#3€¦ · em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta...

97
- 1 - #3 www.criticaeconomica.net

Upload: others

Post on 31-May-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 1 -

#3

www.criticaeconomica.net

Page 2: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 2 -

ÍNDICE

Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla-tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica privilegia textos que avaliam o desempenho do Governo, resultados do memorando de entendimento com a troika e o papel das políticas públicas (Alexandre Abreu, Francisco Louçã, João Ramos de Almeida, José Vítor Malheiros, Pedro Adão e Silva, Pedro Lains, Sandro Mendonça), os constrangimento do Tra-tado Orçamental e da dívida (Alfredo Barroso e Octávio Teixeira), o planeamento do território e ecologia (Carlos Gaivoto), o mercado de trabalho e a negociação colectiva (João Ramos de Almeida, Maria Eduarda Ribeiro e João Lourenço, Nuno Serra), a conciliação entre vida profissio-nal e familiar, igualdade de género e responsabilidade social das empresas (Sandra Ribeiro), as pensões e o plafonamento, a acção social e a pobreza (Cláudia Joaquim, Eugénio Rosa, Fernando Marques, Sandra Monteiro, Vítor Junqueira) e propostas sobre a tributação da banca (João Ra-mos de Almeida).

Este número relembra ainda dois assuntos que atravessam toda a Europa: no futuro da Grécia o futuro do Euro (Jorge Bateira e Pedro Caldeira Rodrigues) e na forma como se aceitam os mi-grantes/emigrantes para além da comoção com capas da imprensa (Alexandre Abreu e Helena Silveirinha) – no fundo, dois assuntos que atravessam toda a Europa e que influenciarão o futuro da Europa.

A revista inclui ainda notas oportunas sobre dois assuntos que percorrem todas as campanhas eleitorais, muitas vezes com deficiente utilização técnica e estatística, resumidos em duas pala-vras-chave: produtividade (Mário Bairrada) e pobreza (Vítor Junqueira).

Ana Costa

Francisco Louçã

José Luís Albuquerque

Page 3: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 3 -

#3

ÍNDICE

1 - POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Pedro Lains, Errar uma vez basta .................................................................................. 05

Carlos Gaivoto, Cidadania, Ecologia e Democracia na praxis da Justiça Social e Territorial............................................................................. 06

Cláudia Joaquim, “Se não houve rutura social no país foi por causa das instituições sociais”. Será assim? ........................................................ 19

Eugénio Rosa, A sustentabilidade da segurança social nos programas do PS e da coligação PSD/CDS ............................................................. 24

Sandra Ribeiro, O imparável abominável hoje! ............................................................... 28

Sandro Mendonça, Afirmar as alternativas: Que futuro para a política pública? ............ 32

Alexandre Abreu, Os sucessos e insucessos do governo ...............................................33

Alfredo Barroso, Para uma convergência à esquerda. ................................................... 35

Fernando Marques, Políticas sociais: direitos, mercados e assistencialismo ................ 40

João Ramos de Almeida, Lições de um plano mal enjorcado, mas muito plástico ....... 45

João Ramos de Almeida, Artes de ilusionista na tributação sobre a banca .................. 47

Maria Eduarda Ribeiro e João Lourenço, Trabalho e Emprego ................................... 50

Maria Eduarda Ribeiro, Negociação colectiva de trabalho ............................................. 54

Nuno Serra, O mercado de trabalho quatro anos depois ................................................ 59

Octávio Teixeira, Saída da crise e da austeridade exige rupturas .................................. 61

Sandra Monteiro, Aprender com a Segurança Social ..................................................... 64

Vítor Junqueira, Os plafonamentos prometidos .............................................................. 66

Page 4: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 4 -

ÍNDICE

2 - APRENDER COM A POLÍTICA

Francisco Louçã, Algumas coisas que a esquerda tem a aprender com a direita ....... 69

João Rodrigues, Aprender ............................................................................................. 73

José Vítor Malheiros, O combate político é um combate ............................................. 76

Pedro Adão e Silva, A vitória da culpa ........................................................................... 78

3 - EUROPA, DA GRÉCIA AOS MIGRANTES

Jorge Bateira, Tsipras e Mitterrand ................................................................................ 80

Pedro Caldeira Rodrigues, «O Sobressalto Grego» .................................................... 81

Alexandre Abreu, Homenagens do vício à virtude ........................................................ 85

Helena Silveirinha, A força da grana.............................................................................. 87

4 - NOTAS

Mário Bairrada, Economia, Investimento e Produtividade: de que é que estamos a falar? ........................................................................................ 89

Vítor Junqueira, A mistificação do José Gomes Ferreira............................................... 95

Page 5: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 5 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

Errar uma vez basta

PEDRO LAINS

Há quatro anos, num momento pré-eleitoral como este, uma série de gestores, púbicos ou pri-vados, funcionários de bancos e professores universitários, economistas ou não, apareciam na televisão e em outros meios de comunicação social para anunciar o desastre caso o país não pedisse um resgate a instituições financeiras internacionais e mudasse de vida. A movimenta-ção foi, de facto, de massa. O país tinha de viver com o que tinha, implementar políticas novas chamadas genericamente de reformas estruturais, deixar de investir em infraestruturas consi-deradas desnecessárias, diminuir o peso do Estado, baixar salários, reformar pensões, mudar leis de rendas, alterar leis laborais, pois sem isso tudo estaria condenado à desgraça. O gover-no mudou, veio outro com todo o poder de uma maioria absoluta, o memorando de entendi-mento com a troika de credores teve portas abertas, veio o resgate financeiro, salvaram-se os bancos, baixaram-se salários, mudaram-se as leis que era dito ser preciso mudar, reduziu-se o peso do Estado em pessoas e despesas, e o que aconteceu? O que mudou? Alguns acham que mudou muito mas todos têm dificuldades em apontar as mudanças substanciais. As novas leis do trabalho foram acompanhadas - e isso é inquestionável - por menos e não mais emprego; a lei das rendas trouxe fecho de lojas e nada fez à mobilidade da força de trabalho; a redução do peso do Estado levou a menores défices públicos mas a mais dívida pública em percentagem do PIB; as privatizações trouxeram redução de empresas, novos detentores de rendas e nada mudaram no tipo de investimento; as exportações subiram em percentagem do PIB, porque este desceu, mas quase nada em valor e volume; e a estrutura da economia quase nada mu-dou, ainda menos do que havia mudado na década anterior. E não só. Claro, os sinais negativos podem sempre ser acompanhados por alguns sinais positivos. Mas quais? Os que se vêm estão associados a velhos problemas, pois o ligeiro crescimento económico está a ser acompanhado pelo regresso de desequilíbrios, na balança externa, no endividamento e no aumento do con-sumo, daquele consumo que nos levará novamente a essa invenção teórica nacional do “viver acima das possibilidades”. E onde estão todos aqueles que diziam que era preciso fazer o que foi feito para agora analisar as consequências do que foi feito? Onde estão os economistas dos debates de há quatro anos? Na verdade, aquilo que vemos é que tão boas ideias tiveram mui-tos defensores antes de serem aplicadas e, agora, que foram aplicadas, nenhuns defensores têm. Será por razões políticas, pois afinal não acreditam no actual governo? Será por cansaço? Será porque acham que o que foi feito não foi suficiente e por isso afinal estão desiludidos? Ou

POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Page 6: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 6 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Cidadania, Ecologia e Democracia na praxis da Justiça Social e Territorial.

CARLOS GAIVOTO

Prólogo“The geography and history of capitalism intersect in a complex social process which creates a constantly

evolving historical sequence of spatialities, a spatio-temporal structuration of social life which gives form to

and situates not only great movements of societal development but also the recursive practices of day-to-

day activity – even in the least capitalist of contemporary societies.

Social and spatial structures are dialectically intertwined in social life, not just mapped one onto the other

as categorical projections. And from this vital connection comes the theoretical keystone for the materialist

interpretation of spatiality, the realization that social life is materially constituted in its historical geography,

that spatial structures and relations are the concrete manifestations of social structures and relations

evolving over time, whatever the mode of production…The constitution of society is spatial and temporal,

social existence is made concrete in geography and history.” Edward Soja, pág. 127, cap.5 “Reassertions:

Towards a Spatilized Ontology” - In “The Reassertion of Space in Critical Social Theory”, Ed.Verso, 1989.

A intervenção política, nas áreas do social, do económico e do institucional, tem tido participação diversa dos partidos e das organizações autónomas numa sociedade cada vez mais urbanizada, onde as ilusões urbanísticas vão moldando a nossa vida quotidiana, onde o atomismo paralisa e substitui a cidadania mas, onde os movimentos sociais desiguais e combinados vão a par das diferentes geografias do capitalismo. Em períodos de refluxo, esse atomismo reduz respostas políticas de alternativa ao actual sistema, acentua mesmo recuos que explicam, em parte, o prolongamento das “vitórias” da gestão capitalista.

será porque, afinal, quatro anos de experimentalismo deram uma pequena lição de história, a lição que faltava para se confirmar que as economias são algo mais complicado do que parece, que as economias da periferia de uma união monetária precisam, afinal, de uma análise mais profunda? É por isto que acho que o Governo do país deve mudar e deve mudar em força. Houve muitos erros, muitos mesmo, erros que podem ser revertidos - por quem neles não acreditou - e quanto mais cedo melhor. Simplesmente.

(inicialmente publicado em http://pedrolains.typepad.com/pedrolains/2015/09/onde-est%C3%A3o.html)

Page 7: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 7 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

Por cá, a “fraca” atenção, leia-se, o “fraco” combate ideológico dado às políticas públicas de como se faz cidade ou região, ou seja, do planeamento da ocupação e usos do solo, dos equipamentos colectivos aos serviços, ao contrário doutros; traz-nos o debate que Lefebvre introduzia em 1970 no seu livro “La Révolution Urbaine”1, a preocupação de como responder ao modo de vida introduzido nas cidades e sobretudo, como responder à: - “extraordinary passivity of the people most directly involved, those who are affected by projects, influenced by strategies. Why the uncertain mutterings about aspirations – assuming anyone even bothers to consider them? What exactly is behind this strange situation?...The political reasons for passitivity need to be taken seriously…Ideologically, technically, and politically, the quantitative has become rule, norm, and value. How can we escape the quantifiable”2.

À reflexão e apreensão de Lefebvre naquele tempo e às similitudes do que se passa hoje, em particular, quando “movimentos sociais” são seguidos de períodos de refluxo, há hoje um maior enriquecimento no reforço deste debate, através de contributos, entre outros, de Harvey, Soja e Castells em que a Geografia Humana é colocada perante a dinâmica das lutas sociais dentro das cidades, a par das lutas pela procura duma maior justiça social, territorial, ambiental e energética: “At that time, a balanced socio-spatial and geo-historical dialetic was almost inconceivable on the Marxist left, and for various other reasons, Lefebvre’s ideas remained buried for more than two decades. While Lefebvre’s spatial explanation of the survival of the capitalism was muted in its impact, Harvey came forward with his very similar idea that capitalism seeks a spatial fix when faced with crisis.”3.

Associado ao direito à cidade, este debate da sobrevivência do capitalismo na reprodução social da ocupação e usos do solo deve, por isso, aprofundar-se à esquerda, num período em que o modo de vida do Estado Social é posto em causa pelo neo-liberalismo e num período em que a ecologia urbana não é, como muitas vezes se confunde, associado às questões ambientais ou ao capitalismo verde.

Por outro lado, trata-se também de questionar a forma e os planos do(s) Governo(s) do Estado e das Vereações Municipais eleitas que têm expandido território urbano duma forma cíclica com as crises do capitalismo, dando-lhe aquela oportunidade de sobrevivência. Este é um debate pouco aprofundado e, por vezes, limitado aos períodos eleitorais das autarquias, portanto, pouco trabalhado com as populações e a sociedade.

1 — Originalmente publicado em França em 1970, “La Révolution Urbaine”, ed. Gallimard tem agora uma versão inglesa, editada em 2003 pela Universidade do Minnesota “The Urban Revolution”. Acerca do debate: “What is urbanism? A superstructure of neocapitalist society, a form of “organizational capitalism”, which is not the same as “organized capital” – in other words, a bureaucratic society of controlled consumption. Urbanism organizes a sector that appears to be free and accessible, open to rational activity:inhabited space. It controls the consumption of space and the habitat…”, cap.8 “The urban illusion”. “This space is occupied by interrelated networks, relationships that are defined by interference. Its homogeneity corresponds to intentions, unified strategies, and systematized logics,on the one hand, and reductive, and consequently simplifying, representations on the other. At he same time, differences become more pronounced in populating this space, which tends, like any abstract space, toward homogeneity (quantitative, geometric, and logical space. This, inturn, results in conflict and a strange sense of unease. For this space tends toward a unique code, an absolute system, that of exchange value, of the logical things and the logic of things.”, cap.9 “urban society”.

2 — Lefebvre, Henri – in Conclusions of “The Urban Revolution”, ed. University of Minnesota Press, 2003.

3 — Soja, Edward – in cap.3 “Building a Spatial Theory of Justice” do livro “Seeking Spatial Justice, ed. . University of Minnesota Press, 2010.

Page 8: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 8 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

4 — Gaivoto, Carlos – Oeiras, 2013

Por cá essa praxis pelo direito à cidade e a procura de justiça social tem tido uma grande diversidade e na maior parte das vezes muito reactiva, o que evidencia ainda as fragilidades políticas de intervenção desses movimentos sociais e políticos.

Por isso, no texto seguinte elaborado em 2013, fruto de experiência de trabalho local desde 74 e mais recentemente com os movimentos da CRIL (2002), “Salvem Caxias” (2004) ou ainda mais recente, o movimento de “Cidadãos por Alcântara” (2012); coloquei o lema da “cidadania, ecologia, democracia” com a perspectiva de se criar uma agenda local que permita ser um reforço do combate ideológico para futuros movimentos sociais e ao mesmo tempo um apelo à sua autonomia através da criação, por exemplo, de Fórum Social por município.

É também um documento que em 2013, entendido como base programática para um manifesto autárquico, já colocava no debate político da necessidade da Convergência de Esquerda, o contexto da necessidade de aprofundar, por exemplo, os Planos de Ordenamento do Território e Transportes e a Conta Pública do Sistema de Deslocações mas, enquadrados por políticas públicas para uma sociedade que se oriente pelos princípios e objectivos do eco-socialismo, admitindo que a Democracia e República são indissociáveis, em particular, no combate à barbárie do capitalismo. É, portanto, um texto de balanço e perspectivas, a saber:

“REPÚBLICA E DEMOCRACIA DA(S) CIDADE(S) ECO-SOCIALISTA” 4

A República reforça-se com a Democracia na cidade eco-socialista mas, os contornos burgueses do “desenvolvimento” democrático, como por exemplo, a ausência de justiça social e territorial no governo da cidade e da região, atrasam-na e acentuam as desigualdades e as assimetrias da vida das populações e da economia desses territórios.

No encontro de balanços económicos e sociais, fora do parlamento, de cada uma das regiões e cidades do país, poderemos evidenciar o contraste entre o que seriam as opções de desenvolvimento sustentável duma sociedade com justiça social, territorial e ambiental e aquela que é controlada por leis e regulamentos que têm permitido projectos capitalistas especulativos. Estes projectos que nos trazem elevados custos sociais directos e indirectos e a que não é alheia a irracionalidade da exploração dos recursos materiais e humanos e os custos provocados pelos impactes, por exemplo, duma difusão urbana com consequente aumento das externalidades negativas nos transportes, na saúde, no ambiente e na energia.

Na Europa, a partir dos anos 70/80, depressa se fez crer que esses impactes deveriam ser geridos através das orientações liberais e neo-liberais que consagraram a privatização da República: - os serviços públicos dos transportes, da saúde, do ambiente e da energia e que passaram a fazer parte do léxico da economia privada contra a economia pública.

Page 9: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 9 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

Foi assim em Inglaterra e em Portugal com grande incidência pois, depressa também se foi consolidando toda uma construção legislativa a consagrar o direito privado sobre o direito público, deixando para trás toda a construção duma sustentabilidade a basear em códigos civis, de urbanismo, de transportes, de racionalização do ar e da energia, como já era recomendado pelo relatório Brundtland em 1987 e mais tarde consagrado no Protocolo de Quioto e Agenda Local XXI, em que se exigia o cumprimento do princípio de precaução e a justiça social, territorial e ambiental. Em Inglaterra algum caminho foi arrepiado depois do desastre Thatcher mas, em Portugal, os governos e os bancos empreenderam essas políticas e ampliaram os usos e costumes na privatização das “utilities” da economia pública e social. Perdeu a República e perdeu a Democracia.

Dentro deste espectro político, não só verificável ao nível europeu, nem todos os Estados, e por demais, as Repúblicas, se deixaram dominar exclusivamente por essa lógica especulativa, ou seja, existem algumas “boas práticas” de enquadramento ecológico, desenvolvidas em cidades e regiões de países capitalistas avançados.

Seja pelo elevado nível político da democracia participativa ou de grandes movimentos sociais ecológicos, seja pelo próprio estádio de desenvolvimento das suas forças produtivas, nestes países fizeram-se consagrar princípios e objectivos de ecologia urbana de desenvolvimento sustentável e que aplicaram as raízes da Democracia Participativa nos seus programas de Economia Verde (ex: Grenelle Environnement). Ao romper com o modo de produção capitalista, estes programas poderão ter, na sua génese, as raízes da democracia socialista, uma vez que a discussão do modo de produção, seria debatido, planeado e organizado pela sociedade em geral.

Neste contexto, a ampliação da aplicação de conceitos de ecologia urbana e desenvolvimento sustentável desses países só está a confirmar a teoria do desenvolvimento desigual e combinado e coloca no centro do debate da governação urbana, a questão da cidade que queremos no plano da ecologia urbana e de desenvolvimento sustentável, sabendo que a ideologia dominante está já a fazer a sua incursão “inteligente” nestes domínios, aos quais devemos saber responder.

Portanto, o primeiro cuidado/desafio que se coloca hoje em dia é como se deve combater a instrumentalização política das orientações liberais e neo-liberais sobre a ecologia urbana e o desenvolvimento sustentável, como já o pretende fazer o Governo PSD/CDS, ou ainda, como fazer a governação urbana de esquerda pelas cidades eco-socialistas e de rotura com o sistema capitalista, com PS, PC e movimentos autónomos de cidadãos; e o segundo desafio é o combate por uma descentralização institucional (local e regional), nas atribuições de competências, por exemplo, às CIM, como forma de aumentar a Democracia da República, sendo certo que a discussão desta descentralização institucional só pode visar a justiça social, territorial, ambiental e económica.

Ou seja, trata-se, portanto, de discutirmos primeiro, o programa de governação urbana e depois, discutirmos a forma institucional da administração do território da cidade ou da região. Ora, neste encontro de perspectivas sobre programa de governo local, devemos ou não antecipar

Page 10: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 10 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

o nosso esforço político na defesa da ecologia urbana e desenvolvimento sustentável, por consequência, na Democracia que defenda a República da cidade eco-socialista com justiça social, territorial e ambiental?

Claro que sim! Qual (ais) é (são) a (s) prioridade (s), então, no trabalho local?

A SUSTENTABILIDADE DO ECO-SOCIALISMO NAS CIDADES E REGIÕES E A PROPOSTA “POR UMA CONVERGÊNCIA DE ESQUERDA”.

Falar de República das cidades (e das regiões) é ir muito além do Parlamento, é clarificar princípios, objectivos e metas contra o desperdício dos recursos naturais, materiais e humanos causados por políticas e agentes da especulação e de privatização dos serviços públicos; ao mesmo tempo em que o ordenamento do território, das infraestruturas e equipamentos colectivos são planeados com maior integração e coerência de acordo com as necessidades sociais, com justiça social e territorial em que os critérios de ecologia urbana são aplicados no desenvolvimento sustentável e em que o controlo democrático sobre o financiamento de projectos de cidade eco-socialista, combate as políticas de austeridade, cria mais emprego e aumenta a riqueza dessas cidades e regiões. Por exemplo, estudos recentes demonstram que o investimento no transporte público não só gera actividade económica e aumenta a produtividade da economia urbana, como também, gera um valor entre 3 a 4 vezes o investimento inicial5 e diminui todo um conjunto de externalidades nocivas à sociedade.

Neste contexto, a concretização de programa estratégico de sustentabilidade para cidade e região não trata só de racionalizar a economia, como pretendem algumas correntes verdes – ver nota da UITP (União Internacional do Transporte Público) - mas, antes deve basear-se numa excelência de qualidade de vida e do ambiente urbano, em que a reabilitação urbana se articule, por exemplo, com a acessibilidade sustentável, com projectos de Transporte Colectivo em Sítio Próprio (TCSP) e vida sustentável em bairros ecológicos promovendo a integração coerente com a justiça social, territorial e ambiental em planos sociais e económicos de pleno emprego.

Esta estratégia vai para além das leis económicas e financeiras baseadas em planos de austeridade capitalista e irá, também, combater os Planos de Urbanização e os Planos Directores Municipais (e os planos especulativos de infraestruturas e equipamentos) actuais pois, terá de corrigir o desperdício gerado pela difusão urbana entretanto acentuada nos últimos 30 anos

5 — As cidades concentram 60 a 70% da população mundial e 80% da produção económica e em que uma mobilidade eficiente cria oportunidades económicas e integração social, apoia as empresas e facilita o acesso aos serviços. Das 11,5 biliões de deslocações diárias motorizadas previstas para 2025 nas cidades em todo o mundo, cerca de 2,9 biliões serão realizadas nos países da OCDE com um acrés-cimo de 12% em relação a 2005. A maior parte das deslocações diárias serão motorizadas prevendo-se um acréscimo de externalidades negativas, como o aumento de 30% dos GEE não só arriscando o desempenho ambiental como também o crescimento económico a um impasse…daí que a aposta no TP mitiga essas emissões; cerca de 3.5 menos de GEE por passageiro.km transportado por automóvel, ou seja, se houver o dobro das deslocações em 2025 realizadas em TP as cidades também estarão melhor colocadas para respeitar os com-promissos internacionais sobre alterações climáticas. Em termos de consumo de energia de transporte urbano, se a quota de TP dobrar até 2025, haverá uma maior estabilização uma vez que se absorveria a aior parte das deslocações previstas dessa mobilidade urbana. Fonte: “Green growth with public transport”, UITP 2012.

Page 11: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 11 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

quer ao nível dos balanços energéticos quer ao nível das externalidades negativas com impacto no aumento dos custos sociais, cuja responsabilidade tem perpassado pelas governações de esquerda (PS e PCP).

É também uma estratégia e programa que dimensionam a qualidade da cidade orientando-a para a escala humana de proximidade, de densidade e diversidade que permita coerentemente uma completa integração social, territorial e ambiental, por exemplo, promova a mobilidade sustentável, ou seja, uma maior utilização dos modos alternativos ao automóvel, como os modos suaves e o TC.

Ora, este programa terá de planear e organizar a(s) cidade(s) e a(s) região(ões) com prioridade aos modos alternativos, às energias renováveis e minimizar as externalidades negativas e os impactos dos seus custos sociais. É também um programa que permite sustentar a ecologia urbana ao nível dos municípios e em que as diversas cidades aí existentes saibam articular os bairros nas relações de solidariedade e justiça social e territorial, de qualidade das escolas e centros de saúde, da diversidade de etnias e culturas, de reforço do desporto e do lazer.

É POSSÍVEL A CONVERGÊNCIA DE ESQUERDA COM ESTA ROTURA ESTRATÉGICA E ASSOCIAR ESTE PROGRAMA DE ECOLOGIA URBANA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL CONTRA A LÓGICA CAPITALISTA?

Os programas de habitação, de transportes, de equipamentos colectivos de ensino e saúde aplicados pelos governos de cidade nunca foram aplicados segundo critérios de sustentabilidade e muito menos de ecologia urbana: promoveu-se a dispersão urbana com os Planos de Urbanização adaptados à iniciativa privada, ao mesmo tempo que se acentuam a “ghetização” e a gentrificação e se abandonava a integração social e económica que não foram realizadas em práticas de boa vizinhança e de proximidade que se exigia ter sido realizadas através de políticas de diversidade, densidade e design e que consagrassem cidades baseadas em eco-bairros.

A agravar esta situação, sempre que a administração central intervinha nos projectos de grandes infra-estruturas e equipamentos, como os pacotes de acessibilidade em redes rodoviárias ou em redes de saneamento ou até de equipamento social (escolas e centros de saúde, desporto ou lazer), nunca foram realizadas tendo em conta a análise custo-benefício social ou quando o foram, foi sempre numa lógica de ocupação e usos do solo especulativos e, portanto, sem qualquer esquema de coerência territorial e sem qualquer Conta Pública, como por exemplo, do sistema de deslocações que sustentasse a decisão.

Em todos estes anos, a consulta pública foi sempre instrumentalizada, limitada e manipulada, veja-se o exemplo recente da CRIL, ou da localização de hospitais como o de Cascais e Loures, para não falar da Amadora, em que a acessibilidade se faz por modo rodoviário e transporte individual.

