aplicação errônea
da definição de letramento mais amplamente utilizada em
92 I Letramento
censos demográficos, definição que gera as perguntas e
J~simples na sua própria língua (IBGE, 1991). Na prática,
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 46/62
a aferição das respostas. Apesar de países diferentes uti-
lizarem definições diferentes, a fonte primária é invaria-
velmente a recomendação da Unesco: é letrada a pessoa
que consegue tanto ler quanto escrever com compreen-
são uma frase simples e curta sobre sua vida cotidiana
(Unesco, 1978a). Contudo, o uso dessa definição básica
para fins de autoavaliação não deixa de ser problemáti-
co: como se pode traduzi-Ia em uma ou mais perguntas
breves a serem incluídas no questionário censitário?
A fim de evitar esse problema, na maioria dos países a
pergunta do censo sobre o letramento é simplesmente se a
pessoa sabe ler e escrever ( Você sabe ler e escrever? ),
sem qualquer referência a o quê a pessoa é capaz de ler e
escrever ou à compreensão do que é lido ou escrito; o
resultado é que o significado da resposta sim ou não do
informante é, na melhor das hipóteses, dúbio. Como ob-
serva o estudo técnico das Nações Unidas de 1989 sobre aavaliação do letramento:
Como determinar se a resposta inclui o requisito de com com-
preensão , aplicado a uma frase simples e curta sobre sua
vida cotidiana , é uma questão diferente e complexa. Fre-
qüentemente, presume-se simplesmente que este é o caso; às
vezes, a questão ou as questões especificam um contexto am-
bíguo tal como em: Você sabe ler uma mensagem simples? (United Nations, 1989, p.85)
No Brasil, por exemplo, o manual de instrução que
orienta o recenseador inclui uma definição de alfabeti-zado a ser usada no preenchimento do questionário,
definição que é, na verdade, uma versão simplificada da
definição da Unesco. uma pessoa deve ser considerada
alfabetizada se for capaz de ler e escrever uma mensagem
? Sociedades multilíngues e multiletraclas enfrentam ainda um outro problema: em
que língua o indivíduo deve saber ler e escrever? Para uma discussão dessa questão,ver Wagner (1990), United Natíons (1989), Unesco (1978b).
contudo, os recenseadores geralmente não seguem es-
tritamente as instruções e confiam exclusivamente na
resposta afirmativa ou negativa do informante à questão
concisa que aparece no questionário: Você sabe ler e
escrever? Uma das razões que pode explicar a descon-
sideração da definição proposta no manual de instrução
é provavelmente a dificuldade de saber exatamente oque ela significa: qual deveria ser a extensão de uma
mensagem simples ? quantas unidades de informação
ela deveria incluir? em que nível de proficiência ela
deveria ser lida ou escrita? o que quer dizer com com-
preensão ? etc.
Um segundo obstáculo à confiabilidade das informa-
ções obtidas através de autoavaliação é a impossibilidade
de, com base apenas na resposta afirmativa C'sim ) ou
negativa ( não ) à pergunta sobre a habilidade do infor-
mante de ler e escrever, captar distinções importantes emtermos de habilidades e processos (por exemplo, leitura
versus escrita; diferença entre decodíficação e compre-
ensão ou interpretação; diferença entre apenas ser capaz
de transcrever unidades sonoras e ser capaz de comuni-
car-se por escrito com um leitor potencial). Na verdade, as
respostas sim ou não a perguntas a respeito das pró-
prias habilidades de leitura e escrita dependem, funda-
mentalmente, da avaliação que o informante faz de suas
habilidades, competências e práticas pessoais de letramento.
Deve-se salientar aqui um ponto importante: essa avalia-
ção que o informante faz de si mesmo é frequentementeinfluenciada por um conceito de letramento definido pela
escola, isto porque, nas sociedades contemporâneas, como
foi dito antes, as escolas são árbitros dos padrões de
letramento (Cook-Gumperz, 1986, p.34), de modo que o
informante tende a descrever-se como alfabetizado/analfa-
beto, letrado/iletrado, tendo como parâmetros as habilida-
des e práticas de letramento que são tipicamente ensinadas
e medidas nos contextos escolares, ou seja, de acordo com
__ Ensaio 195
um conceito de letramento escolar e não em função das Como na maioria das investigações atuais sobre o letramento, os
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 47/62
habilidades e práticas aprendidas e usadas de fato na vida
cotidiana fora da escola.
Uma outra consideração a ser feita é que as perguntas
de autoavaliação nos levantamentos censitários não são
respondidas por cada indivíduo separadamente, mas por
um morador do domicílio que responde por todos os ou-
tros moradores. Assim, a classificação de um indivíduo
como alfabetizado ou analfabeto , letrado ou iletra-
do baseia-se não apenas na avaliação que o informante
faz de suas próprias habilidades de letramento, mas tam-
bém na estimativa que faz das habilidades dos outros mo-
radores: com que critérios o informante classifica a si mesmo
e aos outros como dominando ou não as habilidades ne-
cessárias para que o indivíduo seja considerado alfabetiza-
do ou letrado?
Finalmente, as respostas do informante às perguntas
do censo sobre letramento podem não corresponder àssuas condições reais, devido a inibições sociais e psico-
lógicas e atitudes de censura. Como os informantes des-
confiam frequentemente das motivações do recenseador,
podem dar respostas desejáveis em vez de respostas sin-
ceras; por exemplo, pessoas analfabetas muitas vezes
preferem esconder que não sabem ler e escrever, por
vergonha de admitir, diante de um estranho, sobretudo
alguém que veem como exercendo um papel de autori-
dade, o que consideram ser uma deficiência; ou, pelo
contrário, pessoas alfabetizadas ou letradas podem de-
clarar não saber ler e escrever pelo temor de vir a serem
submetidas a um teste ou alguma outra forma de medi-
ção direta. Como afirma Schofield (1968):
dados desses relatórios (relatórios estatísticos) são medidas das
opiniões das pessoas sobre suas competências de letramento, tal
como foram declaradas a estranhos, e não constituem uma evi-
dência direta da existência dessas competências. O perigo de
resultados pouco confiáveís nesses casos, sobretudo quando se
estabelece uma relação entre status e posse de competências de
letramento, sequer precisa ser enfatizado. (p.319)
À luz dessas considerações, pode-se concluir que, ape-
sar das tentativas de garantir a confiabilidade dos dados, as
informações sobre índices de letramento baseadas em au-
tovaliação são muito imprecisas. A principal causa disso é
que o marco divisório que distinguiria pessoas alfabetiza-
das, letradas, de pessoas analfabetas, iletradas, ao longo do
contínuo do letramento, varia enormemente nas pesquisas
feitas para censos demográficos, porque sua caracterização
depende de fatores diversos e frequentemente discrepantes:
a aplicação (ou má aplicação) pelo recenseador da defini-
ção de letramento pré-estabelecida e da qual deveria deri-var-se esse marco divisório; a decisão do próprio informante
sobre esse marco divisório, ao descrever a si mesmo e a
outros membros da família como alfabetizados ou analfabe-
tos; os aspectos psicológicos e sociais relacionados com o
status do letramento na sociedade.
Essas restrições às informações sobre letramento obti-
das por autoavaliação têm conduzido ao procedimento
alternativo de medir competências e práticas de letramen-
to com base na escolarização e na conclusão de deter-
minada série escolar.
Conclusão de série escolar
Definir, avaliar e medir o letramento em termos de anos
de escolarização apresenta algumas vantagens conceituais
em relação a fazê-lo com base em autoavaliação.
A principal vantagem é que, enquanto a autoavaliação
fundamenta-se essencialmente na suposição de que existe
um ponto específico, num contínuo de habilidades e
10 Até mesmo em países do Terceiro Mundo, embora o ensino fundamental para
todos ainda não tenha sido alcançado, uma grande maioria da população tem
algum tipo de contato com a escolarização elementar, de modo que os parâmetros
da escola para avaliação do letramento são em geral bastante conhecidos e ampla-mente ínternalízados.
