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4. Meios audiovisuais, narrativas e inclusão subjetiva Neste capítulo, procuramos fechar (evidentemente sem a pretensão de encerrar o tema) nosso percurso a partir dos processos de exclusão, em busca de respostas para revertê-los por meio de processos comunicacionais. Motivados por experiências compartilhadas e mediadas pelo cinema e suas possibilidades transformadoras, realizamos um estudo de caso na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu (ELC), que adota uma proposta de ensino aliada à vivência dos alunos, instigando descobertas que não se limitam ao uso de técnicas e à operação de câmeras e softwares. Buscamos teóricos, cineastas, pesquisadores que pensaram e pensam o cinema e seu papel como narrador, como catalisador de sensações, como expressão artística, como espaço de entretenimento e reflexão, como agente e testemunha da História. Também como veículo para expressão de diversidade cultural, de exercício de alteridade e produção de subjetividade. No Rio de Janeiro do século XXI (como em outras latitudes), o cinema, agora mais acessível graças à tecnologia digital, está cada vez mais presente em práticas e projetos sociais. O cinema ganha uma concepção mais ampla, fazendo parte do que hoje chamamos de audiovisual. O espectador experimenta o papel de produtor, roteirista, diretor e, além de receptor, pode ser emissor, usando as imagens em movimento para se expressar e se comunicar com o mundo. Sobre a Escola Livre de Cinema, fazemos um histórico, sua origem na ONG Reperiferia, sua primeira fase no Programa Bairro Escola, da Prefeitura de Nova Iguaçu, suas incursões em atividades ligadas ao resgate de memória, identidade, território. Numa nova etapa, a Escola, que é também Ponto de Cultura, ganha novo patrocinador, a Petrobras, e estabelece parceria metodológica com a Universidade Federal Fluminense (UFF). Num relato pessoal, contamos como foram as visitas a Miguel Couto, bairro de Nova Iguaçu onde está a Escola. Numa destas visitas, propusemos a realização de entrevistas com alguns alunos, que foram feitas por meio de questionários impressos. Estes questionários foram respondidos por alunos de diferentes cursos.

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Page 1: 4. Meios audiovisuais, narrativas e inclusão subjetiva · entrevistas presenciais, principalmente com Anderson Barnabé, Coordenador da ELC, além de contatos por telefone e por

4. Meios audiovisuais, narrativas e inclusão subjetiva

Neste capítulo, procuramos fechar (evidentemente sem a pretensão de

encerrar o tema) nosso percurso a partir dos processos de exclusão, em busca de

respostas para revertê-los por meio de processos comunicacionais. Motivados por

experiências compartilhadas e mediadas pelo cinema e suas possibilidades

transformadoras, realizamos um estudo de caso na Escola Livre de Cinema de

Nova Iguaçu (ELC), que adota uma proposta de ensino aliada à vivência dos

alunos, instigando descobertas que não se limitam ao uso de técnicas e à operação

de câmeras e softwares.

Buscamos teóricos, cineastas, pesquisadores que pensaram e pensam o

cinema e seu papel como narrador, como catalisador de sensações, como

expressão artística, como espaço de entretenimento e reflexão, como agente e

testemunha da História. Também como veículo para expressão de diversidade

cultural, de exercício de alteridade e produção de subjetividade.

No Rio de Janeiro do século XXI (como em outras latitudes), o cinema,

agora mais acessível graças à tecnologia digital, está cada vez mais presente em

práticas e projetos sociais. O cinema ganha uma concepção mais ampla, fazendo

parte do que hoje chamamos de audiovisual. O espectador experimenta o papel de

produtor, roteirista, diretor e, além de receptor, pode ser emissor, usando as

imagens em movimento para se expressar e se comunicar com o mundo.

Sobre a Escola Livre de Cinema, fazemos um histórico, sua origem na ONG

Reperiferia, sua primeira fase no Programa Bairro Escola, da Prefeitura de Nova

Iguaçu, suas incursões em atividades ligadas ao resgate de memória, identidade,

território. Numa nova etapa, a Escola, que é também Ponto de Cultura, ganha

novo patrocinador, a Petrobras, e estabelece parceria metodológica com a

Universidade Federal Fluminense (UFF).

Num relato pessoal, contamos como foram as visitas a Miguel Couto, bairro

de Nova Iguaçu onde está a Escola. Numa destas visitas, propusemos a realização

de entrevistas com alguns alunos, que foram feitas por meio de questionários

impressos. Estes questionários foram respondidos por alunos de diferentes cursos.

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Foram também enviados questionários a alguns pais/responsáveis e suas respostas

vieram igualmente contribuir para nosso estudo.

As informações sobre a ELC que compõem este Capítulo foram colhidas em

entrevistas presenciais, principalmente com Anderson Barnabé, Coordenador da

ELC, além de contatos por telefone e por e-mails. São também fruto de consultas

ao blog, ao website e às redes sociais onde a Escola mantém perfil (Facebook),

além de nossas observações no local e durante participação em eventos onde a

Escola esteve presente, como o Apalpe e o seminário Redes de formação para o

audiovisual.

Fazemos breve análise de alguns filmes realizados pelos alunos e

comentamos algumas matérias veiculadas na mídia, sobre a Escola. Ao final deste

Capítulo, abordamos brevemente a questão das políticas públicas culturais, no

Brasil, em especial aquelas voltadas para a área do cinema/audiovisual.

4.1. Cinema: magia e técnica, razão e emoção

Olhado com alguma desconfiança em seus primórdios e mesmo relegado a

um papel de coadjuvante em feiras, o cinema não tardou a ser visto como um

invento com inúmeras possibilidades informativas, comunicacionais, educativas,

estéticas. Não apenas os aparelhos foram evoluindo, se aprimorando, mas também

novas elaborações estéticas e narrativas foram sendo reveladas. Como observa

Flávia Cesarino Costa, (2005), gradativamente os filmes foram perdendo aquela

característica de atração autônoma, ao estilo dos vaudevilles, onde havia de tudo

um pouco, sem conexão entre os atos/cenas.

O cinematógrafo dos irmãos Lumière, apresentado em 1895, surge como o

aperfeiçoamento de outras técnicas óticas então em uso, entre eles a lanterna

mágica, o stereorama, o cineorama, criados e patenteados num ambiente de

acirrada competição (Costa, 2005, pp.25-27). Ele, o cinematógrafo, inaugura uma

nova etapa nesse percurso do homem para captação, fruição e perpetuação de

imagens (e, depois, também sons).

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Uma das aplicações dos recursos do cinema, em seus primeiros anos, além

de mostrar as atualidades, foi para registro de experiências científicas (Duarte &

Tavares, 2010, p.25). Mas, se o cinema deu seus primeiros passos apenas

registrando o que estava diante da câmera, logo os realizadores perceberam que

suas possibilidades iam muito além. As narrativas, timidamente esboçadas nos

trabalhos realizados com os primeiros aparelhos óticos, foram também evoluindo.

Na primeira década do século XX, o cinema vai se sofisticando e a narrativa já

aparece como forma dominante. Desde então, as inovações estéticas, tecnológicas

e de construção de narrativas não pararam, e cada vez mais se justifica o

reconhecimento do cinema como a “sétima arte” 76

.

Flávia Costa observa também que, sendo a única mídia capaz de reproduzir

a velocidade, proliferavam, nos primeiros tempos, as imagens de cinema tomadas

a partir de meios de transporte rápido, como trens, inaugurando assim uma nova

forma de percepção visual. Segundo a autora, pode-se dizer que o período do

primeiro cinema se encerra quando esta nova forma de percepção começa a se

generalizar (Costa, 2005, p.59).

John Grierson, responsável pela organização do movimento do filme

documentário, na Inglaterra, no final dos anos 1920, tinha um projeto de educação

pública através do cinema, crendo que a câmera seria capaz de registrar fielmente

a realidade e assim transmitir conhecimentos (Da-Rin, 2006, p.55). Mas, mesmo

ele, pretendia um “tratamento criativo da realidade”, um tipo de filme que se

distinguisse da actualité e do cinejornal, como relata Fernão Pessoa Ramos:

As ambições de Grierson, nesse sentido, assemelhavam-se às de outros cineastas e

teóricos da época do cinema mudo e princípios do sonoro. Estes lutavam contra o

preconceito de que o cinema serviria tão-somente para a reprodução mecânica e

submissa do que fosse posicionado em frente da câmera. Para eles o cinema tinha

condições de ser mais que um mero registro do fluxo da realidade, sendo capaz de

dar forma criativa a essa realidade. E, em virtude de sua dimensão artística,

merecia ser tomado mais a sério. (Ramos, 2005, p.70)

76

A expressão “sétima arte” foi proposta pelo italiano Riccioto Canuto, inicialmente em 1912,

aparecendo no Manifesto das Sete Artes, publicado em 1923. As outras seis são: Arquitetura,

escultura, Pintura, Música, Dança e Poesia. Posteriormente foram sendo incluídas outras, como:

Fotografia, Arte Sequencial (Quadrinhos), jogos de computador e vídeo e Arte Digital.

http://fgimello.free.fr/enseignements/metz/textes_theoriques/canudo.htm - acesso 11/01/12

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Assim, entre defensores apaixonados e críticos que se recusavam a ver no

cinema qualquer valor artístico, considerando-o um invento sem futuro, a

novidade que projetava numa tela imagens com tal realidade que se confundiam

com a própria vida, chamou a atenção de filósofos, sociólogos e outros

pensadores. As teorias e conceitos formulados por eles apontam um caminho

instigante, ainda que movediço e nunca definitivo, e procuram decifrar o fascínio

gerado pelo cinema.

Para Jacques Aumont, “teorizar o cinema é buscar como ele é imagem,

como representa o mundo, veridicamente ou não; é preocupar-se com sua ação

social e com a maneira como modela os espíritos” (Aumont, 2004, p.135).

Atribuindo ao cinema efeitos sociais e ideológicos e a capacidade de não apenas

informar, mas também convencer, o autor afirma que “o cinema sidera ou seduz

seu espectador como nenhuma outra forma de arte”. (Aumont, 2004, p.9).

Tomando estas afirmações de Jacques Aumont, somos convidados a pensar:

Por que o cinema tem essa capacidade de fascinar? Como se opera essa relação do

espectador com o filme? De fato, numa sala de cinema há um mundo a descobrir,

seja pela razão ou pela emoção. São experiências que disparam sensações,

pensamentos, emoções que nos assaltam e retornam depois, nos apartam por

alguns instantes do momento presente: uma frase, um olhar, um movimento, uma

luz, um som, uma ambiência, uma música, uma imagem... Experiências que o

espectador carrega consigo, finda a sessão.

Marília Franco investiga essa capacidade de mobilização interior do cinema

e fala de uma “permanência emotiva que o filme proporciona e das consequências

formadoras dessa cultura assim experimentada” (Franco, 2010, p.9). Citando

pesquisas da neurociência, a autora ressalta a importância da “impregnação

afetivo/emocional proporcionada pela linguagem ou pela estética

cinematográfica” (Franco, 2010, p.11). Mesmo um cineasta consagrado, com uma

extensa e rica filmografia, como Jean-Luc Godard, considera um dever do diretor

de cinema permitir-se ficar fascinado ao ver um filme, ou, em suas palavras “um

filme que me derrube e me recoloque em causa...” (Godard, 2006, p.245).

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Entre os cineastas que, além de realizadores, também teorizaram sobre o

cinema, o russo Dziga Vertov (1896-1954) criou um conceito (tirado da música)

que chamou de “intervalo” para significar mais uma conexão do que uma ruptura.

No “intervalo”, o espectador se insere como mais um realizador, formando uma

teia de significados a partir das imagens. Ele é em parte direcionado pela

montagem, mas também desfruta de uma liberdade interpretativa para reconstruir

em sua mente a obra, a partir de sua percepção. Como explica Miguel Pereira,

Vertov não está apenas interessado na relação de imagens próximas, mas também

das distantes que participam do mesmo movimento fílmico. Assim, a montagem

não é apenas a junção de imagens, mas a sua relação com todas as imagens que

estão no filme, depois de montado. (Pereira, 2006, p.130)

A montagem é geralmente associada a Sergei Eisenstein (1898-1948), que,

no entanto, a utilizava de modo diferente de seu contemporâneo Vertov. Se este a

usava de modo mais cerebral, Eisenstein apostava na emoção. Segundo Roland

Barthes, o cinema de Eisenstein encontra semelhanças com o teatro de Bertolt

Brecht, pois “toda carga significativa e divertida incide sobre cada cena” e “o

filme é uma contiguidade de episódios, cada um absolutamente significativo,

esteticamente perfeito” (Barthes, 1990, p.83).

Ainda entre os cineastas russos, Lev Kulechov (1899-1970) também se

destacou com suas experiências, que ficaram conhecidas como “Efeito

Kulechov”77

, e que consistiam em alternar um plano de um ator com expressão

neutra com outros planos, causando a sensação de que o ator estaria

experimentando diferentes sentimentos: prato de sopa associado à fome, criança

morta à tristeza, mulher seminua a desejo, etc., demonstrando como a associação

de imagens pode exercer influência sobre o espectador, fazendo-o “ver” além do

que está na tela.

O próprio cinema voltou suas câmeras sobre si e vários filmes, em

metalinguagem, pelo drama ou pelo humor, falaram da sétima arte e de como ela

pode mobilizar, transformar, fazer pensar, desestabilizar e recriar a própria vida:

Amarcord (F.Fellini), Cinema Paradiso (G.Tornatore), A noite americana

77

Encontramos no Youtube várias versões do Efeito Kulechov (ou Kuleshov), sendo esta a versão

apresentada como a original: http://www.youtube.com/watch?v=zUZCPPGeJ1c. Ver também:

http://classicosuniversais.com/2011/06/12/montagem-e-efeito-kuleshov/ - acesso 20/10/11

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(F.Truffaut), A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen), Saneamento Básico, o

filme (Jorge Furtado) são alguns exemplos. E o grande vencedor do Oscar em

2012 foi, curiosamente, um filme - O Artista (M.Hazanavicius) - que retorna aos

primeiros tempos do cinema, utilizando recursos da época retratada, ou seja, um

filme mudo, em preto e branco e projetado em tela quadrada.

Este poder do cinema explica a mobilização de diversos pensadores em

torno deste invento que verdadeiramente revolucionou o modo como o homem

enxerga e se relaciona com o mundo. Gilles Deleuze entende que o que diferencia

o cinema de outras artes é sua capacidade de “auto-movimento”. Segundo o

filósofo francês,

É somente quando o movimento se torna automático que a essência artística da

imagem se efetua: produzir um choque no pensamento, comunicar vibrações ao

córtex, tocar diretamente o sistema nervoso e cerebral. Porque a própria imagem

cinematográfica “faz” o movimento, porque ela faz o que as outras artes se

contentam em exigir (ou em dizer), ela recolhe o essencial das outras artes, herda o

essencial, é como o manual de uso das outras imagens, converte em potência o que

ainda só era possibilidade. (Deleuze, 2007, p.189)

Deleuze (2007; 2009), acreditando no cinema como ferramenta para

produzir o pensamento, desenvolveu os conceitos de “imagem-movimento” e

“imagem-tempo”. A “imagem-tempo” refere-se a um cinema mais lento,

reflexivo, que privilegia o tempo em vez da ação, e surge após a 2ª Guerra

Mundial, num mundo profundamente abalado e mesmo perplexo diante da

destruição e da barbárie. A “imagem-movimento”, que se caracteriza pelo

dinamismo, pela ação, prevalecia nos filmes anteriores àquela guerra.