Page 12: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 12 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

No sector dos transportes, só da AML, terão sido gastos mais de 75 mil milhões de euros nos últimos 35 anos, entre construções, ampliações, renovações e remodelações das infra-estruturas e equipamentos colectivos terrestres, desde o marítimo, aéreo, ferroviário e rodoviário. Noutros sectores, como o da saúde e do ensino, haverá com certeza outros números. Mas, sabendo ao estado de dependência energética e efeitos negativos do sistema de transportes, de redução de serviços e o respectivo encarecimento das políticas neo-liberias, trata-se, agora de romper com esta lógica e apresentar soluções alternativas à privatização destes serviços em três domínios que afectam as necessidades individuais e colectivas das pessoas e das empresas. Como se faz o programa, o planeamento e a gestão da coisa pública?

Em primeiro lugar, suspender o programa de austeridade da TROIKA e suspender o PET que dita a suspensão do investimento e financiamento público do sistema de transportes. Noutros sectores, provavelmente o mesmo. No caso dos transportes, há a oportunidade de cerca de 1/3 do QREN 2014-2020 poder financiar e ser utilizado em projectos de TCSP para se promover a cidade ou a região ecológica, tornando-a menos dependente energeticamente e com menos custos sociais. Neste programa, a atender as conclusões dum estudo feito para a APTA6, por cada bilião de USD aplicado, espera-se criar em média 36 mil postos de trabalho e a riqueza poder aumentar a prazo em cerca de 3,5 biliões de USD. Ou seja, os investimentos públicos serão orientados para o pleno emprego e ampliação de emprego qualificado.

Em segundo lugar, aplicar um programa de ordenamento dos usos do solo e dos transportes e tendo como objectivo duplicar o uso dos modos alternativos (TP e modos suaves), como por exemplo, duplicar a procura actual do TP, corrigir-se-ão os níveis de serviço de oferta, melhorando a regularidade, frequência, segurança e conforto, aplicando o princípio da tarifa única a um PTU (Perímetro de Transporte Urbano) fazendo uma integração e simplificação tarifária, diminuindo os preços e colocar regras de subsidiação à exploração das várias empresas com base em contratos de OSP (Obrigações de Serviço Público) planeados e organizados pelas autarquias nas autoridades de transporte. Será elaborada uma Conta Pública do Sistema de Deslocações em Planos de Deslocações Urbanas (PDU) Sustentáveis e as populações serão chamadas a consulta pública para se tomar decisões que respeitem ao TP (Transporte Público), uma vez que se propõe que a cidade ou município sejam orientados para o uso dos modos alternativos, modos suaves e TP de qualidade, diminuindo-se as despesas com o TI.

Todos estes PDU deverão permitir elaborar o Esquema de Coerência Territorial com as infraestruturas e equipamentos colectivos planeados e organizados com critérios de rendibilidade social, rompendo-se com a prática actual de inflação e da pouca qualidade dos mesmos, uma vez que só têm sido orientados para a consecução de PPPs e não têm obedecido a critérios de desenvolvimento e financiamento sustentável.

Em terceiro lugar, com esta mudança de orientações estratégicas na aplicação de dinheiros

6 — “Economic Impact of Public Transportation Investment”, 2009, American Public Transport Association.

cações previstas dessa mobilidade urbana. Fonte: “Green growth with public transport”, UITP 2012.

Page 13: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 13 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

públicos e de cidades viradas para o eco-socialismo, as governações de esquerda terão de ser assumidas de modo que a gestão da coisa pública tenha em consideração a defesa dos princípios e objectivos do Estado Social, justiça social, territorial e ambiental. Estes governos devem, por isso, acentuar a sua actuação nos Fóruns Sociais de participação cidadã na construção da cidade eco-socialista. Serão estes Fóruns Sociais que ao nível dum concelho, agregando e reunindo anualmente os movimentos de cidadãos, partidos, sindicatos, ONG, e outros movimentos associativos, poderão romper com a actual instrumentalização por parte das instituições e a falta de participação nas deliberações que a comunidade local deve ter.

Os recursos naturais são hoje desequilibradamente e irracionalmente consumidos face à lógica do modo de produção capitalista. Os programas de exploração desses recursos são conduzidos com base na inflação de preços, tarifas e juros, garantindo as margens às empresas e ao sistema bancário que os financia. O exemplo do consumo de combustível fóssil é dos mais ilustrativos: em 2007, cerca de 10, 1 biliões de viagens realizadas em TP pouparam nos EUA um consumo de 1,4 biliões de galões de gasolina, o equivalente ao abastecimento em cada 11 dias de um petroleiro supertanque7. Por outro lado, a biodiversidade do planeta é colocada em causa e as populações são concentradas em cidades, cuja economia é inflacionada face aos enormes recursos materiais e humanos requeridos.

É neste contexto que toda a programação eco-socialista deve denunciar esta lógica e contrapor um conjunto de alternativas que se baseiem na ecologia urbana e desenvolvimento sustentável. É neste contexto que a Convergência de Esquerda é desejável e possível com base num programa de Objectivos e Contas Públicas que evidenciem uma Governação apostada na completa justiça social, territorial e ambiental.

A REFORMA INSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVA DO TERRITÓRIO (URBANO E REGIONAL) E O DESAFIO DA DESCENTRALIZAÇÃO E DA DEMOCRACIA DA REPÚBLICA, PELA ECOLOGIA URBANA E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL.

O modelo neo-liberal de reforma administrativa do PSD/CDS prescreve uma diminuição do número global das freguesias e dos municípios, porque há que reduzir custos com os encargos administrativos e políticos, e propõe assim que nas estruturas intermunicipais haja mais competências. Para alguns, dir-se-á que se trata de diminuir a “democracia” e para outros, a “República” sai diminuída. Nem num caso, nem noutro, os conceitos de República e da Democracia se definem pelo número de municípios e de freguesias, uma vez que a representatividade, das necessidades sociais e económicas das populações, não se mede no contorno duma assembleia municipal e/ou de freguesia. A democracia participativa será mais que uma alternativa à representatividade, ela contribuirá para a defesa do Estado Social da República, ajudando a construção social da mesma. O Fórum Social é parte dessa agenda local.

Ver em http://reconnectingamerica.org/resource-center/books-and-reports/2009/jumpstarting-the-transit-space-race/

Page 14: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 14 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Portanto, aquela gestão neo-liberal da estrutura administrativa do território não é inócua; acompanha tão só, a ideologia da Troika de diminuição dos serviços públicos de proximidade e da privatização dos mesmos ou concessionados pelas autarquias ao nível das CIM8 ou comunidades urbanas, enquadrada na lei fiscal do OE2013. Porém, ao tentar atribuir mais competências às CIM (lei 75/2013), não deixa de colocar em debate a questão da descentralização política e, logo, pronunciar outro enquadramento teórico acerca da articulação das necessidades das populações da cidade e da região, o que nos traz novamente ao programa eco-socialista.

Para além da batalha política imediata de denúncia e derrota da ideologia neo-liberal, convém, no entanto, relembrar que durante os últimos 35 anos de administração/intervenção nos territórios urbanos, dum modo geral, foi-se acentuando uma completa subversão do que deveria ter sido um programa de desenvolvimento sustentável, tal como era recomendado no relatório Bruntdland em 1987 à comissão do ambiente da ONU onde se defendia o princípio da precaução, ou ainda o protocolo de Quioto assinado em 1992 e que Portugal subscreveu.

De facto, nestes 35 anos foram produzidas demasiadas infraestruturas e equipamentos sem uma avaliação coerente com a qualidade e justiça territorial e social. Atrás da “inflação urbanística” evidenciada na dispersão urbana dos territórios, foi-se consumindo espaço, tempo e energia em elevados volumes de deslocações motorizadas como nunca antes, em que os meios aplicados geraram mais desperdício e custos, do que benefícios.

E nestes 35 anos, a Governação por partidos de Esquerda (PS e PCP) não se distinguiu do modelo de favorecimento privado, iniciado nos anos 80 (cúmplice da escola neo-liberal quando Thatcher lançava a privatização dos serviços sociais – as “utilities” – e/ou desregulava o crédito na venda/compra das casas abandonando as políticas sociais de habitação…). Pelo contrário, como já se referiu, coincidiu com o início na Europa, de todo um processo acentuado de desregulação da economia urbana levado até aos dias de hoje, com todos os efeitos negativos acumulados e que acabaram por “explodir” na “bolha” especulativa em 2007, após algumas recessões pelo meio.

Neste contexto, é preciso que a leitura acerca da reforma administrativa troikana, enunciada e aplicada por força de lei fiscal orçamental, seja denunciada e derrotada. Mas, também, é preciso romper com essa administração e gestão da ocupação e usos do solo e entender que a descentralização é necessária, se for compatível com a maior justiça social, territorial e ambiental, e realizada com coerência e integração do território quer urbano quer ao nível da região em que a cidade se insere. Isto significa, de facto, uma maior articulação entre municípios e, por isso, mais democracia participativa, mais fóruns sociais, mais consultas públicas, mais cidadania, o que invariavelmente vai contra a actual ideologia dominante.

8 — Actualmente são órgãos não eleitos por sufrágio directo.

Page 15: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 15 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIOCOMO MUDAR ENTÃO ESTE PARADIGMA DO PSD/CDS E COMO ENTRAR

RAPIDAMENTE NO CAMINHO DA ECOLOGIA E SUSTENTABILIDADE URBANA QUE DEVOLVA A QUALIDADE DE VIDA E DE TRABALHO ÀS PESSOAS E ÀS EMPRESAS? PELA DEFESA DO ESTADO SOCIAL E DA CIDADE ECO-SOCIALISTA!

Começar uma política programática coerente e consequente com a ecologia e sustentabilidade urbana, torna-se por isto, o denominador comum da nossa intervenção política e institucional já para 2013 e nas próximas eleições autárquicas.

Muitas cidades portuguesas comprometem-se em Protocolos internacionais em defesa da qualidade do ambiente urbano, como por exemplo o Pacto dos Autarcas (Convenant of Mayors), outras candidatam-se a fundos estruturais e outras ainda compreendem a sua actividade na participação em projectos europeus. O QREN 2014-2020 vai possibilitar o reforço do Investimento Público em 21,5 mil milhões de € e mais uma vez a discussão pública e a cidadania ficam omissos, enquanto as administrações dos municípios já se preparam para essas candidaturas sem qualquer estratégia. Ora, há que mudar o paradigma seguido até aqui e também há aqui uma oportunidade de afirmar como é que a Governação Urbana em defesa do Eco-Socialismo entende o Investimento Público seja no reforço tecnológico e criação de emprego qualificado seja no desenvolvimento sustentável.

Neste sentido, o apelo a um Programa de Ecologia e Sustentabilidade Urbana deve ser lançado…, para ser elaborado com a urgência da participação cidadã, organizações sociais e políticas, em Fóruns Sociais, dinamizando-o para construção de cidades eco-socialistas nos seguintes objectivos, metas e eixos de intervenção com a seguinte agenda:

…, aumentar a eficiência institucional e legislativa preparando as seguintes propostas:

Anulação de parte da dívida e reestruturação dos prazos e juros de pagamento, através da necessidade de financiamento ao investimento público de projectos consentâneos com o desenvolvimento sustentável da economia urbana;

Afirmação do princípio de descentralização e responsabilização em economia local/regional, pela consolidação da eleição directa da Comunidade Urbana ou CIM por regiões…(?), com competências no ordenamento, planeamento e gestão dos sistemas sociais e territoriais de habitação; transportes urbanos e regionais; educação; saúde e desporto; e no ordenamento e planeamento fiscal de consecução dos Planos Estratégicos e Operacionais que respeitem os princípios de desenvolvimento sustentável baseados nos critérios e objectivos da ecologia urbana;

Proposta de lei com programa social de pleno emprego com base na escala móvel de horário (30 horas semanais) e de salários (mín.1000 €) nos serviços públicos de transporte, saúde e educação, da energia e das águas; simplificação de carreiras profissionais;

Criação dum Instituto de Urbanismo de apoio ao Estado Social e de Agências de Urbanismo às Comunidades Urbanas e Municípios para revisão e/ou elaboração imediata dos Planos de Urbanização e PDM e apoio aos PDU e respectiva Proposta de lei de Organização Institucional do Sistema do Território e Código do Urbanismo;

Page 16: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 16 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Criação das AOTU e mecanismos de contratação e financiamento do transporte público urbano pelos municípios, promovendo o Reforço do Sistema de Transporte Público aumentando a sua cobertura territorial e temporal, os serviços multimodais e diminuindo a dependência do automóvel através de políticas tarifárias e fiscais;

Regulamentação das Leis Base do Ordenamento do Território e dos Transportes, passando pela revisão da lei do arrendamento habitacional, da lei de criação dos eco - bairros, da lei do financiamento dos transportes e, particularmente, do transporte público de passageiros com recurso a fundos estruturais europeus e/ou do BEI;

Proposta duma Lei da Racionalização do Ar e da Energia que defenda a elaboração e consolidação dos PDU pelas AOTU com metas ambientais e energéticas, de repartição modal favorável à prioridade do uso do TP urbano e sustentabilidade da economia local;

Proposta de lei de defesa e reforço da Escola Pública e o fim do financiamento das GPS do ensino privado;

Proposta de lei de defesa e de reforço do SNS, e o fim do financiamento às GPS de saúde privada;

Proposta de lei do ordenamento fiscal descentralizado, pelo reforço dos serviços sociais de proximidade e consequente estratégia de reocupação do território urbano, condensado no PTU e elaboração dos Orçamentos Municipais com base 0.

…, aumentar a capacidade de ordenamento e regulação através de:

Revisão dos PU, PDM e PROT em Fóruns Sociais de acordo com as orientações dos PDU que promovem a mobilidade e acessibilidade sustentável de âmbito local/concelhio ou regional;

Reabilitação Urbana promovendo os eco-bairros e articulando políticas 3Ds (Diversidade, Densidade e Design) com os projectos de Transporte Colectivo em Sítio Próprio (TCSP) e aumento do uso dos modos suaves, diminuindo a dependência dos combustíveis fósseis;

Elaboração do Esquema de Coerência e Justiça Territorial e Social e do Contrato Plano Estado-Região para a consecução do PROT e respectivo orçamento e financiamento através, por exemplo, do QREN (VII? QCA);

Consolidação das entidades públicas de regulação regional e comunitária baseada nos respectivos instrumentos de gestão e planos de actividade.

Reestruturação da dívida, dos prazos e juros com a administração central do Estado;

Até finais de 2015, repor os mecanismos sociais, económicos e fiscais do Estado Social através de:

Elaboração de programa estratégico, económico e social de desenvolvimento sustentável através de políticas de crédito público (e privado) controladas de acordo com as necessidades sociais e económicas colectivas e através do apoio a programas de investigação aplicada

Page 17: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 17 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

que articulem Universidade, Autarquia e Empresa, seja no domínio dos transportes, da biotecnologia e biomédicas, da indústria de energia renováveis, etc., mas, sempre com base no desempenho para a economia local/regional e socialmente úteis;

Elaboração de programa económico de pleno emprego com base na prioridade aos projectos de reabilitação urbana dentro das áreas dos PTU (Perímetro de Transporte Urbano) articulada com o reforço dos serviços públicos, nomeadamente dos transportes, da educação e da saúde e sua articulação com pequenas e médias empresas no apoio a diferentes sectores quer na vertente de investigação aplicada, quer na vertente de desenvolvimento de indústria de construção e desenvolvimento tecnológico de sistemas de informação, comunicação, transporte e comércio.

Esta é uma agenda não acabada, haverá com certeza camaradas doutros sectores de intervenção local que podem colocar propostas mais concretas de solução e/ou de alternativa/rotura com as práticas e os modelos actuais neo-liberais. Pegar num sector é muito mais que um exercício de crítica, de avaliação e de apresentação de propostas alternativas. No sector do ordenamento do território, urbanismo e transportes há diversos níveis daquele exercício e afinar um programa que vá contra o actual PET (Plano Estratégico de Transportes), exige compreender como funciona todo o sector dos transportes nas suas diferentes áreas, níveis de intervenção com os diversos actores.

Uma coisa é certa, o que se propõe são apenas eixos que vão contra o programa neo-liberal de desregulação, de privatização e de concessões, portanto, planeadas e deliberadas e com objectivos ideológicos que se está a fazer nos diferentes sectores (aéreo, ferroviário, marítimo e rodoviário). Não se pode ficar na mão do capital financeiro e muito menos de inviabilizar projectos que hoje são reprovados sem sequer estudados sob o argumento de que o dinheiro é caro (claro, se for com as taxas de juro destes bancos).

Esta é também uma Carta anti neo-liberal !!! Estas são algumas pistas desta Carta anti neo-liberal, do que se pode discutir e reforçar o que deve ser a Governação Urbana de Esquerda, ou seja, também servirá para se elaborar um Programa de Governo de Esquerda.

Mas, esta é a tarefa central que … abrindo este debate à sociedade através do trabalho local assente nos Fóruns Sociais e de preparação dum novo Congresso Democrático das Alternativas de combate à ideologia neo-liberal e ao capitalismo. Por isso é que se defende um trabalho local que ultrapassa as questões meramente autárquicas, e o Fórum Social é o apelo imediato à mobilização da sociedade pelo eco-socialismo.”

Desde a elaboração deste documento, muitos acontecimentos, entretanto, sucederam em 2014 e 2015, como a situação dos movimentos sociais e políticos na Grécia e em Espanha, para além dos mais recentes acontecimentos dos movimentos de refugiados à guerra da Síria e do norte de África que colocarão a Europa perante o cenário da barbárie capitalista. Estes acontecimentos terão impacto em Portugal, num país com uma economia fragilizada e um endividamento colossal (em 2014, 486% do PIB – Estado:129%; Famílias:120% e Sector

Page 18: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 18 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Privado:237%)9 contra 364% da Grécia ou os 321% da zona Euro e em que a dívida do Estado, com a acção da troika, passou de 111% do PIB em 2011 para 129% em 2014 e onde Portugal, tal como a Grécia, terá necessidade duma política de investimento massiva e dum perdão de dívida para que haja uma recuperação efectiva da economia.

Neste contexto político, económico e social, os movimentos sociais continuam fracos e não têm surgido no combate à política de crescimento e de reprodução social das cidades. Os Orçamentos Participativos limitam essa intervenção e a discussão da Utilidade Pública dos Planos e Projectos que estão associados ao investimento público para as cidades, são praticamente do domínio dos partidos que se fazem representar nas Assembleias Municipais, com toda a prática regulamentar (anti-democrática) que lhes é conhecida a que está associada a falta de democracia participativa. Por isso, a necessidade de “Fórum Social” como forma de combater a exclusão social e territorial e a luta por uma maior justiça social e direito à cidade. Trata-se agora da esquerda convergir nessa dinâmica social e política, na construção duma alternativa ao capitalismo com a eventual ajuda dum CDA (Congresso Democrático das Alternativas).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

HARVEY, DAVID, 2006, “Spaces of Global Capitalism – Towards a theory of uneven geographical develo-pment”, ed. Verso, London

HARVEY, DAVID, 2009, “Social Justice and the City”, revised edition University of Georgia Press – “The Right to the City” (Sept. 2008, New Left Review)

LEFEBVRE, HENRI, 2003, “The Urban Revolution”, ed. University of Minnesota Press

“LE PORTUGAL, ÉLÈVE MODÈLE” - in “Alternatives Économiques” nº 349, Sept.2015

SOJA, EDWARD, 1989, “The reassertion of Space in Critical Social Theory”, ed. Verso, London

SOJA, EDWARD, 2010, “Seeking Spatial Justice”, ed. University of Minnesota Press

WEISBROD, GLEN AND RENO, ARLEE - “Economic Impact of Public Transportation Investment”, Oct. 2009, American Public Transport Association

9 — Fonte: Banque de France, BCE, Mckinsey Global Institute, Eurostat.

Page 19: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 19 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

1 — In Observador, Jornal online, 30/8/2015, “Se não houve rutura social no país foi por causa das instituições sociais”.2 — Lefebvre, Henri – in Conclusions of “The Urban Revolution”, ed. University of Minnesota Press, 2003.

2 — É considerado equipamento social toda a estrutura física onde se desenvolvem as diferentes respostas sociais ou estão instalados os serviços de enquadramento a determinadas respostas que se desenvolvem diretamente junto dos utentes (Carta Social; GEP-MSESS).3 — PIDDAC (Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central).4 — Como o PARES (Programa de Alargamento da Rede de Serviços e Equipamentos Sociais) ou programas no âmbito dos diversos quadros comunitários de apoio.5 — De acordo com o Relatório da Carta Social 2013, GEP-MSESS.

“Se não houve rutura social no país foi por causa das instituições

sociais”. Será assim?

CLÁUDIA JOAQUIM

“Se não houve rutura social no país foi por causa das instituições sociais”. Será assim?

Pedro Mota Soares, Ministro da Solidariedade Emprego e Segurança Social, terá afirmado re-centemente que o país só não entrou em rutura social por causa do trabalho feito pelas insti-tuições sociais1.

Esta é, numa primeira análise, uma verdade irrefutável!

É inquestionável o papel que as instituições sociais têm tido ao longo das últimas décadas na prossecução de políticas de ação social de proximidade, no apoio às famílias e à comunidade e na integração de grupos sujeitos a riscos de marginalização. Sucessivos Governos atribuíram às instituições sociais o estatuto de parceiro na prossecução das respostas sociais em Portu-gal. Em particular a partir da década de 80, assistiu-se a um aumento bastante significativo do número de instituições particulares de solidariedade social (IPSS), evolução associada ao enquadramento legal criado naquele período, impulsionada posteriormente com a assinatura do Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social em 1996, e sustentada através do cofi-nanciamento público atribuído às IPSS para a construção de equipamentos sociais2, a partir de 1981 através do PIDDAC3, e mais recentemente com a criação de outros programas de in-vestimento4.

Cerca de, 70% das entidades proprietárias de equipamentos sociais são entidades não lucrati-vas o que é revelador da importância que o terceiro setor assume na prestação destas respos-tas, sendo as mais representativas a Creche, a Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (Lar para Idosos) e o Serviço de Apoio Domiciliário a idosos. A capacidade das respostas sociais que integram a rede de equipamentos sociais quase duplicou, entre os anos de 2000 e 2013, totali-zando uma oferta de 760.000 lugares5. Esta rede, espalhada por todo o país, é fundamental no apoio às famílias, na conciliação da vida pessoal com a vida profissional.

Page 20: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 20 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Neste contexto, é natural que o membro do Governo que tutela a segurança social valorize o papel das instituições sociais. Contudo, nas declarações que prestou foi mais além. De acordo com a notícia supracitada, terá afirmado que “A nossa obrigação enquanto Governo era capaci-tar as instituições sociais para estas poderem servir as pessoas, por isso tivemos a capacidade, do ponto de vista orçamental, de reforçar o orçamento para a ação social. São mais 450 milhões de euros do que acontecia em 2011 quando iniciamos funções”.

Com efeito, de acordo com o documento “4 anos de credibilidade e mudança”6 o Governo nos últimos 4 anos aumentou, de forma significativa, as transferências financeiras para as institui-ções sociais, através:

• “Reforço em 440 milhões € da verba de Ação Social, face a 2011 e que desde 2009 estava a cair. Desde o primeiro orçamento, em que aumentámos em 16%, que desde sempre se incrementou a verba para um total de 1.989 milhões €, considerando o PES”.

• Reforço nos acordos de cooperação, alcançando uma despesa de 1,2 mil milhões € anuais na comparticipação de, cerca de, 460.000 lugares em respostas sociais. Esse reforço é justi-ficado, em parte, pela atualização dos montantes de comparticipação da segurança social, no âmbito dos acordos de cooperação em vigor, no “valor de 5.1% no triénio, ou seja, mais 61 milhões €”.

• Criação do Fundo de Restruturação do Sector Solidário (FRSS)7 destinado à reestruturação e a sustentabilidade econó mica e financeira das instituições com um montante de finan-ciamento público de, cerca de, 33,5 milhões €.

Tendo por base o documento do Governo com o balanço da sua governação, não há dúvida que, tal como o Ministro da Solidariedade Emprego e Segurança Social afirmou, o Governo reforçou o orçamento da ação social com o objetivo de “capacitar as instituições sociais para estas poderem servir as pessoas”.

Mas apesar de, em apenas 4 anos e num contexto de medidas de austeridade bastante pena-lizadoras para os portugueses, se ter assistido a um aumento de 440 milhões € (+28,4%) na despesa com ação social, de acordo com as declarações supracitadas, poder-se-á afirmar que esta opção política evitou uma “rutura social”? Foi a estratégia adequada? O que entende o ministro por “rutura social”? O que aconteceu neste período em termos de risco de pobreza e de desigualdades?

6 — In Portal do Governo.

7 — É um Fundo criado em 2013, através do Decreto-lei n.º 165-A/2013, de 23 de dezembro, que visa “apoiar a reestruturação e a sustentabilidade económica e financeira das IPSS e equiparadas, permitindo a manutenção do regular desenvolvimento das respostas e serviços prestados” e tem uma natureza reembolsável. É um fundo autónomo, com personalidade jurídica, dotado de autonomia adminis-trativa e financeira, que não integra o perímetro de consolidação da segurança social nem o orçamento da segurança social. As Fontes de Financiamento do fundo são receitas atribuídas por entidades públicas ou privadas, por uma percentagem da atualização anual da comparticipação financeira atribuída às IPSS ou por fundos comunitários. O Fundo é gerido por um Conselho de Gestão, composto por um presidente (representante do Governo) e três vogais (representantes das instituições sociais), os quais decidem, entre outras competências, sobre os pedidos de apoio a conceder no âmbito do FRSS, às IPSS e equiparadas, ou seja, apesar de o Fundo ter finan-ciamento público, a sua gestão é maioritariamente privada, uma vez que a decisão do Conselho de Gestão é tomada por maioria dos membros que o compõem.

