4. cantando com hilda hilst - puc-rio
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4. Cantando com Hilda Hilst
E Ă© tĂŁo grande a minha fome TĂŁo intenso meu canto, tĂŁo flamante meu preclaro tecido
Que o mundo inteiro, amor, hĂĄ de cantar comigo
H. H, JĂșbilo, memĂłria, noviciado da paixĂŁo
A epĂgrafe explica, em parte, o que nos levou a querer traduzir Hilda Hilst.
Vontade de traduzir este canto tĂŁo intenso, tĂŁo flamante, que nos impele a cantar junto
(pensando a tradução como um canto paralelo). Assim como a poeta aponta para o
mundo, que hĂĄ de cantar com ela, o nosso desejo de reconstruir estes poemas em
inglĂȘs nasce justamente dessa sensação de que estes, potencialmente, podem ser
cantados mundo afora. NĂŁo apenas porque possuem uma forte melodia â hĂĄ algo neles
que pede para ser cantado, ou, ao menos, para ser lido em voz alta â mas tambĂ©m pelo
carĂĄter, de algum modo atemporal, dessa lĂrica amorosa. Diferentemente dos poemas
de AdĂlia Lopes, nos poemas que escolhemos do livro JĂșbilo, memĂłria, noviciado da
paixĂŁo, de 1974, nada nos remete, necessariamente, ao mundo contemporĂąneo, aos
anseios contemporĂąneos. Ao contrĂĄrio, eles apontam para uma certa antiguidade do
amor e da poesia. O fazer poético é tratado como algo primordial, que surge como
necessidade vital, decorrente da ausĂȘncia, da distĂąncia do ser amado.
Escritora multifacetada e prolĂfica, a obra de Hilda Hilst â paulistana de JaĂș,
nascida em abril de 1930 â Ă© um universo amplo, que abarca textos em prosa, textos
para teatro, crĂŽnicas e poesia. AlĂ©m disso, era umafigura pĂșblica excĂȘntrica e, talvez
por isso, sua imagem pĂșblica tenha predominado sobre o conhecimento de sua obra,
como aponta Alcir PĂ©cora1 no ensaio âHilda Hilst: Call for Papersâ (2005). PĂ©cora
lamenta que, embora a autora tenha alcançado âgrande notoriedade pessoalâ, âsua
obra, de rara extensĂŁo e variedade, ainda Ă© largamente desconhecidaâ (PĂCORA,
2005: 2). Diz o autor:
1 Alcir PĂ©cora Ă© o organizador da reedição das obras completas de Hilda Hilst publicadas a partir de 2001 pela Editora Globo. Devemos muito a este trabalho, pois de outra forma nĂŁo terĂamos acesso a estes livros. JĂșbilo, memĂłria, noviciado da paixĂŁo foi o livro que deu inĂcio a estas republicaçÔes, pois, segundo PĂ©cora, estĂĄ entre os melhores textos da autora.
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A rigor, a meu ver, ela jamais obteve uma Ășnica crĂtica suficientemente abrangente e esclarecedora, a despeito de ter havido uma ou outra leitura bem feita de textos particulares. O mais foi atribuir-lhe aquele tipo de encĂŽmio clichĂȘ que se confirmou amplamente no noticiĂĄrio de sua morte: mulher ousada, original, avançada para a sua Ă©poca, louca refinada e explosiva etc. (PĂCORA, 2005: 2)
NĂŁo serĂĄ este o espaço para uma crĂtica abrangente de sua obra. Apenas nos
dedicaremos à tradução de alguns poemas que não são, sequer, representativos de sua
poesia como um todo, Ă© um recorte do recorte. Por outro lado, nĂŁo caĂmos no
âencĂŽmio clichĂȘâ de atentar mais para a persona pĂșblica da autora do que para os seus
textos. A Hilda polĂȘmica pouco nos interessa, seja aquela da escrita obscena, ou a que
declara em entrevista que depois de morta irĂĄ para o planeta Marduk (ver entrevista
publicada em Cadernos de Literatura Brasileira, 19992). Os nossos olhos (e ouvidos)
estĂŁo voltados para os poemas do livro JĂșbilo, memĂłria, noviciado da paixĂŁo. SerĂĄ
através deles que poderemos perceber a beleza e a complexidade da poética hilstiana.
Embora muito elaborada e, em certo sentido, bastante cerebral, Ă© uma poesia de ritmo
e musicalidade marcantes. Talvez nĂŁo seja mera coincidĂȘncia que o cantor Zeca
Baleiro tenha escolhido musicar poemas deste livro no disco âOdes descontĂnuas para
flauta e oboĂ©. De Ariana para DionĂsioâ. Baleiro conta no encarte como se deu sua
parceria com Hilda:
[...] Falou que queria se tornar minha parceira, afinal âliteratura nĂŁo dĂĄ camisa a ninguĂ©mâ. âQuero ser famosa, cansei desta histĂłria de prestĂgioâ, disse ela, entre irĂŽnica e sincera. Ali mesmo, ao telefone, ela pediu que eu anotasse um poemeto, destinado a ser nossa primeira âparceriaâ. Assustei-me com o inesperado do telefone de Hilda, e mais ainda quando, meses depois, ela fez chegar Ă s minhas mĂŁos um disquete com toda a sua obra poĂ©tica. Ali descobri a força e delicadeza de sua âOde descontĂnua e remota para flauta e oboĂ©â, um dos capĂtulos do livro âJĂșbilo, MemĂłria, Noviciado da PaixĂŁoâ, conjunto de 10 poemas profundamente lĂricos e femininos sobre o amor impossĂvel de Ariana e DionĂsio, relato de uma paixĂŁo que, depois vim a saber por ela mesma, era autobiogrĂĄfica. Comecei entĂŁo a musicar os poemas lentamente, mirando a vaga atmosfera medieval neles contido, e ao cabo de dois anos, feita as cançÔes, mostrei a Hilda com o intuito de materializar a nossa parceria em disco. Ela ouviu, aprovou, contestou a mĂ©trica de um ou dois versos e animou-se com a perspectiva de ver sua poesia
2 De agora em diante, sempre que nos referirmos a esta entrevista, escreveremos apenas âCadernos, 1999â e a pĂĄgina da citação.
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transmutada em mĂșsica, ela que sempre foi grande admiradora da obra de Mahler (tambĂ©m para meu espanto descobri que ela foi parceira de Adoniram Barbosa em algumas cançÔes), mas que, assim como JoĂŁo Cabral, adorava dizer bombasticamente que nĂŁo gostava de mĂșsica. (Encarte de BALEIRO, 2005)
A tradução destes poemas para o inglĂȘs Ă© inĂ©dita; porĂ©m, considerando que a
fortuna crĂtica sobre a obra de Hilda nĂŁo Ă© extensa, nĂŁo sĂŁo tĂŁo poucas as traduçÔes de
sua obra. Em italiano encontramos Il quaderno rosa di Lori Lamby, e em francĂȘs,
Contes Sarcastiques â fragments erotiques, LâobscĂšne madame D suivi de le chien e
Da morte. Odes MĂnimas/De la mort. Odes minimes (edição bilĂngĂŒe). Vale constatar
que no Ășltimo nĂșmero do periĂłdico Tradução em Revista, de 2009, dedicado Ă poesia
brasileira traduzida, de seis artigos, dois se dedicam à tradução de poemas de Hilda.
Assim, podemos, talvez, falar de um descompasso entre o interesse que a
crĂtica demonstra por Hilda e as traduçÔes suscitadas por sua obra. A nosso ver, essa
demanda tradutĂłria remete ao que disse Zumthor (citado no primeiro capĂtulo): Ă©
poético aquilo que provoca em nós um desejo de (re)construção. Em entrevista, ao ser
perguntada se ela teria alguma sugestĂŁo a jovens escritores, ela responde com ironia:
âEscreva em inglĂȘs. PortuguĂȘs ninguĂ©m conhece.â (Cadernos, 1999: 41). De qualquer
modo, acreditamos que, ao traduzi-la para o inglĂȘs, Hilda poderĂĄ ser lida de modo mais
amplo. O desafio Ă© fazĂȘ-lo preservando a melodia, traduzindo a presença dessa voz que
não apenas diz, mas também canta.