Tais conceitos e teorias nos ajudam a conduzir as reflexões sobre como se

dá, pelo público, a recepção dos filmes, como as obras são marcadas por tensões

históricas e sociais, constituindo-se também como testemunhas de sua época. De

fato, o cinema, além de expressão artística, tem também servido a interesses

econômicos e políticos, seja como doutrinador ou espaço de resistência.

É sabido que o cinema se imbrica com a política, seja para doutrinamento,

difusão de ideologias, seja pelo viés da economia. É famosa a frase atribuída a um

presidente norte-americano que diz “onde vão nossos filmes, vão nossos

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produtos”78

. Filmes podem ser instrumentos para tentar orientar o pensamento das

massas, como na Alemanha nazista, no socialismo soviético e no Estado Novo de

Vargas, no Brasil. Do mesmo modo, podem ser espaço de crítica e denúncia,

como atestam dezenas de obras produzidas em países que vivenciaram regimes

autoritários, como Brasil, Argentina, Chile, Cuba, entre tantos outros.

Neste contexto, é interessante trazer o conceito de “dispositivo” ainda que

não seja ele atributo específico do cinema. Michel Foucault (1996) faz referência

ao dispositivo, representado por uma rede que agrega elementos que atuam sobre

o indivíduo, como os sistemas de exclusão que ele analisa no livro A ordem do

discurso. Giorgio Agamben, analisando os dispositivos foucaultianos, considera

dispositivo “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar,

orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as

condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (Agamben, 2009, pp.40-

41). Ismail Xavier, em As aventuras do dispositivo (1978-2004), onde percorre o

pensamento de vários teóricos acerca do cinema, observa que Christian Metz

deixou claro que Dispositivo não é apenas o aparato técnico, mas toda a

engrenagem que envolve o filme, o público, a crítica; enfim todo o processo de

produção e circulação das imagens onde se atuam os códigos internalizados por

todos os parceiros do jogo. Deste modo, o Dispositivo se põe como uma

“instituição social da modernidade” que começa então a ser decifrada em suas

bases mais profundas. (Xavier, 2008, p.176).

Cabe destacar que os filmes podem ser políticos mesmo não explicitamente

engajados, como observam Duarte e Tavares (2010, p.33). Segundo os autores,

“ao longo da história, a sétima arte assumiu – para seus criadores e para o público

– distintas formas e dimensões políticas que vieram a desempenhar papéis

educativos diferenciados na sociedade” (Duarte & Tavares, 2010, p.36).

Jacques Rancière, por sua vez, propõe outra relação entre arte/estética e

política:

78

Consta que foi Franklin Roosevelt, mas não há registros que comprovem a origem desta

declaração.

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A experiência estética deve realizar sua promessa suprimindo sua particularidade,

construindo as formas de uma vida comum indiferenciada, onde arte e política,

trabalho e lazer, vida pública e existência privada se confundam. Ela define

portanto uma metapolítica, isto é, o projeto de realizar realmente aquilo que a

política realiza apenas aparentemente: transformar as formas da vida concreta,

enquanto a política se limita a mudar as leis e as formas estatais.(Rancière, 2005,

p.4)

Para Rancière, a arte – e por consequência o cinema – é o meio pelo qual as

transformações que a política apenas sinaliza podem alcançar sua concretização.

Podemos concluir que uma lei, um decreto, uma ordem oficial, não terão o poder

de persuasão, de sensibilização, a capacidade de mobilizar e provocar reflexão que

uma experiência mediada por alguma manifestação artística possui.

4.1.1. O cinema como narrador

“As histórias conferem movimento à nossa vida interior, e isso tem importância

especial nos casos em que a vida interior está assustada, presa ou encurralada. As

histórias lubrificam as engrenagens, fazem correr a adrenalina”. (Clarice Pinkola

Estés)79

“Todas as mágoas são suportáveis se as colocamos em uma estória (story) ou

contamos uma estória sobre elas”. (Isak Dinesen)80

“Histórias. Nós as contamos uns para os outros. Sempre fizemos isso. Histórias

para consolar, surpreender, entreter. E sempre houve contadores de história,

sentados junto à lareira, viajando de cidade em cidade, falando, escrevendo,

encenando. Nossas histórias, nossos mitos e lendas populares definiram,

preservaram e renovaram culturas.” (Roger Silverstone)81

Segundo Flávia Costa, em 1913 já “está consolidado um cinema narrativo

cuja preocupação principal é contar uma história” (Costa, 2005, p.112). Como

relata a autora, a tarefa de ajudar o cinema a contar histórias vinha sendo

conduzida até então pela presença do comentador e pelo uso de intertítulos. Ela

observa também que a sensação “anárquica” dos primeiros filmes, onde imagens

apareciam e sumiam abruptamente, causava impressões contraditórias. Se, por um

lado sugeriam irreverência e energia, por outro, traziam uma sensação estranha de

79

Mulheres que correm com os lobos – mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de

Janeiro: Rocco, 1994, p. 36 80

Citação contida no livro A Condição Humana, de Hannah Arendt (p.219), sem referências à

origem. 81

Citação contida no texto de Adriana Hoffman Fernandes (2010). SILVERSTONE, Roger.

Poética. IN: Por que estudar a mídia? Edições Loyola: São Paulo, 2002, p.79.

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morte. Esta sensação, segundo ela, vai desaparecendo à medida que os filmes vão

se tornando narrativos, possivelmente graças a “uma certa mágica pacificadora da

narrativa”. É interessante registrar também que, segundo a autora, os críticos do

primeiro cinema, atacavam exatamente suas formas não narrativas, que

estimulariam um “nervosismo insalubre” (Costa, 2005, p.33).

Como observam Rosália Duarte e Marcus Tavares, reportando-se a Georges

Méliès, as possibilidades artísticas daquela nova forma de expressão – o cinema –

dependiam também do domínio da técnica e “seria preciso ensinar os espectadores

a apreciá-lo como uma nova forma de arte” (Duarte & Tavares, 2010, p.27). Hoje,

vemos que as novas tecnologias mudaram a forma de exibição, permitem maior

difusão das obras, propiciam uma aproximação com as sensações do espectador,

facilitam a produção, mas o encantamento que o cinema provoca parece estar

ainda próximo àquele experimentado pelas primeiras plateias e continuarão

suscitando novas teorias e conceitos.

Para Cezar Migliorin, “o cinema não se difere em natureza em relação às

experiências possíveis nas outras artes, mas em intensidade” (Migliorin, 2010,

p.105). Sobre seu papel como veículo de comunicação, Fernão Pessoa Ramos

considera que o “cinema é antes de tudo uma ‘forma narrativa’ [...] que envolve

imagens em movimento” e que “pensar o cinema como forma de comunicação

midiática é empobrecer seu campo referencial” (Ramos, 2010, p.165). De fato, o

que iria conferir ao cinema a força que o mantém vibrante, sedutor, instigante

mais de um século depois da histórica projeção dos irmãos Lumière em 189582

é a

sua vocação de narrador e sua capacidade de mobilizar corações e mentes.

As narrativas mesclam as experiências vividas e igualmente as imaginadas,

e nem por isso menos reais. Narradores e narrativas são eles mesmos objeto de

obras cinematográficas, como Forrest Gump, o contador de histórias (Robert

Zemeckis), O Leitor (Stephen Daldry), Narradores de Javé (Eliane Caffé).

Através da oralidade ou da escrita, lendo ou buscando fatos na memória, são

transmitidos saberes, conceitos, práticas, crenças, que nos levam a conhecer e a

refletir sobre a realidade que nos cerca (Fernandes, 2010).

82

Os primeiros filmes dos irmãos Lumière estão disponíveis em:

http://www.youtube.com/watch?v=4nj0vEO4Q6s – acesso em 15/12/11

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Se em seus primórdios, em fins do século XIX, o cinema era um mero

coadjuvante em feiras e eventos, logo revelou seu vigor e potencial como meio de

comunicação e expressão artística e a narrativa foi gradativamente se sobrepondo

à mera captação e projeção de imagens. Hoje, mais do que nunca, os meios

audiovisuais são contadores de histórias. Contudo, é preciso refletir sobre que

histórias o cinema e o audiovisual vêm contando, e para quem, e se estão sendo

ouvidas, vistas e apreendidas.

Como vimos abordando neste trabalho, os espaços de encontro foram se

transformando. Não apenas se ampliam os virtuais, em detrimento do contato

presencial, como deixam de ser – tanto os virtuais como os presenciais - arena de

debates. O volume de informação é gigantesco, o fluxo intenso, mas o

conhecimento parece crescer na proporção inversa, já que é frequente não haver

conexões entre os fatos e todo este conhecimento corre o risco de se esvair como

água pelos dedos das mãos.

Aquele “frenesi de comunicação” e a “gigantesca dificuldade comunicativa”

referidos por Rodrigues (2006, p.56), nos parecem um estágio contemporâneo de

uma situação descrita por Walter Benjamin. A dificuldade em expressar ideias,

sentimentos, opiniões, experiências, já era observada pelo autor alemão, décadas

atrás:

São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede

num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se

estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a

faculdade de intercambiar experiências. Uma das causas desse fenômeno é óbvia:

as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até

que seu valor desapareça de todo. (Benjamin, 1994, pp.197-198)

Em outro texto, Benjamin atribui, em parte, esta “baixa das ações da

experiência” aos traumas provocados pela guerra (no caso, a 1ª Guerra Mundial,

de 1914 a 1918). Como destaca o autor, os combatentes voltavam do campo de

batalha silenciosos, “mais pobres em experiências comunicáveis” (Benjamin,

1994, p.115) e a sociedade via-se imersa em outro tipo de experiências,

“radicalmente desmoralizadas”, como a fome, a inflação, a decadência moral dos

governantes. Posteriormente, segundo ele, outra forma de miséria teria surgido,

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com o “monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem”

(Benjamin, 1994, p.115).

Olhando do século XXI, podemos avaliar que as reflexões de Benjamin,

ainda que pertinentes, carregam o peso de um pessimismo e um desencanto

decorrentes daquele momento histórico. Contudo, não podemos deixar de

observar que, ao lado de experiências inovadoras e promissoras, temos hoje o

permanente risco do esvaziamento dessas experiências, não pelo silêncio, mas

pelo excesso de “ruído”. Algo como a existência de um dispositivo, assim

definido por Ismail Xavier:

...a situação atual privilegia um senso de controle pela via da saturação e não pela

da ocultação das imagens. O ‘complexo exibicionário’, pelo qual os poderes sociais

ofereceram em espetáculo um mundo construído à sua imagem, é um dispositivo

eficiente de doação-administração de pontos de vista. (Xavier, 2008, p.180).

Voltando aos espaços de encontro, onde se pode “estar juntos”, nossa

proposta é refletir sobre experiências compartilhadas, entre elas o “contar

histórias”, as narrativas, as vivências, as memórias. O cinema e, num sentido

amplo, tudo que hoje, considerando as novas tecnologias, é conhecido como

audiovisual, constituem-se em suportes, meios, para contar histórias. Uma sessão

de cinema, numa sala convencional, num cineclube ou qualquer outro espaço,

como os que se multiplicam nos dias atuais, é capaz de agregar pessoas, de ser um

ponto de encontro para troca: receber / processar / discutir / internalizar. Por outro

lado, há também a possibilidade de se expressar criando filmes/vídeos, de narrar

por meio de imagens. Experiências neste campo chegaram inclusive às

comunidades indígenas, que vêm utilizando o audiovisual para registrar suas

atividades, suas tradições, suas práticas cotidianas, para se comunicar com outros

brasileiros e até com o mundo.83

A adoção de práticas artísticas (bem como desportivas) tem sido muito

difundida e debatida em projetos voltados para jovens em situação de

vulnerabilidade, de classes economicamente menos favorecidas, sem perspectivas

de um futuro produtivo e que os faça se sentirem realizados. Numa sociedade

marcada por profundas diferenças como a nossa, muitos são os grupos de

83

Ver o projeto Vídeo nas Aldeias - http://www.videonasaldeias.org.br/2009/ - acesso 10/02/12

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indivíduos que, em maior ou menor escala, ficam excluídos, impossibilitados de

ter acesso a uma formação que explore seu potencial. Ficam à margem das

oportunidades, que passam ao longe, fora do alcance de suas mãos. Alain Bergala,

relatando sua experiência pessoal, afirma que para esses ”deserdados, distantes da

cultura [...] a única chance de existir é resistir a partir de uma paixão pessoal”

(Bergala, 2008, p.13).

Esta paixão que permite resistir às adversidades e persistir na busca de

realização pessoal é feita de concretude e sonho, de razão e sensibilidade. Estética

e estesia, do grego aisthesia, carregam o significado do sentimento do belo, ou

“aquilo que me toca”. Nossa herança cultural, ligada ao pensamento grego,

dissociou a emoção da razão, negando à percepção ligada aos sentidos o papel de

fonte confiável de conhecimento. Entretanto, muito do que aprendemos se dá não

pela razão, mas pelas sensações, tanto as subjetivas (como alegria ou tristeza),

como as sensoriais (como tato ou olfato), como afirma Machado (2011).

Analisando o impacto do cinema sobre o espectador, Deleuze trabalha com

o conceito de “imagem-afecção”, em que se entrelaçam pensamento e emoção.

Reportando-se a Eisenstein, Deleuze assinala que “’o cinema intelectual’ tem por

correlato ‘o pensamento sensorial’ ou a ‘inteligência emocional’, e se não for

assim não vale nada”. E acrescenta que “o mais alto da consciência na obra de arte

tem por correlato o mais profundo do subconsciente, conforme um ‘duplo

processo’ ou dois momentos coexistentes”. (Deleuze, 2007, p.192).

Entendemos que estas questões são fundamentais nesta fase de profundas

mudanças paradigmáticas em que vivemos. Torna-se necessário buscar novos

caminhos e “pensar realmente qual é o tipo de conhecimento que nos pode levar a

atravessar da melhor maneira esse processo de transição”, como propõe

Boaventura de Sousa Santos (2001). O teórico português nos fala da necessidade

de pensar, mas vai além, invocando o sentimento que ultrapassa a razão, porque,

segundo ele, “pensar não é tudo, porque além de agir nós temos que sentir, nós

temos que criar formas de pensamento que sejam mais acolhedoras às emoções,

ao corpo, aos afetos, aos sentimentos” (Santos, 2001). Boaventura Santos

reconhece que não fomos treinados para assumir tal postura, mas as ações

coletivas de transformação social, afirma ele, exigem envolvimento emocional.