Page 21: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 21 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

Analisando os principais indicadores de medida da pobreza verifica-se que a Taxa de Pobreza Ancorada8 aumentou 6,3 p.p. entre 2010 e 20139, estando em situação de pobreza 25,9% dos portugueses, ou seja, 2,7 milhões de portugueses em 2013. Em apenas um ano, entre 2012 e 2013, assistiu-se a um aumento de 110 mil portugueses em risco de pobreza e em 2 anos (2011-2013), foram mais 450 mil portugueses nestas condições.

Considerando o conceito de pobreza ancorada, as crianças são o grupo mais afetado pelo risco de pobreza: a taxa de risco nas crianças aumentou 7,1 p.p. entre 2010 e 2013, elevando-se de 23,9% para 31,1%, a que corr3espondem 570 mil crianças em risco de pobreza em 2013. Face a 2011, são mais cerca de 80 mil crianças em risco de pobreza.

Uma outra abordagem possível na análise do risco de pobreza é a privação material. Em 2013 25,7% dos portugueses não tinham acesso a pelo menos três de nove itens10 relacionados com as necessidades económicas e de bens duráveis das famílias, mais 4,8 p.p do que em 2010.

Mas também os indicadores que medem a desigualdade na distribuição de rendimentos se degradaram nos últimos anos. Em 2013 os 10% dos portugueses mais ricos tinham 11,1 vezes mais rendimentos do que os 10 dos portugueses mais pobres (uma relação que em 2009 era de 9,2), o que significa que os rendimentos da população “mais rica” são 11,1 vezes superior aos rendimentos da população “mais pobre” (Rácio S90/S1011).

O aumento da despesa com ação social em 440 milhões, entre 2011 e 2015, não contribuiu para uma diminuição do risco de pobreza em Portugal, nem conseguiu impedir o seu agrava-mento, assistindo-se inclusivamente a um aumento da desigualdade na distribuição de ren-dimentos. O gráfico seguinte demonstra que, apesar do aumento da despesa com ação social no período em análise, o Risco de Pobreza aumentou.

8 — Linha de Pobreza ancorada a 2009: “expurga” os efeitos da variação anual do rendimento mediano. Permite minimizar os resultados muitas vezes “parciais” da Taxa de Risco de Pobreza, uma vez que este é condicionado pelas alterações do rendimento mediano. Estabi-liza a linha de pobreza em 2009. No ano de 2013 a linha de pobreza situava-se nos 4.937 euros anuais.

9 — Últimos dados disponíveis, Inquérito às Condições de Vida e de Rendimento, 2014, INE.

10 — Designadamente: substituir roupa usada por alguma roupa nova; ter dois pares de sapatos de tamanho adequado; encontrar-se com amigos/familiares para uma bebida / almoço pelo menos uma vez por mês; participar regularmente numa atividade de lazer; gastar sema-nalmente uma pequena quantidade de dinheiro consigo próprio; ter acesso à internet em casa para uso pessoal por razões económicas.

11 — Rácio entre a proporção do rendimento total recebido pelos 10% mais ricos e a parte do rendimento auferido pelos 10% mais pobres.

Page 22: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 22 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

A estratégia do Governo foi aumentar a transferência para as instituições sociais, principal-mente na parcela de comparticipação pública para o funcionamento das respostas sociais e apostar numa resposta social em particular, a Cantina Social, tornando-se numa “bandeira”. Nos últimos 4 anos, uma parte do aumento da despesa com ação social dirigiu-se para a cria-ção de cantinas sociais as quais, de acordo com o documento “4 anos de credibilidade e mu-dança”, passaram durante os últimos 4 anos, de 62 para 842 (com um aumento de 2 milhões € para 50 milhões €).

A cantina social12 foi transformada pelo Governo “na” resposta destinada às situações de dificul-dade financeira mais urgentes. Contudo, e para além de um conjunto de dúvidas relacionadas com a implementação e gestão desta resposta, nomeadamente sobre os critérios de seleção dos utentes e das próprias instituições sociais ou sobre a monitorização e acompanhamento das refeições efetivamente fornecidas por parte da segurança social, uma das principais ques-tões em torno desta medida é a opção do Governo pela mesma, em detrimento de prestações sociais de solidariedade, de combate à pobreza e atribuídas mediante condição de recursos, como o Rendimento Social de Inserção (RSI) 13 ou o Complemento Solidário para Idosos (CSI).

No Memorando inicial, de maio de 2011, não constava nenhuma medida de austeridade sobre prestações sociais de solidariedade. Mas isso não impediu o Governo de alterar, ao longo dos últimos 4 anos, as regras de atribuição do RSI e do CSI e de diminuiu os seus valores de refe-rência, por pura opção ideológica. Entre junho de 2011 e junho de 2015, perderam a prestação de RSI mais de 110.000 portugueses14 e perderam a prestação de CSI mais de 68.000 idosos de entre os mais pobres.

12 — Na resposta “cantinas sociais” a segurança paga às IPSS, por cada refeição servida, 2,5€.

13 — A título de exemplo, para uma família composta por um casal com dois filhos, que beneficie das refeições servidas por uma cantina social (almoço e jantar durante 30 dias), a segurança social paga à IPSS 600 euros por mês. A mesma família receberia de RSI um mon-tante máximo mensal de 240 euros.

14 — Maioritariamente crianças, uma vez que a alteração da escala de equivalência introduzida pelo Governo penaliza mais as famílias mais numerosas e com mais crianças a cargo.

Page 23: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 23 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

Entre 2011 e 201515 estas duas prestações sociais (RSI e CSI) que visam assegurar um mínimo de subsistência aos portugueses mais pobres sofreram um corte de quase 200 milhões €. Per-deram estas duas prestações quase 180.000 portugueses.

No mesmo período, aumentou a despesa com Ação Social, em 440 milhões €.

Estamos perante duas opções ideológicas deste Governo, que tiveram como consequência um aumento do risco de pobreza e da desigualdade de rendimento!

As medidas de ação social não são “concorrentes” com as prestações sociais de solidariedade social ou de proteção familiar, são sim complementares. Este foi o erro do Governo! Medidas que visam uma proteção imediata e urgente a famílias que se encontrem em situação econo-micamente muito difícil16 devem existir se necessário, mas devem coexistir e não substituir as prestações sociais de solidariedade que visam o combate à pobreza extrema.

Em apenas dois anos assistimos à quebra de um ciclo e a uma inversão preocupante da ten-dência de diminuição do risco de pobreza e de diminuição das desigualdades de rendimentos que vinha sendo alcançada durante a década anterior! São agora mais os portugueses em risco de pobreza e é agora maior a desigualdade na distribuição de rendimento!

Precisaríamos de ter assistido a um aumento, ainda maior, da pobreza e das desigualdades de rendimentos em Portugal, para que o Governo reconhecesse que muitos portugueses se encontram em situação de rutura social, e que a sua estratégia falhou?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Governo de Portugal, 2015, “4 anos de credibilidade e mudança”

INE, 2014, “Inquérito às Condições de Vida e de Rendimento”

Joaquim, Cláudia, 2015. “Proteção social, terceiro setor e equipamentos sociais: Que modelo para Portu-gal?”, #3 Cadernos do Observatório, CES-Observatório sobre crises e alternativas, Universidade de Coim-bra

Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, relatórios anuais. “Carta Social – Rede de Ser-viços e Equipamentos Sociais”, GEP – MTSS

Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, relatórios anuais. “Conta da Segurança Social”, IGFSS – MTSS

Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, 2006. “Respostas Sociais, Nomenclaturas e Conceitos”, Direcção-Geral da Segurança Social, da Família e da Criança – MTSS

Legislação Diversa

15 — Orçamento do Estado para 2015.

16 — Nota: como por exemplo as Cantinas Sociais.

Page 24: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 24 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

A sustentabilidade da segurança social nos programas do PS

e da coligação PSD/CDSEUGÉNIO ROSA

O problema da sustentabilidade da segurança social, é uma das matérias mais debatidas, e também aquela que é mais importante para os portugueses. E isto porque em todas as situações da vida, desde a nascença até à morte (nascimento, doença, desemprego, invalidez e velhice, etc.) quando se não tem capacidade para angariar rendimentos, é a segurança social que garante ou deve garantir mínimo para viver a cada português. Sem ela, 2.900.000 portugueses viveriam no limiar da pobreza segundo o INE. Por isso, a sua sustentabilidade é uma questão vital para todos os portugueses.

Vejamos então como é a tratada nos programas eleitorais dos maiores partidos ou coligações (PS e PSD/CDS) a questão da sustentabilidade da Segurança Social. E a forma mais rápida e rigorosa, é quantificar as principais medidas neste campo para depois se poder avaliar o seu impacto na Segurança Social. O quadro1, construído com estimativas dos próprios partidos (o caso do PS), e com algumas estimativas nossas feitas com base nos programas e outras dos partidos (o caso do PSD/CDS) permite realizar essa análise, pois dá o valor quantificado dos efeitos de cada uma das medidas.

QUADRO 1- A PSEUDOSUSTENTABILIDADE OBTIDA À CUSTA DE REDUÇÃO DE CONTRIBUIÇÕES E MAIS CORTES NAS PRESTAÇÕES SOCIAIS DEFENDIDA PELO PS E PSD/CDS

Page 25: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 25 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

Como os dados do quadro mostram, no período 2016 a 2019, o PS tenciona fazer, se for governo, um corte enorme de 5.569 milhões nas contribuições (redução da TSU dos patrões e dos trabalhadores, em 4 pontos percentuais cada uma delas).

Para compensar esta enorme perda de receita, o PS pretende: (1) manter o congelamento das pensões, o que significa um corte nos rendimentos dos pensionistas de 1.660 milhões, a que os economistas do PS designam por “poupanças” (desde 2010, que a esmagadora maioria dos pensionistas não têm aumentos, o que significa um corte de 12% só devido à inflação ); (2) consignar a receita de 280 milhões € obtida de um novo imposto sobre as heranças de valor superior a um milhão de euros à Segurança Social; (3) consignar também à Segurança Social 4 pontos percentuais do IRC que daria uma receita de 1.600 milhões €; (4) fazer mais um corte de 1.020 milhões € nos complementos sociais das pensões estatutárias mais baixas, através da alteração da condição de recursos visando restringir o acesso a elas; (5) fazer a convergência da CGA/Segurança Social, onde o PS pretende fazer um corte de mais 160 milhões € nas pensões dos futuros aposentados, através da alteração de formula de cálculo da pensão.

Em resumo, o PS se for governo, no período 2016-2019, para “reforçar” (?!) a sustentabilidade da Segurança Social, pretende cortar (reduzir) em 5.569 milhões € as receitas das contribuições e, para compensar esta enorme redução de receitas, tenciona cortar 2.840 milhões € nos rendimentos dos pensionistas (segurança Social e CGA), e consignar à Segurança Social 1.880 milhões € de receitas de impostos (imposto sobre heranças e IRC), o que somado dá 4.720 milhões € (2.840M€+1.880M€), ficando assim ainda um “buraco” de 849 milhões € (5569M€-4720M€).

A coligação PSD/CDS pretende “reforçar” (?!) a sustentabilidade da Segurança Social da seguinte forma: (1) prolongando o congelamento das pensões dos reformados da Segurança Social e da CGA, que já não são atualizadas desde 2010 (a esmagadora maioria) fazendo um corte nos rendimentos dos pensionistas (Segurança Social e CGA) que estimamos, no período 2016-2019, em 2.603 milhões €; (2) fazer mais um corte nas pensões que estão a ser pagas de 600 milhões €, como consta do Programa de Estabilidade 2015-2019 que o governo enviou para a Comissão Europeia ( citando as razões para não haver dúvidas: “Tornando-se urgente adotar uma solução de médio prazo, uma vez que o modelo de financiamento não permite assegurar a cobertura das responsabilidades dos direitos em formação, nas próximas duas décadas” – pág. 39 do PE do governo). E a acrescentar a tudo isto, o PSD/CDS, tal como o PS, pretendem obter, com a convergência da CGA/Segurança Social , uma “poupança” de 160 milhões só em 2016, o que significa mais um corte nas pensões dos futuros aposentados.

E como tudo isto já não fosse suficiente, a coligação PSD/CDS afirma no seu programa eleitoral a intenção de introduzir o “plafonamento” das contribuições e pensões E Passos Coelho, já veio dizer que se aplica a 100.000 trabalhadores com remunerações superiores a 3.000€/mês . Isto significa que, em relação à parcela da remuneração superior a 3000€/mês, trabalhadores e patrões deixariam de descontar para a Segurança Social.

Page 26: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 26 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Embora ainda não existam dados disponíveis que permitem fazer uma estimativa rigorosa da perda de receita que tal medida representaria para a Segurança Social, interessa recordar, até porque se fica já com uma ideia, os efeitos da eventual introdução do “ plafonamento”. O “plafonamento” constante da proposta do governo de Durão Barroso/Bagão Félix aplicar-se-ia às remunerações superiores a 6 salários mínimos nacionais que , na altura, correspondia (os 6 SMN) a 2193€. A sua introdução determinaria uma perda de receita para a Segurança Social avaliada em 16.000 milhões € num período de 30 anos, o que representa uma perda média anual superior a 500 milhões €. Para além disto, como se pretende, com o plafonamento desviar uma parcela das contribuições dos trabalhadores e das empresas da Segurança Social para fundos de pensões privados, ou obrigatoriamente ou através de benefícios fiscais, isso significa que o objetivo é privatizar crescentemente a Segurança Social, através da transferência de receitas do sistema público para sistemas privados, enfraquecendo aquele e fortalecendo estes, transformando a segurança social em mais uma área de negócio para os privados (fundos de pensões e companhias de seguros).

Como conclusão final, não deixa de ser estranho e incompreensível que tanto o PS como a coligação PSD/CDS pretendam reforçar a sustentabilidade da Segurança Social através de cortes enormes nas contribuições e nas prestações sociais.

ANTÓNIO COSTA ESTÁ CONTRA O “PLAFONAMENTO”, MAS O PS APROVOU O “PLAFONAMENTO” QUE CONSTA DA LEI DE BASES DA SEGURANÇA SOCIAL

Um dos ataques mais repetidos e corretos que António Costa tem feito à coligação PSD/CDS é que, com a introdução do “plafonamento”, o que pretendem é privatizar a Segurança Social. No entanto, interessa recordar que o PS, com Vieira da Silva e Sócrates, introduziu, em 2007, na lei de Bases da Segurança Social, o principio que permite a introdução do ”plafonamento”.. E para que não haja duvidas vamos transcrever o artç 58º da Lei bases da Segurança Social (Lei 4-2007) que regula precisamente isso.

Artº 58º - Limites contributivos: (1) A lei pode ainda prever …. a aplicação de limites superiores aos valores considerados como base de incidência contributiva ou a redução das taxas contributivas dos regimes gerais, tendo em vista nomeadamente o reforço das poupanças dos trabalhadores geridas em regime financeiro de capitalização (Lei 4/2007).

“Aplicar limites superiores aos valores considerados com base de incidência contributiva”, significa precisamente a fixação de um valor de remuneração acima do qual o trabalhador e o patrão deixam de descontar para a Segurança Social, ou seja, o “plafonamento” horizontal agora violentamente criticado por António Costa. “Redução das taxas contributivas dos regimes gerais”, significa cortes em percentagem iguais nas contribuições que incidem sobre todos

Page 27: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 27 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

os níveis de remunerações, das mais baixas às mais elevadas, ou seja, o que se designa por “plafonamento vertical”, que é precisamente aquilo que o PS se propõe fazer na TSU , que incide sobre os trabalhadores e os patrões.

Finalmente, a justificação constante da própria lei, aprovada pelo governo de Sócrates, para a introdução destes dois tipos de “plafonamento” é precisamente ter “em vista nomeadamente o reforço das poupanças dos trabalhadores geridas em regime financeiro de capitalização”, o que pressupõe investimentos nos mercados financeiros, que envolve sempre especulação financeira a que estão associados riscos, portanto também aquilo que António Costa critica violentamente ser o objetivo da coligação PSD/CDS ao querer introduzir o “plafonamento” na Segurança Social.

António Costa, se quiser ser coerente na critica que faz à coligação PSD/CDS teria, por um lado, de abandonar a sua proposta de baixa de TSU (plafonamento vertical) e, por outro lado, se fosse governo’ de revogar o artº 58º da Lei de Bases da Segurança Social, que permite introdução na Segurança Social do “plafonamento” tanto horizontal como vertical.

O PERIGO QUE ENVOLVE TODAS ESTAS PROPOSTAS PARA A SEGURANÇA SOCIAL

O Regime Geral da Segurança Social, também chamado Regime Previdencial dos trabalhadores por conta de outrem, já enfrenta neste momento serias dificuldades como consequência da crise, e da politica de consolidação orçamental recessiva que agravou ainda mais a crise do país. Para concluir isso, basta referir que a média das taxas de crescimento das contribuições nominais no período 2007/2014 foi apenas um terço (2,3%/ano) da média de aumento verificada nos 10 anos anteriores (6,6%/ano).

E apesar do confisco do subsidio de férias e de Natal em 2012; apesar da Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) que reduziu as pensões; e apesar do congelamento das pensões desde 2010, o equilíbrio do Regime Previdencial só foi possível com transferências extraordinárias do Orçamento do Estado, o que nunca tinha acontecido.

Entre 2012 e 2015, para além das transferências do OE impostas pela Lei de Bases da Segurança Social para pagar as prestações não contributivas, foram feitas transferências extraordinárias do Orçamento do Estado para cobrir o défice da Segurança Social. Segundo os Relatórios que acompanham os orçamentos de cada ano: 856 milhões € em 2012; 1.439 milhões € em 2013; 1.329 milhões € em 2014 e, previstos no OE-2015, mais 894 milhões €; portanto, em quatro anos de governo PSD/CDS e de intervenção da “troika”, como consequência da politica recessiva que destruiu centenas e centenas de empresas, e muitas centenas de milhares de empregos, o Orçamento do Estado teve de transferir, extraordinariamente, mais 4.509 milhões €, entre 2012 e 2015, para equilibrar as contas da Segurança Social apesar dos enormes cortes feitos nas pensões e em outras prestações pela coligação PSD/CDS e pela “troika”.

Page 28: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 28 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Num contexto desta natureza, e com o país e as empresas (a esmagadora maioria) mergulhados num crise profunda, e com milhões de portuguesas a enfrentar sérias dificuldades e muitas centenas de milhares já na miséria, defender reduções enormes nas contribuições para a Segurança Social e mais cortes nas pensões e em outras prestações sociais, é extremamente preocupante, pois revela ou uma ignorância muito grande sobre a importância e situação real da Segurança Social ou então uma enorme insensibilidade social. A Segurança Social, financiada com o dinheiro dos descontos dos trabalhadores, não pode ser um mero instrumento de consolidação orçamental ou de politica económica, pois se continuar a ser corre o risco de destruição, o que lançaria na insegurança e miséria milhões de portugueses.

O imparável abominável hoje!

SANDRA RIBEIRO

O título não fui eu que inventei. Foi literalmente sonegado do e-mail que um amigo me escreveu em jeito de desafio a propósito da recente alteração à lei do regime da Interrupção Voluntaria da Gravidez.

Mas também lhe poderia ter chamado “O regresso à submissão”, inspirando-me no mais recente livro de Michel Houlleb — ecq, essa fábula crua e perturbante sobre o avançar do retrocesso civilizacional em nome do equilíbrio das balanças financeiras, do pleno emprego (masculino) e do aumento demográfico europeu, nem que seja com o sacrifício dos direitos humanos fundamentais, principalmente das mulheres.

Em 2007, por via de um referendo, os portugueses e as portuguesas votaram inequivocamente a favor da liberalização da Interrupção Voluntária da Gravidez, durante as primeiras 10 semanas de gestação.

Em 2015, na reta final da legislatura, a maioria parlamentar, decidiu impor o pagamento de taxas moderadoras e obrigar a consultas de aconselhamento psicológico e social prévias à decisão de todas as mulheres que pretendam interromper voluntariamente uma gravidez, visando na prática, pura e simplesmente, complexificar e tornar moroso o processo de IVG, dificultando deliberadamente a resposta aos pedidos das mulheres junto do SNS, no período previsto na lei.

É revoltantemente ridículo que, depois da criação de um grupo de trabalho pelo PSD para estudar e debater soluções para promover a natalidade, depois da publicação do relatório “Por um Portugal amigo das crianças, das famílias e da natalidade”, do qual constam 27 propostas de medidas, depois da elaboração de vários relatórios de várias Comissões Parlamentares sobre “Aprofundar a proteção das crianças, das famílias e promover a natalidade”, depois da audição

Page 29: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 29 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

parlamentar de dezenas de individualidades e entidades públicas, que apresentaram no seu conjunto centenas de propostas, depois da apresentação de várias propostas de lei por parte de todos os grupos parlamentares, a grande medida de promoção da natalidade aprovada durante a vigência do XIX Governo Constitucional seja tornar mais difícil o acesso à IVG, esperando com isso incrementar vertiginosamente os nascimentos em Portugal.

Para além da descarada manobra de tornar ineficiente um serviço público que até agora funcionava, esta alteração atinge em cheio a dignidade das mulheres, submetendo-as a um julgamento moral inadmissível num Estado de direito laico e moderno. Cobrar uma taxa moderadora a quem faz uma IVG e não cobrar essa taxa a todos os demais casos de interrupção de gravidez configura o pagamento de uma “multa”, e como se sabe, multa-se quem infringe as regras e merece censura social, pelo que, esta alteração legislativa é, efetivamente, uma forma de declarar legalmente a culpa destas mulheres.

As mulheres voltam assim, a ver cair sobre si, o espectro da culpabilização de fazerem amor sem ser com o objetivo último da reprodução, o espectro da culpa da sua alegada falta de decoro, o espectro da culpa de quererem adiar a maternidade para evitar serem discriminadas no mercado de trabalho, o espectro da culpa de quererem ser profissionalmente bem-sucedidas em detrimento do seu suposto papel de esposa e mãe de família. As mulheres são as principais culpadas pela diminuição da taxa de natalidade, ponto final! É o que se pode ler nas entrelinhas desta alteração legislativa.

Até ao final da década de 60 do século passado, Portugal era dos países europeus com mais elevada taxa de natalidade. Contudo, a democratização dos meios contracetivos, a institucionalização do planeamento familiar e o acesso generalizado à educação, muito rapidamente alterou esta realidade, e desde o início da década de 80, o limiar da reprodução de gerações (2,1 filhos) deixou de estar assegurado em Portugal.

Atualmente, praticamente em nenhum país da União Europeia a substituição de gerações está assegurada. Portugal não é, portanto, uma exceção.

De acordo com dados da OCDE, ao longo das últimas décadas, é possível observar que existe uma divisão clara entre dois grupos de países, em que aqueles que apresentam taxas de fertilidade mais elevadas são também os que apresentam taxas de emprego feminino mais elevadas. E, aqui, Portugal, surge como um país “outsider” desta tendência, na medida em que apesar da elevada taxa de participação de mulheres no mercado de trabalho, a taxa de fertilidade é particularmente baixa. Quais serão as razões para este fenómeno?

Apesar de existirem vários mecanismos de conciliação entre vida profissional e vida familiar previstos na lei, de igual forma para homens e mulheres, quem os usa, quase exclusivamente, são as mulheres. Os homens portugueses raramente solicitam trabalhar em flexibilidade de horário e embora partilhem cada vez mais as licenças parentais com as mães dos seus filhos, ainda assim, não chegam aos 25% face às mulheres que gozam licença. Se analisarmos quantos homens faltam ao emprego para prestar assistência à família a percentagem é quase nula, enquanto essa é a principal causa de absentismo feminino.

Page 30: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 30 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Se é certa que a instabilidade do mercado de trabalho e o ambiente de desconfiança na economia condicionam a decisão de ter filhos, não é menos certo que a dificuldade de conciliar vida profissional com a vida familiar, tem vindo a contribuir para o atraso na decisão de constituição de família, nomeadamente por parte das mulheres, sobre quem ainda recaí de uma forma geral, a maioria das responsabilidades domesticas e familiares. É sabido que muitas mulheres, receando serem prejudicadas no mercado de trabalho adiam a maternidade ou optam por não ter filhos, e este receio é efetivamente fundado, dado que todas as estatísticas demonstram claramente uma elevada incidência de não renovação de contratos a termo no caso de gravidez ou trabalhadoras com filhos pequenos, o mesmo acontecendo com a sua inclusão em despedimentos coletivos e processos de extinção de postos de trabalho.

Vários países, preocupados com a diminuição da taxa de natalidade têm vindo a adotar medidas públicas, nomeadamente de promoção da conciliação entre vida familiar e profissional, para homens e mulheres, e não apenas com incidência sobre as mulheres, com vista a inverter aquela tendência. São disso referencia a França e a Suécia, dois países que têm conseguido manter taxas de natalidade “relativamente altas”, havendo muito a aprender com as suas experiencias. Mas, infelizmente, toda a discussão sobre o tema realizada em Portugal no último pouco ou nada ligou a estes bons exemplos, acabando por ser mais uma oportunidade perdida de se ter criado um regime coeso de promoção da natalidade em Portugal, que deveria ter passado pela assunção de um compromisso social, envolvendo os parceiros sociais e os diversos partidos, para uma estratégia concertada e continuada. Está mais do que estudado e comprovado que existem 3 tipos de políticas públicas de apoio à família com potenciais efeitos sobre a taxa de natalidade:

a) Aposta em serviços de apoio à infância, serviços pré-escolares e prolongamentos escolares;

b) Pagamento de prestações pecuniárias (subsídios de natalidade, parentalidade e infância/abono de família e subsídios de apoio à educação);

c) Isenções ou reduções contributivas e/ou reduções fiscais para famílias e para empresas que promovem medidas de conciliação nas suas organizações.