I ~ , ~ _ r o Ensaio I C J 7
práticas, que separa o alfabetizado, o letrado, do analfabeto, Os dados abaixo, relativos a estimativas de letramento nos
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 48/62
do iletrado, o critério baseado em número de anos de escolari-
dade, embora tenha também o objetivo, no caso dos levanta-
mentos censitários, de distinguir alfabetizado, letrado, de
analfabeto, iletrado, traz em si, intrinsecamente, o reconheci-
mento de que o letramento é uma série ou um contínuo decompetências e práticas, de certa forma escapando, assim, à
dicotomia artificialletramento versus analfabetismo. Na verda-de, avaliar e medir o letramento com base no número de anos
de escola fundamental concluídos é reconhecer que é gradual-
mente que as pessoas passam do analfabetismo, do não letra-
mento, ao letramento, e que issoocorre ao longo de um certoperíodo de tempo e através de vários estágios.
Uma outra vantagem de avaliar o letramento em termos
de anos de escolarização é que a responsabilidade de classi-
ficar indivíduos como alfabetizados, letrados, ou analfabetos,
iletrados é transferida para um árbitro provavelmente mais
confiável: enquanto a informação baseada em autoavaliação
fundamenta-se basicamente na avaliação do próprio infor-mante sobre suas competências de leitura e escrita, como
discutido anteriormente, o critério de conclusão de série
escolar atribui a avaliação ao sistema escolar, aproximando-
se, dessa forma, de uma estimativa mais imparcial.
Entretanto, o número de anos de escolaridade concluí-
dos, como critério para a avaliação e medição do letra-
mento, suscita um problema crucial: é necessário selecionar
uma determinada série escolar como linha divisória entre
o analfabetismo, o não letramento e o letramento, e essa
seleção é inevitavelmente arbitrária. Hillerich (1978) expressaesse problema nos seguintes termos:
Estados Unidos, fomecidas por Newman & Beverstock (1990),11
reforçam o argumento de Hillerich:os dados ilustrama arbitra-
riedade da seleção de uma determinada série cuja conclusão
indicaria letramento adequado ou satisfatório:
Nos anos 30, o Civílian Conseniation Corps utilizou a conclusão
da terceira série como padrão de letramento. No início da Segun-da Guerra Mundial, a conclusão da quarta série foi considerada
como indicativo de letramento suficiente para a entrada no exérci-
to. Contudo, à medida que a guerra avançava, as exigências de
letramento foram alteradas, de modo que um número suficiente
de soldados pudesse ser incorporado. O censo especial de 1947
estabeleceu como nível indicativo de letramento cinco anos de
escolarização, e 13.5 por cento da população masculina não atin-
giu esse nível. O censo de 1949 tomou como critério a quinta
série, e o de 1952, a sexta série. Na década de sessenta, o Depar-
tamento de Educação dos Estados Unidos estabeleceu como ní-
vel indicativo de letramento oito anos de escolarização. Conside-
rando 9 anos de escolarização como o mínimo necessário para
ser atingido o letramento, o censo de 1980revelou 24milhões depessoas de 25 anos ou mais que eram iletradas - 18por cento das
pessoas nessa faixa etária. Mas, tomando como critério um míni-
mo de 12 anos de escolaridade, o mesmo censo encontrou 45
milhões de pessoas iletradas, ou seja, 34 por cento. Cp.57)
Se um determinado número de anos na escola é adotado como
base de avaliação do letramento, é necessário apenas escolher a
série que será usada como critério. Tal decisão pode ser feita em
termos do número de iletrados que se deseja declarar - quanto
mais avançada a série escolhida, maior será, obviamente, o nú-
mero de iletrados identificado. Ou a série pode ser escolhida
com base em algum nível que se presuma necessário para queadultos sejam bem sucedidos. (p.31)
Como os dados deixam claro, o número de anos de
escolaridade considerados necessários para que seja alcan-
çado o letramento pode aumentar com o tempo: à medida
que a sociedade vai-se tornando mais complexa, mais exi-
gências vão sendo feitas em relação a habilidades e práti-
cas de leitura e escrita e, consequentemente, níveis mais
avançados de escolarização vão sendo considerados ne-cessários. Mais ainda, a seleção de uma determinada série
como linha divisória entre letramento e não letramento
depende dos fins da avaliação e medição, ou seja, daquilo
que é julgado necessário em função dos efeitos desejados.
u A fonte dos dados apresentados por Newman & Beverstock é: McGrail, ]. (984).
Adult Illiterates anel Adult Literacy Programs: A Summary of Descriptive Data. San
Francisco, CA: National Aclult Literacy Project, Far West Laborarory.
98 I Letramento
Finalmente, e obviamente, pode-se obter qualquer número de
Ensaio I <f )
desenvolvimento, justamente por causa do índice de repro-
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 49/62
analfabetos ou iletrados, apenas tomando-se como critério
a conclusão desta ou daquela série.
Além da arbitrariedade inerente ao critério de escolher
uma determinada série escolar e decidir que, concluída
ela, foi atingido um nível adequado de letramento e, abai-
xo dela, permanece-se no não letramento (Hillerich, 1978,
p.33), o critério de conclusão de determinada série escolar,
para avaliar o letramento, baseia-se em algumas suposi-ções equivocadas.
Primeiramente, o uso do critério de conclusão de sé-
rie escolar para avaliar o letramento em levantamentos
censitários pressupõe que a educação universal e obri-
gatória é adequadamente oferecida, de modo que todo
indivíduo tenha a oportunidade de entrar e permanecer
no sistema escolar. Mais ainda, esse sistema deve ser
fortemente organizado, para permitir supor que a natu-
reza e qualidade da escolarização seja suficientemente
uniforme entre as escolas, e que o mesmo nível de le-
trarnento seja alcançado no mesmo número de anos em
escolas diferentes.
Isto certamente não ocorre nos países em desenvolvi-
mento, em que a conclusão de determinada série escolar
tem pouca validade como critério para a avaliação do le-
tramento, porque ainda não é oferecido o ensino funda-
mental para todos, e a organização e controle escolares
são, em geral, tão precários que uma grande parte dascrianças que conseguem ter acesso à escola ou a abando-
nam, depois de completar dois ou três anos de escolariza-
ção fundamental, ou repetem a mesma série diversas vezes
(em geral a primeira série). Mais ainda, nos países em
12 o Brasil é um exemplo característico: cerca de apenas 50 por cento das crianças de
sete anos brasileiras matriculadas na primeira série passam para a série seguinte; os
outros 50por cento ou deixam a escola ou repetem o ano.
Ii
vações e das repetências decorrentes delas, a conclusão da
quarta série, por exemplo (em geral selecionada como
linha divisória entre analfabetismo e letramento) represen-
ta com frequência, na verdade, seis, oito ou dez anos de
escolarízação,
Até mesmo nos países desenvolvidos, onde os sistemaseducacionais são em geral submetidos a padrões bem de-
finidos de progressão de série para série, não deixa de ser
discutível supor que o processo de escolarização é unifor-
me entre as escolas, igualando-se o que é certamente desi-
gual: processos de escolarização, competência dos
professores, potencialidades dos alunos, valores atribuí-
dos pela comunidade ao letramento. Como observa Oxe-
nham (1980):
i
... enquanto quatro anos de escolarização, em certas escolas
de alguns países, podem habilitar a maioria dos alunos a tor-nar-se adequada e permanentemente letrada, o mesmo nú-mero de séries em outro lugar pode resultar simplesmente empermanência no analfabetismo. Cp.90)
Uma segunda suposição subjacente ao critério de con-
clusão de série escolar para avaliação e medição do letra-
mento é a presumida relação entre comportamentos
adquiridos na escola e habilidades e práticas de letramen-
to ou, em outras palavras, uma suposição de que o letra-
mento é aquilo que as escolas ensinam e medem e,
portanto, é basicamente adquirido por meio da escolaríza-ção. Além do fato de que essa suposição ignora a aprendi-
zagem por meios informais ao longo da vida, em situações
externas à escola, há outras importantes evidências de que
se trata de uma suposição discutível.