Escritos por uma voz lĂrica apaixonada e desejante, estes poemas sĂŁo convites,
propostas, indagaçÔes, interrogaçÔes, como se a poeta desejasse seduzir, trazer de novo
para perto, o seu amor. Como escreveu Nietzsche, no fragmento âA origem da poesiaâ,
a fala, quando ritmada, parece se aproximar mais dos deuses, torna-se mais envolvente,
nos impele (NIETZSCHE, 2001: 112). Nesses poemas, essa força que a palavra
adquire atravĂ©s do ritmo, da mĂșsica, da sensualidade das imagens sugeridas, Ă© usada
justamente para envolver o ser amado, ou, ao menos, para tentar envolvĂȘ-lo.
Por sua vez, o amor pelo qual clama a poeta Ă© um amor carnal, o que se pede â
exige â Ă© um reencontro da mulher e do homem. O corpo Ă© um elemento constante
nestes poemas, os amantes sĂŁo cĂĄlidos, e o que importa, dizem os poemas, nĂŁo Ă© o que
pensa a sociedade, é o que é dito na cama, ao pé do ouvido. Nelly Novaes Coelho, em
ensaio sobre a poesia de Hilda, identifica a mulher-poeta desses poemas com uma
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sacerdotisa que cumpre um ritual, âsegura da verdade essencial da experiĂȘncia
amorosaâ (COELHO, 1999: 74). Segundo Coelho, este livro pertence a uma segunda
fase da produção poética de Hilda, quando sua poesia se torna mais intensa e o
erotismo se torna seu ânervo centralâ. NĂŁo hĂĄ aqui, nem de longe, o elemento obsceno
presente em outros textos da autora. Ă uma poesia de registro elevado na qual
encontramos o que se pode chamar, talvez, de âalto erotismoâ.
A voz lĂrica que se autodenomina mulher-poeta endereça seus poemas ao ser
amado, que, em diferentes poemas, recebe variados nomes, predominantemente TĂșlio
e DionĂsio. O endereçamento Ă© aqui um dado importante, pois sĂŁo poemas que surgem
apenas na ausĂȘncia, com a âCasa vaziaâ; isto Ă©, a partir da distĂąncia entre o âeuâ e o
âtuâ. PĂ©cora, no prefĂĄcio ao livro, escreve que, aqui, a persona lĂrica Ă© uma amante
arrebatada, que deseja ter junto de si, todo o tempo, o amado que lhe falta, causando-
lhe dor e penas infinitas. O amado, por sua vez, Ă© esquivo e indiferente, âtem casa,
mulher, negĂłcios, tudo burguesamente atendendo ao rude decoro dos preconceitosâ
(PĂCORA, 2001: 13). A sĂntese, afirma PĂ©cora, Ă© uma apologia da poesia: Ela se define como lugar que, fundado no desejo do amado que falta, atinge ou atende ao apelo do ser essencial por meio da descoberta de um movimento ao mesmo tempo Ăntimo, rĂtmico e metafĂsico que se dĂĄ no Ăąmbito da palavra. (PĂCORA, 2001: 13)
Pensando, então, essa poesia como lugar, como espaço criado a partir de uma
falta, compreendemos esses poemas quase como substitutos do encontro
propriamente fĂsico, sensual. Ana Cristina Chiara fala da poesia de Hilda como uma
âescrita com o corpoâ. O corpo estaria de tal modo inscrito nesses poemas, que se
pode falar âda escrita como sucedĂąneo do desejo corporalâ (CHIARA, 2007a: 146).
Pode-se dizer que, para a mulher-poeta dos poemas de JĂșbilo, a descoberta da palavra
lĂrica sĂł Ă© possĂvel quando se experimenta a ausĂȘncia sensual do amante. Vejamos
como se då essa relação falta/poesia:
Ă bom que seja assim, DionĂsio, que nĂŁo venhas [...] Porque Ă© melhor sonhar tua rudeza E sorver reconquista a cada noite Pensando: amanhĂŁ sim, virĂĄ. E o tempo de amanhĂŁ serĂĄ riqueza: A cada noite, eu Ariana, preparando Aroma e corpo. E o verso a cada noite
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Se fazendo de tua sĂĄbia ausĂȘncia. (HILST, 2001: 59) Como jĂĄ foi dito, outro aspecto importante dessa poesia Ă© certa maneira
antiga. PĂ©cora comenta:
Eu a esboçaria como uma poesia amorosa, de raiz arcaizante, menos Ă cantiga de amigo â cuja lembrança Ă©, entretanto, pertinente â do que Ă maneira petrarquista e camoniana, supostas suas infinitas glosas em lĂngua portuguesa, marcadamente atĂ© o sĂ©culo XVIII. Digo isso pensando, sobretudo, num registro discursivo paradoxalmente irĂŽnico e sublime, fundado numa dialĂ©tica erĂłtica, perfeitamente nĂtida em seu rigor e sistemacidade. (PĂCORA, 2001: 12)
A prĂłpria poeta concorda que enquanto sua prosa parece se filiar a uma
tradição mais moderna, sua poesia tem uma linha mais recuada, e cita Catulo como
influĂȘncia (Cadernos, 1999: 39). Chiara, no ensaio âHilda Hilst e Sylvia Plath, as
filhas engendram os paisâ, ao comentar sobre a opção de Hilda pelas âformas
clĂĄssicasâ, diz que ela parece experimentar âuma temporalidade que se desgarra das
contingĂȘncias do cotidiano, da dicção coloquial (da herança modernista), experimental
(concretismo) ou engajada (violĂŁo de rua)â (CHIARA, 2007a: 7)3. De fato, analisando
esses poemas de Hilda, percebemos neles um âmetro fantasmaâ. Encontramos, por
exemplo, alguns versos que sĂŁo alexandrinos perfeitos, decassĂlabos ou poemas de 14
versos, lembrando a forma clåssica de um soneto. Porém, mais do que seguir à risca a
métrica, Hilda apenas remete a estas formas clåssicas, como se elas estivessem na
âmemĂłriaâ do poema.
AliĂĄs, embora os comentadores os relacionem Ă cantiga de amigo, Ă poesia
petraquista e camoniana, a memĂłria evocada por esses poemas nĂŁo Ă© apenas uma
memĂłria da lĂngua portuguesa. Esse âcantar Ă antigaâ parece falar a todos os homens
cuja memĂłria contĂ©m, em algum lugar, reminiscĂȘncias de um nascimento da lĂrica,
mesmo que esse seja um momento mĂtico, tal como a origem da poesia descrita por
Nietzsche no fragmento previamente citado. As referĂȘncias musicais sĂŁo constantes
nessa poesia, remetendo à época em que os textos poéticos eram acompanhados pelo
3 Vale acrescentar que a Ă©poca que Hilda lançou seus primeiros livros de poesia, foi tambĂ©m a Ă©poca do inĂcio do movimento concretista, na dĂ©cada de 50. Ela foi colega de faculdade de Haroldo de Campos, âmas o grupo dele nunca me procurouâ, conta (Cadernos, 1999: 27).
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som da lira. âModerato cantabileâ, âOde descontĂnua e remota para flauta e oboĂ©â e
âĂrias pequenas. Para bandolimâ sĂŁo tĂtulos de algumas partes de JĂșbilo.
