4.2 o crioulo cabo-verdiano

192
A vida em Cabo Verde decorre em Crioulo Uma pesquisa sobre o crioulo cabo-verdiano e suas funções

Upload: nguyenduong

Post on 14-Feb-2017

238 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

A vida em Cabo Verde decorre em CriouloUma pesquisa sobre o crioulo cabo-verdiano e suas funções

Page 2: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Tese de licenciatura Ivone Maria Ramos (9180192)

Departamento de Estudos PortuguesesUniversidade de Utreque

Doutora Marian Schoenmakers-Klein GunnewiekProfessor Doutor Paulo de Medeiros

Agosto de 2008

Page 3: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

A vida em Cabo Verde decorre em CriouloUma pesquisa sobre o crioulo cabo-verdiano e suas funções

Ivone Maria Ramos

Page 4: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Mapa de Cabo Verde (www.volkskrantblog.nl/bericht ) consultado em 28/9/ 2008

Page 5: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

5

Page 6: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Shackle a people, strip them bare, cover their mouths: they are still free.Deprive them of work, their passports, food and sleep: they are still rich.A people are [sic] poor and enslaved when they are robbed of the language inherited from their parents: it is lost for ever.(Ignazio Buttitta 1972, citado por Baker: 2006: 46)

PRESENTAÇÔM APRESENTAÇÃO

_ Bôcês dóme licença. Um bem li pagá _ Dêem-me licença. Vim cá pagarUm dívida d’ sôdáde e d‘ amor. Uma dívida de saudade e de amor.E cma sôdáde e amôr ê amigue d’ cantiga, E como a saudade e o amor são amigos da cantigaBôcês longáme um violão: um crê cantá! Passem-me um violão: quero cantar!

Sim, cantá. Nêsse toada d’ nóssa: Sim, cantar. Nesse toada nossa:Ora triste, ora contente… Ora triste, ora alegre…Consôante coraçôm mandá!... Consoante o coração mandar!...

Quem mi ê? Um fidje de Sanvcênte. Quem eu sou? Um filho de San [sic] Vicente. Nascide, crióde, lá na ponta d’ Praia. Nascido, criado, lá na Ponta da Praia.Lá ondê que mar tâ sparajá debôxe de bôte, Lá onde o mar se espreguiça debaixo dos botes,Moda barra dum saia. Como a barra duma saia.

Cs’ ê que m’ crê? Cantá nha terra! O que eu quero? Cantar a minha terra!Companhal na sê dôr; Acompanhá-la na sua dor;na nôbréza d’ sê alma; na nobreza da sua alma;na pobréza d’ sê vida! na pobreza da sua vida!

Dzêl na hóra d’ spedida: Dizer-lhe na hora da despedida:<<Alí nha côrpe: strumá bô tchôm! <<Eis o meu corpo: estruma o teu chão!Alí nha sangue: regá bô midje! Eis o meu sangue: rega o teu milho!Armôm: alí bô armôm! Irmão: eis o teu irmão!Mãe: alí bô fidje!...>> Mãe: eis o teu filho!...>>

Poema de Sérgio Frusoni (Lima 1992: 152-153)

Prefácio

Qua ndo come ce i a pens a r na t e se da l i c enc i a tu r a nã o sa b i a qua l se r i a o

Page 7: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

t em a , s ó t i nha uma ide i a va ga . Que r i a f a ze r uma t e s e s ob re Cabo V erde ,

mas a i nda não s ab i a exac t ame n te s ob re o quê . F ina lme n te , dec id i

t r aba lha r s ob re a l í ngua c abo -ve rd i a na , o c r iou l o , e a l í ngua po r t uguesa

em Ca bo Ve rde . As s im , de po i s de t e r consu l t ado vá r io s l i v ro s e de “ t e r

dado a l gumas quedas ” , c hegue i a p r epa ra r e s t e t r aba lho .

A e sc o lha do t ema t em a ve r , não s ó com o f a c to de e u se r c abo -

ve rd i a na e de t e r a s r a í z e s em Cabo V erde , mas t am bém c om o am or que

t enho pe l a m inha l í ngua ma te rna , a l í ngua que eu ap re nd i an t e s de sa i r

de Cabo V erde , a n t e s de s egu i r o c ami nho pa ra o e s t r a nge i ro , onde fu i

conhec e r ou t r a s cu l tu r a s e ap re nd i a f a l a r ou t r a s l í nguas . M esm o depo i s

de 34 anos na H o landa não me e sque c i da l í ngua c r iou l a e de f a l a r e s t a

l í ngua que eu ap re nd i de s de o be r ç o . S i n to -me o rgu lhos a de s e r c a bo -

ve rd i a na e de s abe r f a l a r um a l í ngua t ão bon i t a , t ão co l o r ida com o a

noss a l í ngua c r iou l a . S ão , e n t r e ou t r a s co i s a s , e s t e s f ac t o r e s que

de t e rmina ram a e sc o lha do t e ma pa ra e s t a t e s e .

Es t a t e s e fo i o m eu se gundo g rande t r aba lho a cadém ico , o p r i me i ro fo i

pa r a o m eu e s t ág i o em Ro t t e rdam numa s ec ção da c âmara mun ic ipa l

du ran t e o s m eus e s t udos na Fa cu lda de de Le t r a s em U t r e ch t . N ão fo i

f ác i l , t i ve mu i t a d i f i cu lda de em a cha r o ca minho m as f i na l men te

chegue i onde que r i a chega r , i s t o é , e sc r e ve r a t e se e com i s so f i na l i z a r

o meu c u r so .

Dura n te a minha e s t ad i a de t r ê s s ema nas e m Cabo V erde no a no de

2004 , ap rove i t e i pa r a f a l a r com vá r i a s pe s s oas , v i s i t a r a b ib l i o t eca e

f aze r en t r ev i s t a s a a lguns a l unos do l i c e u Jo rge Ba rbosa em S ão

Vi cen t e , a um p ro fe ss o r e a um func ioná r io da r á d io . O v i z inho dos

meus pa i s e m Cabo V erde é p ro fe ss o r no l i c eu J o rge Ba rbos a e d i s pôs -

se a ap re s en t a r -me a a lguns a l unos . O s a lunos fo r am m u i to s im pá t i cos e

Page 8: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

co lobo ra r am com mui t o en tu s i a sm o nas en t r ev i s t a s , depo i s de eu t e r

exp l i cado a s ua r a zão . Toda s a s e n t r ev i s t a s f o r a m f e i t a s em M inde lo , na

i l ha de S ão V icen t e . Ta mbém en t r ev i s t e i o e mba ixa do r de Cabo V erde

na H o landa , o senho r J ú l i o da S ousa Lopes . N ão fo i d i f í c i l encon t r a r

pe s soa s d i spos t a s a c o lobo ra r e a t r ans c r i ção da c a s se t e com as

g r avaç ões da s e n t r ev i s t a s f o i ma i s f á c i l do que eu pens ava .

Ve jo e s t a t e s e com o o f ru to de am iza de man i f e s t ada po r t odas a s

pe s soa s que me a j uda ram du ran t e o t r aba l ho , a sa be r , am igos e pa r en t e s .

Aos bem ama dos que r i a exp r i mi r a minha p ro funda g r a t i dão , em

pa r t i cu l a r ao meu pa i e à m inha m ãe que s em pre me compree nde ram,

se mpre m e de ram co ragem e ca r inho . Es pe ro que c om es t a t e s e t e nha

r e t r i bu ído a l guns dos g r andes f avo re s que me t ê m f e i t o , apes a r de e s t a r

cons c i e n t e da pe quena con t r ibu i ç ão que a t e s e dá nes s e a s pec t o .

Gos t a r i a de ag radec e r a t oda s a s pe s s oas que me a juda ra m, s e rv indo de

i n fo rma n te s . Q ue ro t am bém a g radece r ao emba ixado r de Cabo Ve rde em

Ha ia , o s enho r J ú l i o da S ousa L opes , pe l a documen t ação

d i s pon ib i l i z a da . A pesa r da s ua v ida ba s t an t e ocupada , de u -me ma i s de

uma ho ra pa r a a e n t r ev i s t a , con ta ndo -me m u i t a s co i sa s ú t e i s r e l a t i va s à

s i t uaç ão l i ngu í s t i c a em Ca bo Verde e r e l a t i va s a os s eus p róp r io s f i l hos .

Gos t e i de c onve r sa r com e l e e e s t ou mu i t o g r a t a pe lo t e mpo que

inves t i u .

F ina lm en te que ro ag rade ce r à dou t o ra Ce l e s t e A ugus t o , com que m

come ce i a t r aba lha r ne s t a t e s e , e a o p ro fe s so r dou t o r Pa u lo de M ede i ro s

e à dou t o ra M ar i an S choe nmake r s . Es pec i a l men te à M ar i an

S choenma ke r s pe l a s conve r sa s i n t e r e s s an t e s que t i vem os du ra n t e o s

encon t ro s .

Page 9: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Ín d ic e

1 . I n t roduçã o .........................................................................................................................81 .1 Breve de sc r i ção de Cabo Ve rde .......................................................................81 .2 Breve h i s t ó r i a do A rqu ipé l ago a t é a i nde pendênc i a em 1975 ............91 .3 Re l i g i ão .....................................................................................................................111 .4 A po l í t i c a de po i s de 1975 .................................................................................121 .5 A e mig ra ção Cabo-ve rd i ana .............................................................................131 .6 As pec to s da cu l t u r a ca bo -ve rd i ana ...............................................................15

2 . Qua d ro Téo r i co .............................................................................................................182 .1 B i l i ngu i s mo .............................................................................................................182 .2 Di g lo s s i a ...................................................................................................................262 .3 Que s t ões e H ipó te s e s da pe squ i sa .................................................................292 .4 De f in i ç ões de ou t ro s t e rm os u s ados nes t a t e s e .......................................302.5 P ergun ta ba se e pe rgun ta s e spec í f i c a s ......................................................33

3 . Mé todo de pe squ i sa ....................................................................................................343 .1 Aná l i s e do c r iou lo ca bo -ve rd i a no : s eu e s t a t u to , s ua h i s tó r i a e s uas funções ...............................................................................................................................343 .2 O c o rpus pa r a aná l i s e .........................................................................................343 .3 Os in fo rm an te s .......................................................................................................35

4 . Aná l i s e de e s t udos l i ngu í s t i co s sob re o c r iou l o cabo -ve rd i ano ............374 .1 Al guns c once i to s em r e l ação a l í ngua s c r iou l a s ....................................37

4 .1 .1 L íngua e d i a l ec t o ..........................................................................................374 .1 .2 Ads t r a to , s ubs t r a to e supe r s t r a to ..........................................................394 .1 .3 P idg in .................................................................................................................404 .1 .4 Cr iou lo ...............................................................................................................414 .1 .5 L íngua s c r iou l a s e a e s c r i t a .....................................................................434 .1 .6 Es ta t u to e i den t i dade ..................................................................................44

4 .2 O c r iou lo c abo -ve rd i a no ....................................................................................454 .2 .1 O c r iou lo de Cabo V erde : d i a l e c to ou l í ngua ..................................454 .2 .2 A gé nes e do c r iou l o cabo -ve rd i ano ......................................................474 .2 .3 S upe r s t r a to e subs t r a to do c r iou l o cabo -ve rd i ano .........................494 .2 .4 A e s t ru tu r a do c r iou lo ca bo -ve rd i a no .................................................504 .2 .5 O e s t a tu t o do c r iou l o cabo -ve rd i ano ...................................................514 .2 .6 O c r iou lo c abo -ve rd i a no e a e s c r i t a .....................................................534 .2 .7 O c r iou lo c abo -ve rd i a no , sua funç ão e a i den t i dade c abo -ve rd i a na .........................................................................................................................58

4 .3 O c r iou lo c abo -ve rd i a no no ens ino em Cabo Ve rde .............................614 .3 .1 O pa pe l da e sc o l a do c o lon iza do r em Ca bo Verde ........................614 .3 .2 A s i t uaçã o ac tua l do ens ino em Cabo V erde ....................................64

4 .3 .2 .1 A p rob l emá t i c a da u t i l i z ação do c r iou lo c abo -ve rd i a no .....664 .3 .2 .2 A i n t eg ra ção do c r i ou lo ca bo -ve rd i ano c omo l í ngua de i n s t ruçã o na e s co l a ...............................................................................................68

Page 10: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

4 .3 .3 Argum en tos p ro e c on t r a o c r i ou lo ca bo -ve rd i ano c omo me io de i n s t ruç ão no ens ino ca bo -ve rd i ano .............................................................724 .3 .4 Argum en tos p ro e c on t r a p rog ram as de ens ino b i l í ngue e m Cabo V erde ..................................................................................................................74

4 .4 Conc lu s ão da aná l i se dos e s t udos l i ngu í s t i co s s ob re o c r iou lo cabo -ve rd i ano .................................................................................................................78

5 . Aná l i s e do c o rpus l i ngu í s t i co ...............................................................................795 .1 A t r ans c r i ç ão do ma t e r i a l s ono ro ..................................................................795 .2 Aná l i s e da s en t r ev i s t a s ......................................................................................805 .3 Aná l i s e de a lguns poema s de Sé rg io F ruson i ..........................................855 .4 Conc lu s ão da aná l i se do co rpus l i ngu í s t i co .............................................88

6 . Conc lus ão .......................................................................................................................906 .1 S ín t e s e e conc lu s ões da pe squ i sa ..................................................................906 .2 L im i t a ções da p r e s en t e pe s qu i s a e s uges tões pa r a pe s qu i s a fu tu r a...............................................................................................................................................95

B ib l i og ra f i a .........................................................................................................................97AN EX O S.............................................................................................................................102

Ane xo I : I n fo rma n te s ................................................................................................103Ane xo I I : Q ues t ioná r io que s e rv iu pa r a a en t r ev i s t a com o emba ixado r de Ca bo Ve rde em H a i a . .................................................................105Ane xo I I I : en t r ev i s t a c om o in fo rm an te A ......................................................107Ane xo IV: En t r e v i s t a com o in fo rma n te B ......................................................112Ane xo V: En t r e v i s t a com o in fo rma n te C ........................................................115Ane xo VI : D i á logo de t r ê s a lunos do ens ino s ecundá r io ( l i c eu J o rge Ba rbos a ) ..........................................................................................................................117Ane xo VI I : En t r e v i s t a com o in fo rma n te G ....................................................121Ane xo VI I I : PA D IAN TE É Q U’ É CAM IM ...................................................126Ane xo IX: DIA N TE D E M A R DE SA N VICE NT E ........................................127

Page 11: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

1 . In trod u ção

Ne s t a t e se , t enc i ono f aze r um a aná l i s e da r e l açã o en t r e a l í ngua cabo -

ve rd i a na , o c r iou l o , e a l í ngua po r t uguesa em Ca bo Verde . O ob j ec t ivo é

ca r a c t e r i za r a r e l aç ão que ex i s t e en t r e o u so do c r iou lo e do po r tuguês .

P a r a e s t e e f e i t o dec i d i en t r e v i s t a r pe ss oas e g r ava r conve r s a s i n fo rma i s

em c r iou lo , a l ém de cons u l t a r ob ra s que abo rdam a s i t uaç ão l i ngu í s t i c a

em Ca bo Ve rde e que t r a t am p rob lem as r e l ac ionados com o emprego do

c r iou l o na s oc i eda de cabo -ve rd i ana . Ana l i s o t am bém a lguns poemas

e s c r i t o s e m c r iou l o .

A t e s e é cons t i t u ída po r se i s c ap í t u lo s . De po i s da i n t roduçã o ge ra l a

Cabo V erde , o s egundo cap í tu lo c ompreende o enquad ram en to t eó r i co e

a pe rgun t a ba s e . N e le t r a t a r e i a l i t e r a tu r a sob re b i l i ngu i s mo e d ig l o ss i a ,

a s s i m com o ou t ro s a s pec to s s oc io l ingu í s t i co s e ap re s en t a r e i a s m inhas

h ipó t e se s , ba sea das na s t eo r i a s e h ipó t e se s ex i s t en t e s . O mé t odo de

pes qu i s a ap re s en t ado no t e r ce i ro c ap í t u lo cons i s t e da an á l i se do c r iou l o

em c on tex t o cabo -ve rd i ano , a s s i m com o da r eco l ha de m a te r i a l

l i ngu í s t i c o a t r a vés de en t r e v i s t a s i n fo rma i s . No c ap í t u lo qua t ro a na l i se i

ques tões r e l a t i va s à o r igem do c r iou lo , a o e s t a t u to do c r iou l o e à

s i t uaç ão l i ngu í s t i c a em Ca bo Verde . Se rão t r a t adas t a mbém ques t ões

r e l a t i va s à i den t i dade dos cabo -ve rd i anos e o pape l da l í ngua

po r tugues a na soc i edade cabo -ve rd i ana e no e ns i no em Cabo V erde . No

qu in to c ap í t u lo pa s s o à aná l i s e do ma t e r i a l r eco l h ido nas en t r ev i s t a s e

ana l i s a r e i a lguns poema s em c r iou l o , t r aduz idos pa r a o po r tuguê s . N o

ú l t i mo ca p í tu l o se gu i r á a c onc lu s ão ge ra l e d i scus s ão dos r e s u l t a dos em

r e l a ção a o quad ro t éo r i co .

Page 12: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

1 .1 Breve de scr i ção d e C ab o Ve rd e

Cabo V erde f i c a s i t ua do no oceano A t l ân t i co , pe r to de Da ka r , 445

qu i lom é t ro s da c os t a oc ide n ta l da Áf r i ca . O A rqu ipé l ago é de o r i gem

vu lcâ n i ca e compos to po r 10 i l ha s , s endo nove hab i t adas , e po r 8 i l héus .

A s upe r f í c i e g loba l é 4 .033 qu i lóm e t ro s e a popu l açã o é de ce r ca de 350

mi l hab i t an t e s (Ba t a lha , 2004 : 13 ) . F a l a ndo em r e l evo , pode - s e

d i s t i ngu i r do i s t i pos de i l ha s : a s i l ha s p l ana s c i r cundada s de p r a i a s

ex t e nsa s com o S a l , Boav i s t a e M a io , que sã o a s ma i s p róx im as do

con t i nen te a f r i ca no (Ce r rone , 1996 : 17 ) . E ss a s i l ha s sã o p l a t a fo rmas

a r enos as , com pouc o r e l e vo (Ba ta l ha , 2004 : 16 ) . A s ou t r a s i l ha s , S an t o

An t ão , S an t i ago , F ogo , Sã o Vi cen t e , S ão Ni co l a u e B rava , s ão m u i to

d i f e r e n t e s e t ê m mon t anhas que ind i cam a s ua o r igem vu lcâ n i ca . A i l ha

ma i s c a r ac t e r í s t i c a de s t e pon to de v i s t a é a do F ogo , po i s t oda a i l ha é

f o rmada po r um vu lc ano ; a ú l t im a e rupçã o fo i em 1995 .

As p r ec ip i t ações em Cabo V erde s ão mu i to r a r a s e i r r egu la r e s e va r i a m

en t r e a s i l ha s a no r t e ( i l ha s de Ba r l a ven to ) e a s i l ha s do s u l ( i l ha s do

S o taven t o ) . A s ec a , apes a r de s e t e r v indo a ag rava r na s ú l t im as

déca das , é , con tudo , um dado an t i go que s empre marcou e marca a

h i s tó r i a do povo cabo -ve rd i ano dev i do aos anos pe r iód i c os de fome e de

mor t e no pas sa do (Ba ta l ha , 2004 : 15 , 21 ) .

1 .2 Breve h i s tór ia d o Ar qu ip é l ago a t é a in d ep en d ên c ia em 1975

Page 13: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Cabo V erde fo i de sc obe r to e m 1460 po r D iogo G omes e A n tón io de

No l i , am bos a o se rv i ço do r e i de P o r tuga l , s e ndo Sã o T iago a p r ime i r a

i l ha onde chega ram (Ce r rone , 1996 : 27 -30 ; Ba t a l ha 2004 : 18 -19 ) . O

des cob r im en to de Ca bo Ve rde fo i cons ide rado com o a lgo mu i to

impor t an t e pe l a c o r t e de L i s boa , que o f e r eceu dua s c ap i t a n i a s aos do i s

de s cob r ido re s da i l ha de Sã o T ia go . Os do i s f euda t á r io s i n s t a l a r am -se

na R ibe i r a G rande , que fo i du ran t e mu i t o t em po a cap i t a l de Cabo V erde

e ho j e em d i a t em o nome de C idade V e l ha . Es s a p r ime i r a c idade

co lon i a l po r t ugues a e r a fo rm ada po r uma pequena bu rgue s i a b r anca e

po r mu i t o s e sc r avos neg ros . A inda não hav i a mu i t o s m es t i ç os . A

soc i eda de cabo -ve rd i ana na que l a é poca dev i a s e r i dê n t i ca à s oc i eda de

po r tugues a f e uda t á r i a . O ob jec t ivo da c o r t e e r a de i n s t a l a r c e n t ro s de

p rodução a g r í co l a pa r a expo r t açã o e f aze r da s i l ha s um pos to de apo io

pa r a o s de s cob r im en tos ma i s a s u l de Cabo V erde . Es t e s pos t o s de

apo io , po r s e r e m i s o l ada s , e r am m a i s se gu ra s do que o s em t e r r a f i rm e .

De v ido à s ua pos i çã o e s t r a t ég i ca , a me i o cam inho en t r e o con t i nen te

a f r i c ano , a Eu ropa e a s A mér i c a s , Cabo V erde com eçou logo a

de s empe nha r um pape l mu i to im por t an t e no con te x to i n t e rnac i ona l do

t r á f i co neg re i ro , s e ndo du ran t e séc u lo s um im por t an t e en t r e pos t o

come rc i a l e l oc a l de a po io à s ro t a s do A t l ân t i c o e do Índ i c o .

S egundo Ba ta lha (2004 : 13 ) , quando o s po r t ugues es chega ra m às i l ha s

de Cabo V erde , a s m es mas e r am des ab i t adas . Se gundo ou t ro s au to r e s , o s

a f r i c anos t e r i a m s ido o s p r ime i ro s a pô r o s pé s e m Cabo V erde , m as

i n f e l i zm en te nã o se encon t r a na i l ha nenhuma p rova des t a p r e se nça

(Ce r rone 1996 : 27 ) . Logo após o de s cob r im en to da s i l ha s , come ça ram a

chega r pe ss oas de vá r i a s o r igens e c ond ições : c o lonos e aven t u re i ro s

po r tugues es , e s panhó i s , e s c r a vos da c os t a a f r i cana , p r e sos c iv i s e

po l í t i co s , j ude us pe r segu i dos pe l a i nqu i s i ção e m P or tuga l e ma i s ou t ro s

(Ce r rone 1996 : 28 e Ba ta lha 2004 : 22 ) . Qua n to ao env i o de deg rada dos

Page 14: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

pa ra Ca bo Verde , i s t o e r a no rma co r r e n t e e f o i , du ran t e sé cu lo s , o

p roces s o se gu ido po r t odos o s pa í s e s com c o lón ia s em Áf r i ca e e m

ou t ro s con t i nen te s . O povoame n to i n i c i a l f o i s ó na i l ha de S an t i ago e na

i l ha v i z i nha do F ogo , po rque e s t a s o f e r e c i am me l ho re s cond içõe s pa r a a

ag r i c u l tu r a . As ou t r a s i l ha s fo r am povoa das pouc o a pouco ao l ongo dos

sé cu lo s pos t e r i o r e s . T odos o s novos hab i t an t e s con t r ibu í r a m pa ra o

p roces s o de mes t i çage m de s angue c om o e l e men t o a f r i ca no , pu ro ou j á

c ruza do com b ranc os .

Os b r anc os , na época c o lon ia l , d i s c r im inava m em r e l aç ão aos p r e to s ,

ba s eando - s e na s upos t a d i f e r ença de s angue . O s p r e to s r econhec i am

g rande s upe r i o r idade nos b r anc os e c ons i de ravam -se se us i n f e r io r e s

(Ba ta lha 2004 : 20 ) . O enc a rgo de d i r i g i r o s e s c r avos e r a o t r aba l ho dos

b r ancos . D a mi s t u r a de r aç a s e de pe r s ona l i dades d i f e r en t e s na s ceu um

povo com d i ve r s os t r aços (Ce r rone 1996 : 59 ) . Ho j e em d i a , é pos s íve l

encon t r a r pe s soa s e m Cabo V erde de o lhos azu i s com neg r í s s imos

cabe lo s c r e s pos ou de o lhos de t i po a s i á t i co . Enc on t r amos t a mbém

c r i a nças l o i r a s e n t r e ca sa i s morenos e me n inos e s cu ros de pa i s de c o r

ma i s c l a r a , m as t odos com s ina l da s an t i ga s t e r r a s da E u ropa e da

Áf r i ca , f a l ando uma l í ngua pa r t i cu l a r , o c r iou lo , um h íb r ido a f r i cano e

po r tuguês , que r e mon ta a os p r i me i ro s t empos da co l on iza ção do Cabo

Ve rde (Roma no 1991 : I n t roduçã o ) .

Em 1876 a e s c r ava t u r a fo i a bo l ida e m Cabo V erde (Ce r rone , 1996 : 52 ) .

O c o lon iz ado r t en t ou en t ã o r enova r a i mage m do co lon i a l i sm o ,

o f e r ec endo à s popu laç ões da s c o lón ia s a pos s ib i l i dade de i n t eg ra r no

mode l o po r tuguês . O cabo -ve rd i ano dev i a a s s i m e s quece r a s ua cu l t u r a

pa r a a s s im i l a r a o mode l o po r tuguês . Como nas ou t r a s c o lón ia s , t odas a s

r i quez as da s i l ha s de Ca bo Verde fo r am e nv iadas pa r a a mãe -pá t r i a

P o r tuga l (Ce r rone , 1996 : 32 ) . A s s i m , o s co lon i zado re s po r tugue ses

Page 15: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

exp lo ra r am as i l ha s e pouco r e t r i bu í r a m, con t inuando e s t a s i t uaç ão a t é 5

de J u lho de 1975 , da t a em que Cabo V erde t o rnou - se i ndepende n te .

1 .3 Re l ig i ão

A i g re j a ca tó l i ca e s t eve p r e se n t e em Cabo V erde des de o de scob r i men t o

e con t r ibu iu pa r a a f o rma ção s óc io - r e l i g i o sa do seu povo . O s

co lon i zado re s j u s t i f i c a vam a e sc r ava tu r a com a sa l vaçã o da a lm a

a t r a vés do c r i s t i a n i s mo e da Ig r e j a . E mbora a Ig r e j a c ondenas se a

de s uman i dade de c e r to s pa t rõe s e neg re i ro s , ao m es mo t e mpo ace i t a va

co l a bo ra r na fo rma ção dos e s c r avos a t r avés da ca t eques e . A ún ica

cond iç ão da Ig r e j a e r a que o e s c r avo adu l to , depo i s de a lguns mes es de

ca t eques e , op t a r i a pe l o bap t i sm o (Ce r rone , 1996 : 63 -64 ) . Os p róp r io s

e s c r avos t i nham in t e r e s s e em m os t r a r - s e dóce i s e em nã o o f e r ece r

r e s i s t ênc i a . I s to , con t udo , não o s impe d ia de c on t inua r com as s uas

c r enç as e se us u s os e cos tume s . A s s i m , mu i to s cos tume s a f r i canos

cons egu i r a m s ob rev ive r a t é ho j e em d i a .

A i g r e j a de Cabo V erde t ambém tomou um a a t i t ude r e t i c en t e d i an t e da

pe r s pec t iva da i ndependênc i a , po r m o t ivos de i nce r t e za i n i c i a l do

suc es so da i ndependê nc i a . A lé m d i s s o , o PA IG C, o pa r t i do , que na

Gu i né B i s s au lu t ava pe l a i nde pendênc i a da G u iné B i s s au e de Cabo

Ve rde , t i nha a f am a de s e r a t eu e m arx i s t a e po r i s so c on t r a a I g r e j a

(Ce r rone , 1996 : 168 ) .

P odemos d i ze r que a conv i vênc i a da Ig r e j a com o pa r t i do ún i co no

pode r depo i s da i ndependê nc i a , nã o fo i f ác i l . M an te ve - s e uma

ind i f e r ença r e c íp roc a . A r a zão des t a a t i t ude e r a , po r um l a do , mo t i vada

pe lo s p r ec once i t o s c on t r a a r e l i g i ão e po r ou t ro l ado pe l o cons t a t ação

que o P AIG C anda va a dou t r i na r a popu l ação , s ob re t udo a j uven t ude

Page 16: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

(Ce r rone , 1996 : 168 ) . A de mocrac i a pos t e r i o r f avo rec eu po r um l a do a

Ig r e j a , mas po r ou t ro l ado , t r ouxe novos des a f i o s , t a i s como a exp lo s ão

de novos mov im en tos r e l i og io s os e o en f r aque c ime n to dos va lo r e s

mora i s f unda men t a i s da i g r e j a , com o a f am í l i a .

1 .4 A p o l í t i ca d ep o i s d e 1975

Dura n te o pe r iodo co lon i a l , o s ca bo -ve rd i anos s en t i am-s e exc lu ídos do

pode r e de t odas a s dec i sões . A pa r t i r de 5 de J u lho de 1975 , qua ndo

Cabo V erde t o rnou - se i ndepende n te depo i s de uma l onga lu t a , o s

an t i gos c o lon iz ado re s fug i r am pa ra P o r tuga l e de i xa r am pa ra t r á s um

pa í s em pobrec ido c om p rob le mas em d i ve r s os c ampos da s oc i e dade .

Gra ndes pe r cen t agens de ana l f abe t i s mo fo r am a lgum as das he r anças

co lon i a i s (S i lve i r a 1991 : I n t rodução ) . O P AIG V , P a r t i do A f r i c ano pa ra

a I ndepe ndênc i a de G u iné B i s s au e Ca bo Verde , venceu a s e l e i ções com

uma m a io r i a . Es t e pa r t i do ún i co j á t i nha l u t ado pe l a l i be r t a ção de G u iné

B i s sa u e de Cabo V erde (S i lve i r a 1991 : I n t rodução ) .

Os que l u t a r a m pe l a i ndepe ndênc i a po l í t i c a , t i nham ago ra a g r a nde

t a r e f a de ga r a n t i r a sob rev i vênc i a da popu la ção e de t en t a r adqu i r i r uma

indepe ndênc i a económ ica . O P AIG C, o pa r t i do da i ndependênc i a , c r i ado

po r Am í l c a r Cab ra l e que e r a adep t o de uma v i sã o soc i a l i s t a da

econom ia , que r i a conduz i r o pa í s a um des envo lv i men to m a io r (Ce r rone ,

1996 : 100 ) . O ma i o r p rob lem a e r a c omo me lho ra r a a g r i cu l tu r a pa r a

ob t e r a au to s u f i c i ênc i a a l i men t a r ou , pe l o menos , t en t a r com ba te r a se ca

que s e t o rna va cada vez p r io r . A o me sm o t em po , o PA IG C que r i a

impor t a r r e s e rvas a l ime n ta r e s s u f i c i en t e s com o compl eme n to à p roduçã o

loca l (Ce r rone , 1996 : 105 ) .

Em 1980 houve , em Ca bo Verde , uma m udança do nom e P AIG V em

Page 17: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

P AICV , P a r t i do Af r i cano pa ra a I ndependê nc i a de Cabo V erde . I s to

acon t eceu de po i s de um go l pe de e s t a do que t eve l uga r na G u iné . O

P AIG V na Gu i né B i s s au não que r i a t e r ma i s nada a ve r com Cabo V erde .

A pa r t i r de s t a da t a o PA ICV gove rnou Cabo V erde a t r avé s de um r eg im e

po l í t i co e x t r em amen t e au t o r i t á r i o (S i lve i r a 1991 : I n t rodução ) . Q ua lque r

que fo s se a opos i ção , nã o e r a t o l e r ada . Fo i um época medonha , che i a de

con t ro l o sob re o pens amen t o do ind iv í duo e s em es paç o pa ra

d i s s i den te s ; n inguém con f i ava em n i nguém.

Dura n te o s 15 anos do pa r t i do ún i co (1975 -1990) r e a l i za r am -se a lguma s

in i c i a t i va s im por t an t e s na pequena i ndús t r i a e na pe s ca , po r exe mplo a

cons t ruçã o do e s t a l e i ro nava l em S ão V ic en te , e na con fec ção de

ves tuá r i o . Po ré m, e s t a s i n i c i a t i va s não t i ve r a m mui to s r e s u l t ados ,

po rque fo r am execu t adas den t ro da v i s ão de um a econom ia de e s t ado

que des enco ra j ava qua lque r i n i c i a t i va p r ivada e qua i s que r i nves t im en tos

e s t r ange i ro s . Tudo e r a c onceb ido a pa r t i r da i n i c i a t i va do e s t ado e

obedec i a à i deo log i a do pa r t i do ún i co , o P A IGC. I s s o f ez c om que Cabo

Ve rde evo l u í s se pa r a uma s i t uaçã o económi ca de sa s t ro s a (Ce r rone ,

1996 : 105 ) . A pe r s pec t iva ec onómic a so f r e u uma g ra nde mudanç a com o

p r inc í p io da de mocrac i a em 1991 , i s t o é , qua ndo o gove rno mudou o

quad ro das l e i s e conómi cas . A c tua l men t e o va lo r da i n i c i a t i va p róp r i a é

r econhe c ido . O s i nves t im en tos e s t r ange i ro s sã o enco ra j ados e t am bém

enco ra j am-s e o s im ig ran t e s a i nves t i r a s sua s ec onomia s e m Cabo

Ve rde .

1 .5 A e migraç ão Cab o-verd i ana

De n t ro do âm b i to de s t e t r aba lho cabe t am bém da r um a peque na v i s ão do

Page 18: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

f enóme no da emi g raçã o , po rque é um f a c to r m u i to i mpor t an t e na v i da

dos c abo -ve rd i anos . O f enóm eno da em ig raç ão pode s e r exp l i cado po r

vá r io s f ac to r e s . A l guns de s t e s f ac to r e s s ão a sec a e o aum en to da

popu laç ão (Ce r rone 1996 : 34 , 103 ; Ba t a lha ,1962 : 21 ) . O a umen t o da

popu laç ão con t r i bu iu pa r a um exce ss o popu la c iona l no a rqu ipé l ago , o

qua l p roc u rou na emi g raçã o o seu e sc ape da l u t a pe l a s ob rev ivê nc i a . U m

ou t ro f ac to r , a pa r t i r de m eados dos anos 70 , a inda é o do

r eag rupa men to f a mi l i a r .

O c abo -ve rd i ano se mpre fo i ob r igado a v i ve r numa t e r r a s ec a , i ng ra t a e

ao me sm o t em po que r ida , l u t ando a v ida i n t e i r a en t r e o de se jo de f i c a r

na p róp r i a t e r r a e a nece ss ida de de pa r t i r . P o r t an t o , e l e é d iv id i do po r

do i s se n t im en tos opos to s : o am or à sua t e r r a ma i s o de s e j o e , à s veze s ,

a du ra ne ces s i dade de u l t r apa ss a r a ba r r e i r a do mar pa r a conhece r

ou t ro s pa í s e s . F i ca r onde nas ceu e l u t a r du ra n t e t oda a v ida pa r a

sob re v ive r ou pa r t i r em d i r ec ção ao de sc onhec ido m as com a

pe r s pec t iva de m e lho ra r a s c ond içõe s de v i da e t a lvez mes mo

en r ique ce r , um e n r iquec imen t o t an t o económ ico com o cu l t u r a l (Ce r rone

1996 : 103 ) . Es te s s en t i men t os t ambém re f l e c t em -se nos poe mas de

S é rg io F rus on i ( ve j a pág ina 1 de s t a t e se e o s a nexos I I I e IV ) .

Al ém da emi g ração e spon t ânea s em pre ex i s t i u t am bém um a emi g ração

pa ra S ão T omé e P r í nc ipe o rga n izada pe lo G ove rno , a c hama da

emi g ração fo r ç ada . E s t a emi g ração e r a uma ve rdade i r a e s c r av i dão . O s

t r aba lhado re s ca bo -ve rd i anos , na m a io r i a ana l f abe t o s e e mpur r ados pe l a

fome , a s s ina vam um c on t r a t o se m conhec ime n to das cond iç ões (Ce r rone

1996 : 40 ; Ba ta l ha 2004 : 39 ) . T inham que t r aba lha r po r um s a l á r io

min í mo e num c l i ma a s s a s s i no pa ra o s s eus c o rpos f r a cos . Aque l e s que

sob re v iv i a m, vo l t avam pa ra Cabo V erde c om pouca s aúde .

Page 19: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Cabo V erde é , c omo P o r tuga l , um pa í s de d i á s po ra (Ce r rone , 1996 :

103 ) . A e mig ra ção ca bo -ve rd i ana come çou no f im do s éc u lo X VI I c om a

chega da das p r ime i r a s ba l e e i r a s ao po r t o da i l ha de Brava . A p r i me i r a

me t a , s ob re tudo pa ra o s ha b i t a n t e s da i l ha de Brava , f o r am os Es t a dos

Un i dos (Ce r rone , 1996 : 102 ; Ba t a l ha 2004 : 35 ) . E ram p r i nc ipa l men t e

pe s cado re s pob re s , con t r a t ados com o a rpoado re s a bo rdo da s ba l ee i r a s

ame r i cana s . O u t r a s m e ta s de e mig ra ção , j á de s de o i n í c io do s écu l o

v in t e , f o r am o Bra s i l , a A rgen t i na , D aka r , A ngo la , M oça mbique ,

S enega l , Gu i né - B i s s au e S ão Tom é . Es t a s ondas de e mig ra ção , po rém ,

t i ve r am um pe r íodo r e l a t i vame n te l i m i t ado e fo r a m s ubs t i t u í da s po r

ou t r a s ondas de em ig raç ão .

No pe r íodo depo i s da Se gunda Gue r r a M und ia l , i s t o é de 1946 a t é 1973 ,

o s c abo -ve rd i anos de sc ob r i r am a Eu ropa e pa r a l á se fo r am d i r ig indo de

uma fo rm a ma i s ou menos r egu la r , sob re tudo em d i r ecç ão a P o r tuga l ,

Ho l anda , F r anç a e t c . Nã o há pa í s na E u ropa que não t enha um

t r aba lhado r ca bo -ve rd i a no . Há na ve rdade ma i s c abo -ve rd i a nos que

v ivem no e s t r ange i ro do que em Cabo V erde (Ba t a lha 2004 : 38 ) .

1 .6 As p ec tos d a cu l tu ra cab o-ver d i ana

A c u l tu r a cabo -ve rd i ana de ho j e é a r e su l t an t e da fu s ão de vá r i a s r aça s ,

que v ive r am em con jun t o ao l ongo dos s écu lo s , e que r e s u l tou num a

p róp r i a c u l tu r a mu i t o r i c a (Ce r rone , 1996 : 63 ) . A mu l t i p l i c ida de das

e tn i a s impe d iu a cons e rva ção in t eg ra l da s c u l tu r a s o r i g ina i s , i s t o

t am bém po rque o s e s c r a vos e r am em barcados nos po rões dos na v io s e

e r am conduz idos a d i ve r s os de s t i nos , s em que s e t i ve s se e m con t a o

pa r en t e s co ou a r aç a ou a inda a l í ngua . A l i á s , i s s o e r a f e i t o de

Page 20: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

propós i to , po rque de s t a mane i r a e r a ma i s d i f í c i l pa r a o s e s c r a vos s e

r evo l t a r em .

Os con t ac t o s en t r e p r e t o s e b r ancos não r e s u l t a r am un i cam en te e m

mes t i çagem de s angue (Ce r rone , 1996 :70 ) . H ouve t a mbém t rocas

cu l t u r a i s im por t an t e s , e mbora a cu l tu r a po r tugues a s e t e nha im pos t o

com m a i s fo r ça . O jogo de o r i l , a mane i r a de p r e pa ra r o cus cuz , o

mangua l pa r a m a lha r o mi l ho , a mane i r a de l eva r a s c r i ança s à s cos t a s

sã o e l e men tos da c u l tu r a cabo -ve rd i ana que v i e r am da Áf r i ca . Cos tum es

t a i s , c omo p r inc ipa lm en te na i l ha de S ão V ice n te , o t om ar u í s que c om

soda à t a rde e o s de s po r to s como o t én i s , o ‘ c r i c ke t ’ e o ‘go l f ’ s ã o

e l e men t os da c u l tu r a dos i ng l e s e s (L im a 1992 : 32 ) .

Os e s c r a vos t i nham um d ia l i v r e po r s em ana , ao dom ingo (Ce r rone ,

1996 : 73 ) . Es s e d i a e r a u t i l i z ado pa ra s e de d ica r e m a t r aba lhos de s ua

u t i l i dade e em a lguma s oc as i ões , pa r a s e a j uda rem mutuam en te . O us o

a inda co r r en t e do ' j un t am on ' , j un t a r a s mã os , p rovave lme n te r em on ta a

e s sa época . P a ra ce r to s t r a ba lhos , po r exem plo o da c ons t rução de um a

ca s a , p r i nc ipa l men t e na cobe r tu r a do t e to ou a e xecuçã o de t r aba lhos

ma i s pe sa dos no ca mpo , am igos e v i z i nhos a inda ho j e s e a juda m

mutua men t e e de g r a ça .

Qua ndo a lgué m ma t a o s eu po rco , ge r a lme n te s en t e - se na ob r igaç ão de

da r ca rne t am bém a os v i z inhos . Os qua i s , qua ndo po r sua vez ma tam o

se u an im a l , r e t r i buem a o f e r t a com i dên t i ca quan t idade . É um cos tum e

t í p i co dos cabo -ve rd i anos mas não s ó , na s a lde i a s po r tugues as t a mbém

a inda se man té m es t e háb i to . A s pes soa s r e co rdam c om nos t a l g i a aque l e

t em po , a t é po rque o p r a to de ca rne t r ocado t an t a s vez es e n t r e a s

f amí l i a s , c r i ava e c r i a um a a t mos fe r a de a g radáve l f r a t e rn idade .

Os ca bo -ve rd i anos s ão conhe c idos como um povo que t e m uma

Page 21: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

cons c i ê nc i a v i va da s ua p róp r i a h i s tó r i a ; s ão pes soa s , m u i to

se n t im en ta i s e sob re tudo mu i to f e s t i va s . As s im , a m ús i ca na fo rma de

funaná , m orna , co l a de i r a e maz u rca é um e l e men to m u i to i mpor t a n t e na

cu l t u r a dos cabo -ve rd i anos . A m orna na fo rma do len t e e a f una ná na

fo rma a g i t a da , s ã o duas exp re s sõe s que r e s u l t a r a m do p ro t e s t o dos que

fo r am c ap tu rados ao l ongo do Go l fo da G u iné e da mi s c i genaçã o de

ou t r a s gen t e s de d ive r s a s e t n i a s , t r a z idas da Eu ropa e d ’ Á f r i ca

(Romano 1991 : I n t roduçã o ) . Em Cabo V erde a morna t omou

ca r a c t e r í s t i c a s p róp r i a s de um f a t a l i sm o român t i co , que s e pa r e ce com o

F ado po r tuguês . S audade , Mãe e A mor , s ob re tudo am or pe l a mãe -pá t r i a ,

s ã o o s t ema s m a i s impor t an t e s na morna . A dança do funaná é e ró t i ca ,

sua l e t r a adap t a - s e ao p ro t e s t o . Ho j e em d i a o funaná é cons ide ra do

como m ús i ca exp re ss iva dos c abo -ve rd i a nos . O cava qu inho , o v io l ão e a

ga i t a s ão o s i n s t rumen t os m a i s popu la r e s , t r a z i dos j á pe l o s p r i me i ro s

po r tugues es (Roma no 1991 : I n t roduçã o ) .