Em primeiro lugar, apesar de ter recebido ainda pouca
atenção a hipótese de que um determinado nível/série con-
cluído equivale a letramento, alguns estudos empíricos su-
gerem que ela não procede: Harman (1970), Kirsch &
10 0 I Letramento EnsaioI 10 1
Guthrie (1977-1978), Hillerich (1978), Wagner (1991) rela- foi criado justamente para ampliar o conceito de letra-
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 50/62
tam resultados de pesquisa que indicam haver uma rela-
ção muito tênue entre o critério de série escolar concluída
e as competências de letramento do adulto.
Em segundo lugar, a suposta ligação de causa-e-efei-
to entre escolarização e letramento é refutada pelo fato
de que o não letramento (o analfabetismo funcional)
continua a ser um grave problema nos países onde o
ensino fundamental obrigatório para todos foi pratica-
mente alcançado, como no caso dos países desenvolvi-
dos. Se a conclusão de uma determinada série equivale
a letramento, por que baixos níveis de letramento ocor-
rem em sociedades em que o direito à escolaridade bá-
sica é garantido a todos?
Esse aparente paradoxo pode ser compreendido se
se considera o fato de que as escolas, como discutido
acima, avaliam e medem o letramento segundo as exi-gências de desempenho determinadas por instrumentos
de avaliação definidos por elas mesmas, internamente,
não levando em conta, em geral, as competências de
letramento requeridas em situações exteriores a elas. Na
verdade, as habilidades e práticas de letramento, em
outros contextos sociais, parecem ir muito além das ha-
bilidades de leitura e escrita ensinadas e medidas em
contextos escolares, ou seja, muito além de um letra-
mento escolarizado. A consequência, como afirmam
Castell et al. (1986), é uma discrepância significativa
entre o que conta como letramento na escola e os tipos
de competências de letramento realmente necessárias
nas atividades profissionais e comunitárias (p. ). Em
outras palavras, por meio da escolarização, as pessoas
podem se tornar capazes de realizar tarefas escolares
de letramento, mas podem permanecer incapazes de
lidar com usos cotidianos de leitura e escrita em con-
textos não escolares - em casa, no trabalho e no seu
contexto social. De fato, o termo letramento funcional
mento definido pela escola, acrescentando a ele comporta-
mentos letrados cotidianos que a aprendizagem formal
em contextos escolares não parece promover.
Inúmeros estudos têm dado suporte a essas afirmações.
Por exemplo: os estudos etnográficos de Heath (1983)
indicam que as atividades de leitura e escrita em contex-
tos escolares revelam-se altamente irrelevantes em situa-
ções externas ao mundo escolar; nesse mesmo sentido, a
pesquisa de Wagner sobre o letramento funcional entre
crianças marroquinas em idade escolar (1991) levou àseguinte conclusão:
o presente estudo confirma um crescente número de evidên-
cias indicando que muitas das habilidades necessárias na vida
cotidiana podem não ser adquiridas mesmo após os 4 anosde escolarização formal convencionalmente (ou convenien-
temente) utilizados como a linha divisória entre letramento e
não letramento. (p.193)
Portanto, a suposição de que se pode avaliar e medir
letramento pelo critério de conclusão de determinada série
escolar é, certamente, uma suposição equivocada.
Igualmente equivocada é uma terceira suposição em
que se fundamenta o critério de série escolar concluída
para a avaliação e medição do letramento: a suposição
de que a conclusão de uma dada série garante um letra-
mento permanente e de que o que foi adquirido não
será perdido.
Essa suposição deixa de levar em consideração uma
questão importante: a validade de arbitrariamente escolher
uma determinada série escolar como o limiar de um apren-
dizado de tal natureza que, mesmo no caso de pouco ou
nenhum uso das competências adquiridas, não ocorreria
uma reversão ao analfabetismo ou a perda de habilidades
de letramento. O esclarecimento dessa questão depende
de dados empíricos ainda não disponíveis, como observa
Wagner (1990)
10 2 I LetramentoEnsaio I 10 3
Embora haja numerosas hipóteses sobre ° rrururno de evidências de que o 'retrocesso do letramento' pode
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 51/62
escolarização primária necessário (ou de educação não formal
ou de experiências vivenciadas em campanhas de alfabetiza-
ção) para que o letramento seja fixado na criança ou no
adulto, há ainda muito pouca informação para sustentar essashipóteses. (p.131)
ser um mito (p.Ll).
Conclui-se que estudos empíricos sobre a retenção de
competências de leitura e escrita têm chegado a resultados
conflitantes; assim, presumir que a conclusão de uma de-
terminada série escolar seja evidência de letramento é, por
enquanto, questionável.
Em síntese, embora o critério de conclusão de série
escolar para a avaliação e medição do letramento ofe-
reça algumas vantagens conceituais em relação ao crité-
rio de autoavaliação, traz alguns sérios problemas e
baseia-se em suposições ou equivocadas ou controversas.
Além disso, é uma questão ainda aberta a investigações
futuras determinar se indivíduos que concluem uma de-
terminada série tornam-se letrados de forma adequada e
permanente.
Podemos concluir que as informações por autoavalia-ção e por conclusão de série escolar, coletadas em levan-
tamentos censitários, permitem apenas uma medida bastante
precária de letramento. Um procedimento para a avaliação
e a medição, com mais profundidade, do letramento, per-
mitindo investigar tanto as habilidades quanto as práticas
sociais de leitura e de escrita, é o estudo por amostragem,
discutido a seguir.
Na verdade, a retenção de competências de leitura e de
escrita é um fenômeno ainda pouco estudado, sendo sur-
preendentemente pequeno o número de pesquisas nesse
campo. Além disso, os resultados a que chegam esses
poucos estudos empíricos não são conclusivos, sendo ain-
da restrita a possibilidade de generalização.
Simmons, ao revisar, na segunda metade dos anos 70,
seis estudos sobre a retenção de competências de letra-
mento que, segundo ele, constituíam, então, toda a litera-
tura sobre o tema, resume os resultados concluindo que:
primeiro, os estudos indicam de modo consistente um
declínio das habilidades de leitura e escrita ao longo dotempo ; segundo, altos níveis alcançados em educação
anterior não garantem que as pessoas não regridam ao
analfabetismo ; e, finalmente, mesmo aquilo que é reti-
do parece ter pouco valor prático para o indivíduo ou a
sociedade (Simmons, 1976,p.84). O estudo realizado pelo
próprio Simmons sugere que a suposição de que a educa-
ção fundamental tem efeitos permanentes deve ser questi-
onada, e que o motivo pelo qual alguns indivíduos retêm
mais do que outros parece estar mais em fatores ligados
ao ambiente familiar e uso pós-escolar das habilidadescognitivas do que em fatores ligados às experiências esco-
lares (Simmons, 1976, p.92).
Ao contrário, um estudo longitudinal realizado por
Wagner, Spratt, Klein & Ezzaki (1989) não confirma a
hipótese do 'retrocesso' em competências de letramen-
to ou perda de habilidades acadêmico-cognitivas de-
pois de cinco séries de escolarização fundamental
(p.Z); segundo os autores, o estudo oferece as primeiras
AVALIAÇÃO E MEDiÇÃO DO LETRAMENTOEM ESTUDOS POR AMOSTRAGEM
Avaliar o letramento por meio de levantamento das
competências reais de uma amostra representativa da
população, isto é, levantamento realizado por amos-
tragem, é uma alternativa para assegurar uma aferição
mais precisa da extensão e qualidade do letramento na
população.
1 0 4 1 Letramento Ensaio 11 05
A coleta de dados sobre o letramento em levantamentos a implementação de programas de alfabetização e de
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 52/62
censitários tem por objetivo fornecer, dentre muitas ou-
tras informações sobre características demográficas, so-
ciais e socioeconômicas, um indicador genérico da
extensão do letramento na população como um todo; os
levantamentos por amostragem, ao contrário, visam à co-
leta de uma grande variedade de informações específicas
sobre habilidades e práticas sociais reais de leitura e deescrita. Consequentemente, enquanto o levantamento cen-
sitário avalia e mede o letramento de maneira superficial,
porque não pode utilizar mais que uma ou duas pergun-
tas curtas de autoavaliação ou o simples critério de con-
clusão de determinada série escolar, o levantamento por
amostragem pode avaliar e medir em profundidade tanto
as habilidades de leitura e de escrita, através de provas e
testes, quanto os usos cotidianos dessas habilidades, atra-
vés de questionários estruturados. Os levantamentos por
amostragem sobre o letramento podem, pois, fornecerdados sobre ambas as dimensões do letramento discuti-
das anteriormente: a dimensão individual, ou seja, a pos-
se pessoal de habilidades de leitura e escrita, e a dimensão
social, ou seja, o exercício das práticas sociais que en-
volvem a leitura e a escrita.