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No cenário contemporâneo, marcado por tantas incertezas, instabilidades,

descrenças, prazeres instantâneos e fugazes, Boaventura Santos nos convida a

refletir sobre o papel da arte, porque ela “é a pré-aparição das possibilidades

utópicas, a arte é o laboratório e a festa dessas possibilidades” e é hábil em

exprimir “as possibilidades contidas no real” (Santos, 2001). As palavras do autor

português podem ser traduzidas pela declaração do ator e dramaturgo Domingos

Oliveira que, com sua peculiar visão poética e carregada de imagens (afinal, ele é

também cineasta), define o que entende por arte: "A Arte, ela salta, melhor que o

gato. Por cima da aparência. E aquele que recebe a mensagem do Artista salta

também, por cima do muro sensorial e das limitações morais com que está

acostumado a perceber o mundo." (Oliveira, 2011).

De fato, a arte, e aqui focamos naquela representada pelo

cinema/audiovisual, é um poderoso instrumento nesse processo que leva o

indivíduo a se descobrir e a descobrir a paixão que o permitirá resistir, paixão

esta que pode ser pelo próprio cinema ou por outro objeto. Experimentar a arte

pode, tal como aconteceu com Bergala, “salvar” as crianças, jovens, e mesmo os

que já chegaram à maturidade, mas persistem na busca por conhecimento.

O cineasta Andrei Tarkovski considera que o objetivo da arte é “explicar ao

próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado

da sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição neste planeta, ou,

se não for possível explicar, ao menos propor a questão” (2010, p.38).

Um exemplo significativo da crença no cinema como fonte de

conhecimento para a vida é o oferecido por David Gilmour, um ex-crítico de

cinema, no livro O Clube do Filme. Gilmour relata a inusitada e corajosa

experiência que viveu com seu filho adolescente após propor ao rapaz que

deixasse a escola, onde era extremamente infeliz e parecia fadado ao fracasso, em

troca de assistirem juntos, em casa, a três filmes por semana. As sessões caseiras

eram seguidas de conversas não apenas sobre o aspecto técnico ou artístico dos

filmes, mas também sobre o que eles buscavam transmitir, que sensações

passavam, que reflexões provocavam.

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Gilmour aposta na perspectiva descrita por Aumont, acerca dos realizadores

de cinema: “ambição artística, ambição somente artesanal, pouco importa: o

cineasta é um homem que não pode evitar a consciência de sua arte, a reflexão

sobre seu ofício e suas finalidades, e, em suma, o pensamento” (Aumont, 2004,

p.7). Assistir a filmes nos leva a compartilhar esses pensamentos e,

eventualmente, acionar outros. Ao se colocar no lugar do realizador, aquele que

era apenas espectador pode experimentar esta linguagem, tal como ao escrever, o

leitor se transporta à condição de escritor. Em ambos os casos, se estabelece uma

relação entre o autor e sua subjetividade, o autor e o outro, o autor e o mundo que

o cerca, que ultrapassa o contato rotineiro, as relações cristalizadas pelo mero

convívio, desprovidas de um olhar mais atento e sensível.

4.2. A ELC – Uma proposta para além da inclusão social

Numa época de grande apelo visual em que as imagens estão por toda parte,

um dos meios que tem dado literalmente visibilidade à diversidade cultural, aos

discursos polifônicos (seguindo o conceito de Bahktin) é o audiovisual. As

oficinas e cursos se multiplicam, viabilizados por iniciativas privadas e por

políticas públicas da área cultural. A Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu

surge neste cenário, com sua proposta de inclusão não só social, mas subjetiva.

A Escola nasceu em 2006, de uma parceria da ONG Reperiferia84

, tendo à

frente Marcus Vinicius Faustini85

, com a Secretaria de Educação de Nova Iguaçu

e atuava no Projeto Bairro Escola do Município. Esta parceria foi desfeita em

2010, com a saída do Prefeito Lindberg Farias, eleito Senador. A iniciativa da

parceria havia sido tomada pelo Prefeito, ao conhecer o trabalho desenvolvido

pela ONG, especialmente com atores de teatro, em Santa Cruz. No começo desta

84

O website do Projeto Reperiferia (http://www.reperiferia.com.br/apresentacao.php) não vem

sendo atualizado. Acreditamos que as informações foram deslocadas para as páginas da ELC e da

Escola Livre da Palavra/Apalpe - (http://apalpe.wordpress.com/2011/06/01/escola-livre-da-

palavra/) – acesso em 15/12/11 85

Foi Secretário de Cultura de Nova Iguaçu e Assessor Especial de Cultura e Território da Sec.

Estado de Assistência Social e Direitos Humanos. Atualmente é Superintendente de Cultura e

Sociedade da Sec. Estadual de Cultura. http://www.cultura.rj.gov.br/equipe - acesso 21/01/12

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história está também o documentário Carnaval, bexiga, funk e sombrinha,

realizado por Faustini em 2006, e que ajudou a tornar a ONG mais conhecida86

.

Mesmo sem contar com novos parceiros, a ELC manteve as atividades com

os alunos da rede municipal, que continuam frequentando a Escola, somando-se a

eles, hoje, alunos da rede estadual. No comando da Escola estão Cristiane Braz

(Diretora) e Anderson Barnabé (Coordenador). Desde fevereiro de 2011 a ELC

conta com patrocínio da Petrobras, por meio dos recursos da Lei Estadual de

Incentivo à Cultura (vinculada ao ICMS)87

e desde maio do mesmo ano, mantém

parceria metodológica com a Universidade Federal Fluminense (UFF). A Escola

tem selo do Ministério da Cultura (MinC) para captar recursos pela Lei Rouanet.

Tal situação (patrocínio, apoio, parcerias) permanecia inalterada até a data de

conclusão desta pesquisa, em janeiro de 2012.

Os textos publicados no blog da ELC nos permitem acompanhar a rotina da

Escola, sua linha de ação, os cursos, as atividades dos alunos (crianças, jovens e

adultos), enfim, sua proposta de inclusão subjetiva. No final de 2011, a Escola

passou a contar também com um website.

O bairro de Miguel Couto, onde se situa a ELC (na Rua Santos Filho, 87),

está dentro da Unidade Regional de Governo URG VIII, que engloba os bairros de

Miguel Couto, Boa Esperança, Parque Ambaí, Grama e Geneciano, com cerca de

50 mil habitantes88

. Está a cerca de 7 km do centro de Nova Iguaçu, numa área

que ainda tem muito de rural. Mas se há verde, há também os feios sinais do

crescimento desordenado, do abandono, da falta de políticas públicas, do descuido

dos moradores. Ruas e calçadas são sujas e esburacadas, há grande número de

camelôs e mesmo as lojas atravancam o passeio com mercadorias em exposição.

Há uma única agência bancária. Possui duas escolas municipais: Ana Maria

Ramalho (próxima à ELC) e Janir Clementino Pereira, no centro, além de um

CIEP e escolas particulares.

86

Sobre as turmas de bate-bola, ou clovis, do Carnaval de subúrbio. Ver

http://escolalivredecinema.blogspot.com/search?q=bexiga+funk – postagem de 28/01/11 – acesso

15/12/11 87

Após algumas obras, a ELC foi reinaugurada em 26/02/11, já com o patrocínio da Petrobras -

http://escolalivredecinema.blogspot.com/search?q=petrobr%C3%A1s – acesso 15/12/11 88

Portal da Prefeitura de Nova Iguaçu - http://www.novaiguacu.rj.gov.br/bairros.php - acesso em

10/12/11

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Quando de nossas visitas ao local, fizemos registros fotográficos, alguns dos

quais inserimos aqui. Vê-se que a ELC, com sua fachada colorida e enfeitada com

aros de bicicleta, destoa do resto do bairro.

Figura 1 – Fachada e lateral da ELC

Figura 2 – Fachada da ELC

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Os espaços internos são limpos e organizados, há convidativas almofadas

coloridas tanto na biblioteca, como na entrada.

Figura 3 – Espaço com almofadas, na entrada.

A biblioteca, que leva o nome do cineasta Cacá Diegues, é envidraçada e

mantém um acervo com obras variadas, sobre cinema, artes e da literatura

brasileira.

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Figura 4 – Cantinho de leitura na biblioteca

Figura 5 – Biblioteca – visão geral

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Em maio de 2011 a ELC ganhou um espaço físico na UFF, em Niterói,

chamado Kumã. Desde então, o local abriga aulas de capacitação para os

mediadores da Escola. No website da Universidade, o espaço é definido como um

“Laboratório de pesquisa e experimentação teórica e prática da imagem”, onde

atuam pesquisadores e pós-graduandos, professores do Departamento de Cinema e

alunos de graduação, tendo à frente o professor Cezar Migliorin89

. No blog da

ELC, a inauguração do Espaço Kumã ganhou destaque:

As capacitações dos nossos mediadores são realizadas todas as segundas, ora na

ELC e ora em salas da UFF, mas ontem, dia 23 de maio às 16h, chegou o momento

tão esperado por todos nós: A inauguração do cantinho da ELC na UFF, chamado

KUMÃ.

Além dos coordenadores da Escola Livre de Cinema, Cristiane Braz e Anderson

Barnabé e dos professores da UFF e coordenadores da parceria ELC x UFF, Cezar

Migliorin e Eliany Salvatierra, estiveram presentes na solenidade de inauguração

do Núcleo Kumã, alunos e ex-alunos das duas instituições, professores e

coordenadores da UFF, além de parceiros, simpatizantes e torcedores das nossas

causas.

O Núcleo Kumã tem agora pela frente a seguinte tarefa: criar um diálogo e

interação voltada para um pensamento de mundo mais crítico e interativo através

do audiovisual e possibilitar relações humanas através desta linguagem, entre

academia e periferia, prática e teoria, clássico e popular.90

A Universidade disponibiliza ainda equipamentos para alunos da Escola e

há atividades interativas com os graduandos de cinema da UFF. Esta experiência

de ter como parceira uma universidade pública não é a primeira na ELC. Em

2009, a Escola manteve uma parceria com a Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ). Para 2012, há a possibilidade de ser criada, na grade curricular do

curso de Cinema da UFF, uma disciplina eletiva, ligada à ELC.

A Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu é uma experiência que parte de

uma perspectiva não propriamente de formar cineastas, mas se vale do audiovisual

para trabalhar o encontro com o território, com o outro e consigo mesmo.

Ressaltamos que o termo “audiovisual” tem sido entendido como um conjunto de

meios de exibição, que engloba desde o cinema às novas mídias digitais, passando

89

Ver http://www.uff.br/ppgcom/?page_id=1030 – acesso 06/02/12 90

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2011/05/kuma-um-espaco-de-

experimentacoes.html - postagem de 23/05/11 e

http://escolalivredecinema.blogspot.com/search?q=kum%C3%A3 – Postagem de 03/11/11 –

acesso 15/12/11

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também pela televisão. E vários cursos nesta área têm surgido nos últimos anos,

não apenas no Rio de Janeiro. Entre eles, a ELC destaca-se por ensinar não apenas

técnicas, a operação de equipamentos, mas também levar os alunos a pensar,

ativar sua capacidade de observação do mundo, partindo de seu próprio universo.

Buscam tanto o domínio da técnica, valendo-se dos recursos multimídia, como a

criatividade, o domínio das diferentes linguagens e o apuro estético e, assim, a

ELC vem formando técnicos, narradores, artistas.

Em textos postados no blog da Escola, em 2009, assim é definida sua

proposta:

A Escola Livre de Cinema é a primeira escola de audiovisual da Baixada

Fluminense e funciona desde julho de 2006. Sua metodologia articula três

conceitos – o corpo, a palavra e o território como elementos de expressão da

imagem e do som através de ações artísticas dentro e fora da sala de aula. Seu

conteúdo pedagógico aponta para o domínio das técnicas e para o encorajamento

estético, no sentido de estimular a criação e a produção audiovisual.91

Tendo como eixo principal, a prática de experiências com técnicas

cinematográficas em oficinas direcionadas para jovens, adultos e idosos, a Escola

pretende despertar nos participantes através do uso da câmera a necessidade da

percepção do outro. A apropriação da linguagem documental, o uso da oralidade

diante da câmera e a provocação que esta mesma câmera pode expressar

identidades e subjetividades a partir do olhar sobre o outro e do seu território

pautam as nossas ações cotidianas.92

A ELC funciona também como Ponto de Cultura do Governo do Estado,

oferecendo, aos sábados, cursos variados para o público em geral. Já foram

realizados cursos tradicionais para a área de cinema e audiovisual, como roteiro,

fotografia, iluminação. Em 2011, a ELC ofereceu novos cursos: Dublagem,

Audiovisual para Educadores, Blognovela e Videoclip para Youtube, este em

parceria com o coletivo Fora do Eixo93

, que cedeu as músicas.

A primeira turma da ELC formou-se em 2007. A partir daí, os cursos foram

sendo continuamente reformulados, sempre com a perspectiva de não se limitarem

ao ensino de técnicas, como operar câmeras, mas trabalhar paralelamente outras

instâncias do conhecimento. No ano de 2011, a Escola manteve no Curso Diário

91

http://www.blogger.com/profile/08356076540874983495 - Perfil no blog - acesso em 30/08/11 92

http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_04_01_archive.html - Postagem de 14/04/09 -

acesso em 05/07/11 93

Portal da rede Fora do Eixo: http://foradoeixo.org.br/ - acesso em 15/12/11

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para Crianças (CDC), voltado para estudantes, um total de 160 alunos, entre oito e

14 anos. A divulgação deste curso é feita em visitas às escolas da região. Cartazes,

banners, matérias veiculadas pela mídia em geral também ajudam a divulgar as

atividades da ELC. Eles literalmente “vão à caça” dos alunos e, desde a criação da

Escola, já contabilizam cerca de quatro mil, entre crianças, jovens e adultos.

Na ELC, as sessões de cinema geralmente acontecem às sextas-feiras e os

filmes exibidos têm ligação com o trabalho que está sendo desenvolvido. Por

exemplo, para trabalhos de ficção-científica94

, os alunos assistiram a filmes como

De volta para o futuro III (Robert Zemeckis, 1990)95

. O depoimento do aluno

Alexsander Norato, na rede social Facebook, sobre uma sessão de cinema na

ELC, é revelador:

Hoje na ELC assistimos um grande clássico, O Pequeno Príncipe. Filme muito bom

recomendo. Hoje após o filme refleti bastante, fora o que disse os outros gostei

muito! Hoje com Marina Rosa, Marina Almeida Gomes, e Anderson Barnabé foi

muito bom. Fazer cinema não é apenas criar um filme e sim muito mais, é se

expressar nele, cinema é tudo pra mim.96

A ELC também participa de eventos como a Teia na Baixada (que agrega

vários movimentos, ONGs, coletivos)97

e realiza o Iguacine - Festival de Cinema

de Nova Iguaçu, um espaço para exibição de filmes tanto de profissionais

consagrados como de iniciantes, inclusive os feitos pelos alunos da Escola. O

Iguacine é o primeiro, e por enquanto único, festival de cinema da Baixada

Fluminense e já teve três edições: 2008, 2009 e 201098

. Em 2011, o Iguacine não

pôde ser realizado, pois não foi incluído no programa apresentado à Petrobras, por

conta da urgência com que os trabalhos para efetivação da parceria/patrocínio

foram elaborados. O festival é uma das ações mais importantes da ELC, segundo

os próprios diretores, pois permite aliar as experiências realizadas na Escola com

o desenvolvimento do território, além de contribuir para formação de plateias para

94

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2011/07/o-super-computador-e-o-gigante-de.html -

postagem 06/07/11 - acesso 15/12/11 95

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2011/08/o-grande-final.html - postagem de

19/08/11 - acesso 15/12/11 96

http://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=145609085534028&id=100002548118232

- postado no perfil do aluno em 09/09/11 97

Ver http://www.overmundo.com.br/overblog/teia-baixada-2010 - acesso 15/12/11 98

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2010/04/iguacine-para-1200-criancas.html -

postagem de 20/04/10 - acesso 15/12/11 e http://escolalivredecinemani.com.br/v2/?page_id=6 –

acesso 30/01/12

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o cinema/audiovisual. E outras atividades, como contação de histórias, oficinas,

acontecem paralelamente à exibição dos filmes e debates.