Um ou t ro dado c u l tu r a l de i n f l uênc i a em Ca bo Ve rde é a e mig ra ção

(ve j a 1 .5 ) , com t odas a s a t i t udes que de l a de r ivam .

No e n t an t o o co lon i zado r f az i a t udo pa ra que o s cabo -ve rd i anos

e s queces s em a sua cu l tu r a . As s im , o e ns i no e r a dado e m po r tuguê s e o

ma t e r i a l e r a s in t on i za do com a c u l tu r a da Me t rópo le . Ape sa r de se us

e s fo r ços o co lon i zado r não c onsegu i u cu l t u r a lm en te de snuda r o cabo -

ve rd i a no . De po i s da i ndepe ndênc i a em 1975 fo r a m in t roduz idos novos

l i v ro s que t r a t a m da p róp r i a h i s tó r i a cabo -ve rd i ana , pa r a ac t i va r o povo

cabo -ve rd i ano a f a ze r r ev i ve r e cons e rva r a p róp r i a c u l tu r a .

Após e s t a i n t roduç ão em que de i um a b reve de sc r i ção s ob re a h i s t ó r i a

do povo cabo -ve rd i ano , s eus háb i t o s e a r i c a cu l t u r a cabo -ve rd i ana ,

pa s sa r e i ao s egundo c ap í t u lo de s t a t e s e , a r e l ação e n t r e a l í ngua c abo -

ve rd i a na (o c r iou l o ) e a l í ngua po r t uguesa em Ca bo Verde .

Page 22: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

2 . Qu ad ro Téor ic o

Ne s t e cap í tu lo e xp l i c o em 2 .1 o que é b i l i ngu i s mo e e m 2 .2 o que é

d ig lo s s i a . E m 2 .3 vou ap re sen t a r a s ques tões e h i pó t e s e s da pes qu i s a .

Apre se n t a r e i a inda a lgum as de f in i ç ões de t e rm os que u sa r e i no t r a ba lho

em 2 .4 . P a r a t e rm ina r , em 2 .5 se r ão ap re s en t ados a pe rgun ta ba s e e a s

pe rgun ta s e spec í f i c a s da minha t e s e .

2 .1 B i l i n gui smo

Consu l t e i vá r i a s ob ra s e e ncon t r e i vá r i a s de f in i çõe s de b i l i ngu i s mo .

Edw ards (2004 : 7 ) d i z que t odos s omos b i l í ngues , po rque não ex i s t e

nenhuma pes soa a du l t a que não s abe f a l a r ao m enos umas pa l a v ra s numa

ou t r a l í ngua que a sua l í ngua ma t e rna . E l e con t inua d i z endo que s e um

ing l ê s é capaz de d i ze r ou compre ende r ‘g r ac i a s ’ ou ‘gu t en T ag ’ ,

r e s pec t ivame n te ‘ob r i gado ’ e ‘ bom d i a ’ , o que e l e cha ma ‘dom ina r uma

l í ngua e s t r ange i r a 1 , e s t a pe ss oa pode s e r c ons i de rada c omo b i l í ngue .

S t e ine r ( 1992 ; c i t ado po r E dwards 2004 : 7 ) , a o con t r á r io , ex ige que o

i nd iv í d iuo t e nha a m esm a f luê nc i a e compe tênc i a em Ing lê s e A lem ão

ou F rancês pa r a s e r c ons i de rado b i l í ngue .

De f in i r o b i l í ngue ind iv i dua l não é t a r e f a f ác i l . A ppe l & Muys ken

(1987 : 2 -3 ) menc ionam do i s au to r e s , B loom f ie l d e M acN ama ra , que

de f ine m b i l i ngu i s mo i nd iv idua l . B loomf i e ld ( c i t a do po r Bu t l e r &

Ha ku ta 2004 : 114 ) , d i z que :

(…) , b i l i ngua l s cou l d be de f ine d a s i nd iv i dua l s w ho have “na t ive -

l i ke ” con t ro l o f tw o l angua ges .

B loomf i e ld é ba s t an t e r í g ido , po rque se gundo e l e é p r ec i s o domi na r

pe r f e i t am en te a s dua s l í nguas , i s t o é , c omo os r e s pec t i vos f a l an t e s

na t i vos , pa r a s e r cons ide ra do um ve rdade i ro b i l í ngue . M acN am ara t e r

1 ´Have command of a foreign tongue’

Page 23: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

um ce r to g r au de p ro f i c i ê nc i a , s e j a qua l f o r . É obv io que a s dua s

de f in i ções s ão dema s i adame n te e x t r ema s . S egundo a de f in i ção de

B loomf i e ld , qua se n inguém é b i l í ngue , e s egundo a t eo r i a de

Ma cN amara , quas e t odos s ão b i l í ngues .

Ha ugen (1953 ) , c i t ado po r Bu t l e r & H aku t a (2004 : 114 ) e po r E dwa rds

(2004 : 8 ) de f i ne b i l í ngues :

a s i nd iv i dua l s w ho a r e f l ue n t i n one l anguage bu t w ho can p roduce

compl e t e mean i ng fu l u t t e r ance s i n t he o t he r l angua ge .

Ne s t e ca s o , s egundo a de f in i çã o de H augen , me sm o a s pe s soas ac ima

menc ionados que s abem d ize r ‘ g r a c i a s ’ ou ‘G u ten T ag ’ podem se r

cons ide ra dos com o b i l í ngues .

S egundo S iguán & M ac key 2

é b i l í ngue a pe ss oa que , a l ém de s ua p r im e i r a l í ngua , t em um a

compe tênc i a com paráve l numa ou t r a l í ngua e que é capaz de

u t i l i z a r uma ou ou t r a em t odas a s c i r cuns t â nc i a s com uma e f i các i a

se me l han te .

Exi s t e m a i nda ou t r a s de f i n i çõe s que nã o de f ine m exac t am en te o n í ve l de

compe tênc i a que o b i l í ngue deve t e r , mas que cons ide ram o f enóm eno

b i l i ngu i s mo de um pon to de v i s t a ma i s s oc i o lóg i c o ou soc io l i ngu í s t i co .

We i n re i ch (1953 ; c i t ado po r Edw ards 2004 : 8 ) dá a se gu in t e de f in i ç ão

s i mp le s de b i l i ngu i s mo :

O us o a l t e rna t ivo de dua s l í nguas . O cos tume de u sa r

a l t e rnadam en te duas l í nguas é b i l i ngu i sm o e a s pe s soa s e nvo lv ida s

sã o b i l í ngues .

Es t a de f in i ç ão , como j á d i s s e , não de f i ne o n íve l de com pe tê nc i a de um

b i l í ngue . M as é um f ac to ge r a lmen t e conhe c ido , que qua se n inguém

pode domi na r t o t a lm en te dua s ou m a i s l í nguas . G ros j ea n (2004 : 34 ) e

Mye r s -S co t ton (2006 : 2 ) d i zem a e s t e r e spe i to que f a l an t e s r a r ame n te

2 “é bi lingue la personne qui, en plus de sa première langue, possède une compétance comparable dans une autre langue et qui est capable d 'ut il iser l 'une ou l 'autre en toutes circonstances avec une efficaci té semblable”.

Page 24: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

sã o igua l men t e f l uen t e s na s duas l í nguas . V e ja t ambé m Bu t l e r & H aku t a

(2004 : 115 ) e Rom a ine (1995 : 18 ) a e s t e r e s pe i to . P a r a Mye r s -S co t ton

(2006 : 44 ) é b i l í ngue uma pes s oa que t em hab i l i da de de f a l a r duas ou

ma i s l í nguas de um a mane i r a s u f i c i en t e pa r a pode r m an te r uma conve r sa

no rma l .

C rys t a l ( 1992 : 43 ) f i na l men t e de f ine b i l i ngu i s mo com o:

A s pee ch s i t ua t i on w he re a n i nd iv i dua l o r com mun i t y con t ro l s t wo

(o r more ) l anguages : l e s s u s ua l ly ca l l ed po l yg lo t t i s m ( though t he

t e rm po lygo t f o r s ome one w ho spea ks s eve ra l l a nguages i s

comm on enough) .

C rys t a l ( 1997 , c i t a do po r Bha t i a & R i t ch i e 2004 : 1 -2 ) d iz que do i s

t e r ç os da s c r i ança s no m undo v ivem num a s i t ua ção b i l í ngue . S egundo

Bha t i a & R i t ch i e (2004 : 1 -2 ) o f enóme no de b i l i ngu i s mo va i aume n ta r

no fu tu ro na m ed ida em que a s pe ss oas r econhe cem a s va n tagens de

domina r ma i s que uma l í ngua . S egundo Roma ine (2004 : 385 )

b i l i ngu i s mo ou mu l t i l i ngu i s mo é uma ne ces s i dade na v i da quo t i d i ana da

ma i o r pa r t e da popu laç ão mund i a l . O mes mo a u to r d i z que b i l i ngu i s mo

ou mu l t i l i ngu i s mo ex i s t e em quase t odos o s pa í s e s do mundo , apes a r

que nem todos r econhec em es t e f ac t o . O au t o r dá o exe mplo de pa í s e s

como a Aus t r á l i a , a I ng l a t e r r a e o s Es t a dos U n idos que vêe m a s i

p róp r io s como pa í s e s mono l i ngues , a pes a r de que de n t ro des t e s pa í se s

v ivem ou t r a s com un idades que u s am ou t r a s l í ngua s que o i ng l ê s .

Gros j e an (1982 : v i i ) d iz que quas e a me tade da popu laç ão mund i a l é

b i l í ngue . S egundo o me sm o au to r pode - s e e ncon t r a r pe ss oas

mu l t i l i ngues em t odas a s c l a s s e s soc i a i s , me sm o nas pequenas a l de i a s .

E l e dá com o exempl o , o s ha b i t a n t e s de K upwa r na Índ i a e de Indagen na

Ne w G u ine a .

Appe l & M uys ken (1987 : 2 - 3 ) d i s t i nguem do i s t i pos de b i l i ngu i s mo :

b i l i ngu i s mo i nd i v i dua l e b i l i ngu i s mo na c omun i tá r io 3 . F a l a - s e de

b i l i ngu i s mo na c omun i t á r io quando s e u s a dua s l í nguas numa

3 Individual bil ingualism and societal bi linguism

Page 25: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

de te rmina da soc i eda de . Ne s t e s en t i do quase t odas a s s oc i eda des são

b i l í ngues , mas e l a s pode m ap re sen t a r f o rma s e g r aus d i f e r en t e s de

b i l i ngu i s mo . O s m es mos au to r e s d i s t i nguem t r ê s fo rmas ou s i t ua ções de

b i l i ngu i s mo numa comun i dade . N a p r im e i r a s i t uaçã o , a s duas l í nguas

sã o f a l a das po r do i s g rupos d i f e r en t e s e c ada g rupo é m ono l íngue ; um

pequeno núm ero de b i l í ngues i nd i v idua i s m an tém a com un icaç ão

nece ss á r i a en t r e o s g rupos . Es s a fo rma de b i l i ngu i s mo apa re ce nas ex -

co lón i a s , onde o co lon i zado r f a l ava po r e xempl o ing l ê s e a popu laçã o

na t i va f a l ava uma l í ngua loca l . Na se gunda s i t uaç ão , t odas a s pe s s oas

sã o b i l í ngues e u t i l i z a m ma i s de duas l í ngua s , po r e xempl o na Índ i a e

em g ra nde pa r t e da Á f r i ca . Na t e r c e i r a s i t uação , um g rupo é mono l íngue

e ou t ro g rupo é b i l í ngue . N a ma i o r pa r t e da veze s e s s e ú l t imo g rupo

cons t i t u i uma mino r i a , ou s e j a é o g rupo domina do .

S egundo P ea l & Lam ber t ( 1962 , c i t ado po r Bu t l e r & Ha ku ta 2004 : 115 )

um ind i v íduo pode s e r t o ta l ou pa r c i a lm en te b i l í ngue . E l e s f a l am de

b i l í ngue equ i l i b r ado e de b i l í ngue des equ i l i b r ado 4 . B i l í ngues

equ i l i b r ados s ão o s b i l í ngues que adqu i r i r am g raus de c ompe t ênc i a s

s i mi l a r e s na s duas l í ngua s . B i l í ngue s de sequ i l i b r a dos ou b i l í ngues

domi nan te s s ã o o s que t êm compe t ênc i a s m a i s e l evadas numa l í ngua do

que nou t r a . No c a so m a i s com um de b i l i ngu i sm o uma das l í nguas

ge r a l men t e é a l í ngua dom inan t e , ou se j a , a l í ngua que é f a l ada no pa í s

onde o b i l í ngue v i ve , domi na em vá r io s domín i o s da l í ngua .

O f a c to de um b i l í ngue s e r um b i l í ngue to t a l ou não , s egundo G ros j ean

(1982 : 179 ) , não t em a ve r com a i dade ne m com a mane i r a de

acqu i s i ção das l í nguas , mas com f a c to r e s p s i cos oc i a i s com o o u so das

l í ngua s e m cas a ou na e s co l a . E s t e s f ac to r e s vã o de t e rm ina r o g r a u e o

pe r íodo e m que a c r i anç a é b i l í ngue . Bu t l e r & H aku ta (2004 : 12 )

exp l i cam :

In t he p roc es s o f bec oming b i l i ngua l , na t i ve ap t i t ude s , a ge and

in t e l l i gence a r e l e s s im por t an t t han a s uppo r t i ve con te x t o f

nece ss i t y .

4 ‘ Balanced’ and ‘unbalanced bil ingual’ ou ‘dominant bi lingual”

Page 26: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Gros j e an (1982 : 179 ) d i s t i ngue , u t i l i z ando o c r i t é r i o de i dade de

Mc Laugh l in (1978 ) , en t r e do i s p roces s os de acqu i s i ç ão de duas l í nguas :

a a c qu i s i ção s im u l t â nea e a acqu i s i ç ão s ucces s iva . Q uando um a c r i a nça

adqu i r e duas l í nguas an t e s da i dade de 3 anos é cons ide rada com o t ê - l a s

adqu i r i da s imu l t anea men t e . U ma c r i ança que adqu i r e uma das l í nguas

an t e s da i dade de 3 anos e a s ou t r a s depo i s da i dade de 3 anos , é

cons ide ra da t ê - l a s adqu i r i da s s uce ss iva men te .

Mye r s -S co t ton (2006 ; 37 ) , M e i se l ( 2004 : 103 -110 ) e Bu t l e r & Ha ku ta

(2004 : 118 ) f a l am de b i l í ngues j ove ns e de b i l í ngue s t a r d io s 5 . T r a t a - s e

de b i l í ngues j ove ns no ca s o em que o b i l í ngue ap re nde a l í ngua s egunda

a t é aos 7 anos e de b i l í ngues t a r d io s quando ap re ndem depo i s da i dade

de 7 anos . O s t i pos de b i l i ngu i s mo que r e su l t am das d i f e r en t e s mane i r a s

de ac qu i s i ção s ão , s egundo M a te us (1990 : 63 -64 ) : b i l i ngu i s mo

coor denado ou i ndepe nden te e b i l i ngu i s mo com pos t o ou

i n t e rde penden te .

F ocando no e s t a tu to s oc i a l de um a l í ngua , F i s hman ( c i t ado po r Bu t l e r &

Ha ku ta 2004 : 118 ) , d i s t i ngue b i l í ngues do povo e b i l í ngues de e l i t e 6 .

F a l a - s e de b i l í ngues do povo pa ra de s igna r um a com un idade l i ngu í s t i c a

de g rupos mino r i t á r i o s c u j a p róp r i a l í ngua não t em um es t a tu to a l t o na

l í ngua da com un idade dom inan t e . B i l í ngues e l i t á r i o s s ão o s que f a l am

uma l í ngua dom inan t e numa de t e rm inada s oc i edade e que t am bém fa l am

ou t r a l í ngua que lhe s dá um va lo r ad i c iona l den t ro de s t a soc i eda de , i s t o

é , p r e s t í g io .

S egundo Mye r s -S co t ton (2006 : 38 ) um a das r azõe s de b i l i ngu i s mo pode

se r o f ac t o dum ind i v íduo que re r f a ze r pa r t e ou ide n t i f i c a r - s e com um

g rupo . Ou t ro s m o t ivos t ê m a ve r com r az ões económi cas (M yer s -S co t ton

2006 : 10 , 38 ) e r e l i g i o sa s (Rom a ine , 2004 : 393 ) . Mye r s -S co t ton dá o

exem plo de que re r um ou t ro e mprego pa ra o qua l um b i l í ngue dec i de

ap rende r uma ou t r a l í ngua . Roma i ne dá com o exempl o ce r t a s c r i anç as na

5 ‘early and late bil inguals’6 ‘folk bil inguals and el ite bi linguals’

Page 27: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Ing l a t e r r a que , pa r a t e r l i çõe s num a me squ i t a , ap r e ndem a l í ngua á r abe .

Ou t r a r az ão de b i l i ngu i s mo pode se r t ambé m o f ac to do b i l í ngue t e r pa i s

com l ínguas ma te rnas d i f e r en t e s e e s t e s que re r em que o s f i l hos s e

t o rnem b i l í ngues . Ne s t e ca s o , c ada um dos pa i s f a l a a s ua l í ngua com o

f i l ho . A l í ngua da c omun idade onde a f am í l i a v ive , pode s e r uma da s

l í ngua s dos pa i s ou a inda uma t e r c e i r a l í ngua . O p r im e i ro ca so s e dá

com c e r to s i nd i v íduos nasc idos na H o landa , po r e xempl o o s f i l hos duma

cabo -ve rd i ana e dum ho la ndês . O pa i ho l andê s f a l a ho l a ndês com o f i l ho

e a m ãe ca bo -ve rd i ana f a l a c r iou lo c om e l e . N es t e exe mplo a l í ngua

domina n te na comun ida de é a l í ngua do pa i . O se gundo ca s o se dá po r

exem plo com uma c r i ança que t em pa i f r anc ês e uma m ãe i ng l e s a , na

Ho l anda .

Ou t r a pos s i b i l i dade de a dqu i r i r dua s l í nguas é dada pe l a e mig ra ção .

Tam bém a inda é pos s íve l uma com un idade ou um pa í s i n t e i ro s e r

b i l í ngue . N uma c omun idade b i l í ngue com o pa ra o b i l í ngue i nd iv idua l ,

a s vá r i a s l í nguas ge r a l men t e t êm cada um a a s ua funçã o e s pec í f i ca .

S egundo F i s hman ( c i t ado e m A ppe l & M uys ken , 1987 : 23 ) num a

pes qu i s a s ob re po r to r i quenhos e m N ova Y ork , c ada l í ngua é u sada em

d i f e r e n t e s domí n io s 7 l i ngu í s t i co s . Cada uma das l í nguas t em o seu

p róp r io domí n io de u s o , pa r a o s s eus p róp r io f i n s e e m s eus p róp r io s

domín i o s l i ngu í s t i co s .

S egundo Appe l & M uys ken (1987 : 23 ) , o s f ac t o r e s de t e rminan t e s pa r a a

e s co lha da l í ngua sã o o se r membro ou nã o de um g rupo , a s i t uaçã o e o

t óp i c o . Um a pes s oa pode u s a r uma de t e rm inada l í ngua pa ra ace n tua r a

sua o r igem é tn i ca , ou s e j a , pa r a mos t r a r que pe r t e nce a um ce r t o g rupo .

O l oca l onde a conve r sa deco r r e , a s i t uaçã o ou con tex t o , t am bém pode

de t e rmina r a e s co lha de uma l í ngua . N a m a io r pa r t e da s comun i dades

l i ngu í s t i c a s o t ema da conve r s a t a mbém pode in f l uenc i a r a e s co lha de

uma l í ngua , po r e xemplo , qua ndo o d i s cu r s o é s ob re po l i t í c a ou sob re

e conom ia u s a - s e uma l í ngua d i f e r en t e da u s ada qua ndo se con tam

p i ada s . Conf i r a o que Lyon (1996 : 42 ) d i z :

The fo rm a l i t y o f t he s i t ua t i on , t he t op i c unde r d i s cuss ion , t he age ,

7 ‘domains’

Page 28: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

se x and s t a t u s o f t he pa r t i c ipa n t s and the func t ion o f t he even t a l l

i n f lue nce l anguage c ho ice i n b i l i ngua l a du l t .

Bu t l e r & H aku ta (2004 : 119 ) demons t r a m que o c on tex to t ambé m é

impor t an t e na s s i t uaçõe s de b i l i ngu i s mo , dando o exe mplo dum a

e s tudan t e b i l í ngue u s ando a l í ngua de e sc o l a r i zaçã o , o i ng l ê s , du ran t e

um deba t e na c l a s s e . E l a pode u s a r o i ng l ê s , po rque den t ro da c l a s s e há

pes soa s que som en te c ompreende m o ing l ê s ou en t ão po rque e l a só

d i s põe dum voc abu lá r i o su f i c i e n t e em ing l ê s pa r a pa r t i c ipa r num

deba t e . N um ou t ro con t ex to , qua ndo e s sa m es ma e s t udan te f a l a s ob re

um f i l me c om a i rmã que t ambé m é b i l í ngue , e l a pode m uda r de c ód igo

en t r e a s duas l í nguas ou en t ão t am bém us a r um a l í ngua só . G ros j ea n

(2004 : 35 ) exp l i ca que mudanç a de cód i go e f az e r u so de em pré s t im os

n a i n t e r acç ão en t r e b i l í ngues deve s e r cons ide rado como c ondu ta

pe r f e i t a en t r e b i l í ngues . S e no ca s o ac ima menc i onado a m ãe pa r t i c i pa r

na conve r sa , a s i rmãs podem usa r t ambé m s ó a l í ngua que a m ãe

pe rce be . Em t odas e s sa s s i t uações o i nd i v id íuo pode f aze r u s o de am bas

a s l í ngua s , de pendendo do tóp i co ou da s i t uação .

Ma ckey (1967 ; c i t a do po r Bu t l e r & H aku ta 2004 : 120 ) , de f ine e s t e s

f ac t o r e s como a l t e rnaç ão e i n t e r f e r ênc ia , r e s pec t ivame n te , e suge r i ndo

que es t e s t e rmos sã o impor t an t e s t ambém pa ra s e r em inc l u ídos na

des c r i ç ão do g r au e da função de b i l i ngu i sm o .

É im por t an t e i nd i ca r que o pe r f i l do b i l í ngue pode muda r du ra n t e o

t em po , ou se j a , b i l i ngu i sm o não é uma s i t uaçã o e s t á t i c a m a i s é um a

s i t uaç ão d inâm ica . O pe r f i l do b i l í ngue e s t á cons t an t eme n te em

mudanç a , d i ze m Bu t l e r & H aku t a (2004 : 120 ) e L yon (1996 : 46 ) . Me i s e l

( 2004 : 94 ) conc o rda , d i ze ndo o se gu in t e sob re e s t e a s s un to :

domina nce o f one l anguage , de f ined a s t he one in w h ic h a pe r s on

i s more p ro f i c i e n t , c an s h i f t r epea t ed ly , no t on ly du r ing c h i ldhood

bu t ove r t he en t i r e l i f e s pan , depend i ng on a pe r s on ’ s

comm un ica t ive ne eds .

Qua lque r que se j a o g r au de compe t ênc i a do b i l í ngue ou a m ane i r a de

acqu i s i ção das l í nguas , s e gundo Gros j ea n (2004 : 34 ) , o s b i l í ngues

Page 29: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

podem s e r c a r ac t e r i za dos po r c a r ac t e r í s t i c a s ge r a i s que são , e m

p r ime i ro l uga r , o f ac to de e l e s t e r em a cqu i r i do e u sa r em a s s uas l í ngua s

com ob j ec t ivos d i f e r en t e s , em dom ín ios d i f e r e n t e s da v i da e com

pes soa s d i f e r en t e s . G ros j ea n chama i s to o pr i nc íp i o do com p lem en to .

Em s egundo l uga r , b i l í ngues r a r am en te t êm g ra us de compe t ênc i a s

equ iva l en t s na s s uas l í ngua s , um a cons equênc i a d i r e c t a da p r ime i r a

ca r a c t e r í s t i c a . O g rau de compe tênc i a e de f l uênc i a depende da

nece ss idade e do u s o duma l í ngua (ve j a t a mbém M ei se l 2004 : 84 ) . E m

t e r c e i ro l uga r , a lguns b i l í ngues a i nda se encon t r am no p roce ss o de

acqu i s i ção duma l í ngua ou apenas t ê m uma noção de l í ngua ao pa ss o

que ou t ro s b i l í ngues t ê m um ce r to n íve l de e s t a b i l i dade . E m qua r to

l uga r , de v ido ao f ac to de que o r epe r tó r i o da l í ngua do b i l í ngue muda

du ran t e o t em po , l ogo que o am b ien t e e a ne ces s i dade de uma ce r t a

noção de l í ngua m uda , a s s uas noções e com pe tênc i a s t am bém m udam.

F ina lm en te , o b i l í ngue in t e r age c om mono l ingues e com ou t ro s

b i l í ngues , t endo que adap ta r a s ua condu ta l i ngu í s t i c a de aco rdo com o

se u locu t o r .

Tem os que d i s t i ngu i r , s e gundo Edw ards (2004 : 10 ) e N a ra i n &

Ve rhoeven (1994 : 12 ) , a inda do i s t i pos de b i l i ngu i s mo : o ad i t i vo e o

sub t rac t i v o . F a l am os de b i l i ngu i s mo ad i t i vo quando a ap rend i zagem de

uma ou t r a l í ngua r e s u l t a numa e xpansã o do conhec i men t o l i ngu í s t i co do

ind iv í duo . F a l am os de b i l i ngu i s mo s ub t r ac t i vo quando a ap rend iz agem

da ou t r a l í ngua conduz à um a s ubs t i t u i ção da p r i me i r a l í ngua .

Edw ards (2004 : 10 ) f a l a a inda de b i l i ngu i s mo r ec ep t i vo ou pass i v o e

b i l i ngu i s mo pr oduc t i vo ou a c t i vo . T r a t a - s e de b i l i ngu i s mo r e cep t ivo

quando o b i l í ngue c omprende um a l í ngua , e s c r i t a ou f a l ada ma s nã o é

capa z de f a l á - l a . D e b i l i ngu i sm o p roduc t i vo ou ac t i vo t r a t a - s e quando o

b i l í ngue é c apaz de f a l a r e e s c r eve r na s l í nguas , a l é m de en t endê - l a s .

Como i r e i t r a ba lha r t ambé m o a s pec t o do ens ino de l í ngua em Cabo

Ve rde , ap re s en t o a inda a de f in i ção de e ns i no b i l í ngue que s igo nes t a

t e s e . C rys t a l ( 1992 : 43 ) de f ine educa ção b i l í ngue da segu i n t e m ane i r a :

Educa ção b i l í ngue é o u so de duas l í nguas de i n s t rução num

Page 30: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

de te rmina do pon to na ca r r e i r a dum es tudan t e .

Tam bém re f e r e ao u s o de p rog ram as educa t ivos de s envo lv i dos pa r a

p romove r noç ões b i l í ngues e n t r e e s t udan te s .

S egundo Mye r s - S co t ton (2006 : 2 ) f a l am os de m ono l ingu i sm o quando

uma pe ss oa f a l a ape nas um a l í ngua , que ge r a lme n te j á come çou a

ap r ende r em ca sa .

2 .2 Di g lo s s i a

F erguson (1959 : 327 ) dá a s egu i n t e de f i n i çã o :

Di g lo s s i a é a s i t uaçã o em que dua s va r i edade s d i f e r en t e s de uma

l í ngua coex i s t em num pa í s e onde um a das duas t em um es t a t u to

soc io -po l í t i c o supe r io r 8 .

O m es mo au t o r d i z que ne ss a s com un idades é i mpens áve l u sa r a mes ma

va r i e dade pa ra t odas a s i n t e r acçõe s . F e rgus on dá o e xemplo de Ha i t i ,

onde o F rancê s é qua l i f i c ado H 9 e o c r i ou lo de H a i t i é qua l i f i c ado L 1 0 .

Ou t ro exem plo de d i g lo s s i a é dado po r V an D a le onde o P ap ia men to

Ne e r l a ndês é a va r i edade L nas An t i l ha s N ee r l andes as , enquan t o que o

Ne e r l a ndês é a va r i edade H .

Crys t a l ( 1992 : 43 ) exp l i ca d ig l o ss i a se gundo Fe rguson :

Di g lo s s i a é uma s i t uaçã o soc io l i ngu í s t i c a em que duas va r i eda des

d i f e r e n t e s de uma l í ngua coex i s t e m numa comun i dade onde c ada

uma de l a s t em a s sua s p róp r i a s f unções e t e m acqu i r ido um c e r to

um g rau de e s t a tu r a . As va r i edades s ão no rma lmen t e de f i n idas

como a l t a (Hi gh ou s i mp lem en te H) e ba ixa (L ow ou s im p lem en te

L ) . I s so c o r r e s ponde à uma d i f e r ença de fo rma l idade . A va r i eda de

H é u sa da nos d i s cu r sos , em s i t uaç ões fo rm a i s de c omun ica ção e é

ap rend i da na e s co l a . A va r i eda de L é u s ada na conve r s a do d i a - a -

8 Traduç ã o m i n h a , o r i g i n a l e m i n g l e s .9 H = de alto prestígio (‘high’)10 L = de baixo prestígio (‘low’)

Page 31: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

d ia , c om a f am í l i a , na s nove l a s , na r ád io e nou t ro s con tex t o s

i n fo rma i s .

Ma teus (1990 : 128 ) de f ine d ig l o ss i a da s egu in t e mane i r a :

Em ge ra l , dá - se o nom e de d i g lo s s i a à s i t ua ção de b i l i ngu i sm o .

P o r vezes , e s t e t e rmo a p l i c a - se à s i t ua ção b i l í ngue e m que uma

das duas l í ngua s t em um e s t a tu t o soc io -po l í t i co i n f e r io r .

S iguán & M ac key (1986 : 45 ) dão a mes ma de f in i ç ão de d i g lo s s i a que o s

au to r e s j á menc iondos . Po ré m, s egundo S iguán & Ma ckey , a va r i edade

(L ) é um a l í ngua exc l u s i vame n te o r a l e não e s c r i t a .

Roma i ne (2004 : 393 ) t ambém se gue a de f i n i çã o de F e rgus on . E l a dá

como e xempl o Pa raguay onde o e spanho l é cons ide rado como a

va r i e dade H , se ndo a l í ngua o f i c i a l do gove rno e do ens ino . G ua ran i ,

que é f a l ado po r 90% da popu l ação é a va r i edade L , se ndo a l í ngua de

ca s a e da s i n t e r a cções i n fo rm a i s .

Mye r s -S co t ton (2004 : 85 ) f a l a de t r i g lo s s ia ou de po lyg l o ss ia p a r a

i nd i c a r um pa í s onde sã o f a l a das m a i s de dua s l í nguas . A l gumas s ão

qua l i f i c a das m a i s H ou ma i s L do que ou t r a s e ou t r a s sã o neu t r a s . E l a

dá com o exempl o a s i t ua ção l i ngu í s t i c a em S i ngapu ra .

F e rguson i den t i f i c a apenas qua t ro comun ida des l i ngu í s t i c a s com duas

l í ngua s , que e l e c ons i de ra com o d ig ló s s i ca s :

1 ) o ca s o do á r abe c l á s s i co e o á r abe c o loqu ia l ;

2 ) o ca s o do a l emão e s t anda rd i z ado e o a l emã o da S u íça (na Su í ça ) ;

3 ) o ca s o do c r i ou lo f r ancê s e o c r iou lo de Ha i t i ( em H a i t i ) e ;

4 ) o ca s o das duas va r i e dades do Gre go , o an t i go e o mode rno (na

Gré c i a ) .

Mye r s -S co t ton (2004 : 83 ) c i t a e s t ud io s os que a f i rm am que um a s i t ua ção

d ig ló s s i ca c l á s s i ca , en t r e t an to , j á não ex i s t e na G réc i a e no H a i t i .

F i s hman (1965 ) c i t ado po r M yer s -S co t t on (2004 : 77 ) f a l a de domí n io s

l i ngu í s t i co s . E l e a f i rm a que ca da l í ngua t em os s eus p róp r io s domí n io s

Page 32: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

na s oc i e dade . O s m a io re s dom ín io s i den t i f i c ados po r F i shm an s ão o da

f amí l i a , o da ami zade , o da r e l i g i ão , a educaç ão e o do em prego .

S egundo Mye r s -S co t ton (2004 : 77 ) o s t e rmos d ig lo s s i a e dom ín io s dão

ambos des c r i ções de onde , quando , c om quem , a quem e com que f im

uma va r i edade é ma i s u sada que ou t r a .

Mye r s -S co t ton (2004 : 80 ) t ambé m fa l a de d ig lo s s ia c l á ss i c a , como

t endo dua s c a r ac t e r í s t i c a s . A p r i me i r a é que t odos o s me mbros da

comun i dade t êm a m es ma l í ngua p r im e i r a e a adqu i r em num ambi en te

f ami l i a r , ou se j a , em cas a . M as nem t odos c onhecem ou e s t ão

cons c i e n t e s da ex i s t ênc i a da s egunda va r i edade . S e c hegam a ap rendê -

l a , s e r á apenas na e s co l a . A se gunda ca r a c t e r í s t i c a é que a s duas

va r i e dades não s ão u s adas na s mes ma s s i t uações . A ide i a é que a s

i n t e r acçõe s que t êm p re s t í g io e m toda a s oc i eda de , f aze m pa r t e da

ca t ego r i a H e o s que f a zem pa r t e da f a mí l i a e da ami zade s ão da

ca t ego r i a L .

F i s hman ( c i t ado e m M yer s -S co t ton , 2004 : 81 ) e s t endeu a noç ão de

d ig lo s s i a na med i da em que o t e rm o pode se r ap l i cado a qua lque r

comun i dade ou s oc i e dade b i l í ngue . M yer s -S co t t on , na me sm a pág ina ,

cham a i s s o d ig lo s s ia e s t e nd ido 1 1 . A d i f e r enç a en t r e d ig lo s s i a c l á s s i ca e

d ig lo s s i a e s t end ida t em a ve r com a r e l a ção en t r e a s va r i e dades em

ques t ão . N o ca s o de d i g lo s s i a c l á s s i c a , duas va r i e dades da me sm a

l í ngua sã o envo lv i das . E ss a s va r i edades podem se r chama das d i a l e c to s ,

po rque e l a s são a t é c e r to g r au m u tua l men t e i n t e l i g í ve i s ma s s ão

d i f e r e n t e s uma da ou t r a . N o ca s o de d i g lo s s i a e s t end i da , a va r i edade H

e a va r i edade L s ão conhec idas como l í nguas d i f e r en t e s , o que que r

d i ze r que não s ão mu t ua lm en te i n t e l i g íve i s .

No c a s o de d ig l o ss i a e s t end ida o s i nd iv íduos vêm de d i f e r e n t e s g rupos

soc i a i s , na ma io r pa r t e da s vez es o r ig ina ndo t ambé m de d i f e r en t e s

g rupos é tn i c os . P o rém , a s c l a s s e s soc i a i s t a mbém podem d i ve rg i r no

ca s o de d ig lo s s i a c l á s s i ca . M es mo que todos o s i nd iv íduos f a l e m a

mes ma l í ngua p r ime i r a (M yer s -Sc o t ton , 2004 : 86 ) . Como j á v imos , a

11 Tradução minha de: extended diglossia .

Page 33: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

va r i e dade H t em que s e r ap rend i da na e s co l a e nem todos sã o da me sm a

c l a s s e s oc i a l cu j o s f i l hos t êm aces s o a e s co l a r i zaç ão avanç ada . O s

f i l hos de c l a s s e s s oc i a l ba ixa t e m me nos opo r t un idade de p r a t i c a r a

va r i e dade H em s i t uações fo rma i s fo r a da e s co l a . A ss im , t o rna - s e

ev ide n te que nos do i s t i pos de d ig lo s s i a d i f e r ença s de o r igem s oc i a l

s e pa ram os f a l an t e s e a s s uas pa r t i paçõe s e m s i t ua ções fo rma i s .

Mye r s -S co t ton (2004 : 87 ) c onc lu i que nas soc i edade s d i g ló s s i ca s o

pode r t a mbém é d iv id i do . Os ind i v íduos que t ê m conhec ime n to da

va r i e dade H , t êm ma i o r ace s s o ao pode r s oc i a l e po l í t i co . I s so

ge r a l men t e não é pos s íve l pa r a o s que não t êm o conhe c im en to da

va r i e dade H . S e a lgué m qu i s e r pa r t i c i pa r na s i n t e r acç ões onde H é

u sa da , t e m de t e r c apac idade de u sa r a va r i edade H ou en t ão não pode

pa r t i c ipa r .

Na d ig lo s s i a c l á s s i ca , pa r t i c i paçã o s i gn i f i ca se r c apaz de l e r , e sc r eve r e

pe r ce be r a va r i edade H , ma s que não é f a l ada exc ep to em d i s cu r s os

fo rma i s . P o rém no ca s o de d ig l o ss i a e s t end i da , pa r t i c ipa ção s ign i f i ca

t am bém s e r ca paz de f a l a r a va r i eda de H (Myer s -S co t t on 2004 : 87 ) .

2 .3 Qu es tões e Hi pó te se s d a p es qu i s a

O ob j ec t ivo des t a t e s e é ana l i s a r a r e l aç ão que ex i s t e en t r e o u so do

c r iou l o cabo -ve rd i ano e o u s o do po r tuguê s na s oc i edade c abo -ve rd i ana .

A t r avés da aná l i s e de dados h i s t ó r i cos s ob re a s oc i e dade ca bo -ve rd i a na ,

o c r iou l o e o po r tuguê s , vou p rocu ra r c l a s s i f i c a r o t i po de r e l ação que

ex i s t e en t r e a s dua s l í nguas . S e r á que e s t a r e l a ção s e ca r ac t e r i za po r

d ig lo s s i a?

P a ra pode r r e sponde r à pe rgun ta t e r e i de t r a t a r a s d i f e r enças en t r e

l í ngua e d ia l e c to e en t r e l í ngua ora l e l í ngua es c r i t a , a l é m de abo rda r a

génes e de um c r iou l o e o e s t a t u to de um c r iou l o em r e l açã o à l í ngua de

p r e s t í g i o domina n te .

Page 34: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

P ara a l cança r meu ob j ec t i vo , que é ana l i s a r a r e l aç ão en t r e o c r iou l o e o

po r tuguês , i s t o é , s e e s t a s e ca r a c t e r i za po r d i g lo s s i a , i r e i f a ze r uma

aná l i s e da r e l ação e n t r e o c r iou lo e o po r t uguês na s oc i eda de cabo -

ve rd i a na . A ss im , no âmb i t o de s sa aná l i se , t e r e i em c on ta , e n t r e ou t r a s

co i s a s , a s vá r i a s de f in i ç ões de b i l i ngu i s mo e de d ig lo s s i a t r a t ados em

2 .1 e 2 .2 .

2 .4 De f in i çõe s d e ou tros t ermos u s ados n es ta t e s e

Já abo rde i de f in i ç ões de b i l i ngu i s mo e de d ig lo s s i a . A inda não d i s cu t i o

t e rm o l í ngua m a te rna que i r e i u s a r ao l ongo de s t e t r a ba lho . Q ua l é a

de f in i ção des t e t e rm o nes t a t e se ? A n te s de ma i s , de f in i r e s t e t e rmo não

é f ác i l , s ob re tudo qua ndo se t r a t a de b i l í ngues . M a teus (1990 : 231 ) dá a

se gu in t e de f in i ção de l í ngua m a te rna :

l í ngua na t i va do s u j e i t o que a fo i adqu i r i ndo na tu r a l men t e ao

l ongo da i n f ânc i a e s ob re qua l e l e pos s u i i n t u i çõe s l i ngu í s t i c a s

quan to à fo rma e u s o .

O d i c ioná r io P o r to Ed i to r a , de f ine l í ngua ma te rna c omo:

l í ngua do pa í s em que nas cem os .

O d i c ioná r io V an D a le , dá a s egu in t e de f in i ção de l í ngua m a te rna 1 2 :

a l í ngua na qua l um ind i v íduo ap re ndeu a f a l a r de s de mi údo , a

p róp r i a l í ngua .

Ma s pa ra b i l í ngues , a de f i n i ção de ve s e r ma i s e spe c í f i ca .

He ye (1979 ) de f i ne o t e rm o l í ngua ma t e rna com o a l í ngua que uma

c r i a nça ap re nde dos seus pa i s e m cas a a n t e s de a t i ng i r a i dade e sc o l a r .

Es t a de f in i ç ão é ade quada pa ra um b i l í ngue que a p rende s uces s ivam en te

a s l í ngua s que f a l a , a l í ngua ma te rna em cas a e a l í ngua s egunda na

e s co l a . Pa r a um b i l í ngue que ap rende a s dua s l í nguas s i mu l t anea men te é

ma i s d i f í c i l , po rque não há uma l í ngua p r i me i r a ou en t ã o duas l í nguas

12 Tradução minha de: “taal waarin iemand het spreken geleerd heeft, eigen taal”.

Page 35: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

pr ime i r a s ve j a t am bém D av i e s , ( 2003 : 17 ; M e i s e l 2004 : 95 ) . É o c a so

dos f i l hos com pa i s de d i f e r e n t e s o r ige ns e que ap rendem as l í ngua s de

ambos o s pa i s . V e ja o e xempl o da c r i a nça com mãe cabo -ve rd i ana e pa i

ho l andê s e m 2 .1 .

S egundo Romai ne (1995 : 19 -20 ) l í ngua m a te rna , r e f e r e a uma l í ngua

p r ime i r a a dqu i r ida ou s im p le s me n te à l í ngua p r i me i r a . S egundo o

mes mo a u to r a l í ngua ma te rna pode não s e r a l í ngua da m ãe . E l a dá

como e xempl o a mu lhe r que f a l a uma l í ngua a f r i cana com os men i nos

que e l a cu ida . Os pa i s de s t e s m en inos f a l am ou t r a s l í nguas com e l e s .