Além disso, como pesquisas por amostragem sobre
o letramento quase sempre levantam dados também
sobre a formação educacional em geral e sobre as ca-
racterísticas socioeconômicas e culturais do grupo fa-
miliar, elas permitem que se analisem as relações entre
as habilidades e práticas sociais de leitura e de escrita
e outros fatores, tais como idade, sexo, raça, renda,
residência rural/urbana, meio cultural e região (United
Nations, 1989, p.10). Desse modo, pesquisas de letra-
mento por amostragem fornecem dados não apenas
para a estimativa dos níveis de letramento, mas também, e
sobretudo, para a formulação de políticas educacionais e
letrarnento.
Na verdade, o que os levantamentos por amostragem
buscam identificar é o letramento funcional; em lugar
de considerar o letramento como uma característica que
as pessoas ou têm ou não têm, como fazem os levanta-
mentos censitários, os levantamentos por amostragem
buscam identificar a prática real das habilidades de lei-
tura e escrita e a natureza e frequência de usos sociais
dessas habilidades. Assim, os levantamentos por amos-
tragem têm como objetivo avaliar e medir níveis de le-
tramento, e não apenas o nível básico de ser capaz de
ler e escrever .
Como consequência, a necessidade de avaliar e medir o
letramento por meio de pesquisas por amostragem é reco-
nhecida principalmente em países onde esse nível básico
de letramento já foi alcançado praticamente por todos, de
modo que é pertinente buscar identificar habilidades de
leitura e escrita mais complexas, como também o uso da
leitura e da escrita em contextos sociais os mais diversos.
O World Education Report de 1991 (Unesco, 1991) ratifica
esse ponto de vista:
Não obstante a diversidade de níveis de Ietrarnento, a maioria
dos países do mundo ainda tem proporções significativas de
sua população abaixo até mesmo elo nível mínimo de ser ca-
paz de, com compreensão, ler e escrever uma frase simples
sobre a vida cotidiana. O fato de que este primeiro nível conti-
nua a ser a principal preocupação na maioria dos países ficouevidenciado nas respostas ao questionário do International
Bureau of Education (IBE) sobre as tendências atuais da edu-
cação fundamental e de programas de alfabetização de adultos
Uma discussão a respeito das possibilidades de utilização de pesquisas de letra-
mento por amostragem domiciliar ultrapassa os objetivos deste estudo; uma discus-
são detalhada pode ser encontrada no estudo técnico das Nações Unidas de 1989
sobre a avaliação do letramento através de levantamentos domiciliares (United
Nations, 1989); ver também Wagner (1990).
1 < X 5 ILetramentoEnsaio I 10 7
que foi distribuído aos Estados Membros da UNESCO, por oca-
sião da 42 sessão da Conferência Internacional de Educação
consiste de um grande número de diferentes habilida-
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 53/62
(Genebra, setembro de 1990). As respostas, em sua maioria,
afirmaram que a definição primeira de analfabeto de 1958 ain-
da era relevante em seus países; um número menor concordou
que a noção de analfabeto funcional era percebida e defini-
da como uma categoria específica . (p.47-48)
des, competências cognitivas e metacognitivas, aplica-
das a um vasto conjunto de materiais de leitura e gêneros
de escrita, e refere-se a uma variedade de usos da lei-
tura e da escrita, praticadas em contextos sociais dife-
rentes. Os instrumentos de avaliação utilizados em
pesquisas por amostragem de letramento (testes e ques-
tionários) não podem, assim, deixar de selecionar uma
amostra de comportamentos considerados representa-
tivos de uma grande variedade de habilidades e práti-
cas. Como consequência, as estimativas de letramento,
através de pesquisas por amostragem, variam tanto
quanto as medidas empregadas (Kirsch & Guthrie,
1977-1978, p.504). Newman & Beverstock (990) refe-
rem-se a estudos que tentaram avaliar e medir o letra-
mento funcional nos Estados Unidos nos anos setenta
e oitenta nos seguintes termos:
Por essa razão é que as pesquisas por amostragem so-
bre o letramento foram implementadas principalmente nos
países onde a noção de analfabeto funcional é percebida
e definida como uma categoria específica , ou seja, nos
países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, por exemplo,
um número significativo de pesquisas por amostragem sobre
o letramento foi realizado nas últimas duas décadas (para
uma revisão crítica, ver Kirsch & Guthrie, 1977-1978; New-
man & Beverstock, 1990). Já nos países em desenvolvi-
mento, onde uma grande parte da população ainda não
atingiu sequer o nível básico de letramento - ser capaz deler e escrever - estudos do letramento através de pesquisas
por amostragem são raros, provavelmente porque são con-
siderados supérfluos.
Uma outra consideração a ser feita é que, embora le-
vantamentos por amostragem domiciliar sobre o letra-
mento forneçam informações sobre uma ampla variedade
de habilidades e práticas, não se deve supor que neles
seja inteiramente eliminada a seleção arbitrária de linhas
divisórias no contínuo do letramento para distinguir di-
ferentes níveis. Como discutido anteriormente, o letramento
Os estudos variavam, e seus resultados também. As estimati-
vas indicavam de 13 até mais de 50 por cento da população
adulta americana com dificuldades em habilidades e práti-
cas básicas de letramento. Dependendo de quem estiver fa-
lando e de qual estudo é citado, os Estados Unidos têm um
índice de letra mento baixo, alto ou um índice que se
posiciona em algum lugar entre baixo e alto. (p.49)
A falta de concordância em relação ao que deve ser
medido em processos de avaliação de letramento pode
ser evidenciada comparando-se os quadros referenciais
para a medição do letramento adotados por dois estudos
relativamente recentes: o National Assessment of Educati-
onal Progress (NAEP), um estudo sobre o letramento dos
jovens norte-americanos (Kirsch & Jungeblut, 1990), e o
estudo técnico das Nações Unidas sobre a avaliação de
letramento através de pesquisas domiciliares (NHSCP:
National Housebold Suruey Capability Programme, Uni-
ted Nations, 1989).
o relativamente recente estudo técnico das Nações Unidas sobre a avaliação doletramento através de pesquisas domiciliares (United Nations, 1989) pretendeu auxiliaros países em desenvolvimento com uma minuciosa orientação sobre como planejar,conduzir e executar uma pesquisa de letramento por amostragem domiciliar, tacitamentereconhecendo a inexperíência e pouca fantiliaridade desses países com esse tipo delevantamento. Na verdade, o maior desafio dos países em desenvolvimento ainda estáem planejar, conduzir e executar programas e campanhas nacionais de alfabetizaçãoclirecionaclos à eliminação de altos e persistentes índices de analfabetismo.
108 I LeerameneoEnsaio I 10 1
Ambos os quadros referenciais propõem uma matriz pela exigência a que deve atender qualquer instrumento
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 54/62
de habilidades de leitura e escrita aplicadas a diferentes
tipos de materiais escritos, mas os critérios de seleção
das categorias de habilidades e dos materiais de leitura e
escrita para compor os instrumentos de avaliação são
bastante diferentes.
Em relação às habilidades de leitura e escrita, en-quanto as categorias do NAEP são definidas tendo por
critério os usos dessas habilidades, ou seja, o tipo de
informação que os indivíduos buscam quando leem ou
escrevem, as categorias do NHSCP são definidas segun-
do os processos básicosenvolvidos na leitura e na escrita.
Assim, a matriz do NAEP inclui, como categorias de uso
da leitura e da escrita, conhecimento, avaliação, infor-
mação especifica, interação social e aplicação, enquan-
to a matriz do NHSCP inclui, como tipos de habilidades
de leitura e escrita, decodificação, compreensão, escri-ta e localização de informações.