Em janeiro de 2011, a ELC participou do evento Apalpe – a palavra da

periferia99

, organizado pela Escola Livre da Palavra, juntamente com várias

outras instituições. A programação do Apalpe incluiu, além de debates e esquetes

de teatro, a exibição de oito vídeos criados pelos alunos da ELC a partir do livro

Guia Afetivo da Periferia, de Marcus Vinicius Faustini. Os autores revelaram suas

diferentes leituras sobre o território e como se relacionam com ele, explorando

suas memórias, e tiveram seus trabalhos avaliados por uma banca composta por

profissionais da área de cinema. O evento aconteceu na Lapa, centro do Rio de

Janeiro.

Assim, os alunos da ELC e seus trabalhos vão cruzando as fronteiras de

Nova Iguaçu. Alguns ex-alunos da Escola ingressaram em cursos de cinema de

nível superior. Entre estes, está Leonardo Souza, cujo documentário Um minuto é

um milagre que não se repete100

foi selecionado para o Festival do Rio 2010. O

curta-metragem Mata-Sete, produzido pelas crianças do Programa Bairro Escola,

foi selecionado para o Programa Vídeo Fórum 2009, que integra o Festival do Rio

e exibe filmes realizados por crianças e jovens de até 18 anos, de vários países101

.

As atividades da ELC geram também um movimento para o fortalecimento

e criação de novos espaços para exibição, por parte de alunos e ex-alunos da

Escola. Eles vão aos poucos se juntando aos cineclubes pioneiros que já existem

na Baixada Fluminense, como Buraco do Getúlio (Nova Iguaçu) e Mate com

Angu (Duque de Caxias), Centro Cultural Donana (Berfold Roxo), entre outros.

Não são apenas novas telas para a exibição, mas também espaços para acolher e

difundir a diversidade cultural, inclusive de produções independentes. Além de

exibir filmes, promovem debates e outros eventos artísticos, com música, teatro,

performances e, junto com a ELC, ampliam a rede do audiovisual na periferia.

99

Ver http://apalpe.wordpress.com/ - acesso em 20/01/12 100

Portal Curta Doc: http://www.curtadoc.tv/curta/index.php?id=597 – Página do Cinema/Globo

Filmes: http://paginadocinema.com.br/festivais/index/73/6 - acesso em 12/12/11 101

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009/09/video-forum.html - postagem de

19/09/09 - acesso 16/12/11

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Atuando desde 2006 numa região praticamente desprovida de opções

culturais e de lazer, junto a uma população de baixa renda, mas não exatamente

carente ou em situação de risco, a proposta da ELC é de promover inclusão, não

apenas social, mas aquela “inclusão subjetiva” de que falamos no Capítulo

anterior. Pensando em Bergala, podemos dizer que a ELC existe para “salvar”

aqueles jovens, não da miséria material, mas do anonimato, de uma vida

anestesiada (em oposição à estesia), sem perspectiva criativa, de estreitos limites.

A inclusão subjetiva confere a possibilidade de resistir, na concepção de Bergala

(2008), e vai além: dá o direito de desejar, de sonhar. Não se trata apenas de

oferecer oportunidade de inserção de cidadãos na sociedade ou profissionais no

mercado de trabalho, mas de sujeitos criadores, nas diversas esferas da vida

pública e na vida pessoal. Enfim, de viabilizar que uma vida se expresse em todo

seu vigor, com todo seu potencial.

A proposta de inclusão subjetiva na ELC, tal como concebida pelo Projeto

Reperiferia, pretende dar oportunidade de elaborar narrativas, de se expressar pela

linguagem audiovisual, a quem já dispõe de algum equipamento (câmera,

computador, celular) ainda que da própria Escola. Anderson Barnabé, durante

uma de nossas entrevistas, explica que eles não buscam uma inclusão social, que

se destina a pessoas em estado de carência material. Sua proposta difere, por

exemplo, das ONGs Nós do Morro – voltada para formação de atores que buscam

se inserir no mercado - ou Afroreggae - que se dedica a jovens e adultos em

situação de risco/criminalidade.

Durante gravação de matéria para um telejornal, Cristiane Braz assim falou

sobre a missão “alfabetizadora” da ELC:

Nossa Escola além de ensinar audiovisual, também alfabetiza as crianças, não o

alfabetizar de B com A é BA, mas sim o alfabetizar de aprender a ler o mundo, a

sua rua, o seu bairro, o seu território... 102

Além dessa aproximação com o território, a integração dos familiares e o

apoio que estes oferecem são também marcas da ELC. Como veremos na análise

dos questionários, vários alunos vieram para a Escola incentivados por colegas e

102

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_06_01_archive.html - Postagem de

16/06/09 – acesso 15/08/11

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não raro trazem outros parentes e amigos. Numa postagem de junho/2009, esta

aproximação fica evidenciada:

Vários visitantes acompanharam a rotina dos alunos nos últimos dias, entre eles

dois animaizinhos: um passarinho, “Cussusuna”, da aluna Micaele e um

cachorrinho, “Bion”, que carinhosamente recebeu o nome do professor. “Quero

que ele faça parte do filme”, diz Karina, dona do “Bion” e aluna da ELC. Também

tivemos a visita de estudantes da Escola de Pesquisas de Nova Iguaçu, que ficaram

dois dias acompanhando as aulas. Para finalizar, o aluno Pedro Paulo trouxe fora

do horário da sua aula, o seu padrasto. Pedro queria lhe mostrar sua pasta (cada

aluno da ELC tem uma pasta para guardar seus materiais produzidos em aula), os

dois ficaram dividindo opiniões durante um tempo. Seu padrasto deu-lhe umas

dicas de desenhos, da forma escrita e saiu da Escola bastante contente com o

resultado visto.103

Sendo uma proposta inovadora de ensino livre, e por estar num local onde

não são comuns atividades desse tipo, a ELC tem alcançado visibilidade na mídia,

procurando esquivar-se àquele tipo de abordagem, mencionado anteriormente:

uma escola para tirar jovens da pobreza ou da marginalidade. Suas atividades já

foram objeto de matérias tanto na mídia impressa, como na televisão, como estas:

- Jornal O Globo – edição de 04/10/2011

Usina de ideias em Nova Iguaçu – matéria de Martha Neiva Moreira,

publicada na Revista Razão Social no.127, encartada no jornal. A matéria focaliza

o aspecto educacional, destacando a procura de educadores pelos cursos

oferecidos na ELC, atraídos por sua metodologia, que privilegia a criatividade.

- TV Globo / RJTV - 30/08/11

Jovens que atuam como Parceiros do RJ, em Nova Iguaçu, estiveram na

ELC, onde entrevistaram o Coordenador Anderson Barnabé, mediadores e alguns

alunos, tanto do curso Diário para Crianças como do curso de Dublagem. A

reportagem, de pouco mais de 3 minutos, mostra as atividades de uma turma num

trabalho de produção de vídeos de animação e também uma aula de dublagem,

ministrada pela atriz e dubladora Fernanda Crispim.104

- TV Brasil – Revista do Cinema Brasileiro – 05/11/09

103

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_06_01_archive.html - postagem de

05/06/09 – acesso 15/08/11 104

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=nTtH8Fbf1M0 – acesso 12/12/11

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108

O programa vai até Nova Iguaçu durante o II Iguacine (Festival de Cinema

de Nova Iguaçu), realizado em 2009. São entrevistados diretores e produtores,

como Luiz Carlos Barreto, que falam da importância de se levar o cinema a

plateias que não têm acesso fácil às produções. O programa destaca a variedade de

filmes exibidos e as atividades paralelas às sessões, como oficinas e debates que,

como comenta o produtor L.C.Barreto, revelam tudo que envolve a criação de um

produto audiovisual.105

- TV Globo – RJTV – Coluna Arte pra Vida – 24/06/09

O dançarino Carlinhos de Jesus, responsável pela Coluna Arte pra Vida

daquele telejornal, esteve na ELC para conhecer o trabalho desenvolvido pela

Escola e mostrar a capacidade de transformação da arte, principalmente em locais

de periferia. O programa foi gravado em meio a muita animação, com as crianças

participando ativamente.106

- TV Brasil – Repórter Brasil - Outro Olhar – 10/11/08

Este quadro é um espaço criado pela emissora para exibir vídeos enviados

pelo público. Em novembro de 2008, exibiram um vídeo produzido pela ELC

mostrando a atuação de grafiteiros que mudaram a aparência de muros naquela

cidade. Os próprios moradores oferecem os muros de suas casas para serem

grafitados, criando um cenário colorido. A Via Light, que corta o município de

Nova Iguaçu, exibe hoje vários desses muros, onde se pode ver desde a

reprodução de fachadas, simulando portas e janelas, a flores e rostos de anônimos

e líderes mundiais, como Gandhi. É a ELC, em parceria com os artistas locais, se

fazendo presente no cotidiano das pessoas que transitam pela cidade.107

105

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=flzkHzsxczE – acesso 12/02/12 106

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_06_01_archive.html - acesso 06/01/12 107

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=P5KElbmHw6w – acesso 12/12/11

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109

4.2.1. Um relato pessoal

A primeira vez em que ouvi falar da Escola Livre de Cinema de Nova

Iguaçu (ELC) foi durante uma mesa de debates no Festival de Cinema de

Tiradentes (MG), em 2009. O então Secretário do Audiovisual (SAV/MinC),

Silvio Da-Rin, mencionou a existência da escola, ao falar sobre espaços para

formação de pessoal na área do audiovisual, no Brasil.

Surpresa (e feliz) com a existência de uma escola de cinema na Baixada

Fluminense, local historicamente associado à violência, pobreza e todo tipo de

carência, passei então a acompanhar as atividades da ELC por meio de seu blog.

Percebi então que tinha ali um interessante estudo de caso para o projeto de

Mestrado que eu vinha gestando e no qual pretendia abordar experiências

transformadoras, no âmbito pessoal e social, mediadas pelo cinema.

Minha primeira visita à Escola aconteceu em 06/09/10, acompanhada de um

ex-aluno, Vitor Clin, hoje estudante de Comunicação Social na PUC-Rio.

Conversei com Luana Pinheiro, produtora da Escola e também responsável pelo

cineclube Buraco do Getúlio. Na ocasião, a parceria da ELC com a Prefeitura de

Nova Iguaçu já estava sendo desfeita (depois da posse de Sheyla Gama, substituta

de Lindberg Farias, eleito Senador) e, portanto, a Escola deixava de atuar no

Programa Bairro Escola da Prefeitura daquele município108

.

Voltei a Miguel Couto em 18/11/10 quando a Escola atravessava um

momento de incertezas quanto à continuidade de seu trabalho naquela

comunidade, devido à falta de parcerias, de patrocínio. O Ponto de Cultura (do

Governo Estadual) estava consolidado, mas as atividades com os alunos da rede

pública estavam ameaçadas. Algum tempo depois, a Petrobras assumiu o papel de

patrocinadora da ELC, que pôde assim não apenas manter, mas mesmo ampliar

suas atividades. Veio também a parceria com a Universidade Federal Fluminense

(UFF) e foram criados um curso de extensão e um espaço físico na Universidade

dedicado à ELC (Espaço Kumã).

108

A Escola Livre de Música que também funcionava em Nova Iguaçu já havia fechado as portas,

por falta de patrocínio.

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110

Numa terceira visita, em 30/08/11, apurei que a Escola já atendia não

apenas alunos da rede pública municipal, mas também da rede estadual e mesmo

de escolas particulares. Mantinha em pleno funcionamento os espaços abertos à

comunidade, como a biblioteca e os computadores (seis máquinas doadas pela

Prefeitura, quando ainda havia a parceria com o Programa Bairro Escola) com

acesso à internet. Os serviços do provedor são pagos pela ELC com os recursos

advindos de suas parcerias, já que todos os cursos são gratuitos. Durante esta

visita, por volta das 11 horas, um ruidoso grupo de cerca de 20 alunos da rede

municipal chegava à ELC, disputando espaço nas mesas dos computadores. A

funcionária Renata Xavier, equilibrando delicadeza e indispensável firmeza,

colocava ordem no grupo, garantindo que todos pudessem dispor de alguns

minutos (30, quando há pouco movimento, e 15 nas horas de rush) em frente

àquelas telinhas mágicas. As pesquisas para os deveres escolares são priorizadas,

mas o acesso às redes sociais, por exemplo, não é vedado. Apenas os jogos ficam

de fora. A prioridade do uso desses computadores é dos alunos da ELC, mas,

estando as máquinas ociosas, o acesso é liberado, gratuitamente.

Nesta visita, combinamos que eu enviaria algumas perguntas para serem

respondidas pelos alunos (crianças e adultos) de todos os cursos. Como nem todos

têm acesso constante à internet (o número de residências no bairro com acesso à

internet, especialmente banda larga, é pequeno), ficou combinado que os

questionários seriam disponibilizados em papel para serem respondidos

manualmente. Os questionários foram enviados duas semanas depois, e

retornaram em novembro de 2011. Dos 60 distribuídos, 45 foram respondidos.

Voltei ainda a Miguel Couto em 09/12/11 para a abertura do Seminário

Redes de Formação para o Audiovisual109

, ocasião em que foram entregues os

certificados de conclusão dos cursos para adultos. A sala estava cheia, alguns pais

de alunos estavam presentes, além de amigos e visitantes, que puderam assistir à

projeção dos vídeos feitos pelos alunos e a uma demonstração ao vivo do trabalho

de dublagem. A emoção dos formandos era visível e em seus trabalhos pôde-se

observar a diversidade das técnicas e abordagens utilizadas na ELC.

109

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2011/12/rede.html - postagem de 06/12/11 -

acesso 10/12/11

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111

Figura 6 - Alunos da turma de Dublagem com a diretora Cristiane Braz

4.2.2. A experiência estética e a práxis na ELC

Na ELC, os alunos experimentam atividades que, aparentemente, nada têm a

ver com o ensino de cinema, como recolher objetos em seu território, participar de

jogos, brincadeiras, criar desenhos, bonecos, criar e vestir parangolés110

, além da

leitura de obras clássicas e populares. São experiências que trabalham diferentes

instâncias da sensibilidade dos alunos, suas identidades, suas trajetórias

familiares, pessoais. Assim, eles trabalham roteiro, story-board, utilizam

programas de computador como Photoshop e After Effects, para contar, por

exemplo, as histórias criadas a partir de contos de Câmara Cascudo, ou para olhar

criticamente, com boas doses de humor, a “vizinha fofoqueira”, uma das

animações de maior sucesso da ELC, ou ainda as lendas de seu bairro, como a

110

Espécie de ampla capa para o corpo, criada pelo artista plástico Hélio Oiticica, que considerava

essas criações “anti-arte por excelência”. http://educacao.uol.com.br/biografias/helio-oiticica.jhtm

- acesso 20/01/12

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112

“árvore grávida”, que foi inclusive assunto de matéria veiculada no Fantástico, da

TV Globo111

.