Ne s t e ca s o a l í ngua p r i me i r a de s t e s me n inos pode não s e r a l í ngua da

mãe de l e s , ma s a da mu l he r que cu i da de l e s . E x i s t em a inda ou t r a s

de f in i ções de l í ngua ma te rna , que t êm a ve r com a com pe tênc i a , i s t o é a

l í ngua ma t e rna é a l í ngua que uma pe ss oa dom ina me lho r . S egundo

Romai ne , l í ngua ma t e rna é a l í ngua com que um ind i v íduo , na ma io r

pa r t e da s vezes , s e i den t i f i c a .

Encon t r amos t a mbém o t e rmo l í ngua p r im ár ia como s inón i mo de l í ngua

pr i me i r a (L 1 ) . S egundo Ma teus (1990 : 232 ) i s t o é :

L íngua que , numa s i t uaçã o p lu r i l i ngue , é m a i s u s ada ( e m e lho r

domina da ) pe l o f a l an t e na s ua v ida d i á r i a e que nã o é

nece ss a r i a men t e a me sm a que a s ua l í ngua m a te rna .

L íngua s egunda (L 2 ) é a l í ngua que um ind iv í duo ap rende u depo i s da

sua l í ngua p r ime i r a ou l í ngua ma te rna (S t e rne r , c i t ado po r D av ie s 2003 :

23 ) . I s t o não que r d i ze r que a l í ngua segunda é de a l guma fo rm a ,

i n f e r i o r à l í ngua p r im e i r a , m as i nd i c a s i mp le sm en te o f ac to de se r

ap rend i da depo i s de l í ngua p r i me i r a (L1 ) .

Ex i s t e t am bém o t e r m o l í ngua m ãe . S egundo o mes mo a u to r (D av ie s ,

2003 : 231 ) :

quando s e e s t abe l ec em gene a log i a s (ou f a mí l i a s ) de l í nguas , dá - s e

o nome de l í ngua mãe (ou l í ngua a sce nden te ) à l í ngua cu j a

evo luç ão conduz i u à s l í ngua s t omadas com o r e f e r ênc i a ou

r e s u l t a do . As s im , s e t i ve rmos com o r e f e r ênc i a o po r t uguês , o

f r ancê s ou o i t a l i ano , d i r - s e - á que a s ua l í ngua mãe (ou

a s cenden t e ) é o l a t i m .

Page 36: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Há t am bém o t e rmo l í ngua i rm ã . L íngua s i rmãs :

sã o a s l í ngua s que r e su l t am de evo luç ões d ive rgen t e s a pa r t i r de

uma m es ma l í ngua an t iga , d i t a l í ngua mã e (M a teus 1990 : 231 .

Tem os a inda o t e rmo l í ngua f ranc a . L íngua f r anca é :

a l í ngua de que s e s e rve m os f a l an t e s de uma c omun ida de

mu l t i l i ngue pa ra pode rem c omun ic a r en t r e s i (Ma teus 1990 : 231 ) .

Conc lu i ndo , adop to pa r a l í ngua ma t e rna a de f in i ç ão de H eye (1979 ) e

Da v ie s (2003 ) na m inha aná l i s e , a s abe r :

a l í ngua que um b i l í ngue ap rende u em ca sa , com os se us pa i s ,

an t e s de a l ca nça r a i dade e s co l a r .

A l í ngua m a te rna , po r t an t o , pode não s e r a m es ma que a l í ngua

domina n te , ou s e j a , a l í ngua ma i s u sada num pa í s .

F a l ando de b i l i ngu i s mo e de d ig lo s s ia , n ão adop t o a de f in i ção c omple t a

de S iguán & Ma ckey (1986 ) . S egundo o s au to r e s é b i l í ngue uma pe ss oa

que f az u so de m a i s do que um a l í ngua e que é capaz de u sa r amba s

l í ngua s de mes ma m ane i r a em d i f e r en t e s s i t uaçõe s . E s t a de f in i ção nã o é

adequa da no ca s o de Cabo V erde , po i s nem t odos o s cabo -ve rd i anos

domina m o c r i ou lo e o po r t uguês da mes ma mane i r a , e nem todas a s

pe s soa s t êm a c apac i dade de u sa r a s dua s l í nguas da me sm a fo rma . Po r

i s so , no que d i z r e spe i to a b i l i ngu i s mo , s i go a s de f in i ções de A ppe l &

Muys ken (1987 : 2 -3 ) e G ros j ean (1982 : 34 ) .

Qua n to a d i g lo s s i a , e s tou de a co rdo com a de f in i ção dada po r Fe rguson

(1959 : 327 ) , F i s hman (1965 ) e po r S i guán & M ac key (1986 : 11 ) . Es t a é

a s i t ua ção que e ncon t r am os na soc i edade cabo -ve rd i ana e m Cabo V erde .

Ex i s t e a l í ngua po r tugues a , que é u s ada nas s i t ua ções fo rma i s e que é

l í ngua e s c r i t a ; e e x i s t e o c r i ou lo que é u sa do em ca sa , é uma l í ngua o r a l

e é c ons i de rada c omo in f e r i o r em r e l açã o à l í ngua po r tugues a .

Page 37: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

2.5 Per gun ta b as e e p ergu n tas e sp ec í f i c as

A pe rgun ta ba se da pes qu i s a é :

Qua l é a r e l aç ão s oc io l i ngu í s t i c a en t r e o c r iou l o e o po r tuguê s na

soc i eda de cabo -ve rd i ana? Es t a r e l açã o ca r ac t e r i z a - s e po r

d ig lo s s i a? Exi s t e b i l i ngu i s mo em Cabo V erde e , ne s t e ca s o , a t é

que g r au?

P e rgun ta s e s pec i f í ca s que devem s e r t r a t ada s pa r a pode r r e s ponde r à

pe rgun ta ba s e sã o :

1 . Qua l é o e s t a tu to do c r iou lo e do po r tuguês na s oc i e dade ca bo -

ve rd i a na?

2 . At é que pon t o o c r iou l o é a exp re ss ão da i den t i dade cu l tu r a l dos

cabo -ve rd i anos ?

3 . Qua i s sã o a s r azões da não -e sc r i t a do c r iou lo e m Cabo V erde no

pós - i ndependê nc i a?

4 . Que é que s e pode p r e t ende r c om a i n t rodução do c r iou lo c omo

l í ngua ma t e rna na e sc o l a e qua l é a f unç ão que o po r t uguês t e r i a

depo i s na e sco l a e na soc i edade ?

5 . Qua i s sã o a s funções ou van ta gens de um p rog ram a de ens ino

b i l í ngue?

Page 38: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

3 . Métod o d e p es qu i sa

Ne s t e cap í tu lo a p re s en to a ope rac i ona l i z ação da pe rgun ta ba se (3 .1 ) ,

a s s i m com o o co rpus pa r a a pa r t e da m inha a ná l i s e . D es c revo t ambé m o

t i po de ma t e r i a l sono ro e e s c r i t o em 3 .2 e a p re s en to o s i n fo rma n te s da

pes qu i s a em 3 .3 .

3 .1 An á l i s e d o cr iou lo c abo-ve rd ian o: se u e s ta tu to , s u a h i s tór ia e su as fu nç ões

Que ro nes t e t r aba lho a na l i sa r o e s t a tu t o da l í ngua cabo -ve rd i ana e m

r e l a ção ao po r t uguês . Que ro sabe r t am bém com o su rg i u e qua l f o i o

pape l que o c r iou l o cabo -ve rd i ano t e ve na s oc i e dade ca bo -ve rd i a na ,

de s de o s eu s u rg imen t o . P a ra t a l abo rda re i p r im e i ro a lguns conce i to s

l i ngu í s t i co s r e l ac iona dos c om l í nguas e l í ngua s c r iou l a s ap l i ca ndo -a s

depo i s à s i t uação c abo -ve rd i a na . Ta mbém a na l i sa r e i a s f unçõe s do

c r iou l o cabo -ve rd i ano na v i da dos cabo -ve rd i anos . Embora o c r iou lo

a inda não e s t e j a no rma l i za do e t ã o pouco poss u i um a o r tog ra f i a

e s t anda rd i zada , a l í ngua cabo -ve rd i ana s em pre t eve g r ande va l o r pa r a a

popu laç ão cabo -ve rd i ana , t an to e m Cabo V erde c omo na d i á spo ra .

A t r avés duma e l abo ra ção de da dos r e l ac i onados à h i s tó r i a da l í ngua

cabo -ve rd i ana vou i l u s t r a r a sua i mpor t â nc i a . Em s egu ida pes qu i s a r e i o

ca s o e s pec í f i co do e ns i no em Cabo V erde e o pape l do c r iou l o cabo -

ve rd i a no . Que ro sabe r qua l é a s i t uaç ão ac t ua l e qua i s sã o a s

poss ib i l i da des do c r iou l o em p rog ram as de ens ino b i l í ngue no fu t u ro .

3 .2 O cor pu s p ara an á l i s e

P ara r e s ponde r à pe rgun ta ba se a na l i so m a te r i a l s ono ro e e sc r i t o .

O m a te r i a l sono ro com preende a t r ans c r i ção de e n t r ev i s t a s que f i z pa r a

Page 39: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

es t a t e s e . D uran te a mi nha e s t ad i a em Ca bo Ve rde v i s i t e i uma e s co l a

se cundá r i a , o l i c eu J o rge Ba rbos a , na i l ha de S ão V ic en te . Lá p rocu re i

um p ro fe s s o r e a l guns a l unos pa r a s e r em e n t r ev i s t ados . Não fo i d i f í c i l

encon t r a r pa r t i c ipa n te s , t a l vez po rque v inha ac ompanhada de uma a luna .

Em p r i me i ro l uga r e xp l ique i o mo t i vo das en t r e v i s t a s e pa r a que e f e i t o

que r i a en t r ev i s t á - lo s , d i s s e - lhe s que e r a no quad ro dos meus e s tudos na

Un i ve r s idade de Ut r eque na Ho l anda . F o ram m ui to s o s a lunos que

que r i a m s e r en t r e v i s t ados , ma s dec id i e sc o lhe r s omen t e a l guns de l e s

(ve j a anexo I ) . N ão f i z u so de ques t i oná r i o s p r é - e s t abe l ec i dos m as

fo rmu le i a s pe rgun t a s na ho ra e no p róp r i o s í t i o , r e s u l t ando em

conve r s a s na tu r a i s e i n fo rm a i s . S ó na en t r e v i s t a f e i t a c om o in fo rm an te

G , na Ho l anda , é que me ba se i num ques t i oná r io p r é - fo rmu lado (ve j a

anexo I I ) .

O m a te r i a l e sc r i t o c ons i s t e de t r ê s poe mas de F rus on i ( 1992 ) , e s c r i t o s

em c r iou lo . O s poemas s e enc on t r am na p r ime i r a pág i na da t e s e e nos

anexos X VI I I e IX .

3 .3 Os in forman tes

Qua n to aos i n fo rm an te s i s t o é , a s pe s soas que fo r a m en t r ev i s t ada s ,

poss o da r o s s egu in t e s dados . I n fo rm an te A , M ar i a , t em qu inze anos de

i dade e é a l una do ens ino s ecundá r io de Cabo V erde , no l i c eu Jo rge

Ba rbos a . A en t r ev i s t a f o i f e i t a no pá t io do l i c e u .

In fo rman t e B é um emprega do da r ád io RF C F M , Mi nde lo em Cabo

Ve rde . A en t r ev i s t a f o i f e i t a sem uso de nenhum t ipo de ques t i oná r io

p r é - e s t a be l ec ido , s endo em g ra nde pa r t e uma c onve r s a l i v r e e po r t a n to

na tu r a l . N o d i a em que fo i e n t r ev i s t ado o i n fo rma n te t ambém es t ava

numa e mis s ão de r ád i o .

In fo rman t e C é J o rge , t r i n t a e c inco a nos de i dade e p ro fe s so r no l i c eu

Jo rge Ba rbos a . Es t a e n t r ev i s t a f o i f e i t a no c o r r edo r do l i c eu , du ran t e o

i n t e rva lo . Com o eu não t i nha ma rcado nenhum encon t ro com um

de t e rmina do p ro fe ss o r , dec id i d i r i g i r a pa l av ra a um p ro fe s s o r qua lque r

Page 40: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

e a s s im e ncon t r e i Jo rge , que naque l e mom en to e s t a va d i s pon íve l . N es t a

en t r e v i s t a t ambém não f i z u so dum ques t ioná r i o p r é - e s t abe l ec ido .

I n fo rman t e D (Ana ) , E (L í g i a ) e F (Cá t i a ) s ão i gua lme n te a lunas do

l i c eu J o rge Ba rbos a . A na e L íg i a t êm qu i nze anos de i dade e a mbas

e s t ão no qu i n to ano , Cá t i a t em de zas se t e anos e e s t á no déc i mo-

p r ime i ro . Es t a en t r ev i s t a em con jun t o fo i , em g ra nde pa r t e , uma

conve r s a l i v r e en t r e a s a luna s .

I n fo rman t e G é o s enho r Jú l io V . da S ousa Lopes , em ba ixado r do

gove rno de Ca bo Verde em H a i a . O s enho r L opes t em c inquen t a e um

anos e é pa i de do i s f i l hos . E ss a e n t r ev i s t a f o i f e i t a na e mba i xada de

Cabo V erde em Ha ia , ba sea ndo -me no que s t i oná r io que vem no A nexo

I I .

Page 41: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

4 . An ál i s e d e e s tud os l i ngu í s t i c os s ob re o cr iou lo cab o-verd i ano

A l íngua c r iou l a cabo -ve rd i ana é cons ide ra do como e s s enc i a l pa r a cabo -

ve rd i a nos e m Cabo Ve rde . Mo t ivo pe l o qua l a bo rdo nes t e ca p í tu l o , en t r e

ou t r a s co i sa s , a gé nes e do c r iou l o cabo -ve rd i ano , o s eu e s t a tu to , o

c r iou l o como m e io de c omun ic a ção e sua p rob l emá t i c a . F a l a r e i da

h i s tó r i a da e s c r i t a em Cabo Verde , do seu pa pe l na s e s co l a s cabo -

ve rd i a nas , t an to no pa ss ado c omo na ac tua l idade , e do c r iou l o como

exp re s s ão de i de n t ida de dos cabo -ve rd i anos .

4 .1 Al gu ns con ce i to s e m re l ação a l ín gu as cr iou l as

Ne s t e pon to t r a t a r e i a l guns t e rmos l i ngu í s t i co s que s ão impor t an t e s no

quad ro da m inha aná l i s e , c omo d i a l ec t o , l í ngua , l í ngua p idg i n , l í ngua

c r iou l a , s ubs t r a to e s upe r s t r a to . A l ém d i s s o d i r e i a l go sob re e s t a tu t o e

i den t idade r e l ac ionado a l í nguas e a l í nguas c r iou l a s .

4 .1 .1 L ín gu a e d ia l e c toHá vá r i a s de f i n i çõe s dos t e rmos l í ngua e l í ngua de con tac to . S egundo

S iguán & M ac key (1986 : 22 ) a l í ngua é um c ód igo que t em de e s t a r

no rma l i za do , ou se j a , d i s po r de um vocabu lá r io - um d i c ioná r io

ge r a l men t e ace i t e - e de um c on jun to de r e g ra s mor fos in t á c t i c a s e

o r tog rá f i ca s cod i f i cada s num a g ramá t i c a i gua l men t e ace i t e .

P a r a l í ngua de con tac to , l im i to -m e à de f in i çã o de M a teus (1990 : 228 ) :

L íngua de que s e s e rvem os f a l an t e s de uma com un idade

mu l t i l i ngue pa ra pode rem c omun ic a r en t r e s i .

S egundo Ma teus (1990 : 127 ) d ia l e c to é :

cada uma das s ubd iv i s ões que s e podem ap l i ca r a um a de t e rmina da

Page 42: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

l í ngua , t oma ndo po r c r i t é r i o a r eg i ão geog rá f i ca ou c amada soc i a l

a que pe r t ence m os f a l an t e s .

S iguán & M ac key (1986 : 22 ) ac r e s cen ta m:

Um d ia l ec t o ex i s t e , no â mb i t o de uma l í ngua , que não e s t á

no rma l i za do .

Es t e s a s pec t o s t am b ém s ão me nc ionados po r C rys t a l ( 1992 : 101 ) e

Mye r s -S co t ton (2006 : 31 ) . C rys t a l ( 1992 : 101 ) f a l a a i nda de d ia l e c to

soc ia l , d ia l e c to r u r a l e d ia l e c to u r bano . D i a l e c to s oc i a l dá i n fo rma ção

sob re a c l a s s e s oc i a l , a e ducaç ão , a ocupa ç ão ou ou t r a s ca r ac t e r í s t i c a s

de s t e g éne r o de um t ipo de f a l an t e . O d i a l ec t o ru r a l ouve - s e no c ampo ,

o d i a l ec t o u rbano na c i dade . Tam bém pode mos f a l a r de grupos de

d ia l e c to s (Andra de A la i n Ki hm 1992 : 5 ) .

Com o u s o do t e rm o d ia l e c to numa s i t uação de co lon i zaçã o , f o i

i n t roduz ido o conc e i to de i n f e r i o r idade da l í ngua f a l ada pe lo s povos

domina dos . C rys t a l ( 1992 : 101 ) d i z e m r e l a ção a e s t e a s sun t o :

The t e rm d i a l ec t i s s ome t ime s u s ed in a pe jo r a t i ve w ay w hen

som eone r e f e r s t o t he s pee ch o f a com mun i t y o r r u r a l com mun i t y

a s “ ju s t a d i a l e c t ” .

E M yer s -Sc o t ton (2006 : 23 ) ac r e s ce n ta :

In i t s mos t ne u t r a l u sa ge , spe ake r s may e mp loy “ d i a l ec t ” fo r an

ou t -g roup , f o r exa mple , t o r e f e r t o how “ peop le ove r t he r e spea k” .

Of t en , d i a l ec t i s a s omew ha t pe jo r a t i ve t e rm.

Mye r s -S co t ton a i nda exp l i ca que em ge ra l u s amos o t e rm o d ia l e c to

p a r a r e f e r i r a va r i edade s l i ngu í s t i c a s cu jo s f a l an t e s s ão ca pazes de

en t e nde r uns aos ou t ro s , i s t o é , e s t e s f a l an t e s s ão m u tua lm en te

i n t e l i g í ve i s .

O c once i to de d ia l e c to t em uma r e l açã o e s t r e i t a com o conce i to de

l í ngua -m ãe . Na ve rdade , é uma va r i an t e de s sa l í ngua -m ãe , de n t ro do

t e r r i t ó r io e m que o d i a l ec to é f a l ado (M yer s -Sc o t ton 2006 : 8 ) . No

en t a n to , o d i a l ec t o n ão deve s e r cons ide rado com o um va lo r a bso l u to ,

po i s e l e só e x i s t e em r e l a ç ão e s t r e i t a a um a l í ngua a que s e pode r i a

cham ar l í ngua -mãe (Ve iga 1982 : 6 ) .

Page 43: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Qua ndo um povo s e e s pa lha po r um t e r r i t ó r i o ma i s ou m enos va s t o , a

l í ngua que f a l a pode d i f e r enc i a r - se pouco a pouco . D es t a mane i r a

na s cem os d i a l ec to s ou a s va r i an t e s d i a l ec t a i s . Fo i o que acon t ece u , po r

exem plo , com os d i a l ec to s do l a t im vu l ga r , que evo l u í r am pa ra a s

l í ngua s nov i l a t i na s -P o r tuguês , Es panho l , F r anc ês em r e l aç ão ao l a t im ,

an t e s de adqu i r i r e m a a u tonomi a que pas s ou a ca r a c t e r i zá - l a s , en t r e s i e

c ada uma de l a s e a l í ngua que l he s deu o r igem . Ho j e ap re s en t am

de t e rmina das f ron t e i r a s , f r on t e i r a s que à s ve zes e r am mu i t o d i f e r en t e s

em é poca an t e r io r (Andra de A la i n Ki hm 1992 : 6 ) . Mye r s -S co t ton (2006 :

7 ) exp l i ca :

I f g roups a r e s epa ra t ed w he the r ge og raph ic a l ly o r s oc i a l l y , f o r

enough t i me , t he d i f f e r e nces i n t he i r s peec h become g rea t e r .

As d i f e r en t e s va r i edade s , s egundo M ufwe ne (2004 : 461 ) , s ão o

r e s u l t a do da mane i r a c omo a s l í ngua s t êm m udado e de s envo l v ido

du ran t e a h i s tó r i a dos povos . O mes mo a u to r a i nda ac r e sce n ta que

va r i e dades i nd íge nas como t ambém c r iou l o s (ve j a 4 .1 .4 ) s e t ê m

des envo lv i do pe lo s mes mos p roce ss os de r ee s t ru t u r aç ão que p roduz i r am

ou t r a s l í ngua s .

4 .1 .2 Ad s tra to , s u bs tra to e s u p ers t ra toP rec i s am os de de f in i r t e rmos com o a ds t ra t o , s ubs t ra t o e supe rs t r a to

quando f a l amos de p idg i n s e , sob re tudo , de c r i ou lo s (ve j a 4 .1 .3 e

4 .1 .4 ) . Qua ndo duas l í ngua s s e enc on t r am numa s i t ua ção onde e x i s t e

con ta c to en t r e s i , podem su rg i r vá r io s t i pos de r e l aç ões , e n t r e a s qua i s

a s r e l a ções de ads t ra t o , d e supe rs t r a to e de ad s t ra t o . Exi s t e en t r e duas

l í ngua s um a r e l ação de ads t ra t o quando , coe x i s t i ndo num mes mo e s paç o

geog rá f i co ou em e spa ços con t íguos , s e i n f l uenc i am mu t uame n te m as de

fo rma s upe r f i c i a l , pe lo que nenhuma de l a s é a s s imi l ada pe l a ou t r a

(Ma teus 1990 : 35 ) . E x i s t e en t r e duas l í nguas uma r e l ação de supe rs t r a to

quando a l í ngua de um povo invas o r , numa de t e rm inada á r ea ge og rá f i ca

Page 44: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

e após uma f a se de d ig l o ss i a , é a s s i mi l ada pe l a l í ngua j á ex i s t en t e ,

de ixa ndo ne l a , no e n t an t o , a lgum as m arca s (M a te us (1990 : 347 ) .

F ina lm en te , s ubs t ra t o é a l í ngua que é domina da po r ou t r a l í ngua ,

adop ta ndo o vocabu lá r io da l í ngua de supe rs t r a to , ge ra l men t e uma

l í ngua eu rope i a , mas ma n tendo ca r ac t e r í s t i c a s da s ua g r amá t i c a ,

ge r a l men t e a f r i c ana ou a s i á t i c a (ve j a Mot a , 1996 : 529 ) . H o lm (1988 : 5 )

c a r a c t e r i za s ubs t ra t o em r e l aç ão a supe rs t r a to da se gu in t e mane i r a :

Us ua l ly t hos e w i t h l e s s power ( s pea ke r s o f subs t r a t e l a nguages )

a r e m ore acc ommoda t ing and u s e w ords f rom the l anguage o f t hos e

wi th more powe r ( t he s upe r s t r a t e ) .

4 .1 .3 P id g i nCer t a s s i t uações de c on tac t o en t r e l í ngua s pode m re s u l t a r na c r i ação de

novas l í ngua s c omo o p idg in e o cr iou lo . O t e rmo p idg in r e f e r e a um

t i po e spe c i a l de l í ngua r eduz i da , que s e fo rm a quando g rupos de

f a l a n t e s de l í nguas d ive r s a s man t êm um con ta c to p ro longa do e p r ec i sa m

de com un ica r de n t ro de um domín i o r e s t r i t o como a e sc r ava tu r a ou o

comé rc io (Bax t e r 1996 : 535 , H o lm 1988 : 5 ) . N enhum de s t e s g rupos

adqu i r e a l í ngua do ou t ro g rupo dev i do ao f ac t o de que o p roc ess o

no rma l de ap rend i zage m de uma l í ngua se gunda não oco r r e de mane i r a

no rma l , po r mo t i vos de l im i t a ções soc i a i s . N a ve rda de o s d ive r s os

g rupos c r i am apenas um m e io de comun ic ação i nc ide n ta l . S egundo

De cam p (1971 ; c i t ado po r A ppe l & Muys ken 1987 : 175 ) :

A p i dg in l a nguage i s gene ra l l y de f ined a s a s t r ong ly r educe d

sys t e m tha t i s u s ed fo r i nc i den ta l con t ac t s be t we en spe ake r s o f

d i f f e r e n t l a nguages , and i s t he na t ive l angua ge o f nobody .

Ma teus (1990 : 228 ) foc a t am bém a sua o r i gem:

S i s t ema de com un icaç ão l i ngu í s t i c a que eme rge de con t ex to s

mu l t i l i ngues , c a r ac t e r i zado po r n ão t e r f a l an t e s na t ivos .

S egundo Bax te r ( 1996 : 535 -536 ) , a p i dg in i za ção , ou s e j a , a c r i ação de

uma l í ngua p i dg in , no rma lmen t e l e va à r eduç ão ex t r e ma do l éx i co e

t am bém de a spe c to s g r am a t i c a i s , t a i s como a f l exão e a s r e g ra s de

Page 45: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

conco rdâ nc i a . E mbora num a p r im e i r a f a se o p idg in s e j a l im i t a do a um

domín i o soc io l i ngu í s t i c o , a s cond içõe s s oc i a i s podem e s t endê - lo a

ou t ro s domín i o s . O au t o r dá com o exempl o o Tok P i s in , o p idg i n de

bas e i ng l e s a da N ova G u iné , que na sc eu como p i dg in nas l a vou ra s de

p l an t ação e depo i s pa s s ou a se r a l í ngua f r anca e l í ngua nac i ona l do

t e r r i t ó r io .

4 .1 .4 Cr iou loUm a l í ngua c r i ou la é , s egundo D ecam p (1971 ; c i t ado po r A ppe l &

Muys ken 1987 : 175 ) :

A l anguage tha t e merge d when t he p idg i n had acqu i r ed na t ive

spe ake r s .

S egundo Ve iga , ( 1982 : 20 ) cr iou lo é um t e rmo ge né r i co que r ep re s en t a

uma f a mi l i a de l í nguas , que na sua fo rm açã o t i ve r a m a m es ma o r ige m e

um me sm o con te x to s oc iocu l tu r a l . Ou t ro s l i ngu i s t a s com o L im a (1992 :

23 ) ap re s en t am de f i n i çõe s com o:

O c r iou lo é uma va r i edade r eg iona l de uma l í ngua de c iv i l i z ação ,

na s c ida da ap rend i zagem des sa l í ngua po r a u tóc t ones que , t endo

como l i nguage m p róp r i a f a l a r e s de um a na t u r eza t o t a l men t e

d ive r s a da ap rend ida , i n t roduz em ne l a im por t an t e s a l t e r ações

foné t i ca s e , p r inc ipa l men t e , p ro fundas mod i f i caçõe s na e s t ru tu r a

mor fo lóg i ca - s in t ác t i ca ( e m e s pec i a l , um a s i mp l i f i c a ção ac en tuada

nas f l exõe s , s empre que s e t r a t a de um a l í ngua f l ex i ona l ) .

Ma teus (1990 : 228 ) de f ine o t e rmo cr iou lo como:

l í ngua fo rmada pe l a e xpans ão e com plex i f i caç ão de um p i dg in e

que s e t o rna a p r ime i r a l í ngua de um a com un idade .

Cri ou l i z ação é o p roce ss o de fo rma ção de um c r iou l o po r expans ão , e

que pas s a a s e r a p r i me i r a l í ngua duma de t e rmi nada c omun idade

(Ma teus 1990 : 111 ) . S egundo H yme s (1971 : 81 ) e s t a l í ngua c r i ou l a

adqu i r e au tonom ia e s e t o rna a l í ngua ma te rna dos que o u s am . Mot a

(1996 : 525 ) a i nda exp l i ca que o t e rm o cr iou lo :

Page 46: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

es pec i a l i z ou - se (…) como nom e gené r i co das l í ngua s f a l adas pe l o s

i nd iv í duos c r iou lo s , nome adame n te na zona das Ca ra í bas e da

Áf r i ca oc c iden t a l , num p r ime i ro mom en to , e de po i s em t odas a s

zonas onde a s ua fo rm ação oc o r r eu (P ac í f i co S u l , O cea no Ind i co ,

e t c . ) .

S egundo a au t o r a o t e rm o vem do ve rbo po r tuguês ‘ c r i a r ’ , s i gn i f i c ando

o r ig ina lme n te ‘ an i ma l c r i a do em ca sa ’ ; de ‘ e s c r a vo nasc ido e c r i ado

numa c o lón ia da Am ér i c a ’ pa s sou a s i gn i f i c a r ‘ qua lque r i nd iv í duo

mes t i ço (de o r i gem a f r i cana ) ’ .

Um c r iou l o , s e gundo Bax te r ( 1996 : 541 -542 ) , é uma l í ngua na t iva que

nas ce num a s i t uaç ão e s pec i a l que c onduz à ac qu i s i çã o de uma l í ngua

p r ime i r a , c om bas e num m ode lo de l í ngua s egunda de fe i t uosa , t i po p r é -

p idg in ou p i dg in . O au to r a c r e s cen t que um c r i ou lo é f a l ado po r um a

comun i dade cu j o s a n t epa ss ados pa r c i a lm en te pe rde ram os s eus l a ç os

soc io l i ngu í s t i c o s e cu l tu r a i s o r ig ina i s , dev ido à c o lon iz ação e u rope i a e

a e s c r ava tu r a . O s p r ime i ro s e sc r avos v iv i a m numa s i t uaçã o onde u sa vam

uma l í ngua s egunda m u i to rud i men t a r e que e r a va r i áve l , po rque e r a

mu i t o i n f lue nc i a da pe l a s l í nguas ma t e rnas dos f a l an t e s . As c r i anças ,

na s c ida s ne s t a s s i t uações s oc io l ingu í s t i c a s e que e r am expos t a s t an to à s

l í ngua s na t iva s dos pa i s com o àque l a l í ngua se gunda de fe i t uos a e

ba s eada na l í ngua eu rope i a , cons egu i r am u t i l i z á - l a na fo rm açã o da sua

p róp r i a l í ngua na t iva , ou s e j a , o c r i ou lo . A s l í nguas fo rmada s a s s im

cham amos de l í nguas c r iou l a s de p lan t ação ou l í nguas c r iou l a s

exóge nas . A m a io r i a dos c r iou l o s da r e g i ão a t l ân t i ca sã o des t e t i po .

Como exe mplo pude - se da r en t r e ou t ro s , o s c r i ou lo s de bas e l ex i ca l

po r tugues a e m S ão Tom é e em Cabo V erde . Ex i s t em t ambém l í nguas

c r iou la s de f o r t a l e z a ou endógenas , como po r e xempl o , o s c r i ou lo s de

bas e l e x i ca l po r tugues a na Á s i a . O p r inc ipa l f ac to r c omum à génes e dos

do i s t i pos de c r iou lo s ac i ma m enc i onados é a aqu i s i ção e o

de s envo lv i men t o de uma l í ngua p r i me i r a ba s eada nos mode los

i ncom ple t o s de va r i eda des de uma l í ngua p r i me i r a e uma ou ma i s

l í ngua s s egunda s .

Page 47: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Os c r i ou lo s com ba se l ex i c a l po r t uguesa o f e r ece m-nos , s e gundo

Andra de A la i n Ki hm (1992 : 3 ) , um pa radoxo . S endo a s ma i s an t iga s

l í ngua s c r iou l a s con t inuam a t é ho j e a s e r a s m enos e s t udadas .

4 .1 .5 L ín gu as c r iou las e a e s cr i taS egundo Crys t a l ( 1992 : 101 ) , Mye r s -S co t ton (2006 : 24 ) e Mufw ene

(2004 : 460 ) quando f a l amos de d i a l ec to e s t anda rd i zado , na ve rdade

e s t am os a f a l a r de uma ve r s ão da l í ngua que fo i se l ec c ionada pa ra

r ep re s en t a r a l í ngua . D ia l ec t o s n ão -e s t a nda rd i za dos s ão quas e s em pre

apena s va r i edade s f a l adas (Mye r s -S co t ton 2006 : 23 ) . No c a s o de l í nguas

c r iou l a s , a ma i o r pa r t e a inda nã o t em uma e s c r i t a e s t anda rd i z ada po rque

e s t a s l í nguas c r iou l a s nã o t i nha m o mes mo p re s t í g io que a s l í nguas dos

co lon i zado re s (G ros j ean 1982 : 7 ) . Me sm o ho je em d i a , a s l í nguas dos

povos r e cém - l ibe r t o s da domina ção co l on ia l a inda nã o se impus e ram

como l í nguas o f i c i a i s na m a io r i a dos pa í s e s a f r i c anos , s ob re t udo nos de

exp re s s ão o f i c i a l po r t ugues a , dev ido a o f ac t o de a s au to r i dades

co lon i a i s t e r em s empre r ecus ado a r e conhece r e a t r a nsc r eve r e s t a s

l í ngua s t endo com eçado s ó há pouco t empo a se r em es c r i t a s (V e iga

1982 : 17 ) . Em s egundo l uga r , t a mbém há a r azã o da mu l t i p l i c i dade das

l í ngua s f a l adas ne s t e s pa í s e s , o que , se gundo a s au to r ida des pós -

co lon i a i s , d i f i cu l t a r i a a e s co lha de uma de l a s como l í ngua o f i c i a l . Em

t e r c e i ro l uga r , não t e m hav i do a von tade po l í t i c a ne ces s á r i a pa r a s e

dec i d i r a r e s pe i to de c e r t a s ques tõe s com o a e s t anda rd i za ção . U ma

exce pção é i l u s t r a da po r G ros j ean (1982 : 8 ) , qua ndo dá o exem plo de

P e ru onde à l í ngua G ua ran i é dada qua se a mes ma impor t ânc i a que é

dado à l í ngua d o an t i go co lon i zado r , o e s panho l .

Page 48: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

4 .1 .6 Esta tu to e i d en t id adeUm a l í ngua é p r i me i r a men t e um m e io de c omun ic ação o r a l . A l i nguage m

nas ceu pa ra pe rmi t i r a o s i nd iv íduos de uma soc i edade comun i ca r em

en t r e s i (B roek 1998 : 1 ) . N o en t a n to , Bake r (2006 : 46 ) ac r e s ce n ta uma

ca r a c t e r í s t i c a i n t e r e s s an t e :

Langua ges exp re s s i den t i t y . Langua ge i s an i nde x , sym bo l and

make r o f i den t i t y .

Mye r s -S co t ton (2006 : 6 ) d i z quas e o me sm o po r ou t r a s pa l av ra s :

Eac h l anguage does “ s oc i a l work” fo r i t s s peake r s . La nguages a r e

t he s ing l e mos t i mpor t a n t s ymbo l o f g roup i den t i t y. I t s e rves a s a

pos i t i ve badge o f i den t i f i c a t i on .

Nã o é po r aca so que no d i s cu r s o co lon ia l a l í ngua c r i ou l a é c l a s s i f i c ada

de “d i a l ec to” , s em g ramá t i ca nem r eg ra s de e spé c i e nenhuma , po r

opos i ção à s l í nguas dos pa í s e s co lon i zado re s , l í nguas de cu l t u r a , de

c iv i l i z ação (V e i ga 1982 : 15 ) . E s t a pe r s pec t iva não t em um ca rác t e r

pu rame n te l i ngu í s t i co , mas t e m a ve r c om as r e l ações s oc iocu l tu r a i s e

soc ioec onómica s e n t r e a s l í nguas eu rope i a s e a s l í ngua s c r i ou l a s .

Re l a ções que de t e rmi na ram nã o só o u s o das d i f e r e n t e s l í nguas , mas

a inda o e s t a tu t o sóc io -po l í t i c o de cada uma de l a s (Ve iga 1982 : 16 ,

P e re i r a 1996 : 552 ) .

S egundo Ve iga ( 1982 : 16 ) e a m a io r pa r t e dos l i ngu i s t a s ac tua i s n ão se

pode s epa ra r a l í ngua da s oc i eda de em que e l a na sc eu , dada a sua

funç ão soc i a l . I s s o que r d i ze r que o s t e rmos l í ngua e soc i edade , no ca s o

e s pec i a l de l í ngua s c r iou l a s , t êm que se r v i s to s den t ro da r e l aç ão

domina do r -domina do , a lgo que s em pre ca r a c t e r i zou a s i t uaç ão dos

e s c r avos e s eus de s cenden t e s em r e l aç ão aos co l on izado re s . De n t ro

des sa r e l aç ão , o domina do f a l a va um d ia l e c to . I s t o é , a l í ngua e r a o

s í mbo lo da cu l t u r a de c i v i l i z aç ão do co l on izado r , ao pas s o que o

d ia l e c to e r a o m e io de c omun ic aç ão de povos i nc i v i l i z ados . Mufw ene

(2004 : 461 ) va i ao pon to de d i ze r :

I a rgue t ha t t he t e rm s a nd no t ions a r e m i s nomer s t ha t r e f l ec t

nega t ive co l on ia l b i a s e s t ow ard non -eu rope an popu la t i ons and

Page 49: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

t he i r wa ys o f s peak i ng l angua ges .

P odemos conc l u i r que a r e l aç ão que s e e s t abe l ec eu en t r e l í ngua e

soc i eda de no con te x to co l on ia l , e r a o s egu in t e : enqua n to o co l on izado r

f a l a va uma “ l í ngua ” , o co lon i zado c omun ica va em “d ia l ec t o” (Ve iga

1982 : 16 ) . To rna - se , po i s , ev iden t e que a exp re s sã o “d i a l ec t o c r iou l o”

não é de ca r ác t e r i noc en te .

4 .2 O cr iou lo cab o-ver d i ano

S egundo Ve iga (1982 : 20 ) e L i ma (1992 : 23 , 26 ) o u s o do t e rmo c r i ou lo

pa r a de s i gna r a l í ngua f a l ada em Cabo V erde t e r i a de s e r r e v i s to . O

t e rm o não s e rv i r i a pa r a c a r ac t e r i za r o g rupo é tn i co cabo -ve rd i ano . S e r i a

me l ho r , s e gundo L im a (1992 : 26 ) , cha mar s im p le s men t e a l í ngua f a l ada

em Ca bo Ve rde de ca bo -ve rd i ano ( “ kabuve rd i a nu” ) .

Como v im os , o t e rmo cr iou lo n ão s ó é am b íguo no s en t i do em que pode

des igna r o m es t i ç o de o r ige m a f r i cana , c omo t am b ém no s en t ido em que

há d i f e r en t e s l í nguas c r iou l a s em d i f e r en t e s pa r t e s do mundo . P o rém,

quando em Cabo V erde a l guém d i z ‘ eu f a l o c r iou l o ’ , t odos sabe m que s e

t r a t a de um a l í ngua c r iou l a e que e s t a é o c r i ou lo ca bo -ve rd i ano . A

mes ma co i s a não s e pode d i ze r , po r e xempl o , em F rança ou num ou t ro

con te x to , po i s pode s e r o c r i ou lo das A n t i l ha s , Se i che l l e s , e t c .

Ne s t a t e se , po ré m, pa r a d i s t i ngu i r a s l í nguas em Cabo V erde , a s abe r : o

c r iou l o cabo -ve rd i ano e o po r t uguês , eu u t i l i zo o s t e rmos cr iou lo e

cr iou lo c abo -ver d iano , no se n t ido l i ngu í s t i co neu t ro e se m cono t ações

pe jo r a t i va s .

4 .2 .1 O cr iou lo d e C abo V er de : d i a l ec to ou l ín guaS egundo Ve iga (1982 : 7 ) , o c r iou l o r ep re s en t a uma r e s pos t a à impos i çã o

f e i t a aos e s c r avos de s e en t ende rem com o c o lon iz ado r na l í ngua do

co lon i zado r . O e s c r avo a f r i cano c omeçou po r r e cupe ra r a s s uas r a í ze s

cu l t u r a i s a t r avés da fo rma ção de um a nova l í ngua . Es t a nova l í ngua fo i

Page 50: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

evo lu i ndo da e s t ru t u r a o r ig ina l em va r i an t e s l i ngu í s t i c a s e c ada um a

de l a s fo i adqu i r i ndo ca r ac t e r í s t i c a s p róp r i a s , de a co rdo com os

e l e men t os é t n i cos que e s t avam na bas e do povoame n to de ca da uma das

i l ha s do a rqu ipé l ago . Ape sa r de s sa va r i aç ão d i a l ec t a l , o c r i ou lo ca bo -

ve rd i a no se mpre é um a l í ngua com un i dade de e s t ru tu r a p ro funda

su f i c i e n t e pa r a que ha j a comun i caçã o en t r e o s f a l an t e s da s d i f e r en t e s

i l ha s (V e i ga 1982 : 24 ) . A lém d i s so , pode - se conc lu i r t am bém que o

c r iou l o , con t r a r i ame n te a o d i s cu r so c o lon ia l , n ão é um d i a l e c to do

P o r tuguês , po rque n ão fo r am f a l an t e s do po r t uguês que de r am o r igem ao

nas c im en to do c r i ou lo , ao c omun ic a r em e n t r e s i em i l ha s a f r i cana s ,

l onge de Po r t uga l .

Embora se mpre ha j a pe s s oas que con t i nuem a cons i de ra r o c r iou lo ca bo -

ve rd i a no como d ia l e c to ( c f . P e r e i r a 1996 : 552 ) , o c r iou l o t em de s e r

cons ide ra do uma l í ngua . A sua génes e deu - s e po r i mpos i ção c u l tu r a l e

po l í t i c a eu rope i a ; e l a s u rg iu num con t ex to c o lon ia l po r tuguês , pa s s ando

po r um p roce ss o s oc io l ingu í s t i co de ixa ndo marca s na sua e s t ru tu r a

l i ngu í s t i c a (L im a 1992 : 24 -25 ) . N ão s abem os qua ndo o p ro to - c r iou l o se

t o rnou em mode l os que lhe de r a m o ca r á c t e r dum s i s t ema indepe nden te

da s r a í z e s de o r igem , a s abe r a l í ngua po r t uguesa e a l gumas l í ngua s

a f r i c anas . S egundo o mes mo a u to r , t r a t a - s e , na fo rm ação do c r iou lo

cabo -ve rd i ano , do me sm o p roces s o que se dá na fo rm ação de qua lque r

l í ngua pe lo s s egu in t e s m o t ivos :

1 . o c r iou l o cabo -ve rd i ano não c ons t i t u i uma va r i edade r e g iona l do

po r tuguês ou de c e r t a s l í nguas a f r i ca nas ( c f . 4 . 2 .1 ) ;

2 . o c r iou l o cabo -ve rd i ano t e m-s e man t ido com o un idade

indepe nden te ; i s t o que r d i ze r que t em um a e s t ru t u r a e um s i s t e ma

p róp r io e i ndependen t e ( c f . 4 . 2 .4 ) ;

3 . de l í ngua f r anca ou de l í ngua p idg i n , o c r iou lo c abo -ve rd i ano

t r ans fo rmou- s e e m l í ngua de cu l tu r a ( c f . 4 . 2 .6 ) ;

4 . o c r iou l o cabo -ve rd i ano cons t i t u i o e l eme n to cu l tu r a l que

s i gn i f i c a ma i s va lo r e s cu l tu r a i s c a bo -ve rd i a nos ( c f . 4 . 2 .7 ) ;

5 . o c r iou l o cabo -ve rd i ano é um e l em en to funda men t a l de

ap rend i zagem e i n t eg raçã o soc i a l ( c f . 4 . 3 .2 ) .