Da mesma forma, em relação aos materiais de leitura
e escrita, enquanto as categorias do NAEP são definidas
segundo a forma linguistica em que a informação é
apresentada, as categorias do NHSCP referem-se aos do-
mínios em que as habilidades de leitura e escrita são
utilizadas. Assim, a matriz do NAEP inclui as seguintes
categorias de materiais de leitura e escrita: signo/rótulo,
instruções, memorando/carta, formulário, tabela, grá-
fico, prosa, índices/referências, notícia, esquema ou di-
agrama, anúncio e conta/fatura; trabalhando com
critérios diferentes, a matriz do NHSCP inclui não mais
que três tipos de domínios textuais: palauras/frases, prosa
e documentos.
É importante observar que essa falta de congruência en-
tre propostas distintas de fragmentação do letramento em
componentes específicos para fins de avaliação explica-se
de avaliação: a necessidade de selecionar, no universo de
comportamentos que se deseja avaliar e medir, um con-
junto de comportamentos de que as questões do instru-
mento de avaliação devem ser uma amostragem. Como a
definição desse conjunto de comportamentos depende
dos propósitos e do contexto da avaliação, propósitos e
contextos diferentes resultam em procedimentos de amos-tragem diferentes.
Assim, as diferenças entre os dois estudos discutidos
aqui podem ser explicadas pelos seus diferentes propó-
sitos e contextos. O propósito do estudo do NAEP foi
descrever a natureza e a extensão dos problemas de le-
tramento apresentados por jovens adultos de um país
desenvolvido onde o conceito de letramento é basica-
mente, como o próprio estudo declara, o uso pelo indi-
víduo de informações impressas e escritas para inserir-se
na sociedade, para atingir suas metas pessoais e desen-
volver seu conhecimento e potencial CKirsch & Junge-
blut, 1990, p.I-8). Por outro lado, o estudo do NHSCP foi
concebido principalmente para orientar programas e po-
líticas de letramento em países em desenvolvimento onde,
como discutido anteriormente, o letramento ainda é defi-
nido como a capacidade elementar de ler e escrever, e o
letramento funcional ainda não se configurou como uma
categoria distinta.
É necessário apontar ainda uma última questão sobreo uso de pesquisas por amostragem para avaliação de
letramento. A dicotomia básica letrado/iletrado pode, é
óbvio, ser utilizada também nesse tipo de pesquisa; o
estudo técnico das Nações Unidas sobre a avaliação do
letramento, anteriormente mencionado, até mesmo reco-
menda que os países em desenvolvimento façam uso
dessa dicotomia nos levantamentos por amostragem do-
miciliar sobre o letramento (United Nations, 1989, p.89).
11 0 I LetramentoEnsaio 1 m
Entretanto, como esse mesmo estudo das Nações Unidas
observa, essa dicotomia básica pode revelar detalhes in-
Um exemplo mais sofisticado é encontrado no estu-
do de Kirsch & Guthrie (990) sobre níveis de letramen-
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 55/62
suficientes sobre os níveis e habilidades de letramento ,
e a medição direta de habilidades de leitura e escrita
através da utilização de instrumentos de avaliação forne-
ce informações para a construção de categorias mais pre-
cisas do que as que a simples auto-avaliação permite
construir (United Nations, 1989, p.156, 159). Um exem-plo disso é o apresentado nesse estudo mesmo das Na-
ções Unidas, que sugere as seguintes categorias como
uma possível classificação de níveis de letramento a se-
rem avaliados através de pesquisas por amostragem: não
letrado,pouco letrado, letrado mediano e altamente le-
trado (United Nations, 1989, p.159-160; ver também Wag-
ner, 1990, p.122)
As duas classificações seguintes, ambas incluídas em
estudos relativos à medição direta de habilidades e práti-
cas de letramento, são outros exemplos de categorias
mais precisas , superando a dicotomia letrado-iletrado,
difícil de ser mantida: a primeira estabelece níveis de
letramento pelo critério da sobrevivência social per-
mitida por cada nível, e classifica o letramento de so-
brevivência como provável, marginal, questionável,
baixo (Barris, 1970);15a segunda usa o critério da fun-
cionalidade e classifica o indivíduo nas categorias fun-
cionalmente incompetente, marginalmente funcional e
funcionalmente proficiente (Adult Performance Level
Study, 1977).16
to de jovens adultos norte-americanos. As questões de
avaliação das habilidades de leitura e de escrita incluí-
das no instrumento de medida utilizado foram distribuí-
das em três escalas de letramento e organizadas, em
cada escala, segundo níveis de dificuldade, de modo a
tornar possível a avaliação de vários tipos e níveis deproficiência. O objetivo foi construir um perfil dos
indivíduos e não apenas classificá-los , segundo os re-
sultados em cada escala e entre as três escalas. Kirsch &
Guthrie indicam o pressuposto subjacente ao tratamen-
to que dão à avaliação e medição do letramento nos
seguintes termos:
o que é preciso é um tratamento que realmente permita com-
preender os vários tipos e níveis de proficiência em leitura e
escrita atingidos em nossa sociedade. Tal tratamento forneceria
uma representação mais precisa não apenas da natureza com-
plexa das exigências de letramento em uma sociedadepluralística, mas também do status das pessoas que atuam em
nossa sociedade. Cp.III-36)
Naverdade, esse pressuposto está presente, de um modo
geral, nas pesquisas por amostragem sobre o letramento.Propiciando uma abordagem multidimensional do letra-
mento e avaliando habilidades e práticas de leitura e de
escritaatravés de uma medição direta, essas pesquisas podem
fornecer dados mais refinados e confiáveis sobre a exten-
são e natureza do letramento na população do que outros
procedimentos de coleta de dados.
15 HARRIS,L. & Associares (1970). Survival Literacy Study. Washington, DC: National
Reading Counei . Citado por: Newman & Beverstock, 1990, p.65; ver também Kirsch
& Guthrie, 1977-1978, p.496.
16 USOFFICE OF EDUCATION(1977). Final Report: The American Performance Level
Study. Washington, DC: US Office of Education, Department of Health, Education
and Welfare. Citado por: Newman & Beverstock, 1990, p.69-70; ver também Kirsch &
Guthrie, 1977-1978, p.499.
AVALIAÇÃO E MEDiÇÃO DO LETRAMENTO:
EM BUSCA DE SOLUÇÕES
Este estudo, embora pretendendo esclarecer a questão
da avaliação e medição do letramento em suas relações
1121 Letramento •• 113
com a conceituação e definição desse fenômeno, traz, na
verdade, mais problemas que soluções.não tem qualquer suporte empírico, como já demons-
traram várias pesquisas históricas e etnográficas. Como
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 56/62
A discussão feita evidencia que avaliar e medir o
letramento é uma tarefa altamente complexa e difícil:
ela exige uma definição precisa de letramento, indis-
pensável como parârnetro para a avaliação e a medida,
mas qualquer tentativa de resposta a essa exigência
traz sérios problemas epistemológicos. Concluiu-se queo letramento é uma variável contínua e não discreta ou
dicotômica; refere-se a uma multiplicidade de habili-
dades de leitura e de escrita, que devem ser aplicadas
a uma ampla variedade de materiais de leitura e escri-
ta; compreende diferentes práticas que dependem da
natureza, estrutura e aspirações de determinada socie-
dade. Em síntese, o letramento é um fenômeno de
muitos significados (SCRIBNER, 1984, p.9); uma única
definição consensual de letramento é, assim, totalmenteimpossível.
Entretanto, a falta de concordância sobre o que é
letramento - e, portanto, a falta de concordância sobre
o que deve ser avaliado e medido - não elimina a ne-
cessidade ou a importância da avaliação e medição do
letramento, única forma de obter dados sobre esse fenô-
meno, dados que são necessários para fins teóricos e
práticos. Pelo menos três argumentos justificam a ne-
cessidade de definir índices de letramento através deavaliação e medição.
Primeiramente, o índice de letramento de uma socie-
dade ou de um grupo social é um dos indicadores bási-
cos do progresso de um país ou de uma comunidade.