Reforça este carĂĄter antigo a referĂȘncia constante Ă natureza e a ciclos naturais
como indicadores da passagem do tempo. O universo dessa poética não é regido pelo
tique-taque de relĂłgios urbanos. O tempo aqui Ă© guiado pelos ciclos da lua, pelo sol,
pelo ir e vir de noites, dias e madrugadas, por marés, ventos e åguas. Aliås, mesmo as
construçÔes humanas, quando mencionadas, tĂȘm sempre um certo carĂĄter de fixidez,
de atemporalidade: a Casa (sempre grafada com inicial maiĂșscula), a muralha de
marfim, o convento.
Contudo, embora profundamente feminina, a mulher-poeta destes poemas nĂŁo
é, em nada, doméstica ou familiar. Ela é voluptuosa, é a amante, a outra, nunca a
esposa, nunca permanente. Seu lugar social Ă© problemĂĄtico. A poeta-amante estĂĄ ao
lado das bruxas, do mal-visto, do que nĂŁo pode ser aceito pela sociedade, como
mostra este poema: âEra tĂŁo louca/que lĂĄ da aldeia/ onde vivia/ Mandava cartas de
fogo e areia (...) â Mulher-poeta/ E incendiada/ Que outra morte/ Lhe caberia?â
(2001: 87-88). PorĂ©m, ela possui saberes, da âdifĂcil dialĂ©tica lĂricaâ e da âeloqĂŒĂȘncia
da boca nos prazeresâ. A arte lĂrica e a arte de amar sĂŁo os seus dons, mas nĂŁo hĂĄ
espaço para sua embriaguez poética. Seus poemas não cabem nas estantes, não cabem
ao lado dos âlivros polĂticosâ do homem:
[...] O que pensa o homem do poeta? Que nĂŁo hĂĄ verdade Na minha embriaguez E que me preferes Amiga mais pacĂfica E menos aventura? Que Ă© de todo impossĂvel Guardar na tua sala VestĂgio passional Da minha linguagem Eu te pareço louca? Eu te pareço pura? Eu te pareço moça? [...] (p. 22)
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Ana Chiara afirma que no livro Fluxo-Floema, publicado por Hilda em 1970,
hĂĄ uma âforma clandestina de saberâ, um saber feminino, que estaria no fato dela
privilegiar âa sensação, o instante, o fragmentĂĄrio, em contraposição Ă racionalidade e
Ă s capacidades de totalização e articulação do cogito masculinoâ (2007b: 140). Esse
saber seria âuma forma de conhecimento que se dĂĄ como ação clandestinaâ, a qual,
por sua vez, leva Ă âclandestinidade da formaâ. Como procedimentos desta forma, ela
aponta para o carĂĄter fragmentĂĄrio e a âblasfĂȘmia e a bravataâ do livro de Hilda (p.
140). Segundo Chiara, desenrola-se em Fluxo-Floema uma escrita proliferante, que
suspende a respiração do leitor, atingindo o âirrespirĂĄvelâ e culminando numa espĂ©cie
de âdissolução do em si mesmo, como individualidade, com a dissipação da
linguagem em balbucio.â (p. 149).
TambĂ©m em JĂșbilo encontramos a valorização de um saber localizado fora do
domĂnio da razĂŁo e do mundo polĂtico. Um saber da intimidade, em oposição Ă ordem
pĂșblica. PorĂ©m, nos poemas que trabalhamos, nĂŁo ocorre a dissipação da linguagem
apontada por Chiara. HĂĄ, sim, sofrimento, solidĂŁo, dor extremadas, mas nunca a
linguagem se aproxima de um balbucio. Ao contrĂĄrio, estes poemas revelam firmeza
em relação a cada palavra, a cada pausa. à um trabalho quase artesanal, comparåvel
talvez ao do escultor, que molda, cria formas palpĂĄveis. A linguagem nĂŁo se rarefaz,
ela se impĂ”e, em toda sua grandeza â preclara, poderĂamos dizer recuperando a
epĂgrafe inicial. Pode-se falar, nos poemas de JĂșbilo, atĂ© mesmo em afirmação, em
oposição Ă dissolução descrita por Chiara com referĂȘncia ao livro Fluxo-Floema.
Ariana, voz lĂrica e mulher-poeta, reafirma a verdade de seu amor e de sua poesia.
A tarefa de traduzir Hilda nĂŁo Ă© simples. Ă preciso dar conta da delicadeza e
riqueza de seu vocabulĂĄrio, no qual encontramos diversas sutilezas de difĂcil
tradução. E, ainda, não se podem perder de vista as pausas, as rimas, todos os efeitos
que compÔem o ritmo do poema. Como enfatizamos, hå aqui um aspecto musical
bastante evidente, por isso é também importante tentar criar um ritmo parecido nos
poemas em inglĂȘs. Ă importante, tambĂ©m, preservar o carĂĄter antigo e certo tom
solene, principalmente quando este aparece de forma mais explĂcita no poema a ser
traduzido. Trata-se, portanto, de evitar coloquialismos, ao mesmo tempo que nĂŁo se
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quer uma linguagem dura, rĂgida, pois assim perderĂamos a musicalidade
caracterĂstica destes textos.
Passemos, enfim, às traduçÔes.
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4. 1. Poema 1
Original: Ă bom que seja assim, DionĂsio, que nĂŁo venhas. Voz e vento apenas Das coisas do lĂĄ fora E sozinha supor Que se estivesses dentro Essa voz importante e esse vento Das ramagens de fora Eu jamais ouviria. Atento Meu ouvido escutaria O sumo do teu canto. Que nĂŁo venhas, DionĂsio. Porque Ă© melhor sonhar a tua rudeza E sorver reconquista a cada noite Pensando: amanhĂŁ sim, virĂĄ E o tempo de amanhĂŁ serĂĄ riqueza: A cada noite, eu Ariana, preparando Aroma e corpo. E o verso a cada noite Se fazendo de tua sĂĄbia ausĂȘncia. (p. 59) Tradução: It is as it should be, Dionysus: do not come Voice and wind only Of the out there Supposing alone That if you were inside This important voice, this wind of the branches out there Would never reach me. Absorbed I would listen To the essence of your song. Do not come, Dionysus, For it is better to dream your roughness And every night, savour victory anew Thinking: tomorrow, yes, you will come And tomorrow will be a time of plenty: Every night, I Ariana, making ready Fragrance and body. And a verse every night
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Unfolding from the wisdom of your absence. Este Ă© o primeiro poema da parte do livro intitulada âOde descontĂnua e
remota para flauta e oboĂ©. De Ariana para DionĂsioâ. Nestes poemas, o aspecto antigo
dessa poesia, quase mĂtico, fica mais evidente, pois sĂŁo dirigidos a DionĂsio,
remetendo ao deus do vinho da mitologia grega. Ariana, voz lĂrica do poema, tambĂ©m
possui origens gregas. Na mitologia, ela teria sido a esposa de DionĂsio. Isso nĂŁo quer
dizer que a Ariana e o DionĂsio destes poemas representem os personagens da
mitologia; hĂĄ apenas a sugestĂŁo de uma ancestralidade. Este poema fala do
surgimento da poesia: o verso que se faz â a cada noite â na âsĂĄbia ausĂȘnciaâ do ser
amado. O tĂtulo dessa parte, âpara flauta e oboĂ©â, evoca explicitamente a mĂșsica,
trazendo a lembrança de um tempo em que a poesia era acompanhada pela lira.