A Escola Livre de Cinema está trabalhando quatro Contos diferentes de Câmara

Cascudo, cada turma de 25 alunos ficou responsável na produção de um dos

Contos.

- Aprendi aqui na Escola Livre de Cinema a mexer nas câmeras digitais, mas

minha maior dificuldade é fazer os planos e minha maior facilidade é fotografar e

fazer personagens quando as cenas são em forma de teatro. Diz a aluna Michele

Souza da Silva, 10 anos112

Esta mistura de técnicas e expressões artísticas mostra-se interessante pois,

de fato, as artes se interpenetram, completam-se e, por diferentes caminhos, vão

tocar a sensibilidade de cada um. Música, dança, pintura, escultura, teatro,

literatura se relacionam entre si, dando e pedindo emprestados sons, cores,

imagens, movimentos, formas, palavras. Elevado à condição de arte, o cinema traz

em si um conjunto de todas essas manifestações artísticas e, com elas, vem

mantendo um vibrante diálogo, como descreve José Carlos Avellar, ao analisar

adaptações literárias para as telas. Avellar enumera pintores (como Wassily

Kandinsky) e músicos (como Arnold Schönberg) que se dedicaram a ambas as

artes, para melhor pintar ou compor (Avellar, 2007, pp.34-35). E, observando a

pintura e pensando o cinema, o autor vê nas maçãs pintadas por Paul Cézanne

indícios da montagem cinematográfica:

A pintura fez cinema antes do cinema. Basta lembrar os planos rápidos e coloridos

que compõem as maçãs de Cézanne. [...] A pintura solucionou questões de

montagem antes do cinema abrir a discussão sobre os diferentes modos de colar

uma imagem ao lado da outra. (Avellar, 2007, p.15)

Flávia Cesarino Costa traz para o século XXI essa reflexão sobre o

intercâmbio entre as artes, observando que a interação do cinema com outras

expressões artísticas (e mesmo sua influência sobre elas) envolve também as

tecnologias atuais:

111

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009/10/uma-arvore-gravida.html - postagem de

09/09/09 - acesso 13/12/11 112

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_06_01_archive.html - postagem de 17/06/09

- acesso 15/08/11

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Seria leviano ignorar o fato de que o cinema possui uma gramática dominante.

Muitos a consideram como a sua linguagem, outros como uma linguagem possível.

Mas as outras linguagens audiovisuais não deixam de ser uma alternativa e uma

referência dialética a esta gramática dominante. E, de qualquer um destes pontos de

vista, não se pode deixar de reconhecer que a gramática do cinema transbordou os

limites do especificamente fílmico, tornou-se referência para todas as técnicas

audiovisuais e até para áreas não visuais, como a música e a literatura. Em sentido

inverso, outras práticas audiovisuais têm invadido o cinema em resposta a este

diálogo: a televisão, as imagens sintéticas, a holografia, os videogames, etc. (Costa,

2005, p.98).

A proposta da ELC para trabalhar com e pelo cinema lança mão de todas

essas possibilidades, permitindo a seus alunos transitarem de uma experiência

estética, sensorial, criativa, para outra, lendo e relendo seu universo, seu território.

Quando ainda atuavam no Programa Bairro Escola, os professores da ELC

criaram a atividade de “coletores de imagens”, na qual os alunos fotografam seu

bairro, sua vizinhança, num processo que estimula o resgate da história do local

onde vivem, o contato com os vizinhos, a preservação da memória, o

reconhecimento e valorização do território e da identidade.

Estas expressões do cotidiano e os filmes daí originados (alguns dos quais

comentamos no subitem 4.2.4) permitem que os jovens falem por si mesmos,

deixando de ser apenas objeto (vistos de fora) para serem autores. E é importante

destacar que os trabalhos que vêm sendo realizados não são apenas resultado de

uma tarefa que se dá aos jovens para mantê-los ocupados, como muitas vezes se

supõe ser o principal objetivo de entidades do terceiro setor, ou vinculadas a

empresas privadas ou mesmo públicas, cujo alvo são os jovens e crianças de baixa

renda e/ou em situação de vulnerabilidade social. Produções oriundas de escolas

como a ELC já ultrapassam um primeiro momento que busca definir identidade,

território (importantes, mas não o fim em si) e têm resultado em filmes criativos,

tanto do ponto de vista da narrativa como estético.

A expressividade e o significado de produções audiovisuais geradas fora dos

ambientes formais são o tema de artigo de Ivana Bentes, no qual a autora analisa

as produções da TV Morrinho113

, na favela do Pereirão (bairro de Laranjeiras).

Segundo Ivana Bentes, há uma “transmutação ou fusão da vida em linguagem” e

ela destaca como “a brincadeira dos meninos da favela, aquilo que era o não-

113

Ver http://www.morrinho.com/Morrinho/Projeto_Morrinho___Uma_Pequena_Revolucao.html

- acesso em 04/12/10

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114

valor, [...] se tornou valor, estética, trabalho-vivo, mobilizando a vida de cada um

como um todo” (Bentes, 2010, p.2).

Igualmente, o cotidiano dos meninos e meninas de Miguel Couto – ainda

que não moradores de favelas - torna-se valor, desvelado pelo seu olhar atento,

mas livre do peso do “método mesquinho”, olhar de “quem vira e revira o seu

objeto, quem questiona e o apalpa.” como faz o ensaísta, na concepção de Adorno

(2003, pp.34-35). Ainda que guardando as devidas proporções entre a densidade

do texto do filósofo alemão e a espontaneidade dos alunos da ELC, podemos dizer

que estes olham o mundo de uma perspectiva peculiar, com “liberdade de

espírito”, com “a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha

de se entusiasmar com o que os outros já fizeram” (Adorno, 2003, p.16).

O advento de novas tecnologias foi (e é) um grande facilitador para quem

pretende trabalhar com e pelo cinema, inclusive para a prática proposta por

Bergala, que, anos antes, no Centro Educacional de Yerres, já sentia necessidade

de preparar o caminho para esse aprendizado. Bergala elaborou um método para

abordar a narrativa cinematográfica por meio de um jogo de slides e adotou

também práticas, como cursos e workshops, direcionados a públicos ecléticos,

especialmente aqueles não habituados ao cinema (2008, pp.17-18).

Bergala viu neste momento de mutação, de revolução tecnológica, o

“momento ideal para formular uma hipótese nova” (Bergala, 2008, p.23). Fugindo

a uma postura passiva diante da produção de culturas “jovens”, altamente

rentáveis e, por isso, fortalecidas e mantidas pela mídia, inclusive o cinema, e não

se entregando à crença de que o conflito de gerações impediria a transmissão de

“uma cultura comum entre pais e filhos” (Bergala, 2008, p.23), o pesquisador

francês formulou sua “hipótese-cinema” certo de que a técnica deveria ser posta

como aliada à educação para a vida, tanto pelo resgate de obras clássicas, como

pela possibilidade de se criar novas leituras do mundo.

Godard também enfatiza a práxis na abordagem do cinema junto aos alunos,

propondo um ensino menos teórico, pelo qual o aluno vivencie concretamente o

processo de criação de um filme (Godard, 2006, p.242). Este processo requer

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115

alguma disciplina e a autoridade dos professores ou mediadores, como se

depreende da postagem no blog da ELC:

Os alunos criaram em conjunto uma história, depois passaram para as aulas de

técnicas de decupagem e agora o Roteiro já finalizado, parte para as aulas técnicas

de Produção. Hoje foi o dia da escolha do figurino e os últimos detalhes do que

será preciso para o Set de Filmagem. Vale ressaltar que o foco não está sendo o

produto final, (e talvez nem tenha um produto final) mas sim o domínio dos alunos

com a parte técnica.114

É relevante observar que o surgimento do digital, e com ele uma grande

variedade de aparatos, trouxe também uma discussão a respeito do valor artístico,

estético das obras. Ivana Bentes (2003) aborda esta tensão na relação entre

cineastas e videomakers, observando que, enquanto estes desqualificavam o

“cinematográfico” como signo de uma modernidade já em extinção, aqueles

identificavam o vídeo como mero suporte que, na verdade, trazia como novidade

experiências que o cinema já havia realizado, com maior radicalidade. A autora

entende que, atualmente, “a percepção da hibridação entre os meios é dominante,

assim como sua dupla potencialização” (Bentes, 2003). Segundo ela, o vídeo

aparece como potencializador do cinema e vice-versa.

É interessante, aqui, retomar o texto de Flávia Cesarino Costa, onde ela,

reportando-se a Arlindo Machado, observa uma identificação entre os primeiros

filmes e os vídeos de hoje. Características típicas do vídeo são encontradas no

primeiro cinema, como o ambiente onde são exibidos e o pouco controle da

mensagem, pelo autor, além da rápida sucessão de imagens (Costa, 2005, p.99).

Voltamos aqui a enfatizar que o aparato tecnológico é apenas o suporte e, na

relação com os objetos, o mais importante não é o objeto em si, mas a interação

do indivíduo com ele. As facilidades trazidas pelas novas tecnologias, do mesmo

modo que podem ampliar as possibilidades de comunicação, favorecer a

pluralidade das narrativas e a expressão artística, podem também banalizar a arte.

A internet, por exemplo, é um gigantesco palco virtual aberto à difusão de

qualquer criação e adequado à substituição frenética de produtos que hoje

constatamos. No cinema e em várias outras mídias, surgem trabalhos

pretensamente artísticos, que confundem arte com o mero uso dos recursos

114

Ver http://escolalivredecinema.blogspot.com/2009_10_01_archive.html - Postagem de

30/10/2009 - acesso 10/08/11

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116

tecnológicos. Martín-Barbero aponta uma distorção acerca da interpretação do

famoso texto de Walter Benjamin115

sobre a morte da aura, afirmando que ele,

“reduzido a umas tantas afirmações sobre a relação entre arte e tecnologia, tem

sido convertido falsamente em um canto ao progresso tecnológico no âmbito da

comunicação ou tem-se transformado sua concepção da morte da aura na da morte

da arte.” (Martín-Barbero, 2009, p.81).

Aquele que está por trás da câmera é que fará um filme que poderá ou não

tocar, abalar, por em movimento, o espectador. Segundo Godard, “há dois níveis

de leitura num filme: o visível e o invisível. O que você põe diante da câmera é o

visível. E se só houver isso, o que você faz é um telefilme” (Godard, 2006, p.246).

Ou um videoclipe, talvez, ou um filme caseiro para registrar momentos da família

ou dos amigos, filmes que têm seu valor, no contexto em que foram realizados ou

quando inseridos em outros (no caso de novas obras produzidas com imagens de

arquivo), mas é pouco provável que sejam expressões verdadeiramente artísticas,

considerando cinema e arte com todo seu potencial transformador como são

abordados aqui.

Arlindo Machado, comentando a posição defendida por alguns

documentaristas de que é essencial não intervir no que é captado pela câmera,

afirma:

Se o cineasta se recusa a falar num filme, ou seja, intervir, interpretar, reconstituir,

quem vai falar em seu lugar não é o “mundo”, mas a Arriflex, a Sony, a Kodak,

enfim, o aparato técnico. Sabemos muito bem que o dispositivo

fotocinevideográfico não é nem de longe inocente. (Machado, 2003, p.67)

Assim, os alunos da ELC, entre a câmera que aprendem a operar e o objeto

filmado, se inserem, colocando sua percepção do mundo. Eles vão tomando

posição, assumindo seu lugar ao realizarem seus trabalhos, tornando-os “aquilo

que todo audiovisual é na sua essência: um discurso sensível sobre o mundo”

(Machado, 2003, p.68). E deste modo, ainda que não se deem conta, vão

construindo caminhos para reverter os processos de exclusão, não apenas para

suas próprias vidas, mas para a comunidade, a família, o contexto onde se

inserem. Com o resgate da memória trabalham contra o esquecimento e falta de

115

A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras Escolhidas. Vol.I

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visão do mundo e da história como uma construção social; dando visibilidade às

expressões artísticas de setores da sociedade menos favorecidos economicamente,

enfrentam o alheamento, ganham visibilidade. Trabalhando em grupo e num

ambiente que é aberto à comunidade (computadores e biblioteca), se distanciam

do sentimento de individualismo; com valores éticos, fortalecimento da

autoestima e autoconhecimento podem se ver mais como cidadãos e menos como

meros consumidores. E no respeito ao outro vencem preconceitos e derrubam

estigmas.

Marcus Vinicius Faustini (2009), o idealizador da ELC, falando de novas

práticas para o ensino, lembra que a escola é o primeiro lugar onde as crianças

experimentam o mundo. Deste modo, a escola tem de abrigar a diversidade que

existe fora dela. Faustini vê o professor mais como um mediador, que deve se

apresentar com sua identidade e lançar mão de estratégias individuais no cotidiano

da sala de aula.

Fazendo o melhor uso das novas tecnologias, a ELC contribui para o resgate

de práticas culturais, como cineclubismo, debates, saraus, mediadas pelo cinema e

literatura. Oferece mecanismos para que o jovem possa se inserir criticamente na

dinâmica do mundo contemporâneo, convivendo com a realidade de seu tempo,

mas também questionando o consumo irresponsável, a degradação ambiental, a

“lógica” do mercado, a “sociedade do espetáculo”.

4.2.3. Conhecendo os alunos da ELC

No final de setembro de 2011, foram enviados para a ELC 80 questionários

iguais para os alunos de todas as turmas (crianças/adolescentes e adultos). Em

novembro, retornaram 45 questionários respondidos, total ou parcialmente. Foram

também enviados, naquela mesma ocasião, 20 questionários para

pais/responsáveis de alunos, dos quais dez nos foram devolvidos respondidos, em

dezembro de 2011.

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Observou-se que, em alguns casos, houve alguma ou bastante dificuldade

em compreender o que estava sendo solicitado. As respostas são por vezes

confusas e há a ocorrência de vários erros de ortografia e concordância

(especialmente entre crianças e adolescentes), confirmando os dados que

mencionamos nos capítulos anteriores sobre as deficiências na educação formal.

Ao transcrevermos as respostas, fizemos as correções para melhor compreensão

do leitor e para não expor os alunos, já que nosso interesse é o conteúdo e não a

análise daquelas deficiências.

No Quadro 2 temos um perfil resumido dos alunos que participaram da

pesquisa:

TURMA ALUNOS IDADE / PROFISSÃO ESCOLARIDADE

Blognovela 3 16 – Estudante

19 – Aux. Administrativo

25 - Hoteleiro

Ensino Médio

Audiovisual para educadores

1 21 - Professora Ensino Médio

Extensão Cinema – parceria com UFF

5 22 – Designer freelancer

23 – Prof. Ed. Física

23 – Não informado

41 – Técnico Telecomun.