De acordo com os dados apresentados em vários relatórios da OCDE123, observa-se que os melhores resultados são obtidos através do mix de politicas publicas de apoio à família que aumentam a confiança de quem quer ter filhos, designadamente: alargamento de licenças parentais partilháveis remuneradas mas não transferíveis; reforço das redes de serviços de apoio à infância de boa qualidade e a preços razoáveis; e, benefícios fiscais para famílias e para empresas que promovam a conciliação.

Acreditando que ainda estamos em tempo de evitar que o amanhã seja um regresso ao pior dos passados e que o abominável hoje é passível de mudança, é fundamental a adoção de um

1 — http://www.oecd.org/social/soc/oecdfamilydatabase.htm

2 — http://www.oecd.org/els/emp/2079435.pdf

3 — http://www.ined.fr/fichier/t_publication/1551/publi_pdf2_pesa481.pdf

Page 31: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 31 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

conjunto coordenado de políticas públicas que tenham em consideração, em simultâneo e em sinergia, diversos fatores, como a economia, o emprego, a família, a conciliação entre vida profissional e vida familiar, igualdade de género e responsabilidade social das empresas, com vista a criar boas condições de apoios à infância e à parentalidade, nomeadamente:

1. Lançar uma estratégia nacional para a promoção do apoio parental, tendo por objetivo sensibilizar os pais e as empresas que empregam pessoas com filhos menores, de que o apoio a prestar pelos pais aos filhos é fundamental para o seu desenvolvimento saudável e que tal é um desígnio nacional e não uma questão privada;

2. Aumentar e melhorar a rede de serviços de acolhimento de crianças (creches e infantários) a preços razoáveis, tendo por meta que todas as crianças entre os 12 meses e os 6 anos obtenham vaga na rede pública ou semipúblico, não podendo ficar mais do que 6 meses em lista de espera;

3. Criar subsídios universais de infância e apoio à educação, cujo valor aumenta em função do número de filhos;

4. Criar um sistema de benefícios fiscais para trabalhadores/as e empresas que utilizem um sistema de pagamento salarial promotor da conciliação entre a vida familiar e a vida profissional, tais como cheques-creche ou cheques-conciliação4, em que as entidades patronais podem pagar uma percentagem do salário em tikets conciliação, para serem usados em creches, com amas, com serviços de cuidado doméstico ou ainda para contratar serviços de apoio domiciliário a pessoas idosas, doentes ou pessoas com deficiência.

5. Garantir prolongamentos escolares até aos 16 anos, compatíveis com os horários laborais dos progenitores;

6. Alterar o regime da parentalidade, permitindo que as licenças de parentalidade, possam ser gozadas de forma flexível, em part-time, divididas por meses, semanas ou dias ou partes do dia, tanto pelo pai como pela mãe, de forma simultânea ou alternada;

7. Alterar o Código do Trabalho e a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, prevendo a obrigatoriedade legal de as Convenções Coletivas de Trabalho regularem a promoção da utilização de horários flexíveis, jornada contínua, trabalho a partir de casa e banco de horas, para pessoas com filhos menores;

8. Criar incentivos à contratação de trabalhadoras grávidas, puérperas e lactantes, à semelhança do que já existe para jovens à procura do primeiro emprego ou desempregados de longa duração, através de isenção de taxa social única a suportar pela entidade empregadora, até 3 anos.

4 — A França é o exemplo mais rico neste tipo de medidas: - Vigora desde 2003 um sistema denominado “CESU” (Décret no 2005-1360 du 3 novembre 2005 relatif au cheque emploi-service uni-versel LOI no 2005-841 du 26 juillet 2005 relative au développement dês services à la personneet portant diverses mesures enfaveur de la cohésion sociale), Este sistema, de acordo com informação veiculada pelo ministério do trabalho francês têm tido um impacto bastante positivo, incluindo no combate ao mercado informal e na criação de emprego. Por essa razão, a própria administração pública francesa passou a adoptar este sistema e paga ao seu pessoal parte do salário em tikets conciliação.

Page 32: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 32 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Afirmar as alternativas: Que futuro para a política pública?

SANDRO MENDONÇA

A ciência económica é muita definida colocando a noção de escassez no seu centro: a economia seria a ciência que estuda a afectação de recursos num contexto de escassez. As dificuldades, a frustração, a falta, isso seria o foco da ciência “triste”. No entanto, em tempos de pensamento único um emprego mais apto de atributo parece ser à política pública. Aqui sim rareia a consideração séria, a discussão aberta e o tratamento consequente de reconsiderações fundamentais. O afunilamento impera, mesmo que surgem novas ideias teóricas, mesmo quando a evidência falsifica as hipóteses testadas.  

Um recente livro em dois tomos comete, portanto, uma necessária e fecunda heresia. Tenta uma reflexão plural e profunda sobre caminhos alternativos de política pública para a sociedade e para a economia. “Afirmar o Futuro: Políticas Públicas para Portugal”. No Volume I trata-se de “Estado, Instituições e Política Sociais”, enquanto no Volume II incide sobre “Desenvolvimento Sustentável, Economia, Território e Ambiente”.

Como dizem os coordenadores Paulo Trigo Pereira e a Viriato Soromenho-Marques na introdução à obra: : “Os erros no desenho e execução de políticas públicas podem ser da responsabilidade de poucos, mas as suas consequências são sofridas por quase todos, e são, de facto, todos aqueles que são convocados para pagar o preço desses erros.” (p. 8) Por isso mais perspectivas sobre eventuais consequências devem ter voz logo no início do processo que causa as decisões implicam todos. Daí que este trabalho colectivo seja, logo por si mesmo, mais do que um nexo de palavras potencialmente interessantes ou eventualmente úteis; é uma atitude não-passiva já de si responsável. “As políticas públicas devem resultar de um vasto processo de consensualização estratégica acerca de assuntos considerados fundamentais para a existência de uma comunidade política organizada.” (p. 11).

Entre autores e comentadores de capítulos há mais de 40 especialistas, profissionais, ex-responsáveis por políticas ou observadores próximos de problemáticas. Há muitos percursos intelectuais e de vida, e não apenas intervenientes (por exemplo, temos textos originais traduzidos para português de Mark Blyth e de Paul de Grauwe). Muitos são investigadores ou académicos, outros conhecidos pelos seus contributos individuais para a esfera pública ou para a vida cívica organizada. E é de notar que os contributos não são apenas diversificados, são também produto de um processo de discussão crítica: várias etapas ao longo 2014 com seminários temáticos com debate em profundidade e uma conferência aberta amplamente.

São mais de 700 páginas de trabalho de diagnóstico e de definição propositiva. Muitas vezes

Page 33: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 33 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

as perspectivas são complementares, como quando Paul de Grauwe olha para a evolvente macroeconómica de Portugal e João Leão foca os trade-offs domésticos do país, ou quando Ricardo. Muitas vezes são perspectivas suplementares, quando Ricardo Reis e a dupla Manuel Caldeira Cabral e Hélder Lopes olham para o curto prazo de acordo com linhas distintas de análise que se sobrepõem elevando a percepção da complexidade dos desafios. Mas há também instâncias de tensão crítica quando, por exemplo, tanto Ricardo Cabral como Ricardo Paes Mamede exercem pressão sobre os argumentos dos trabalhos que comentam.

O resultado deste trabalho integrado é demasiado vasto para ser revisto resumidamente de um modo que lhe faça justiça. Destacam-se alguns temas, políticas viradas para a economia real, reformas na governação da dívida, áreas temáticas como a saúde, as pensões, o emprego e o território.

Mas há uma sombra que escurece muitas das vias de reconsideração do desenho e implementação das políticas públicas em Portugal as quais seriam desejavelmente feitas em soberania e democracia. A Europa, tal como a conhecemos hoje. Implicitamente, e em contraste com outros tempos mais deslumbrados, “mais Europa” parece ser uma recomendação afastada da maior parte dos contributos.

Quando o é, o caso raro é Paul de Grauwe, talvez não por acaso um europeu não-português, parece que se pede que a Europa deixe de ser “esta” Europa. de Grauwe é violentamente severo na sua crítica à política económica europeia. Mas, no fundo, parte da política não é deliberativa; é pré-deliberativa. Os moldes são rígidos e estão pré-embutidos nos parâmetros de uma União Económica Europeia com deficiências sérias. “Isto levou a um processo assimétrico, onde a maior parte do ajustamento foi feita pelas nações devedoras.” (p. 20). Melhores tácticas (políticas de conjuntura) são sempre urgentes, mas são necessárias políticas que mudem a estrutura onde as escolhas de política são feitas.

Até que ponto será possível outra Europa com os entendimentos que se cristalizaram na tríade Berlim-Bruxelas-Frankfurt? E até que ponto é possível outro Portugal com esta Europa? Ainda só se começou um princípio para uma discussão. Esta obra é grande. Mas é também uma grande obra porque desbrava caminho. Em tempos de becos sem saída nada disto é pouco.

Os sucessos e insucessos do governo

ALEXANDRE ABREU

É injusto limitarmo-nos aos indicadores macroeconómicos mais comuns para aferirmos os sucessos deste governo

Pode-se apontar muitas críticas ao actual governo, mas há coisas que devem ser reconheci-

Page 34: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 34 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

das: a coligação tem um plano para o país, tem vindo a pôr esse plano em prática e tem uma máquina de propaganda bem oleada que tudo fará para garantir mais tempo para que esse plano seja posto em prática.

Neste momento, essa máquina de propaganda está apostada em contar uma história: o gover-no reivindica como sucesso seu a retoma recente do PIB e do emprego, mas enjeita qualquer responsabilidade pela contracção da economia e do emprego ao longo da primeira metade da legislatura.

Contar a história desta maneira requer que se enfatize a trajectória recente, especialmente o crescimento do PIB e do emprego nos últimos cinco ou seis trimestres, em detrimento do desempenho global alcançado durante a legislatura. Pois dá-se o caso – ainda que, sob tanta propaganda, isso nem sempre seja recordado – do PIB trimestral estar ainda cerca de 4% abai-xo do que sucedia quando o governo entrou em funções. E dá-se também o caso do volume de emprego ser inferior em cerca de 220.000 postos de trabalho face a Junho de 2011. Aquilo que tantos comentadores e apaniguados louvam como inquestionável sinal de sucesso – “o PIB está a crescer” – não é mais do que uma incompleta recuperação de parte do que foi des-truído por este mesmo governo.

A coligação governamental, dando mostras de sagacidade política, soube sempre que teria vanta-gem em concentrar a austeridade na primeira metade da legislatura de modo a concentrar tempo-ralmente a dinâmica recessiva e permitir alguma recuperação quando se aproximassem as eleições.

Fazê-lo implicou uma série de volte-faces. O aumento do salário mínimo, diabolizado pelo governo no inicio da legislatura como destruidor de emprego, passou entretanto a “desejá-vel”. No início da legislatura, saudava-se como sucesso a eliminação do défice externo mesmo quando essa eliminação era um mero efeito colateral da recessão; no final da legislatura, saú-da-se como sucesso o crescimento económico mesmo quando acompanhado pelo regresso do défice externo. Também nisto a coligação dá provas de sagacidade política: dada a relativa impermanência da memória no debate público, a coerência é um valor relativamente secun-dário em política. Contam menos a a realidade, a consistência lógica ou a racionalidade do que as aparências, o spin e as emoções.

Para não falar do malabarismo extraordinário que é necessário para qualificar como “ajusta-mento” um período de quatro anos em que a dívida pública passou de 108% para 130% do PIB e a dívida externa líquida passou de 83% para 104% do PIB. Ao fim destes quatro anos, exactamente que parte destes dois desequilíbrios macroeconómicos fundamentais é que foi “ajustada”?

E note-se que o governo até tem tido do seu lado uma conjuntura singularmente favorável em pelo menos três vertentes: a baixa histórica das taxas de juro a nível mundial, a depreciação do euro e a queda do preço do petróleo. Pois mesmo com estas ajudas extraordinárias, o sucesso macroeconómico do governo pode medir-se pelo emprego e pelo produto muito abaixo, e pelas dívidas pública e externa muito acima, do que era o caso quando entraram em funções.

Page 35: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 35 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

Mas seria injusto e incompleto limitar a análise do desempenho do governo aos aspectos es-tritamente macroeconómicos. Há toda uma panóplia de transformações estruturais da econo-mia portuguesa que se escondem por detrás dos indicadores mais comuns – e o governo tem procedido a uma série delas. Há a privatização, em geral por montantes irrisórios, da quase totalidade do que restava do sector empresarial do estado. Há a redução significativa da co-bertura de apoios sociais como o rendimento social de inserção ou o complemento solidário para idosos. Há a redução de 46% para 43% da parte dos salários no rendimento nacional, em detrimento dos rendimentos de capital. Há a quase eliminação dos contratos colectivos de trabalho. Há o aumento, de 11% para 20%, da proporção dos trabalhadores que auferem o salário mínimo.

Houve, em suma, um aproveitamento magistral destes quatro anos para desvalorizar e preca-rizar o trabalho, para abrir novas esferas de actividade à acumulação privada e para transfor-mar Portugal numa sociedade menos justa, menos solidária e mais desigual.

Foram esses os grandes sucessos deste governo. Infelizmente, para mal da maioria de nós.

(inicialmente publicado em http://expresso.sapo.pt/blogues/bloguet_economia/blogue_econ_alexandre_abreu/2015-08-19-Os-sucessos-e-insucessos-do-governo)

Para uma convergência à esquerda

ALFREDO BARROSO

1. A pergunta é: que passos para a criação de um pólo à esquerda, contra a bipolarização, o rotativismo e a alternância sem alternativas?

E a resposta mais simples que me ocorre é esta: antes de mais, é necessário caminhar no sen-tido da convergência de ideias e de objetivos programáticos, repudiando liminarmente qual-quer tentação hegemónica que ponha em causa a autonomia dos partidos, movimentos ou grupos que aceitem integrar esse «pólo à esquerda».

Há pouco mais de um ano, questionei a nova direção do PS sobre alguns «passos» políticos que me parecem essenciais para convergir e governar à esquerda. Saliento apenas três:

a) Contestar e repudiar o Tratado para a Estabilidade, a Coordenação e a Governação na União Económica e Monetária – mais conhecido pela designação Tratado Orçamental – verdadeiro pacto de austeridade perpétua contra a democracia. Este pacto imposto pela

Page 36: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 36 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Alemanha e feito à margem dos Tratados Europeus, é na realidade um acordo intergover-namental e bastou ser ratificado por 12 Estados membros da UE para entrar em vigor. O PS liderado por António José Seguro ratificou-o, sem quaisquer problemas de consciência. E o PS liderado por António Costa afirma que as normas e regras do Tratado são para cum-prir e ser aplicadas na íntegra, com vista a alcançar (cito) «o quase equilíbrio estrutural das contas públicas e a redução do endividamento». Mais austeridade à vista, portanto.

(Recordo o que escreveu Octávio Teixeira em Abril de 2012: «Este é um Tratado estúpido que con-sagra a nível jurídico mais elevado o estúpido Pacto de Estabilidade e Crescimento. Ao impor um défice estrutural máximo de 0,5% com a obrigatoriedade de “reformas estruturais” se (ele for) ultra-passado, bem como a redução anual de 5% da dívida e a submissão da emissão de dívida a parecer prévio da Comissão (Europeia), consagra a inevitabilidade de redução de despesas públicas neces-sárias ao crescimento a longo prazo, a impossibilidade de financiar investimento com recurso ao crédito e a diminuição das despesas de natureza social»);

b) – Defender a renegociação e reestruturação da dívida pública. Também aqui a res-posta foi muito clara. A actual direcção do PS afasta qualquer propósito de renegociar e reestruturar a dívida pública do país. Nada de incomodar os credores e suscitar a ira da Comissão Europeia e do Governo de coligação alemão (CDU-SPD). António Costa já disse que não quer «levar com a porta na cara», em Bruxelas e em Berlim;

c) – Avaliar a possibilidade de reverter algumas das privatizações realizadas pelo gover-no de direita PPD-CDS, que desfalcaram o Estado de importantes empresas estratégicas. Aqui, a resposta foi ao mesmo tempo dececionante e ambígua. Um futuro governo do PS irá proceder a mais privatizações, de acordo com o critério resultante da «clarificação do conceito de ‘sector estratégico nacional’». Até agora, porém, não há notícia de qual-quer clarificação do conceito – e é altamente improvável que ele venha a abranger qual-quer das empresas estratégicas já privatizadas pelo governo de direita.

Devo acrescentar que, em relação a duas outras questões que coloquei – sobre a definição de uma política de alianças e sobre o combate à corrupção e à promiscuidade entre a política e os negócios – só recebi respostas evasivas e nenhuma iniciativa prevista, sobretudo no segundo caso. Em amigos influentes não se toca…

2. Decididamente, o secretário-geral e a direção do PS partilham a visão do mundo que é apanágio da classe dirigente que governa o país e a Europa:uma classe dirigente desprovida de consciência histórica, politicamente cínica e egoísta, educada na superstição da economia e das finanças e votada ao culto dos números e quantificações.

Tal como o PS de António José Seguro e antecessores, o PS de António Costa não parece dis-posto a romper com a infernal lógica neoliberal que continua a empobrecer os países do sul da Europa, a degradar a democracia e a destruir o Estado social.

Page 37: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 37 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

Ora, sem ruturas – e sobretudo sem planos B – a chamada «esquerda de governo» claudicará mais uma vez, se regressar ao poder, perante as forças não legitimadas democraticamente que continuam a influenciar e pressionar os governos e a condicionar as vidas de muitos milhões de europeus.

(Aliás, quando penso no«bloco central», no chamado «arco da governação», na bipolarização e no rotativismo, ocorre-me muitas vezes a famosa frase do Príncipe de Salina em «O Leopar-do», de Lampedusa e de Visconti: «É preciso que alguma coisa mude para que tudo continue na mesma»).

Parece-me bem claro que, para aplicar um programa de ruptura, é preciso ter a coragem de tomar medidas unilaterais, mesmo que sejam contrárias aos tratados e directivas europeias.

E quanto à eventual saída do euro, se é certo que não pode ser considerada um projecto polí-tico em si mesma, recusar à partida essa possibilidade seria, como o demonstra o exemplo da Grécia e do Syriza, aceitar uma condenação à paralisia política.

Como afirmou Joseph Stiglitz uma entrevista recente: «Penso que a situação vai piorar, se não houver uma rutura».

3. Em todo o caso, convém não ignorar que os caminhos da esquerda estão hoje cheios de obstáculos, são perigosos e envolvem muitos riscos.

O exemplo do que sucedeu à Grécia e ao Syrisa constitui um sério aviso à navegação. Os «do-nos» da União Europeia, designadamente Bruxelas e Berlim, não toleram qualquer ato de re-beldia que ponha em causa o seu poder. Quem infringir as regras por eles impostas será seve-ramente punido.

Aliás, um dos fenómenos mais preocupantes que afetam as democracias contemporâneas é, precisamente, a usurpação do poder democrático legítimo pelo poder ilegítimo exercido pelas empresas transnacionais (ETN); os mercados financeiros; as agências de rating; os lo-bbies, mega-lobbies e outros grupos de pressão; e por uma elite tecnocrática de gestores, banqueiros e advogados ao serviço do capital. Agindo coordenadamente, estes poderes não legitimados democraticamente definem e condicionam as políticas, controlam e influenciam os políticos, dominam as instituições europeias (sobretudo a Comissão Europeia) e vários or-ganismos internacionais(como o FMI ou a OMC). Paradoxalmente, este poder ilegítimo tem tirado partido da crise que ele próprio provocou para se impor e consolidar.

(Como afirmou em 1991 o banqueiro David Rockfeller, justificando a falta de transparência do grupo de Bildeberg: «Teria sido impossível desenvolvermos os nossos planos para o mundo se tivéssemos estado sujeitos a exposição pública durante todos estes anos. Mas o mundo é agora mais sofisticado e está mais preparado para se submeter a um governo mundial. A soberania su-pranacional de uma elite intelectual e de banqueiros mundiais é seguramente preferível à autode-

Page 38: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 38 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

terminação nacional praticada nos séculos passados»).

Ora, a legitimidade é indissociável da democracia, e as suas instituições e poderes represen-tativos não podem ser usurpados por empresas cujo único objetivo é o lucro, nem pelos seus diversos agentes e representantes que se arrogam o exercício de poderes outrora reservados aos eleitos. Estamos perante uma forma sorrateira e subreptícia de poder ilegítimo,de tal ma-neira difícil de identificar com rigor que nem sequer tem ainda nome próprio. A ensaísta e ativista política Susan George chama-lhe «corporativocracia», qualificando assim esse poder ilegítimo que não decorre de decisões oficiais e explícitas, e que se vai instalando progressiva e imperceptívelmente, muitas vezes sem ser, sequer, considerada como pressão ou usurpação por aqueles que, de boa ou má vontade, a ele acabam por submeter-se.

4. É sobre tudo isto que importa esclarecer os cidadãos-eleitores, explicando com simplici-dade e clareza quais são as condições que definem um poder democrático legítimo, a saber:

• eleições livres e justas dos representantes do povo;

• governo constitucional;

• Estado de Direito;

• igualdade perante a lei;

• separação dos poderes executivo, legislativo e judicial;

• mecanismos de controlo e contrapoderes;

• separação entre a Igreja e o Estado.

• direitos e liberdades individuais e coletivas, nomeadamente; a liberdade de expressão; a liberdade de opinião; a liberdade de Imprensa: e a liberdade de culto.

Como afirmou recentemente o sociólogo Pierre Rosanvallon, numa entrevista ao semanário francês «L’OBS»:

«O nossos regimes podem continuar a dizer que são democráticos, mas a verdade é que já não so-mos governados democraticamente. É este o grande hiato que alimenta o desencanto e a angústia contemporâneas».

Hoje, os cidadãos-eleitores são apenas soberanos por um dia: o dia das eleições. Passado o momento do voto e, com ele, a sedução e as promessas eleitorais, os cidadãos-eleitores cons-tatam que o poder político se afasta para longe deles e que o interesse geral passa a balançar ao sabor dos protestos e pressões corporativas de toda a ordem.

O divórcio dramático entre o momento eleitoral e o momento governamental não pára de

Page 39: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 39 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

acentuar-se. E é justamente a distância abissal que separa a linguagem de campanha eleitoral da linguagem governamental que produz efeitos devastadores no eleitorado, contribuindo para desvalorizar cada vez mais a atividade política e encorajar a abstenção.

A velha questão do défice de representação democrática continua a ser de grande atualida-de, mas não pode continuar a escamotear a questão do mau governo, que se tornou crucial quando constatamos que o poder executivo tem vindo a impor-se progressivamente a todos os outros, nomeadamente ao poder legislativo.

É o deslizamento para uma predominância cada vez maior do executivo que explica que os responsáveis políticos se tenham desligado quase por completo da sociedade e se tenham reduzido à sua condição de meros profissionais da política, tornando-se apenas homens e mulheres do aparelho dos partidos a que pertencem.

A sua «realidade» passou a ser o interior do «mundo político» em que se movem, mais preocu-pados com a evolução das diversas fações, com os congressos e com as lutas de aparelho que determinam a relação de forças da qual sairão os governantes.

A atividade dos partidos políticos está, assim, cada vez mais reduzida à mera gestão dos ca-lendários eleitorais.

5. A Europa é hoje palco de uma grande ofensiva contra o Estado-Providência e contra o modelo social europeu, com o objetivo de derrogar tudo o que foi conquistado pelos traba-lhadores desde há 60 ou 70 anos.

Os neoliberais odeiam este modelo social, porque consiste em taxar os ricos e as grandes em-presas – ou seja, os que, segundo eles, pretensamente criaram toda a riqueza – para redistri-buir uma parte dessa riqueza por pessoas que não a merecem.

Os pobres, desempregados ou assalariados, não são considerados parceiros na criação de va-lor, mas sim parasitas. Segundo o dogma neoliberal, apenas o capital, com exclusão do traba-lho e da natureza, é criador de valor e, portanto, de postos de trabalho. Só os acionistas e os quadros dirigentes são criadores de valor. Por isso, é natural que sejam eles as principais partes interessadas na tomada de medidas ou decisões políticas.

O fanatismo dos neoliberais é tal que, apesar do balanço assustador das suas políticas, insistem em aplicar as suas teorias. Tal como numa religião, os grandes sacerdotes do neoliberalismo oficiam em Bruxelas, os seus missionários reúnem-se em Davos, os seus teólogos e pregado-res estão infiltrados nos think tanks e os seus mais sectários seguidores ocupam inumeráveis ministérios e conselhos de administração.

É contra esta «tropa fandanga» e os partidos políticos que ela controla que a esquerda tem que se bater e, por isso mesmo, tem de convergir – e não apenas em Portugal, mas na Europa, a co-meçar pela do Sul. É um combate desigual e muito difícil. Exige capacidade de esclarecimento

Page 40: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 40 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

e de persuasão dos cidadãos-eleitores. Mas também uma clara vontade de aceder ao poder pela via democrática, com um programa político claro, corajoso e eficaz.