Page 51: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

4 .2 .2 A gé ne se do c r iou lo c abo-ve rd ian oDe v ido ao f a c to de que não ex i s t e m docum en tos s ob re a s cond iç ões do

su rg i men t o e da evo l ução do c r iou lo ca bo -ve rd i a no , a génes e des t e

c r iou l o t em s i do ob jec t o de mu i t a s e s pecu l ações . S egundo P e re i r a

(1996 : 553 ) , o c r i ou lo ca bo -ve rd i ano fo i um dos p r ime i ro s c r iou l o s de

bas e po r tugue sa que se fo rmaram na cos t a oc iden t a l de Áf r i ca . A lguns

e s tud io s os chega ra m à c onc lu s ão de que na génes e de c r iou lo s ,

i nc l u s i ve a de Ca bo Ve rde , e s t a r i a um p i dg in de bas e po r t ugues a que

da t a do sé cu lo X V- X V I , o qua l p rov i nha de um ou t ro p idg i n o r ig iná r i o

do Me d i t e r r âneo O r i en t a l (V e i ga 1995 : 19 ) . Es s e p idg i n , a que fo i dado

o nome de l í ngua de re conhec i me n to , t e r i a su rg i do na Eu ropa como

r e s u l t a do do t r e i no l i ngu í s t i co dos e s c r avos t r az idos da Á f r i ca O r i e n t a l

(Na ro 1978 : 334 ) . Es t a t eo r i a é cha mada a t eo r i a monogené t i c a (ve j a

t am b ém M ota 1996 : 529 ) . N o ca s o de p idg i n s c om bas e l e x i ca l

po r tugues a , N a ro (1978 : 334 ) vem com a h ipó t e s e de que o s t r a ços

fundame n ta i s de s t e p idg in s e r i am os s egu in t e s :

P a r t í c u l a s adve rb i a i s a c en tuada s e f ono log ica men t e au tonóm as , em

vez de f l exões l i gadas , pa r a o t empo-a spec to ; p ronom es

p l ena men t e ace n tuados ( exem plo : nunc a ) ; au s ênc i a de

t r ans fo rma ções de qua l que r e s péc i e nos s i s t emas nomi na l e ve rba l ;

pe rda de p r epos i ções ou s ua s ubs t i t u i ção po r uma fo rma ún i ca

( exem plo : na ) ; u s o pouco f r equen t e do enca ixe ; coo rdenaç ão

a t r a vés da j u s t apos i ç ão ; nom ina l i zaç ão pouco f r eque n te .

Ma teus (1990 : 355 ) de f ine a t eo r i a monogené t i ca como:

Teo r i a s egundo a qua l o s p i dg in s e o s c r iou l o s s ão ve r s ões

r e l e x i f i c adas ( com m anu tenç ão da s in t axe bás i c a e s ubs t i t u i ção do

l éx i co ) de um p idg in de ba se po r tugues a u s ado no s écu l o XV na

cos t a oc iden ta l de Á f r i c a .

S egundo Ve iga (1995 : 19 ) e Ca r r e i r a ( 1982 : 62 -63 ) nã o há a rgume n tos

su f i c i e n t e s que dem ons t r em ou c omprovem a t eo r i a de N a ro (1978 ) po r

do i s mo t i vos . E m p r im e i ro l uga r , t r e ina r o s e s c r avos em P o r t uga l ,

naque l a época , não pa rec e t e r s i do t a r e f a f ác i l e a ce i t e pe l a s oc i edade

Page 52: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

por tugues a . M es mo s e o t r e ino fo s se ace i t e , o núm ero de e s c r a vos e r a

mu i t o g r ande pa ra t r e i na r . P o r ma i s s im p le s que fo s se e s se t r aba l ho , a

sua ap rend i zagem ex ig i r i a mu i to t e mpo . I s to não pa rece c on juga r com a

p r e s sa e a im pac i ênc i a dos c o lon iz ado re s eu ropeus , que des e j avam

en r ique ce r - s e o ma i s dep re s sa poss íve l e de p r e f e r ênc i a , com o menor

i nves t i men t o . Em s egundo l uga r , t odas a s cond i ções j á e s t avam r e un idas

na s i l ha s de Cabo Ve rde pa r a o s u rg im en to de um c r i ou lo .

A d i ve r s idade de l í ngua s f a l adas pe l o s e sc r avos de e tn i a s d i f e r en t e s

cons t i t u í a um a d i f i cu ldade eno rme a o en t e nd imen t o en t r e s i e ma i o r

a inda com os s enho re s , sob re tudo pe l o f ac to de s t e s não pe rce be rem ne m

f a l a r em as l í nguas a f r i c anas (Ce r rone 1996 : 73 ; P e re i r a 1996 : 552 ) .

O c r iou lo c abo -ve rd i a no deve t e r su rg i do como um a l í ngua e s pec í f i ca ,

p rodu to de vá r i a s l í nguas e em que uma de l a s , o po r tuguês , domi na , e a s

r e s t an t e s , a s l í nguas a f r i canas , pa s s am à c ond içã o de domina das .

O c r iou lo e m Cabo V erde c omeça , a s s i m , po r s e r uma l í ngua h í b r ida , a

qua l é dada pouco va lo r . Ta lvez , no p r i nc íp i o , a inda nã o se t r a t a s s e de

um ve rda de i ro c r i ou lo , po rque a inda não func ionava como l í ngua

p r ime i r a c om capa c idade de s a t i s f az e r t oda s a s nec es s i dades de

comun i caçã o dos s eus f a l an t e s , ma s s e t r a t a s s e de um p ro to - c r iou l o .

Es t e p ro t o - c r iou l o t e r i a de s empe nhado a funçã o de l í ngua de i n t e r -

compre ens ão en t r e se nho re s e e s c r avos das d i f e r e n t a s e tn i a s e s ó depo i s

se t o rnou a l í ngua p r i már i a de s eus de sc enden t e s .

Ou t r a h ipó t e s e s ob re a géne se do c r iou lo c abo -ve rd i a no é que s e fo rmou

nos r i o s da cos t a da G u iné e fo i de po i s l evado pa ra a i l ha de S an t i ago

de Cabo V erde po r e sc r avos o r iundos da Gu i né (Ca r r e i r a 1972 : 337 -

338 ) . Ma s a pe rmanê nc ia de b r ancos nos po r to s f l uv i a i s da cos t a

a f r i c ana fo i du ra n t e m u i to t empo t emporá r i a e não t i nha a con t i nu idade

que pudes s e pe rmi t i r r e l aç ões , que des se m luga r à f o rmaç ão de uma

l í ngua . Po r r a zões de s egu ranç a ou po r conven i ênc i a s do c omérc i o , o s

eu ropeus e s eus de s cenden t e s não s e f i xava m nos povoados i nd íge nas da

cos t a a f r i cana . Po r i s s o a h i pó t e s e da fo rm ação do c r iou lo c abo -

ve rd i a no na á r ea dos r i o s da Gu i né não pa re ce mu i to ev i den te . É ma i s

Page 53: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

l óg i c o que o c r i ou lo cabo -ve rd i ano t enha s ido c r i ado em Ca bo Ve rde e

que fo i de po i s l evado pa ra o s po r to s da Cos t a da G u iné pe lo s p r e to s e

mu la to s , que o s b r ancos u t i l i z a vam com o me i o de com un icaç ão com os

neg ros não acu l tu r ados , com a f i na l idade de a s se gu ra r a s r e l a ções

come rc i a i s . O u s e j a , uma h i pó te s e ma i s p rováve l é que o s mu la to s

a l fo r r i ados mandados pa r a o s r i o s da Gu i né como ne goc ian t e s ao s e rv i ço

dos b r a ncos soube ram t r a nsm i t i r e d i fund i r a l í ngua c r iou l a naque l e

se c to r da cos t a da G u iné . Es t a i de i a e s t á de ac o rdo com o que S i l va

(1984 b : 31 ) j á d i z i a a e s t e r e s pe i to :

S uponho que o c r iou l o f a l a do na Gu i né é , nã o uma c r i ação

r e s u l t a n t e d i r ec t a men t e do con ta c to do i nd ígena c om o po r tuguê s ,

mas s im o c r iou lo c abo -ve rd i a no de S o taven t o l eva do pe lo s

co lonos i dos do a rqu i pé l ago e que , com o t empo , s e fo i

d ive r s i f i c ando e a dqu i r indo c a r ác t e r e s p róp r io s s ob a i n f luê nc i a

da s l í ngua s na t iva s .

Ac tua l men t e se pa r t e do p r inc íp i o que o c r i ou lo cabo -ve rd i ano na sce u

na i l ha de S an t i ago (Ce r rone 1996 : 73 ; P e re i r a 1996 : 553 ) . O c r i ou lo

cabo -ve rd i ano t e r i a s ido um a t en t a t i va cons egu ida de r ee l abo ra r um a

l í ngua , a pa r t i r de não s ó o po r tuguê s c omo t am bém da s l í nguas

ma t e rnas dos a f r i ca nos .

4 .2 .3 S up er s t ra to e su b s tra to d o cr iou lo c abo-ve rd ian oComo v im os e m 4 .2 .2 , a l í ngua de supe rs t r a to no c r iou l o cabo -ve rd i ano

é a l í ngua po r t uguesa . As l í nguas de subs t r a to s ã o d i f e r e n t e s l í ngua s

a f r i c anas . É cu r i o so que poucas da s ob ra s cons u l t ada s m enc i onam as

l í ngua s a f r i cana s e m ques t ão , que se rv i r am de subs t r a to . O que

demons t r a , ma i s um a vez , a de s i gua lda de com que e r am e sã o v i s t a s e

e s tudada s , po r um l ado , a s l í nguas eu rope i a s e , po r ou t ro l a do , a s

l í ngua s a f r i cana s .

Page 54: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

4 .2 .4 A e s t r utu ra d o cr iou lo cab o-ver d i anoO c r iou lo c abo -ve rd i a no t em uma e s t ru t u r a p róp r i a que i nd i ca a s ua

o r igem a f ro - eu rope i a . O l éx i co do c r iou l o cabo -ve rd i ano que , po r um

l ado , r e co rda o po r tuguê s do s éc u lo X VI e , po r ou t ro l ado , a p r e s ença

de d ive r sos t e rmos de o r igem a f r i c ana , a l ém da s im p l i f i c aç ão

g r ama t i c a l , f a z do c r iou l o um ve rdade i ro p rodu to l i ngu í s t i co o r ig i na l

(Ce r rone 1996 : 71 ; P e re i r a 1996 : 553 , Ba t a lha 2004 : 84 ) .

S egundo Ca r r e i r a ( 1972 : 339 ) , o c r i ou lo da G u iné é ma i s

ace n tuadam en te a f r i ca no , que r no vocabu l á r io que r nos fonem as , ao

pas so que o s fone mas a f r i c anos no c r iou lo c abo -ve rd i ano sã o ma i s

a t e nuados . S i lva (1984 b : 31 ) j á cons t a t ava que o s c r iou lo s f a l ados na

á r ea de S enega l e na s i l ha s de Cabo V erde s ão d i f e r en t e s e s egundo e l e

i s t o e r a o r e s u l t ado de vá r io s f ac t o r e s mu i t o sub t i s . No que d i z r e s pe i to

aos vocábu l os do c r i ou lo ca bo -ve rd i ano , t a lve z ma i s de 90 % se j am

o r ig iná r io s do po r tuguês . M u i to s de l e s s ão a r ca i c os , s ão voc ábu los que

j á nã o sã o u sados em Po r t uga l m as que a inda con t i nuam a e x i s t i r na s

i l ha s de Cabo V erde . P o r ou t ro l a do , a i n f l uênc i a a f r i c ana no

vocabu l á r io c r i ou lo de S o ta ven to s e r i am p r inc ipa l men t e p rov inda da s

l í ngua s do G rupo M andé . A mes ma in f luê nc i a s e e ncon t r a no c r iou lo

f a l a do na G u iné .

Ou s e j a , t a mbém e m Cabo V erde e x i s t em g randes d i f e r e nças en t r e o s

c r iou l o s a l i f a l ados (Ba ta lha 2004 : 32 -33 ) . Po r e xemplo o c r iou lo de

S an t i a go , t am bém conhe c ido po r bad iú , é ma i s ap rox im ado do de M a io ,

mas é fone t i ca men t e d i f e r e n t e do de Fogo 1 3 .

P e r e i r a (1996 : 552 ) d i z que o c r iou l o cabo -ve rd i ano t e m, com o todas a s

l í ngua s , s uas va r i an t e s r eg i ona i s e s oc i a i s , sob re tudo a n íve l l e x i ca l e

f oné t i co . A au to r a d i z que o s p róp r io s cabo -ve rd i anos t ê m o s en t im en to

13 N ã o s e c o n s i d e r a a q u i a s i l h a s d e B a r l a v e n t o , q u e f o r a m q u a s e t o d a s p o v o a d a s b a s t a n t e t e m p o d e p o i s d a s i l h a s d e S o t a v e n t o , a s u l , c o m o S a n t i a g o , F o g o e M a i o .

Page 55: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

de que e x i s t em dua s g r a ndes va r i eda des r eg iona i s : a de Ba r l aven t o e a

de S o tave n to . A ima gem da a l t a va r i ab i l i da de vem, s egundo a au to r a , de

ou t ro s f enóme nos que são e spe c í f i cos pa r a l í nguas c r iou l a s . O cons t a n t e

con ta c to com a l í ngua po r tugues a , que é uma l í ngua de p r e s t í g io e a inda

a do ens ino e m Cabo V erde , c onduz à fo rma ção de um as va r i eda des que

sã o denomi nadas pe lo s p róp r io s ca bo -ve rd i anos com o ma i s f undas , ou

se j a , m enos a s s im i l a das , e ou t r a s va r i edades que s ão c hamada s de ma i s

l e v e s ou se j a , m a i s a s s i mi l adas . O con tac to com a l í ngua po r tugues a não

é i gua l em todas a s i l ha s . Con t udo , a s d i f e r en t e s va r i eda des não

impe dem a i n t e l i g ib i l i da de mu t ua l nem o se n t im en to c omum dos cabo -

ve rd i a nos de se f a l a r a mes ma l í ngua , i s t o é , o c r iou l o cabo -ve rd i ano .

Nã o ex i s t e m no rmas de g r a f i a e s t a nda rd i z ada pa r a o c r iou lo c abo -

ve rd i a no . A l ém d i s s o , a opçã o po r fo rmas p roemi nen te s do pon t o de

v i s t a f oné t i c o como a fo rm a an t iga da p r i me i r a pe s soa do p ronome

pes soa l ‘mym ’ ( em vez de eu ) e a negaçã o ‘nunca ’ ( com o va lo r de não ) ,

a s s i m com o a aus ênc i a de f l e xões de t em po e pe s s oa no ve rbo s ão ,

se gundo Pe re i r a (1996 : 555 ) , s i na i s a i nda ho j e ex i s t en t e s na l í ngua

cabo -ve rd i ana .

É t a mbém mui t o impor t an t e r e conhece r a d i f e r ença c oncep tua l que

ex i s t e en t r e o po r t uguês e o c r i ou lo , po rque a s duas l í nguas t êm

conce i to s d i f e r e n t e s apes a r do f a c to de m a i s de 90% do a c tua l l éx i co do

c r iou l o cabo -ve rd i ano t e r a s ua o r igem no po r tuguês dos sé cu lo s XV e

XV I (Ca r r e i r a 1972 : 339 ) . Do pon t o de v i s t a e s t ru tu r a l , o c r iou lo c abo -

ve rd i a no é t o t a lme n te a u tonómo em r e l a ção ao po r t uguês . É e s s a

au tonom ia que pode exp l i ca r o f ac to que o c r iou lo dos f a l a n t e s

mono l i ngues ma l t enha s ido a t i ng i do pe l a de sc r iou l i zaçã o . Ve ja t ambém

P e re i r a (1996 : 558 ) .

4 .2 .5 O e s ta tu to d o cr iou lo c abo-ve rd ian oEm 1462 qua ndo o povoame n to das i l ha s de Cabo V erde com eçou com

es c r avos a f r i c anos , a lguns come rc i a n t e s genoves es e um núm ero

Page 56: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

r eduz i do de co lonos po r tugue se s ( a ven tu re i ro s , de g radados , e

mar i nhe i ro s ) , a s i t uação l i ngu í s t i c a dev i a s e r mu i to compl exa e mu i t o

d ive r s a (V e i ga 1995 : 23 -24 ) . Es s a d ive r s i dade de l í nguas que ex i s t i a no

in í c io , pa s s a pa r a um in s t rume n to de com un ica ção , s endo a i nda mu i to

l im i t a do . Po r s e r um me i o de comun i caç ão in s t áve l e que nã o obedec i a a

uma e s t ru tu r a de f i n ida , c om poucos r ecu r s os g r ama t i ca i s e l e x i ca i s e

aus ênc i a de h i e r a rqu iza ção , o p r i me i ro e s t a tu t o de s se i n s t rumen t o se r i a

o de p idg i n . Com o nas c i men to de f i l hos dos e s c r avos nes t a s oc i edade

de p l a n t açã o , f o r am c r i adas a s cond i ções pa r a que o p i dg in en t r a s se

numa nova f a s e , a de c r iou l i zaçã o .

Com bas e e m docume n tos h i s tó r i c os , Ca r r e i r a ( 1982 : 53 ) s i t ua a

f o rmaç ão do c r iou l o cabo -ve rd i ano en t r e 1550 e 1660 e d i z que o

c r iou l o fo rmado e m Cabo V erde t e r i a i n f luenc i ado o c r i ou lo das

An t i l ha s , m a i s e s pec i f i ca men te a i l ha de S ão D omingos , ma s t ambé m o

de Curaç ao e dos r i o s da G u iné , em pa r t i cu l a r o Kr i o da S e r r a Le oa .

I s t o po rque , j á em 1660 , m u la to s e c r iou lo s na t u r a i s de S an t i ago do

Cabo V erde t e r i am se rv ido de ‘ l í nguas ’ ou de i n t é rp r e t e s a os m orado re s

e s enho re s (Ca r r e i r a 1982 : 67 -68 ) .

P o r t an to , s e o s docum en tos em que Ca r r e i r a ( 1982 : 63 ) s e ba s e i a fo r em

de con f i ança , o f a l a r da s i l ha s no in í c io do s écu lo X V I I j á s e

de s envo lv i a pa r a o e s t a tu t o de c r iou l o , c a r ac t e r i zando - s e po r uma

e s t ru tu r a i n t e rna e ex t e rna mu i to ma i s e s t áve l e mu i to ma i s

de s envo lv i da do que a do p i dg in o r ig i ná r io e de i n f luê nc i a em ou t r a s

pa r t e s do m undo . Em 1794 o c r iou lo ca bo -ve rd i a no j á t i nha t a n t a

impor t ânc i a em Ca bo Ve rde que um e sc r i t o r a nón imo a f i rma que o s

b r ancos que m oravam e m S an t i ago , r a ro s e r am os que sab i am f a l a r a

l í ngua po r tugues a de um a fo rma co r r ec t a e m u i to s apena s f a l avam o

c r iou l o cabo -ve rd i ano (Ca r r e i r a 1982 : 68 ) .

S egundo Ve iga (1995 : 25 ) , é obv io que o c r iou lo f a l ado pe l o s a f r i canos

r ecé m-chega dos do c on t inen t e ou o s mes t i ços pe r f i l ha dos pe lo pa i

b r anco ou pe lo s senho re s de d ive r s a s o r igens que t i nham o po r tuguês

como l í ngua de subs t r a to , a i nda não pod ia s e r um c r iou l o e s t áve l como

Page 57: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

o de ou t ro s na s i l ha s de Cabo -V erde e ne m pod ia fo rmar - s e duma

mane i r a o rdena da . É po r i s s o l óg i co pens a r - s e que a fo rm açã o da l í ngua

cabo -ve rd i ana nã o se deu se m p rob le mas (Ba ta lha 2004 : 48 ) .

I s t o con t r i bu iu pa r a que o c r iou l o cabo -ve rd i ano t i ve s se sem pre um

es t a t u to de d ia l e c to , p a l a v ra que , com o j á v i mos , t em uma ce r t a

cono ta ção pe j o r a t i va . D e f in im os d ia l e c to como um a va r i an t e r e g iona l de

uma da da l í ngua ( c f . 4 . 1 .1 ) . V imos t a mbém que o e s t a t u to de ca da

va r i a n t e de um a l í ngua é m a i s po l í t i co do que l i ngu í s t i co , s endo uma s

cons ide ra das l í ngua e ou t r a s d ia l e c to s . Mye r s -S co t ton (2006 : 26 )

menc iona o f ac to que c e r t a s pe s s oas r e f e r em a l í nguas f a l ada s no

Te rc e i ro M undo como s endo d i a l e c to s . Ba t a lha (2004 : 62 ) con f i rma

d i ze ndo que todo o e l eme n to cu l tu r a l r e l ac ionado à Á f r i c a s empre fo i

cons ide ra do in f e r io r e r e t a rdado . Todav i a , com o a l í ngua cabo -ve rd i ana

r e s u l tou da con junç ão da e s t ru t u r a g r ama t i c a l da s l í nguas a f r i c anas

f a l a das pe lo s e s c r avos com o l éx i c o do po r tuguês de qu inhe n t i s t a ,

l i ngu i s t a s j á n ão duv idam do se u e s t a tu t o de l í ngua (Ba ta lha 2004 : 84 ) .

0 e s t a t u to soc io l i ngu i s t i c o do c r iou l o cabo -ve rd i ano , po rém , é d i f e r e n t e

do da l í ngua po r tugue sa . E s t e e s t a tu to t em a ve r com a fo rm açã o da

soc i eda de cabo -ve rd i ana , que fo i p r im e i r a e sc l avag i s t a e de po i s

co lon i a l i s t a (Ba ta lha 2004 : 43 ) .

4 .2 .6 O cr iou lo cab o-ver d i ano e a e s cr i taQua ndo pens amos na e s c r i t a da l í ngua c abo -ve rd i a na , a p r i me i r a co i s a

que cons t a t amos é que a inda n ão ex i s t e um a l f abe to o f i c i a l e uma g ra f i a

e s t anda rd i zada que pos sam se r o i n s t rume n to da m a te r i a l i z aç ão des sa

e s c r i t a . P o r t an t o , an t e s de f a l a rmos da e sc r i t a da l í ngua cabo -ve rd i ana ,

t em os que abo rda r a s ua o r a l i dade e a s r az ões h i s tó r i c a s , po l í t i c a s ,

soc i a i s e económi cas pa r a t a l , a t é aos d i a s de ho j e (ve j a P e re i r a 1996 :

551 ) .

Na r a í z de ss a s i t uaç ão encon t r a - s e a co l on izaç ão po r tugues a e a s

r e l a ç õe s e n t r e o c r iou lo e o po r t uguês . Es sa s r e l aç õe s e spe lham -se no

Page 58: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

es t a t u to que a s duas l í nguas t êm na soc i eda de cabo -ve rd i ana , c on fo rme

o p r e s t í g i o e a i mpor t ânc i a que cada um a de l a s a l canç ou .

Na s i t uaç ão de con t ac to e m que o po r t uguês se t o rnou a l í ngua

domina n te e o c r iou lo a l í ngua domina da , a s duas l í ngua s i l u s t r am a

i n t e rdependênc i a e n t r e l í ngua e soc i edade (Ve iga 1982 : 16 ) . Se gundo

Romai ne (2004 : 393 ) , o p r e s t í g io de um a l í ngua s ob re a ou t r a é o

r e s u l t a do do pode r que é pe r ceb ido pe lo s se us l ocu to re s . A ss im ,

enquan t o a l í ngua po r tugues a que e r a e s t r a nha à p r á t i c a s oc i a l do d i a - a -

d i a e m Cabo V erde s em pre fo i u s ada c omo l í ngua exc l u s i va do ens ino , o

c r iou l o cabo -ve rd i ano fo i s em pre s oc i a l men t e e cu l tu r a l men t e

marg i na l i zado . D es t a m ane i r a r e t i r ava - s e ao povo c abo -ve rd i a no o

d i r e i t o de s e r i n s t ru ído na s ua l í ngua p r im ár i a . E m Cabo V erde o

c r iou l o nunca fo i cons i de rado um a pos s í ve l l í ngua de e sco l a r i z aç ão .

A l i á s , nem se que r t em s i do cons ide rado po r t odos o s ca bo -ve rd i anos

como um a l í ngua .

Embora o ens ino e e s pec i a l men te a i n s t ruç ão f e i t a pe l o Se miná r i o - l i c eu ,

c r i a do em 1866 na i l ha de Sã o Ni co l au , t r ouxe ram bene f í c io s aos poucos

cabo -ve rd i anos que a e l e t i ve r am aces s o , não podem os e s quec e r que a

marg i na l i zaçã o e a i n f e r io r i z ação do c r iou lo t r ouxe ram m a le f í c i o s pa r a

mu i t a s pe s soa s ca bo -ve rd i a nas (Ce r rone 1996 : 158 ) . E m ge ra l o s c abo -

ve rd i a nos t i nham que i r à m e t rópo l e pa r a s egu i r o ens ino s ecundá r i o ,

a lgo que apenas f am í l i a s ma i s r i c a s pod iam paga r (Ba t a lha (2004 : 76 ) .

A s oc i edade c abo -ve rd i ana f i c ou , a s s i m , d iv i d ida em duas c l a s s e s : a dos

cabo -ve rd i anos que f a l avam e e s c r ev i a m o po r tuguê s (um a mi no r i a ) e a

dos que n ão o f a l a vam e , s ob re t udo , n ão o e s c r ev i am ( a g r a nde ma i o r i a ) .

D i to po r ou t r a pa l a v ra s , e n t r e o s p róp r io s cabo -ve rd i anos c r i ou - se a

c l a s s e dos “cu l to s e c i v i l i z ados ” e a c l a s s e dos “ igno ran t e s e s em

cu l t u r a” (V e iga 1995 : 17 ) .

De s t a ma ne i r a f i xou - se na s oc i eda de e na m en te dos ca bo -ve rd i a nos

co lon i zados a conv i cç ão de que a s l í nguas e s c r i t a s s ão supe r io r e s à s

l í ngua s o r a i s e t am bém o p r e conce i to de que a l í ngua do co lon i zado r , o

Page 59: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

por tuguês , t e m ma i s va lo r do que o c r iou lo c abo -ve rd i a no . Ba ta lha

(2004 : 76 -77 ) me nc iona :

They m ade u s e o f po r tugue se i n t he i r w r i t i ngs and l ooked dow n on

Creo le a s a l e s s e r l a nguage tha t s hou ld be kep t wi th in dom es t i c

and in fo rm a l s phe re s o f s oc i a l l i f e .

O c abo -ve rd i ano t em cons t a t ad o des de a s ua en t r ada pa r a a e s co l a

p r imá r i a ou a t é me sm o quando n ão chega a se r a l f a be t i z ado , que na

soc i eda de cabo -ve rd i ana c oex i s t em duas l í ngua s : uma o ra l , i n fo rma l ,

de s p re s t i g i ada e ou t r a e s c r i t a , f o rma l e va l o r i za da , a s qua i s

co r r e s pondem , r e spe c t i vamen t e , ao c r iou lo ca bo -ve rd i a no e ao

po r tuguês . D ev ido a o e s t a tu t o que cada uma de s t a s l í nguas t e m t i do na

o rgan iz aç ão soc i a l , e l e s s ão pe r ce b idos pe lo s f a l a n t e s do c r iou l o , t an t o

o s m ono l ingue s c omo os b i l í ngues , como l í nguas com va lo r e s

d i f e r e n t e s .

Da se gunda me t ade do s écu l o XIX a t é o s d i a s ac t ua i s , a s i t uaç ão

l i ngu í s t i c a man t eve - s e p r a t i c am en te i gua l . 0 c r iou lo , e mbora com pouco

p r e s t í g i o , s e mpre con t inua a se r a l í ngua ma i s u s ada pe lo s cabo -

ve rd i a nos , po i s é a l í ngua em que deco r r e a v ida em Cabo V erde , com o

d i s se o b r a s i l e i ro J o rge Am ado (V e iga 1999 : 15 ) . 0 po r tuguês s empre

con t i nua com o a ún i ca l í ngua de ens ino e da s r e l açõe s o f i c i a i s . F o i e s t a

s i t uaç ão l i ngu í s t i c a que f ez na sc e r t am bém nos ca bo -ve rd i anos , t a n to o s

que t i nham um a fo rmaç ão , i nc l u indo in s t ruç ão na l í ngua po r tugue sa

como os que c on t inuava m ana l f abe t o s , o p r e conce i to que a sua l í ngua

ma t e rna , a l í ngua c abo -ve rd i a na e s em e sc r i t a , e r a i n f e r io r à l í ngua

po r tugues a . 0 s que t i nham i n s t ruç ão na l í ngua po r tugue sa c on f ina r a m o

c r iou l o a uma u t i l i z aç ão f ami l i a r e p r ivada . 0 s a na l f abe to s se n t i a m-s e

ob r igados a u s a r a l í ngua po r t ugues a em c e r t a s oca s i ões como d i scu r s os

em c as amen t os e bap t i zados , embora f a l a s s am o po r t uguês com uma

e s t ru tu r a mu i t o p róx ima da do c r iou l o . Es t a é uma ou t r a r az ão da n ão -

e s t anda rd i zaç ão do c r iou l o e s c r i t o e da s i t ua ç ão de d ig l o ss i a em Cabo

Ve rde no pós - independê nc i a . 0 c r iou lo c on t inua a s e r e s c r i t o de mane i r a

a rb i t r á r i a , s egundo o p r a ze r do e s c r i t o r .

Page 60: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

As p r im e i r a s t en t a t i va s de e sc r e ve r o c r i ou lo cabo -ve rd i ano j á da t am do

sé cu lo X IX (Ve iga 1995 : 26 ; P e re i r a 1996 : 555 ) . A a usê nc i a de um

a l f a be to e de uma g ra f i a e s t a nda rd i za da o f i c i a l f a z com que a inda ho j e

em d i a , a e s c r i t a da l í ngua c abo -ve rd i ana o s c i l e en t r e a s p r e f e r ênc i a s

i nd iv i dua i s dos pa r t i dá r io s da e s c r i t a e t imo l óg ica e a s p r e f e r ê nc i a s dos

de f ens o re s da p ropos t a fono l óg ica (do co lóqu io de 1979 ) como ba se

pa r a a sua g r a f i a . De s t e modo , o c r iou lo t em s ido e s c r i t o , de s de há m a i s

de um s éc u lo , como um id io l ec t o (Ve iga 1995 : 27 - 28 ) . P o r t an to , ao

f a l a r da e s c r i t a do c r i ou lo , que r - s e d i z e r não uma g ra f i a de uma l í ngua

e s c r i t a mas o r eg i s t o de uma l í ngua o r a l , po i s a r e a l i z ação de uma e

ou t r a d i f e r em s i gn i f i ca t i va men t e .

A pa r t i r dos f i n s do s écu l o XIX fo ram vá r i a s a s t en t a t i va s de

i n s t rume n ta l i zaç ão da l í ngua c r i ou l a cabo -ve rd i ana . P o rém, nenhum a

des sa s t en t a t i va s a t é ho j e r e su l tou num a l f abe t o e numa e s c r i t a o f f i c i a l .

Embora o povo cabo -ve rd i ano t e nha s ido p r ivado e m quas e t odos o s

domín i o s de e s c r eve r na sua p róp r i a l í ngua , c a bo -ve rd i anos de vá r i a s

ge r aç ões t êm s e s e rv i do do c r iou lo c omo l í ngua l i t e r á r i a e l í ngua da

poes i a popu l a r . H á t am bém que m s e se rv iu do c r i ou lo cabo -ve rd i ano

como ob j ec t o de va lo r i zaç ão e de e s t udo , com o ob je c t i vo de chega r à

i n s t rume n ta l i zaç ão des t e c r iou lo . N ão s ão só e s t ud io s os que nem s empre

t i nha m fo rma ç ão l i ngu í s t i c a , mas t am bém f i l ó logos . P o r exem plo ,

Eugén i o Tava re s , poe t a e compos i to r da i l ha de Brava que , com as s uas

Morna s - c an t i ga s C r i ou l a s (pub l i cadas em 1932) , ve rdade i ro s poe mas

l í r i co s mus i ca dos , l evou o c r iou l o ao e s t a t u to de l í ngua l i t e r á r i a j á no

in í c io do s écu l o XX . Es t e poe t a e sc r e veu nas duas l í ngua s que o cabo -

ve rd i a no no rma l men te u sa : a l í ngua po r tugue sa e a l í ngua c r i ou l a . A s ua

ob ra de e xp re ss ão c r iou l a s e rve pa r a i l u s t r a r a cu l t u r a v iva de Cabo

Ve rde . O u t ro s au to r e s que e sc r eve ram em c r i ou lo s ão P ed ro Mon t e i ro

Ca rdos o , Lu í s Roma no , Sé rg io F ruson i (Ma r i ano 1991 : 99 ; L i ma 1992 :

17 ) . Todos u t i l i z a r am um a o r tog ra f i a e t imo l óg ica e sua s ob ra s fo r am

quas e t oda s p roduz i das an t e s da i ndependê nc i a , e m 1975 (V e iga 1995 :

27 ) .

A o ra l i da de que ca r ac t e r i za a t é ho j e o c r i ou lo cabo -ve rd i ano , não

impe d iu que o c r iou lo , a e xp re s sã o iden t i t á r i a do cabo -ve rd i ano , s e

Page 61: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

fo ss e e n r iquece ndo e que s e fo s se cons t i t u indo a t r avés da r i c a l i t e r a t u r a

o r a l t r ad i c iona l d i ve r s a . Te mas f r equen t e s na l i t e r a t u r a o r a l s ão a fome ,

a pob rez a , a em ig raçã o e a s eca , e l em en tos que m arcam a c r i ou l idade e

t am bém c ompor t am en tos que s ão pec u l i a r e s aos c abo -ve rd i anos (Ba ta l ha

2004 : 81 ) .

Al ém d i s s o , o u s o l i t e r á r i o do c r iou lo , pa r a a l ém da u t i l i z açã o o r a l da

l í ngua no quo t id i ano , não s e l i m i t a à s i l ha s mas se e s t ende i gua lm en te à

d i á s po ra (V e i ga 1995 : 25 ) .

Es tud io s os que va l o r i za r a m o c r i ou lo com as s uas aná l i s e s sã o , se gundo

Ve iga (1995 : 25 -26 ) , An t ón io de P au l a B r i t o , J oaqu i m V ie i r a Bo te l ho da

Cos t a & Cus tód i o Jo s é D ua r t e , Na po leã o Fe rnandes , An t ón io Ca r r e i r a .

O p r i me i ro e s tudo s ob re o c r iou l o cabo -ve rd i ano com ca rác t e r c i en t í f i co

fo i o e s tudo do f i l ó logo po r t uguês F ra nc i s co A do l fo Coe l ho (Andra de

Al a in K ihm 1992 : 195 ) . Mu i to s anos pas sa r am a t é que em 1957 fo i

pub l i c ado ou t r a ob ra de g r ande va lo r , da m ão do f i l ó logo cabo -ve rd i ano

Ba l t a s a r Lopes D a S i lva , 0 Di a l ec to Cr iou lo de Cabo Ver de (Ve iga

1995 : 27 ) . D epo i s s egu i r a m ma i s e s t udos e n t r e ou t ro s de D u lc e A lma da ,

Ma nue l V e i ga , Ros i ne S an to s , D ona ldo M ace do (Ve iga 1995 : 27 ) .

A e sc o lha de um a g ra f i a e s t anda rd i zada t em que s e r bem pe nsa da . 0

c r iou l o t em s i do e s c r i t o j á há vá r i a s déca das . A o que re r - se ago ra

de s envo lve r uma g ra f i a e s t anda rd i za da t em de s e l eva r em c on ta a s

r eac ções que uma g ra f i a f oné t i c o - fono lóg ica pode rá t r aze r . S egundo

Ve iga (1999 : 16 ) e do pon to de v i s t a l i ngu í s t i c o , uma g ra f i a f oné t i co -

fono lóg ic a é a que o f e r ece ma i o re s van tage ns . U m ou t ro f ac to r

impor t an t e é que s e t e m de e s co l he r uma g ra f i a que sa t i s f aça t odos o s

cabo -ve rd i anos , t endo e m con t a a va r i edade d i a l e c t a l do c r iou l o

(P e re i r a 1996 : 551 ) . Ve iga (1999 : 16 ) d i z em r e l a ção a e s t e a s sun t o :

Beyond the d i a l ec t a l va r i e t i e s o f ou r K r io l u , t he p r e pa ra t i on o f

d idac t i c ma te r i a l and t ea ch ing m us t be p r im ar i l y o r i en t e d in tw o

pa ra l l e l d i r ec t i ons and on ly a f t e r i n a g loba l i z i ng d i r ec t i on (1999 :

16 ) .

Ve iga (1995 : 29 ) t am bém ac onse lha que :

Page 62: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

(…) dada a d i a l e c to l og i a ca bo -ve rd i a na , o e s tudo g r am a t i ca l e

l ex i ca l do c r iou lo s e j a f e i t a de t a l m ane i r a que tudo o que é

pe r t i nen t e , do pon to de v i s t a l i ngu í s t i co , e r ep re s en t a t i vo , do

pon to de v i s t a s óc io - cu l tu r a l , poss a s e r r e s pe i t ado .

Con t inua ndo , de f ende :

(…) que a g r a má t i ca do c r iou lo , em vez de se r um s i s t ema

inva r i an t e e i nva r i áve l , s e j a uma e s t ru tu r a onde a va r i ação

(pe r t i nen t e e r ep re s en t a t i va ) poss a f a ze r pa r t e do s i s t ema .

Já que o c r i ou lo e o po r tuguê s , s egundo V e i ga ( (1995 : 29 ) , s ão l í nguas

a f in s e j á que a s c r i anças t ê m que ap re nde r a l e r na s duas l í ngua s , s e r i a

de de s e j a r que s e adop t a ss e um a o r tog ra f i a que l evas s e em c ons i de raçã o

a s se me l hanças en t r e o po r tuguês e o c r iou lo .

4 .2 .7 O cr iou lo cab o-ver d i ano , s u a fu nç ão e a id en t id ad e cab o-verd ian aAs r e l ações de de pendênc i a que s empre ex i s t i r am em Cabo V erde

f i z e r am-s e na ba se da supe r io r ida de da cu l tu r a do c o lon iza do r , que

se mpre ne gou a cu l t u r a do povo co l on izado . P o r i s s o a cu l tu r a que

nas ceu em Cabo V erde , da qua l a l í ngua ca bo -ve rd i a na é uma das ma i s

o r ig ina i s , f o i s empre condenada a se r menos p reza da .

0 c r iou l o t o rnou - s e a l í ngua de um a c l a s s e que e r a ec onomic amen t e ,

po l í t i c a men t e , cu l t u r a lm en te e soc i a l men te domina da . Es t a l í ngua fo i o

f ru to da r e s i s t ênc i a cu l t u r a l dos a f r i c anos t r az i dos do Con t inen t e ,

t o rnando - s e um a e s péc i e de fuga pa r a o e s c r avo . 0 c r iou lo nas ce u e

evo lu i u no quad ro da r e s i s t ênc i a à a cção do c o lon iz ado r que que r i a

de s cu l t u r a r o povo cabo -ve rd i ano , con t inuando a t é aos d i a s de ho j e a

f unc iona r como e l eme n to im por t an t e da i de n t ida de cu l t u r a l dos cabo -

ve rd i a nos . N o en t an to o c r i ou lo s empre fo i cons ide ra do como um

s i mp le s d i a l e c to do po r tuguê s e com a i ndependê nc i a e m 1975 , o povo

cabo -ve rd i ano que r i a v inga r t ambé m es t a i n ju s t i ç a ( Ve iga 1982 : 15 ) .

P o rém, a v i ngança nã o dev ia cons i s t i r em r epe l i r o po r tuguês , po rque a

l í ngua po r tugues a s empre é pa r a o s ca bo -ve rd i anos t a mbém um me io de

Page 63: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

comun i caçã o e de ac e s so a ou t r a s cu l t u r a s . As s im , a l í ngua po r t ugues a

deve r i a con t i nua r a s e r ens ina da e t ambém de fend i da na s oc i e dade ca bo -

ve rd i a na , con f i rm ando a c ons t a t aç ão de Roma ine (2004 : 385 ) :

As peop l e t he wor l d -ove r con t i nue to r e cogn ize t he adva n tage o f

add ing a wor l d l anguage to t he i r ve rba l r epe t o i r e s .

Con tudo , v inga r a i n j u s t i ç a de se r co lon i zado t a mbém na l í ngua

u t i l i z a da s ign i f i ca mos t r a r ago ra que o c r iou lo é uma l í ngua de

comun i caçã o como qua lque r ou t r a l í ngua , e que pos su i uma e s t ru tu r a

p róp r i a e au tónom a . S ign i f i ca e s tudá - lo , i n t roduz í - lo no e ns i no , nos

mas s -míd i a , e em toda a v ida s óc io - c u l tu r a l e s óc io - e conómi ca do pa í s

(Ve iga 1982 : 15 ) .

Vo l t ando a o con tex t o da l í ngua c r iou l a e da c u l tu r a cabo -ve rd i ana ,

p r ec i sa mos vo l t a r a o p r inc í p io do povoam en to de Ca bo Ve rde .