De todos os poemas de Hilda que traduzimos, este Ă©, possivelmente, o que
apresenta de forma mais marcada caracterĂsticas da mĂ©trica tradicional, podendo atĂ©
mesmo ser classificado como um verso polimĂ©trico. O primeiro e o antepenĂșltimo
verso sĂŁo alexandrinos, e o penĂșltimo verso Ă© perfeitamente jĂąmbico. O aspecto mais
regular Ă© que todos os versos terminam com palavras paroxĂtonas (com apenas uma
exceção, o verso que termina em âvirĂĄâ). HĂĄ tambĂ©m regularidade na acentuação dos
versos, pois muitos recebem acento na terceira, sexta, oitava e dĂ©cima sĂlabas. HĂĄ
também presença importante de rimas: riqueza/rudeza, dentro/vento/atento,
venhas/apenas, ouviria/escutaria, que contribuem para a engrenagem musical do
poema. Ou seja, percebemos que Hilda faz uso da métrica tradicional, mas não se
atĂ©m rigorosamente a ela. Um pouco como o uso dos nomes Ariana e DionĂsio nos
remete Ă antiguidade, o uso de versos metrificados produz um efeito parecido: nos
remete a um outro tempo da poesia, anterior ao verso livre. E ainda, a regularidade
mĂ©trica contribui para a solenidade do poema â nĂŁo hĂĄ nada coloquial ou solto, hĂĄ
precisĂŁo em cada sĂlaba.
O norte da nossa tradução foi tentar dar conta dessa presença
simultaneamente solene, musical e antiga do poema. Para tal, procuramos preservar
na tradução alguma regularidade rĂtmica e algumas rimas. Vejamos, em mais
detalhes, como ela se deu.
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No primeiro verso, uma tradução mais literal seria algo assim: âIt is as it
should be, Dyonisus, that you should not comeâ. Este verso, porĂ©m, parece longo e
repetitivo, além disso, enquanto no verso original encontramos um alexandrino, este
verso nĂŁo possui mĂ©trica regular. Sendo assim, preferimos âIt is as it should be,
Dyonisus: do not comeâ. Embora o significado seja ligeiramente alterado,
conseguimos um verso predominantemente jĂąmbico, preservando assim um pouco da
solenidade do verso original.
O Ășltimo verso da primeira estrofe tem uma tradução que Ă© semanticamente
complicada. Em âdo lĂĄ foraâ, âdaâ Ă© uma contração de âdeâ + âaâ, assim, a expressĂŁo
âlĂĄ foraâ ganha uma qualidade nĂŁo apenas adverbial, mas tambĂ©m substantiva.
Respeitando estritamente o significado e preservando tanto o aspecto adverbial, como
substantivo do verso, farĂamos uma tradução assim: âof the things of the out thereâ.
Esse parece, porém, um verso demasiadamente longo, que faz uma repetição que não
ocorre no original. Preferimos, portanto, manter apenas âof the out thereâ, perdendo
âcoisasâ, mas mantendo o aspecto adverbial e substantivo de âout thereâ.
Valorizando esse movimento âsubstantivoâ, modificamos a primeira linha da
terceira estrofe, âEu jamais escutariaâ virou âWould never reach meâ. Embora nĂŁo
seja, em termos semĂąnticos, completamente fiel ao significado desse verso especĂfico,
nos parece uma tradução que condiz com o modo de significar do poema. âAtentaâ,
no final deste mesmo verso, Ă© de difĂcil tradução, pois âattentiveâ tem um sentido de
cuidar, de dar atenção. Escolhemos, por enquanto, âabsorbedâ.
âSumo do teu cantoâ Ă© de difĂcil tradução. âSumoâ pode significar tanto algo
como âĂłleos essenciaisâ e âsucoâ, como âsupremoâ,âcumeâ ou âextremadoâ. NĂŁo hĂĄ
uma palavra em inglĂȘs que dĂȘ conta de todo esse campo semĂąntico, sendo assim,
preferimos traduzir por âessence of your songâ, o que permite uma aliteração com o
som de âsâ, alĂ©m de possibilitar tanto uma leitura mais concreta (de âessenceâ como
Ăłleo, como substĂąncia) e uma leitura mais metafĂłrica (de âessenceâ com um sentido
mais platĂŽnico, como a essĂȘncia de uma idĂ©ia).
No verso seguinte, a tradução mais literal seria ârudenessâ, que Ă©, porĂ©m,
demasiadamente banal em inglĂȘs, enquanto ârudezaâ nĂŁo tem nada de banal.
Preferimos, portanto, âroughnessâ.
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O verso âe sorver reconquista a cada noiteâ tambĂ©m Ă© de difĂcil tradução, alĂ©m
de ser um decassĂlabo, como traduzir âsorverâ e âreconquistaâ? O verbo âreconquerâ
existe em inglĂȘs, mas nĂŁo na forma substantiva. Sendo assim, preferimos, acrescentar
o âanewâ e usar âvictoryâ ao invĂ©s de âconquestâ. Preferimos usar âsavourâ, pois
uma tradução mais literal de âsorverâ seria algo como âto sipâ ou âto suckâ. Mas hĂĄ
em âsorverâ tambĂ©m um sentido de escutar com grande atenção. Sendo assim,
âsavourâ parece uma boa tradução pois conjuga a ideia de saborear, fruir (de modo
mais abstrato), com a ideia de uma ação que se faz com a boca.
Os dois prĂłximos versos ganharam tradução quase literal: âPensando:
amanhĂŁ, sim, virĂĄ/ E o tempo de amanhĂŁ serĂĄ riquezaâ â âThinking: tomorrow, yes,
you will come/And tomorrow will be a time of plentyâ. E âplentyâ nos possibilitou
um rima incompleta com âreadyâ, no verso seguinte â âEvery night, I Arianna,
making readyâ â que tem ritmo predominantemente trocaico.
No Ășltimo verso, traduzimos âse fazendoâ por âunfoldingâ, que dĂĄ ideia de
algo que se desdobra a partir de outra coisa, e foi possĂvel manter alguma
regularidade rĂtmica.
Fazendo uma anĂĄlise mais geral do poema, podemos ver que foram mantidas
todas as pausas no interior dos versos, além de termos conseguido versos com mais
ou menos o mesmo tamanho que o original. Não conseguimos, porém, uma
regularidade métrica como a presente no original; apenas em alguns versos o ritmo se
coloca se modo mais evidente. As rimas foram também quase todas perdidas, pois em
inglĂȘs ocorre apenas uma aliteração (essence-song) e uma rima incompleta (plenty-
ready). A maior regularidade no poema traduzido Ă© que na primeira parte do poema
muitos versos terminam com palavras que recebem acento na Ășltima sĂlaba, ou sĂŁo
monossilĂĄbicas (come-suppose-there-inside-wind-side) e depois, quase todas recebem
acento na penĂșltima sĂlaba (absorbed-listen-Dionysus-roughness-plenty-ready-
absence). Ou seja, hĂĄ aqui alguma regularidade, mas de modo bem mais frouxo do
que no original. Nos parece, porém, que conseguimos, semanticamente, traduzir o
aspecto solene do poema. Em inglĂȘs tambĂ©m nĂŁo hĂĄ coloquialismos, e a escolha
vocabular denota um registro alto, atravĂ©s de palavras e expressĂ”es como âanewâ,
![Page 13: 4. Cantando com Hilda Hilst - PUC-Rio](https://reader031.vdocuments.mx/reader031/viewer/2022012418/617312c49a1a3669d235f0bf/html5/thumbnails/13.jpg)
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âtime of plentyâ, âfragranceâ e âunfoldingâ. Esperamos, assim, que o modo de
significar do original tenha sido, ao menos em parte, traduzido.
4.2. Poema 2
Original: Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, DionĂsio, Se me amas, podes dizer que nĂŁo. Pouco me importa Ser nada Ă tua volta, sombra, coisa esgarçada No entendimento de tua mĂŁe e irmĂŁ. A mim me importa, DionĂsio, o que dizes deitado, ao meu ouvido E o que tu dizes nem pode ser cantado Porque Ă© palavra de luta e despudor E no meu verso se faria injĂșria E no meu quarto se faz verbo de amor. (p. 63) Tradução: When Beatrice and Cayanna ask you, Dionysus, If you love me, you may say you love me not. It little matters to me Being nothing around you, a shadow, tattered stuff In the judgement of your mother and sister. What matters to me, Dionysus, is what you say in bed, to my ear And what you say can not be sung Because they are shameless, raging words And in my verse they would sound wrong And in my room love is the word.