53 - Empresário

Superior (1)

Ensino Médio (4)

Dublagem 4 19 – Não informado

19 – Não informado

29 – Operador sistema de alarme

38 – Agente comunitário de saúde

Ensino Médio

Curso Diário para Crianças (CDC)

32 Entre 10 e 16 anos – Todos são estudantes

Ensino Fundamental (entre 3º e 9º anos)

Quadro 2: Perfil dos alunos.

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A faixa de idade é ampla: de 10 a 53 anos. É também diversificada, no

caso dos adultos, a profissão. Quanto ao local onde moram, a maioria dos alunos

reside no município de Nova Iguaçu ou adjacências (Belford Roxo, Queimados),

mas há alunos provenientes de alguns bairros do Rio de Janeiro (Anchieta, Méier).

A disponibilidade em se deslocar para Miguel Couto, aos sábados, para os que

moram mais distante, alguns deles após uma semana de trabalho, demonstra o

grande interesse que os cursos da ELC despertam e de como iniciativas

semelhantes teriam repercussão entre pessoas que moram em locais onde as

oportunidades são escassas.

Foi solicitado aos alunos que atribuíssem conceitos de 1 a 5 (sendo 1 o

menor e 5 o maior) a alguns itens relativos à Escola e sobre o que ela lhes

proporciona. Na média, considerando os alunos das turmas de adultos (13), os

conceitos atribuídos foram:

ITEM CONCEITO (MÉDIA)

Os professores/mediadores 4,76

Biblioteca/leitura 4,76

O convívio com os colegas 4,53

As atividades em geral 4,46

Aprender uma profissão 4,46

Ampliar sua cultura geral 4,38

Assistir a filmes* 3,83

Descobrir mais sobre si mesmo 3,83

Conhecer melhor seu bairro** 2,66

Quadro 3: Conceitos - alunos adultos

*A exibição de filmes não faz parte das atividades rotineiras dos alunos das

turmas de adultos.

**Esta pergunta se aplica às turmas de crianças/adolescentes que lidam com a

questão de território em suas atividades.

Havia ainda a opção de apontar um item que não estivesse na lista. Quatro

alunos responderam, mencionando (todos com conceito 5): incentivo à cultura,

oportunidade, organização, qualidade, gratuidade, comprometimento da equipe.

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Considerando os alunos das turmas do Curso Diário para Crianças (32), os

conceitos médios atribuídos estão indicados no quadro a seguir. Alguns alunos

não responderam ou o fizeram parcialmente, outros apenas marcaram com “X”

alguns itens, sem atribuir conceito.

ITEM CONCEITO (MÉDIA)

Os professores/mediadores 4,88

Assistir a filmes 4,53

As atividades em geral 4,44

Aprender uma profissão 4,38

Ampliar sua cultura geral 4,11

Descobrir mais sobre si mesmo 4,00

O convívio com os colegas 3,71

Biblioteca/leitura 3,57

Conhecer melhor seu bairro 3,50

Quadro 4: Conceitos - alunos do curso para crianças.

Para o item aberto (outras coisas), houve nove respostas indicando: diversão

com os colegas, contato com os professores e o acesso a computadores/internet.

Observa-se que as crianças/adolescentes atribuíram maior conceito ao

contato com os professores/mediadores (4,88), seguido da exibição de filmes

(4,53). O conceito 3,71 para o item “convívio com colegas”, que entre os adultos

foi maior, possivelmente se justifica porque eles já desfrutam desse convívio na

escola formal (Ensino Fundamental). O conceito maior (4,53), entre os adultos,

para esse item, denota a importância que tem para eles o convívio, a proximidade,

o compartilhamento de experiências, ações que geralmente decrescem com o

amadurecimento/envelhecimento, quando se deixa de estudar ou trabalhar.

A motivação/interesse para procurar os cursos da ELC destacou

principalmente o desejo de realizar/participar de atividades ligadas às artes e a

preocupação em investir numa carreira/profissão. Algumas respostas revelam que

a pergunta não foi bem entendida, principalmente para os mais jovens.

Considerando as respostas mais objetivas, temos:

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MOTIVAÇÃO/INTERESSE

OCORRÊNCIAS

Gosta de cinema/desenho/animação/teatro/cultura em geral

11

Investir numa profissão/atualizar currículo 9

Influência de colegas e/ou da família 5

Gratuidade / proximidade 3

Acesso a computador 1

Ocupar o tempo 1

Quadro 5 - Motivação

Interessante observar a associação que alguns alunos fazem entre as

atividades da ELC e uma profissão, não necessariamente ligada à realização de

filmes, à elaboração de roteiros ou animações. Em resposta a perguntas sobre a

motivação para entrar para a Escola ou quanto à importância do que aprendem de

um modo geral, foi citado:

“Eu acho (importante) porque primeiramente meu sonho é ser atriz de novela”

(JSV, 14 anos)

“Atuar, porque sempre foi meu sonho fazer teatro e ser atriz”. (JCS, 14 anos)

“Para eu aprender mais e me tornar um policial”. (NS, 12 anos)

Quanto às perguntas sobre o que a ELC proporciona ao aluno (criança,

adolescente ou adulto), além de um aprendizado específico, técnico, e como o que

aprende nas aulas pode refletir em sua vida pessoal, escolar, familiar e

profissional, as respostas vão além da preocupação em estar habilitado para o

mercado profissional e revelam interessantes e sensíveis visões e expectativas

diante da vida. Os alunos enfatizam o interesse em adquirir conhecimentos,

reforçar a autoconfiança e a autoestima, vencer a timidez, poder se expressar

melhor e sobre variados assuntos. Valorizam a troca de ideias, os debates, a

possibilidade de trabalhar em grupo. São recorrentes as referências ao convívio,

ao ambiente acolhedor, à oportunidade de conhecer novas expressões artísticas,

novas culturas. Alguns consideram importante também a valorização pessoal

dentro da família e, especialmente os mais velhos, destacam a importância de

iniciativas orientadas pela noção de responsabilidade social.

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“Sim porque vou ter mais conversas; cooperar, me dar bem com os colegas e

ajudar um ao outro”. (I, 15 anos)

“Melhora o modo de se ver; ensina a transformar nossa realidade”. (LC., 19 anos)

“Me ajudou a me expressar melhor, com dicção e impostação de voz. Além da

prática e da técnica, há muitos debates com troca de idéias durante as aulas” (LS,

19 anos)

“Desenvolve a disciplina e um novo olhar para nós mesmos, nos mostrando que em

tudo temos capacidades, dependendo do modo como nos ensinam. Tudo de bom

reflete em atitudes.” (J. 38 anos)

“Posso mostrar pra minha família o que eu aprendi. Todo mundo inventa coisas

diferentes e todo mundo faz junto”. (K, 12 anos)

“Uma visão mais ampla do que é cinema. Aprender nunca é demais,

principalmente quando se estuda arte. Você muda seu jeito de pensar e observar.

(D,22, UFF)

Sobre o envolvimento e interesse da família, as respostas revelam que no

geral elas incentivam, que há satisfação com os resultados, curiosidade acerca do

que é realizado na Escola, o que também pode ser observado em postagens no

blog. A gratuidade é também um ponto importante. Vários alunos já trouxeram

familiares e/ou amigos para fazer cursos na ELC, criando assim um efeito

multiplicador. O mesmo se dá quando se referem aos amigos:

“Minha mãe adora. Ela diz que é uma boa oportunidade e minhas amigas ficam

loucas pra entrar.” (J, 14 anos)

“Comento com os amigos da universidade e todos acham muito interessantes as

práticas vivenciadas” (A, 23 anos)

“Ficam surpresos e curiosos, mas já fazem cursos também”. (L, 12 anos)

“Minha irmã despertou interesse em vir conhecer a escola e já tive amigos que

também vieram através de mim”. (A, 29 anos)

“Ah, minha mãe, irmã, tias, tios se interessam muito com a ELC e com meu

desempenho aqui. E ficam curiosos também”. (V, 13 anos)

Contudo, ainda que incentivem, no caso de adolescentes e jovens adultos, há

por parte família e/ou de amigos outras preocupações, como o futuro profissional

e o mercado de trabalho para a área:

“(Ficam) curiosos, eles querem fazer também, mas a mãe deles não deixa”. (A, 15

anos)

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“As pessoas acham legal, mas a maioria acha a prática cinematográfica difícil de

ser realizada no Brasil” (D, 22 anos)

“Alguns incentivam, mas todos dizem que não é uma boa área para trabalhar e que

o mercado é sempre muito fechado”. (K, 23 anos)

Certamente esta é uma preocupação legítima e que não se restringe às

famílias pobres. No livro O Clube do Filme, David Gilmour tem de lidar com as

inquietações da ex-esposa quanto ao futuro do garoto que deixou a escola em

troca de assistir e conversar sobre filmes com o pai. Pelas respostas dos alunos da

ELC, fica clara também a percepção de que a área cultural não costuma ser um

caminho fácil e valorizado, em termos financeiros, para os artistas em geral (não

consideramos aí as “celebridades” instantâneas fabricadas pela mídia).

Cabe aqui lembrar que a ELC não tem por meta estritamente formar

cineastas ou pessoal técnico para a área do cinema/audiovisual. As experiências

vividas lá contribuem para um amadurecimento que pode se refletir no

posicionamento do jovem diante das necessidades ligadas à sua vida profissional,

como a capacidade de gerir seus projetos e de trabalhar em equipe.

Os 32 alunos do Curso Diário para Crianças foram indagados sobre seu

desempenho na escola formal (Ensino Fundamental) em relação às atividades na

ELC. A maioria respondeu que o desempenho melhorou:

DESEMPENHO DO ALUNO

RESPOSTAS

Melhorou 22

Mais ou menos 4

Não 5

Não respondeu 1

Quadro 6: Escola formal x ELC

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Os alunos foram ainda solicitados a apontar o que mais gostariam de ter em

seu bairro/cidade como opção cultural e de lazer. As respostas, considerando

todas as turmas, indicaram as seguintes preferências/necessidades:

Teatro 13

Museu 10

Livraria/biblioteca 10

Cinema 9

Quadro 7: Opções culturais

Alguns alunos indicaram outras atividades/cursos como: dança, capoeira,

hip-hop, inglês e canto, deixando claro que há uma demanda por opções

diversificadas de lazer e cultura.

A relação dos alunos com o cinema é um ponto interessante. Foram

formuladas perguntas sobre o interesse em assistir a mais filmes e/ou a filmes

diferentes do que estavam acostumados, e se assistir a filmes os faz ver o mundo

de maneira diferente. A maioria considera os filmes importantes para a construção

do olhar que desenvolvem sobre o mundo, permitindo-lhes conhecer outras

culturas, outros conceitos, ampliar seus conhecimentos gerais, enriquecendo seu

repertório, seja no vocabulário, seja de temas a serem conversados. Passam

também a observar o aspecto técnico e a valorizar gêneros pelos quais não

costumavam se interessar, como documentários.

“Como preservar o meio ambiente, não julgar as pessoas pela aparência e sim

pelo que elas são”. (V, 13 anos)

“São bons para nos ficarmos falando coisas diferentes no nosso vocabulário. Minha

mãe fala que eu fiquei mais com pensamento da cultura, gosto muito dos séculos

antigos”. (LM, 12 anos)

“Me ensinam a entender a forma como as outras pessoas enxergam o mundo”. (K,

23 anos)

“O cinema te mostra pessoas e coisas que você não teve a oportunidade de

conhecer e coisas que você não vivenciou” – “Passei a assistir filmes de inúmeros

países, aprendendo muito mais sobre essas diferentes culturas” (D, 22 anos)

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“Ajuda a pensar diferente” – “Me interessei pelos projetos culturais mais próximos,

mais nacionais” (L, 19 anos)

“Agora eu reparo nas técnicas mínimas de todos os filmes que eu vejo” (GL, 12

anos)

De um modo geral, depreende-se pelas respostas e comentários dos alunos

que o ambiente é acolhedor e estimula que cada um manifeste suas opiniões. O

empenho dos professores/mediadores e o trato gentil e paciente com os alunos

aparecem como determinantes para que estes procurem estender sua permanência

na ECL. Dez alunos (entre todos os entrevistados) estão na Escola há mais de um

ano, seja fazendo outros cursos ou novas edições do Curso Diário para Crianças.

Alguns alunos já estão na Escola desde o início das atividades, em 2006.

As informações fornecidas pelos pais ou responsáveis também trazem dados

interessantes. Dos dez questionários respondidos por eles, cinco são de pais cujos

filhos também participaram da pesquisa, respondendo ao questionário entregue

aos alunos. Na avaliação dos pais/responsáveis, tanto o desempenho escolar

quanto o comportamento das crianças, em geral, melhorou após o ingresso na

ELC. Há referências a um maior interesse pelos acontecimentos, mais facilidade

de comunicação, mais segurança e autoconfiança. Indicam também

desenvolvimento das habilidades em informática, na criatividade e na capacidade

de atenção.

“Ela conversa com as pessoas de todas as idades sem demonstrar diferenças.”

(sobre aluna LMS, 12 anos)

“A criança age com mais espontaneidade e interage melhor com o grupo com o

qual atua. (sobre aluna LAC, 11 anos)

“Melhorou bastante (em matemática). Gostava muito de soltar pipa e agora só

pensa em ir para a ELC”. (sobre aluno NES, 12 anos)

Algumas respostas nos surpreendem por abordar instâncias mais sutis do

comportamento e do relacionamento familiar, sugerindo o quanto o contato com a

arte, a oportunidade de realizar e compartilhar descobertas sobre o mundo e sobre

si mesmo, agem não apenas no intelecto, mas também no emocional, na

afetividade.

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“Ela está muito mais carinhosa” (sobre aluna GCS, 12 anos)

“Ela ganhou um A+ em sua alegria, tendo um novo assunto para comentar.” (sobre

aluna LAC, 11 anos)

Perguntados sobre interesse em fazer cursos na ECL e/ou se usam os

computadores disponibilizados pela Escola, dois dos pais/responsáveis

entrevistados já o fazem. Os demais se mostram interessados, mas

impossibilitados, devido à falta de tempo.

“Eu nem sei ligar o computador, mas um dia que não vai demorar muito, eu

estarei junto a esta garotada maravilhosa”. (AS, mãe da aluna GCS, 12 anos)

Foi perguntado também aos pais/responsáveis sobre o que gostariam de ter

no bairro como opção de cursos profissionalizantes, de lazer e cultura, para si e

para os filhos. Uma praça ou parque, onde as crianças possam brincar, é a

reivindicação mais apontada, Alguns sugerem trabalhos com reciclagem e

atividades esportivas, como aulas de capoeira e jiu-jitsu. Foram também

mencionados um museu e um zoológico.

Percebe-se a carência de espaços e serviços básicos, facilmente encontrados

em bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro, por exemplo. Os moradores de Miguel

Couto não pedem muito. Desejam ter acesso a uma vida mais saudável física e

mentalmente, com possibilidades de desenvolver suas capacidades, de prosseguir

nos estudos, frequentemente interrompidos pela necessidade de trabalhar, de

cuidar dos filhos. Percebe-se também a preocupação com o exercício da

cidadania, quanto à responsabilidade no cuidado com o espaço que dividem.