Como se costuma dizer, faço votos!

(Texto que serviu de base à intervenção no debate “Que passos para um Pólo de Esquerda?” do Fórum Socialismo 2015, Porto, 30 de

Agosto de 2015, http://www.esquerda.net/artigo/para-uma-convergencia-esquerda/38362)

Políticas sociais: direitos, mercados e assistencialismo

FERNANDO MARQUES

As políticas sociais foram profundamente alteradas no decurso dos últimos anos no contexto dos programas de estabilidade e de crescimento, do Memorando de Entendimento e das suas revisões e do período pós-troica. Mais do que mudanças abruptas estamos perante um processo de progressivo esvaziamento de funções sociais do Estado a favor de esquemas privados, para os que podem, e da caridade, para os que não podem. Neste artigo faz-se uma reflexão sobre os principais problemas sociais e sobre o sentido das múltiplas alterações nas áreas sociais.

A NATUREZA DOS PRINCIPAIS PROBLEMAS SOCIAIS

O primeiro grande problema respeita a saber como garantir um adequado nível de vida a uma elevada população pensionista e reformada. Infelizmente, este tema está quase excluído do debate público o qual está centrado na sustentabilidade financeira das pensões, sem que se saiba claramente o que tal significa. A verdade é que a pensão média é baixa (embora com profundas diferenças entre o sector privado e o sector público, em parte explicadas pelos salários declarados e pelas carreiras contributivas) e que o principal meio de vida de uma parte significativa dos idosos depende de pensões mínimas ou de baixas pensões. Apesar de progressos feitos no passado quanto às pensões mais baixas, estima-se que perto de 70% desta população tem pensões cujo valor não excede o IAS (Indexante dos Apoios Sociais), isto é cerca de 420 euros, ou que, no âmbito da CGA, não excede os 500 euros. Neste contexto, é no mínimo deprimente olhar para posições de algumas forças políticas onde a vertente da adequação das pensões é ignorada e onde se repete até à exaustão o termo da sustentabilidade (ou equivalente).

Page 41: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 41 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

PENSÃO MÉDIA E INCIDÊNCIA DAS MUITO BAIXAS PENSÕES (2013)

MIL PENSÃO MÉDIA €

Pensões até IAS (%)

SECTOR PRIVADO

- Previdencial 2127 452 75

- Agrícolas (RESSAA) e não contributivo

291 223 100

SECTOR PÚBLICO 462 1281 21

Fonte: Conta da Segurança Social e CGANotas: Previdencial: pensões de invalidez e velhice do regime geral; RESSAA e nos regimes não contributivos ou equiparados: pensões mínimas; S. público (CGA): pensões até 500 euros de aposentação e de reforma. Os dados referem-se a 31 de Dezembro.

Uma parte dos reformados e pensionistas é pobre. O chamado risco de pobreza e de exclusão social atingiu 27,5% da população em 2013. A situação portuguesa é particularmente complexa uma vez que, por um lado, o problema da pobreza dos idosos não está ultrapassado e, por outro, há mais pessoas pobres em idade activa, como indica a taxa de 10,7% para os empregados (10,3% em 2010) e de 40,5% para os desempregados (36% em 2010).

A perda de estatuto social dos desempregados constitui um aspeto central na actual realidade social. Houve revisões sucessivas da legislação sobre a protecção social no desemprego desde meados da década passada, com preocupações que nem sempre coincidiram. Tomaram-se medidas de reforço da proteção social, entre 2009 e meados de 2010, com vista a melhorar a procura interna para estimular a economia e assim combater os efeitos da recessão global. Mas estas medidas foram depois revogadas, sendo seguidas pela restrição nas condições de acesso às prestações e pela redução do seu montante e do seu tempo de atribuição. Pretendeu-se que assim se obteria um rápido regresso dos desempregados a um mercado de trabalho onde supostamente teriam emprego.

Este rápido regresso não se materializou e o desemprego de longa duração cresceu em quase todos os anos do período. Uma vez no desemprego, os desempregados têm grandes dificuldades de se reinserirem no mercado de trabalho, sobretudo em empregos com qualificações e condições equiparáveis à dos empregos que perderam. Em 2014 o desemprego de longa duração (12 e mais meses) atinge quase 2 em cada 3 desempregados (65,5%). O aumento da duração do desemprego tem pesados custos incluindo a erosão das qualificações, o risco de pobreza e, como se irá referir, a diminuição da protecção social.

A situação no mercado de trabalho é muito complexa não podendo ser avaliada a partir somente da taxa de desemprego. Tem-se uma melhor compreensão com um painel de indicadores representativos da evolução do emprego e da não utilização (ou insuficiente utilização) de força de trabalho disponível (ver quadro). Estes dados são reveladores de quatro

Page 42: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 42 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

aspetos essenciais. Primeiro, a destruição massiva de postos de trabalho1. Segundo, o aumento do desemprego seguido pela sua contração a partir de 2014, a qual se deve menos à melhoria económica (um crescimento anémico de 0,9% neste ano) e mais à combinação de factores como a gestão social do desemprego, o desencorajamento, o subemprego e a emigração. Terceiro, o peso avassalador do desemprego de longa duração. Quarto, a retoma da emigração em grande escala. Todos estes aspetos têm profundas consequências na segurança social e na protecção social, incluindo no seu financiamento.

INDICADORES DE EMPREGO E DESEMPREGO

2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Emprego (% variação) -2,9 -1,4 -3,2 -4,1 -2,6 1,6 -0,3

Taxa de desemprego (%) 9,4 10,8 12,7 15,5 16,2 13,9 13,7

Inativos disponíveis (% popul. activa) 1,3 1,3 3,1 4,3 5,2 5,2 4,9

Desempregados ocupados (% popul. activa) 1,4 2,5 3,6

2,9

Emigração (% popul. activa) 1,9 2,3 2,4 2,6

Subemprego a tempo parcial (% popul. activa) 1,7 1,8 3,9 4,7 4,9 4,7

4,9

Desemprego de longa duração (% total) 46,5 54,1 53,2 54,2 62,1 65,5 64,5

Fonte: INE (Inquérito ao Emprego) e IEFP. Os dados de 2015 respeitam ao 1º trimestre.

A crise tem pois um impacto terrível no mercado de trabalho, incluindo o quase desmantela-mento da contratação colectiva (num processo que sendo anterior à troica foi por esta agra-vado), a facilitação dos despedimentos e, como se argumenta em seguida, o enfraquecimento das políticas sociais. Este choque ocorre numa sociedade que já tinha rendimentos baixos e cavadas desigualdades sociais. Com a crise a situação agudizou-se. Recorde-se que um terço dos trabalhadores por conta de outrem recebeu em 2014 um salário líquido até 600 euros. Se tivermos em conta que na periferia dos grandes centros urbanos é difícil obter uma casa com uma renda mensal inferior a 300 euros, sobram outros 300 para todas as outras despesas. Recorde-se também que, em Outubro de 2014, quase 20% dos trabalhadores era abrangida pelo salário mínimo (25% nas mulheres).

A ORIENTAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS

Com a política de austeridade procedeu-se a cortes na despesa social. A despesa dirigida a garantir direitos básicos, incluindo a prevenção e reparação da carência e desigualdade socio-económica, foi de imediato atingida, bastando observar a quebra na evolução das transferên-

1 — O nível de emprego situou-se em 4477 milhares no 1º trimestre deste ano, sendo de 5099 milhares no 1º trimestre de 2009 (INE, Inquérito ao Emprego).

Page 43: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 43 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

cias do Orçamento de Estado (OE) para o cumprimento da Lei de Bases da Segurança Social (LBSS). As políticas sociais não pretenderam sequer “compensar” os mais pobres e vulneráveis. O que subjaz aos cortes, realizados ou em perspectiva3: uma redução da protecção, segurança e solidariedade sociais, por alegadamente se estar em situação de emergência financeira, ou uma mudança no modelo de políticas sociais? A análise do que se tem passado na segurança social fornece, a nosso ver, respostas esclarecedoras.

O acesso às prestações foi restringido pondo-se em causa o princípio da universalidade da se-gurança social, que a Constituição consagra. A publicação do decreto-lei nº 70/2010 de 16 de Junho, sobre o acesso a prestações e apoios não contributivos, constituiu um marco essencial. O aperto nas regras de determinação dos rendimentos, composição do agregado familiar e capitação dos rendimentos do agregado familiar para a verificação das condições de recur-sos originou o rápido declínio dos beneficiários no âmbito do Sistema de Protecção Social de Cidadania, onde se incluem prestações como o abono de família a crianças e jovens, o rendimento social de inserção e o subsídio social de desemprego. Em Outubro de 2010 foram eliminados (decreto-lei nº 116/2010 de 22.10) os escalões mais elevados do abono de família (o 4º e o 5º, com 405 mil titulares em 20093). Dizia-se no preâmbulo: “Com as medidas adotadas mantém-se ainda um elevado nível de protecção social, sobretudo em relação àqueles que mais necessitam, e que se situam nos escalões mais baixos”. Note-se o termo “ainda” e o rom-pimento com o princípio universalista nesta prestação.

Esta orientação veio a ser alargada e reforçada nos anos da troica. No domínio da protecção social no desemprego, o acesso às prestações foi limitado através de legislação publicada em 2010 e 2012, apesar de se ter diminuído o período de garantia do subsídio de desemprego. As alterações provocaram a rápida diminuição do número de desempregados a receber subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego (menos de um em cada dois) e a redução do período de atribuição. O valor máximo da prestação foi limitado a 2,5 IAS - a natureza con-tributiva da prestação foi ainda mais enfraquecida - e procedeu-se ao corte de 10% no subsí-dio de desemprego após 180 dias de concessão4. Vale a pena sublinhar “natureza contributiva” porque muitas vezes se usa e abusa do argumento de que são os “nossos impostos” que pa-gam os subsídios aos desempregados, o que está muito longe de ser verdadeiro5.

O discurso da troica foi o de que tal era necessário para que os desempregados regressassem rapidamente ao mercado de trabalho, como se a destruição de postos de trabalho com a po-lítica de austeridade fosse uma invenção malévola. Não estamos longe do discurso dos que nos anos 30 do século passado diziam que o subsídio de desemprego era responsável pelo desemprego6.

2 — Lembre-se a intenção de se proceder a um corte permanente de 600 milhões de euros nas pensões (Programa de Estabilidade 2015-2019) e de se estabelecer um teto global nas prestações sociais não contributivas substitutivas de rendimentos do trabalho (visa “poupar” 100 milhões de euros). 3 — A informação quantitativa sobre a segurança social tem como fonte a Conta da Segurança Social, relativa a diversos anos.4 — Só não se foi mais longe (criação de uma taxa sobre os subsídios de doença e de desemprego), porque o Tribunal Constitucional o não permitiu.5 — O subsídio de desemprego representa 87% da despesa com as prestações de desemprego (dados de 2013), devendo-se acrescentar que o subsídio social de desemprego é parcialmente contributivo.6 — Jean-Paul Fitoussi, O Debate-tabu. Moeda, Europa, Pobreza, 1997, Terramar, página 61.

Page 44: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 44 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

A evolução no sentido da redução da abrangência e/ou dos montantes de prestações, con-tributivas e não contributivas, verificou-se noutras prestações. Por exemplo, o subsídio por morte passou a prestação de valor fixo e a ser limitada, primeiro a seis IAS e depois a 3.

No domínio das pensões, o objetivo da sustentabilidade financeira sobrepõe-se agora a todos os outros, na linha, aliás, do que se defende a nível da UE. Aparentemente não é assim porque, por exemplo, o Livro Branco das pensões põe no mesmo plano a sustentabilidade e a adequa-ção. As pessoas mais velhas devem ter um rendimento que permita um nível de vida digno e gozarem de independência económica7. Mas, como salienta Clara Murteira8, a adequação é relegada para a esfera dos mercados incluindo o recurso a produtos financeiros por via de poupanças individuais.

Salienta ainda como a segurança social passou a ser considerada um obstáculo pelas autorida-des europeias e as contribuições sociais a serem encaradas como inimigas da competitividade porque aumentam os custos com o trabalho. De facto, a pressão europeia para reformar os sistemas de pensões nacionais é hoje mais forte e mais efetiva no contexto da nova governa-ção económica e do Tratado Orçamental que emergiram com a conversão da UE à política de austeridade. Há quem, piedosamente, argumente com a compensação da segurança social por receitas de impostos, esquecendo as consequências de se tornar o orçamento da seguran-ça social contributiva dependente do OE e de se quebrar, ou pelo menos de se enfraquecer, a relação salário-contribuição-prestação, o que objetivamente favorece o caminho já em curso para o assistencialismo. A diminuição nas transferências do OE para o financiamento do Siste-ma de Protecção Social de Cidadania deveria servir de alerta.

As respostas na área da ação social pública foram quase totalmente privatizadas, transferidas que foram para as Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS) e para os privados. Os acordos de cooperação com IPSS representam 75% da despesa corrente de ação social realiza-da em 2013 (o que não esgota toda a despesa relacionada com as IPSS), enquanto as respostas públicas por via dos estabelecimentos integrados, que estão na dependência do Instituto da Segurança Social, têm uma participação de 3% (5,8% em 2009 e 7,1% em 2005). Esta diminuta participação é menos uma rutura do que o reforço numa linha de continuidade com uma po-lítica de progressivo esvaziamento de respostas sociais públicas traduzindo uma desrespon-sabilização do Estado em funções sociais. Porquê esta transferência? Porque, retórica à parte, “se trata de uma resposta mais barata, mais precária e com um menos encargo financeiro para o Estado”9.

A despesa com a ação social teve um aumento nominal de 2,4% entre 2009 e 2013, sendo também afetada pela política de austeridade já que os preços no consumidor cresceram num valor superior neste período. Vale a pena fazer o confronto com outras áreas de despesa para se perceber o sentido das políticas que vêm a ser seguidas. Por exemplo, nas prestações

7 — Comissão Europeia, Livro Branco. Uma agenda para pensões adequadas, seguras e sustentáveis, Bruxelas, 16.2.2012.8 — Clara Murteira, As pensões no colete-de-forças neoliberal da União Europeia, 13.5.2015, disponível em www.criticaeconomia.net9 — José António Pinto, O Estado social de parceria e os pobres, Público, 6.1.2015.

Page 45: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 45 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

familiares a queda foi de quase 30% (passou de um índice 100 em 2009 para 70,9 em 2013); e no rendimento social de inserção foi ainda superior, de quase 38% (de 100 em 2009 para 62,1 em 2013).

Tão importante como a dimensão dos cortes há que refletir sobre esta reorientação da despesa. O governo, que criou em Agosto de 2011 o Programa de Emergência Social (PES) focado na carência alimentar e na delegação de funções nas IPSS, diminuiu drasticamente a despesa com prestações sociais de apoio às famílias, como o abono de família, e o âmbito e eficácia de prestações dirigidas ao combate à pobreza: os beneficiários do rendimento social de inserção em 2015 caíram em mais de metade face a 2009 e os do Complemento Solidário para Idosos - uma prestação que tem por objetivo combater a pobreza e a exclusão social da população mais idosa – em cerca de um terço em relação a 201310. Ou seja, estamos perante um processo de substituição de prestações atribuídas na base de direitos por apoios de natureza assistencialista.

O PES é mais do que um programa enquadrado na ação social. Uma lógica de bem-estar, de qualidade de vida, de igualdade real, de direitos básicos e de coesão social (artigos 9º da Constituição e 26º da LBSS) cede o lugar à lógica da carência.

Em suma, e parafraseando Alain Supiot, estamos a percorrer um caminho que nos leva aos seguros e à caridade e ao aniquilamento da solidariedade11.

10 — Utilizam-se aqui os dados da Conta da Segurança Social e as estatísticas publicadas na página da segurança social (www4.seg-social.pt). 11 — Alain Supiot, Nem seguros nem caridade: a solidariedade, Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, Novembro de 2014.

(inicialmente publicado na Revista Seara Nova, Nº 1732 - Verão 2015 http://www.searanova.publ.pt/pt/1732/nacional/579/Pol%C3%ADticas-sociais-direitos-mercados-e-assistencialismo.htm)

Lições de um plano mal enjorcado, mas muito plástico

JOÃO RAMOS DE ALMEIDA

Os quatro anos e tal de aplicação do Memorando são um mar de lições. Quem tenha de ler por atacado as opiniões escritas ao longo deste período, consegue sentir melhor as ideias que estavam por detrás das medidas adoptadas. Nomeadamente em relação ao mercado laboral.

1. Passos Coelho começou em 2011 por querer alterar a Constituição no que toca à justa causa de despedimento. “Causa atendível” em vez de “justa causa”. Parece uma ideia vinda

Page 46: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 46 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

algures de um escritório de advogados, não parece? Na altura, pensámos: “Lá está a velha preocupação conservadora, supostamente atenta às dificuldades das empresas em contratar, supostamente para poder empregar”. Digo “supostas dificuldades” que - frise-se - não tinham impedido que, nessa altura, Portugal estivesse a viver dos mais altos níveis de desemprego. Ou seja, a lei não impedia o despedimento. Então para quê?

2. O Governo estuda, em 2011, a possibilidade de redução de custos salariais, via desci-da da TSU. Nessa altura, o Governo via-se confrontado com a descoberta de encargos orça-mentais desconhecidos e - apesar da sua matriz liberal e ao arrepio das promessas feitas - op-tou antecipar o aumentar de impostos e pegar em receitas extraordinárias. Apesar do impacto recessivo, ampliado pelo susto da vinda da troika, quis o Governo baixar custos salariais para - dizia - promover a competitividade externa das empresas. E digo “dizia” porque o peso médio dos salários é de 20% dos custos de produção, pelo que os salários teriam de descer de sobre-maneira para ter um impacto visível nos preços finais. Mas a medida borregou por causa dos custos fiscais (aumento do IVA) e de um estudo oficial de vários ministérios em que se provou a sua ineficácia.

3. Alternativa: mexidas na legislação laboral, com redução forte da retribuição salarial. As alterações representaram uma enorme bateria de medidas - feriados, férias, trabalho ex-traordinário, descanso compensatório, banco de horas individual, retracção da contratação colectiva. Na altura, o Governo estimava uma redução dos custos de trabalho superior a 5%, que teria impacto numa subida do emprego de 2% em 2013 e de 10% a médio prazo.

4. Ainda não estavam em vigor essas alterações e face a uma subida exponencial do de-semprego, voltou - em Setembro de 2012 - o governo com as mexidas na TSU que viriam sapar irremediavelmente o apoio político da população à coligação de direita, após as manifestações nacionais. O governo teve de recuar. Mas não sossegou.

Já tinha reduzido salários, mas não se criou emprego por causa disso. Nem 2 nem 10%! Ah, o problema era que não se conseguia reduzir salários base. Baixara-se custos extraordi-nários, não se conseguiu baixar contribuições sociais: faltava reduzir os salários base.

5. Regressou em 2013 o Governo a mexer nas causas de despedimento. Para quê? Pois. Na ausência de um mecanismo legal que autorizasse a redução salarial - que na prática já se estava a verificar na sociedade - a única forma de conseguir baixar salários base era através do desemprego. Quem substituísse alguém numa dada função iria receber um menor salário. Surgem aquelas máximas: “A estabilidade no emprego cria desemprego. E a instabilidade cria emprego” (JVP, Expresso, 3/8/2013). Mas as alterações ao despedimento por extin-ção do posto de trabalho e por inadaptação foram chumbadas pelo TC.

6. Então, se não se consegue baixar salários, talvez se possa aumentar os lucros das em-presas. Surge a reforma da tributação em IRC, uma reforma que beneficia de sobremaneira as empresas que mais contribuem para as receitas fiscais do imposto - as maiores. Reduz-se tendencialmente, as taxas praticadas (nada dizendo sobre a matéria colectável que já permite uma evasão considerável de lucros não tributados), aumenta-se exponencialmente o reporte

Page 47: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 47 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

de prejuízos, isenta-se benefícios. Supostamente - diga-se - para criar mais empregos, via cap-tação de investimento... estrangeiro. Ainda acredita nisso?

Lições:

1. o desemprego nunca foi um mal menor nesta estratégiagia de - erradamente - ga-nhar competitividade por via salarial;

2. o objectivo é conseguir legalmente reduzir salários base e esse objectivo ainda não foi esquecido;

3. o emprego tende a responder mal a descidas salariais. Se alguma coisa mostram os recentes valores é que a subida do emprego está a associada à subida do consumo. E do crédito ao consumo. E que, apesar de se manterem as condições de despedi-mento - supostamente bloqueadoras do emprego - o emprego cresce...;

4. fracasso e o falhanço de uma política tem esse mérito: devidamente “vestidas” ou “camufladas”, permitem justificar a necessidade da próxima etapa da mesma me-dida.

Até que alguém os pare. Era bom o PS pronunciar-se sobre estes pontos.

(inicialmente publicado em http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/08/licoes-de-um-plano-mal-enjorcado-mas.html#more)

Artes de ilusionista na tributação sobre a banca

JOÃO RAMOS DE ALMEIDA

O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, tem sublinhado que, afinal, o sec-tor bancário está a pagar impostos e que – subliminarmente – este Governo fez frente aos poderosos. E a prova é que a contribuição extraordinária sobre o sector já rendeu 758 mi-lhões de euros em 5 anos (de 2010 a 2014), contribuindo para uma subida da taxa efectiva de pagamentos de impostos pelo sector.

Esta contribuição foi criada ainda em 2010 e incide sobre os passivos dos bancos e sobre os montantes aplicados em instrumentos derivados. Era uma medida para penalizar práticas mal sãs do sector que nos tinha colocado na crise económica que se vivia então. E já agora arranjar umas verbas orçamentais adicionais.

Page 48: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 48 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

O que me parece espantoso é como uma contribuição extraordinária tenha atingido valores que rondam entre um quinto a quarto do IRC liquidado pelo sector. É como se aplaudisse os valores da contribuição, para ofuscar o que se passa realmente no IRC, onde o sector paga uma pequena e desproporcionada parcela relativamente aos outros sectores. Basta olhar para as poucas e atrasadas estatísticas fiscais (as últimas reportam-se ao exercício de 2012 quando já deveriam por lei ter sido publicadas as de 2013!).

Entre 2010 e 2012 (três anos), o sector teve os seguintes números:

• Resultados positivos: 51,3 mil milhões de euros (48% de toda a economia)

• Prejuízos fiscais: 12,9 mil milhões de euros (26% de toda a economia)

• Lucros tributáveis: 11,1 milhões de euros (16% de toda a economia) (ou seja, já se veri-ficou uma erosão de 40 mil milhões de euros entre os resultados positivos e os tributáveis, cerca de 4/5 dos resultados positivos)

• Matéria colectável: 9,4 mil milhões de euros (21% de toda a economia)(ou seja, mais um pequeno corte aos resultados de 1,7 mil milhões de euros)

• IRC liquidado: 2 mil milhões de euros (24% de toda a economia)

Ora, daqui já se percebe que algo se passa quando 48% de todos os resultados positivos da economia se transformem em apenas 24% do IRC liquidado em toda a economia...

Caso se tente calcular o peso do imposto liquidado sobre os lucros efectivos (os resultados positivos), verifica-se:

Page 49: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 49 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

1. O sector bancário teve das taxas efectivas de IRC em 2012 mais baixas da economia (8,5%), só superior à da electricidade (4,9%). A taxa média da economia foi de 12,5%. Em 2010, a banca teve uma taxa efectiva de 2,3%! Percebe-se a criação da contribuição extraordiná-ria...

2. Com pagamentos tão baixos de IRC, qualquer contribuição especial atinge logo uma fatia de leão e permite ao Governo apresentar-se como um real cobrador de impostos. O IRC liquidado anualmente rondou entre os 660 e os 716 milhões de euros e a contribuição ex-traordinária sobre o sector bancário deu 152 milhões de euros em 2011, 156 milhões em 2012, 139 milhões em 2013, 180 milhões em 2014. Quando na realidade, o sector não paga impostos sobre a parte de leão dos resultados positivos.

Resta ainda acrescentar que mais nenhum outro sector beneficiou tanto de uma reforma do IRC (coordenada pelo ex-militante do CDS, administrador do BPI e Sonae) e que aumentou de 4 para 12 anos o número de exercícios em que é possível abater prejuízos fiscais aos resulta-dos positivos. Ou seja, a receita de IRC no futuro irá ser reduzida por este “subsídio” público ao sector.

Falar de 758 milhões de euros de contribuição extraordinária quando se permite a erosão de milhares de milhões de euros, parece um exercício forçado. Mas pronto, é o que há.

(inicialmente publicado em http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/09/artes-de-ilusionista-na-tributacao.html#more)

Page 50: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 50 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Trabalho e Emprego

MARIA EDUARDA RIBEIRO E JOÃO LOURENÇO

1. A SITUAÇÃO PRESENTE

O Programa de Ajustamento celebrado com a Troika teve efeitos particularmente gravosos sobre o mercado de emprego em Portugal. Desde 2011 que se tem vindo a assistir: à queda do emprego, sendo que o aumento verificado mais recentemente foi largamente insuficiente para anular a descida anterior; à subida da taxa de desemprego, que actualmente se situa na ordem dos 13%, tendo contudo chegado a ultrapassar os 17%; à diminuição da população ac-tiva, numa ordem de grandeza superior a 200 mil pessoas; à saída de mais de 300 mil pessoas para o exterior; e à degradação dos salários e demais direitos dos trabalhadores, incluindo o alongamento dos horários de trabalho.