Esse poema tambĂ©m faz parte da sĂ©rie âOde descontĂnua e remota para flauta e
oboĂ©. De Ariana para DionĂsioâ. Assim como o poema que vimos anteriormente, hĂĄ
nesse poema uma solenidade, uma musicalidade e uma atmosfera antiga. Hilda
embaralha as referĂȘncias, mencionando simultaneamente DionĂsio, que nos remete Ă
cultura grega, e Beatriz, que nos faz pensar na Divina Comédia de Dante. Não
conseguimos descobrir a etimologia do nome Caiana, apenas sabemos que Ă© o nome
de uma cidade no estado de Minas Gerais, e que Cayana, grafado com âyâ, Ă© o nome
de uma ave. Para traduzir DionĂsio e Beatriz, seguimos a grafia habitual desses nomes
![Page 14: 4. Cantando com Hilda Hilst - PUC-Rio](https://reader031.vdocuments.mx/reader031/viewer/2022012418/617312c49a1a3669d235f0bf/html5/thumbnails/14.jpg)
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em inglĂȘs. JĂĄ com Caiana, optamos simplesmente por uma grafia anglĂłfona,
âCayannaâ, que tem uma sonoridade bastante prĂłxima do portuguĂȘs.
Fazendo a escansĂŁo, percebemos que muitos versos poderiam ser decassĂlabos,
como se Hilda houvesse escrito inicialmente usando uma métrica mais tradicional, e
depois houvesse remontado o poema para âdisfarçarâ a mĂ©trica (ver anexo com
escansĂŁo). Ă um procedimento que nos parece coerente com o que sugere o tĂtulo
dessa parte do livro, âOde descontĂnuaâ (grifo nosso).
HĂĄ tambĂ©m algumas rimas, como a ocasionada pela repetição de âimportaâ no
final de dois versos, e as rimas entre âdeitado-cantadoâ e âdespudor-amorâ.
Em inglĂȘs, conseguimos manter as mesmas pausas que ocorrem no interior dos
versos, e em alguns versos preservamos uma regularidade rĂtmica razoĂĄvel, como no
verso jĂąmbico âAnd what you say can not be sungâ. Outra regularidade mantida, com
exceção do primeiro verso, é que todos os versos terminam com palavras acentuadas e
monossilĂĄbicas.
As palavras âsombra, coisa esgarçadaâ, no segundo verso, sĂŁo importantes
para o poema, e nos parece que foram bem traduzidas por âa shadow, tattered stuffâ.
Em termos semĂąnticos, foi mais problemĂĄtica a tradução dos Ășltimos versos. A
construção âpalavra de luta e despudorâ nĂŁo possui um equivalente em inglĂȘs, sendo
assim, optamos por âshameless, raging wordsâ, o que possibilitou uma ligeira rima
com âwrongâ e com âwordsâ, nos versos que se seguem. Certamente, âin my verse
they would sound wrongâ nĂŁo tem a seriedade de âe no meu verso se faria injĂșriaâ.
Optamos, portanto, por uma construção um pouco mais coloquial no inglĂȘs. PorĂ©m,
levando em consideração que perdermos as outras rimas do poema, é bastante bem-
vindo o fato dos Ășltimos trĂȘs versos rimarem na tradução. Nesse caso, fizemos uma
clara opção pela musicalidade e fluidez, em detrimento do aspecto solene dessa
poesia.
E ainda, em relação ao Ășltimo verso, vale observar que em portuguĂȘs hĂĄ uma
construção de difĂcil tradução, pois âse faz verbo de amorâ seria algo como âlove is
the actionâ. Mas assim perderĂamos o sentido de âverboâ enquanto âpalavraâ, e a
referĂȘncia bĂblica Ă© importante para esse verso. Sendo assim, preferimos âAnd in my
![Page 15: 4. Cantando com Hilda Hilst - PUC-Rio](https://reader031.vdocuments.mx/reader031/viewer/2022012418/617312c49a1a3669d235f0bf/html5/thumbnails/15.jpg)
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room love is the wordâ, mantendo a referĂȘncia a âE no principio era o Verbo/ In the
beggining was the Wordâ.
4.3. Poema 3
Original: Essa lua enlutada, esse desassossego A convulsĂŁo de dentro, ilharga Dentro da solidĂŁo, corpo morrendo Tudo isso te devo. E eram tĂŁo vastas As coisas planejadas, navios, Muralhas de marfim, palavras largas Consentimento sempre. E seria dezembro. Um cavalo de jade sob as ĂĄguas Dupla transparĂȘncia, fio suspenso Todas essas coisas na ponta dos teus dedos E tudo se desfez no pĂłrtico do tempo Em lĂvido silĂȘncio. Umas manhĂŁs de vidro Vento, a alma esvaziada, um sol que nĂŁo vejo.
Também isso te devo. (p. 37) Tradução: This mournful moon, this unease Inner turbulence, lagoon, Inside the solitude, a dying body, All this I owe to you. Such immense Plans and future, ships, Walls of ivory, words full Always consented to. It would be December. A jade horse beneath the waters A double transparency, a line in mid-air All these things at your fingertips All undone through the portal of time Silent and blue. Mornings of glass, Wind, a hollow soul, a sun I can not see
This, too, I owe to you.
Quando este trabalho se iniciou, em 2005, em um workshop de tradução em
Londres, esse foi o primeiro poema que traduzimos. Posteriormente, ele foi retomado
e retraduzido, como parte do curso âTradução de Poesiaâ, no primeiro semestre de
![Page 16: 4. Cantando com Hilda Hilst - PUC-Rio](https://reader031.vdocuments.mx/reader031/viewer/2022012418/617312c49a1a3669d235f0bf/html5/thumbnails/16.jpg)
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2008 na PUC-Rio. Ou seja, o convĂvio com essa tradução Ă© de longa data, e apesar
das dificuldades para traduzi-lo, o poema adquire força prĂłpria em inglĂȘs. O mĂ©rito
aqui Ă© mais do prĂłprio poema, que, apesar de formalmente complexo e de certo
rebuscamento vocabular, Ă© lĂmpido, intenso e certeiro. Outro modo de dizer isso:
mesmo que se faça uma tradução desatenta desse poema, ele é tão forte, que parte de
sua intensidade dificilmente se perde na tradução.
Examinando sua forma, encontramos 14 versos, embora se trate de algo
diferente de um soneto (ver anexo). Uma caracterĂstica marcante sĂŁo as cesuras
presentes em todos os versos, exceto no Ășltimo. O nĂșmero de acentos em cada
hemistĂquio varia bastante, com uma mĂ©dia de dois acentos primĂĄrios em cada, e
podemos falar de um enjambement entre os versos 4 e 5. Observamos ainda a
presença de algumas aliteraçÔes (âlua enlutada/ muralhas de marfimâ). AlĂ©m disso,
pode-se notar, embora o poema esteja escrito na primeira pessoa, que o pronome
pessoal oblĂquo da segunda pessoa Ă© o mais marcado: âte devoâ aparece logo no
começo do poema, e depois Ă© repetido no final, e o uso de âteus dedosâ, no verso 10,
enfatiza ainda mais a segunda pessoa. Outro elemento repetido algumas vezes sĂŁo os
pronomes demonstrativos âessaâ, âesseâ, que pela força do contraste, aumentam a
estranheza do uso do artigo indefinido em âumas manhĂŁsâ.
Porém, é o esquema de rimas internas com rimas externas o que
estruturalmente mais chama atenção nesse poema. São todas rimas toantes, onde a
letra a corresponde Ă rima que acontece entre âenlutadaâ, âilhargaâ , âvastasâ,
âplanejadasâ etc., e a letra b corresponde Ă rima de âdesassosegoâ, âdentroâ,
âmorrendoâ. Como podemos notar, a alternĂąncia entre esses dois sons nos finais dos
hemistĂquios ou ao final dos versos Ă© bastante constante e estĂĄvel em todo o poema.