S egundo vá r i a s f on t e s que r e f e r e m ao povoam en to da s i l ha s de S an t i ago

e do F ogo , nos p r i me i ro s a nos de po i s da sua des cobe r t a a popu la ção e r a

cons t i t u ida po r um número r eduz ido de e u ropeus e po r uma m a io r i a de

e s c r avos de d i f e r en t e s e t n i a s , com l íngua s e c u l tu r a s d i f e r en t e s ,

t r a z idos de ou t r a s t e r r a s a f r i ca nas 1 4 . 0 número de eu ropeus t am bém n ão

aume n tou nos sé cu lo s se gu in t e s 1 5 . I s t o que r d i z e r que du ran t e qua t ro

sé cu lo s , o s e l em en tos a f r i canos fo r am p re ponde ran t e s no p roc es so de

fo rmaç ão da s oc i e dade ca bo -ve rd i ana . A m is c igena ç ão cu l t u r a l que se

encon t r a em Ca bo Ve rde é mu i to g r ande . A pe rcen ta gem m in im a de

mu lhe re s en t r e o s co l onos e u ropeus em Cabo V erde l evou a um ma i o r

c ruza men to e n t r e a s duas r aç a s e ao apa rec im en to de um g rande núm ero

de e l emen t os m es t i ç os (Ba ta lha 2004 : 43 , 53 ; P e re i r a 1996 : 553 ) . 0 s

14 S e g u n d o f o n t e s c i t a d a s p o r C a r r e i r a ( 1 9 7 2 : 2 8 7 ) e ( P e r e i r a 1 9 9 6 : 5 5 3 ) : e m

1 5 8 2 , p a r a 1 3 . 7 0 0 e s c r a v o s , h a v i a e m S a n t i a g o e n o F o g o t a l v e z u m a c e n t e n a

d e b r a n c o s .15 B a t a l h a ( 2 0 0 4 : 3 3 ) e P e r e i r a ( 1 9 9 6 : 5 5 3 ) d i z e m q u e o s h a b i t a n t e s b r a n c o s

e r a m p o u c o s , p o r q u e o a r q u i p é l a g o o f e r e c i a p o u c a s o p o r t u n i d a d e s

e c o n ó m i c a s , a l é m d o c o m é r c i o d e e s c r a v o s e d a s p l a n t a ç õ e s d e l a v o u r a c o m

e s c r a v o s q u e e s t a v a m n a s m ã o s d e a l g u n s h o m e n s p o d e r o s o s .

Page 64: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

es c r avos t r az idos pa r a Cabo V erde , mi s c i genados e acu l tu r ados a i nda

pe rde ra m g rande pa r t e da s ua he r ança c u l tu r a l po r caus a da po l í t i c a de

evange l i za ç ão p r a t i c adas na s i l ha s de Cabo V erde (Ce r rone 1996 : 143 ) .

0 s e sc r avos r ecebe ram as s im um a in f l u ê nc i a s i gn i f i c an t e da cu l t u r a do

co lon i zado r que i n t eg ra r am na s ua p róp r i a cu l tu r a , dando nas c i men to a

um povo com uma i den t i dade cu l tu r a l p róp r i a . Ba t a lha (2004 : 85 )

a f i rm a :

The f a c t t ha t t he Cape V erdea ns w ere no t f u l l y a ccep t ed a s

P o r tugues e p l a ced the m ha l fwa y be tw een t he P o r tugues e and

Af r i can , a nd tha t l ed t he m to de ve lop an i nden t i t y t ha t

d i s t i ngu i she d them f rom the Af r i cans o f t he o t he r co lon i e s .

Al ém da campa nha de eva nge l i zaç ão ca t ó l i c a du ran t e a época

e s c l a vag i s t a , houve a pa r t i r de me ados do séc u lo X IX a t é a

i ndepe ndênc i a uma po l í t i c a de a s s im i l a ç ão pe l a s au to r ida des co lon i a i s

(Ce r rone 1996 : 158 ; Ba t a lha 2004 : 50 ) . Po r c onse gu in t e , e à p r im e i r a

v i s t a pa r ece que em Cabo V erde a cu l t u r a eu rope i a p r edom ina a cu l tu r a

cabo -ve rd i ana .

P o rém, a l u t a de l i be r t açã o deu ma i s pe so à a f r i ca n idade do c abo -

ve rd i a no . Ne s t a busc a de i den t ida de cu l tu r a l , o povo c abo -ve rd i ano

que r i a , a t r avé s da cu l t u r a dos bad íus 1 6 , a f i rm ar , po r um l ado , a s sua s

o r igens é t n i ca s , e po r ou t ro l ado a sua l í ngua . A cu l tu r a dos bad íu s t e ve

um g rande r enas c i men to e m 1960 quando o s Rebe l ados , um mov i men t o

r e l i g io s o , v iveu o s eu apoge u . A o r i gem dos Rebe l ados r emon t a a 1940 ,

quando o s mi s s ioná r i o s po r t ugues es ca tó l i cos chega ram à i l ha de

S an t i a go e que r i am t e r con t ro l o e mod i f i ca r t odas a s man i f e s t açõe s

cu l t u r a i s do povo cabo -ve rd i ano (Ba ta lha 2004 : 74 ) . Os Rebe lados

r ecus avam as r eg ra s dos mi s s ioná r i o s e pad re s , po i s p r e f e r i am t e r a s

sua s p róp r i a s ce r im ón ia s . Em 1960 , o s Rebe lados e r am v i s to s como o

exem plo s imbó l i co da r e cus a do co lon i a l i sm o .

16 B a d í u s é o t e r m o u s a d o p a r a d e s i g n a r o s h a b i t a n t e s d a i l h a d e S a n t i a g o

( B a t a l h a 2 0 0 4 : 7 4 ) .

Page 65: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Nos anos s e s se n t a du ran t e a l u t a pe l a i nde pendênc i a o s a lunos cabo -

ve rd i a nos nos l i c eus r ecus avam -se a f a l a r po r tuguês ou a r e cebe r a u l a s

de po r tuguê s , e x ig indo que a o c r iou l o fo ss e dado o e s t a tu t o de l í ngua

o f i c i a l po i s f a z i a pa r t e da s ua c u l tu r a . Cons i de ravam f a s c i s t a s t odos o s

p ro fe s so re s que ex ig i s s em a u t i l i z aç ão do po r tuguê s na s s uas au l a s .

De po i s da i nde pendênc i a em 1975 , a cu l t u r a dos bad íu s pe rdeu o s eu

e s t a t u to de s ím bo lo e ago ra é a s soc i ada com as pec to s nega t i vos da

cu l t u r a cabo -ve rd i ana .

Con tudo , a l í ngua c abo -ve rd i a na con t i nuou se ndo cons ide rada po r

mu i t o s c abo -ve rd i anos c omo pa r t e de s ua i de n t ida de e um i n s t rumen t o

l i ngu í s t i co a u tónomo e ú t i l , a l ém de s e r o me i o p r iv i l eg i a do de

comun i caçã o o r a l . M a i s i mpor t an t e t a lvez s e j a que é c ons i de rada po r

t odos como o m e lho r s upo r t e da cabo -ve rd i an ida de . I s to e s t á de aco rdo

com o que d i z A ndrade A la in K ihm (1992 , na no t a i n t rodu tó r i a ) :

A l í ngua é , pa r a mi m, o me lho r ve í cu lo de d i fu sã o de uma cu l tu r a ;

qua i s que r que se j am a s d i f e r ença s c iv i l i z ac iona i s , a l í ngua

iden t i f i c a a s sua s r a í ze s cu l tu r a i s , a t r avés do e s paço e a t r a vés do

t em po .

4 .3 O cr iou lo cab o-ver d i ano n o en s in o em C ab o Ve rd e

4 .3 .1 O p ap e l d a e s co la d o co l on izad or em C ab o Ve rd eEm m eados do s écu lo X V I I I o co lon i zado r fundou a s p r im e i r a s e sco l a s

de ens ino bá s i co em Ca bo Ve rde Ba ta lha ( 2004 : 76 ) . Es t a s e sc o l a s

enca ixavam na e fo r t a l ec i am a soc i eda de co lon i a l (Ce r rone 1996 : 158 ) .

C la ro que ao co lon i zado r nã o in t e r e s s ava que o e s c r avo s oubes se l e r ou

e s c r eve r pa r a cum pr i r a s ua mi ss ão de e sc r avo . O s m é todos de

subm is sã o empre gados du ra n t e a época da e sc r ava t u r a , o bap t i sm o

fo r çado , a p ro ib i çã o de t oda s a s ma n i f e s t a ções cu l t u r a i s dos e sc r avos

come ça ram en tã o a se r subs t i t u ídos pe l a e s co l a (Ba ta l ha : 2004 : 74 ) . Um

Page 66: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

dos i n s t rumen t os da e s co l a é a l í ngua de ens ino . Com a im pos i ção do

po r tuguês , a ún i ca l í ngua de e sco l a r i z ação , o c r iou lo pa ss ou a s e r a

l i ngua gem de igno ran t e s , de pe s soas não c iv i l i z ada s , de pe s soas que nã o

cons egu ia m ap rende r o po r tuguês .

Em 1866 fo i f undado e m S ão N ico l au um s emi ná r io - l i c eu , o qua l , g r aç as

à p r epa raç ão do co rpo doc en te , e s t endeu a s ua i n f luênc i a bené f i ca a

t oda a i g r e j a l oca l (Ce r rone 1996 : 158 ) . E ra um s emi ná r io que

p r epa ra va pa r a a v ida c l e r i c a l e que o f e r ec i a aos a lunos i n s t ruç ão nas

c i ê nc i a s e na s a r t e s , a l é m de um a boa educ a ç ão r e l i g io s a e m ora l . O

e s t ado pa gava aos p ro fe s s o re s , que e r am , na sua ma i o r i a , c l é r igos .

Ne s t e se miná r io - l i c eu ens ina vam-s e t oda s a s d i sc ip l i na s do c u r so

t eo l óg ico e t odos o s p rog ram as do l i c eu de P o r tuga l (Ce r rone 1996 :

158 ) .

0 s c abo -ve rd i anos que f r equen t avam o s em iná r i o - l i c e u pas sa r am a

enve rgonha r - se de f a l a r um d i a l ec t o , cons ide rado r i d í cu l o e im próp r io

de pes s oas que come çavam a t e r a ce s s o à cu l t u r a . O s c abo -ve rd i a nos

que não t i nham aces s o ao ens ino , com eça ra m a c onvence r - s e da

i n f e r i o r idade da sua l í ngua e dos seus t r a ços cu l t u r a i s . Da í que c e r t a s

pe s soa s a na l f abe t a s come ça ram a u t i l i z a r o po r tuguês , pa r a se r em

iden t i f i c ados com a l í ngua e cu l t u r a do co l on izado r . I s to , a l i a s , a i nda

acon t ece nos nos sos d i a s . T odav ia , e s s a s pe s s oas c he i a s de p r econc e i to s

em r e l açã o ao c r i ou lo , u t i l i z a vam m a l o po r t uguês que f a l a vam nos

se us d i sc u r sos . A ss im , a e s co l a em Cabo V erde con t r i bu iu pa r a que a

l í ngua e a cu l tu r a po r t ugues a con t i nuas se m a s e r cons ide radas

supe r io r e s à l í ngua e c u l tu r a cabo -ve rd i ana .

0 se miná r io - l i c eu fo i o m e lho r m e io de ss a po l í t i c a de va l o r i za ç ão

abs o lu t a do po r tuguês em p re ju í z o do c r iou l o (Ce r rone 1996 : 158 ) .

0 s p r i me i ro s p ro fe ss o re s cabo -ve rd i anos v i e r a m do S emi ná r io -L iceu ,

se ndo o s m a io re s cu l t i va do re s da l í ngua e dos va lo r e s cu l tu r a i s

po r tugues es . S egundo Ba t a lha (2004 : 76 ) :

The c l a s s i ca l educa t ion g ive n in t he Se mina ry had l i t t l e o r no

r e l a t i on t o t he l oca l r e a l i t y , and the f i r s t poe t s a nd wr i t e r s

Page 67: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

educa t ed in t he s emi na ry j u s t t r i ed t o i mi t a t e t he c l a s s i c and

roman t i c E u ropean au t ho r s .

O u s o do c r i ou lo e r a seve rame n te p ro ib i do po r e s t e s p ro fe s s o r s ca bo -

ve rd i a nos .

A p ro i b i çã o do u so do c r iou lo pe l o s a lunos nos c o r r edo re s do l i c eu nos

sé cu lo s X X, e r a pa r a i n f e r io r i za r o c r i ou lo aos o lhos dos e s t udan te s . N o

en t a n to , o s e s tudan te s c on t inua ram a t é aos anos se t en t a a u t i l i z a r o

po r tuguês ape nas c omo l í ngua de ens ino . A pa r t i r de e n t ão o s a lunos

t am bém o fe r ec i a m r e s i s t ênc i a a o u so do po r t uguês de n t ro da c l a s se

quando em vés pe ra s da i nde pendênc i a s e nega ra m a u t i l i z a r a l í ngua do

co lon i zado r . P e r e i r a (1996 : 556 ) m enc i ona que nes s a época a lguns

j ovens mos t r a vam o s eu r em orso de j á não s abe rem f a l a r bem o c r iou l o ,

o c r iou l o pu ro , e p rocu rava m ap re nde r a s f o rmas l e x i ca i s dos ma i s

ve lhos , s ubs t i t u i ndo fo rmas ma i s l e v e s p e l a s s uas va r i a n t e s ma i s

an t i ga s .

0 se n t im en to de ve rgonha que i mped i a a peque na bu rgues i a de u t i l i z a r o

c r iou l o em púb l i co m os t r a a t é que pon to i a a i n f l uênc i a da po l í t i c a do

co lon i zado r . E ss a peque na bu rgues i a e r a p roven ie n t e s ob re t udo das

i l ha s de S ão Vi cen t e e S an t i ago , onde a e sc o l a de sem penhou um pa pe l

ma i s i mpor t a n t e . N es t a s i l ha s o po r tuguês e r a a u toma t i ca men t e

a s s i mi l ado à i de i a de cu l tu r a , de e l i t e , de p rom oç ão soc i a l (Ce r rone

1996 : 158 ) .

Em po r t uguês , a l í ngua exc l u s i va no ens ino , a s c r i anças ca bo -ve rd i ana s

não t i nham a ca pac ida de de s e exp r i mi r de modo e s pon tâne o , po i s só

cons egu ia m em c r iou lo . T odav ia , i s s o não e r a ve rdade pa ra t oda s a s

c r i a nças cabo -ve rd i anas . A os f i l hos de func i oná r io s cu jo s pa i s

u t i l i z a vam no rm a lme n te o po r t uguês e em m u i to s ca sos t am bém os

p ro ib i a m de f a l a r o c r i ou lo , o p rob le ma a t r á s r e f e r i do não se punha .

Mui t a s vez es a s c r i ança s de pa i s ana l f abe t o s f i c avam com m edo de i r a

e s co l a . An t e s da i ndepê nc i a , e m 1975 , mu i to s fug i am de ca s a pa r a não

t e r e m de i r à s a u l a s . A prende r a l e r e r a pa r a e s s a s c r i anç as um mar t í r i o ,

po rque e l a s se s en t i am compl e t am en te b loqueada s qua ndo t en t a vam

Page 68: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

exp r im i r a s s uas i de i a s po r pa l av ra s p róp r i a s num a l í ngua p r a t i c am en te

e s t r ange i r a (L i ma 1992 : 34 ) .

A e sc o l a e s ob re t udo o l i c eu fo i s empre um s ímbo l o de p romoç ão soc i a l ,

um luga r p r iv i l eg i a do que r e s e rvava a os que o f r equen ta vam m ui t a s

van t a gens . Um a vez a p reend idos o s va lo r e s a s s oc i a dos à e sc o l a e ao

l i c eu , e s t e s o s d i f e r e nc i ava m da m as sa dos i l e t r a dos (Ce r rone 1996 :

158 ) . P ode - se d i ze r que a e s co l a , com o e ns i no do po r tuguês , dos

va lo r e s po r t ugues es e a exc l u sã o to t a l do c r i ou lo e dos va lo r e s c r iou lo s ,

f o i um f a c to r que sepa rou a ma io r i a da popu laç ão de uma mino r i a que i a

sub i ndo , a t r á ves de d ip lom as , na e s ca l a s oc i a l . Ba t a lha (2004 : 68 ) a inda

ind i c a ou t ro a spec to i n t e r e s s an t e :

The l i c e u (…) was a l so a wa y ou t f o r s ome o f t he ru ined r i ch

f ami l i e s , w ho s aw in t he l i c e u a oppo r tun i ty t o m ar ry t he i r

daugh te r s t o l ow er - c l a s s b r igh t s t uden t s w i th good pe r spec t ive s o f

becom ing p ro fe s s iona l s i n t he me t ropo le .

A e sc o l a ac abou s endo um dos p r inc i pa i s me ios pa r a im p lan t a r o pode r

co lon i a l e exe rce r a po l í t i c a de a s s i mi l açã o (Ce r rone 1996 : 158 ) .

Ba t a lha (2004 : 50 ) exp l i c a :

The Co l on ia l Ac t o f 1930 , conce ived by S a l aza r du r i ng h i s pe r iod

a s Mi n i s t e r o f t he Co lon i e s , f o rm a l l y r ecogn i zed the s t a tu s o f

“a s s imi l a t ed” ( a s s imi l ados ) t o t he peop le r e s iden t i n t he c o lon ie s

whos e e duca t i on , f i nanc i a l r e sou rc es , and s imi l a r r e l evan t

a t t a inm en t s equa t ed the m w i th t he po r tuges e i n t he m e t ropo le .

P odemos conc l u i r que um dos m a io re s ma le s que r e s u l t ou da

co lon i zaçã o , f o i im pôr à s c r i anç as cabo -ve rd i anas uma l í ngua nã o

ma t e rna nos p r im e i ro s anos da i n s t ruç ão p r imá r i a .

4 .3 .2 A s i tu ação ac tua l d o en s i no e m Cab o V erd eEm Ca bo Ve rde ex i s t e uma s i t uação l i ngu í s t i c a que t r az a c tua l men t e

g r andes p rob le mas na á r e a d idác t i c a e peda góg ica . D uran t e a époc a

Page 69: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

co lon i a l o c r iou lo fo i sob re t udo a l í ngua da popu l ação a na l f abe t a ou

quas e ana l f abe t a . N os ú l t im os anos co l on ia i s , o s cabo -ve rd i anos que

adqu i r i r am um ce r to g r a u de fo rma ção , po r exe mplo func i on á r io s

púb l i c os , e mbora f a l ando o c r i ou lo , u t i l i z avam no rm a lm en te o po r t uguês

na s r e l a ções soc i a i s .

De po i s da i nde pendênc i a de Cabo V erde em 1975 , o po r tuguê s

con t i nuou a s e r a l í ngua o f i c i a l do pa í s , mas o c r i ou lo s empre e r a a

p róp r i a l í ngua da ma io r i a dos cabo -ve rd i anos . 0 s c abo -ve rd i a nos , um a

vez l i be r t o s da i mpos i çã o da l í ngua do co lon i zado r , pa s s a r am a u t i l i z a r

o c r iou l o em m u i to m a i s domí n io s . Ho j e em d i a o po r tuguê s s ó é

u t i l i z a do nas r epa r t i ções púb l i ca s e nos e s t abe l ec i men tos de e ns i no ,

como ve remos ma i s a d i an t e , na s en t r e v i s t a s ( ve j a t am b ém P e re i r a 1996 :

551 ) . A s c onse quênc i a s s ão ( a ) uma l í ngua ma te rna , o c r iou lo , que é o

ún i co m e io de comun ic ação o r a l da qua se t o t a l i dade da popu laç ão ; e ( b )

uma l í ngua o f i c i a l , o po r tuguês , que é r a r ame n te u t i l i z ada na s r e l açõe s

não -o f i c i a i s .

S endo o po r tuguês a ún i ca l í ngua e s c r i t a do pa í s , é ne l e que se con t i nua

a f az e r a e s co l a r i za ção em Cabo V erde . 0 s p ro fe s so re s p r i már i o s e

se cundá r i o s que t êm de ens ina r ne s t a l í ngua , po rém t ê m mu i t a s

d i f i c u ldade s po rque m u i t a s da s c r i ança s e m idade e s co l a r f a l am o

po r tuguês pe l a p r im e i r a ve z na e s co l a . I s to é , o po r tuguê s s e t o rnou

quas e uma l í ngua e s t r ange i r a em Ca bo Ve rde . 0 p io r é que a s c r i anç as

t êm au la em po r tuguê s c omo s e s e t r a t a s se da l í ngua ma t e rna , j á que é a

l í ngua da e s co l a r i za ção e a l í ngua da s r e l açõe s o f i c i a i s . Con tudo

Romai ne (1995 : 20 ) a conse lha :

In pa r t i cu l a r , pup i l s s hou ld beg in t he i r s choo l ing th rough t he

med i um o f t he mo the r t ongue , bec aus e t hey unde r s t and i t be s t and

beca use t o beg in t he i r s choo l / l i f e i n t he mo the r t ongue w i l l make

the b r e ak be tw ee n home and s choo l a s sm a l l a s pos s ib l e .

Da do o con ta c to e s co l a r ma i s f r e quen te e mas s ivo en t r e a s duas l í ngua s ,

o po r tuguês e o c r iou lo , a s con t ami nações s ão ho j e em d i a ma i s

f r equen t e s . Po r e s t e e ou t ro s mo t ivos , s e r i a nec es sá r io muda r o s

Page 70: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

mét odos de ens ino da l í ngua po r tugue sa em Cabo V erde ; e t a mbém

p rocu ra r r e so l ve r o p rob lem a das i n t e r f e r ênc ia s 1 3 que r e s u l t am do

con ta c to en t r e o po r tuguê s e o c r iou lo .

4 .3 .2 .1 A p rob l emát i ca d a u t i l i zação d o cr iou lo cab o-ver d i anoHá a lguns dados que não s e de ve e s quece r a o come ça r qua l que r deba t e

sob re o c r iou l o . Em p r i me i ro l uga r é p r e c i s o l em bra r , com o d i z i a o

e s c r i t o r b r a s i l e i ro Jo rge Am ado , que em Cabo V erde “a v ida de co r r e em

c r iou l o” (V e iga 1999 : 16 ) . Em s egundo l uga r deve - s e de r econhec e r que

não é l óg i co que num pa í s i nde penden te como Ca bo Verde , a l í ngua

nac i ona l ocupe um luga r se cundá r io . Con t udo , pens a r de s se modo s e r i a

t r ava r o p roces so de des envo lv i men to ge r a l de Cabo Ve rde e e s quec e r a

nece ss idade de queb ra r o i so l ame n to em r e l aç ão ao mundo e x t e r i o r

(Ve iga : 1995 : 31 ) . Te r - se - á de com preende r po r c onsegu i n t e que a

p romoçã o do c r iou l o nunca pode rá f aze r - s e em de t r i men t o do po r tuguês .

Há a inda um ou t ro a s pec to que s e deve cons ide ra r a o d i s cu t i r a

p rob lem á t i ca da u t i l i z açã o do c r iou l o . A pe rcen ta gem em Cabo V erde

dos que , na época co lon i a l , f a l ava e e sc r ev i a co r r ec t amen t e o po r tuguê s

e r a r e a lme n te pe quena . Es s a pe r ce n tage m con t i nua a s e r peque na ,

embora t enha a umen t ado com a democ ra t i z ação do e ns i no . Pode a t é

acon t ece r que um d i a t odos o s ca bo -ve rd i a nos venha m a s e r r ea lme n te

b i l í ngues , f a l a ndo o c r iou lo e o po r tuguês . I s so s ign i f i ca r i a que o

ens ino em Cabo V erde t e r i a dado um g rande pa ss o qua l i t a t i vo . P o rém,

nenhum c abo -ve rd i a no , po r me l ho r que f a l e a l í ngua po r tugues a , s e

i den t i f i c a a t r a vés do po r tuguês como c abo -ve rd i ano . I s s o po rque o

po r tuguês , em bora f aze ndo pa r t e do m undo l i ngu í s t i co do c abo -

ve rd i a no , não é a l í ngua m a te rna do cabo -ve rd i ano . 0 po r tuguê s é um

13 S e g u n d o W e i n r e i c h ( 1 9 5 3 : 1 ) f a l a - s e d e i n t e r f e r ê n c i a s q u a n d o e l e m e n t o s d a

l í n g u a A s ã o i n t r o d u z i d a s n a l í n g u a B , c o m o p o r e x e m p l o e l e m e n t o s d o

s i s t e m a f o n é t i c o , s i n t á c t i c o e à s v e z e s t a m b é m d o v o c a b u l á r i o . S i g u á n &

M a c k e y ( 1 9 9 6 : 1 8 ) d ã o a m e s m a d e f i n i ç ã o .

Page 71: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

i n s t rume n to de c omun ica ção de um a mi no r i a que , o ap rendeu na e sc o l a e

que s e rve de l e no rma lme n te em s i t uaç ões fo rm a i s , com o se se rv i r i a de

ou t r a s l í nguas que t i ve ss e a p rend ido a f a l a r e a e s c r eve r na s m es mas

c i r c uns t ânc i a s . M es mo os j ove ns quad ros ca bo -ve rd i anos fo rma dos na

an t i ga me t rópo le u t i l i z am a l í ngua cabo -ve rd i ana nos s eus conv ív i o s .

I s s o que r d i ze r que po r m a i s que e x i s t a em Cabo V erde um b i l i ngu i sm o

e l i t i s t a , o c r iou l o é uma p re se nça cons t a n t e na s r e l ações i n fo rm a i s ,

mes mo da que le s que dom inam bem o po r t uguês .

Embora con t i nuando a u t i l i z a r a l í ngua ma te rna nas r e l aç ões f a mi l i a r e s ,

há aque l e s que não c onsegue m adm i t i r a i de i a de a l í ngua c r iou l a se r ,

no fu tu ro , um m e io ne ces sá r io pa r a con tac to com ou t ro s povos . 0 s

a rgume n tos u t i l i z ados pa r a j u s t i f i c a r e s s a r ecus a s ão que a l í ngua cabo -

ve rd i a na não é e sc r i t a , que a inda neces s i t a de um núme ro de vocábu l os

pa r a pode r se r u t i l i z ada em toda s a s f unç ões s oc i a i s e que nã o é

l i t e r á r i a .

0 que toc a a ma io r i a dos c abo -ve rd i a nos na soc i edade cabo -ve rd i ana , é

o f ac t o que em t o rno do c r iou l o se de s envo lve à s ve zes um r ac ioc ín i o

amb í guo . Qua se t odos d i zem que s e o rgu lham da s ua l í ngua ma t e rna .

Ma s pa ra a lguns , e s s e o rgu lho e x i s t e enqua n to o c r i ou lo s e se cumpre a

mi s s ão de “ l í ngua de ca s a” .

Nã o encon t r e i na s ob ra s cons u l t adas dados que f a l a m dos mé t odo de

ens ino em Cabo V erde nos d i a s ac t ua i s . M as a t r avé s da s e n t r ev i s t a s

f e i t a s acho que é poss íve l da r a s s egu in t e s i n fo rmaç ões .

O e ns i no em Ca bo Verde con t i nua a s e r dado e m po r tuguês (ve j a a s

en t r e v i s t a s no anexo V , V I , VI I e VI I I ) . O p ro fe s s o r en t r ev i s t ado d i z

que não c onsegue ens ina r ce r t a s ma té r i a s e m c r i ou lo , po rque o s a lunos

não t ê m bas e s u f i c i en t e pa r a pe r c ebe r ce r to s con teúdos (ve j a a

en t r e v i s t a no ane xo VI I ) . T êm s egundo o p ro fe s s o r , mu i t a s d i f i c u ldades

pa r a e xp re ss a r de t e rm inados a s sun t o s e m po r tuguê s . P a r a m an te r a

apa rê nc i a de que e s t ão be m na e s co l a p r im ár i a , o s a l unos f a l am em

c r iou l o . Os p ro fe s s o re s do sec undá r io nã o conse guem p re enche r a s

Page 72: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

l a c unas nos conhe c im en tos da l í ngua po r tugue sa , que j á t r azem da

e s co l a p r imár i a . P a r a que poss am c on t inua r o s e s t udos , o s p ro fe s so re s

de ixa m pas s e r e s t e s a l unos , m as i s s o não s ign i f i ca que f a l a m bem o

po r tuguês (ve j a anexo V I I ) . S ó a n íve l de ap re nd iza gem é que o s

p ro fe s so re s dã o - lhe s uma opo r t un idade . O p ro fe s s o r en t r e v i s t ado

gos t a r i a que t odos o s a lunos f a l a s s em bem po r tuguê s , po rque , t a l vez ,

em po r t uguês cons egu i s se ens ina r m e lho r ce r to s t em as da sua

d i s c ip l i na . P o r vez es a cha d i f í c i l en s ina r c e r to s t em as em c r i ou lo . É

t am bém po r e s s a r az ão , que o p ro fe s s o r en t r e v i s t ado ac ha que o ens ino

em Ca bo Ve rde deve r i a con t i nua r em po r tuguês .

Há a inda um f ac t o r que s e deve t e r em con ta e que é o f ac to de que o

c r iou l o é d i f e r en t e e m toda s a s i l ha s . Po r e s s a r a zão é um bocado

con fus o quando s e u t i l i z a uma de t e rmi nada va r i an t e do c r iou l o . Po r

i s so , a go ra f a l am s ó um pouco de c r iou l o na e s co l a , mas i s so nã o que r

d i ze r que s e cons ide re i s t o como pos i t i vo .

0 p rob lem a da e s co l ha da l í ngua s e enc on t r a s empre e em qua lque r pa í s

cu jo povo s e c onsegu i u l i be r t a r da dominaç ão co l on ia l a que e s t eve

subm e t i do . I n f e l i zmen t e i s s o t am bém é vá l ido pa ra Cabo V erde . 0

po r tuguês s empre fo i a l í ngua da pe quena bu rgues i a que t eve i n s t rução

em po r t uguês a pa r do c r i ou lo f a l ado em c as a . M as a g r ande m ass a da

popu laç ão cabo -ve rd i ana nunc a t e ve ace ss o ao po r tuguê s . A v ida do

cabo -ve rd i ano s empre con t i nua a dec o r r e r na l í ngua c r i ou l a que m arca

t am bém a i den t i dade c abo -ve rd i a na (V e iga 1995 : 23 ) .

4 .3 .2 .2 A i n tegração d o cr iou lo cab o-verd i ano c omo l ín gu a d e in s t ru ção n a e sc o laAt é há pouc os anos , no ens ino de uma l í ngua , o e s tudo da l í ngua o r a l

e r a s ac r i f i c a do a f avo r do da l í ngua e sc r i t a . H o je em d i a , o e s tudo da

l í ngua o r a l é r eva lo r i zado e c ons i de rado peda gog ica men te como o

p r ime i ro e s t á d io da ap re nd izage m de um a l í ngua (Broek 1998 : 1 ) .

Roma i ne (1995 : 20 ) a c r e s cen t a :

Page 73: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

On e duca t iona l g rounds w e r ec ommend t ha t t he u s e o f t he m o the r

t ongue be ex t ende d to a s l a t e a s t a ge i n educ a t i on a s poss ib l e .

0 po r tuguês não é a l í ngua ma t e rna dos cabo -ve rd i anos . E ca da vez s e

t o rna m a i s d i f í c i l en s i ná - lo c omo t a l , po rque , em p r ime i ro l uga r , o

po r tuguês ac tua lm en te é uma l í ngua m u i to pouc o u t i l i z ada em Ca bo

Ve rde nas r e l a ções não -o f i c i a i s . P o r t a n to , a s c r i a nças que com eçam a

e s tuda r e s t a l í ngua na e s co l a r a r am en te ouve m a l í ngua po r tugue sa fo r a

da e s co l a . Em s egundo l uga r , com o aumen t o de núme ros de a lunos nos

ú l t i mos anos , mu i t a s c r i anç as vêm de m e ios onde nã o se u t i l i z a o

po r tuguês , ouv indo e s t a l í ngua pe l a p r ime i r a vez na e s co l a .

S endo o po r tuguês a l í ngua o f i c i a l em Ca bo Verde não s e pode ap re ndê -

lo com o se se t r a t a s s e de uma l í ngua e s t r a nge i r a , c omo s e ap rende po r

exem plo o f r ancê s ou o i ng l ê s . Te m-s e de ap re nde r o po r tuguês de t a l

mane i r a que s e pos s a u t i l i z á - lo mu i to bem como l í ngua s egunda . P o r

i s so , s e r i a me lho r s e a s c r i a nças j á c omeça ss em a en t r a r em con t ac t o

com o po r t uguês po r vo l t a dos t r ê s ou qua t ro anos , num p rog ra ma

e s co l a r e spe c i a lmen t e de s envo l v ido pa ra i s s o . N es sa i dade pode r i am

ap rendê - lo como a p rende ram o c r iou l o , sua l í ngua p r imár i a , do i s ou t r ê s

anos an t e s , i s t o é de ma ne i r a na tu r a l . Mye r s -S co t ton (2006 : 41 ) e xp l i c a :

( . . . ) som eone w ho l e a rn s t he l a nguage a s a young c h i ld does no t

need t o be t augh t e i t he r g r am mat i ca l compe t ence o r

comm un ica t ive c ompe t ence . T hey acqu i r e bo th t ypes o f

compe tence wi th no obv ious e f fo r t .

Edw ards (2004 : 12 ) s ub l inha a s van t age ns de uma com pe tê nc i a b i l í ngue

adqu i r i da nos p r ime i ro s anos da v ida :

the s e t end to r e f l ec t above a l l , t he r e l a t i ve e a s e o f ea r l y l e a rn i ng

and the h ighe r l eve l s o f f l ue ncy , vocabu l a ry and s o on . The young

b ra in i s m ore “p l a s t i c ” and f l ex i b l e t han the o lde r one .

Na idade do Ja rd i m de In f â nc i a a s c r i ança s a inda ap re ndem c om g rande

f ac i l i da de uma l í ngua de sconhe c ida ou pouco conhec ida (S iguán &

Ma ckey 1986 : 18 ; Lyon 1996 : 40 ) .

Page 74: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Nã o se ndo poss íve l ap rende r o po r tuguês no J a rd im de In f ânc i a , s e r i a

bom que a s c r i ança s e n t r a s se m ma i s cedo pa ra a e s co l a p r imá r i a , i s t o é ,

po r vo l t a dos c inco ou s e i s anos , conhe cendo j á pe lo m enos o s

rud ime n tos da l i nguagem po r t ugues a o r a l .

Na s c ond ições ac tua i s , a e sc o l a r i dade em Cabo V erde s ó come ça po r

vo l t a dos s e t e anos . Ne ss a i dade a c ompe t ênc i a l i ngu í s t i c a da c r i a nça

po r tugues a (ou de ou t r a nac iona l idade ) pe rmi t e - lhe c onhece r j á um

número i n f in i t o de f r a s e s que ap l i ca a s i t uaç ões d i ve r s a s . É a m esm a

compe tênc i a l i ngu í s t i c a que a c r i ança cabo -ve rd i ana pos s u i em r e l aç ão

ao c r i ou lo , n ão ao po r tuguê s . A os se t e anos de i dade , a c r i ança

po r tugues a , po r e xemplo , pos s u i uma compe tênc i a fono lóg i ca e l ex i c a l

mu i t o va s t a . 0 pa pe l do p ro fe s s o r cons i s t i r á em ape r f e i çoa r e s sa

compe tênc i a o r a l e em i n i c i a r a c r i ança na ap rend i zagem da l í ngua

e s c r i t a . Con t r a r i ame n te ao que se pa s sa c om a c r i ança po r tugues a , po r

exem plo , que en t r a pa r a a p r ime i r a c l a s se da i n s t ruç ão p r imá r i a , a

c r i a nça ca bo -ve rd i ana que va i pe l a p r i me i r a vez à e s co l a , dom ina um

c r iou l o su f i c i e n t eme n te p róx i mo do po r tuguê s pa r a o pode r com preende r

com f a c i l i dade , m as a e s t ru tu r a g r ama t i ca l do po r tuguê s é d i f e r en t e da

do c r iou l o . Fa l t a - lhe , em r e l a ç ão ao po r tuguê s , a compe t ênc i a

fono lóg ic a e l ex i ca l da c r i ança po r tugues a da m es ma ida de ( c f . Edw ards

2004 : 12 ) .

Exp l i ca - s e i s t o pe lo f ac to de que o po r t uguês t em uma e s t ru t u r a

mor fo lóg i ca m u i to c omplexa em r e l açã o ao c r iou l o , em que todas a s

f o rmas ve rba i s e s t ão r eduz i das ao i n f in i t i vo . A s s i m a c r i ança cabo -

ve rd i a na come ça l ogo de i n í c io com o g r ande p rob le ma do e mprego

co r r ec to de s sa e s t ru tu r a . É , po r t an t o , p r ec i so t r ans mi t i r à c r i ança c abo -

ve rd i a na que va i f r equen t a r a e s co l a pe l a p r ime i r a vez , a s e s t ru tu r a s de

bas e do po r tuguê s .

As c r i anças nec es s i t am de um domí n io r az oáve l da l í ngua po r tugues a

o r a l a n t e s de pas s a r em ao e s tudo da l í ngua po r t uguesa e s c r i t a , cu j a s

e s t ru tu r a s s ão m u i to m a i s compl exas ( c f . Roma ine 1995 : 20 ) . I s s o n ão

que r d i z e r que s e deva in t e r rom per o e s tudo da l i nguage m o ra l quando

se pa s sa á ap rend i zagem da l i nguagem e sc r i t a , po i s i s t o t am bém

con t i nua im por t an t e .

Page 75: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Al ém d i s s o , s e s e que r i n t eg ra r a e sc o l a no m e io em que o a l uno v ive ,

e s t a i n t eg raç ão s ó se pode rá f az e r com a u t i l i z aç ão da l í ngua f a l ada e

compre end ida pe lo s eu me io , i s t o é pe lo povo ca bo -ve rd i ano . Com o j á

menc ionado , pe s s oas cabo -ve rd i anas me sm o quando s ão capa zes de

compre ende r ou de s e e xp r imi r em po r tuguê s , s en t em-s e mu i to ma i s à

von tade em c r i ou lo .

A e sc o l a s ó s e i n t e g ra r á r ea lme n te no m e io em que a s c r i a nças v ivem ,

quando de i xa de have r a r up tu r a e n t r e a e sc o l a e o me io , c aus ada pe l o

u so r e pen t i no de uma l í ngua nã o -ma t e rna . Q uando na e s co l a n ão se

u t i l i z a a l í ngua p r imá r i a , c r i a - s e uma l acuna en t r e a educa ção f am i l i a r e

a educ ação e sco l a r , no que r e spe i t a a l í ngua como me io de t r ans mis s ão

de va l o r e s e conhec imen t os .

C r i a - s e um con f l i t o en t r e a cu l tu r a ve i cu l a da na e s co l a e a ve i cu l a da no

me i o f ami l i a r . Pa r a qua lque r c r i anç a , a en t r ada na e sc o l a é uma

pas sa gem, do pon t o de v i s t a a f ec t i vo e s oc i a l , do me i o f ami l i a r pa r a o

me i o e s co l a r , que não é f ác i l . S e t ambé m a inda fo r uma pa ss agem

ob r iga t ó r i a pa r a ou t r a l í ngua , i s t o pode s e r t r aum a t i zan t e .

0 u so a bso l u to de um a l í ngua se gunda ou e s t r ange i r a na e sc o l a t em

a inda ou t ro i nc onven ien t e . Q ua lque r c r i anç a que en t r a pa r a a e s co l a t em

de t e rmina dos conhe c im en tos adqu i r i dos pe l a s ua expe r i ênc i a no s eu

me i o f ami l i a r . A c r i ança exp r ime e s sa expe r i ê nc i a na sua l í ngua

ma t e rna , f am i l i a r . Q uando en t r a pa r a um a e s co l a com um a l í ngua de

ens ino d i f e r en t e , o s im p le s f ac to da muda nça de l í ngua r e duz o s eu

cam po de expe r i ênc i a s e a s s i m a ap re nd iza gem na e sc o l a . H á um nã o -

ap rove i t am en to de c onhec im en tos e um a pe rda de poss ib i l i da des pa r a

e s t e a luno , t endo c onse quênc i a s s é r i a s pa r a a s ua v i da fu tu r a . P a r a que

não ha j a de s con t i nu idade en t r e o m e io f a mi l i a r e o m e io e sco l a r é ,

nece ss á r io que a p r im e i r a e sc o l a r i zaçã o se f a ça na l í ngua p r i már i a i s t o

é , no c r i ou lo cabo -ve rd i ano . A s s i m os va lo r e s cu l tu r a i s da c r i anç a não

se r ão co r t ados l ogo à en t r ada pa r a a e s co l a .

Page 76: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

4 .3 .3 Ar gume ntos p ro e c ontr a o cr iou l o cab o-verd ian o como me i o de in s t ru ção n o en s i no c abo-ve rd ian oÉ ge ra lme n te ac e i t e que a c r i ança que f ez o s p r im e i ro s anos da e s co l a

na s ua l í ngua ma t e rna e se ha b i tuou a se rv i r - s e de l a pa r a o s se us

r ac i oc ín i o s e a r eag i r pe l a e xp re s são ne ss a m es ma l í ngua , não t em

d i f i c u ldade s em ap rende r uma l í ngua s egunda , em p ross egu i r ne l a o s

se us e s t udos (Broe k 1998 : 1 ) . Um a l í ngua s egunda mu i t a s vez es é a

l í ngua que é u s ada c omo l í ngua o f i c i a l do pa í s (S t e rn , c i t ado po r D av ie s

2003 : 23 ) . P a r a a l ém das dua s l í nguas ( l í ngua p r im e i r a e l í ngua

se gunda ) à s qua i s a c r i ança é con f ron t ada , e l a a inda deve ap re nde r ma i s

t a rde , no se cundá r io , ou t r a s l í ngua s e s t r a nge i r a s t a i s como i ng l ê s e

f r ancê s . N a me d ida e m que a c r i ança j á t enha ap re nd ido a s funções

cogn i t i va s da l i nguagem , não lhe é d i f í c i l s e rv i r - se de uma l í ngua

se gunda com o in s t rumen t o de com un icaç ão (Broek 1998 : 1 ) .

Ho j e em d i a , peda gogos e d idac t a s conco rdam que o s p r ime i ro s anos de

ap rend i zagem só s e pode m faze r no rma l men te na l í ngua ma t e rna . 0

empre go de l í nguas nã o -ma t e rnas aume n tam as d i f i cu l dades de

ap rend i zagem e d im inuem a qua l i dade dos r e s u l t a dos . É , po r t an t o , de

de s e j a r que o ens ino s e j a f e i t o na l í ngua ma t e rna .

É uma s o r t e ex i s t i r no a rqu ipé l ago de Cabo -V erde uma ún i ca l í ngua

p r imá r i a , e mbora com va r i a n t e s d i a l ec t a i s (Ve iga 1995 : 29 ) . Es sa

va r i e dade d i a l ec t a l põe a lguns p rob le mas l i ngu í s t i co s e d i dác t i cos ,

e s pec i a lme n te no que d i z r e s pe i to à e s c r i t a . T a lvez a va r i edade d i a l ec t a l

não s e j a a ma i o r d i f i c u ldade que se v i r á a e ncon t r a r ao que re r - s e

abo rda r o p rob l ema da u t i l i z a ção no ens ino de uma l í ngua que , c omo o

c r iou l o , a t é ago ra fo i c on f inado a um a u t i l i z ação nã o só o r a l , mas

f ami l i a r . É i gua lmen t e nec ess á r i o que todos - a l unos , pa i s e p ro fe s so re s -

compre endam c l a r a men te a s van t age ns da u t i l i z aç ão do c r i ou lo no

ens ino . Ce r t a s pe ss oas que e s t ão hab i t uadas a pens a r que o c r iou lo é

uma s ub - l í ngua , de r i vada do po r tuguê s , nã o de ixa rã o de pens a r que a

i n t roduç ão do c r i ou lo no ens ino é um a r eg re s s ão no des envo l v imen t o

cu l t u r a l da s c r i ança s e do povo c abo -ve rd i ano em ge ra l . I s t o po rque na s

Page 77: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

es co la s ca bo -ve rd i a nas , o c r iou lo fo i s i s t ema t i ca men t e p ro ib i do j á que

p r e jud i cava o e ns i no do po r tuguês .