Obviamente, como afirmado anteriormente, não se trata
de propor que o índice de letramento, ele só, represen-
te o nível econômico, social e cultural de um país ou de
uma comunidade; na verdade, o pressuposto subjacente
a essa proposição - o pressuposto de que o letramento
leva ao crescimento econômico e ao progresso social -
afirma Wagner 0990, p.Ll ó), defender uma relação de
causalidade entre letramento e indicadores econômi-
cos, o que ainda é feito com frequência, é extrema-
mente discutível:
Seria igualmente correto afirmar que, ao contrário, os índicesele letramento, assim como os de mortalidade infantil, são con-
sequência do grau de desenvolvimento econômico na maioria
dos países. Quando há progresso social e econômico, desco-
bre-se geralmente que os índices ele Ietrarnento sobem e os de
mortalidade infantil caem. Blaug, que foi um dos defensores
da teoria do capital humano, concluiu, posteriormente, que
nem anos de escolarização nem índices de letramento têm qual-
quer efeito direto no crescimeruo econômico dospaíses em desen-
volvimento. (grifo nosso)
Entretanto, embora se deva reconhecer que o letramen-
to é antes uma variável dependente que independente (Graff,
1987a), ele se associa, sem dúvida alguma, a muitos dos
indicadores de desenvolvimento social e econômico. Cor-
relacionar índices de letramento com indicadores socioe-
conômicos tais como produto interno bruto, índices de
mortalidade infantil, de natalidade, de nutrição, dentre
muitos outros, permite identificar e compreender o status
econômico, social e cultural de um país ou de uma comu-
nidade, evidenciando, por exemplo, que o analfabetismo
e a pobreza andam de mãos dadas, como ocorre nos paí-
ses do Terceiro Mundo.
Uma segunda justificativa para a necessidade de de-
terminar índices de letramento através de avaliação e
medição está intimamente ligada à primeira. Os índi-
ces de letramento são extremamente úteis para fins de
comparação entre países ou entre comunidades, res-
pondendo, assim, a uma importante preocupação na-
cional e internacional com o cotejo de dados econômicos
e sociais.
1 1 4 1 LetrarnentoEmaio 1 1 1 5
Por um lado, os índices de letramento podem ser utili-
zados para avaliar e interpretar mudanças nos níveis dea formulação de políticas quanto para o planejamento, a
implementação e o controle de programas, não apenas
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 57/62
letramento/analfabetismo através dos tempos, com base
nos dados de uma série cronológica de levantamentos.
A possibilidade de tais comparações históricas é funda-
mental, não apenas para a pesquisa histórica, mas tam-
bém para estudar e compreender o letramento no presente
e avaliar sua difusão ao longo do tempo. Como observaGraff C1987a, p.32):
programas de letramento, mas também programas de bem-
estar social, em geral. Segundo o estudo técnico sobre a
avaliação do letramento feito pelas Nações Unidas (UNITED
NATIONS,989, p.8):
. o estudo adequado da experiência histórica de letramento
não responde apenas a um interesse pelo passado; ele traz
muitos dados relevantes para a análise e a definição de políti-
cas no mundo em que vivemos hoje.
Medir o nível de letramento na população do país é um passopara a avaliação da eficácia dos programas em desenvolvimen-
to e para a obtenção de dados precisos necessários à formula-
ção de programas futuros nos campos educacional e social.
Por exemplo, projetos de assistência médica básica não podem
deixar de considerar o grau de letramento da população-alvo.
É claro que medidas da extensão e distribuição da
leitura e da escrita, de que resultam dados quantitativos
sobre a difusão do letramento através dos tempos, não
são a única nem a principal fonte para o estudo adequa-
do da experiência histórica de letramento , mas certa-
mente contribuem com algumas evidências significativase sistemáticas.
Por outro lado, índices de Ietramento são utilizados
para comparações em um determinado momento do tem-
po histórico, fornecendo dados para que se identifique a
distribuição das habilidades e práticas de leitura e de
escrita por regiões geográficas ou econômicas do mundo
ou de um certo país. Os índices de letramento são, as-
sim, úteis para revelar tendências e perspectivas em nível
nacional e internacional, para confrontar a magnitude doanalfabetismo em diferentes países ou regiões, para com-
parar populações ou grupos, evidenciando disparidades
na aquisição do letramento determinadas por fatores tais
como idade, sexo, etnia, residência urbana ou rural, ete.
Finalmente, uma terceira justificativa para a necessi-
dade de avaliação e medição do letramento é o fato de
que índices de letramento são imprescindíveis tanto para
As considerações acima conduzem a um paradoxo: de
um lado, a importância e necessidade da avaliação e me-
dição do letramento, para fins teóricos e práticos; de outro
lado, a impossibilidade de atender ao pré-requisito para a
sua avaliação e medição, ou seja, a formulação de uma
definição precisa que possa ser usada como parâmetro.Como enfrentar esse paradoxo?
De início, é preciso reafirmar e enfatizar que o letra-
mento não pode ser avaliado e medido de forma abso-
luta. Como não é possível descobrir uma definição
indiscutível e inequívoca de letramento, ou a melhor
forma de defini-lo, qualquer avaliação ou medição des-
se fenômeno será relativa, dependendo de o quê (quais
habilidades de leitura e/ou escrita e/ou práticas sociais
de letramento) estiver sendo avaliado e medido, por quê
(para quais fins ou propósitos), quando (em que mo-
mento) e onde (em que contexto socioeconômico e cul-
tural) se está avaliando ou medindo, e como (de acordo
com quais critérios) é feita a avaliação ou a medição.
Assim, o que é possível e necessário para realizar qual-
quer avaliação ou medição do letramento é formular uma
definição ad hoc desse fenômeno a ser avaliado ou medido
e, a partir daí, construir um quadro preciso de interpretação
1 1 6 \ LetramentoEnsaio1 1 1 7
dos dados em função dos fins específicos em um deter-
minado contexto. Uma definição comum e universal não
da educação formal básica é que determina fundamental-
mente a quantidade e a natureza das habilidades e práti-
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 58/62
é possível, mas uma definição deliberadamente opera-
cional, ainda que arbitrária, tanto é possível quanto é
extremamente necessária para atender aos requisitos prá-
ticos de procedimentos de avaliação e medição. Desse
modo, haverá tantas estratégias operacionais para a me-
dição do letramento quantos programas para sua avalia-ção e medição. Em outras palavras, o reconhecimento
dos múltiplos significados de letramento conduz a uma
diversidade de definições operacionais, cada uma res-
pondendo aos requisitos de um determinado programa
de avaliação ou medição.
Assim, a questão crucial, em processos de avaliação
ou medição do letramento, é determinar de modo claro a
definição operacional em que esses processos deverão
basear-se e construir instrumentos para a coleta de infor-
mações em função dessa definição.
Em contextos escolares, esse procedimento é facilitado
pelo fato de que, como observado anteriormente, as esco-
las podem avaliar e medir habilidades e competências em
pontos diferentes do contínuo que é o letramento, e em
diversos momentos durante o processo de escolarização.
Desse modo, as escolas podem trabalhar com várias e
diferentes definições operacionais de letramento, cada
uma sendo utilizada para a avaliação ou a medição de
determinadas habilidades e práticas em estágios específi-
cos do processo de escolarização. O problema, aqui, éou o de evitar que o letramento seja definido de modo
vago e medido com critérios diferentes em cada escola,
sistema de ensino ou região, como em geral ocorre nos
países em desenvolvimento, ou o de reduzir o letramento
a um conceito escolarizado, distanciado das exigências
de letramento externas à escola, como ocorre frequente-
mente nos países desenvolvidos. Na verdade, a estrutura
cas de letramento que podem ser adquiridas; sendo assim,
a discussão de definições operacionais de letramento para
fins de sua avaliação e medição, em contextos escolares,
pressupõe a discussão da natureza e qualidade da esco-
larização fundamental para todos.
Enquanto que em contextos escolares é possível ava-liar o letramento repetidas vezes e progressivamente e,
portanto, é possível atribuir-lhe várias e diferentes defi-
nições operacionais, um levantamento censitário nacio-
nal, realizando-se através de uma única situação de
avaliação e de um único instrumento de avaliação, tem
de necessariamente basear-se em uma única definição
de letramento.