“Uma praça com bastante novidade de brinquedos para as crianças e uma

biblioteca”.

“Uma praça com vários brinquedos, mas que os próprios moradores também

ajudem a cuidar”.

“Cinema, teatro e balé. Artesanato, aulas de violão, canto e exercícios físicos para

as crianças”.

“A comunidade merece um espaço assim (como a ELC), principalmente nós

mulheres que, devido aos filhos, encontramos alguns obstáculos para dar sequência

a nossa vida profissional”.

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Alguns fizeram comentários espontaneamente, ressaltando a importância de

seus filhos terem oportunidades como as oferecidas pela ELC, gratuitamente.

Sugerem novas atividades (como uma sala de pintura) e observam também que a

Escola precisa se fazer conhecer em algumas áreas mais afastadas.

“Espero que vocês a expandam mais... na periferia de Miguel Couto eles não

conhecem vocês”.

“Gostaria que crianças de 5 a 8 anos também pudessem participar. Elas são

inteligentes e precisam de incentivo”.

Percebe-se que a situação econômica da família é um entrave para que tanto

pais quanto filhos possam elevar a escolaridade e o nível cultural. Ou seja, há

interesse, o que falta é maior oferta de cursos gratuitos. Nesses nichos, onde o

poder público é, se não ausente, mas insuficiente, a presença de ONGs com

atividades diversificadas é fundamental.

“Não posso pagar um curso para minha filha, mas quando soube da ELC, a

matriculei e ela está encantada com as aulas, com os professores, que a tratam com

respeito e educação. Vocês fazem a diferença na vida de pessoas como a minha

filha”.

Analisando as respostas e comentários dos alunos e seus pais ou

responsáveis, fica evidenciada a valorização de diversos aspectos que cada um

considera importante, seja para seu futuro profissional, ou para sua vida como um

todo. Pode-se observar o quanto o papel da família e seu envolvimento nas tarefas

dos filhos são determinantes para que eles se sintam estimulados a investir seu

tempo e energia nos estudos.

Estas respostas e comentários fazem conexão com as questões que

levantamos em nossa pesquisa. Elas nos falam do convívio, das experiências

compartilhadas, das trocas, ou seja, do “estar juntos” de Arendt, dos novos

espaços de encontro de Martín-Barbero, da riqueza da heterogeneidade de Morin.

Deixam igualmente transparecer a importância da criação e do fortalecimento de

vínculos, como abordados por Sodré, Paiva e Ouriques, bem como do pensar e do

sentir, como proposto por Boaventura Santos. A gentileza e o respeito ao outro

são igualmente valorizados.

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Conclui-se que as expectativas dos alunos quanto às atividades, ao que

poderiam aprender, às suas próprias potencialidades, são não apenas atendidas,

mas frequentemente superadas. Uma das respostas apresentada no espaço que

inserimos ao final do questionário, para que os alunos acrescentassem algum outro

comentário sobre a ELC, traduz o que a Escola significa na vida daquelas crianças

e jovens. Pode-se ler nesta declaração um misto de desejo de estar inserido na

sociedade pelo acesso aos bens de consumo, como proposto por Canclini, (tênis,

música, tecnologia), mas também de segurança, conhecimento e sonho (paz,

História e cultura).

“Uma fonte de cultura, paz, lugar próprio para esquecer (ilegível) e pensar só em

filmadora, All-Star, rock, séculos passado e cultura. I love ELC”. (LM, 12 anos)

São aspectos que denotam o processo de inclusão subjetiva, que ultrapassa a

oferta de oportunidade para o aprendizado de técnicas, a possibilidade de aprender

uma profissão, o acesso aos computadores. Há nessas respostas, e em seus

trabalhos, a marca explícita ou sugerida de fortalecimento de autoconfiança, busca

de autoconhecimento, a descoberta de possibilidades não imaginadas. Respostas

que deixam transparecer o quanto investir em atividades culturais diversificadas,

utilizando as tecnologias disponíveis e valorizando as práticas juvenis - como

acesso a redes sociais, youtube, blogs – pode ter resultados significativos em

termos de construção de caminhos para reverter processos de exclusão. À

pluralidade de suportes, de meios, de fontes, somam-se a diversidade de

linguagens, de expressões artísticas, visuais, sonoras, de texto e imagens, e

especialmente de olhares.

4.2.4. A ELC apresenta...

Analisamos aqui algumas produções dos alunos integrantes do Programa

Bairro Escola, realizadas em 2006, observando como traduzem nesses trabalhos

sua visão de mundo, como estabelecem um diálogo com seu ambiente, com seu

cotidiano. Utilizamos vídeos que retratam histórias fictícias e também

documentários. Os vídeos de animação utilizam técnicas variadas, como massinha

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e stop-motion. Os documentários registram aspectos do bairro, do território dos

alunos, e foram realizados dentro daquela atividade de coletores de imagens.

Vídeos de animação

1 – Bonde da rã116

É apresentado como uma narrativa do cotidiano das crianças de Miguel

Couto. Num dia de muita chuva, as rãs proliferam e os garotos vão à caça. No

ritmo do funk, assistimos aos meninos em sua aventura em busca das rãs, para

preparar uma gostosa farofa. Incorporam à sua linguagem o termo “bonde”, em

associação aos “bondes” do tráfico, sugerindo uma relação de naturalidade com a

realidade de violência presente nas cidades e veiculada diariamente nas TVs. O

funk, também presente no seu cotidiano, é igualmente apropriado pelos autores,

compondo a trilha sonora.

2 – Casa do Sabão117

O que está à venda na Casa do Sabão? Salta neste vídeo a lógica própria

das crianças (cujo exemplar talvez mais emblemático – uma produção antiga e

precária que resiste às novidades tecnológicas do século XXI – seja o personagem

Chaves118

). As crianças misturam imagens de si próprias às animações para

mostrar que a Casa do Sabão na verdade é a casa de muitos outros objetos que ali

são vendidos. Objetos que fazem parte de seu dia a dia, como o material escolar.

3 – A Praça119

Nesta animação revela-se a preocupação com o ambiente, o cuidado com

seu lugar. A praça, o ponto central de seu bairro, onde chegam e de onde partem

os ônibus que os ligam a outras localidades, está quebrada e suja. Imaginam um

vigilante forte e enérgico (detalhe para o sotaque nordestino) que pudesse impedir

a sujeira nas ruas e o vandalismo. Mas, em seguida, os meninos questionam a

116

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=9ggCs3d1LX4 – acesso em 02/02/12 117

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=6ByokBJH1KU – acesso 02/02/12 118

Seriado mexicano, criado na década de 1970, cultuado por crianças, jovens e adultos. No Brasil,

é exibido desde 1984 pela emissora de TV aberta SBT e, desde novembro 2010, pelo canal a cabo

Cartoon Network. http://pt.wikipedia.org/wiki/El_Chavo_del_Ocho - acesso em 04/12/10. 119

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=wRwcGeLqNkY – acesso 19/01/12

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necessidade desse vigilante (que encarna a força, o poder). Não haveria outra

solução? Deixam essa interrogação ao final, levantando uma reflexão sobre as

reais causas do comportamento anti-cidadão daqueles que frequentam ou passam

pela praça de Miguel Couto.

4 – A velha fofoqueira120

A fofoqueira é um dos hits da ELC. A primeira versão, em massinha,

ganhou posteriormente outra, mais elaborada tecnicamente. Contudo, esta ingênua

primeira versão das crianças já apresenta um humor refinado, com falas precisas

(“Não fala comigo assim não, eu te vi nascer”). Na versão posterior, de 2008, os

alunos adaptaram a história para o herói Iguaçu, um personagem que mistura

elementos de seu cotidiano (a velha geladeira abandonada no quintal, a

proximidade entre vizinhos que se observam) com as histórias de heróis e suas

engenhocas mirabolantes, que veem na TV.

Interessante observar que os meninos infligem à fofoqueira uma série de

castigos, mas não há um tom de maldade ou de vingança. Na verdade, eles criam

até uma solução para o ócio da vizinha faladeira (a Escola da Vovó), que, ocupada

com sua própria vida, deixa de vigiar a dos vizinhos. Podemos ver aí um paralelo

com eles próprios que ocupam seu tempo (o segundo-tempo após a escola) com

atividades que mesclam lazer e aprendizado.

Documentários

Nesta atividade, a câmera é usada para promover um olhar de descoberta

sobre o bairro Miguel Couto, seus moradores, comerciantes, as lojas e os

personagens que povoam o imaginário do local.

1 – Ida ao Banco

Uma incursão ao mundo dos adultos. O que acontece naquela “caixa”

envidraçada, com porta giratória, guardada por seguranças, onde entram e de onde

saem pessoas todos os dias? Impedidos de entrar, o garoto questiona a proibição:

120

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=t7LSu91OlxA (1ª. versão) e

http://www.youtube.com/watch?v=D44ooq-aRDU (2ª. versão) - acesso 06/02/12

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“Ele falou que não, mas não disse por que”. Se seu comportamento denota

respeito – eles se queixam, mas não tomam nenhuma atitude agressiva -,

demonstra também um senso crítico, o questionamento diante de ordens

estabelecidas. Eles querem respostas.

2 – Quem conhece Marquinhos Paçoca?

Uns conhecem, outros não, uns dizem que é violento, outros que é como

uma criança. Seria apenas uma história inventada? Ou um personagem do bairro,

possivelmente um mendigo, um doente mental? Que papel tem esse personagem

no imaginário das crianças? Eles saem em busca de respostas e vão entrevistando

pessoas pelo bairro. A história de Marquinhos Paçoca remete às lendas, àquelas

narrativas que, ao mesmo tempo em que seduzem, provocam medo. Mistérios que

aguçam a curiosidade e que eles querem desvendar.

3 – Por que tanta pastelaria de chinês?

Mais uma vez a curiosidade, o desejo de entender o porquê dessa associação

entre chineses e pastel. Por que aquela família veio para o Brasil? Como é a terra

deles? Por que vender pastéis? Sem serem invasivos, mas com segurança e firmes

na intenção de obter respostas, os pequenos documentaristas indagam, observam.

E as respostas revelam uma gama de outros olhares, de outros desejos, de histórias

de vida. Para um dos imigrantes, viver aqui no Brasil ou na China é indiferente,

revela uma certa apatia, um conformismo. Já outro jovem chinês revela a

melancolia do exilado que não queria deixar seu país. Em incursões assim, os

meninos da ELC vão aguçando seu olhar sobre o mundo que os cerca, aprendendo

a enxergar o outro, a captar a diversidade de pontos de vista e, talvez mesmo sem

se dar conta, vão retratando um aspecto destes tempos de globalização.

Em 2007, os alunos produziram um vídeo – uma animação de massinha -

chamado Iguaçu e sua turma. Iguaçu é, ao mesmo tempo, um menino e um super-

heroi. Tal como o Super Homem tem sua cabine telefônica e o Batman sua

caverna, Iguaçu usa a velha geladeira abandonada no quintal para sua

transformação e, ao entrar nela, um espaço fantástico se abre. Os temas são do

cotidiano das crianças, como a preocupação das mães com sua alimentação.

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Interessante observar que o heroi age em grupo, com “sua turma”. Os alunos

reproduzem nas ações do super-heroi sua rotina na escola, ou seja, o sentimento

de coletividade, de trocar e compartilhar experiências, de buscar soluções

conjuntas para os problemas. Nesse trabalho, também o funk está presente, numa

animada trilha sonora.121

Em setembro de 2010, uma das atividades dos alunos (crianças e

adolescentes) foi construir um autorretrato. O interessante na proposta colocada

pela ELC foi o fato de que não poderiam utilizar sua própria imagem. Cada aluno

teve de fazer um vídeo de um minuto que projetasse seu autorretrato, sem que ele

próprio aparecesse em cena alguma. Assim, os jovens tiveram de buscar em seu

território imagens que revelassem como enxergam seu lugar no mundo,

articulando esta pesquisa com artes e técnicas diversas, como cordel, literatura,

fotografia, artes-plásticas. Cerca de um mês depois, os vídeos foram exibidos para

os familiares e amigos numa sessão especialmente concorrida.122

Segundo

Anderson Barnabé, os pais se surpreenderam com o resultado, descobrindo

naqueles trabalhos não apenas as habilidades de seus filhos, mas também

particularidades de sua personalidade.

Outros vídeos interessantes mostram a diversidade de técnicas utilizadas, as

diferentes linguagens, sempre investindo na criatividade dos alunos e associando

aprendizagem técnica com expressões artísticas. Por exemplo, podem-se ver os

parangolés numa aula de capacitação para chroma-key, em 2011123

.

São trabalhos que materializam aquelas respostas ao questionário oferecido.

Denotam a disciplina, o interesse em aprender coisas novas, a mente e a emoção

sempre abertos a novas experiências, o espírito do “comum” no respeito, na

divisão de tarefas e responsabilidades, e a autoconfiança que vai se fortalecendo

continuamente.

121

Ver making-of em http://www.youtube.com/watch?v=TtXO0EtIWHI e vídeo pronto em

http://www.youtube.com/watch?v=BGX-9tOHXNc – acesso em 04/02/12 122

Ver blog da ELC - http://escolalivredecinema.blogspot.com/search?q=auto-retrato e

http://escolalivredecinema.blogspot.com/search?q=autorretrato - acesso 12/11/10 123

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=pCOJZLAdxDM – acesso 06/02/12

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133

4.3. Políticas Públicas Culturais no Brasil

Fechando este Capítulo, fazemos um breve levantamento das políticas

públicas para área de cultura, de modo a contextualizar em nossa história cultural

o surgimento dos espaços voltados ao ensino e difusão de atividades artísticas, em

especial os cursos de cinema e vídeo, e evidenciar o avanço que tais espaços

representam na construção da cidadania e nos processos de inclusão subjetiva.

Como citado no Capítulo 2, a partir da segunda metade do século XX as

políticas públicas ganham força no embate entre sociedade e Estado, sendo

“transformadas em locus de exercício do poder social e político” (Sposati, 2006,

p.1). No caso das políticas públicas culturais, no Brasil, este protagonismo será

um tanto tardio, fazendo-se notar nos últimos oito anos, especialmente durante a

gestão de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura.

No Brasil não temos tradição de realização de estudos de políticas públicas, em

especial em áreas como a da cultura. Ao revisitarmos, mesmo que

superficialmente, as ações do Estado no âmbito da cultura, nessas últimas quatro

décadas, verificamos uma série de iniciativas na direção da elaboração de linhas de

atuação política que inúmeras vezes foram abandonadas e retomadas com pequenas

alterações por governos que se seguiram” (Calabre, 2010, p.20)

As palavras de Lia Calabre nos dão a dimensão do problema que enfrentam

aqueles que pretendem trabalhar na área cultural. Apesar dos parcos recursos

tradicionalmente destinados a esta área em nosso país, a importância do acesso

aos bens culturais vem se impondo cada vez mais como imprescindível para a

formação de uma sociedade produtiva, harmoniosa, sadia. Para esta mudança de

paradigma, onde a cultura e a educação deixem de ser temas de segunda categoria

e passem a ocupar o topo das pautas de discussão, há um extenso caminho a

percorrer. E que certamente não se encerrará, estará sempre evoluindo.