À d i f i cu l dade de e xp r imi r a s sua s i de i a s numa l í ngua p r a t i c ame n te

e s t r ange i r a , a c r e s cem t odas a s i n t e r f e r ênc i a s l i ngu í s t i c a s . Es s a s

i n t e r f e r ênc i a s sã o no rma i s em qua lque r c r i anç a , de qua l que r pa í s , que

come ce a a p rende r uma l í ngua não -ma t e rna .

Ho j e em d i a não há i n t e r e s se e m con t inua r a e ns i na r o po r tuguê s com o

se fo ss e a l í ngua m a te rna dos cabo -ve rd i anos . I s t o po rque a l í ngua

p r ime i r a , o c r iou lo , cons t i t u i a me l ho r r e f e r ênc i a na a p rend iz agem de

uma l í ngua s egunda , o po r t uguês (Ve iga 1995 : 32 ) . A p róp r i a l í ngua é ,

como j á v im os e m 4 .1 .6 , e s se nc i a l pa r a a au to - cons c i ênc i a e a f o rm ação

da p róp r i a i den t idade . I s to nã o que r d i ze r que s e deva r e j e i t a r o ens ino

do po r tuguês , j á que t am bém é impor t an t e . M as o s cabo -ve rd i anos em

Cabo V erde t êm d i r e i t o t a mbém de ap rende r e e s tuda r na s ua p róp r i a

l í ngua . É o ún i c o me i o de a s c r i a nças em Ca bo Ve rde f i c a r em a

conhec e rem be m uma l í ngua e não t e r em o com plexo de u t i l i z a r e m ma l a

l í ngua em que são e sc o l a r i zadas . S e a s i t uação p r e sen t e s e p ro longa r , o s

a lunos das e s co l a s s ec undá r i a s con t inua rão a se r em con f ron t ados com

ma i s de uma l í ngua não -m a te rna (po r tuguês , f r anc ês , i ng l ê s ) , ma s nã o

se r ão capa zes de f a l a r ou e s c r eve r nenhuma de l a s com a dev ida

co r r ec ção . Ac tua l men t e , como ve remos ma i s a d i an t e na s en t r e v i s t a s ,

mes mo nos ú l t imos anos do ens ino s ecundá r io , é r a ro e ncon t r a r - se um

a luno que f a l e ou e sc r eva o po r tuguê s c omo s e fo s se a sua l í ngua

ma t e rna . Q uando o s a lunos t ê m de s e exp r i mi r e m po r tuguês , s e n t em -se

enve rgonha dos de nã o se r em ca pazes de f a l a r co r r e c t a men te a l í ngua em

que v êm s endo e s co l a r i za dos .

Qua ndo f a l a mos da u t i l i z a ção do c r i ou lo no ens ino t ocamos num

p rob lem a nac i ona l , nã o só pe l a s r eac ções que pode rá t r aze r t an to nos

pa i s com o nos p ro fe ss o re s e nos p róp r io s a lunos , ma s t ambém po rque a

u t i l i z a ção de um a de t e rmina da l í ngua no ens ino e s t á em r e l açã o d i r ec t a

com o de se nvo lv im en to s oc ioe conómi co do pa í s (V e iga : 1982 : 17 ) . O u

Page 78: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

se j a , pa r a a l é m das van ta gens pedagóg ic a s da s ua u t i l i z a ção no ens ino ,

o c r iou l o pode rá s e r um f a c to r de de se nvo lv im en to s oc i oeconómi co e

cu l t u r a l do pa í s . Con tudo , a i n t roduçã o do c r iou lo c abo -ve rd i ano no

ens ino s ó se pode rá f az e r depo i s de um es tudo l i ngu í s t i c o e s t ru tu r ado

do c r iou l o pe lo s p ro fe s s o r s (V e iga 1999 : 16 ) .

4 .3 .4 Ar gume ntos p ro e c ontr a pr ogramas de en s i no b i l ín gu e em Cab o V erd e0 p rob lem a do ens ino de um a l í ngua n ão t em um ca rác t e r pu ramen t e

l i ngu í s t i co . E l e e s t á t am bém l igado ao de se nvo lv im en to a f e c t i vo ,

cogn i t i vo e s oc i a l da c r i ança . Em r e l aç ão a Cabo V erde , é um

pens ame n to f a l s o que , pe lo f ac t o de o l é x i co c r i ou lo s e r p r a t i c am en te o

mes mo que o do po r tuguês , a c r i ança c abo -ve rd i ana pode r c omeca r a

ap rende r e s t a ú l t ima l í ngua , apenas mod i f i cando fone t i cam en te a s

pa l a v ra s j á conhe c idas . P ens a r a s s im é nega r que a s duas l í nguas t êm

e s t ru tu r a s d i f e r en t e s . P as s ando do c r i ou lo pa r a o po r t uguês , a c r i a nça

t em de e l abo ra r o s se us c once i t o s de l í ngua de mane i r a d i f e r en t e . Na

p r á t i c a peda góg ica , e s t a pa s s agem de uma l í ngua pa ra ou t r a s ó s e pode

f aze r sem p rob lem as a pa r t i r de um c e r to g r au de ap rend i zagem (Ve iga

1982 : 17 ) . Toda v ia , o s a lunos t êm de con t i nua r a e s fo r ça r - se a ap rende r

o po r tuguês o me lho r pos s í ve l . P o r ma i s que se e s tude o c r i ou lo e s e

p rocu re da r - lhe um novo e s t a tu t o soc io l i ngu í s t i co , nã o se pode e s quece r

que Cabo V erde ne ces s a r i am en te t e r á de se r b i l í ngue pa ra t e r a ce so a o

mundo g loba l i z ado e não s e i so l a r . A l ém d i s s o , b i l i ngu i s mo ou

mu l t i l i ngu i s mo ago ra é uma ne ces s i dade bá s i ca no d i a a d i a da g r ande

ma i o r i a da s popu l ações do p l a ne t a , t o rnando - s e a t é ca da vez m a i s a

r eg ra e m g randes pa r t e s do mundo (Roma i ne 2004 : 385 ; Bha t i a &

R i t c h i e 2004 : 1 -2 ) .

Com o des envo l v ime n to de p rog ram as de ens ino b i l í ngue e m Cabo

Ve rde , o s c abo -ve rd i anos pode m to rna r - se r ea lm en te b i l í ngues (Ve iga

1995 : 31 ) . A ss im , a l í ngua p r im ár i a , o c r iou lo , pa ss a a t e r o l uga r e o

Page 79: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

es t a t u to que m erece t e r . P a r a que i s to s e j a pos s íve l t e r - s e - ão de da r ao

c r iou l o uma g ra f i a e s t a nda rd i za da , e s c r eve r g r amá t i ca s , p r e pa ra r

ma t e r i a l pedagóg i co e fo rm ar p ro fe s so re s que ens i nem o c r iou lo e em

c r iou l o (Ve iga 1999 : 16 ) . 0 s p ro fe ss o re s t e r ão que t e r um conhec ime n to

p ro fundo da e s t ru t u r a g r ama t i c a l do c r i ou lo e t e r ão que domi na r t ã o

bem o c r iou lo c omo domi nam o po r tuguê s . 0 po r tuguês con t udo t e r á de

con t i nua r a s e r ens ina do t am bém nas e s co l a s , m as como i n s t rumen t o de

comun i caçã o e com o l í ngua s egunda , po rque s ó com o c r i ou lo o s cabo -

ve rd i a nos t e r ão conhe c im en to de um a l í ngua que não u l t r apa ss a a s

f ron t e i r a s de Cabo V erde . O us o do c r i ou lo no ens ino nã o exc lu i a do

po r tuguês , a s f unções do c r i ou lo e do po r t uguês comple t am -se . Na

med i da em que o po r tuguês é um a l í ngua d i f e r e n t e da l í ngua c r iou l a ,

deve - s e no ens ino da s dua s l í nguas da r a t enção à s i n t e r f e r ênc i a s que

su rge m s empre na pas sa gem de um a l í ngua pa ra ou t r a . N es t e ca so , a s

i n t e r f e r ênc i a s podem t o rna r - s e a inda ma i s f r eque n te s dev i do a

p rox imi dade e n t r e a s duas l í nguas (Ve i ga 1999 : 16 ) .

0 s j ovens cabo -ve rd i anos de ho j e j á u l t r apas s a r am os p r ec once i t o s

c r i a dos pe lo co lon i zado r e m r e l a ção à l í ngua m a te rna . A a t i t ude dos

pa i s c a bo -ve rd i anos a i nda s e r á t a lvez de r e j e i ção . U ma expe r i ê nc i a f e i t a

em Bos ton nos Es t a dos U n idos j á deu p rova nes t e sen t ido . U m g rupo de

j ovens p ro fe s s o re s cabo -ve rd i anos de n íve l un ive r s i t á r io i n t roduz iu e m

e s co l a s s ecundá r i a s de l á o ens ino b i l í ngue c r i ou lo - ing l ê s , mas

i n i c i a l men t e o s pa i s ques t i ona ram as e s co l a s dos f i l hos e m que s e

u t i l i z a va o c r iou l o ou c r i t i c a vam a e s t up idez , que cons i s t i a em s e rv i r - s e

no ens ino de um a l í ngua não e s c r i t a (V e iga 1999 : 20 ) . Es s e ens ino

b i l í ngue e r a d i r i g i do a a lunos que m a l conhe c i a m o po r tuguês , a a lunos

que , po r t e r em que a p rende r e u s a r s im u l t a neame n te dua s l í nguas não -

ma t e rnas , o po r tuguês e o i ng l ê s , não cons egu i am t e r s uces so nos

Page 80: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

es tudos 1 4 . Ho j e , o ens ino f e i t o com a a j uda do c r iou l o , j á m os t rou a s ua

v i t a l i da de e o s pa i s de i xa r am de t e r dúv i das :

Bu t t h i s c once rn d r am a t i ca l l y d im in i s hed ove r t he f i r s t f i f t e en

yea r s o f t he p rog ram w hen the y cou ld s ee t ha t t he ch i l d r en

r e s ponded and l ea rned m ore e f f ec t i ve ly i n t he i r ow n l angua ge ,

t augh t by t ea che r s who r e spe c t ed t he i r l anguage a nd cu l t u r a l

r e s ou rces (V e iga 1999 : 20 ) .

Um ou t ro exe mplo de suce ss o do ens ino b i l í ngue fo i dado po r Wa yne

Thoma s & Vi rg in i a Co l l i e r em 1996 e m “L anguage M ino r i t y S tuden t

Ac h ieve men t a nd Prog ra m Ef f e c t i v ines s” , um e s tudo f e i t o nos Es t ados

Un i dos ( c i t a do po r B roek 1998 : 10 ) . N es t e e s t udo pa r t i c ipa r a m 42 .000

a lunos . A s p r i nc ipa i s conc lu s ões fo r am que ( a ) o s me l ho re s r e su l t ados

sã o ob t idos na s s a l a s de a u l a s onde o s a lunos r ec ebem o e ns i no em duas

l í ngua s , e ( b ) quan to m a i s um a l uno r ecebe au l a s na l í ngua m a te rna ,

t an t o me l ho r sã o o s e s tudos em ge ra l .

O m es mo t a mbém j á fo i t e s t em unhado na H o landa e t am bém fo i a

conc l u sã o ma i s im por t an t e do inqué r i t o f e i t o s ob re a i mp le men ta ção do

p rog rama Tr i a s , um p rog rama de e s t ím u lo de ap re nd izage m pa ra

c r i a nças b i l í ngues ou mu l t i l i ngues no ens ino (Broek 1998 : 10 ) .

Qua ndo o s a lunos t am bém s eguem d i s c ip l i na s dadas na s ua l í ngua

ma t e rna , i s t o não lhe s dá ne nhum a t r a so . A té pe lo con t r á r io ,

de s envo lve m a inda ma i s c apac i dades que lhe s f a c i l i t am a ap rend i zage m

da l í ngua s egunda . A ppe l & Muys ken (1987 ; 68 ) f a l am de um

expe r i men t o que fo i f e i t o em Le i den (Ho l anda ) , onde pa r t i c ipa r a m

tu r cos e m ar roqu inos num p rog ram a de e ns i no b i l í ngue . 0 s r e su l t ados

t am bém fo ra m pos i t i vos :

At t he e nd o f t he s econd ye a r t he g roup f rom the b i l i ngua l

p rog ramm e pe r fo rm ed som ew ha t be t t e r t han the domina n t ly

mono l i ngua l l y sc hoo led ch i ld r en .

14 R o m a i n e ( 2 0 0 4 : 4 0 1 ) :

I n t h e U S A a t l e a s t o n e s t a t e ( M a s s a c h u s e t t s ) h a s h a d t o t d e v e l o p p r o g r a m m s

o f i n s t r u c t i o n f o r c r e o l e - s p e a k i n g c h i l d r e n , w h o s e “ h o m e l a n g u a g e ” , C a p e

V e r d e a n C r e o l e , i s n o t r e c o g n i z e d i n t h e i r c o u n t r y o f o r i g i n .

Page 81: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

0s a u to r e s con t inuam:

Wi t h r e s pec t t o a r i t hme t i c a s w e l l , t he c h i ld r en f rom the

expe r i men t a l g roup ou tpe r fo rmed t he ch i l d r en f rom t he domi nan t

Du t ch s choo l s .

Num a pes qu i s a que fo i f e i t a em Pe ru , en t r e c r i ança s no i n t e r i o r que não

f a l a vam es panho l , o s p ro fe ss o re s e r am índ io s b i l í ngues que f a l avam a

l í ngua ma t e rna dos e s tudan t e s . 0 s r e s u l t ados fo r am que ( a ) a s c r i a nças

ap rend i am de m ane i r a ma i s e f i c i en t e e m todos o s domín i o s ( l e r ,

e s c r eve r , m a te má t i ca ) ; e ( b ) o choque c u l tu r a l , que a s c r i anças r ec ebem

quando f r eque n tam um a e s co l a mono l i ngue em es panho l é r e duz ido

(La r s on & D av i d 1981 , c i t ado po r Appe l & M uys ken 1987 : 69 ) .

Em Ca bo Ve rde , a r ea cção s e r á t a lve z i gua l que s e houve nos Es t a dos

Un i dos . E mbora m u i to s dos pa i s s e j am ana l f abe to s ou quas e a na l f abe to s

e po r t a n to apena s u t i l i z am o c r iou lo c omo in s t rum en to de comun ic ação ,

o p r e s t í g i o que o po r tuguê s aos s eus o lhos adqu i r i u como l í ngua

exc l u s i va de ens ino l eva aos pa i s , s em dúv ida , a c on te s t a r o ens i no em

c r iou l o . Fo i t am bém o que acon te ceu na H o la nda , quando o ens ino e m

c r iou l o fo i i n t roduz ido na s e s co l a s p r imá r i a s de Ro t t e rdam . Mui to s

d i z i am que : ”deve se r mu i t o d i f í c i l ap r e nde r a l e r em c r iou lo” , ou que

“o c r i ou lo não t em ca pac ida de pa ra s e r u t i l i z ado com o l í ngua de

ens ino” . I s s o não s ign i f i ca que o c r iou lo não t enha a s ca pac i dades

r eque r i da s pa r a de s c r eve r conce i to s ma t emá t i cos po r exe mplo . Com o

v imos no e s tudo f e i t o e m P e ru , i s t o é pos s íve l . 0 p rob lem a é que o

c r iou l o é no rma lmen t e u t i l i z ado na l i nguagem fami l i a r e o s l ocu to re s

não t ê m de t e rmina dos há b i to s l i ngu í s t i c o s em c r iou l o que pos sue m em

po r tuguês . P o r i s so , há mu i t a s pe s soas i n s t ru í das que t ê m t endê nc i a de

apo r tugue sa r em o c r i ou lo quando que rem exp r i mi r c once i t o s que só

cos tuma m d iz e r em po r t uguês . A d i f i cu l dade de e xp r imi r ce r to s

conce i to s em c r iou lo nã o vem da a usê nc i a de r ecu r s os na

l íngua , mas dos háb i t o s l i ngu í s t i co s dos p ro fe s s o re s . Po r t an to , a n t e s da

u t i l i z a ção do c r i ou lo no ens ino , o p ro fe ss o r deve a p rende r o voca bu lá r i o

que lhe f a l t a em c e r to s domí n io s .

Page 82: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

4 .4 Con c l u são d a an á l i s e d os e s tud os l in gu í s t i c os s ob re o cr iou lo cab o-verd ian o

F oram ana l i s ados ce r t o s c once i t o s l i ngu í s t i co s em r e l a ção à s l í ngua s

c r iou l a s e em r e l a ção a os d i a l e c to s em 4 .1 . V im os no pon t o 4 .1 .5 que a

ma i o r pa r t e da s l í nguas c r i ou l a s não t ê m e s c r i t a . Em 4 .1 .6 abo rdám os a s

ques tões do e s t a t u to e da i den t idade da s l í nguas c r iou l a s .

O c r iou lo c abo -ve rd i a no fo i ana l i s ado no pon to 4 .2 . O f ac to do c r i ou lo

cabo -ve rd i ano s e r uma l í ngua como ou t r a s l í ngua fo i i l u s t r a do no pon to

4 .2 .1 . A gé nes e do c r iou l o cabo -ve rd i ano fo i t r a t a do no pon to 4 .2 .2 ,

s e ndo o supe r s t r a to e s ubs t r a t o do c r iou l o cabo -ve rd i ano a l í ngua

po r tugues a e a s l í nguas a f r i canas (4 .2 .3 ) . A lguns a s pec to s da s ua

e s t ru tu r a , d i f e r en t e da do c r iou lo da G u iné B i s sa u , f o i abo rdada no

pon to 4 .2 .4 . N o pon to 4 .2 .5 s eguem as r azões da não -e sc r i t a do c r iou lo

cabo -ve rd i ano . A pes a r dos g r andes e s fo r ços da Ig r e j a pa r a bap t i za r e

ca t equ iza r o s a f r i canos v indos do con t inen t e a f r i c ano , não s e deu um a

sob re pos i ção da c u l tu r a eu rope i a (4 .2 .6 ) . No pa rag rá fo 4 .3 abo rdou - s e o

ens ino em Cabo V erde . F o ram t r a t a dos a s s un to s como o pa pe l da e sc o l a

do co lon i zado r , a s i t uaçã o ac tua l do ens ino em Cabo V erde , a

p rob lem á t i ca da u t i l i z açã o do c r iou l o cabo -ve rd i ano , a s ua i n t eg raç ão

como l í ngua de i n s t rução na e s co l a , o s a rgum en tos p ro e con t r a o

c r iou l o cabo -ve rd i ano com o me i o de i n s t ruçã o e , f i na l men t e , o s

a rgume n tos p ro e con t r a p rog rama s de e ns i no b i l í ngue em Cabo Ve rde .

No c ap í t u lo s egu in t e pa s so a o aná l i se do co rpus l i ngu í s t i co .

Page 83: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

5 . An ál i s e d o corp u s l in gu í s t i co

5 .1 A t r ans cr i ção d o mater i a l s on oro

F iz c i nco en t r ev i s t a s que s e enc on t r am nos a nexos V a t é IX . Os

in fo rma n te s fo r am anon imi zados , r ece bendo l e t r a s de A a G . Um a das

en t r e v i s t a s f o i f e i t a c om 3 a l unos ao m es mo t e mpo ( in fo rm an te s D , E , e

F ) . As ou t r a s en t r ev i s t a s f o r am ind iv i dua i s (A , B , C , e G ) .

P r ime i ro f i z t r ans c r i çõe s da s e n t r ev i s t a s e m c r i ou lo pa r a o c r iou lo na

g r a f i a que me pa rec i a me l ho r . De po i s t r aduz i o s t ex to s pa r a o

po r tuguês . D ado o f ac t o que t r ê s da s en t r ev i s t a s f o r a m f e i t a s no pá t i o

da e s co l a , t i ve ce r t o s p rob l emas na t r ans c r i çã o . Ou s e j a , não fo i

poss íve l t r a nsc r eve r t odo o m a te r i a l da do o ba ru lho que hav ia e m ce r t o s

mome n tos du ran t e a s e n t r ev i s t a s . Us e i o s s egu in t e s s í mbo los :

…. = n a s p a r t e s o n d e e u n ã o c o n s e g u i a d i s t i n g u i r o q u e e r a d i t o p e l o

i n f o r m a n t e . P o r e x e m p l o n a e n t r e v i s t a f e i t a c o m i n f o r m a n t e B ( v e z

1 ) e c o m i n f o r m a n t e C ( v e z 1 ) .

< > = p a r a d e s c r e v e r a s p e c t o s o u e l e m e n t o s q u e p o d i a m i n f l u e n c i a r o

l o c a t o r d u r a n t e a s u a f a l a . P o r e x e m p l o n a e n t r e v i s t a c o m o

i n f o r m a n t e C , a n e x o V I I , v e z 2 , < “ t o c a d e c o m p a i n h a ” > e n o a n e x o

V I I I , v e z 4 1 , < b a r u l h o > .

[ ] = p a r a c o m p l e t a r a f r a s e d o i n f o r m a n t e , p o r e x e m p l o n o a n e x o V I I ,

v e z 1 , [ o s a l u n o s ] e n o a n e x o V I I I , v e z 9 [ l i c e u J o r g e B a r b o s a ] . O

t e x t o e n t r e e s t e s í m b o l o p o r t a n t o n ã o f o i d i t o p e l o s i n f o r m a n t e s

m a s s ã o a s m i n h a s p r ó p r i a s p a l a v r a s , a s m i n h a s i n t e r p r e t a ç õ e s .

‘ ‘ = p a r a i l u s t r a r u m a e x p r e s s ã o t i p i c a d o c r i o u l o c a b o - v e r d i a n o . D e c i d i

d e n ã o t r a d u z i r e s t a e x p r e s s ã o , p o r q u e a c h o q u e u m a t r a d u ç ã o p a r a

o p o r t u g u ê s n ã o d á o m e s m o v a l o r à e x p r e s s ã o .

Page 84: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

5 .2 An á l i s e d as en tre v i s ta s

Como j á v imos , a pob re za con t inua um a marc a dos cabo -ve rd i anos . Nas

en t r e v i s t a s i s t o é s ob re t udo i l u s t r a do pe l a s pa l av ra s do in fo rm an te A .

E la d i z o s egu i n t e :

A m inha m ãe não c onse gue paga r a minha e sc o l a , à s vez es p r ec i s o

de a l guma co i sa e peço - l he , ma s e l a não t em d i nhe i ro ( ane xo I I I :

28 ) .

Con t inua e d i z :

S e o s m eus i rmã os fo r e m pa ra o l i c e u , eu de ixo de e s tuda r ( ane xo

I I I : 32 ) .

O c r iou lo é , de f ac t o , a l í ngua de un ida de de t odos o s cabo -ve rd i anos ,

l í ngua de i de n t idade nac i ona l e o i n s t rumen t o ma i s i mpor t an t e de

comun i cação v e rba l em Cabo V erde . I n fo rman t e A:

Norm a lm en te só f a l amos c r i ou lo ( anexo I I I : 42 ) .

I n fo rman t e B d i z o segu i n t e a e s t e r e s pe i to :

No d i a a d i a em Ca bo Ve rde , a s pe s soa s f a zem a sua v ida em

c r iou l o ( anexo IV : 11 ) .

In fo rman t e E a c r e s cen t a :

Eu f a l o c r iou l o , ‘ na von tade ’ ( anexo V I : 48 ) .

O po r t uguês con t i nua a s e r a l í ngua do ens ino , t an to no l i c eu c omo na

e s co l a p r imár i a . O c r iou l o é a l í ngua ma te rna , o po r t uguês é a l í ngua

ap rend i da como s egunda l í ngua . I n fo rman te B d i z a r e spe i to do c r iou lo :

É uma l í ngua que s e f a l a em ca sa . Os t e us pa i s f a l am c r iou l o

con t i go des de pequeno ( a nexo IV : 11 ) .

Na p r ime i r a c l a s se a s c r i anç as f a l am c r iou l o , po rque a inda não s abem f a l a r por tuguês . I s to é be m exp re s s o nas se gu in t e s f r a s e s da i n fo rman te

A:

Os mi údos da p r ime i r a c l a s se f a l am c r iou l o , po rque a i nda não

sa bem f a l a r po r tuguê s , m as depo i s ap rende m e cons egue m fa l a r

Page 85: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

bem o po r t uguês ( anexo I I I : 38 ) .

Qua n to ao u s o do po r tuguê s no ens ino , s egundo i n fo rman t e C :

não t ê m bas es su f i c i e n t e s pa r a e xp l i c a r [ comun i ca r ] c e r to s

con te údos . [O s a lunos ] Têm mui t a s d i f i c u ldades pa r a exp re s sa r

de t e rmina das m a té r i a s em po r t uguês . Ma s pa ra man t e r a apa rênc i a

de que e s t ão bem na e s co l a p r i már i a , f a l a m em c r iou l o . Os ou t ro s

p ro fe s so re s nã o conse guem p re enche r a s l a cunas na l í ngua , que j á

t r az em da p r i már i a ( anexo V : 1 ) .

O i n fo rman t e C con t inua d i z endo :

Eu gos t a r i a que t odos o s a lunos f a l a s se m po r tuguês , po rque ,

t a l vez , em po r tuguês [ eu ] cons egu i s s e ens ina r um t em a me l ho r .

P o r vezes é d i f í c i l en s ina r c e r to s t em as em c r i ou lo . É m es mo

d i f í c i l . É po r e s sa r azão , que acho que o e ns i no aqu i , deve r i a

con t i nua r em po r tuguês ( anexo V : 5 ) .

Na e s co l a f a l a - s e s ó po r tuguês , s egundo in fo rm an te E :

Nã o podemos f a l a r c r iou l o du ran t e a s a u l a s ( anexo V I : 28 ) .

In fo rman t e D ac r e s en t a :

No i n t e rva lo podem os f a l a r c r i ou lo ( anexo V I : 64 ) .

S egundo in fo rma n te E , o s p ro fe ss o re s d i ze m que :

Nã o podemos f a l a r c r iou l o du ran t e a s a u l a s ( anexo V I : 28 ) .

F a l a r c r iou lo é uma f a l t a de d i s c ip l i na ( ane xo VI : 30 ) .

F a l am os c r iou lo s ó na rua ( a nexo V I : 32 ) .

E l a con t i nua :

E le s [o s p ro fe ss o re s ] não que re m, não a ce i t am ( anexo V I : 34 ) .

P o r t an to , t odo o ens ino é da do em po r tuguês .

In fo rman t e G d i z que t ambé m fa l a c r iou l o com os s eus func ioná r i o s :

O c r iou lo po rque é a nos sa l í ngua nac iona l ne s t e momen t o e

po rque é a noss a l í ngua ( ane xo VI I : 20 ) .

Page 86: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

O fa c to de nem todos o s cabo -ve rd i anos sa be rem f a l a r bem o po r tuguês ,

mes mo que t enham um ce r to g r au de e sc o l a r i zaçã o , é bem e xp re s so pe l o

i n fo rma n te G :

Mui t a s vez es , m u i to s de l e s não s abem f a l a r bem o po r tuguês e t êm

compl exo e a s s im e l e s não dão a que l a abe r tu r a que nós que remos .

S e qu i s e rmos s abe r bem as sua s op i n iões , t em os de f a l a r em

c r iou l o . E com o é i s s o que é o ob j e c t i vo das r e un iões de

t r aba lhado re s , po rque s enã o não t i nha r azão de se r r eun ião de

t r aba lhado re s , f a l amos em c r iou lo . A s s i m e l e s podem d i scu t i r

numa l í ngua que e l e s conhe cem e sa bem f a l a r me lho r ( anexo V I I :

34 ) .

Me sm o aqu i na comun ida de cabo -ve rd i ana , f a lo no rma lme n te em

c r iou l o po rque há pes s oas que f a l am bem ho landê s , i ng l ê s ou

f r ancê s , m as que não f a l am po r tuguê s . P o r tuguê s pa r a e l e s é ma i s

d i f í c i l ( anexo V I I : 36 ) .

Ce r to s l i ngu i s t a s , com o v imos , não r ec onhecem o e s t a t u to de l í ngua do

c r iou l o f a l a do em Cabo V erde , mas t an t o i n fo rma n te B com o in fo rma n te

G f a l am do c r iou l o em t e rmos de l í ngua :

P o r t an to s ão dua s l í nguas . S ão duas l í ngua s l ado ao l ado

( i n fo rma n te B , a nexo IV: 1 ) .

Con t inua ndo :

O c r iou lo é uma l í ngua , o p rob le ma é que e l e nunca fo i e s t udado

( anexo IV : 9 ) .

I n fo rman t e G d i z que :

É uma r iquez a ; o c r i ou lo é… m a i s uma l í ngua ( a nexo V I I : 45 ) .

S egundo In fo rman t e B :

A t endênc i a é de f ac to da l í ngua c r iou l a come ça r a s e r da da ma i s

va lo r e j á com eça ram a f a ze r a g r a má t i ca do c r iou lo e j á pens a r a m

em c omeça r a e s tuda r o c r iou lo na e s co l a . E x i s t em a lguns

p rog rama s que são m es mo s ó em c r iou lo ( ane xo IV: 2 ) .

A t é ho j e em d i a e ape sa r de t odos o s c abo -ve rd i a nos m an te r em as

Page 87: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

r e l a ções a f ec t iva s com a s ua l í ngua ma t e rna , m u i to s de l e s a inda não

cons eguem reconhec e r no c r iou l o o mes mo e s t a tu to que r econhec em e m

l íngua s que t êm uma e s c r i t a e s t a nda rd i z ada , em pa r t i cu l a r o po r t uguês .

Ma s s egundo in fo rm an te B :

O m e lho r , de f ac to , s e r i a t udo e m c r iou l o , pa r a que a s pe ss oas s e

se n t i s s em m a i s à von ta de ( anexo IV : 6 ) .

Ve ja a s s egu in t e s f r a s e s que i l u s t r a m o f ac to do po r tuguês s empre t e r

s i do dado ma i s va lo r :

Ex i s t e m pes s oas , que quando s e zanga m com os s eus f i l hos , f a l am

em po r t uguês pa r a da r um a r de m a i s se r i eda de . T ra t a - s e , po r t an t o ,

de uma ques t ão de há b i to s que s e en ra i zam na ca beça da s pe s s oas ,

mas no fundo não t em nada a ve r ( ane xo IV: 9 ) .

Ve ja t ambém o que in fo rm an te G d i z a e s t e r e spe i to :

Ma s c om os meus pa i s f a l o po r tuguês . I s so t em a ve r com o f a c to

de que a n t igam en te em Cabo V erde o s pa i s só f a l avam po r tuguês

com os s eus f i l hos . I s so t em a ve r com a c l a s s e ( anexo V I I : 24 ) .

Con t inua e d i z :

In t e r e s s an t e é que e m Cabo V erde , qua ndo a lguém f a l a a sé r io ou

quando f az gue r r a , b r iga - se com uma ou t r a pe ss oa ou c r i ança , e l e

f az u s o da l í ngua po r tugue sa . O m eu pa i s em pre quando m e dava

ca s t i go , ou quando e s t ava zangado , f a l ava s em pre em po r tuguês

( anexo V I I : 38 ) .

A l í ngua po r t ugues a em Ca bo Ve rde , nunca c ons t i t u i u uma l í ngua de

domín i o t o t a l . F o i , com o v imos , um i n s t rumen t o de domí n io

admi n i s t r a t i vo -po l í t i c o . I s t o se r e f l ec t e na s s egu in t e s f r a se s de

i n fo rma n te G :

Norm a lm en te na s r e un iões de t r aba lho e m Cabo V erde f a l am os s ó

po r tuguês . É m a i s co r r ec to . Te mos r eun iões , po r exe mplo

d i r i g i das a um púb l i co m a io r / à s ve zes é em c r iou l o t ambé m. P o r

exem plo , na m inha ca sa , na s r e un iões com t r aba l hado re s f a lo m a i s

em c r iou lo pa r a t e r m a i s l i gação c om os t r aba l hado re s . P a r a não

man t e r d i s t â nc i a ( anexo V I I : 34 ) .

Page 88: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

P odemos conc l u i r que o c r i ou lo pa r a o s i n fo rman t e s de Cabo -V erde é

uma l í ngua como o po r t uguês . O g rande p rob lem a é a t r ans pos i ção pa ra

a f o rma e s c r i t a .

Mui t a s pe s s oas dec l a r am que n ão cons eguem es c r eve r o c r iou lo :

P o rque é d i f í c i l e s c r eve r e m c r iou l o . Conse gu imos e s c r eve r um

bocad i nho , mas não toda s a s pa l av ra s , po rque a lgumas s ão

compl i ca das . A s s i m , e s c r e vemos em po r t uguês ( i n fo rma n te A ,

anexo I I I : 57 ) .

Ve ja t ambém o que in fo rm an te D d i z :

S e qu i s e rmos podem os e sc r e ve r c r i ou lo , mas é um bocad i nho

d i f í c i l pa r a nós ( anexo V I : 54 ) .

P o rque ex i s t e m co i sa s que nã o cons egu imos e s c r e ve r em c r iou lo

( anexo V I : 56 ) .

J á que a l í ngua ca bo -ve rd i ana se mpre é um a l í ngua o r a l e não pos su i

uma o r t og ra f i a o f i c i a l , a s ua e s c r i t a é a rb i t r á r i a . I n fo rm an te B d i z a e s t e

r e s pe i t o :

Nós u t i l i z amos o c r i ou lo s ó o r a lme n te . I s to é , e s t á c l a ro , um

“hand i cap” , po rque a l í ngua não e s t á o rgan iza da e não t em r e g ra s .

É e s s e o p rob le ma com o c r iou l o ( anexo IV : 9 ) .

E i n fo rm an te G:

[Es c revo ] E m po r tuguê s po rque e u e mu i t a s ou t r a s pe s s oas a inda

t em os d i f i cu l dades em e sc r eve r c r i ou lo . Eu e sc r e v i aque l e

r e l a tó r io s ob re fundos em c r iou lo pa r a que s ó eu o l e s s e . E sc r e v i

da fo rma que eu pens e i que s e pod ia e sc r eve r e que eu pod ia l ê - lo

( anexo V I I : 22 ) .

E le con t i nua :

Às vez es t emos ce r t a s d i f i cu ldade s t ambém em f a l a r c r i ou lo . P o r

exem plo quando f a l amos em t e rm os t écn i c os , t e rmos

e s pec i a l i z ados , à s vezes não t emos aque l e s t e rmos d i s pon íve i s . A

ques t ão nã o é que não que remos u sa r a nos sa l í ngua c r iou l a , mas é

f a l t a de pa l av ra s , de conhe c im en tos de ce r to s conce i to s na l í ngua

Page 89: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

c r iou l a . A ss im , quando f a l a mos em c r iou lo em pregam os a que l e s

t e rm os e m po r tuguê s ( ane xo VI I : 46 ) .

I n fo rman t e E c on f i rma o a c im a menc ionado :

Us am os a pa l av ra em po r t uguês ( anexo V I : 60 ) .

J á houve t en t a t i va s de e spec i a l i s t a s cabo -ve rd i anos pa r a i n t roduz i r uma

e s c r i t a e s t anda rd i zada do c r iou l o cabo -ve rd i ano , ma s a i nda não há uma

dec i sã o po l í t i c a da s a u to r idade s c abo -ve rd i a nas pa r a a a dopção de um a

fo rma de e s c r i t a do c r iou l o . Se rá que o c r i ou lo va i con t i nua r se mpre na

o r a l i dade? P a re ce que nã o , po rque j á há p rovas t am bém de p roduç ão

l i t e r á r i a e poé t i ca de au to r e s c abo -ve rd i a nos , ve j a t a mbém 5 .3 .

I n fo rman t e G d i z s ob re e s t e a s sun t o :

Tem os nos s a mús i c a… toda e m c r i ou lo , t em os m u i t a s ve zes poes i a

em c r iou lo , r om ances em c r iou l o . Temos que t e r uma fo r t e

i den t idade cu l tu r a l ( ane xo VI I : 43 ) .

Nã o se r á d i f í c i l e ncon t r a r um s i s t ema de e s c r i t a pa r a o c r iou lo , da do a s

sua s s em e lhanç as l ex i ca i s com o po r tuguês , o que deve f ac i l i t a r a s ua

e s c r i t a . O p rob lema que s e pode enc on t r a r é o f a c to que ex i s t em mu i t a s

va r i e dades r eg iona i s do c r iou l o :

P o r aca s o é s empre bom nunca e sque ce r a s t ua s r a í ze s , ma s t emos

que t e r em con t a , o f ac to de que o c r iou lo é d i f e r en t e em todas a s

i l ha s . P o r e s s a r azã o é um boc ado con fus o un i fo rmi za r um

de t e rmina do c r iou lo . P o r ago ra f a l a mos só um bocad inho de c r iou l o

na e s co l a , (…) no fu tu ro ( i n fo rm an te C , anexo V : 7 ) .

5 .3 An á l i s e d e a lgu n s p oemas d e S érg i o Fru s oni

Que m é S é rg io F rus on i? É um poe t a com pa i s i t a l i a nos , m as na sc ido em

Cabo V erde . O s poemas que e s t ão na p r im e i r a pág ina de s t e t e s e e nos

anexos V I I I e IX são de s t e poe t a (L im a 1992 : 154 -155 , 204 -205 ) . S ua

Page 90: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

obra é qua se t oda e s c r i t a em c r iou l o , na déca da de c i nquen ta do séc u lo

XX , con t endo um t om humor í s t i co e s abe ndo r e t r a t a r a s ua t e r r a e

soc i eda de de fo rma s i gn i f i c an t e (L ima 1992 : 15 ) . F ruson i u sa uma

o r tog ra f i a e t imo l óg ica pa r a e s c r eve r o s s eus poema s e m c r iou l o .

O poe ma i n t i t u l ado ‘P re s en t a çôm’ na pág ina 1 de s t a t e s e t r a t a da

t em á t i ca do am or à t e r r a , ne s t e c a so a i l ha de S ão V icen t e , ma s t ambém

do amor dos ca bo -ve rd i anos pa r a a t e r r a de Cabo V erde e m ge ra l (L im a

1992 : 45 ) . Conf i r a t am bém as s egu in t e s f r a s e s do poe ma :

Um a d ív i da de s audade e de am or

(…)

Que m eu s ou? U m f i l ho de S an [ s i c ] V ic en te .

(…)

O que eu que ro? Ca n ta r a minha t e r r a !

Es t e poe ma pod i a cons t i t u i r uma morna ( c f . t ambé m as mornas ca n t adas

po r I l do Lobo , i n t i t u l ados ‘P o r t ão de nós i l ha s ’ e ‘M anú’ , e de Césa r i a

Evo ra , ‘T rá s de ho r i zon t e ’ ) . A morna é uma das ca r ac t e r í s t i c a s m u i to

impor t an t e s na v ida cu l tu r a l dos c abo -ve rd i a nos , é um g rande p rova da

i den t idade dos ca bo -ve rd i a nos (L ima 1992 : 153 ) .

A h i s t ó r i a de Cabo V erde é f e i t a m a i s de e s t ó r i a s de s o f r ime n to do que

de a l eg r i a . O ca bo -ve rd i ano e nca ra a l u t a do p r e s en t e e do fu tu ro ,

e s c r evendo e f a l a ndo . A m ús i ca e a l í ngua m a te rna s ão duas g r andes e

p r inc i pa i s f o r ça s na e spe c i f i c ação da pe r s ona l i dade do ca bo -ve rd i ano .

A t r avés dos can t a r e s e da s h i s tó r i a s , p roc u ra r eca p i tu l a r o r e s u l t a do da

sua v i age m pe lo e s t r ange i ro a que dá o nom e de ‘Te r r a A ba ixo ’ , ‘L á

F o ra ’ , l onge da s s uas i l ha s , l onge da s ua t e r r a . S ão t e r r a s de ou t r a s

gen t e s e ou t ro s cos t umes . O cabo -ve rd i ano t a mbém t en t a vence r a s

ba r r e i r a s do d i a - a -d i a com f é num fu tu ro e m Cabo V erde . I s to e ncon t r a -

se t am bém nos poema s de F rus on i . V e j a a s egu in t e f r a s e no poem a ‘P a ra

f r en t e É que É o Caminho’ ( a nexo V I I I ) , que t am bém é o t í t u lo do

poema . Qua ndo o cabo -ve rd i ano r eg re s s a pa r a f é r i a s , vem ma ta r

sa udades ou en t ã o vem m or re r na s ua t e r r a , como é bem i lu s t r ado com

as f r a s e s do poema ‘A pres en t ação ’ (pá g ina 1 de s t a t e s e ) :

Page 91: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

‘Dê em-m e l i c ença .

V i m cá paga r uma d ív ida de s audade que de amor ’ .

Mu i to s dos c abo -ve rd i anos r e g re s sa m a Cabo V erde pa r a mor r e r na

mi s é r i a . M as só na s ua t e r r a de na sc ença é que s e se n t em p l enam en te

f e l i z po rque s empre é me lho r e o ún i c o luga r que l he pe r t ence . L á na

sua t e r r a t em os s eus i rmã os c om os mes mos cos tume s e a s m es mas

t r ad i ções . M esm o aque l e s cabo -ve rd i anos que nas cem no e s t r ange i ro e

que à s veze s ne m f a l am a l i nguage m ma t e rna dos s eus pa i s , um d i a

vo l t a m pa ra conhece r a s r a í ze s dos s eus pa i s ou pa ra m a ta r s auda des e

pa r t i r de novo pa ra o s s eus pa í s e s .

O poe ma ‘D ia n t e de m ar de S anv i cen te ’ ( ve j a a nexo IX ) ca r ac t e r i za o

d r ama da cham ada do m ar e o pa r t i r pa r a t e r r a s l ong í nguas , o g r ande

p rob lem a do em ig ran t e cabo -ve rd i ano . Rep re sen t a , po r t a n to , o pa r adoxo

de t e r que pa r t i r , apena s pa r a de f ende r - s e da fome , m as que re r f i c a r na

sua t e r r a com toda s a s c onsequê nc i a s de pa ss a r f om e e v ive r se mpre na

mi s é r i a e na i nce r t eza . O ape go à t e r r a e a von ta de de s a i r de l a s ão

exp l í c i t a s . Ve j a a s egu i n t e f r a s e :

‘Co i t a dos da que l e s

que não qu i se r am ouv i r , m a r , e f o r a m

pa ra t e r r a l onge ’ .