A descida da taxa e do volume de emprego foi acompanhada pelo reforço da precariedade, através dos contractos a termo, do trabalho temporário e do falso trabalho independente, cuja tendência crescente se vem verificando desde há vários anos, mas que atingiu agora valores extremamente elevados, especialmente entre os jovens, que são frequentemente vítimas de um recurso abusivo deste tipo de contractos, muitas vezes, à revelia da lei, por parte de enti-dades empregadoras.

O volume e a taxa de desemprego, já de si muito elevados, são agravados pelo facto de cerca de cerca de 2/3 dos desempregados estarem sem trabalho há mais de 1 ano, e verem reduzida a sua cobertura pelo subsídio de desemprego, que conheceu uma descida significativa, por força de novas regras. Acresce que a taxa de desemprego jovem tem vindo a situar-se em ní-veis anormalmente elevados, mesmo para os detentores de qualificações superiores.

A diminuição da população activa foi sentida de forma acentuada nas idades mais jovens, por força da emigração, que regista quantitativos médios anuais que ultrapassam os registados na década de 60, para além dos efeitos associados às pessoas que desistiram de procurar empre-go, por não acreditarem que o venham a conseguir.

A degradação do salário teve lugar em termos reais e mesmo nominais, com os novos contrac-tos a serem estabelecidos em níveis inferiores aos anteriores, e porque se verificou uma desci-da do peso da massa salarial no produto. Acresce que se tem vindo a assistir a uma regressão da contratação colectiva de trabalho, com consequências negativas sobre a actualização dos salários e das condições de trabalho.

Page 51: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 51 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

Podemos então concluir que o mercado de emprego foi um dos elementos chave do processo de desvalorização interna imposto pelo programa de ajustamento, a par dos cortes sofridos pelas prestações sociais. Esta situação é tanto mais injusta, quanto se sabe que o trabalho é um elemento fundamental para a realização do ser humano, constituindo a principal fonte de rendimento das famílias. Não foi reconhecida a importância do trabalho digno, na acepção que lhe foi dada pela Organização Internacional do Trabalho, na construção e preservação de uma sociedade sustentável, equilibrada e justa.

2. O TRABALHO E O EMPREGO NOS PROGRAMAS ELEITORAIS

Muito embora ainda não se disponha de todos os programas eleitorais ou, pelo menos, do seu texto final, é possível encontrar, em todos os programas objecto de consulta, referências ao emprego.

Nas Linhas de Orientação e Garantias da coligação PSD/CDSPP, é expressamente afirmada “a fidelidade a um modelo de crescimento económico que assegure a sustentabilidade e a criação de riqueza e a criação de emprego”. Na enumeração das garantias aos cidadãos eleitores são refe-ridos um “crescimento robusto e gerador de emprego” (de 2% a 3% ao ano) e a “prioridade máxi-ma à redução do desemprego” (para níveis da média europeia). Porque as garantias não foram objecto de concretização, não se dispõe das medidas e políticas ligadas a estas garantias. No entanto, pode-se, desde já, questionar sobre os valores previstos para a evolução do produto, dado o contexto internacional, bem como sobre qual a estratégia subjacente a um modelo de crescimento gerador de emprego. Se o modelo se limitar a seguir as linhas de orientação anteriores, parece difícil conseguirem-se acréscimos substanciais do volume de emprego. Por outro lado, a prioridade máxima à redução do desemprego impõe igualmente a apresentação de um programa coerente de combate ao desemprego, que dificilmente terá resultados com a continuação e reforço das políticas de austeridade que vêm sendo seguidas.

O Programa Eleitoral do PS aponta expressamente para o objectivo de “promover o emprego e combater a precariedade”. Para tanto, são defendidas medidas destinadas a apoiar o emprego nos sectores de bens transaccionáveis e nos sectores criadores de emprego, a maior valoriza-ção e capacitação do empreendorismo para estimular a criação de emprego e um programa nacional de apoio à economia social e solidária. A luta contra o desemprego é focalizada nas medidas de política activa contra o desemprego dos jovens e de longa duração. A propósito, é referida a má utilização dos estágios e das políticas activas de emprego que têm vindo a ser levados a cabo e que se têm revelado geradoras de mais precariedade. As propostas apresen-tadas enquadram-se no respeito pelo compromisso nacional com a Zona Euro, acreditando-se que permitem relançar a economia e criar emprego, sem descurar a consolidação das finanças públicas. A pergunta que se impõe é a da viabilidade de um crescimento sustentado dos paí-ses mais frágeis desta Zona, como é o caso de Portugal, na ausência de mudanças de regras da União Económica e Monetária.

Page 52: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 52 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

No Programa Eleitoral da coligação CDU o objectivo de “valorizar o trabalho e os trabalhadores” é concretizado através de medidas destinadas a repor integralmente os cortes salariais, a subir o Salário Mínimo Nacional para os 600 euros mensais, a combater a precariedade, só permi-tindo o trabalho precário nos casos em que é absolutamente necessário e a reduzir o horário semanal de trabalho para as 35 horas. No Programa defende-se a renegociação da dívida e o estudo e preparação para a saída do euro, recuperando a soberania em termos de poder monetário, orçamental e cambial, o que propiciaria avançar para um crescimento económico apoiado na valorização dos sectores produtivos e na produção nacional.

No Manifesto Eleitoral do Bloco de Esquerda, a secção dedicada ao Trabalho começa por afir-mar que se pretende “Criar emprego e reconquistar direitos”. Com vista a preencher este objec-tivo são propostas medidas destinadas a repor os cortes salariais, a aumentar o Salário Mínimo Nacional para os 600 euros mensais, a combater a precariedade, apontando-se, entre outras medidas, para a proibição das empresas privadas serem fornecedoras de trabalho temporário e para novas regras para os estágios. No que respeita à reconquista de direitos, defende-se a reforma do Código de Trabalho e as 35 horas semanais de trabalho.

Os pressupostos subjacentes a estas propostas têm a ver com a superação definitiva dos PEC’s, através do crescimento do investimento público, coordenado à escala europeia, para a criação de emprego nos sectores que dão resposta às amplas necessidades sociais por satisfazer.

Nas prioridades que constam do programa de Portugal Livre – Tempo de Avançar, o objectivo de Respeitar o Trabalho é expresso da seguinte forma: “Criar emprego, suprindo as faltas de em-prego concretizado por intermédio da defesa do emprego em vários sectores do Estado, contrac-tando novos trabalhadores, com os mesmos direitos, e salários. Acabar com a fraude que são os contractos-inserção. Criar um novo regime jurídico e contributivo do trabalho independente, com protecção social e contribuições semelhantes às dos restantes trabalhadores”. Para tanto, há, en-tre outras medidas, que recuperar a economia, através de negociações com a União Europeia para restruturar a dívida pública e deixar a economia respirar, orientar os fundos estruturais para investimentos que reduzam a dependência externa, etc.

3. ALGUMAS OMISSÕES E QUESTÕES QUE GOSTARÍAMOS DE VER RESPONDIDAS

Da leitura dos programas das coligações e partidos políticos pode concluir-se que, para todos, a criação de emprego está dependente do ritmo e dos pressupostos assumidos quanto ao crescimento económico. Daí a importância de uma ampla discussão sobre o modelo subjacen-te a cada programa, a sua exequibilidade face às envolventes interna e externa, e a respectiva capacidade para tal modelo ser gerador de emprego.

Uma pergunta que se impõe é a de saber qual a estratégia a seguir e que mudanças devem ser encaradas no caso de o crescimento vir a ser mais fraco do que o previsto, impondo limi-tações sérias ao crescimento do emprego. Esta possibilidade remete para o debate de um

Page 53: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 53 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

novo paradigma sobre o trabalho, propiciado não só por taxas de crescimento mais modestas, mas também por mudanças nas formas de produção e distribuição. Muito embora haja nos programas várias referências à inovação e às alterações tecnológicas, as medidas de emprego propostas não incorporam suficientemente estas alterações, sendo por isso geralmente pouco inovadoras.

Detecta-se também uma preocupação generalizada com a precariedade, mas pouco se avan-ça em termos de propostas quanto a objectivos ligados à melhoria da qualidade do trabalho, sem prejuízo das negociações colectivas que se venham a desenvolver, a qual deve ser vista numa acepção mais vasta do que a higiene e segurança no trabalho ou a defesa dos direitos laborais.

As ligações entre a educação, a formação e o mundo do trabalho carecem igualmente de se-rem aprofundadas, de modo a serem objecto de medidas que ultrapassem os actuais estran-gulamentos e ineficiências.

As preocupações com as políticas activas de emprego são comuns aos vários programas, não existindo, porém, referência explícita a uma exigência acrescida quanto à respectiva avaliação, por forma a aferir dos seus efeitos.

Não existe também uma estratégia no que respeita aos movimentos migratórios, pese embora o seu significado no âmbito internacional, europeu e nacional.

Tendo em conta o que foi dito, gostaríamos de colocar algumas questões:

• Qual o lugar efectivo da dignificação do trabalho e do emprego entre os objectivos assu-midos por cada força partidária para a próxima legislatura? As políticas e medidas propos-tas nos programas serão adequadas aos objectivos enunciados?

• Qual deve ser o papel da política de emprego? Quais as suas forças e fraquezas?

• Como tornar mais eficaz a luta contra a precariedade? Quais os elementos constitutivos da estratégia a desenvolver: em termos de política económica e de regulação do mercado de trabalho?

• Como permitir uma ligação mais proveitosa entre a escola, a formação ao longo da vida e o emprego, no respeito pelos objectivos próprios a cada um dos campos em presença?

• Que importância atribuir à economia social e solidária? Quais as suas potencialidades e limites?

• Qual o lugar para as políticas activas de emprego? Que passos poderiam ser dados para as tornar mais eficazes? Quais as mudanças que podem desde já ser encaradas?

• Que passos podem ser dados no sentido de se avançar para novas modalidades de trabalho e de emprego, que incorporem as alterações previsíveis quanto às formas de produzir e dis-tribuir, respeitando os direitos dos trabalhadores? Que lugar para o trabalho a tempo parcial?

Page 54: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 54 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

• Que medidas tomar para assegurar a igualdade de género no emprego: no acesso, na re-muneração e na promoção na carreira?

• Que reformas introduzir no conceito de empresa, de modo a assegurar a participação dos trabalhadores em matérias relevantes de gestão, designadamente na definição das res-pectivas estruturas de remuneração?

• Que articulações devem ser encaradas em matéria de política de emprego, a nível euro-peu, para além do financiamento da formação, designadamente quanto a um subsídio de desemprego europeu e à gestão dos fluxos migratórios?

(inicialmente publicado no blog A Areia dos Dias http://areiadosdias.blogspot.pt/, Eleições 2015: Olhares Cruzados http://fundacao-betania.org/ges/L2015/03_gES_Olhares-EduardaRibeiro-JoaoLourenco.pdf)

Negociação colectiva de trabalho

MARIA EDUARDA RIBEIRO

1.SITUAÇÃO ACTUAL

O Programa de Ajustamento a que esteve sujeito o país provocou uma forte “desvalorização interna”, traduzida entre outros fenómenos pela redução dos salários, limitação da protecção social, aumento da flexibilidade do emprego e dos despedimentos, alterações da legislação laboral que limitaram direitos dos trabalhadores, enfraquecimento da negociação colectiva do trabalho, etc. Pode-se então afirmar que com a nova governação europeia iniciada em 2011“o modelo social europeu tornou-se variável de ajustamento da União Económica e Monetária”1.

De facto, a adopção das políticas de austeridade, ao abrigo do programa celebrado com Portugal, impôs a fixação unilateral e autoritária de medidas que normalmente são objecto de negociação, como foi o caso: do aumento e flexibilização do tempo de trabalho; do congelamento do salário mínimo; do congelamento/cortes de salários no sector público; dos cortes nos feriados e férias sem compensação remuneratória; dos cortes dos subsídios de Natal e de férias; da redução para metade do valor das horas extraordinárias; do bloqueio das carreiras no sector público; e da instituição não negociada do banco de horas individual. Nas intervenções relacionadas com os cortes nos subsídios de Natal e férias tem-se vindo a proceder à sua progressiva restituição.

Page 55: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 55 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

A par destas medidas foram aprovadas alterações na negociação colectiva, que transformaram significativamente o modelo vigente e que contribuíram para o seu enfraquecimento. Entre as modificações mais importantes contam-se: o bloqueio da emissão das portarias de extensão; a revisão dos critérios de extensão das convenções colectivas; e a redução do período de vigência das convenções colectivas de 5 para 3 anos e de sobrevigência de 18 para 12 meses. Estas alterações foram-se processando ao longo do tempo, sendo que algumas delas tiveram lugar já em 2014.

Em resultado das medidas adoptadas verificou-se um declínio abrupto do número de convenções e portarias de extensão (respectivamente 230 e 116, em 2010, contra 152 e 7, em 2014). Os números são ainda mais gravosos em relação ao volume de trabalhadores cobertos, que desceu de 1 407 066 para 246 388, entre 2010 e 2014)2. De realçar que o enfraquecimento da negociação colectiva de trabalho teve lugar num período especialmente difícil, em resultado do aprofundamento da crise económica e da elevação do desemprego, o que aumentou o desequilíbrio na relação de forças entre empregadores e trabalhadores. Acontece, porém, que esta redução da via negocial foi agravada pelas alterações registadas na legislação laboral.

A intenção assumida de descentralizar a negociação de trabalho, através da dinamização da celebração de acordos ao nível da empresa, em detrimento da negociação por sector de actividade, contribuiu também para a queda dos instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho, já que os acordos de empresa passaram de 64 para 48, entre 2010 e 2013, tendo subido para 80 em 2014, o que foi claramente insuficiente para compensar o decréscimo registado nas convenções sectoriais3.

Os efeitos da crise na negociação colectiva de trabalho traduziram-se no declínio dos salários nominais e reais e das condições de trabalho. Podemos mesmo concluir pelo desmantelamento do nosso sistema de relações laborais, sem que se tenha verificado uma verdadeira discussão, negociação e tomada de compromissos pelos actores relevantes, o que levanta as maiores suspeitas sobre o modelo que se pretende edificar.

2. A NEGOCIAÇÃO COLECTIVA NOS PROGRAMAS ELEITORAIS

Nos programas eleitorais existem referências tanto à legislação laboral como à negociação colectiva propriamente dita, mas optamos por focar especialmente a nossa atenção na última.

O Programa eleitoral da Coligação “Portugal à Frente” (PSD/CDS) defende que, apesar das condições difíceis, foi possível celebrar, durante a legislatura, um acordo de concertação social. Foram adoptadas reformas que se destinam a criar mais empregos e a permitir um mercado de trabalho “mais capaz de se ajustar aos ritmos de mudança da economia global, mais amigo da inovação, do investimento e do empreendedorismo”. Daí que sejam elogiadas as reformas já realizadas e se pretenda dar “estabilidade às reformas feitas e tendo sempre em atenção a manutenção, em Portugal, de um ambiente competitivo, com produtividade, criação de valor e justiça social”. Não existe, porém, qualquer referência ao declínio registado

Page 56: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 56 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

na negociação colectiva, bem como às causas ligadas a esta evolução. Sendo assim, podemo-nos questionar sobre a vontade em dinamizar a negociação colectiva de trabalho, se se mantiverem inalterados os critérios e as condições adoptados durante a actual legislatura. A Coligação propõe-se ainda “aprofundar o diálogo social nas empresas, através de disposições legais para a discriminação positiva em áreas como, por exemplo, a Segurança e Saúde no Trabalho”. Existe também a vontade de “desenvolver uma política nacional integrada de condições de trabalho com vista a promover uma ligação efectiva entre a competitividade das empresas e as condições de trabalho”. Contudo, nada se diz sobre o método a privilegiar, ou seja, se a via a adoptar continuará a ser unilateral ou se se pretende negociar. No último caso, parece entender-se que a competitividade vai ser o critério predominante, senão único, ligado à negociação das condições de trabalho.

O Programa Eleitoral do PS afirma que “é essencial sustentar uma agenda consistente de mudança numa aposta forte em retomar o dinamismo do diálogo social a todos os níveis, da concertação social à negociação colectiva de nível sectorial e de empresa, por contraponto à marginalização e desrespeito que caracterizaram os últimos anos”. Daí que se defenda “a inovação e modernização negociada da regulação laboral no plano sectorial e promover a sua articulação com o diálogo social ao nível das empresas, com especificidades que só a essa escala podem ser ponderadas”. É proposto que se rompa com a prática restritiva na publicação de portarias de extensão e se estabelecem disposições claras sobre prazos legais razoáveis para a sua publicação. Pretende-se ainda revogar o Código de Trabalho de 2012 na parte respeitante ao banco de horas individual por mero acordo entre empregador e trabalhador, deixando para a negociação colectiva ou para acordos de grupo a regulação da flexibilidade na organização do tempo de trabalho. Finalmente, é feita referência ao desbloqueamento da negociação colectiva no sector público. Para além de se reconhecer que houve um desmantelamento da negociação colectiva nos últimos anos, este Programa é o único que aponta para a necessidade de articulação dos diferentes níveis de negociação, nacional, sectorial e de empresa, embora sem apresentar os critérios que devem presidir a esta articulação.

No capítulo dedicado à valorização do trabalho e dos trabalhadores, o Programa Eleitoral da CDU começa por constatar que a contratação colectiva foi alvo de uma continuada ofensiva, que importa combater, através de uma política de valorização da negociação colectiva de trabalho. Para tal é preciso “revogar a legislação que integra o Código de Trabalho e a legislação laboral da Administração Pública com prioridade para as normas gravosas”, e “repor todos os direitos individuais e colectivos que foram retirados, incluindo os feriados”. Advoga-se ainda a garantia do efectivo exercício dos direitos sindicais e do direito à greve; a igualdade no trabalho e o combate a todas as formas de discriminação; o reforço da intervenção dos órgãos de fiscalização da aplicação da legislação do trabalho, bem como a subordinação dos apoios públicos às empresas ao cumprimento das regras da legislação do trabalho; a maior celeridade dos Tribunais de Trabalho; e o reforço da posição dos trabalhadores nos processos de recuperação e insolvência das empresas. As medidas propostas defendem a reposição de direitos que foram retirados pelo Programa de Ajustamento ou mesmo anteriormente, mas

Page 57: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 57 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

são omissas sobre as mudanças destinadas a enfrentar as novas condições económicas e sociais a que estará sujeito o mercado de trabalho.

O Programa Eleitoral do Bloco de Esquerda defende também a recuperação da negociação colectiva através da revogação das normas sobre a caducidade e sobrevigência das convenções colectivas e o desbloqueamento da negociação colectiva. Advoga ainda o reforço da efectividade das leis do trabalho e a melhoria das condições de acesso à justiça de trabalho, não se avançando com propostas sobre a forma de tornar a negociação mais efectiva e defensora dos trabalhadores, face às crescentes pressões a que têm vindo a estar sujeitos.

A Coligação Livre – Tempo de avançar considera que “é necessário reforçar a centralidade da negociação colectiva. Trata-se de um mecanismo essencial para garantir a estabilidade da relação laboral e para proporcionar ao mesmo tempo a melhoria das condições de trabalho e de vida de todos os trabalhadores e a salvaguarda dos interesses das entidades patronais”. Considera ainda que “o Código de Trabalho vigente limitou claramente a negociação colectiva e para recolocar esta última no centro da relação laboral é necessário reformá-la”. Muito embora essa reforma esteja dependente do acordo das partes em presença, seria útil dispormos dos critérios e das condições propostos para a levar a efeito.

3. ALGUMAS OMISSÕES E QUESTÕES QUE GOSTARÍAMOS DE VER RESPONDIDAS

Da leitura dos programas das coligações e partidos políticos pode concluir-se que todos defendem a negociação colectiva de trabalho. Com excepção da Coligação “Portugal à frente”, reconhece-se que se assistiu a um declínio severo do sistema de contratação colectiva, o que tem a ver com a alteração das relações de força na sociedade portuguesa. No caso desta Coligação, há fundadas suspeitas de que a não existência de propostas de revisão das condições que presidem actualmente à celebração de contractos possa levar à dinamização da negociação colectiva de trabalho. Sendo assim, estamos no campo das “boas intenções”, sendo antes de esperar a continuação do agravamento da situação actual.

Os restantes programas propõem, em maior ou menor escala, a revogação da legislação vigente, quando não a reposição dos direitos anteriormente existentes, mas não avançam sobre o modelo desejável de negociação, designadamente quanto aos critérios gerais de enquadramento que devem presidir ao seu desenvolvimento. Não há também referências às inovações desejáveis na negociação colectiva para se combaterem as dificuldades actuais. Particularmente notória é a ausência de considerações sobre a dimensão europeia dos conflitos laborais, os quais exigem que se ultrapasse o quadro nacional.

Só com uma maior definição do modelo de relações industriais defendido por cada partido político é possível começar um debate destinado a dinamizar a negociação colectiva de trabalho e a procurar os compromissos que permitam enfrentar os desafios colocados pelas condições económicas e sociais vigentes.

Page 58: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 58 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

• Tendo em conta o que foi dito, gostaríamos de colocar algumas questões:Qual a avaliação que fazem da evolução da negociação colectiva nos últimos anos? Quais os aspectos mais negativos?

• Quais os aspectos da actual legislação que devem ser prioritariamente modificados, por estarem a afectar negativamente os contractos?

• Que articulação deve existir entre os níveis de negociação nacional, sectorial e de empre-sa?

• Quais os pontos positivos e negativos da negociação ao nível da empresa?

• Deverão existir regras quanto à representatividade dos sindicatos na celebração de con-tractos? Quais?

• Como incluir as organizações dos trabalhadores precários nas negociações colectivas? (Es-tas não se incluem nas actuais estruturas sindicais)

• Deverão existir metas para a realização progressiva de uma maior celeridade dos Tribunais de Trabalho e de um maior controlo da aplicação da legislação e dos contractos de traba-lho?

• Quais as mudanças previsíveis no mercado de trabalho que virão a exigir uma maior aten-ção e necessidade de regulamentação por via legal ou negocial?

• O que deverá ficar para a via legal e para a negocial?

• Como encaram a celebração de contractos colectivos de trabalho de âmbito europeu?

1 — Maria da Paz Campos Lima, “O que nos devem? Mudanças no regime de emprego, regressão social e desigualdade em Portugal no quadro da austeridade neo-liberal” Crítica económica, Maio de 20152 — Gabinete de Estratégia e Estudos do Ministério da Economia

3 — Idem

(inicialmente publicado no blog A Areia dos Dias http://areiadosdias.blogspot.pt/, Eleições 2015: Olhares Cruzados http://fundacao-betania.org/ges/L2015/05_gES_Olhares-EduardaRibeiro.pdf)

Page 59: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 59 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

O mercado de trabalho quatro anos depois

NUNO SERRA

O especial interesse dos dados do emprego e do desemprego relativos a Junho de 2015 decor-re do facto de esta informação estatística permitir avaliar, com precisão temporal, o impacto no mercado de trabalho das políticas de austeridade prosseguidas pela maioria de direita nos últimos quatro anos. Olhando para os grandes números, há três elementos essenciais a reter: entre 2011 e 2015 a população activa diminuiu em cerca de 260 mil pessoas (-4,7%); a des-truição de emprego situa-se em cerca de 220 mil postos de trabalho (-4,5%); e o número de desempregados - nos estritos termos dos critérios oficiais - diminuiu em cerca de 38 mil (-5,9%, o único indicador de variação comparativa com significado aparentemente positivo). O que significa que, na legislatura que agora termina, por cada activo que deixou de estar desempre-gado, sete activos perderam o seu emprego.

Os números do desemprego obrigam contudo, como bem sabemos, a uma análise devida-mente cuidada do fenómeno, que tenha em conta realidades que - não sendo consideradas pelos valores oficiais - configuram situações de desemprego (tanto em 2011 como em 2015). Isto é, trata-se fundamentalmente de saber como evoluiu o desemprego que não é reconhe-cido pelas estatísticas e que peso assume hoje numa aproximação mais realista ao problema. Neste sentido, verificou-se um aumento, entre 2011 e 2015: do número de desempregados ocupados em cerca de 130 mil (+500%); do número de activos desencorajados em cerca de 90 mil (+51%); e do volume de subemprego em cerca de 36 mil (+17%). Ao que se soma o êxodo de activos, decorrente do aumento exponencial do saldo migratório negativo acumulado, que se elevou até um valor de 384 mil, em 2015 (+1300%). Ou seja, considerando este conjunto de realidades, passamos a registar um aumento de desempregados na ordem das 537 mil

Page 60: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 60 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

pessoas entre 2011 e 2015 (e não o decréscimo de 38 mil registado, no mesmo período, pelas estatísticas oficiais).

Uma das implicações desta linha de análise aponta, necessariamente, para que não sejam con-sideradas, como emprego, algumas das situações anteriormente referidas. Isto é, se apurar-mos a variação do emprego, entre 2011 e 2015, sem contabilizar os desempregados ocupados e as situações de subemprego, constatamos que a destruição do mercado de trabalho traduz a perda de 385 mil empregos e não, como indicam os números oficiais, de 219 mil. Isto é, a con-tracção do emprego nos últimos quatro anos foi de 8,4% e não, como as estatísticas sugerem, de 4,5%.