Quando o critério é a conclusão de determinada sé-
rie, a definição de letramento bem como sua avaliação e
medição são transferidos, de certa forma, para o siste-ma escolar e, assim, dependem do uso ou mau uso, em
contextos escolares, de definições operacionais de le-
tramento e dos instrumentos de avaliação e medição
decorrentes delas. Desse modo, é indispensável que, ao
utilizar-se o critério de conclusão de série, esse seja
relacionado com a estrutura e qualidade da educação
fundamental formal.
Quando dados para um censo são coletados através
de autoavaliação, uma definição operacional e sua tradu-
ção em uma ou duas perguntas tornam-se questões cru-ciais. Como discutido anteriormente, um sério obstáculo
à confiabilidade de informações sobre o letramento, quan-
do obtidas através de autoavaliação do próprio infor-
mante, é a aplicação inadequada da definição segundo a
qual as perguntas deveriam ser propostas. Como essa
definição não é, em geral, operacionalmente formulada,
as perguntas são vagas e imprecisas, gerando respostas
1 1 8 1 LetramentoEnsaio1 1 1 9
dúbias e pouco confiáveis. Assim, os cuidados básicos
com o uso de autoavaliação para fins de avaliação e
importante; na verdade, a questão fundamental é a inter-
pretação desses dados.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 59/62
medição do letramento, em levantamentos censitários na-
cionais, devem ser, em primeiro lugar, e sobretudo, a
formulação de uma definição operacional adequada que
expresse o que se considere um nível de habilidades e
práticas de leitura e escrita desejável, em um determina-
do país; em segundo lugar, a tradução dessa definiçãoem perguntas precisas e inequívocas; e, em terceiro lu-
gar, a compreensão e aplicação corretas dessas pergun-
tas pelos recenseadores.
A vantagem, em relação aos levantamentos por censos
nacionais, de levantamentos sobre o letramento por amos-
tragem domiciliar é que podem ser utilizadas várias defini-
ções de letramento, em vez de uma única, podendo-se
abranger, dessa forma, diferentes conjuntos de habilidades
e de práticas de leitura e de escrita. Sendo assim, tipos
diferentes de instrumentos de avaliação e medição podem
ser construídos, permitindo distinções mais claras e dife-
renciações mais refinadas de níveis de letramento. Aques-
tão principal, aqui, é a formulação de um conjunto adequado
de definições operacionais, considerando-se o que real-
mente deve ser levado em conta como letramento em dado
contexto, a seleção, a partir daí, de uma amostra adequada
de habilidades e práticas sociais desejadas, e a construção
de instrumentos para avaliar corretamente essas habilida-
des e práticas.
Essas considerações enfatizam a possibilidade e a
necessidade de formulação de definições operacionais
de letramento, construídas deliberadamente para respon-
der às exigências de um determinado processo de avalia-
ção e medição confiáveis de letramento, e indicam tanto
os maiores problemas inerentes a essa tarefa quanto algu-
mas precauções para a sua realização. Mas a obtenção
de dados confiáveis sobre o letramento não é a única questão
Conforme foi discutido nas seções anteriores, os crité-
rios comumente utilizados para avaliar e medir o letra-
mento apresentam deficiências e/ou estão muitas vezes
baseados em suposições equivocadas; como essas defi-
ciências e suposições são, de certa forma, inevitáveis, a
interpretação de dados sobre o letramento deve semprelevá-Ias em conta.
Além disso, como o conceito de letramento varia de
acordo com o contexto social, cultural e político, a interpre-
tação adequada de dados sobre letramento requer o conhe-
cimento das definições com base nas quais foi avaliado e
medido, e das técnicas de coleta de dados utilizadas.
Uma outra consideração é que dados sobre letramento
devem ser relacionados com as características do contex-
to, para que sejam adequadamente interpretados: ao ava-
liar, comparar ou confrontar dados em nível nacional ou
internacional, é fundamental analisá-los associando-os a
indicadores demográficos, socioeconômicos, culturais e
políticos. Fazendo uso de uma expressão criada por Wag-
ner (1990, p.132), dados sobre letramento devem ser in-
terpretados no quadro de uma análise da ecologia do
letramento .
Finalmente, como a estrutura da educação formal e a
natureza e qualidade da escolarização primária influenciam
enormemente o conceito de letramento, seu valor social,
seus usos e funções, bem como sua avaliação e medição, a
interpretação de dados sobre letramento deve sempre levar
em conta as características do sistema escolar.
Em síntese, o conjunto de problemas envolvidos na
definição, avaliação e medição do letramento, discutidos
neste estudo, equipara-se a um conjunto correspondente
de problemas associados à interpretação dos dados cole-
tados. O ponto principal, aqui, é que enfrentar ambos
120 / Letramento
esses conjuntos de problemas não é apenas uma questão
conceitual, mas também uma questão ideológica e políti-
Ensaio/121
Pode-se concluir afirmando que a análise conceitual de
letramento e de sua avaliação e medição, desenvolvida nes-
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 60/62
ca. Este estudo enfatizou, até aqui, a faceta conceitual da
avaliação e medição do letramento, nos seus aspectos teó-
ricos e práticos - foi esse o seu objetivo central. Entretan-
to, é preciso concluir, acrescentando e enfatizando a sua
polêmica faceta ideológico-política.
O letramento é, sem dúvida alguma, pelo menos nasmodernas sociedades industrializadas, um direito humano
absoluto, independentemente das condições econômicas e
sociais em que um dado grupo humano esteja inserido;
dados sobre letramento representam, assim, o grau em
que esse direito está distribuído entre a população e foi
efetivamente alcançado por ela.
Entretanto, o que o letramento é , e, consequentemente,
o significado de dados sobre o letramento, isto é, dados
sobre a distribuição e a conquista efetiva do direito ao
letramento, são questões relativas, como este estudo pre-tendeu demonstrar.
Algumas indagações devem, pois, ser propostas à re-
flexão. Se letramento não pode ter uma definição absolu-
ta e universal, será que o direito humano ao letramento
deve ter significados diferentes em sociedades diferentes?
Será que a avaliação e medição do letramento e a inter-
pretação dos dados coletados deveriam ser condiciona-
das às condições de uma determinada sociedade? Se a
resposta a essas perguntas for sim , será que um con-
ceito empobrecido de letramento, processos pouco so-
fisticados para sua avaliação e medição, e uma
interpretação benevolente dos dados coleta dos não se-
riam mais um fator de manutenção das desigualdades
entre países desenvolvidos, subdesenvolvidos e em de-senvolvimento?
Não há respostas técnicas para essas indagações; elas
se inserem no campo das normas e dos valores.
te estudo, pretende servir como um quadro referencial para
as tarefas essencialmente ideológicas e políticas de formu-
lação de políticas de alfabetização e letramento e de pro-
gramas de desenvolvimento do letramento.
REFERÊNCIAS
AKINNASO, F. N. The consequences of literacy ín pragmatic and theo-ret ica l perspectives. Antbropology and Education Quarterly, v. 12,n. 3, 1981. p.163-200.
ALBSU. Literacy,Numeracy and Adults. Evidence from the National Cbild
Deoelopment Study. London: Adult Llteracy & Basic Skills Unir, 1987.
BHOLA, H. S. Eualuating Functional Literacy. Amershan: Hulton Edu-cational Publications; Tehran: International Institute for Adult Li-
teracy Methods, 1979.BORMUTH, ]. R. Reading literacy: its definition and assessrnent. Rea-
ding Researcb Quarterly, v. 9, n. 1, p.7-66, 1973.
CERVERO, R.M. Is a common definition of adult literacy possible? Adult
Education Quarterly, v. 36, n. 1, p.50-54, 1985.
CHARNLEY, A.H., ]ONES, H.A. The Concept of Success in Adult Literacy.
London: ALBSU, 1979.
CHARTIER, A.M., HÉBRARD, ]. Discou.rs sur ta lecture 1880-1980).
Paris: Centre Georges Pompidou, 1989. (Tradução para o portu-guês em dois volumes: CHARTIER, A.M., HÉBRARD,]. Discursos
sobre a leitura 1880-1980). São Paulo: Ática, 1995; FRAISSE, E.,
POMPOUGNAC, ].c., POULAIN, M. Representações e imagens daleitura. São Paulo: Ãtica, 1997.