O poe ma , ‘P a d i an t e é qu ’ê cam im’ (ve jo ane xo VI I I ) r e f e r e aos cabo -

ve rd i a nos que pa r t em pa ra o e s t r a nge i ro na busca duma v i da me l ho r . O

poe t a c r i t i c a e s s e s emi g ran t e s . I s t o é i l u s t r ado pe l a s egu i n t e f r a s e :

‘Eu não s ou daque l e s

que anda m a r im ar am or com f l o r ’ .

A a t i t ude do poe t a é não s a i r da t e r r a -mãe , po r m a i s que s e s o f r a , e

en f r en t a r o fu tu ro , po rque nou t r a s t e r r a s s e s o f r e de pouc o so l e se

se n t e o pã o amarga r na boca de sa udades :

S e é pa r a i r v ive r v i da de ga l inha c hoca

em t e r r a s aonde o s o l

vê -mo- l o só a os boc ad inhos ,

se é pa r a i r s e n t i r o pã o amarga r -me na boca ,

Page 92: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

na t e r r a dos << mand i ngas >> e dos < < l and ins > > .

An t e s f i c a r po r cá a goz a r de s t e m ar ,

E des t e ceu

Nã o , compa dre , não vou na t r oca ! .

Conc lu i ndo , pode - s e cons t a t a r ao l e r e s t e s poem as que o cabo -ve rd i ano

é s en t i men t a l e a ven tu re i ro ao me sm o t em po . Não t em m edo de

en f r en t a r o mundo , m as nã o l a rga a s s uas r a í ze s na tu r a i s e s en t e

sa udades . S empre é apegado à sua i l ha , à sua t e r r a , à s t r ad i ç ões em que

fo i c r i ado , i s t o é que l he dá fo r ça . O s poe mas i l u s t r am um dos g r ande s

t em as de Cabo V erde , a emig ra ção e a sa udade de s ua t e r r a que f a zem

pa r t e da i de n t ida de do povo cabo -ve rd i ano . A iden t idade do cabo -

ve rd i a no é t am b ém fo r t em en te i l u s t r ada pe lo f a c to dos poema s s e r em

es c r i t o s e m c r iou l o e i s t o j á nos anos 50 do séc u lo pas s ado .

Os poem as de F ruson i , a s s i m como ou t ro s t e s t em unhos do c r iou lo na

cu l t u r a cabo -ve rd i ana , pode r i am e deve r i am s e r ana l i s ados ma i s a

f undo . P o rém, no âm b i to de s t a t e s e l im i to -me a mos t r a r a r i quez a de

poema s e m c r iou l o cabo -ve rd i ano , i l u s t r ando que o c r iou lo é a dequado

t am bé m pa ra a l i t e r a t u r a e s c r i t a .

5 .4 Con c l u são d a an á l i s e d o cor pu s l in gu í s t i co

O c r iou lo c abo -ve rd i a no é s en t i do pe lo s i n fo rma n te s e pe l o poe t a

F ruson i como um e l em en to fundam en ta l da cu l tu r a c abo -ve rd i a na .

Todos o f a l a m e ac tua l men t e com m enos compl exos do que na época

co lon i a l , qua ndo t am bé m ca bo -ve rd i anos ma rg ina l i zava m a s ua l í ngua

ma t e rna a f a vo r do po r tuguês . N ão hav ia poss ib i l i da de do ens ino do

c r iou l o como l í ngua de c u l tu r a . A l i á s , o po r tuguês con t inua a se r a

l í ngua da e s co l a , mas o s cabo -ve rd i anos se mpre f a l am a sua l í ngua

ma t e rna e s ó exp re ss am -se e m po r tuguê s qua ndo é nece ss á r io .

Page 93: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

No c ap í t u lo qua t ro j á v imos que o e ns i no da l í ngua ma t e rna , com o

in s t rume n to de a l f abe t i za ção , não d i f i cu l t a r á a ap rend iz agem da l í ngua

o f i c i a l po r t ugues a mas deve rá , pe lo c on t r á r i o a juda r na ap rend iz agem

do po r tuguês . P a r a a l ém d i s s o , o c r i ou lo con t inua com o me i o de

comun i caçã o o r a l p r e v i l i l eg i a do e é , po r i s s o , um i n s t rumen to de

comun i caçã o popu la r . F a l t a - l he apena s a e s t anda rd i zaçã o a t r avé s da

e s c r i t a , que é a bso l u t am en te ne ces sá r i a no e ns i no . Há po ré m uma

d i f i c u ldade que se t e r á de u l t r a pas sa r . Não e x i s t e um só c r iou lo em

Cabo V erde , ape sa r de t odos o s cabo -ve rd i anos en t ende rem as d i f e r en t e s

va r i e dades se m as pode rem f a l a r bem. D eve - s e , po r i s s o , pens a r bem na

me l ho r mane i r a de e s t anda rd i z ação da l í ngua c r iou l a cabo -ve rd i ana .

Page 94: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

6 . Con c l u são

Ne s t e cap í tu lo e ncon t r a - se um a s ín t e se dos ca p í tu l o s 1 a t é 5 e a s

conc l u sõe s (6 .1 ) . A lém d i s so , a p re s en to l im i t açõe s da pesqu i sa f e i t a

pa r a e s t a t e s e e suges tõe s pa r a pe s qu i s a fu tu r a (6 .2 ) .

6 .1 S ín te s e e con c l us ões d a pe sq u i s a

Es ta t e s e ana l i s a a r e l ação en t r e o u so do c r iou lo e o u s o do po r tuguê s

na s oc i e dade ca bo -ve rd i ana , pa r a ave r igua r s e e s t a r e l aç ão s e

ca r a c t e r i za po r d i g lo s s i a . A t r avés da aná l i s e de dados h i s t ó r i cos s ob re a

soc i eda de cabo -ve rd i ana , o c r iou lo e o po r tuguês , p rocu re i ana l i sa r o

t i po de r e l a ção que e x i s t e en t r e a s duas l í ngua s .

No p r i me i ro cap í tu lo dou um a b reve de sc r i ção de d i f e r en t e s a s pec to s de

Cabo V erde . F a ço uma d i s t i nçã o en t r e o pe r íodo co l on ia l a t é 1975 e o

pe r íodo de po i s de 1975 , ou s e j a , o pe r íodo depo i s da i ndependê nc i a .

Abordo t ambé m as ca r a c t e r í s t i c a s da s i l ha s e a s s un to s r e l ac ionados ao

des cob r im en to e a o povoame n to das i l ha s a s s im como o pape l da Ig r e j a

Ca tó l i ca e a s i t ua ção po l í t i c a ac t ua l , a emi g ração e ou t ro s e l em en tos da

cu l t u r a cabo -ve rd i ana .

O qua d ro t eó r i co da t e se é ap re s en t ado no s egundo cap í tu lo . E s t e

cap í tu lo t r a t a o s f enóm enos l i ngu í s t i co s de b i l i ngu i s mo (2 .1 ) e de

d ig lo s s i a ( 2 .2 ) . V á r i a s de f in i ções e a i nda ou t ro s a s pec t o s de s t e s

f enóme nos l i ngu í s t i co s são t r a t a dos e m 2 .3 . T ra t o t am bém a s ca usa s de

b i l i ngu i s mo e o s t i pos de b i l i ngu i s mo . N o pa rág ra fo 2 .1 .3 s ão

ap re s en t ados a s que s t ões e h ipó t e se s da aná l i se . Na minha a ná l i se s i go a

de f in i ção de A ppe l & M uyske n e de G ros j ean no que d i z r e s pe i to a

b i l i ngu i s mo , i s t o é , b i l í ngue é a pe ss oa que f az u s o de duas ou ma i s

l í ngua s na sua v ida d i á r i a . Q uan t o à d ig lo s s i a s igo a de f in i ção de

F e rguson , F i shm an e de S iguá n & M ackey , que d i z que , d i g lo s s i a é a

Page 95: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

s i t uaç ão em que duas va r i eda des d i f e r en t e s de uma l í ngua c oex i s t e m

num pa í s e onde uma da s dua s t em um es t a tu t o sóc io -po l í t i c o supe r i o r .

Em 2 .4 dou a s de f in i ções dos t e rmos l i ngu í s t i c o s com o usa dos ne s t a

t e s e . O cap í tu lo t e rmi na com a pe rgun ta ba s e da pes qu i s a , que é :

1 . Qua l é a r e l aç ão s oc io l i ngu í s t i c a en t r e o c r iou l o e o po r tuguê s na

soc i eda de cabo -ve rd i ana?

2 . Es t a r e l açã o ca r ac t e r i za - s e po r d ig l o ss i a ?

3 . Ex i s t e b i l i ngu i s mo em Cabo V erde e a t é que g r a u?

O m é todo de pes qu i s a se gue no t e r ce i ro c ap í t u lo . O qua r to ca p í tu l o

t r a t a e s tudos l i ngu í s t i co s s ob re a l í ngua ca bo -ve rd i a na , t r a t ando

a s pec t o s com o a s ua g énes e , o s eu e s t a tu to e a sua função com o l í ngua

ma t e rna na e sc o l a . E s t e cap í tu lo t e rmi na com a ques t ão do ens ino

b i l í ngue t a n to em Cabo Ve rde com o na d i á s po ra c abo -ve rd i a na .

A t r ans c r i ção do m a te r i a l s ono ro e t r ê s poemas sã o ana l i s adas em

r e l a ção ao c r iou lo c abo -ve rd i a no . Agora chego à conc lu s ão ge ra l de s t a

t e s e .

De po i s do des cob r im en to das i l ha s de s e r t a s de Ca bo Verde fo r am

l eva dos e sc r a vos de d ive r s a s r a ça s pa r a povoa r a s i l ha s . 0 s e sc r avos

neg ros t r az idos do con t ine n te a f r i cano e r am s epa ra dos de mane i r a que

não pudes s em com un ica r na s suas l í nguas . I s t o caus ou com que e tn i a s

d i f e r e n t e s c r i a s s em uma nova l í ngua a pa r t i r de d ive r s a s l í nguas , dando

o r igem ao nas c im en to do c r i ou lo ca bo -ve rd i ano . 0 c r iou l o cabo -

ve rd i a no nas ce do p roce ss o do con t ac to e n t r e e u ropeus e a f r i c anos e da

i n t e r acçã o das duas cu l tu r a s , a eu rope i a e a a f r i c ana . Po r t an to , o c r i ou lo

cabo -ve rd i ano , a s s im c omo ou t r a s l í nguas c r iou l a s , é a l í ngua dum povo

mes t i ço que n ão t e m e s c r i t a e s t a nda rd i za da . Ape sa r d i s so , o c r iou lo é

um dos e l e men t os fundam en ta i s da cu l t u r a dos cabo -ve rd i anos .

É im por t an t e d i z e r que , em bora a s ua fo rma ção s e j a pa r t i cu l a r

compa rada com a das l í nguas t r ad i c iona i s , o c r i ou lo é i gua lm en te um a

l í ngua . 0 t e rm o c r iou l o r e f e r e a penas à o r ige m des t e t i po de l í ngua ,

podendo- s e d i z e r que o c r i ou lo cabo -ve rd i ano é uma l í ngua que na sce u

de uma fo rma de e xp lo raç ão , o comé rc io de e sc r avos segu i do pe l a

co lon i zaçã o .

Page 96: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

P or e s t e mo t ivo o c r i ou lo é um me io de exp re s s ão e com un icaç ão s ob re

o qua l s em pre pes ou um es t i gma pe jo r a t i vo , se ndo - lhe da do o e s t a tu t o

de d ia l e c to , um t e rmo com uma cono t açã o pe jo r a t i va . A u t i l i z ação

sóc io -po l í t i c a dos do i s t e rmos , l í ngua e d ia l e c to , n a époc a co lon i a l

va lo r i zava , na r ea l i dade , a l í ngua do co lon iz ado r e m enosp re zava a

l í ngua do co lon i zado . No e n t an t o , do pon to de v i s t a l i ngu í s t i co e s s a

opos i ç ão l í ngua -d i a l ec to é t o t a lme n te i nc o r r ec t a .

Nos me ados do sé cu lo X IX fo i f undado a p r ime i r a e s co l a po r tugues a e m

Cabo V erde . O po r tuguês fo i i n t roduz i do no ens ino como l í ngua

exc l u s i va , s endo uma da s m ane i r a s m a i s e f i c i en t e s de ga r an t i r a

domina ção co l on ia l . Dura n te m a i s de um s éc u lo , o po r tuguês fo i

en s inado c om exc l u sã o to t a l do c r iou l o . A e sc o l a e r a a s s i m des t i nada a

ve i c u l a r un i came n te a c u l tu r a po r tugues a e a i n t roduz i r a l í ngua

po r tugues a , t r a zendo c ons i go o des p rezo pe l a l í ngua loca l , pe l o c r iou lo .

A e sc o l a f az i a c r e r que ape nas o po r t uguês e r a um a ve rdade i r a l í ngua ,

po i s e r a a ún i ca l í ngua e sc r i t a e m Cabo V erde e po r t an t o a ún i ca l í ngua

capa z de t r a nsm i t i r “ cu l t u r a” . As s im , c om a l í ngua po r tugues a a s

c r i a nças cabo -ve rd i anas ap re nd iam um modo de pe nsa r que o s f a z i a

de s p reza r o s s eus p róp r io s va lo r e s ca bo -ve rd i a nos . P o rém , a l í ngua

cabo -ve rd i ana nã o neces s i t ou de se r e sc r i t a e t e r um a g ra f i a

e s t anda rd i zada pa r a s e a f i rmar , não a penas como l í ngua c apaz de

exp r im i r t odos o s se n t im en tos dos cabo -ve rd i anos mas a inda como m e io

de exp re ss ão l i t e r á r i a . A s d ive r s a s ob ra s l i t e r á r i a s de e s c r i t o r e s c abo -

ve rd i a nos , t an to em Cabo V erde com o na d i á spo ra , d ão p rovas d i s s o .

Em Ca bo Ve rde o s co lon iz ado re s f i z e r am o pos s íve l pa r a t e n t a r ,

cu l t u r a lm en te , de snuda r o s c abo -ve rd i a nos , s endo m u i t a s ma n i f e s t a ç ões

p ro ib ida s que e r am e s t r anhas à cu l tu r a po r t ugues a . P o rém, o s cabo -

ve rd i a nos soube ram m an te r a sua o r ig ina l idade , dando o r ige m a uma

r i ca cu l t u r a cabo -ve rd i ana . A s man i f e s t a ções cu l t u r a i s em Ca bo Ve rde ,

se j am e l a s r e l i g io s a s (po r exem plo o Ta banca ) ou m us i ca i s ( o ba tuque , a

morna ) , c on t inua ram a s e de senvo l ve r ao l ongo dos s écu l o s .

F ina lm en te cons t a tou - s e que a l í ngua é um dos f ac t o r e s e s se nc i a i s da

i den t idade de um povo e t a lve z a t é se j a o ma i s impor t an t e de en t r e e l e s .

O c r iou lo t ambé m é a e xp re s s ão ce n t r a l da i den t idade c u l tu r a l c abo -

Page 97: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

ve rd i a n , a como fo i i l u s t r a do a t r a vés dos poem as de F ruson i .

O ob j ec t ivo des t a pe squ i sa e r a ca r ac t e r i za r a r e l a ção s oc io l ingu í s t i c a

que ex i s t e en t r e o c r iou l o e o po r tuguês na s oc i edade c abo -ve rd i a na .

P odemos conc l u i r que a r e l a ção que s e e s t abe l e ceu en t r e o c r i ou lo e o

po r tuguês na s oc i e dade ca bo -ve rd i ana a inda não é t o t a lm en te uma de

b i l i ngu i s mo mas ma i s uma de d ig lo s s s i a . A d i g lo s ss i a não des apa re ceu

com a i ndependê nc i a de Cabo V erde . S empre coex i s t em duas l í ngua s , o

po r tuguês e o c r iou lo , em que o po r tuguê s t em o e s t a tu to de p r e s t í g i o , é

a l í ngua e s c r i t a e é u t i l i z ada nas fun ções o f i c i a i s , i s t o é , no e ns i no , na

l i t e r a t u r a e na ‘m as s -m ed ia ’ . A o pas s o que o c r i ou lo é uma l í ngua o r a l ,

que s e ap re s en t a ma i s como l í ngua do quo t i d i ano e pa r a a s s i t ua ç ões

menos r ep re sen t a t i va s , po r exempl o , na com un ica ção i n fo rma l e na s

r e l a ç ões í n t i mas . Em r e l aç ão ao po r tuguê s o c r iou lo ca bo -ve rd i a no

se mpre é cons ide rado como um a l í ngua in f e r i o r . Re fe r i ndo à de f in i ção

de d ig l o ss i a dada po r F e rgus on , F i s hman e S iguá n & M ackey no pon t o

2 .1 .2 , podemos cons ide ra r ne s t e c a so o po r t uguês como a va r i eda de ‘H ’

(= a l t a ) e o c r iou l o como a va r i eda de ‘L ’ (= ba i xa ) .

Qua l é o c on tex to de b i l i ngu i s mo em Cabo V erde? N ão s e pode f a l a r de

um con t ex to b i l í ngue em Cabo V erde . U ma s oc i edade s egundo S iguá n &

Ma ckey (ve j a 2 .1 ) s ó é b i l í ngue qua ndo , pa r a a l ém da l í ngua m a te rna ou

a p r im e i r a l í ngua , ne s t e ca s o o c r i ou lo ca bo -ve rd i ano , dom ina e m

qua lque r c i r cuns t â nc i a uma ou t r a l í ngua e a inda com a mes ma

compe tênc i a e e f i các i a que a p r ime i r a l í ngua . Es t a de f in i ção , com o

v imos , não é adequada no ca s o de Cabo V erde , po i s ne m todos o s cabo -

ve rd i a nos dom inam o c r iou lo e o po r tuguês da m esm a ma ne i r a . O u s e j a ,

nem t odas a s pe ss oas t ê m a ca pac i dade de u s a r a s duas l í nguas da

mes ma fo rma .

Vimos que o es t a t u to func i ona l e s oc i a l en t r e o po r tuguês e o c r iou lo

é de s igua l . O c r iou lo cabo -ve rd i ano , apes a r de s e r l í ngua na c iona l , não

poss u i e sc r i t a e s t anda rd i zada e não é u t i l i z ado no ens ino fo rm a l . O

po r tuguês , ao c on t r á r io , é a l í ngua o f i c i a l e a i nda po r c im a é m a té r i a de

ens ino . A lguns i n t e l ec t ua i s ca bo -ve rd i anos d i z em que não cons eguem

Page 98: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

u t i l i z a r o c r iou l o em de t e rmi nados dom ín ios de e mprego e e m a l gumas

s i t ua ções fo rma i s de comun ic a ção (ve j a a e n t r ev i s t a com i n fo rman t e G

no anexo V I I ) . Conc l u indo , o f enóme no de b i l i ngu i s mo que e x i s t e e m

Cabo V erde não a f ec t a a s oc i e dade ca bo -ve rd i ana t o t a l mas , é um

b i l i ngu i s mo e l i t á r io . Ne m todos o s cabo -ve rd i anos f a l a m o po r tuguês ,

embora o poss am compree nde r a t r a vés do c r iou l o cabo -ve rd i ano .

A s i t uaçã o soc io l i ngu í s t i c a na s oc i e dade ca bo -ve rd i ana só pode muda r

no d i a e m que a s duas l í nguas , a po r tugues a e a c r iou l a , ob t e r em o

mes mo p re s t í g i o . Es t a m udança , pode - se r ea l i za r s e um d i a fo r em

toma das a s i n i c i a t i va s neces s á r i a s pe l o gove rno ca bo -ve rd i ano pa ra

no rma l i za r e e s t anda rd i za r o a l f abe t o e a e sc r i t a do c r iou lo . A lé m d i s s o ,

um p rog ram a de ens ino c om o c r iou l o cabo -ve rd i ano ao l a do do

po r tuguês pode c on t r ibu i r t ambé m pa ra e s s a mudanç a . N ão f az sen t ido

que o c r i ou lo s empre c on t inue a t e r um es t a t u to de l í ngua domina da ,

quando que Ca bo Verde é , há m a i s de 30 anos , um pa í s i ndepende n te

( c f . V e iga 1982 : 17 ; L ima : 1992 : 28 ) .

A s i t uaçã o ma i s de s e j áve l pa r a a s oc i e dade ca bo -ve rd i a na pa r ec e que é

a de b i l i ngu i sm o ge ra l . A p róp r i a l í ngua , i s t o é , a l í ngua m a te rna é

e s se nc i a l pa r a a au to - cons c i ênc i a e a f o rm a ção da p róp r i a i de n t ida de ,

po rque é po r me i o de l a que a c r i ança f i c a a c onhece r a p róp r i a c u l tu r a e

a s sua s r a í ze s . N ão s e deve de sp re za r a o r i gem, a l í ngua ou a cu l tu r a do

cabo -ve rd i ano pa ra e v i t a r que a s pe s soas ca bo -ve rd i ana s s e s in t am

in f e r i o r e s a ou t r a s . Q uan to m e lho r fo r a ap rend iz agem da l í ngua

ma t e rna t an to me lho r a c r i a nça pode rá ap rende r um a ou t r a l í ngua . A

ap rend i zagem des sa ou t r a l í ngua , o po r tuguê s , t ambém é im por t an t e

po rque con t r ibu i r á pa r a o p roces so de des envo lv im en to e conómi co de

Cabo V erde num mundo cada vez ma i s g loba l i zado . P o r i s s o a

ap rend i zagem da l í ngua po r tugues a t em de s e r c on t inuada .

Page 99: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

6 .2 L imi taç ões da p re se nte pe sq u i s a e s uge s tõe s p ara p es q ui sa fu tu ra

P ara pode r - s e conc lu i r m a i s em de t a l he s ob re a s i t ua ção l i ngu í s t i c a do

c r iou l o cabo -ve rd i ano , s e r i a p r ec i s o f az e r uma pe squ i sa p ro funda da

l í ngua c r iou l a , o que n ão f i z no quad ro des t a t e s e . Ta l vez t e r i a s ido

t am bém m e lho r s e eu t i ve s s e r eco l h ido e a na l i s ado m a i s ma te r i a l e s c r i t o

po r cabo -ve rd i anos em Ca bo Ve rde e na d i á s po ra . Ou t r a l i m i t ação da

pes qu i s a fo i o f a c to de nã o t e r enc on t r ado m a i s dados sob re o s m é todos

de ens ino e m Cabo V erde ho j e em d i a .

Em pe squ i sa fu tu r a , t a lvez , f o ss e bom ass i s t i r a au l a s numa e s co l a

p r imá r i a e num l i ceu em Cabo V erde , pa r a obse rva r o que s e pa s sa na s

sa l a s de au l a em r e l aç ão ao u s o do c r iou l o e do po r tuguê s . S e r i a

i n t e r e s sa n t e obs e rva r o c ompor t am en to t an to dos p ro fe s s o re s c omo dos

a lunos , pa r a pode r ve r i f i c a r a s l i m i t açõe s que a l í ngua cabo -ve rd i ana

t r az se gundo o s i n fo rman te s ne s t a t e s a . N es t e quad ro se r i a t ambém

mui t o e luc ida t ivo f a l a r com m a i s pe s soa s , po r e xempl o nas r e pa r t i ções

do gove rno , pa r a ob t e r uma v i s ão ma i s comple t a . E u não f i z u s o de

ques t i oná r io s p r é - e s t abe l ec i dos e m toda s a s en t r ev i s t a s o que f ez o s

en t r e v i s t ados s en t i r e m-s e à von t ade , ma s no fu t u ro pode r - s e - i a da r ma i s

a t e nção à p r e pa raçã o de en t r e v i s t a s , com a f i na l idade de ob t e r m u i to

ma i s i n fo rmações .

A l ém d i s s o , em pes qu i s a fu tu r a é p r ec i s o ana l i s a r o s mé t odos de ens ino

u sa dos e m Cabo V erde pa r a o ens ino do po r tuguê s e , even tua lme n te , do

c r iou l o cabo -ve rd i ano .

Ou t r a s uges t ão pa r a pe s qu i s a fu tu r a é f aze r um es tudo s ob re a s i t uação

l i ngu í s t i c a en t r e cabo -ve rd i anos na d i á spo ra e t en t a r ave r i gua r qua l é a

impor t ânc i a que e s t e s c abo -ve rd i a nos a t r i buem à l í ngua cabo -ve rd i ana ,

à l í ngua dos se us pa i s e /ou dos se us a vós . H á de s e t e r em c on ta que

i s to pode s e r d i f e r en t e de ge r aç ão pa ra ge r ação .

Um dado cu r i o so da s en t r ev i s t a s f o i a menç ão po r d i f e r en t e s

i n fo rma n te s que ca bo -ve rd i a nos quando , s e z angam c om os f i l hos , f a l am

Page 100: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

em po r t uguês . Do pon t o de v i s t a s oc i o l ingu í s t i co é um dado bas t an t e

i n t e r e s sa n t e , j á que s e a s sum e en t r e l i ngu i s t a s e p s i có l ogos , q ue a s

pe s soa s qua ndo exp r ime m s uas emoçõe s , o f a zem de p r e f e r ênc i a na

l í ngua p r imá r i a ( c f . P av l enko 2002a ) . T ambém nes t a á r ea pode r i a ha ve r

ma i s pe squ i sa .

Page 101: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

B i b l i o g r a f i a

Andra de A la i n Ki hm, E . de (1992 ) Ac t as do Co l óqu io s obre “Cr iou l o s

de Bas e L ex i ca l por tugue sa” , L i s boa : Co l ib r i .

Appe l , R . & P . M uyske n (1987 ) L anguage Con tac t and B i l i ngu i s m ,

London : E dwa rd and A rno ld .

Bake r , C . ( 2006 ) Founda t i ons o f B i l i ngua l E duca t i on and B i l i ngua l i sm ,

LTD , U S A: Arche type IT .

Ba ta lha , L . ( 2004 ) T he Capeve rdean D ias por a in Por tuga l : Co lon ia l

sub j ec t s i n a pos t co lon i a l wor ld . Lanha m: L ex ing t on Books .

Bax te r , A . ( 1996 ) L ínguas P idg in s e C r i ou l a s . I n : I . H ub F a r i a , E .

R ibe i ro Pe d ro , I . Dua r t e & C .A.M . G ouve ia (o rg . ) In t r odução à

L ingu í s t i ca Ge ra l e Por tugue sa , Lis boa : Ed i t o r i a l Cami nho , 535 -550 .

Bha t i a , T . K & W . R i t ch i e (2004 ) T he Handbook o f B i l i ngua l i s m ,

Ma lden : B lackw e l l P ub l i s h ing .

Broek , H . van de (1998 ) M ul t i l i ngu i s mo , S oc ra t e s / Comen i us 2 : Ens ino

da l í ngua po r tugue sa como 2 a l í ngua , Se miná r io In t e rnac iona l em

Ro t t e rdam, CE D (pub l i caç ão in t e rna ) .

Bu t l e r , Y . G . & K . H aku ta (2004 ) Bi l i ngua l i sm and S econd L anguage

Ac qu i s i t i on . In : T . K . Bha t i a & W. R i t ch i e (o rg . ) T he Handbook o f

B i l i ngua l i sm , Ma lden : B lackw e l l P ub l i s h ing L TD , 114 -144 .

Ca r r e i r a , A . ( 1972 ) Cabo Ver de : F orm ação e E x t e nsão de uma

Soc i e dade Es cr avocr a ta (1460 – 1878 ) , Lis boa : U l me i ro .

Ca r r e i r a , A . ( 1982 ) T he peop le o f t he Cape Ver de I s lands : Ex p lo i t a t i on

and Em igr a t ion , London / Conne c t i cu t : C . Hur s t & Company and

Ha mden / Arc hon Books .

Ce r rone , F . ( 1996 ) Cabo Ver de : Cr uz ame n to do A t lân t i co Su l , Mi nde lo :

Rád io N ova .

Cim boa , A Jour na l L e t t e r s o f Ar t s and S tud i e s , (S p r ing 1999 ) , no 7 ,

yea r 3 , Bos ton , Ca peve rdea n Creo le In s t i t u t e .

C rys t a l , D . ( 1992 ) An Enc yc l oped ic D ic t i onar y o f l anguage and

languages , Oxfo rd : B lac kwe l l .

Da v ie s , A . ( 2003 ) T he Na t i v e Speake r , My th and Re a l i t y , C l eve don :

C romw el l P r e ss LT D.

Page 102: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

De lgado M ar t in s , M. R . ( 1988 ) Ouv i r f a la r : I n t r odução à f oné t i ca do

Por tuguês . Lis boa : Ed i t o r i a l Cami nho , SA .

Edw ards , J . V . ( 2004 ) F ounda t i ons o f B i l i nga l i s m. In : Bha t i a , T . K &

W. R i t ch i e (o rg . ) , T he Handbook o f B i l i ngua l i s m , Ma lden : B lackw e l l

P ub l i s h ing L TD , 7 -31 .

F e rguson , C . A . ( 1959 ) D ig lo s s i a . I n : Word 15 , 325 -340 .

F e r r e i r a , M. (1985 ) A Ave n tur a Cr i ou la no Cabo Ve rde . L i s boa : P l á t a no

Ed i t o r a .

F i s hman , J . A . ( 1965 ) W ho spe aks wha t l angua ge to w hom and w hen?

In : L ingu i s t i c s 2 , 67 -88 .

F ruson i , S . (1992 ) ‘Apre se n t açã o ’ , ‘Pa ra F ren t e É que É o Ca minho’ ,

‘Di an t e do Ma r de S an Vi cen t e ’ . I n : M . L i ma , A Poé t i c a de Sér g io

Fr uson i : Um a L e i t u ra A n t r opo lóg ic a , L i s boa : I n s t i t u t o de Cu l t u r a e

L íngua Po r t ugues a , 152 -155 , 204 -205 .

Gros j e an , F . ( 1982 ) L i f e w i th two l anguages : An in t roduc t ion t o

b i l i ngu i s m, Cambr i dges e t c . : Ha rva rd U n ive r s i t y P re ss .

Gros j e an , F . ( 2004 ) S t udy ing B i l i ngua l s : Me thodo log i ca l a nd

Concep t ua l I s s ues . I n : T he Handbook o f B i l i ngua l i s m , Ma lden :

B lac kwe l l P ub l i sh i ng LTD , 32 -63 .

He ye , J . ( 1979 ) B i l i ngu i s m and l anguage m a in t enance in tw o

comm un i t i e s i n S an ta Ca ta r i na , B raz i l . I n : W .C . Mc Cormack & S .A.

Wurm ( e ds . ) , L anguage and soc i e t y : An t ropo l og ica l i s s ues , The

Ha gue e t c . : M ou ton , 401 -425 .

Ho l m, J . ( 1988 ) Pidg i ns and Cr eo l e s : The ory and s t ruc t u re ( vo l 1 ) ,

Cambr i dge : Ca mbr idge U n ive r s i t y P re s s .

Ho l m, J . ( 2000 ) An in t roduc t ion t o p idg in s and c r eo l e s , Cambr i dge :

Un i ve r s i t y P re s s .

Hub F a r i a , I . , E . R i be i ro P ed ro , I . D ua r t e & C .A .M. G ouve i a (o rg . )

( 1996 ) In t r odução à L ingu í s t i ca G er a l Por tugue sa , L i s boa : Ed i t o r i a l

Cami nho .

Hym es , A . D e l l ( 1971 ) Pidg i n i z a t ion and Cr eo l i z a t ion o f t he l anguages ,

Cambr i dge : Ca mbr idge U n ive r s i t y P re s s .

L im a , M . (1992 ) A Poé t i c a de Sér g io Fr us on i : U ma L e i tu r a

An t r opo lóg i ca , L i s boa : I n s t i t u t o de Cu l t u r a e L í ngua P o r tugues a .

Page 103: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

Lyon , J . ( 1996 ) Bec omi ng B i l i ngua l : L anguage ac qu i s i t i on i n a

b i l i ngua l com m un i t y , Br i t a in : C rom we l l P r e s s .

Ma r i ano , G . ( 1991 ) Cul tu r a Cabove rd i ana , Ens a io s pa lavr a A f r i cana ,

L i s boa : Ga b ine t e de Ed i ção .

Ma teus , M . H . ( 1990 ) Di c ionár io de t e r m os l i ngu í s t i co s , Lis boa :

Cosm os .

Me i s e l , J . M . (2004 ) The b i l i ngua l ch i l d . In : T . K . Bha t i a & W. R i t ch i e

(o rg . ) T he Handbook o f B i l i ngua l i s m , Ma lden : B lackw e l l P ub l i s h ing

LTD , 91 -113 .

Mot a , M . A . ( 1996 ) L ínguas em con tac to . I n : I . H ub F a r i a , E . R ibe i ro

P ed ro , I . Dua r t e & C .A.M . G ouve ia (o rg . ) In t r odução à L ingu í s t i ca

Ge ra l e Por tugue sa , Lis boa : Ed i t o r i a l Cami nho , 505 -534 .

Mufw ene , S . (2004 ) Mul t i l i ngua l i s m in L ingu i s t i c H i s to ry : C re o l i za t i on

and Ind ige n iza t ion . In : T. K . Bha t i a & W . R i t ch i e (o rg . ) T he

Handbook o f B i l i ngua l i s m , Ma lden : B lackw e l l P ub l i s h ing L TD , 460 -

483 .

Mye r s -S co t ton , C . ( 2006 ) Mul t i p l e V o ice s : A n in t r oduc t i on to

b i l i ngua l i s m , Ma lden : B lackw e l l pub l i sh i ng .

Na ra in G . & V erhoeve n , L . ( 1994 ) Ont w ikk e l i ng van twee ta l i ghe id b i j

a l l oc h tone k l eu t e r s , Ti l bu rg : U n ive r s i t y P re ss .

Na ro , A . ( 1978 ) A S tudy on the Or i g in s o f P i dg in i z a t i on . In : L anguage

54 , 314-347 .

P av lenko , A . ( 2002 ) B i l i ngua l i s m and em o t ions . I n : Mul t i l i ngua , 21 ,

45 -78 .

P e re i r a , D . ( 1996 ) O c r i ou lo de Cabo V erde . I n : I . H ub Fa r i a , E . R i be i ro

P ed ro , I . Dua r t e & C .A.M . G ouve ia (o rg . ) In t r odução à L ingu í s t i ca

Ge ra l e Por tugue sa , Lis boa : Ed i t o r i a l Cami nho , 551 -560 .

Roma i ne , S . ( 1995 ) Bi l ingua l i sm , Ox fo rd : B lac kwe l l P ub l i she r s .

Roma i ne , S . ( 2004 ) The B i l i ngua l and M ul t i l i ngua l Comm uni ty . In : T .

K . Bha t i a & W. R i t ch i e (o rg . ) T he Handbook o f B i l i ngua l i s m ,

Ma lden : B lackw e l l P ub l i s h ing L TD , 385 -403 .

Romano , L . ( 1991 ) I l ha : Con tos L us over d ianos De Te má t i ca E urop

Á f r i c a + Br as i lam ér i ca , Mi nde lo : Lu í s Roma no e I l héu E d i to r a .

Page 104: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

S iguán , M . & W. F . M acke y (1986 ) Educac ion y B i l i ngu i s mo , Ma dr id :

S an t i l l ana .

S i l va , Ba l t a sa r Lopes da (1984a ) Chiqu inho , L inda -a -ve l ha : Ed i to r

Áf r i ca .

S i lva , Ba l t a sa r Lopes da (1984b) O D ia l ec t o de Cabo Ver de , L i s boa :

Imprens a N ac i ona l da Moe da (o r ig ina l 1957 ) .

S i lve i r a , O . ( 1991 ) A T or tu r a em Nom e do P ar t ido U n ico : O PA ICV e a

sua P o l í c ia Po l í t i ca , Mi nde lo : Te r r a Nova e Pon t o & V í rgu la .

Ve iga , M . (1982 ) Di sk r i son E s t ru t u ra l d i l i ngua Kabover d ianu , L i s boa :

I n s t i t u t o Cabo -ve rd i ano do L i v ro / P l á t ano Ed i t o r a .

Ve iga , M . (1995 ) O Cr iou l o de Cabo Ve rde : In t r odução à Gr am át i c a ,

Lis boa : I n s t i t u t o Cabo -ve rd i ano do L iv ro / P l á t a no Ed i t o r a .

Ve iga , M . (1999 ) L anguage po l i c y i n Cape Ver de : A p r opos a l f o r t he

a f f i rm a t i on o f k r io l u . In : Cim boa , A Jour na l L e t t e r s o f Ar t s and

S tud i e s , no 7 , yea r 3 : Bos t on , Capeve rde an Creo le In s t i t u t e .

We i n re i ch , U . ( 1953 ) L anguages i n Con tac t , Co lumbi a : U n ive r s i t y

pub l i c a t i ons o f t he l i ngu i s t i c s C i r c l e o f N ew Y ork .

D i c i o n á r i o s

D i c i o n á r i o d a l í n g u a p o r t u g u e s a ( 1 9 9 6 ) , 6 a e d i ç ã o , P o r t o : P o r t o E d i t o r a .

Van D a le , G r oo t woor denboek de r Ne der lands e T aa l , ( 1999 ) , G . G ee r t s

& T . de n Boon Ut r ech t /A n tw erpen : V an D a l e Lex i cog ra f i e .

A u r é l i o : N o v o D i c i o n á r i o d a L í n g u a P o r t u g u e s a ( 1 9 8 6 ) , A . F e r r e i r a B u a r q u e

d e H o l a n d a 2 a e d i ç ã o , 1 7 a , R i o d e J a n e i r o : E d i t o r a N o v a F r o n t e i r a .

O u t r a s f o n t e s :

- CD ‘ T abanca ’ do g rupo mus i ca l O s T uba rões com a mús i ca ‘M anú’ ,

c an t ado po r I l do L obo .

- CD ‘ Por tão de nós i l has ’ do g rupo mus i ca l O s T uba rões com a

mús i ca ‘ Por tão de nós i l has ’ , c an t ado po r I l do L obo .

Page 105: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

- CD ‘ L a d i va com l e s p i eds nus ’ de Ces á r i a Evo ra c om a m ús i ca ‘ T raz

D’H or i z on te ’ .

- www.volkskrantblog.nl/bericht , cons u l t a do em 28/9/2008

Page 106: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

ANEXOS

Page 107: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

An exo I : I n for man te s

In fo rman t e A

S exo : f em in ino .

Idade : 15 anos .

P ro f i s são : a luna do l i c eu Jo rge Ba rbos a , M inde lo , S ão V ic en te / Cabo

Ve rde .

In fo rman t e B

S exo : ma sc u l ino .

Idade : 40 anos .

P ro f i s são : f unc ioná r io da r ád i o RF C FM , M inde l o , Sã o Vi cen te / Cabo

Ve rde .

In fo rman t e C

S exo : ma sc u l ino .

Idade : 35 anos .

P ro f i s são : p ro f e s so r no l i c e u Jo rge Ba rbosa , Mi nde lo , S ão V ice n te /

Cabo V erde .

In fo rman t e D

S exo : F emi n ino .

Idade : 15 anos

P ro f i s são : a luna do l i c eu Jo rge Ba rbos a , M inde lo , S ão V ic en te / Cabo

Ve rde .

In fo rman t e E

S exo : F emi n ino .

Idade : 15 anos .

P ro f i s são : a luna do l i c eu Jo rge Ba rbos a , M inde lo , S ão V ic en te / Cabo

Ve rde .

Page 108: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

In fo rman t e F

S exo : F emi n ino .

Idade : 17 anos .

P ro f i s são : a luna do l i c eu Jo rge Ba rbos a , M inde lo , S ão V ic en te / Cabo

Ve rde .

In fo rman t e G

S exo : ma sc u l ino .

Idade : 51 anos .

P ro f i s são : emba ixado r de Ca bo Ve rde em H a i a / H o la nda .

Page 109: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

An exo I I : Q u es t ion ár io qu e s e rv iu para a e n t re v i s ta c om o emba i xador de Cabo Ver de em H a ia .

1. Nom e

2. Idade

3. Luga r de nas c ime n to

4. Es tado c iv i l

5. Qua l é a sua p ro f i s s ão?

6. Os s eus pa i s a i nda e s t ão v i vos?

7. Tem f i l hos ?

8. Qua l é a i dade dos s eus f i l hos ?

9. Onde é que e s tudou?

10. Qua i s da s se gu in t e s l í nguas , po r tuguês , c r i ou lo , i ng l ê s e f r ancês ,

é que o s enho r f a l a?

11. Qua l é a l í ngua que f a l a com o s eu f i l ho?

12. Qua l é a l í ngua que f a l a com a s ua m u lhe r?

13. Qua l é a l í ngua que f a l a no seu t r aba l ho?

14. Qua l é a l í ngua que f a l a em Cabo-V erde com os se us pa r en t e s ?

15. Qua l é a l í ngua que f a l a com o mi n i s t ro?

16. Qua l é a l í ngua que f a l a com os se us a migos ?

17. Qua l é a l í ngua que f a l a no in t e rva lo de um r eun ião do gove rno?

18. Em qua i s da s se gu in t e s l í nguas , po r tuguês , c r i ou lo , i ng l ê s e

f r ancê s , é que o se nho r e s c r eve c om os seus pa r e n t e s ?

19. Qua l é a l í ngua que f a l a na s o rga n iza ções o f i c i a i s em Ca bo Ve rde?

20. Qua l da s s egu in t e s l í nguas , po r tuguê s , c r iou lo , i ng l ê s ou f r ancê s ,

é que o s enho r f a l a com o min i s t ro quando em s e rv i ço?

21. Qua l é a l í ngua que f a l a du ran t e um j an t a r ou num ba r? P o rquê?

22. Conhece a lguém em Ca bo-Verde que f a l e po r tuguês com os f i l hos ?

P o rquê? S e rá c onsequê nc i a do pass ado c o lon ia l i s t a?

- Em que s i t uaç ões é que o s cabo -ve rd i anos f a l am po r tuguês ? E

c r iou l o?

24 .Qua ndo vo l t a r pa r a Cabo V erde , qua l é a l í ngua que va i f a l a r com os

se us f i l hos ? P o rquê?

Page 110: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

25 .Qua l é a pe r cen t agem de ana l f abe to s , ne s t e momen t o , em Ca bo

Ve rde?

26 .E logo de po i s da i nde pendênc i a em 1975?

Page 111: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

An exo I I I : en t r ev i s t a com o i n for man te A

Ent r ev i s ta com o in f o rm an te A .

In fo rman t e A , Ma r i a , t e m qu inz e anos de i da de e é e s t udan te no e ns i no

se cundá r i o , a luna do l i c e u Jo rge Ba rbosa na i l ha de S . V i cen t e em Ca bo

Ve rde .

Obs er vaç ão : a en t r ev i s t a f o i f e i t a no pá t io do l i c eu , e de co r r eu em

c r iou l o .

1 . I : Qua l é a e sc o l a que f r equen ta s?

2 . A: A e sc o l a S ecundá r i a J o rge Ba rbos a

3 . I : P o rque e s co lhe s t e e s t a e sco l a?