Trata-se de um cenário desafiador, que exige a mobilização de todos os

segmentos que compõem a sociedade: Estado, instituições civis, ONGs, grupos

comunitários, educadores, pais. Cleise Campos (2010) destaca o quanto é

oportuna a participação da sociedade nos processos ligados às políticas culturais

comprometidas com a cidadania e inclusão social. Políticas que não podem ser

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impostas pelo poder público, ignorando a diversidade, as especificidades de cada

região, as competências individuais e coletivas.

Não só a inadequação, mas também a descontinuidade das políticas culturais

se fizeram sentir ao longo da História do Brasil. As iniciativas adotadas com a

vinda da Corte Portuguesa no começo do século XIX não configuravam

propriamente uma política destinada à cultura, e nos períodos que se seguiram

este panorama não se modificou muito, havendo mesmo retração nos

investimentos para a área cultural. Cleise observa que:

As intervenções do Estado Brasileiro na cultura, nas décadas de 30, 40, 60 e 70 do

século passado, até chegar ao tratamento mais recente dado à área; na virada do

século, e as reflexões da relação de cultura com outras políticas públicas, e suas

interferências, em especial a educação, atestam que a história das políticas de

cultura em mais de 500 anos de Brasil, é bastante preocupante, quer pela própria

ausência de registros ou mesmo da ausência de política cultural no País. (Campos,

2010, p.2)

Um panorama mais promissor começou a se delinear nos últimos anos. O

PNC - Plano Nacional de Cultura (PL-6835/2006 Câmara e PLC-56/2010 Senado)

foi sancionado em 05/11/2010 e atualmente tramitam no Congresso vários

Projetos de Lei, como o que dá nova redação ao artigo 6º da Constituição Federal,

incluindo a cultura como direito social do cidadão (PEC 49/2007) e o que cria o

Fundo Social, destinando à cultura recursos advindos do Pré-Sal (PL-5940/2009

Câmara e PLC-07/2010 Senado).

A Medida Provisória Cinema Perto de Você (MP 491/2010) propõe a

ampliação, diversificação e descentralização do mercado de salas de exibição

cinematográfica. A ideia é fortalecer o segmento de exibição cinematográfica,

facilitar o acesso da população às obras audiovisuais por meio da abertura de salas

em cidades de porte médio e bairros populares das grandes cidades, adotando

políticas de redução de preços dos ingressos. Estariam também ajudando a

descentralizar o consumo, centrado no Sudeste. Dentro deste programa, em

setembro de 2010, foi inaugurado em Sulacap, Zona Oeste do Rio de Janeiro, um

complexo com seis salas de cinema124

. Segue também tramitando nas Casas

Legislativas o Projeto de Lei 6722/2010, conhecido como Procultura, que

124

Ver http://www.cultura.gov.br/site/2010/09/29/cinema-perto-de-voce-4/ - acesso 10/04/11

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pretende substituir e aperfeiçoar a Lei Rouanet, atualmente em vigor, mantendo a

renúncia fiscal, mas associando a um estímulo direto125

.

Os Pontos de Cultura se multiplicaram pelo País, catalisando ações no

terreno da arte, em suas variadas expressões. Movimentos sociais, ONGs,

coletivos, ganharam o selo Ponto de Cultura e com ele uma identificação que lhes

confere valor, significado, além de apoio financeiro. A ELC, por exemplo, é

também um Ponto de Cultura. Alba Marinho, analisando o papel destes espaços

na construção de cidadania e fixação de territorialidades, afirma:

Na política cultural atual, os Pontos estão relacionados a mecanismos de

identificação e aceitação. Geograficamente estão inseridos em determinado lugar,

base da vivência afetiva do cotidiano, espaço onde a existência humana se realiza

em sua dinâmica de criação e recriação, construção e desconstrução. (Marinho,

2010, pp.2-3)

Fundamental nesta discussão é dar à cultura a posição que lhe é devida, ou

seja, entendê-la como direito da população. Evocando a filósofa alemã Hannah

Arendt, cuja obra é marcada pela questão dos direitos humanos, Cleise Campos vê

a cultura “como um dos mecanismos para materialização da condição cidadã, de

acesso e uso” e confere a ela um papel ainda mais abrangente no contexto social,

descrevendo-a como “um instrumento de realização para a própria cultura de

direitos, ainda desconhecida de muitos” (Campos, 2010, p.14).

Entre algumas políticas públicas implementadas nos últimos anos, o

Programa Cine Mais Cultura126

veio fortalecer a atividade cineclubista, facilitada

pela tecnologia digital. Desenvolvido pela Secretaria do Audiovisual (SAV/MinC)

e pela Cinemateca Brasileira, em parceria com a Sociedade Amigos da

Cinemateca (SAC), o Programa tem como objetivo a democratização do acesso a

obras audiovisuais, a formação de plateias, e a difusão, principalmente da

produção audiovisual brasileira, por meio da exibição não comercial dos

conteúdos. Muitos cineclubes foram viabilizados pelo Programa, que cede

equipamentos e dá capacitação para a operação, fornecendo ainda um acervo de

filmes. Os cineclubes são em muitos locais as únicas alternativas de acesso ao

cinema, já que são raras as salas fora da zona sul/centro. As salas das Zona Norte

125

Ver http://www.cultura.gov.br/site/2011/11/09/procultura-15/ - acesso 06/02/12 126

Ver http://www.cultura.gov.br/site/2012/01/27/cine-mais-cultura-28/ - acesso 06/02/12

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e Oeste, e da Baixada, ficam em shopping-centers e geralmente têm programação

restrita a blockbusters do cinema norte-americano e/ou produções nacionais que

se caracterizam como um cinema de massa.

Segundo Matheus Topine, Diretor de Comunicação da ASCINE-RJ

(Associação de Cineclubes do Rio de Janeiro), a entidade reúne hoje cerca de 30

cineclubes no Estado. Em 2010, foram realizadas 205 sessões, com 493 filmes

exibidos (entre curtas e longas), somando um público de 9.532 espectadores.

Paradoxalmente, as estatísticas que contabilizam o público de cinema, têm

ignorado esse contingente cada vez maior de pessoas.

O cineasta Silvio Tendler defende a necessidade não só de se abrir mais

salas, como de levar em conta as atividades cineclubistas, quando se divulga

estatísticas de público de cinema. Em entrevista à revista Caros Amigos127

, o

cineasta questiona o sistema de contabilização de espectadores realizada pela

Ancine - Agência Nacional do Cinema128

, um sistema que não dá a verdadeira

dimensão do alcance dos filmes produzidos no Brasil. Tendler cita as sessões

realizadas em cineclubes e outros espaços alternativos, como as que acontecem

em salas de aula e as promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores sem Terra

(MST), onde seus filmes são exibidos para grandes plateias.

Outro cineasta veterano, Cacá Diegues, em entrevista ao programa Roda

Viva129

, também se posicionou a favor de uma maior participação do Estado na

área cultural e defendeu uma mudança no foco dos incentivos: do produtor para o

público, abrindo mais salas de cinema, já que há grande quantidade de filmes

prontos, engavetados, à espera de uma tela que os permita ir ao encontro do

público.

Bergala comenta esta má distribuição de salas (2008, p.20) também na

França. O Brasil já teve mais de 5 mil salas de cinema, que exibiam vários filmes

na mesma semana, inclusive os brasileiros. Hoje, além da redução das salas (em

127

Revista Caros Amigos, São Paulo, ano XIV, no.168/2011, p. 12-17, março 2011. 128

Ligada ao MinC, tem como atribuição regular e fiscalizar o mercado do cinema e do

audiovisual no Brasil. http://www.ancine.gov.br/ - acesso 22/12/11 129

Programa exibido em 15/11/10 - http://tvbrasil.org.br/rodaviva/sobre/ - acesso 06/02/12

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torno de 2.190, para 5.564 municípios)130

, há uma cota de tela que estipula em 28

dias a obrigatoriedade de as salas, em todo o país, exibirem filmes nacionais131.

E

os ingressos custam caro. Mas, mesmo levando em conta o desenvolvimento de

novas mídias, do advento do videocassete, depois o DVD, além da internet, não se

pode esquecer que o cinema como experiência coletiva é momento de encontro,

estimula a vida social e a economia, sendo um gerador de empregos diretos e

indiretos.

A padronização do cardápio cinematográfico oferecido ao espectador é

outro problema, pois privilegia os efeitos especiais em detrimento da qualidade

artística, da narrativa, convertendo-se muitas vezes no uso da técnica pela técnica.

São filmes que não resistem muito tempo na memória, depois que o espectador

deixa a sala de cinema. E esta também é hoje um espaço a mais para um intenso

consumo de outros produtos, que não o filme.

Complica ainda mais esse cenário a opção (seja na França, como afirma

Bergala, seja no Brasil) dos produtores nacionais por filmes que possam concorrer

com o “inimigo”, copiando-o, de olho nas bilheterias. Não se trata de condenar o

cinema como indústria, e que como tal demanda retorno financeiro através de

filmes “que funcionam” (Bergala, 2008, p.21). Mas onde fica o espaço para os

filmes “menores”? Filmes que não são necessariamente obras de arte, autorais,

feitas para alguns iniciados. Há pequenos filmes, de orçamento modesto (para os

parâmetros de seus países de origem), que trazem frescor, que fogem a um estilo

hegemônico, que surpreendem os exibidores e conquistam plateias mesmo sem o

suporte de milionárias campanhas de marketing132

. Além destes, há dezenas de

curtas-metragens produzidos anualmente que não encontram telas para exibição.

Em ambos os casos, são pequenos (cada um em seu contexto) filmes que

não alcançam maiores plateias (e bilheteria) porque não têm chance de exibição,

não conseguem chegar ao grande público. Bergala comenta esta disparidade,

destacando que a desigualdade entre os filmes “ricos” (alto orçamento, verbas

130

Ver http://www.cultura.gov.br/site/2009/02/28/cine-mais-cultura-quer-levar-o-cinema-as-

populacoes-da-periferia-e-do-interior/ - acesso em 22/12/10 131

Ver http://www.ancine.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=65487&sid=83 –em 10/04/11 132

A longa permanência deste tipo de filme em cartaz (como A culpa é do Fidel, Pequena Miss

Sunshine, O pequeno Nicolau), contrariando as expectativas do mercado, foi tema de reportagem

de André Miranda. Jornal O Globo, edição de 01/07/11 - Segundo Caderno, pp.1 e 3.

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milionárias de publicidade) e os demais sempre existiu, mas alcança hoje um nível

alarmante (Bergala, 2008, p.96). Uma superprodução norte-americana, por

exemplo, chega ao mercado externo com centenas de cópias, ocupa centenas de

salas ao mesmo tempo e vem a reboque de uma maciça campanha publicitária.133

Outras iniciativas do poder público para a área cultural que guardam alguma

relação com nossa pesquisa são aquelas relacionadas à preservação da memória,

como o programa Pontos de Memória, realizado em parceria com o Programa

Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), do Ministério da

Justiça. A proposta é “reconstruir a memória social e coletiva de comunidades, a

partir do cidadão, de suas origens, suas histórias e seus valores”134

. Em dezembro

de 2010 o Museu da Maré, no Rio de Janeiro, sediou a 3ª Teia da Memória, um

encontro para promover troca de experiências entre os Pontos de Memória135

.

Destacamos também o projeto de lei (PL-1176/2011) de assistência

financeira aos mestres do saber tradicional136

, apresentado pelo Deputado Federal

Edson Santos à Ministra da Cultura Ana de Hollanda, em abril/2011 e ainda em

tramitação. O projeto de lei prevê assistência financeira mensal aos mestres do

saber tradicional, entendidos como tal aqueles cuja vida ou obra foi dedicada ao

desenvolvimento da cultura tradicional e à transmissão desses saberes. É o caso de

sambistas, compositores, produtores culturais e artistas que, com frequência,

enfrentam dificuldades financeiras, especialmente na velhice. O MinC já tem

entre seus programas ligados à valorização do saber tradicional, a Ação Griô137

que, por meio de contratos, transfere recursos aos mestres que, em contrapartida,

fazem a transmissão do seu conhecimento à comunidade. Griô é o líder de um

povo a quem cabe preservar a memória e transmitir os ensinamentos.

133

O filme Amanhecer, da milionária franquia Crepúsculo, estreou no Brasil em novembro de

2011 ocupando 50% das salas existentes no país. Fonte: http://blogs.estadao.com.br/luiz-

zanin/amanhecer-ocupa-metade-do-circuito/ - acesso 15/12/11 134

http://www.cultura.gov.br/site/2009/02/03/cultura/ - acesso em 08/01/11 135

http://ocidadaonline.blogspot.com/2010/12/rio-sediara-iii-teia-da-memoria.html - acesso em

08/01/11 136

Ver http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=499716 -

acesso 16/01/12 137

Ver http://www.cultura.gov.br/culturaviva/category/cultura-e-cidadania/acao-grio/ - acesso

02/02/12

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Concluindo este Capítulo, voltamos a Jacques Aumont e sua concepção

acerca do cinema e sua função social, como capaz de representar o mundo e

modelar os espíritos (2004, p.135). Crendo nisso e pensando na formação dos

sujeitos, seja dentro ou fora das escolas, não deveria causar estranheza a proposta

de deslocar o ensino, a fruição, o convívio com a arte, de compartimentos

isolados, estanques, para introduzi-lo no cotidiano não apenas das escolas formais,

mas de outros espaços de convivência. Ou seja, introduzir a arte “como algo

radicalmente outro” (Bergala, 2008, p.29) e fazendo-a permear todo o processo

educacional, no caso das escolas, sejam elas formais, livres, comunitárias. Sobre

cinema e escola, Cezar Migliorin entende que com ele “não ensina mais isso ou

aquilo, e sim o abandono, a potência de não ser mais isso ou aquilo” (2010,

p.106). Ou seja, descortinam-se novas possibilidades.

Entendemos também que práticas que envolvem artes, criatividade,

experimentos, lançando mão de nossa diversidade cultural, poderiam estar

presentes no cotidiano, já que em oposição à estesia (como sensibilidade),

anestesiados ficamos hoje diante da avalanche de informação, das imagens

fragmentadas, da rapidez com que tudo se sucede, sem tempo para ser “digerido”.

Embora a arte possa nos atravessar sem passar pela razão, cremos que os

indivíduos precisam estar expostos a ela e não simplesmente serem “atropelados”

por um fluxo contínuo de imagens, sons, luzes, como acontece com os produtos

da chamada cultura de massa.

Daí, mais importante do que formar técnicos ou futuros cineastas ou

videomakers, a ELC dá a seus alunos, crianças ou adultos, a oportunidade de usar

os meios audiovisuais, aliados a outros meios e suportes, para construção de

subjetividade. Oportunidade de aprender com e pelo cinema, pela razão e pela

emoção, pela reflexão e pelo arrepio, pelo prazer e pelo estranhamento. Vão assim

aprendendo sobre o mundo, sobre o outro e sobre si mesmos.

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