Quer isto dizer que o desemprego não diminuiu e que não foi criado emprego, a partir de 2013? Não. Como assinalou recentemente Pedro Lains, «a economia portuguesa está naturalmente a re-cuperar, depois de uma forte contracção de perto de 10%, desde o início da crise financeira». A questão essencial é que essa recuperação resulta «da ténue recuperação europeia e (...) do facto de o Governo

Page 61: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 61 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

não ter implementado medidas de austeridade adicionais, desde há um ano ou algo mais», graças ao Tribunal Constitucional e às inversões ilusórias necessárias, para «que [não] se lixem as eleições». Ou seja, a ténue recuperação da economia e do emprego não traduz - ao contrário do que o governo acredita (ou pretende que acreditemos) - de uma suposta transformação estrutural da economia portuguesa, decorrente das políticas de empobrecimento e de subdesenvolvi-mento seguidas nos últimos anos. Aliás, basta deixar passar as próximas semanas, e aguardar que a nuvem cor-de-rosa artificial se dissipe, para vermos - caso a maioria ganhe as próximas eleições - o regresso rápido e em força às políticas de austeridade, essa ferramenta política indispensável para que a direita concretize, até onde puder, a sua agenda ideológica.

(inicialmente publicado em http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/09/o-mercado-de-trabalho-quatro-anos-depois.html)

Saída da crise e da austeridade exige rupturas

OCTÁVIO TEIXEIRA

Após quatro anos de políticas austeritárias e de liberalização, não só os cidadãos estão mais pobres como, nos seus fundamentais, a economia portuguesa está pior.

Há mais desigualdade na distribuição do rendimento em desfavor do factor trabalho, há me-nos emprego e mais desemprego, os salários e as pensões de reforma foram reduzidos, o tra-balho foi desvalorizado de múltiplas formas, há mais população em risco de pobreza.

As privatizações a favor de capital estrangeiro minaram a capacidade nacional de gestão e orientação de sectores estratégicos para o país e para a economia nacional.

Durante este período a formação líquida de capital fixo reduziu-se em 10% do PIB. Ou seja, em termos de capital fixo a economia regista uma menor capacidade produtiva, menos capacida-de de criação de riqueza e de geração de emprego.

Em simultâneo, a emigração de 485 mil cidadãos, com grande incidência em jovens com ele-vada formação escolar, reduziu fortemente a população activa, o “capital humano”.

Paralelamente, os grandes constrangimentos financeiros a uma política de crescimento não foram reduzidos, antes pelo contrário: a dívida pública e a dívida externa aumentaram sig-nificativamente e o endividamento das empresas não se reduziu. E a evolução do saldo da balança corrente com o exterior ficou a dever-se fundamentalmente à redução do consumo

Page 62: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 62 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

(ao empobrecimento das pessoas) e à destruição do investimento.

De tudo isto decorre que as bases para avançar com uma estratégia de crescimento sustenta-do são hoje mais frágeis que em 2011. E tudo isto mostra o fracasso da estratégia prosseguida. Não porque a estratégia não foi suficientemente austeritária e predadora, como reza o coro liberal de políticos e cronistas, mas porque essa estratégia é demonstradamente destruidora.

Se a estratégia fracassou, se se mostrou contrária às legítimas aspirações dos cidadãos e aos in-teresses da economia, deve ser enterrada e substituída por outra substancialmente diferente.

No conteúdo e não apenas na forma. Porque prometer o fim da política austeritária, o aumen-to do crescimento e do emprego e a garantia do Estado social e ao mesmo tempo cumprir o tratado orçamental e não reestruturar a dívida pública, é uma equação impossível de resolver.

Só será possível implementar políticas alternativas às que têm vindo a ser implementadas se houver uma ruptura com os principais constrangimentos a que o País está sujeito.

E a primeira ruptura deverá ser libertar o país do garrote da dívida pública (e, por arrasto, da dívida externa). Porque a dimensão que atingiu a torna multiplamente insustentável.

Desde logo insustentável do ponto de vista económico e financeiro. Os juros da dívida repre-sentam um fardo cada vez maior, atingindo os 5% do PIB. Se a isto somarmos as amortizações da dívida de médio e longo prazo, o encargo anual duplica. E como cerca de ¾ desta dívida pública é dívida externa, isso significa que nos consomem qualquer coisa como 15 a 20% das exportações de bens, serviços e turismo.

São recursos financeiros incomportáveis que bloqueiam a capacidade nacional de investimen-to e de crescimento. Recursos essenciais para promover o necessário investimento público e reduzir a carga fiscal visando o aumento indispensável da procura interna.

Para além do mais, esses volumosos encargos sustentam a dinâmica autoalimentadora da dí-vida (os juros pagos de 2011 a 2014 são responsáveis por quase ⅔ do aumento da dívida que ocorreu no mesmo período).

Mas a dívida pública também é incomportável do ponto de vista social. O montante previsto dos juros da dívida é equivalente, por exemplo, a 112% dos encargos previstos com o SNS e a 134% dos encargos com a Educação. E se a prioridade continuar a ser a de satisfazer em pri-meiro lugar e a todo o custo as responsabilidades com os credores, como o dinheiro não chega para tudo, então serão as funções do Estado que continuarão a ser imoladas.

Acresce a exigência que o Tratado Orçamental nos faz de redução da dívida pública para 60% do PIB num prazo de 20 anos, e que não é susceptivel de quaisquer leituras ditas inteligentes. Sem uma diminuição do montante da dívida e das taxas de juro, e mesmo na perspectiva optimista do Governo no programa de estabilidade 2015-2019, isso obrigaria à obtenção de saldos orçamentais primários positivos da ordem dos 3,7% anuais durante esse longo período. Algo quer seria inédito entre os países da UE e é uma missão impossível. Se fosse tentada, ar-

Page 63: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 63 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

rastaria a economia para uma prolongada depressão e promoveria o empobrecimento perene da população, a manutenção do desemprego a níveis elevadíssimos, a emigração permanen-te, a privatização de tudo que público seja, incluindo a saúde e a educação.

E os bloqueios resultantes da dívida incidem igualmente sobre a democracia politica e a so-berania nacional. Porque a sua subsistência conduziria a que não pudesse haver alternativa à política austeritária. O que significaria a negação da democracia política e do poder soberano do povo de optar por outras vias.

A não reestruturação significativa da dívida pública impede, objectivamente, quaisquer estra-tégias e políticas diferentes das actuais. Independentemente da cor partidária que estiver no governo. As alterações possíveis circunscrevem-se ao grau. E o melhor a que uma política de austeridade mais moderada poderá aspirar é uma austeridade mais moderada, mas manten-do-nos num quadro de austeridade perpétua.

Por tudo isto, a renegociação da dívida pública terá de ser feita mais cedo ou mais tarde (e quanto mais tarde pior). Nos termos que os credores institucionais imponham ou nos termos definidos por Portugal. Por isso deve ser assumida por iniciativa do Estado português salva-guardando os interesses nacionais e assente num serviço da dívida compatível com o desen-volvimento.

Porém, o excesso de dívida pública não é a causa da crise. A crise é a resultante de perdas acumuladas de competitividade desde 1999. Para além de causas conjunturais, a causa fun-damental que levou ao acumular das dívidas excessivas foi a impossibilidade de compensar essas perdas de competitividade com desvalorizações da moeda.

A reestruturação da dívida sendo urgente e aliviando os constrangimentos que pesam sobre a economia e a população, não resolve pois um problema de fundo e central: a competitividade capaz de gerar condições para o crescimento económico e a reindustrialização do país. O Euro é o obstáculo maior ao desenvolvimento do país. E a sua ultrapassagem só é possível com a recuperação da soberania monetária. Não como um fim em si mesmo mas para possibilitar uma política de pleno emprego, de crescimento económico e de desenvolvimento social.

Em suma, o desbloqueamento do desenvolvimento e a recuperação da soberania passam pelo enterro da política austeritária, pela reestruturação da dívida e pela saída da zona Euro. Apesar dos seus custos. De qualquer modo menores que os decorrentes da desvalorização interna, da austeridade perpétua.

(inicialmente publicado no Diário de Notícias de 17 de Agosto de 2015, http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4732864&seccao=Convidados&page=-1)

Page 64: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 64 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Aprender com a Segurança Social

SANDRA MONTEIRO

Um ano depois do colapso do Banco Espírito Santo (BES) e do grupo do mesmo nome, que por sua vez se seguiu a uma crise financeira sem precedentes, com os Estados a serem chamados a injectar milhares de milhões de euros em situações de falências, más gestões e fraudes bancárias, dir-se-ia que era má altura para partidos em campanha eleitoral, sobretudo em países com crises sem fim à vista, recuperarem propostas de privatização, mesmo que parcial, do sistema de Segurança Social.

Dir-se-ia mesmo que dificilmente poderiam encontrar pior momento para o fazer, pois está muito viva a memória da facilidade com que as perdas de instituições bancárias se repercutem em perdas para os investidores privados e para os orçamentos públicos, da situação em que ficam os que depositaram as poupanças de uma vida de trabalho em fundos bancários. Neste cenário, cuja repetição é mais que provável numa economia financeirizada que os poderes públicos mal regulam, quem arriscará entregar parte dos rendimentos do seu trabalho a fundos de pensões privadas ou mutualistas quando o risco é ficar sem nada?

O problema é que as aprendizagens que as sociedades fazem sobre os dramas que as afligem são, elas próprias, um campo de combate. E o drama de um sistema financeiro instável, orientado para interesses privados mas protegidos pelos poderes públicos quando se trata de escolher a quem infligir perdas (bancos ou cidadãos), não é o único que aflige o cidadão comum. Não é sequer necessariamente o drama que todos vêem por detrás dos problemas que enfrentam no quotidiano – apesar de nele residir a compreensão do capitalismo financeiro actual. No quotidiano, para a maioria, o difícil é pagar as contas do mês, ter emprego ou viver com uma pensão de pobreza e constantemente reduzida.

Se, por um lado, a confiança no sector financeiro pode atingir mínimos históricos, e se a compreensão da sua responsabilidade na crise talvez nunca tenha sido tão elevada, também é verdade que a degradação da confiança nos poderes públicos – com governos e Estado a serem bastante confundidos – não lhe fica muito atrás. Quando a coligação hoje no governo se apresenta a eleições propondo, mesmo que quase sem dados concretos, uma privatização parcial da Segurança Social, está também a colher os trágicos frutos de uma governação que se empenhou activamente, com grande sucesso, em retirar aos cidadãos a confiança no Estado social e nos seus subsistemas de Saúde, Educação e Segurança Social – a confiança de que este definia e protegia um quadro universal, redistributivo e solidário destinado a promover

Page 65: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 65 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

igualdade de oportunidades para todos e uma sociedade de bem-estar.

Como explicar de outro modo, por exemplo, que Pedro Santana Lopes consiga afirmar várias vezes no Frente a Frente da SIC Notícias (4 de Agosto de 2015) que não há ninguém nas gerações dos 30 e dos 40 anos que acredite que terá direito a uma pensão da Segurança Social actual, o que justifica, a seu ver, a procura de alternativas de financiamento, sem que isso suscite a oposição do membro do Partido Socialista presente, António Vitorino, e que obtenha até um olhar de concordância por parte da jornalista Ana Lourenço, normalmente imperturbável, quando é repetidamente instada pelo entrevistado a rever-se naquele perfil geracional? É assim que se vai criando o senso comum dominante, esse «toda a gente sabe» que na verdade se inspira numa parte (significante) da realidade para construir uma outra (generalizada) assente em propostas que passam a escapar cada vez mais ao debate democrático das alternativas.

Neste último ano de vida política activa de Aníbal Cavaco Silva, convém lembrar que estas propostas de reconfiguração neoliberal do Estado e da sociedade não são de agora. Desde a primeira experiência neoliberal, protagonizada por Cavaco Silva no final dos anos 80 e em grande medida mantida pelos governos que se lhe seguiram, que estão em cima da mesa medidas que ameaçam destruir o Estado social de acesso universal e tendencialmente gratuito, fundado na redistribuição fiscal e contributiva. Mais sociais-democratas ou mais sociais-liberais, a machadada surge com a incapacidade de perceber que deixar de garantir o financiamento sustentável de um sistema é trabalhar para a sua perdição.

Nos anos 80 e 90 assiste-se às primeiras experiências de ensino superior privado, hospitais privados e seguros de pensões privados. Mas o seu alcance ficou aquém das expectativas liberais, fosse pela exiguidade do mercado, fosse pelo apego dos cidadãos aos seus serviços públicos. Como certamente aprenderam os neoliberais, é muito mais difícil impor transformações que põem em causa a democracia e o Estado social a sociedades que não estejam em crises profundas e onde eles funcionem bem. Seguiram-se anos de imaginação de engenharias liberais para menorizar o risco dos investidores privados (concessões, parcerias público-privado…) e de degradação dos serviços, devidamente acompanhada por campanhas mediáticas muito centradas em casos chocantes.

Com a crise, a construção fáctica e mediática do «não há dinheiro nem alternativa» deu aos governantes o pretexto da dívida para se aceitar uma arquitectura institucional e monetária europeia fundada em regras irresponsáveis e devastadoras do Estado social. A proposta da coligação de permitir que os cidadãos detentores de maiores rendimentos possam, a partir de um determinado nível de descontos, retirar uma parte das suas contribuições do sistema

de Segurança Social (sistema de plafonamento)[1] não é apenas uma forma de favorecer os negócios de fundos privados e mutualistas. É também uma forma de excluir do sistema público grande parte dos meios financeiros que lhe garantiriam a sustentabilidade, sobretudo num contexto em que ela é ameaçada por todas as outras políticas em curso (fomento da emigração, do desemprego, dos salários baixos, etc.).

Page 66: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 66 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

Depois de retirar cada vez mais poder de compra aos actuais pensionistas e de abandonar à lei da selva grande parte dos que excluiu da protecção social (a começar por metade dos desempregados), a coligação no governo entende ser altura de dizer o mínimo possível sobre os próximos cortes a infligir aos pensionistas actuais (de onde virão os 600 milhões de euros prometidos a Bruxelas?) e de aliciar os que agora entram na vida activa a perder toda a esperança de virem a ter uma pensão digna e paga pelo Estado. Que percam toda a esperança na universalidade, na redistribuição, na solidariedade inter-geracional, isto é, nos mesmos princípios de funcionamento que deram ao trabalhador recém-chegado à vida activa cuidados neo-natais, planos de vacinação, escola pública, avós que puderam ajudar os pais quando eles foram para o desemprego e muitas outras realidades até há pouco tão inscritas no nosso ADN civilizacional que nos esquecemos de as defender.

A «liberdade de escolha», essa mesma que deixa de fora pobres e classes médias e cria o Estado social mínimo e assistencialista, é um monstro que ciclicamente toma por alvo o subsistema público que considera, nesse momento, mais permeável. Desta vez quer entrar pela Segurança Social, mas os seus efeitos são sempre os mesmos: destruir um sistema público e universal que é, em todos os países onde aplicado, o factor que mais contribui, a par das leis laborais, para tornar as sociedades mais coesas e justas. Convém lembrar isto, e travar este combate. Mas sem esquecer que, a prazo, o pior carrasco do Estado social será aquele que, neste momento decisivo, não exigir a reestruturação da dívida, não compreender que esta Europa não é a da democracia e a da justiça social, e se limitar a encaminhar-nos para o abismo do empobrecimento perpétuo

1 — Para mais informação, ler www.jornaldenegocios.pt/economia/seguranca_social/detalhe/o_que_querem_o_ps_e_coligacao_psd-cds_fazer_as_pensoes.html.(inicialmente publicado no Le Monde Diplomatique, edição portuguesa de Agosto de 2015, http://pt.mondediplo.com/spip.php?article1066)

Os plafonamentos prometidos

VÍTOR JUNQUEIRA

O plafonamento contributivo, velha bandeira da ala neo-liberal portuguesa, está de volta. Es-teve no programa do governo atual, esteve no famoso Guião da Reforma do Estado e ainda ontem apareceu no programa eleitoral da coligação PAF:

Page 67: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 67 -

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

E também aparece, ainda que sob diferente forma, no programa do PS:

Há diferenças abissais entre ambas as propostas, convenhamos.

O plafonamento à moda PAF:

• É do tipo horizontal (incide apenas sobre uma parte do mercado de trabalho, ao isentar os trabalhadores mais ricos de contribuir ou ao "autorizar quem tem mais a fugir à Segurança Social", como bem o coloca hoje o Rui C. Branco)

• Só se aplica aos novos trabalhadores.

• Tem por propósito a privatização de parte da Segurança Social.

• A contrapartida financeira está no futuro, isto é, na poupança com a pensões mais baixas que estes trabalhadores terão daqui... a 40 anos.

O plafonamento à moda PS:

• É do tipo vertical (incide sobre todos os trabalhadores)

• Aplica-se aos atuais e futuros trabalhadores, mas tem, aparentemente, uma duração limitada no tempo.

• Tem por propósito, alegadamente, o aumento da liquidez das famílias, como fator de crescimento do consumo privado.

Page 68: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 68 -

01. POLÍTICAS A SUFRÁGIO

• A contrapartida financeira estará nos OEs atuais (ainda que a proposta do grupo dos economistas falasse também em redução das pensões futuras...) - curiosamente, em 2010, Passos Coelho defendia uma reforma paga por dívida pública e aplicável a todos os trabalhadores.

As diferenças são suficientes para distinguir as intenções que estão na base de um e de outro plafonamento, mas há consequências nefatas para a Segurança Social Pública que se podem associar a ambos, mesmo que a diferentes ritmos ou intensidades.

Primeiro, a compensação da redução da receita, isto é, a redução da despesa em pen-sões, só se sentirá no futuro, na altura em que estes trabalhadores se reformarem -- daqui a 40 anos, no plafonamento PAF --, ao passo que a redução na receita com as contribuições dos ativos começará a sentir-se desde já, o que imporia um fator de desequilíbrio adicional significativo às contas da Segurança Social. Até parece que estas já não estavam suficientemente fragilizadas.

Segundo, a introdução de um plafonamento deita por terra os fundamentos de solidarie-dade intergeracional de um sistema de repartição como aquele em que assenta o sistema por-tuguês. Por outras palavras, as novas gerações (plafonamento PAF) ou as atuais (plafonamento PS) passam a contribuir menos para as prestações dos seus pensionistas contemporâneos.

Terceiro «« não menos importante e vulgarmente esquecido nas discussões, talvez por se tra-tar de um aspeto de ordem mais técnica -- o plafonamento -- principalmente a versão PAF -- pressupõe redução de receita que está longe, muito longe, de ser compensada com poupanças de despesa. Esqueçamos a dilação no tempo de que falava acima. Mesmo que o abalo e a contrapartida do abalo fossem simultâneos, a desproporção entre um e outro é evidente e é sinónimo de prejuízo óbvio. O nosso sistema de Segurança Social é progressivo. Quer isto dizer, basicamente, que salários mais elevados dão origem a pensões mais altas, naturalmente, mas proporcionalmente menos altas... Na atual fórmula de cálculo de pensões, isto acontece porque a taxa de formação das remunerações decresce em função do nível das mesmas e também porque há um limite máximo (12 IAS) para o valor de uma nova pensão. Se quisermos, o sistema obtém “poupanças” nas pensões mais elevadas. Mas talvez não devamos só falar em pensões, ainda que não saibamos que impacto vão ter estas promessas de plafo-namentos em outras prestações. O subsídio de desemprego, por exemplo, está limitado a 2,5 IAS (pouco mais de 1000 euros). O desempregado podia receber 5000 euros mensais ou podia receber 20 mil euros, que iria receber de subsídio sempre o mesmo, ou seja, o limite máximo. Será que quando tiver as contribuições plafonadas vai pagar menos contribuições e poder receber o mesmo subsídio? Vai pagar menos para receber uma pensão parecida?

Que ganha Segurança Social, que ganham as pessoas?

(inicialmente publicado em http://buracosnaestrada.blogspot.pt/2015/07/os-plafonamentos-prometidos.html)

Page 69: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 69 -

02. A

PREN

DER

CO

M A

PO

LÍTI

CA

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

Algumas coisas que a esquerda tem a aprender com a direita

FRANCISCO LOUÇÃ

Ao longo dos últimos anos, a direita reconfigurou-se em Portugal. Os partidos são os mesmos, mas num dos casos com uma geração nova: os Passos Coelho (ou os Miguel Relvas) são o sím-bolo desses promissores políticos que fizerem tirocínio nas juventudes partidárias ou, quan-do para isso tinham dotes ou amigos, em empresas financeiras ou outras, e que chegaram entretanto ao poder (alguns com insucesso na política, que se pode transformar em sucesso nos negócios). Note o caso do Bruno Maçães, o tuitista  frenético do governo: é ignorante? é ideológico? É tudo e nada, por isso é um triunfo acarinhado nos meios do governo porque representa esse quê de inocência e de atrevimento que faz dele uma alma penada das ideias feitas. São as que fazem sucesso.

O que mudou para aqui chegarem merece ser visto.

Mudou a ideologia. Esqueçam a “social-democracia” e a redistribuição, agora é “competitivida-de” e “empreendedorismo”. Esqueçam Sá Carneiro, que pedia a adesão à Internacional Socia-lista (e onde ela já vai), agora é o caldo fundidor do Partido Popular Europeu que junta PSD e CDS. Esqueçam tudo o que está para trás, denigram Manuela Ferreira Leite porque ela diz que ainda quer ser social-democrata. No entanto, para os novos líderes da direita falta de ideologia não significa ausência de ideias: pelo contrário, o vazio do pragmatismo é mesmo uma enge-nharia social, preenchida pela doutrina das chamadas “reformas estruturais”. Na medida em que esta língua de pau se tornou hegemónica na Europa, o caminho estava facilitado: vários governos falam a mesma ideologia e a transumância política entre o centro e a direita é assim facilitada.

Como se chegou a esta mudança ideológica e a esta obediência política, é o que me interessa assinalar aqui.

Para fazer este caminho, os mais preclaros construíram a seu tempo uma rede de aparelhos ideológicos. Foi uma acção deliberada e estratégica e não ocasional. O seu sucesso foi constru-ído meticulosamente. Durou anos e é o seguro de vida destes ideólogos sem ideologia.

APRENDER COM A POLÍTICA

Page 70: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 70 -

02. APRENDER COM A POLÍTICA

VASOS COMUNICANTES DE IDEIAS

Na produção de ideias comunicantes, os aparelhos são dois.

O primeiro é o mapa do discurso oficial, reproduzido em conferências e colóquios, revistas e dizeres dos “especialistas” convidados normalmente por televisões: para eles é tudo fácil, vinga a tese da “austeridade inteligente” ou “expansionista”, segundo a qual o ajustamento de uma economia se faz por via da flexibilização do mercado de trabalho, a redução de salários resolve o problema do desemprego, o corte no Estado resolve o problema do défice. São os preclaros anunciadores do tudo fácil. O discurso oficial tem virtudes convidativas, pois apresenta um di-cionário simples, as suas palavras são chavões banais que resistem a qualquer prova de factos. A “Europa”, essa massa de ordens e de obediências, é o santo e a senha deste cimento ideo-lógico. A neo-germanofilia é a fábrica dos quadros da direita, seguir o chefe é a sua bússola.

O segundo aparelho é o sistema de reprodução de ideias. É, creio, o mais forte. Se as ideias nem são originais nem são sensatas, são pelo menos banais e criam um senso comum. A ga-linha do vizinho é maior do que a minha, o remediado queixa-se do rendimento mínimo que o pobre recebe — o CDS fez disso uma indústria eleitoral, no tempo em que ia a eleições. O senso comum ampliou-se entretanto com a mais católica das virtudes, o discurso da culpa e da punição. Bem merecíamos o que nos aconteceu, ainda bem que tiraram uns mesitos de pen-são aos nossos avós, ainda bem que o salário dos novos empregos é 580 euros em média, ain-da bem que cumprimos o nosso sacrifício, enquanto o pau vai e vem folgam as costas. Pedro Adão e Silva enunciou esplendidamente este discurso ganhador que se tornou a atmosfera que respiramos (Expresso, 29 agosto).

Este discurso tem um aparelho e ele foi preparado meticulosamente. Nos jornais, tem o Sol, mesmo que este tenha minguado para se reduzir a ministro do dinheiro angolano e da sua elite. Mas o centro é o universo do Correio da Manhã, o jornal e o canal cabo, com a estratégia brilhante de banalização do incidente (para o povo), e da Sábado (para os leitores de “classe A e B”, o retrato cor-de-rosa do seu país). Mais recentemente, este aparelho foi reforçado pelo Ob-servador, que constitui estrategicamente um fraldário de repetidores de ideias neoconserva-doras, chefiado por um dos seus precursores, José Manuel Fernandes, seguido por um séquito de analistas e jovens prometedores que fazem estágio no texto fácil, ou de graduados como Helena Matos e Rui Ramos. Abdicando orgulhosamente de qualquer pretensão de pluralismo e ciente da dívida ao naipe de empresários cavaquistas que o financia, o Observador é uma trincheira ideológica assanhada.

Nas ideias, funciona a concentração que cria a autoridade. Todos juntos, fazem o coro da bana-lidade e do senso comum da culpa e do sacrifício.

REDES SOCIAIS, EMPREGOS E INFLUÊNCIAS

Em contrapartida, estes aparelhos diversificam-se na organização social.