4 . A: Ac tua l men t e ex i s t e m, ne s t a z ona , qua t ro e sc o l a s , ma s

quando me ma t r i cu l e i s ó ex i s t i a e s t a . N ão t i ve ou t r a

e s co lha .

5 . I : Qua n tos i rmã os t ens ?

6 . A: Tenho c inco i rmãos .

7 . I : Qua i s sã o a s i dades de l e s ?

8 . A: 28 , 22 , 21 e eu t enho qu inze . Tenho um i rmã o que t em

t r ez e e um i rmão que t em onze .

9 . I : E a t ua mã e? D iz a lgo s ob re a t ua f amí l i a .

10. A: A m inha m ãe . E u c r e s c i c om a mi nha mã e e com a

minha avó . S ó que a m inha mã e t r a ba lha . E u f i co e m

cas a com a mi nha avó e c om os meus i rm ãos . A nos s a

mãe é que nos su s t e n t a , po rque o meu pa i quas e que

ma t ava a nos s a mã e com um a f ac a , mas e s t a f a lhou e

só l he f e r i u o b r aço d i r e i t o . P o r e s t a r azão , v i vemos

com a mãe . E l a t r aba l ha , mas e s t e ve a lgum t em po

pa rada dev ido ao i nc ide n te . E l a não pod i a f aze r

e s fo r ços , só c onsegu i a s egu ra r co i sa s l eves , po rque

co i s a s pe s adas ca usava m- lhe do re s .

11 . I : E a t ua avó , quan t o s a nos é que e l a t em ?

12 . A: Oi t en t a e nove .

Page 112: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

13 . I : O i t en t a e nove? E la j á e s t á um boca do ve lha , a h !

E a m emór i a de l a a inda e s t á boa?

14 . A: S im. E la a i nda cons egue c oz inha r . E l a que r que

nós f a çam os t r aba lhos domé s t i cos , mas há a lguma s

t a r e f a s que e l a não gos t a que f a çamos . E s e nós não

lhe de ixa rm os f az e r e l a f i c a cha t e ada . O méd i co d i s s e

pa r a l he de ixa rmos t r aba lha r enqua n to e l a pode . En t ão ,

e l a l ava a roupa , l a va roupa à m ão , e l a coz i nha . E l a

f az de t udo um pouco .

15 . I : Ouve , a inda t ens con ta c to com o t eu pa i ?

16 . A: Nã o . Já e s t i ve na ca s a de l e , ma s e l e t e m ou t r a

mu lhe r . Ma s t ambém , se nós t i ve rm os f a l t a de a lgum a

co i s a , pe d imos mas e l e não nos dá , po rque , pa r a a l é m

de mi m e o s me us i rmãos , e l e a inda t em qua t ro f i l hos .

E des de que e l e e a mi nha mãe se sepa ra r am , e l e nunc a

ma i s nos v i s i t ou . Que m t r a ba lha pa r a nos su s t en t a r é a

noss a m ãe e t emos uma i rmã que t am bém nos a j uda .

17 . I : E t u , o que é que pens as do t e u pa i ? N ão t e

se n t e s i n f e l i z ?

18 . A: Ex i s t e m f i l hos que não cons eguem v ive r s ó com

o pa i ou s ó com a mãe , e l e s t êm de v i ve r com ambos .

Ma s nós não pode mos , po rque não que re mos que e l e

ma t e a nos s a mãe . De s t a fo rma é p r e f e r íve l de i xa r a s

co i s a s t a l como e s t ão .

19 . I : E pens as que você s s ão o s ún i c os ne s t a s i t uaç ão?

20 . A: Nã o . Tenho a ce r t e za que e x i s t em pess oas na

mes ma s i t uaçã o ou a inda p io r . Há pes soa s s em pa i ou

mãe .

21 . I : Nã o pas sa s t e de ano ; po rquê?

22 . A: Chumbe i po rque t i nha t r ez e f a l t a s a po r tuguê s e

quando u l t r apas s a s um ce r t o número de f a l t a s num a

d i s c ip l i na , f i c a s r ep rovado . E se chumbarm os dua s

veze s s egu ida s no e ns i no se cundá r io , nã o podemos

con t i nua r a e s tuda r . Pode s c on t inua r a e s tuda r no

Page 113: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

ens ino pa r t i cu l a r se pude re s paga r de zo i t o con to s po r

ano , c e r ca de t r ê s con to s e qu inhe n tos po r mês .

Aque le s que não pode m, vão t r aba lha r ou f i c a m em

cas a a c u ida r dos s eus i rmãos .

23 . I : O gove rno não a j uda?

24 . A: Nã o . Nós é que compram os t udo o que

p r ec i sa mos : cade rnos , m a la , t udo . E l e s nã o nos dã o

nada .

25 . I : Ne m às c r i anças s em pos s ib i l i dades ec onómica s?

26 . A: Tam bém nã o .

27 . I : E a t ua mã e cons egue? N ão é e l a a ún i ca que

t r aba lha? E la c onse gue paga r - t e a t ua e s co l a? E o s t eu s

i rmã os?

28 . A: A m inha m ãe não c onse gue paga r a minha e sc o l a .

Às vez es p r ec i s o de a lguma c o i s a e peç o - lhe , m as e l a

não t e m d inhe i ro . Eu p r e f i ro que e l a dê aos me us

i rmã os do que a mi m, po rque o s meus i rm ãos f i c am a

cho ra r e à s ve zes o s p ro fe ss o re s o s de i t am fo ra da s

au l a s po rque não t êm d inhe i ro pa r a paga r na can t ina ou

pa ra c ompra r ca de rnos . Nem se mpre t enho todo o

ma t e r i a l que é ne ces sá r io pa r a a s a u l a s . M u i t a s vez es ,

o s p ro fe ss o re s põe -m e na rua po rque não t enho t odo o

ma t e r i a l nece ss á r i o . Po r e xemplo pa ra a d i sc i p l i na

a r t í s t i c a , o s p ro fe s s o re s não ace i t a m b loc os peque nos .

Que m t i ve r b loc os peque nos t em f a l t a de ma t e r i a l ,

quem nã o t i ve r bo r r acha t ambém t em f a l t a de ma te r i a l .

Con fo rme o m a te r i a l , a f a l t a pode i r a t é f a l t a de

p r e s ença .

29 . I : Ma s s e o s pa i s não pode m com pra r e s se s

ma t e r i a i s , não ex i s t e compree nsã o pa ra e s t a s i t uaçã o?

30 . A: Ra ram en te e l e s com preendem . Os p ro fe s s o re s

d i ze m que s e um pa i co l oca o s eu f i l ho na e s co l a , é

po rque e l e cons egue c ompra r t odo o m a te r i a l

nece ss á r io .

Page 114: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

31 . I : É a s s im que e l e s pens am ? E quando o s t e u s

i rmã os m a i s novos fo r em pa ra a e s co l a se cundá r i a , a

t ua m ãe a i nda va i cons egu i r s u s t en t á - lo s ? E s e você s

t odos fo r em pa ra o l i c eu?

32 . A: I s s o depe nde . S e o s meus i rmã os fo r e m pa ra o

l i c eu , eu de i xo de e s tuda r . Um de nós t em que f i c a r e m

cas a . N es t e m omen t o som os t r ê s a e s tuda r . A nos sa

mãe dá -nos t udo o que p r ec i s amos : com ida , r oupa ,

sa pa to s .

33 . I : Es tudam os t eus do i s i rmã os? T ambé m es t ão a

e s tuda r no l i c eu?

34 . A: E le s f r e quen tam a e s co l a p r imá r i a , m as a

d i f e r e nça não é mu i t o g r ande . E l e s e s t ão na e sc o l a

p r imá r i a , é quase i gua l a e s co l a se cundá r i a .

35 . I : Qua l é a l í ngua que f a l a s na e sc o l a?

36 . A: P o r tuguês .

37 . I : Na e s co l a p r i már i a t a mbém fa l am po r tuguês ?

38 . A: F a l am só po r t uguês . Os mi údos da p r ime i r a

c l a s s e f a l am c r iou lo , po rque a inda nã o sa bem f a l a r

po r tuguês , ma s de po i s ap rendem e cons eguem fa l a r

bem o po r t uguês .

39 . I : Qua l é a l í ngua que f a l a m em c as a , an t e s de i r em

pa ra a e sc o l a?

40 . A: C r iou lo

41 . I : C r iou lo? E com os pa i s que , po r exem plo ,

t i r a r am um cu r s o?

42 . A: C r iou lo . N orma lme n te s ó f a l a mos c r iou l o .

43 . I : OK . O br igado .

44 . I : Tens uma i rmã na Ho l anda , nã o é?

45 . A: S im

46 . I : Onde é que e l a mora ?

47 . A: E la mora e m A ms te rdão .

48 . I : Como é que e l a s e c hama?

49 . A: O nom e de l a é C r i s ó l i t a .

Page 115: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

50 . I : En tã o t ens uma i rmã que se chama Cr i s ó l i t a . E

e l a env ia a lgum d i nhe i ro?

51 . A: S im, no rm a lme n te e l a env i a . E l a hab i t ua lm en te

a juda a mi nha mãe . Nos ú l t imos t e mpos e l a nã o t em

a juda do , po rque e l a ago ra t em um f i l ho . E l a t r a ba lha ,

mas não c onsegue a juda r sem pre a m inha m ãe .

52 . I : E a t ua i rm ã t em po r háb i t o e s c r eve r -vos ?

53 . A: Ne m s empre . Às veze s e l a t e l e fona , po rque não

t em mu i t o t em po .

54 . I : E an t igam en te , e m que l í ngua é que e l a e sc r ev i a

à t ua mãe?

55 . A: Em po r t uguês .

56 . I : Em po r t uguês ? P o rque é que e l a nã o e sc r ev i a em

c r iou l o?

57 . A: P o rque é d i f í c i l e s c r eve r e m c r iou l o .

Conse gu imos e s c r eve r um boca d inho , mas não t odas a s

pa l a v ra s , po rque a lgum as sã o compl i cada s . As s im

e s c r evem os e m po r tuguê s .

58 . I : En tã o se t i ve r e s um namora do , e s c r eves em po r tuguês ?

59 . A: Tem que s e r em po r t uguês .

Page 116: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

An exo IV: En t rev i s ta com o in form ant e B

In fo rman t e B é o s enho r F ons eca S oa re s , em pregado na r ád io RF C F M,

Mi nde lo e m S ão V icen t e /Ca bo Ve rde .

Obs er vaç ão : a e n t r ev i s t a deco r r e u em c r i ou lo e fo i f e i t a se m us o de

nenhum t ipo de que s t i oná r io . F o i em g rande pa r t e um a conve r sa l i v r e .

No m omen t o em que o senho r fo i en t r e v i s t ado e l e e s t a va numa e mis s ão

de r ád i o .

1 . B : Na r ád io e m Cabo V erde , t r aba lhe i com duas l í nguas

com p re dominâ nc i a do po r t uguês . O po r t uguês … é uma

he ranç a e um há b i to que j á ex i s t i a a n t e s da

i ndepe ndênc i a . Ma s a s pe s s oas f a l a m cada vez ma i s o

c r iou l o . Fa zem os en t r ev i s t a s e m c r iou l o , f a l a mos com

as pe s soa s em c r iou l o , mas quem qu i s e r pode f a l a r

po r tuguês . I s so t em a ve r com o f a c to , de que a

ma i o r i a da s pe s s oas pe r cebe po r tuguês . M as cada ve z

ma i s s e ouve o c r iou lo na an t e na . E s empre fo i um

bocado m is tu r ado . O en t r e v i s t ado r f a l a po r tuguê s , m as

o en t r e v i s t ado r e s ponde e m c r i ou lo . P o r t an t o , s ão dua s

l í ngua s . A ma io r pa r t e da s vezes a s pe s s oas nem

r epa ra m, quando muda m de um a l í ngua pa ra a ou t r a

quando e s t ã o no a r . Me sm o numa c oméd ia em

po r tuguês , num m omen t o e s t á s em c r iou lo e de r epen t e

f a l a s e m po r tuguês . S ão duas l í ngua s l ado a l a do .

2 . B : A t endênc i a é de f ac to da l í ngua c r iou l a come ça r a s e r da da

ma i s va lo r e j á come ça ram a f aze r g r amá t i ca do

c r iou l o e j á pensa r am e m come ça ram a e s tuda r o

c r iou l o na e s co l a . Ex i s t e m a l guns p rog ram as que s ão

mes mo s ó em c r iou l o .

3 . I : Que p rog rama ? Dê -me um exempl o de um p rog ra ma s ó em

c r iou l o .

Page 117: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

4 . B : Ex i s t e o no t i c i á r i o em c r i ou lo , o TO P Cr iou lo , que é um

p rog rama sob re o suce ss o da m ús i ca da nos s a t e r r a .

Vo t a s pe l a mús i ca que gos t a s ma i s . N ão s e i s e t udo é

em c r iou lo , m as mu i t a s e n t r ev i s t a s e r epo r t a gens são

em c r iou lo .

5 . I : O que é que o S enho r pens a? Se o s p rog ra mas pas sa r em a s e r

só e m c r i ou lo , have rá p rob lem a? Ac ha que a s pe s s oas

i r ão ouv i r menos r ád i o?

6 . B : Eu ac ho que s e r i a m a i s um p rob l ema pa ra o s emprega dos da

r ád io , que e s t ão hab i tuados a f a l a r po r tuguê s e o

c r iou l o t em de s e r nou t ro r i t mo . N orma l men t e f aze s

r ád io num de t e rmindo r i tmo , ao r i tmo do po r t uguês .

P o r t an to , i s t o é a l go que t em de ac on tece r pouco a

pouco . M as não pens o que i s s o t e r i a a lgum a in f l uênc i a

no púb l i c o , uma ve z que toda a gen t e f a l a c r iou lo e

en t e nde po r tuguês , a i nda po r c i ma , o po r tuguê s

u t i l i z a do na r ád io , é mu i t o bá s i co . O me l ho r de f ac to ,

s e r i a t udo em c r i ou lo , pa r a que a s pe s soa s s e s en t i s s em

ma i s à von tade . M as é i mpor t a n t e r ea l ça r o f a c to de

que a l í ngua que f a l a s , é à t ua e s co l ha . Nã o ex i s t e a

ob r igaç ão de f a l a r uma de t e rm inada l í ngua .

7 . I : Eu pens ava que a s pe s soa s f a l a s se m po r tuguê s , po rque l he

a t r i buem m a i s va lo r , ou i s t o é uma s i t uação do

pas sa do?

8 . B : Nã o é uma ques t ão de va lo r , mas s im um a ques t ã o cu l tu r a l e

de háb i to s no d i a a d i a . Ex i s t em pe ss oas , que quando

se zangam com os s eus f i l hos , f a l am em po r tuguês pa r a

da r um a r de ma i s s e r i edade . T ra t a - se po r t an to , de uma

ques t ão de háb i to s que s e e n ra i za m na ca beça da s

pe s soa s , m as no fundo não t em nada a ve r . O c r iou lo é

uma l í ngua , o p rob l ema é que e l e nunca fo i e s tudado .

Nós u t i l i z amos o c r i ou lo s ó o r a lme n te . I s to é , e s t á

c l a ro , um “hand i cap” , po rque a l í ngua não e s t á

o rgan iz ada e nã o t em r eg ra s . É e s s e o p rob lem a com o

Page 118: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

c r iou l o . Ma s f e l i zm en te em a l gumas pa r t e s , ….

9 . I : Ma s a inda não é a l í ngua o f i c i a l ?

10 . B : Nã o , a inda não . A i nda não s e ap re nde

o f i c i a lm en te na e s co l a . É uma l í ngua que se f a l a e m

cas a . O s t eus pa i s f a l am c r i ou lo con t igo des de

pequeno . N o d i a a d i a e m Cabo V erde , a s pe ss oas

f aze m a s ua v ida em c r i ou lo . Ex i s t em m omen t os e m

que o po r tuguê s . e n t r a na v i da des s a s pe ss oas , com o

po r exem plo pa ra t r a t a r de a lgum as sun t o ou

docume n tos . Sã o des se s mom en tos , que um c r iou l o ,

que f a l a no rma l men t e c r i ou lo , en t r a em c on tac t o com a

l í ngua po r tugues a , que a inda é o f i c i a l , po rque o

c r iou l o a inda não t em e s t ru tu r a pa r a i s s o .

11 . I : Obr i gado pe l o se u t empo .

Page 119: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

An exo V: En t r ev i s ta c om o in for man te C

In fo rman t e C é J o rge , t r i n t a e c inco a nos de i dade . T raba l ha como

p ro fe s so r no l i c e u Jo rge Ba rbosa em S ão V ice n te .

Obs er vaç ão : e s s a en t r ev i s t a f o i f e i t a no co r r edo r do l i c e u , du ran t e o

i n t e rva lo . Com o eu não t i nha ma rcado nenhum encon t ro com um

de t e rmina do p ro fe ss o r , dec id i d i r i g i r a pa l av ra a um p ro fe s s o r qua lque r

ou uma p ro fe ss o ra . As s im e ncon t r e i J o rge que naque l e mom en to e s t ava

d i s pon íve l .

1 . C : O m eu nome é J o rge . S ou p ro fe ss o r do ens ino s ec undá r io

na e s co l a Jo rge Ba rbos a . N a e s co l a , em t e rmos da l í ngua

po r tugues a , a con tec e o s egu in t e : f a l am c i nquen ta po r

cen t o po r tuguês e c i nquen ta po r cen to c r iou lo . N ão t êm

[o s a lunos ] ba s e s su f i c i en t e s pa r a exp l i ca r ce r to s

con te údos . T êm m ui t a s d i f i cu lda des pa r a exp re ss a r

de t e rmina das m a té r i a s em po r t uguês . Ma s pa ra man t e r a

apa rê nc i a de que e s t ão be m na e s co l a p r im ár i a , f a l am em

c r iou l o . Os ou t ro s p ro fe s s o re s não cons eguem p reenche r

a s l a c unas na l í ngua , que j á t r aze m da p r im ár i a . Pa r a que

poss am con t i nua r o s e s t udos , o s p ro fe s s o re s de ixam

pas sa r , mas i s s o não s i gn i f i c a que dev i am f a l a r c r i ou lo .

S ó que a n íve l de ap re nd iza gem, dam os- l hes uma

opo r tun ida de . Bom, em t e rm os da minha a u l a , e ducaçã o

2. I : Nã o , eu d i s s e que t e ns que i r da r a a u l a , po rque a compa inha j á

t ocou < toc a de ca mpa i nha> .

3 . C : Ah! O k . P ron to . J á que t enho de i r . Acho que e s t a s

se nho ra s vão a juda r .

4 . I : Nã o , se a inda t i ve r e s do i s m inu tos é óp t imo pa ra mim , mas

acho que t ens de i r . M as o que pens as ? A chas que o s

miúdos deve m f a l a r c r iou l o na e s co l a ou e s t á e r r a do? Tem

a lgum e fe i t o nega t ivo , po r exe mplo?

Page 120: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

5 . C : Nã o . C la ro que t em a s s uas cons equênc i a s . Eu gos t a r i a

que t odos o s a lunos f a l a s s em po r tuguês , po rque , t a lvez ,

em po r t uguês cons egu i s se ens ina r um t ema me l ho r . Po r

veze s é d i f í c i l de e ns i na r ce r t o s t emas em c r iou l o . É

mes mo d i f í c i l . É po r e s s a r az ão , que ac ho que o ens ino

aqu i de ve r i a c on t inua r em po r t uguês .

6 . I : Em po r t uguês ? M as pa ra a c u l tu r a c abo -ve rd i ana , não pe nsas

que s e r i a me lho r f a l a r a sua p róp r i a l í ngua?

7 . C : As tua s r a í ze s . P o r aca so é sem pre bom nunc a e s quece r a s

t ua s r a í ze s , mas t e mos que t e r e m con t a o f ac t o de que o

c r iou l o é d i f e r en t e e m toda s a s i l ha s . Po r e s s a r a zão é um

bocado c on fuso un i fo rmiza r um de t e rmi nado c r iou l o . Po r

ago ra f a l amos s ó um boca d inho de c r i ou lo na e sc o l a , ma s

i s so nã o que r d i z e r que s e j a pos i t i vo . Ta l vez no fu t u ro .

8 . I : Ok J o rge , ob r i gada .

Page 121: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

An exo VI: D iá l ogo de t r ê s a lu n os do e ns in o s ecu n dár io ( l i c eu Jorge

Barbos a )

In fo rman t e D (Ana ) , E (L í g i a ) e F (Cá t i a ) s ão a l unas do l i c eu J o rge

Ba rbos a . A na e L i g i a t êm qu i nze anos de i dade e a mbas f r equen t am o

qu in to a no . Cá t i a t em deza ss e t e anos e s egue o déc imo-p r i me i ro a no .

Obs er vaç ão : e s s a en t r ev i s t a f o i , em g ra nde pa r t e , uma conve r sa l i v r e

en t r e a s a lunas .

1 . A: Como é que tu cham as ?

2 . L : O m eu nome é L í g i a .

3 . A: O m eu nome é A na .

4 . L : Qua n tos anos t ens t u , A na?

5 . A: Eu t e nho qu inze anos .

6 . I : E t u , L íg i a ?

7 . L : Qu i nze a nos .

8 . I : Qua l é a e sc o l a que f r equen ta s?

9 . L : Qu i n to anos [ l i c eu J o rge Ba rbos a ] .

10 . I : E t u?

11 . A: Qu i n to anos .

12 . L : Eu s ou da s a l a ‘Ex t r am ag ina ’ .

13 . A: Eu s ou da s a l a “En t r e p l ac e ’ .

14 . L : P o rque é que nã o fo s t e ho j e pa r a a e s co l a?

15 . A: Ho j e t i ve de i r a um ca sa men to , po r i s s o não fu i pa r a a

e s co l a . Agora s ó vo l t o na s egunda - f e i r a .

16 . L : Ah! E n tão a v i s a s t e o p ro fe s s o r?

17 . A: S im.

18 . L : Ah! E de que m ane i r a , (Ah , A h)

19 . A: Tens s ido uma boa a luna , t en s boas no t a s ?

20 . L : S im.

21 . A: No p r i me i ro se mes t r e t i ve um as no t a s …, s ó que t i ve

a lgum as nega t i va s . Ma s vou e s t uda r pa r a que poss a pa s s a r .

Page 122: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

22 . I : Tam bém de v ia s e s fo r ça r m a i s pa r a c onsegu i r e s

me l ho ra r a s no t a s .

23 . I : Qua n ta s d i s c i p l i na s você s t êm?

24 . L : Doz e . Te nho l í ngua po r t ugues a , ma temá t i c a , f í s i c a ,

qu ími ca , t enho ing l ê s , e uh , euh . . .

25 . I : Qua l é a l í ngua que f a l a s du ran t e a s au l a s?

26 . L : Eu f a l o f r ancês .

27 . I : Tu f a l a s é f r ancê s?

28 . L : Ah po r t uguês . Dura n te a s au l a s f a l am os po r t uguês e

f r ancê s . N ão podem os f a l a r c r i ou lo du ran t e a s au l a s .

29 . I : E quando é que vocês f a l am c r i ou lo? P o rquê?

30 . L : E l e s d i zem que f a l a r c r iou l o é uma f a l t a de d i s c ip l i na .

31 . I : En tã o f a l a r c r iou lo é uma f a l t a de d i s c ip l i na . E quando

é que voc ês f a l am c r iou l o?

32 . L : F a l am os c r iou lo s ó na rua .

33 . I : S ó na rua? E o p ro fe s so r za nga - s e s e e l e vos ouv i r

f a l a r c r iou l o?

34 . L : S im. E le s não que re m, não ac e i t am.

35 . I : Ouve , gos t a r i a s que voc ês f a l a s s em c r iou lo na e sc o l a

ou é s con t r a ?

36 . A: Nã o . Po r a ca s o eu gos to de a p rende r a f a l a r po r t uguês .

S empre que poss íve l t en t o f a l a r po r tuguês .

37 . L : Ah . S im. P a ra cons egu i r f a l a r po r tuguê s quando e s t i ve r

com f a l an t e s po r t ugues es .

38 . I : E na e sc o l a , t udo é ens inado em po r tuguês ?

39 . L : S im.

40 . I : Qua l é o nom e da t ua e s co l a?

41 . A: Es co la ‘ Jo rge Ba rbosa ’ . Que . . <ba ru lho>

42 . L : Es co la ‘ Jo rge Ba rbosa ’ t am bém.

43 . I : Qua l é a l í ngua que vocês f a l a m quando s aem com os

voss os ami gos?

44 . L : C r iou lo .

45 . I : P o rque é que voc ês nã o f a l a m po r tuguês ?

46 . L : S ó f a l am os po r t uguês du ran t e a s a u l a s ou s e

Page 123: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

es t i ve rmos a f a l a r com um po r tuguês .

47 . I : Ah! E qua l é a l í ngua que f a l a s em ca sa ?

48 . L : Eu f a l o c r iou l o ‘na von tade ’ [ e s p re s são t í p i c a em Cabo

Ve rde ] .

49 . I : Ah , e n t ão f a l a s c r iou l o ‘na von ta de ’ com a t ua m ãe?

50 . L : C la ro . T enho uma t i a que ve io de Po r t uga l e é só e m

po r tuguês que e u f a lo com e l a em ca sa .

51 . I : Qua ndo vocês e s c r eve m uma c a r t a , qua l é a l í ngua que

vocês u s am?

52 . A: Es c reve mos sem pre em po r tuguês .

53 . I : Voc ês sa bem es c r e ve r c r iou l o?

54 . A: S im. S e qu i se rm os pode mos e s c r eve r c r iou lo , m as é um

bocad i nho d i f í c i l pa r a nós .

55 . I : P o rquê?

56 . L : P o rque ex i s t e m co i sa s que nã o cons egu imos e s c r e ve r

em c r iou lo .

57 . I : E pa r a exp re s sa r t am bém. E x i s t em c o i s a s em po r t uguês

que não c onsegue s e xp re s sa r e m c r i ou lo?

58 . L : S im.

59 . I : E en t ão , com o é que t e exp re s sa s?

60 . L : Us am os a pa l av ra em po r t uguês .

61 . A: Eu f a l o po r tuguês e i ng l ê s . Norm a lm en te t emos dez

d i s c ip l i na s . O se x to d i ze mos que é o déc imo , o s é t imo

d i ze mos déc im o-p r ime i ro e o o i t avo é o dé c im o- se gundo . As

au l a s e r am an t igam en te m a i s d i f í c e i s do que a go ra . P o r

exem plo uma pess oa que t em a qua r t a c l a s s e de

an t i game n te…/ A qua r t a c l a s s e de an t i gamen t e pod ía mos

compa ra r com o o i t avo a no de ago ra .

62 . I : Que des t a s l í nguas é que f a l a s?

63 . A: P o r tuguês .

64 . A: No i n t e rva lo podem os f a l a r c r i ou lo .

65 . I : E com ami gos?

66 . A: Tam bém. I s s o depende s e nos s a f amí l i a f o ss e de a l í ,

a s s i m podem os f a l a r c r i ou lo . S e e l e s são de ou t ro l uga r ,

Page 124: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

t em os que f a l a r a s s uas l í nguas .

67 . I : E s e uma p r ima v i e r po r exe mplo de Po r t uga l , qua l é a

l í ngua que f a l a s c om e l a , mes mo s e e l a não f a l a c r iou lo?

68 . A: C r iou lo .

69 . L : Ex i s t e m p ro fe s s o re s que não adm i t e m que f a l emos

c r iou l o . Fa l am os c r iou lo s ó na rua . P a r a e l e s é f a l t a de

d i s c ip l i na .

70 . I : Qua n ta s t u rm as é que ex i s t em?

71 . A: De vem e x i s t i r m a i s ou menos v in t e t u rm as . Ex i s t em

tu rma s da pa r t e da manhã e da t a rde . S omos ma i s ou me nos

mi l a lunos .

72 . I : E e s t a é vos sa c o l ega ?

73 . A: S im.

74 . I : P oss o f aze r - t e t ambém a lgum as pe rgun ta s ?

75 . C : O m eu nome é Cá t i a . Es tou no s é t imo a no .

76 . I : E quan t a s d i s c ip l i na s t en s ?

77 . C : Tenho nove d i s c ip l i na s .

78 . I : De qua l de l a s gos t a s ma i s e po rquê?

79 . C : Eu não gos to de f í s i ca po rque não pe rce bo a ma té r i a .

80 . I : En tã o , de qua l é que gos t a s ma i s ? E po rquê?

81 . C : Gos to m a i s de f r a ncês po rque é a m a té r i a que pe r cebo

me l ho r . É f ác i l de f a l a r e d i f í c i l de e sc r eve r .

Page 125: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

An exo V I I : En tre v i s ta com o in forman te G

In fo rman t e G é o s enho r Jú l io V . da S ousa Lopes , em ba ixado r de Cabo

Ve rde em Ha i a . O se nho r Lopes é pa i de do i s f i l hos .

Obs er vaç ão : e s s a en t r ev i s t a f o i f e i t a na em ba ixa da de Cabo V erde e m

Ha ia . U s e i o ques t i oná r io que vem no ane xo I I , como ba se pa r a a

en t r e v i s t a . P o rém , não o se gu i r i g i dame n te .

Nom e: J ú l i o V . da Sous a L opes .

Idade : 51 anos .

Luga r de nas c ime n to : A s som ada na I l ha de S an t i ago , Cabo V erde .

Mora da : V oorbu rg , H a ia .

1 . I : O s enho r a inda t em pa i s?

2 . G: S im. E le s moram na P ra i a .

3 . I : O s r . é c a s ado?

4 . G: S im, duas vez es . P r i me i ro com uma ch ine sa do M ac au .

Es t ive mos onze anos ca sa dos .

5 . I : F i l hos ?

6 . G: S im, um a men i na de onze anos e um r apa z de t r ê s a nos .

7 . I : Educa ção?

8 . G: Engenhe i ro C iv i l .

9 . I : Onde é que o s enho r e s tudou?

10 . G: Em L i s boa , no In s t i t u to S upe r io r T écn i co .

11 . I : Qua l é a sua p ro f i s s ão?

12 . G: Emba ixado r de Cabo Ve rde .

13 . I : Qua n ta s l í nguas é que o s enho r f a l a?

14 . G: P o r tuguês , c r iou l o , i ng l ê s e f r ancês .

15 . I : Com qua l de s sa s l í nguas é que o s enho r f a l a com a s ua

mu lhe r?

16 . G: Ma i s é c r i ou lo .

17 . I : Com qua l de s sa s l í nguas é que o s enho r f a l a com os

se us f i l hos ?

Page 126: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

18 . G: Eu f a l o ma i s po r t uguês com e l e s , pa r a não pe rde rem a

l i ga ção com o po r tuguês .

19 . I : Qua i s de s sa s l í nguas é que o s enho r f a l a no s eu

empre go?

20 . G: Com a s ec r e t á r i a f a l o po r tuguês , po rque e l a f a l a ma l o

c r iou l o . Com os ou t ro s func ioná r io s f a lo c r i ou lo e

po r tuguês . O c r iou l o po rque é a nos s a l í ngua nac i ona l ne s t e

mome n to e po rque é a nos sa l í ngua .

21 . I : Em qua l de s s a s l í nguas é que o se nho r e sc r eve à s ua

f amí l i a em Cabo V erde ?

22 . G: Em po r t uguês , po rque eu e m u i t a s ou t r a s pe s soas a i nda

t em os d i f i cu l dades em e sc r eve r c r i ou lo . Eu e sc r e v i aque l e

r e l a tó r io s ob re fundos em c r iou lo pa r a que s ó eu o l e s s e .

Es c r ev i da fo rma que eu pens e i que se pod ia e s c r e ve r e que

eu pod ia l ê - l o .

23 . I : Que l í ngua s de ss a s (po r tuguês , c r i ou lo , i ng l ê s ,

f r ancê s ) é que o se nho r f a l a c om os se us pa r en t e s em Cabo

Ve rde?

24 . G: P o r tuguês e c r i ou lo . M as com os meus pa i s f a lo

po r tuguês . I s so t em a ve r com o f a c to de que an t i gamen t e em

Cabo V erde o s pa i s s ó f a l a vam po r t uguês c om os se us f i l hos .

I s s o t e m a ve r com a c l a s s e . O m eu pa i é de S an t i ago , a

minha mãe é de S . V i cen t e e a m inha a vó é de P aú l [P aú l é

uma a lde i a na i l ha de S an t o An t ão ] . Na s r e un iões de

gove rno , nós f a l a mos po r tuguês , mas nos i n t e rva lo s f a l a mos

c r iou l o . A i nda não ex i s t e um a l f abe t o o f i c i a l i z ado . E

p r ime i ro t e mos que e s tudá - l o e expe r i men t á - lo . J á e s c r ev i

em c r iou lo , m as e sc r ev i na minha m ane i r a .

25 . I : Qua ndo vocês vão de f é r i a s pa r a Ca bo Ve rde , que

l í ngua é que o s enho r f a l a com os s eus pa r en t e s ?

26 . G: F a lo c r i ou lo e po r t uguês .

27 . I : O s enho r t em f a mí l i a de o r i gem po r t ugues a?

28 . G: S im, t enho s i m , t e t r avó .

29 . I : O s enho r f a l a po r t uguês c om o pa i ? S es im , é que s t ão

Page 127: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

do pas sa do?

30 . G: O m eu pa i é de S an t i ago , ma s é p r a t i c ame n te da i l ha

do S a l . A minha f amí l i a é da i l ha do S a l .

31 . I : Qua ndo o se nho r va i pa r a Cabo V erde , que l í ngua é

que o s enho r f a l a no t r aba lho , no gove rno?

32 . G: Norm a lm en te na s r e un iões de t r aba lho e m Cabo V erde

f a l a mos só po r t uguês . É ma i s c o r r ec t o . Tem r e un iões , po r

exem plo d i r i g idas a um púb l i co m a io r , à s vez es é em c r iou lo

t am bém. P o r exe mplo , na m inha c a s a , na s r eun iõe s com

t r aba lhado re s f a l o ma i s e m c r iou l o pa r a t e r mas l i gaçã o com

t r aba lhado re s . P a r a nã o man t e r d i s t ânc i a . M u i t a s ve zes ,

mu i t o s de l e s não s abem f a l a r bem o po r tuguê s e t êm

compl exo e a s s im e l e s não dão a que l a abe r tu r a que nós

que rem os . S e qu i se rmos sabe r bem a s s uas op in iõe s , t emos

de f a l a r em c r iou lo . E como é i s so que é o ob j ec t ivo das

r eun iõe s de t r aba l hado re s , po rque s enão nã o t i nha r a zão de

se r r eun iã o de t r aba lhado re s , f a l amos em c r iou lo . A s s i m e l e s

podem d i sc u t i r num a l í ngua que e l e s conhece m e s abem f a l a r

me l ho r .

33 . I : S e i que e x i s t em pess oas que , m es mo que não dom inem

bem o po r t uguês ou que à s veze s nem se que r f r equen t a r am a

e s co l a , t êm t endênc i a em f a l a r em po r tuguê s pa r a mos t r a r

que o s abem . É um t ipo de…. s ub i r na e sc a l a s oc i a l .

34 . G: Me sm o aqu i na comun ida de cabo -ve rd i ana , f a lo

no rma l men t e em c r iou lo po rque há pes soa s que f a l am bem

ho landê s , i ng l ê s ou f r ancê s , m as que não f a l am po r t uguês .

P o r tuguês pa r a e l e s é ma s d i f í c i l .

35 . I : Eu , na m inha c a sa f a lo s ó c r i ou lo com os me us pa í s ,

mas com o meu i rmão , à s vez es c omeç amos a f a l a r em

c r iou l o e t e rminam os e m ho la ndês . Às veze s u s am os

pa l a v ra s de uma de ss a s l í nguas de n t ro da ou t r a e v i s a ve r sa .

Há mu i t a s c r i anç as cabo -ve rd i anas que não f a l am c r iou lo .

36 . G: In t e r e s s an t e é que e m Cabo V erde , qua ndo a lguém f a l a

ao s é r io ou qua ndo f az gue r r a , b r iga - s e com uma ou t r a

Page 128: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

pes soa ou c r i anç a , e l e f az u s o da l í ngua po r tugue sa .O m eu

pa i s em pre quando me dava ca s t i go , ou quando e s t ava

zanga do f a l ava se mpre em po r tuguês .

37 . I : Ah . O me u pa i s em pre d i z que o se u pa i f az i a o m esm o

com e l e , a c ho que e r a e a inda é um háb i to de m u i to s pa i s

c abo -ve rd i anos .

38 . G: É p róp r io a s s im .

39 . I : O que é que o s enho r ac ha das pe s soa s c abo -ve rd i a nas

que f a l am s ó ho l andê s c om os se us f i l hos ?

40 . G: Ac ho que e l e s de v i am f a l a r c r iou lo c om os f i l hos . P o r

exem plo , eu f a l o no rma l men t e c r iou l o com os me us f i l hos . A

minha f i l ha , quanda e s t á em P ra i a , f a l a só c r iou lo com os

men i nos . O ou t ro f i l ho me u f a l a s ó c r i ou lo , po rque a

empre gada f a l a s ó c r iou l o com e l e . E l e f a l a uma m is tu r a de

t odas aque l a s l í ngua s . F a l a i ng l ê s , dev ido à t e l e v i s ão ,

dev ido a os de senhos an i mados , f a l a c r iou l o com a

empre gada e f a l a ho l andês com o nos s o v i z i nho . Os meus

f i l hos t ê m que a p rende r a f a l a r c r i ou lo , a c ho i s so m u i to

impor t an t e . Ac ho que cabo -ve rd i anos dev ia m f a l a r c r iou l o

com os s eus f i l hos po rque é a noss a l í ngua nac iona l . Tem os

noss a m ús i ca… t oda em c r iou lo , t emos mu i t a s veze s poes i a

em c r iou lo , r om ances em c r iou l o . Tem os que t e r um a fo r t e

i den t idade cu l tu r a l .

41 . I : Ac ho que s im .

42 . G: É uma r iquez a ; o c r i ou lo é….m a i s uma l í ngua . À s

veze s t emos ce r t a s d i f i cu l dades t a mbém e m f a l a r c r iou l o .

P o r exempl o quando f a l amos em t e rmos t é cn i cos , t e rmos

e s pec i a l i z ados , à s vezes não t emos aque l e s t e rmos

d i s pon íve i s . A ques t ã o não é que nã o que remos u s a r a nos s a

l í ngua c r iou l a , mas é f a l t a de pa l a v ra s , de conhec imen t os de

ce r t o s c once i t o s na l í ngua c r iou l a . As s im , qua ndo f a l am os

em c r iou lo e mpregam os a que lo s t e rm os e m po r tuguê s . P o r

exem plo numa in t e rve nção que e u t i ve (onde u s ava a l í ngua

c r iou l a ) , que r i a empre ga r a pa l av ra sus t e n tab i l i dade em

Page 129: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

c r iou l o . Se eu f a l a s s e de sus t e n tab i l i dade d a nos sa economi a

em c r iou lo , i s s o não t i nha s en t i do . Eu t i nha que d i ze r o

se gu in t e : uma economi a que e s t á a s u s t en t a r , a guen ta r a sua

cabe ça . P o r i s so f a l e i em c r i ou lo ma s u s e i a pa l a v ra em

po r tuguês po rque s e f az ma i s u s o des s a pa l a v ra no d i a - a -d i a .

43 . I : I s s o s e r i a t a l vez o que o s enho r deve r i a d i ze r , ape sa r

de no mom en to a s pa l av ra s não apa rece re m. O br igada pe lo

voss o t e mpo d i s pon íve l .

Page 130: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

An exo VII I : PA D IAN TE É Q U ’ É CAMI M

PA DIANTE É QU’ É CAMIM PARA FRENTE É QUE É O CAMINHO

Uvì. Escuta.Amim m’ câ ê daquês Eu não sou daquelesque t’ andá tâ rimá amôr ma flôr, que andam a rimar amor com flor,ni daquês que t’ andá tâ procurá nem daqueles que andam a procurarmoda pêxe na rêde, como peixe na rede,um bróc pa fjì. um buraco para fugir.

Idêa d’imbarca Ideia de embarcarNunca passóme pâ cabéça. nunca me passou pela cabeça.Nunca m’ gostá d’ andá de préssa, Nunca gostei de andar depressa,Nem de repiá camim. Nem de arrepiar caminho.

S’ ê pâ m’ bá vivê vida d’ galinha tchóca Se é para ir viver vida de galinha chocaNa terra ond’ ê que sôl em terras aonde o solT’ oiód’ êl ê de bocadim, vê-mo-lo só aos bocadinhos,s’ ê pa m’ bá sintí pôm tâ margóme na bóca, se é para ir sentir o pão amargar-me na boca,na terra de <<mandinga>> ma <<landim>>. na terra dos <<mandingas>> e dos <<landins>>.

Antes fcá pra lí tâ gozá dêsse mar Antes de ficar por cá a gozar deste marMa dêsse cêu. E deste céu.Não, compáde, m’ ca tâ bâ na tróca! Não, compadre, não vou na troca!Pa diante ê qu’ ê camim!... Para frente é que é o caminho!...

Poema de Sérgio Frusoni (Lima 1992: 154-155)

Page 131: 4.2 O crioulo cabo-verdiano

An exo IX: D I ANT E DE M AR D E S ANVI CEN TE

DIANTE DE MAR DE SANVICENTE DIANTE DO MAR DE SAN VICENTE

Coitóde daquês Coitados daqueles‘ca queriz uvì cô bô, mar, e bá que não quiseram ouvir mar, e forampa terra lonje, para terra longe,perdê lembrança dêsse sôl, perder a lembrança deste sol,ma prendê stóra e a aprender estóriasque ninguem ta crê contá. que ninguém quer contar.Coitóde daquês !... Coitado daqueles!...

Ma cada um dês Mas cada um deleslevá na concha d’ uvide, levou, na concha do ouvido,vôz de bô ressaca, mar, a voz da tua ressaca, mar,pâ tâ guiás, para os guiar,moda tine tâ guiá pómba, como o tino guia a pomba,na hora de voltá. na hora de voltar.

Alime diante de bô, mar, Eis-me diante de ti, mar,— fidje diante dê sê pái — — filho diante do pai —ta crê catá bô palavra a querer acatar a tua palavrama uvì bôs consêi. e ouvir os teus conselhos.

Alime diante de bô, mar, Eis-me diante de ti, mar,padóce de rátói pedaço de retalhota bem tâ boiá na rbêra, vindo a boiar na ribeirasvaziá impureza qu’ m’ catá an munde; esvaziar a impureza que catei no mundo.

Ta crê bá na enxurrada A querer ir na enxurrada de lama a cascalhode lama ma cáscói que hás-de voltar a arremessar nestas bordeirasque bô há torná remessá nêxe bordêra… juntamente um dia com a areia e o limo do teu fundo.

Poema de Sérgio Frusoni (Lima 1992: 204-205)