CHARTIER, R. CEd.). Pratiques de Ia lecture. Paris: Rivages, 1985.C2.ed.ampliaela: Paris: Payot & Rivages, 1993. Tradução para oportuguês: Práticas ele leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.)
COOK-GUMPERZ, J . Literacy anel schooling: an unchanging equation?In: COOK-GUMPERZ,]. CEd.). The Social Construction of Literacy.
Cambriclge: Cambridge University Press, 1986. p. 16-44. (Traduçãopara o português: A construção social ela alfabetização. Porto Ale-gre: Artes Médicas, 1991.)
12 2 ILetramento
CASTELL, s.e. de, LUKE A., MacLENNAN, D. On defining literacy. In:
CASTELL, s.e. de, LUKE, A., EGAN, K. (Eds.). Literacy, Society and
Schooling. Cambridge bridge Universit ress, 1986. p.3-14.
Ensai o I 12 3
KIRSCH, L, GUTHRIE, ).T. The concept and measurement of functio-
nal literacy. Reading Researcb QUa11erly, v. 13, n. 4, 1977-1978.
p.485-507.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 61/62
FINNEGAN, R. Literacy and Orality. Oxford: Basil B1ackwell, 1988.
FURET, F., OZOUF, ). Lire et écrire: l alphabétisation des français de
Calvin à [ules Ferry. Paris: Minuit, 1977.
FREIRE, P. Pedagogía del oprimido. Montevidéu: Tierra Nueva, 1967.
(Tradução para o português: Pedagogia do oprimido. Rio de ]a-neiro: Paz e Terra, 1974.)
FREIRE, P. The adult Iiteracy process as cultural action for freedom.
Haruard Educational Review, v. 40, n. 2, 1970a. p.205-225.
FREIRE, P. Cultural action and conscientization. Haruard Educational
Review, v. 40, n. 3, 1970b. p.452-477.
FREIRE,P. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Temi, 1976.
GOODY, ). CEd.). Literacy in Traditional Societies, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1968.
GOODY,). Tbe lnterface betuieen tbe Written and the Oral. Cambridge:
Cambridge University Press, 1987.
GRAFF, H.J. Tbe Labyrintbs of Lüeracy. London: The Falmer Press, 1987a.
(Tradução para o português: Os labirintos da alfabetização. PortoAlegre: Artes Médicas, 1994.)
GRAFF, H.). Tbe Legacies of Literacy. Bloomington: Indiana University
Press, 1987b.
GRAY, W.S. Tbe Teacbing ofReading and Writing. Paris: Unesco, 1956.
HARMAN, D. Illiteracy: An Overview. Haruard Educational Review, v. 40,
n. 2, 1970. p.226-243.
HEATH, S.B. Ways with Words. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.H1LLERICH, R.L. Toward an Assessable Definition of Literacy. In: CHA-
PMAN, L.] ., CZERNIEWSKA, P. CEds.). Reading: from Process to
Practice. London and Henley: Routledge & Kegan Paul in assoei-
ation wíth The Open University, 1978. p.29-38.
IBGE. Manual do Recenseador para o X Recenseamento Geral do Brasil-
1991. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Estatística, 1991.
]ONES, P.W. International Policies for Tbird World Education. Unesco,
Literacy and Deuelopment. London: Routledge, 1988.
KIRSCH, l .S., ]UNGEBLUT, A. Iiteracy: Profiles of America s Young Adults.Final Report of the National Assessment for Educational Progresso
Princeton, N.J.: Educational Testing Service, 1990.
LANKSHEAR, e. Literacy, Scbooling and Reuoluuon. New York: The
Falmer Press, 1987.
LEVINE, K. Functional Iiteracy: fond illusions and false economies.Harvard Educaiional Reuieio, v. 52, n. 3, 1982. p.249-266.
LEVINE, K. Tbe Social Context of Literacy. London: Routledge & Kegan
Paul, 1986.
McGILL-FRANZEN, A., ALLlNGTON, R.L. Every child's right: Iiteracy.
Tbe Reading Teacber, v. 45, n. 2 , 1991. p.86-90.
NEWMAN, A.P., BEVERSTOCK, C. Adult Literacy: Contexts & Challenges.
Newark, DE and Bloomington, IN: Intemational Reading Associationand ERrC, Clearing House on Reading and Communication Skills, 1990.
O'NEIL, W. Properly literate. Haruard Educational Review, v. 40, n. 2,
1970. p.260-263.
OXENHAM, ]. Literacy. Writing, Reading and Social Organization.
London: Routledge & Kegan Paul, 1980.
RESNICK, D.P., RESNICK, 1.B. The nature of Iiteracy: an historicalexploration. Harvard Educational Review, v. 47, n, 3, 1977.
p.370-385.
ROCA, M.S. El analfabetismo en América Latina: reflexiones sobre los
becbos, losproblemas y Ias perspectivas. Paris: Unesco, 1989.
SCHIEFFELlN, B.B., GILMORE, P. (Eds.). Tbe Acquisition of Literacy:
Etbnographic Perspectiues. Norwood, N.).: Ablex, 1986.
SCHOFlELD, R.S. The measurement of literacy in pre-industrial En-gland. In: GOODY,]. CEd.). Literacy in Traditional Societies. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1968. p.311-325.
SCRIBNER, S. Literacy in three metaphors. Arnerican journal of Educa-
tion, v. 93, n. 1, 1984. p.6-2l.
SCRIBNER, S., COLE, M. Tbe Psychology of Literacy. Cambridge: Har-
vard University Press, 1981.
SIMMONS, ]. Retention of cognitive skills acquired im primary school.
Comparatioe Educa/íon Review, v. 20, n. 1, 1976. p.79-93.
1 2 4 1 Letramento
SMITH, F. Psycholinguistics and Reading. London: Holt, Rinehart &
Winston, 1973.
7/22/2019 45048824 SOARES M Letramento Um Tema Em Tres Generos
http://slidepdf.com/reader/full/45048824-soares-m-letramento-um-tema-em-tres-generos 62/62
STREET, BV Lüeracy in Tbeory and Practice. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1984.
UNESCO. World llliteracy at Mid-century. a Statistical Study. Monogra-phs on Fundamental Education 11. Paris: Unesco, 1957.
UNESCO. Recommendation concerning theIruernational Standardiza-
tion of Educational Statistics. Paris: Unesco, 1958.UNESCO. Revised Recommendation concerning the International Stan-
dardization of Educational Statistics. Paris: Unesco, 1975a.
UNESCO. Literacy in the world: shortcorníngs, achievements and ten-dencies. ln: CHAPMAN, L.J., CZERNIEWSKA, P. (Eds.). Reading.
from Process to Practice. London and Henley: Routledge & KeganPaul in association with The Open Uníversíty, 1978b. p.6-28.
UNESCO. Compendium of Statistics 017 Jlliteracy - 1990 Edition. Paris:Unesco, 1990.
UNESCO. World Education Report- 1991. Paris: Unesco, 1991.
UNITED NATIONS. National Housebold Survey Capability Programme.Measuring Literacy tbrougb Housebold Surue ys . New York: UnitedNations, Department of Technical Cooperation for Development,Statistical Office, 1989.
WAGNER, DA Ethno-graphies: an introduction. lnternationaljournal
of tbe Sociology of Language, v. 42, 1983. p.5-8.
WAGNER, D.A. Studying literacy im Morocco. In: SCHIEFFELIN, B.B.,GILMORE, P. (Eds.). 17JeAcquisition qf Literacy: Ethnographic Pers-
pectiues. Norwood, N]: Ablex, 1986.
WAGNER, D.A. Literacy assessment in the Third World: an overviewand proposed schema for survey use. Comparative Bducation
Review, v. 34, n. 1, 1990. p.112-138.WAGNER, D.A. Functional literacy in Moroccan school children. Rea-
ding Researcb Quarterly, v. 26, 11. 2, 1991. p.178-19S.
WAGNER, DA, SPRATT, ].E., KLEIN, G.D., EZZAKI, A. The myth ofliteracy relapse. literacy retention among fifth-grade Moroccan
schoolleavers. Internationalfournal of Educational Deuelopment.
v. 9, 1989. p.307-315.