Embora possamos mencionar ainda uma outra rima (c), com o som presente em
ânavioâ, âmarfimâ e âvidroâ.
Vejamos o esquema de rimas na versĂŁo em inglĂȘs (ver anexo). Como
podemos notar, uma correspondĂȘncia com o esquema de rimas do original foi
mantida, embora de forma mais fraca. Estabelecendo como rima âaâ as palavras que
rimam com âmoonâ, âsolitudeâ e âfullâ, e como rima âbâ as palavras terminadas em
sons sibilantes, como em âuneaseâ, em âturbulenceâ e em âimmenseâ. Foram
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mantidas também as cesuras nos versos, e o enjambement presente no original em
portuguĂȘs tambĂ©m estĂĄ presente na versĂŁo em inglĂȘs. Quanto Ă s aliteraçÔes, elas estĂŁo
presentes, embora nem sempre nos mesmos versos. A ĂȘnfase nos pronomes da
segunda pessoa do singular tambĂ©m foi mantida, e onde ele Ă© repetido em portuguĂȘs,
ele tambĂ©m Ă© repetido em inglĂȘs.
Passemos agora a uma anĂĄlise mais lexical e semĂąntica da versĂŁo, onde
tentaremos explicitar os motivos de certas escolhas, e até que ponto foram, ou não,
bem-sucedidas.
âDesassossegoâ, no primeiro verso, Ă© uma palavra marcadamente poĂ©tica em
portuguĂȘs, que nos remete a Fernando Pessoa, cuja versĂŁo para âuneaseâ nĂŁo
preserva a dicção poĂ©tica do original. PorĂ©m, a escolha de âuneaseâ se justifica por
possibilitar a rima sibilante, e também porque a falta do poético aqui serå
compensada por uma dicção mais elevada em outros momentos do poema. Podemos
dizer, entĂŁo, que houve uma perda, mas ela serĂĄ relativamente compensada, com o
uso no verso seguinte da palavra âturbulenceâ, de origem latina, e que em inglĂȘs
ganha um tom mais elevado, além de também preservar a rima sibilante.
âIlhargaâ, no segundo verso, foi um dos momentos de maior complexidade
semĂąntica da tradução. âIlhargaâ, em portuguĂȘs, pode significar: 1) os lados dos
corpos; 2) os lados de um caixão; 3) os lados de um navio. Além disso, podemos
fazer uma leitura do significante ilharga, por onde caberia a leitura âilhaâ + âlargaâ,
que nĂŁo Ă© despropositada no contexto do poema, onde as palavras âĂĄguaâ, ânavioâ e
âtransparĂȘnciaâ proporcionam uma atmosfera aquĂĄtica, ou marinha, ao poema. Por
enquanto, âlagoonâ foi mantido na versĂŁo, mas Ă© preciso buscar palavras com sentido
de âladoâ/ âedgeâ, e talvez assim seja possĂvel uma melhor correspondĂȘncia.
âDentro da solidĂŁoâ: em portuguĂȘs, âdaâ Ă© uma contração de âdeâ + âaâ, cuja
tradução literal para o inglĂȘs ficaria excessiva: âinside of the solitudeâ. Escolhemos
retirar a preposição e manter apenas o artigo definido, realçando a materialidade da
expressĂŁo: âinside the solitudeâ.
No caso de âa dying bodyâ, perdemos a rima, mas ambas as palavras parecem
demasiado fortes para serem alteradas.
![Page 18: 4. Cantando com Hilda Hilst - PUC-Rio](https://reader031.vdocuments.mx/reader031/viewer/2022012418/617312c49a1a3669d235f0bf/html5/thumbnails/18.jpg)
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No quinto verso, ocorreu uma mudança sintĂĄtica e tambĂ©m lexical. âAs coisas
planejadasâ virou âplans and futureâ, ou seja, perdemos âcoisaâ e a palavra
âplanejadasâ virou substantivo. Essa alteração nĂŁo parece ruim porque manteve uma
certa indeterminação presente no portuguĂȘs, isto Ă©, nĂŁo sĂŁo especificadas quais sĂŁo as
coisas planejadas, ao mesmo tempo que possibilitou a rima a de âfutureâ. Embora no
original uma menção ao futuro nĂŁo seja explicitada, âcoisas planejadasâ carrega uma
alusĂŁo ao futuro, por isso nĂŁo parece fora de lugar a inclusĂŁo dessa palavra.
JĂĄ no verso que termina com âa line in mid-airâ, perdemos a rima, porĂ©m foi
a imagem mais prĂłxima que conseguimos para âum fio suspensoâ, ainda que a
materialidade de âfioâ seja bem mais forte do que a de âlineâ. Nesse caso, podemos
falar de uma clara perda semĂąntica.
Curiosamente, a palavra pĂłrtico, do verso 11, tem um equivalente em inglĂȘs
bastante exato: âporticoâ. Mas talvez a escolha de âporticoâ em inglĂȘs, com sua
origem evidentemente latina, elevaria demais o tom do poema, e a palavra portal
permite manter uma dicção nobre, mas sem causar tanto estranhamento.
Para traduzir âem lĂvido silĂȘncioâ optamos por nĂŁo usar a palavra âlividâ que
em inglĂȘs estĂĄ mais relacionado Ă raiva. Foi feita a construção âsilent and blueâ, que
de algum modo parece mais adequada para traduzir o aspecto calmo de âlĂvido
silĂȘncioâ, ao mesmo tempo que âblueâ se aproxima de um dos sentidos da palavra
âlĂvidoâ, que Ă© âde cor esverdeada ou azulada, tirante a pretoâ (Houaiss). AlĂ©m disso,
repete a quantidade de sĂlabas e acentuação da segunda parte do verso: âmornings of
glassâ.
NĂŁo foi mantida uma correspondĂȘncia completa, porĂ©m, ao preservar uma boa
quantidade de rimas, e usando um léxico que parece fazer parte de uma mesma esfera
poĂ©tica, acredito que âthis mournful moonâ tenha ganhado em inglĂȘs uma mĂșsica e
um corpo parecidos com sua existĂȘncia original.
![Page 19: 4. Cantando com Hilda Hilst - PUC-Rio](https://reader031.vdocuments.mx/reader031/viewer/2022012418/617312c49a1a3669d235f0bf/html5/thumbnails/19.jpg)
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4.4. Poema 4 Original: Sorrio quando penso Em que lugar da sala GuardarĂĄs o meu verso Distanciado Dos teus livros polĂticos Na primeira gaveta Mais prĂłxima Ă janela? Tu sorris quando lĂȘs Ou te cansas de ver Tamanha perdição AmorĂĄvel centelha No meu rosto maduro? E te pareço bela Ou apenas te pareço Mais poeta talvez E menos sĂ©ria? O que pensa o homem Do poeta? Que nĂŁo hĂĄ verdade Na minha embriaguez E que me preferes Amiga mais pacĂfica E menos aventura? Que Ă© de todo impossĂvel Guardar na tua sala VestĂgio passional Da minha linguagem? Eu te pareço louca? Eu te pareço pura? Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade Que nunca me soubeste? (p. 22-23) Tradução: I smile when I wonder Where in your room You keep my verse. Away from your Political books? In the first drawer Close to the window? Do you smile when you read
![Page 20: 4. Cantando com Hilda Hilst - PUC-Rio](https://reader031.vdocuments.mx/reader031/viewer/2022012418/617312c49a1a3669d235f0bf/html5/thumbnails/20.jpg)
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Or are you tired of seeing Such abandon Amorous spark On my ripened face? Do I seem beautiful Or am I to you Too much of a poet, perhaps, And not serious enough? What does the man think Of the poet? That thereâs no truth In my drunkenness And that you prefer A friend more peaceful And less adventurous? That you simply cannot Keep in your room Worldly traces Of my passionate words? Do you see me as mad? Do you see me as pure? Do you see me as young?
Or is it real That you never knew me?
Esse poema difere bastante dos outros que traduzimos. Ă menos solene, mais
coloquial. Talvez por isso, a tal atmosfera antiga, que em geral enfatizamos no
poemas hilstianos, não se faz sentir aqui. Contribui para esse efeito geral a repetição
de interrogaçÔes, os versos curtos e råpidos e uma forma aparentemente menos
rebuscada â nĂŁo ocorrem, por exemplo, rimas internas. Ainda assim, veremos que a
tradução de alguns aspectos semùnticos dos versos se revelou delicada.
Em termos formais, o mais marcante nesse poema sĂŁo os versos curtos, onde
as sĂlabas 2 e 6 sĂŁo marcadas em quase todos os versos, quando nĂŁo a terceira e a
sexta sĂlabas, criando um ritmo preciso e constante (ver escansĂŁo em anexo).
As rimas também estão presentes, embora, nem de longe, tenham nesse
poema a mesma importĂąncia que tĂȘm em outros. Ao longo de quase todo o poema
temos sons que rimam entre si, como gaveta e centelha, e a rima Ă© completa entre lĂȘs,
talvez e embriaguez. Nos versos finais, aparecem as rimas toantes
pacĂfica/impossĂvel.
Outra marca importante é a repetição de certas estruturas sintåticas. Quase
todo o poema Ă© composto de perguntas, feitas por um âeuâ diretamente a um âtuâ, e
![Page 21: 4. Cantando com Hilda Hilst - PUC-Rio](https://reader031.vdocuments.mx/reader031/viewer/2022012418/617312c49a1a3669d235f0bf/html5/thumbnails/21.jpg)
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essa marcação sintĂĄtica (eu-tu) Ă© tambĂ©m constante. A expressĂŁo âte pareçoâ, por sua
vez, é repetida cinco vezes. Todas essas repetiçÔes facilitaram o trabalho de tradução.
Foi possĂvel recriar integralmente esse efeito em inglĂȘs. As marcas de pessoa tambĂ©m
foram quase sempre mantidas. A presença de dois acentos primårios por verso
também foi razoavelmente mantida, mas as rimas, por sua vez, se perderam por
completo (ver anexo, p. 111).
Mais complexo nessa tradução foi lidar com alguns pontos da semùntica.
Vejamos alguns itens:
âTamanha perdição/AmorĂĄvel centelhaâ: Para traduzir âperdiçãoâ,
escolhemos âabandonâ, que nĂŁo parece de todo convincente. E âamorĂĄvelâ talvez
tivesse sua tradução mais literal em âlovelyâ, porĂ©m, ao passo que lovely Ă© uma
palavra banal em inglĂȘs, o mesmo nĂŁo pode ser dito de âamorĂĄvelâ. Por isso,
escolhemos âamorousâ, que em inglĂȘs tem um forte sentido de sensualidade,
coerente com a poética hilstiana.
âMaduroâ: Quase impossĂvel de ser traduzido, ao mesmo tempo que nĂŁo
poderia ser omitido. Mature em inglĂȘs implica em algo mais moralizante, e esse
certamente nĂŁo Ă© o sentido do poema. Por enquanto, escolhemos âripenedâ, que ao
menos aproxima mais a idéia da fruta madura, bonita, pronta para ser comida, algo
como o rosto maduro da mulher.
Nos versos âamiga mais pacĂfica/ e menos aventuraâ, âaventuraâ passa como
adjetivo por causa da terminação feminina, mas ainda assim causa uma estranheza,
como uma âagramaticalidade poĂ©ticaâ. Em inglĂȘs, optou-se por manter dois adjetivos,
âpeacefulâ e âadventurousâ. Outra ideia, nĂŁo muito convincente, seria: âA friend
more peaceful/and less adventure?â. Ou ainda, poderĂamos deslocar o que em
portuguĂȘs Ă© um estranhamento lexical, para algo sintaticamente inusitado em inglĂȘs,
como: âA friend peacefully/ and less adventurous?â. TambĂ©m nĂŁo parece bom.
Por fim, no verso final, encontramos o verbo âsaberâ, ambĂguo, com mais de
um significado, onde âsaberâ substitui o verbo âconhecerâ, mais comum nesse
contexto. Normalmente o verbo âconhecerâ Ă© usado quando nos referimos a uma
outra pessoa, e âsaberâ, ao mesmo tempo que Ă© mais inusitado, traz consigo uma
conotação de sabor, de algo que se saboreia, e também de algo que se sabe porque se
![Page 22: 4. Cantando com Hilda Hilst - PUC-Rio](https://reader031.vdocuments.mx/reader031/viewer/2022012418/617312c49a1a3669d235f0bf/html5/thumbnails/22.jpg)
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apreende, como algo passĂvel de ser estudado. E ainda, em portuguĂȘs, fazemos uma
diferença de sentido entre saber e conhecer que nĂŁo ocorre em inglĂȘs, onde âto knowâ
Ă© usado indistintamente. NĂŁo conseguindo encontrar em inglĂȘs um vocĂĄbulo que
concentrasse todas essas nuances, optou-se por jogar a ambigĂŒidade para outro local,
para o verso anterior. âOr is it real/that you never knew me?â Ă© uma construção, no
mĂnimo, estranha, que ao menos abre as possibilidades de leitura do final do poema.
Nesse poema, a dificuldade com certas nuances semĂąnticas parecem bem
resolvidas. O modo de significar do poema foi mantido e hĂĄ o mesmo ritmo e mesma
forma no poema em inglĂȘs. Sendo assim, parece uma boa tradução.
4.5. Poema 5
Original:
Se for possĂvel, manda-me dizer â Ă lua cheia, a casa estĂĄ vazia. â Manda-me dizer, e o paraĂso HĂĄ de ficar mais perto, e mais recente Me hĂĄ de parecer teu rosto incerto. Manda-me buscar se tens o dia TĂŁo longo como a noite. Se Ă© verdade Que sem mim sĂł vĂȘs monotonia. E se te lembras do brilho das marĂ©s De alguns peixes rosados Numas ĂĄguas E dos meus pĂ©s molhados, manda-me dizer: â Ă lua nova â E revestida de luz te volto a ver. (p. 31)
Tradução: Send me word, if you can, âThe moon is full, the house is clear.â Send me word, and paradise Shall be nearer, and your uncertain face Shall seem more recent. Send for me if your day Is as long as your night. If itâs true Without me you see nothing but monotony. If you remember the gleam of tides
![Page 23: 4. Cantando com Hilda Hilst - PUC-Rio](https://reader031.vdocuments.mx/reader031/viewer/2022012418/617312c49a1a3669d235f0bf/html5/thumbnails/23.jpg)
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Some pale red fish In certain seas And my wet feet, send me word: âItâs a moonless nightâ And dressed in light, I come to see you again.
Este Ă© o poema de abertura do livro, de uma parte intitulada âO poeta inventa
viagem, retorno e sofre de saudadeâ. O poeta inventa, e inventa o que sofre. Ă
simultaneamente uma sĂșplica â urgente â e um convite, sugestivo e repleto de
sutilezas. Lembra remotamente a forma de um soneto, por ter catorze versos, pelo
nĂșmero de sĂlabas de muitos versos (que variam ao redor de dez â ver escansĂŁo em
anexo), e por sua temåtica abertamente amorosa. Na tradução, deve-se tentar
preservar este parentesco. Ele Ă© importante, mesmo que remoto. Como se um soneto
estivesse na lembrança, na memória do poema.
Mais marcante, em termos da estrutura do poema, Ă© o que se estabelece logo
no primeiro verso: âSe for possĂvel, manda-me dizerâ. Com algumas variaçÔes, Ă© este
o ârefrĂŁoâ do poema, que Ă© repetido de formas variadas ao longo do poema. E
marcando o inĂcio e o final do poema, hĂĄ uma descrição do ciclo lunar, antecedido
por um travessĂŁo. Como sĂŁo fases diferentes da lua, âlua cheiaâ e âlua novaâ, fica
marcada uma passagem de tempo, tanto da lua como, nos parece, do prĂłprio poema.
Compondo o movimento rĂtmico do poema, Ă© importante observar os versos curtos
prĂłximos ao final, âDe alguns peixes rosados/Numas ĂĄguasâ. SĂŁo os momentos da
memĂłria da poeta, e os versos curtos e os pronomes indeterminados fazem com que o
poema ganhe um ritmo mais lento. HĂĄ uma pausa maior entre os versos, e as palavras
ficam mais imprecisas, talvez por estarem falando de algo também vacilante, a
memória. Essa respiração precisa ser considerada no texto traduzido, pois também
compÔe a melodia do poema.
Em termos sintĂĄticos, hĂĄ uma abundĂąncia de pronomes oblĂquos ĂĄtonos (me,
te, mim, teu), uma marca constante nos poemas com os quais escolhemos trabalhar de
Hilda. Essas marcas de pessoa, portanto, também não devem faltar na tradução. Essa
forma de endereçamento faz parte do modo de significar da poesia hilstiana. à através
desta relação, eu-tu, que a poeta inventa viagem, retorno, distùncia, a própria poesia.
![Page 24: 4. Cantando com Hilda Hilst - PUC-Rio](https://reader031.vdocuments.mx/reader031/viewer/2022012418/617312c49a1a3669d235f0bf/html5/thumbnails/24.jpg)
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Hå também algumas rimas, nem todas no final da linha, como em perto-
incerto, vazia-dia-monotonia, rosados-molhados. E algumas aliteraçÔes, como em
lembras-brilho e em peixes-pĂ©s. E no Ășltimo verso ocorrem aliteraçÔes em âtâ e âvâ,
que de algum modo tornam mais enfĂĄtica a promessa que fecha o texto: âE revestida
de luz te volto a ver.â
Ă bastante problemĂĄtica a tradução do verso âSe for possĂvel, manda-me me
dizerâ, que se repete, com variaçÔes, ao longo do poema. Optamos por âIf you canâ,
por ser uma forma anglo-saxĂŁ sinĂŽnima a âif possibleâ e que soa mais usual nesse
contexto de pedir favor. AlĂ©m disso, âif possibleâ soaria por demais businesslike.
Para traduzir de forma mais literal a segunda parte deste verso â âmanda-me dizerâ â
precisarĂamos de uma construção meio desajeitada, muito longa, em inglĂȘs: have
someone come and tell me. Ao nosso ver, em portuguĂȘs estĂĄ dito que a poeta quer que
o ser amado mande alguĂ©m (um mensageiro?) trazer uma notĂcia. Optamos por âsend
me wordâ, construção que soa ligeiramente antiga, e mantĂ©m a idĂ©ia da intermediação
de alguĂ©m, a sugestĂŁo da presença de um mensageiro. Outra vantagem de âsend me
wordâ Ă© que podemos repetir uma construção similar quando o ârefrĂŁoâ reaparece,
ligeiramente modificado: âManda-me buscar/Send for meâ.
Os versos que dizem das lembranças, evocando certas imagens (âE se te
lembras do brilho das mares/ De alguns peixes rosados/Numas åguas/ E dos meus pés
molhadosâ) sĂŁo de delicada tradução. Como traduzir âpeixes rosadosâ, e como fazer
esse som e esse sentido ecoarem com âpĂ©s molhadosâ depois? Ficamos, por
enquanto, com âpale red fishâ, que parece melhor do que âpink fishâ, principalmente
por manter o ritmo: âpale red fish â my wet feetâ, correspondendo Ă repetição de
p_s_ados no original. Nesse trecho hĂĄ tambĂ©m o âalgunsâ e ânumasâ. Em inglĂȘs as
duas expressĂ”es seriam traduzidas por some, mas como nĂŁo querĂamos repetir, foi
usado âin certain seasâ, que parece bom tambĂ©m pela aliteração.
No Ășltimo verso, muito bonito, onde âluzâ ressoa com âluaâ, presente no
verso anterior (como se dissesse: âe revestida de lua te volto a verâ), este eco de
perdeu. Mas podemos usar âdressed in lightâ, que recupera a sibilante de âmoonlessâ,
alĂ©m de criar uma rima com ânightâ no verso anterior.
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Quanto ao nĂșmero de acentos por versos, a versĂŁo estĂĄ prĂłxima do original.
Talvez os versos pareçam um pouco mais curtos, e isto pode ser porque as palavras
em inglĂȘs tendem a ter menos sĂlabas do que as palavras em portuguĂȘs. Perdemos
muitas rimas, mas nĂŁo todas. Em inglĂȘs, temos as rimas clear-nearer, a rima sibilante
entre tides e seas e entre moonless e dressed, e ainda, night-light.
De modo geral, a tradução desse poema não ficou ruim, mas é como se não
tivesse a mesma força do texto em portuguĂȘs. Sim, foi mantida a forma que lembra o
soneto, e temos as mesma pausas e cesuras. O ritmo geral foi preservado. Porém, a
versĂŁo parece perder nos detalhes. As rimas e os ecos entre muitas palavras foram
perdidos, a tradução do verso que se repete foi problemĂĄtica, e o Ășltimo verso tem
uma tradução âcorretaâ, mas sem metade da força de todas as consoantes, afiadas, em
portuguĂȘs. Como sabemos, um poema traduzido deve tentar recriar os principais
efeitos poéticos de um poema, e parece que o principal, o ritmo, foi mantido; mas as
perdas de muitos detalhes fizeram com que o poema traduzido seja mais diluĂdo do
que o original.
4.6. ComentĂĄrio final
Ao traduzir e comentar os poemas de Hilda Hilst, nĂŁo perdemos de vista o
impacto do conjunto de efeitos poéticos, como aspectos semùnticos e sintåticos,
efeitos de ritmo e rima, entre outros. A poesia de Hilda Ă© densa, quase toda linha de
verso traz complexidades tradutĂłrias. Ao traduzir, considerando que uma
equivalĂȘncia total entre original e tradução Ă© improvĂĄvel, privilegiamos certos efeitos
em detrimento de outros, os que parecem mais importantes em cada poema. Sendo
assim, os comentĂĄrios sobre as traduçÔes tratam de diversos nĂveis da poĂ©tica
hilstiana, mas tende a se concentrar nos aspectos que se colocam de modo mais
evidente. Espera-se que o efeito final da tradução, seu modo de significar, seja
semelhante ao original.
Como efeitos poĂ©ticos caracterĂsticos de Hilda, destacamos o registro solene e
o uso freqĂŒente de rimas. Procuramos, portanto, recriar em inglĂȘs as rimas e preservar
a solenidade dos poemas, que se revela tanto no vocabulĂĄrio, como em certo âmetro
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fantasmaâ presente em alguns versos. Nas traduçÔes, embora de modo mais frouxo,
encontramos também alguns versos metrificados. Para manter o registro alto,
optamos algumas vezes por palavras de origem latina, que soam menos naturais em
inglĂȘs, e nos interessam justamente por provocar certo estranhamento. Tentamos
recriar em inglĂȘs o que parecia ser mais marcante na estrutura dos poemas, como
jogos de rimas internas e certas repetiçÔes sintåticas. Em termos semùnticos, a perda
de algumas sutilezas foi inevitĂĄvel. Mas os poemas de Hilda sĂŁo tĂŁo fortes que,
mesmo traduzidos, parecem preservar boa parte de sua força. Esperamos, portanto,
que a presença intensa, flamante e preclara dessa lĂrica tambĂ©m se faça sentir em
lĂngua inglesa.