Page 71: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 71 -

02. A

PREN

DER

CO

M A

PO

LÍTI

CA

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

O Compromisso Portugal foi um dos primeiros clubes, mesmo que efémero, que juntou a nata dos jovens empresários, elaborou um discurso liberal, influenciou os partidos de direita e mes-mo o PS e preparou o apoio a Cavaco Silva. Depois, foi a vez da Fundação Francisco Manuel dos Santos. O seu Pordata serviu de sua carta de apresentação, marcadamente ideológica (o contador sobre os gastos sociais é um exemplo grotesco) mas útil pela compilação de dados e, portanto, convidativo para franjas amplas da sociedade. A Fundação, com a selecção de con-ferencistas e gestores, esteve sempre atenta ao que interessa: agrupar os liberais e criar uma carteira de serviços.

Na gestão de expectativas e empregos, a organização de conexões é ainda mais diversificada: desde os empregos de assessores na Presidência da República ou na Santa Casa da Misericór-dia, até aos cargos de administradores em empresas públicas ou privadas, a direita baseia-se numa rede entre os negócios e o poder. Como aliás acontece no PS, como demonstrei no es-tudo detalhado que escrevi com alguns colegas sobre as carreiras de todos os governantes constitucionais portugueses, mas com centros de colocação e cumplicidades específicas. Es-tas redes de emprego garantem a fabricação da seita e asseguram a inclusão e a mobilidade social dos quadros. Em poucas palavras, criam um campo político. Esse era o objectivo e foi bem conseguido.

Neste mister, destacam-se os escritórios de advogados (vimos recentemente como Marques Mendes e António Vitorino se enfrentavam na privatização da TAP, ambos fazendo parte de escritórios bem ancorados em figuras PS e PSD), mas também algumas lojas maçónicas es-pecíficas (a Mozart tornou-se a mais conhecida por episódios recentes das nossas telenovelas políticas e dos serviços secretos) ou outras associações sigilosas, que constituem locais de en-contro e de recrutamento.

A VIDA SOCIAL E A CONSAGRAÇÃO DA ELITE

Finalmente, na representação social, temos a acção deliberada e temos o movimento gerado pelas formas de poder e de reprodução do poder.

A acção deliberada é a das associações patronais que têm uma função mais política nas ne-gociações de leis e influências do que na formação de empresários ou na configuração de interesses industriais ou financeiros.

A acção em movimento social é no entanto a mais profunda, porque é a que se reproduz por si só. Veja por exemplo como a direita destruiu o movimento estudantil, que era um dos centros da constestação social, pela sua agilidade e pela sua radicalidade. A operação de aniquilação do movimento estudantil foi tão eficaz quanto não planeada por um conspirador: simples-mente, bastou fazer reproduzir a autoridade social, domesticando a universidade, onde os jo-vens ainda se sentiam jovens e livres. Primeiro, reduziu-se os cursos universitários para 3 anos, diminuindo a sociabilidade continuada pela presença na escola e marcando desde a primeira

Page 72: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 72 -

02. APRENDER COM A POLÍTICA

hora que chegará logo o tempo de pagar a propina do mestrado e de por a gravata para ir procurar emprego. Segundo, degradou-se o ensino público no secundário, promovendo con-flitos com os professores, reduzindo o seu espaço, desinteressando-os, atacando a imagem da escola pública e, ao mesmo tempo, multiplicando o financiamento para colégios privados, tidos como os padrões de uma excelência sobrevivente. Terceiro, e mais importante porque mais reticular, promoveu-se a praxe como padrão de comportamento e de reconhecimento social do estudante, sujeito assim à degradação da obediência animal, ao reconhecimento da hierarquia tutelar e omnipotente e à submissão emocional. O sucesso social da praxe é o sinal maior da vitória da direita entre os jovens, a que a esquerda reagiu em pânico, optando envergonhadamente pelo silêncio, incapaz de se opor a esta deriva autoritária e à imagética da animalização do estudante, escolhendo não fazer nada como se se tratasse de uma moda que pudesse ser passageira.

APRENDER COM A DIREITA ANTES QUE SEJA TARDE

Sim, a esquerda tem que aprender com o que a direita vem fazendo com sucesso. Não estra-nhem os leitores este argumento: a minha opinião, suficientemente notória, é que a esquerda tem objectivos contraditórios com os da direita, que os deve mobilizar para enfrentar o situ-acionismo e que para tanto requer instrumentos de participação e não de passividade, de criação e não de obediência, de radicalidade e não de conformação. No entanto, deve mesmo aprender com o que a direita faz com sucesso.

Tem que aprender a fazer à sua maneira, mas tem que fazer estrategicamente, com tempo, tempo para colocar peças, montar os seus edifícios, fazer as suas conexões e redes, estruturar ideias fortes e ater-se a elas, ampliando-as. Pouco vale o fogacho comunicativo; não será um sound byte que responderá a uma tensão social. Para tanto, tem que ter instrumentos que res-pondam aos que fizeram a vitória social da direita: meios de comunicação de ideias, de treino de quadros, de recrutamento de capacidades, de reprodução alargada. Ou seja, precisa de associações transversais, de movimentos sociais com raízes (e o movimento sindical tem per-dido campo de legitimação, ao mesmo tempo que o movimento estudantil se desvaneceu), de novas formas de representação e de mobilização dos mais capazes, de think tanks com revistas abertas (creio que um exemplo é a revista Crítica Económica e Social), de colóquios que treinem ideias, de disputas agressivas na internet usando o humor, a crítica e a invenção, de centros de investigação em profundidade e que criem pensamento rigoroso e crítico, ou de iniciativas concretas (alguns livros que aqui referi recentemente serão bons exemplos, outro é “Não Acredite em Tudo o que Pensa”, mas falta muito mais combate de ideias).

Uma boa agenda para a esquerda, se quer ganhar a médio ou longo prazo, é multiplicar todos e cada um desses alicerces. Para tanto, tem que deixar de ser condescendente: está a perder a batalha da criação das ideias e precisa de voltar à luta. Sem isso, a curto prazo pouco fará de jeito.

(inicialmente publicado em http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2015/08/31/algumas-coisas-que-a-esquerda-tem-a-aprender-com-a-direita/)

Page 73: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 73 -

02. A

PREN

DER

CO

M A

PO

LÍTI

CA

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

Aprender

JOÃO RODRIGUES

Ao ler as reflexões, descritivas e implicitamente premonitórias, de Pedro Adão e Silva e de Francisco Louçã sobre o triunfo da direita e dos seus dispositivos ideológicos, que tem por cá a colonização de um PS dominado programaticamente por Centeno como uma das suas ex-pressões, relembrei-me de um texto, de 1949, da autoria de F. Hayek, o economista político da direita intransigente com o qual a esquerda que não desiste ainda hoje mais pode aprender:

“A lição principal que o verdadeiro liberal deve tirar do sucesso dos socialistas é que foi a cora-gem de serem utópicos que lhes granjeou o apoio dos intelectuais e lhes deu uma consequen-te influência sobre a opinião pública que, diariamente, torna possível o que há pouco tempo parecia muito distante. Aqueles que se têm dedicado unicamente ao que parecia praticável perante o estado actual da opinião descobrem constantemente que até isso se tornou politi-camente inviável devido às mudanças numa opinião pública que eles abdicaram de orientar.”

Por razões que não vêm ao caso, eu prefiro substituir utópicos por radicais. Diria que a esquer-da que nos diz que temos de governar dentro dos constrangimentos criados pela direita e pe-las suas instituições políticas, que o Syriza faz o que pode (ou seja, austeridade e privatizações), é a esquerda-problema que será sempre derrotada. Desistiu de orientar. Para não cair em ide-alismos excessivos, diria ainda que é preciso não esquecer a ideia marxista, segundo a qual as ideias dominantes tendem a ser as da classe dominante, o que significa que o actual reforço da dominação, que muito deve à lógica pós-democrática, porque pós-nacional, da integração em curso, está necessariamente articulada com as transformações regressivas que estão a ocorrer no campo dos aparelhos ideológicos.

Agora, se é verdade que não se dispõe e que não se disporá dos mesmos recursos, também é verdade que esta gritante assimetria pode ser menos importante do que se julga: tem é de se ter a linha certa no momento certo, exigindo-se para isso um trabalho enorme, intelectual e de organização política, a montante. Afinal de contas, e só para dar um exemplo, houve um referendo na Grécia ganho contra quase toda a comunicação social e outros aparelhos ideoló-gicos, embora depois tenha faltado direcção política adequada ao momento...

Adenda: deixo abaixo um texto que escrevi para o número do jornal O Espelho do 25 de Abril passado sobre temas conexos e que já não parece estar disponível por aí...

HAYEK NO ESPELHO

Devemos tornar a construção de uma sociedade livre uma aventura intelectual de novo, um fei-

Page 74: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 74 -

02. APRENDER COM A POLÍTICA

to de coragem. O que nos falta é uma Utopia liberal, um programa que não se parece com uma mera defesa das coisas como são, nem uma forma diluída de socialismo, mas um radicalismo verdadeiramente liberal que não poupa as susceptibilidades dos poderosos (incluindo os sin-dicatos), que não seja exageradamente pragmático e não se limite ao que parece hoje politica-mente realizável. Precisamos de lideres intelectuais que estejam dispostos a lutar por um ideal, por muito pequena que seja a possibilidade da sua realização a breve prazo. Deverão ser homens que estejam dispostos a não abdicar dos seus princípios e a lutar para a sua plena implementa-ção, por muito distante que isso possa ser. Devem deixar aos políticos os compromissos práticos. O comércio livre e a liberdade de oportunidade são ideais que continuam a despertar a imagi-nação de grande número de pessoas, mas a “liberdade de comércio razoável” ou a “redução de entraves” não são dignas de respeito intelectual nem é de esperar que inspirem entusiasmo. A lição principal que o verdadeiro liberal deve tirar do sucesso dos socialistas é que foi a coragem de serem Utópicos que lhes mereceu o apoio dos intelectuais e que lhes trouxe uma consequente in-fluência sobre a opinião pública, o que, diariamente, torna possível o que há pouco tempo parecia muito distante. Aqueles que tem se dedicado unicamente ao que parecia praticável perante o esta-do actual da opinião descobrem constantemente que até isso se torna politicamente inviável devi-do as mudanças duma opinião pública que eles abdicaram de orientar. A não de ser que a ideia das fundações filosóficas de uma sociedade livre se torne de novo uma questão intelectualmente viva e a sua implementação uma tarefa que desafie a criatividade e a imaginação dos espíritos mais vivos, as perspectivas da liberdade são sombrias. Mas se conseguirmos redescobrir aquela crença no poder das ideias que foi a marca do liberalismo no seu melhor, a batalha ainda não está perdida. O renas-cimento de liberalismo já está em vias de acontecer em muitas partes do mundo. Chegará a tempo?  Por que é que O Espelho decidiu traduzir e publicar os dois parágrafos finais de um ar-tigo de Friedrich Hayek (1899-1992) intitulado “os intelectuais e o socialismo”, publica-do na University of Chicago Law Review na Primavera de 1949? Realmente, pode pare-cer estranho assinalar os quarenta anos do 25 de Abril dando espaço ao principal res-ponsável intelectual no século XX pela emergência do neoliberalismo. Trata-se então de um adversário maior de tantos valores, práticas e instituições de Abril, de um adversário maior do socialismo enquanto democracia sem fim, enquanto compatibilização do con-trolo democrático da economia, da igualização das capacidades para o florescimen-to humano e de amplas liberdades que dêem voz e poder à gente comum, aos de baixo. De facto, entre os anos 30 e os anos oitenta do século XX, este académico, economista e filó-sofo político, que viveu entre a Europa Central e o mundo anglo-saxónico, foi um dos grandes obreiros, no campo das ideias e da sua organização colectiva, de um programa de defesa do capitalismo expurgado de todas as concessões colectivistas; de um programa que assentou na defesa da expansão dos mercados como meio de coordenação económica insubstituível e como condição necessária para o florescimento da liberdade individual. Tudo isto no quadro de democracias limitadas ou mesmo de regimes autoritários, ditos de excepção, considerados os melhores meios políticos para garantir a rápida reinstituição do liberalismo económico.

Page 75: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 75 -

02. A

PREN

DER

CO

M A

PO

LÍTI

CA

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

A estranheza perante esta escolha pode continuar a aumentar quando sabemos que para lá dos princípios e dos mitos de uma ordem espontânea de mercado, com os seus naturais efeitos civilizadores, este vencedor do Prémio de Economia em “memória de Alfred Nobel”, precisamente em 1974, sempre soube que as forças de mercado nada tinham de natural, re-querendo a acção de um poder forte e dominado por uma elite hegemónica: “duvido que um novo mercado alguma vez tenha emergido numa democracia ilimitada e parece-me provável que a democracia ilimitada terá tendência para o destruir onde quer que ele tenha emergido”, afirmou um dia. Da teoria até ter enviado uma cópia do seu livro A Constituição da Liberdade, de 1960, a Salazar ou apoiado a ditadura militar “liberal” de Pinochet, como meio temporário preferível a uma democracia com pendor socialista, foi só um passo. Tratava-se de combater sobretudo os que faziam da democracia um mecanismo para o incremento da participação e dos direitos do trabalho organizado, que abrem as portas onde está inscrito “proibida a entra-da a pessoas estranhas ao serviço”, e para a realização de princípios de justiça social, entendida como igualização no acesso a recursos e poderes fundamentais, pressupondo limites claros aos mercados. As democracias que não sabem limitar a acção colectiva dos subalternos são um “caminho para a servidão”, asseverava desde os anos quarenta.

Estranheza cada vez maior quando vemos Vítor Gaspar, o mais “austeritário” dos Ministros das Finanças que esta democracia cada vez mais limitada alguma vez teve, a garantir com con-tentamento, em recente entrevista ao Público, que a União Europeia está a seguir o caminho indicado por Hayek, em 1939, num artigo sobre o viés economicamente liberal dos projectos de integração supranacional. Por um lado, limita-se a soberania, condição necessária da de-mocracia, na escala nacional, onde a noção de “comunidade de destino” pode conter um po-tencial socialista. Por outro lado, entregam-se instrumentos fundamentais de política, como a moeda, a instituições supranacionais pós-democráticas, tudo num quadro de regras interesta-duais constrangedoras e de desníveis de desenvolvimento que tornam impossíveis os acordos socialistas nas políticas na escala da integração. O neoliberalismo é uma engenharia política, Hayek foi um dos seus melhores arquitectos e a União Europeia, em geral, e a Zona Euro, em particular, revelou ser uma das suas resilientes construções. Seria difícil inventar melhor para fechar as portas que Abril abriu em Portugal.

No entanto, o leitor que já passou os olhos pelo excerto de Hayek e que já sabe que se trata de um artigo de 1949, numa altura em que, como disse o historiador Tony Judt, poucos eram os que acreditavam na “magia do mercado”, não pode deixar de apreciar uma certa atitude política e intelectual, independentemente dos fins que se buscam: as derrotas políticas e as sabedorias que em cada momento são convencionais, proclamando inevitabilidades, não são por si só razões para mudar de opinião e para desistir daquilo em que se acredita. A minha pro-posta é simples: os que se revêem em Abril e nos valores do socialismo, enquanto prática de-mocrática igualitária em múltiplas esferas, devem aprender com os neoliberais, como Hayek, precisamente quando estes eram muito mais minoritários e estavam até sendo derrotados em muitas áreas: “nada é inevitável na existência social e só o pensamento faz com que as coisas sejam o que são”, garantia Hayek em 1944. Ajamos como se isto fosse verdade.

Page 76: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 76 -

02. APRENDER COM A POLÍTICA

É quando se perde que é preciso ter a coragem de ser radical e utópico e não transigir com o espírito do tempo, com o “clima de opinião” criado por todos aqueles que “transaccionam ideias em segunda mão”. Temos a obrigação de saber que o espírito do tempo, em 2014, é fixa-do pelos herdeiros de Hayek e pelas estruturas com escala europeia que estes criaram.

Perante um projecto que parece avassalador, façamos como Hayek em 1949, mas subvertendo os seus termos: onde está liberal coloque-se agora socialista e vice-versa. Onde está a distopia de uma sociedade liberal assente no mercado sem fim e sem fronteiras, coloque-se a utopia realista de uma sociedade que controla a sua economia, uma economia mista, colocando-a o serviço da igualização das liberdades e capacidade.

E, sobretudo, nunca esqueçamos que quem quer alcançar vitórias na luta das ideias, que se transformam em força material quando a ela aderem poderosos interesses sociais, tem de ter a infinita persistência de pensar o que parece ser, num dado contexto, impossível de concretizar. Não por ser impossível, mas sim porque, simplesmente, não existe ainda poder e força política suficientes. Muitas vezes isto implica somente não deixar cair no esquecimento verdades es-senciais. Mesmo que isso acarrete acusações de conservadorismo, passadismo ou saudosismo. Às vezes isto implica também cuidar e proteger palavras que são todo um programa de crítica e de transformação, palavras que Abril autorizou: luta de classes, controlo de capitais, controlo democrático da economia, nacionalizações, autogestão, socialismo.

Hoje, como ontem, levar a sério essas palavras, protegê-las, implica levar a sério o artigo 1º da Constituição da nossa República: Portugal é uma República soberana assente na vontade popular. Sem isso, sem autoridade política, como Hayek de resto bem sabia, nada é possível. Quarenta anos depois, só o espectro da fusão do ideal de autodeterminação dos povos com a questão social, configurado na reestruturação da dívida, na libertação desta tutela euro-imperialista, pode derrotar o projecto neoliberal. Tenhamos então a coragem de ser radicais.

(inicialmente publicado em http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/09/aprender.html)

O combate político é um combate

JOSÉ VÍTOR MALHEIROS

É possível amalgamar quase tudo, apresentar propostas que são mantas de retalhos de ideias contraditórias, apresentar propostas que nem são propostas mas apenas postas, fazer discur-sos que são sopas de pedra onde se juntam ingredientes à medida das assistências, atirar ao

Page 77: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 77 -

02. A

PREN

DER

CO

M A

PO

LÍTI

CA

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

ar frases soltas de efeito fácil para repetição nos jornais e passagem nas televisões, prometer mundos e fundos, manipular as estatísticas, mentir descaradamente e jurar pela virgem Maria que nunca se disse outra coisa, dizer que agora é que é, que os outros são piores, que os ou-tros são o demo, sorrir para parecer simpático, fazer ar sério para parecer honesto, acenar para parecer popular, tirar a gravata para parecer modesto, pôr a gravata para parecer ponderado. As campanhas e pré-campanhas eleitorais são férteis nisto. São quase só isto. Quem ouça e veja com atenção o que dizem e fazem os políticos do costume em campanha e se atenha a algo mais que os gritos e as bandeiras e os sorrisos e os beijos aos bebés e os olhares às mamãs corre o sério risco de uma indigestão, de uma congestão, de uma apoplexia.

Os partidos são todos assim? Não. Os políticos são todos assim? Não. As campanhas são todas assim? Não. Mas a campanha eleitoral que vemos na televisão é (com as intervenções dos membros do Governo à cabeça) e, para a esmagadora maioria dos portugueses, essa é a cam-panha eleitoral. A campanha eleitoral do “arco da governação”, seguindo a lógica da Quadra-tura do Círculo, onde o círculo nem sequer é quadrado mas apenas um triângulo com o PSD, o CDS e o PS como lados. Não houvesse Pacheco Pereira na Quadratura do Círculo e o programa seria o melhor exemplo de manipulação da opinião pública desde que a Fox News começou as emissões. E, nas campanhas eleitorais, não está o Pacheco Pereira.

A campanha das televisões — mesmo com os debates anunciados — será a gigantesca lava-gem ao cérebro do Portugal à Frente e o número de equilibrismo da obsessão centrista de António Costa.

As campanhas eleitorais têm uma perversidade intrínseca. Tem vantagem quem mais mente e quem tem maior descaramento. Tudo seria diferente se os media fizessem um papel de ver-dadeira fiscalização dos poderes, mas os media consideram que publicar um texto ou fazer um programa de fact-checking das aldrabices do PSD e do CDS é uma “reportagem especial” e não a sua razão de ser. É como se o Nicola decidisse que servir café é algo para fazer apenas nos dias feriados.

Um dos problemas da falta de escrúpulo da campanha do PAF e da navegação prudentíssima da campanha do PS é que se tornam indistinguíveis. Passos Coelho chegou agora ao cúmulo de erigir o combate às desigualdades como um dos objectivos de um futuro governo PAF e de garantir que esse sempre foi uma das preocupações do actual Governo. A lata do homem que mais portugueses atirou para a pobreza não tem limites, a sua falta de vergonha é abissal, o seu decoro inexistente. Mas quem o dirá com a veemência que o facto exige?

A campanha eleitoral — cirurgicamente podada pelas televisões das intervenções à esquerda do PS —, que devia ser o local do choque ideológico e do debate de políticas, torna-se o lugar da amálgama morna, sem confronto de políticas alternativas, um choque de imagens onde apenas se pode comentar o sorriso dos oradores, onde cada vez mais se repete que a diferença entre esquerda e direita é uma coisa antiquada que “deixou de fazer sentido”.

A declaração é um dos bons exemplos da manipulação ideológica actual. Uma declaração pretensamente “equidistante dos extremos” que é de facto um grito de batalha, que visa con-

Page 78: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 78 -

02. APRENDER COM A POLÍTICA

vencer os eleitores de que a “boa governação” não tem cor política e convencer as massas a abdicar da luta de classes e de lutar pelos seus direitos.

Um dos sinais dos tempos no actual combate político, nesta campanha onde Passos Coelho se recém-arvorou em campeão da igualdade, é a ausência dos pobres. Os pobres sempre foram invisíveis mas nunca foram tão invisíveis. Os desempregados conhecem todos os dias novas indignidades nas bichas dos centros de emprego, nas lojas onde não podem comprar nada. Os velhos e doentes nem sequer podem ocupar a rua, o último lugar do poder. Os remediados degradados para novos pobres aguentam a respiração e tentam adaptar-se à humilhação, ten-tando passar despercebidos. A responsabilidade da política deveria ser destruir este silêncio, que rouba aos que nada têm a soberania que é sua, devolver a voz aos que não falam, com-bater a iniquidade, mas a campanha eleitoral, desideologizada, higienizada, soundbitizada, receia fazer aparecer a luta de classes — e isso acontece mesmo à esquerda. Receia parecer radical, mesmo quando a direita lança uma guerra sem quartel aos velhos, aos pobres e aos doentes através dos cortes na saúde e na segurança social. Mas o combate político não é uma valsa. O combate político é um combate, para o qual só poderemos mobilizar vontades com clareza nos objectivos e audácia nas propostas.

(inicialmente publicado em http://www.publico.pt/politica/noticia/o-combate-politico-e-um-combate-1706513)

A vitória da culpaPEDRO ADÃO E SILVA

A direita já venceu as eleições. Não estou a dizer que a coligação será a força política mais votada. Pelo contrário. A questão é de outra natureza: o quadro político em que operamos é influenciado por uma hegemonia do pensamento de direita e por um recuo da social-democracia. O exemplo mais claro desta transformação política, que aliás está longe de se circunscrever a Portugal, é a forma como interiorizámos as virtudes da austeridade como forma de expiar uma culpa coletiva, assente na ideia de que vivemos acima das nossas possibilidades.

É por isso que o principal sucesso do atual Governo não foi a implementação do programa de reformas, nem o cumprimento das metas do memorando (que aliás falharam todas, com exceção da receita arrecadada com as privatizações), e muito menos a melhoria significativa das condições de financiamento da dívida pública (que foi determinada pela ação do BCE). A principal conquista da coligação ao longo desta legislatura foi a consolidação da ideia de que o problema do país radicava num excesso de despesismo de todos e cada um de nós e de como a expiação para esse mal dependia de uma austeridade, económica, política e, claro

Page 79: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 79 -

02. A

PREN

DER

CO

M A

PO

LÍTI

CA

01. P

OLÍ

TIC

AS

A SU

FRÁ

GIO

está, moralmente virtuosa. Esta ideia assenta no pressuposto de que um comportamento individual errado foi a causa dos nossos infortúnios coletivos. Assim, num movimento típico do pensamento pré-moderno, os sacrifícios pelos quais tivemos de passar foram a paga pelos erros anteriores.

Se assim aconteceu foi porque se trata de uma resposta simples a uma questão complexa (como explicar a crise portuguesa?) e porque o campo social-democrata abdicou do “combate cultural”, deixando a porta aberta para a afirmação de um pensamento hegemónico refletido numa leitura dominante sobre a natureza da crise.

Regresso a este propósito ao livro de Ricardo Paes Mamede (“O que fazer com este país”), porque é um exercício eficaz na desmontagem de muitas ideias feitas sobre a crise e um esforço singular para responder à pergunta: quem são os responsáveis pela estado a que chegámos?

Contrariando uma leitura moral da crise, Paes Mamede identifica responsabilidades repartidas entre os arquitetos da moeda única e os governos que fizeram da participação no euro a prioridade das prioridades; os negociadores dos acordos comerciais entre a UE e países terceiros que aprovaram condições desastrosas para a indústria portuguesa, sem mecanismos de compensação adequados; os mentores da liberalização financeira que criaram o contexto para a grande crise desencadeada em 2008; o comportamento errático da UE e dos Estados-membros na gestão das várias fases dessa crise e a troika e os governos portugueses que acordaram um programa de austeridade destrutivo.

Enquanto não for possível traduzir estas causas explicativas num discurso político partilhável, a social-democracia continuará a perder eleições, mesmo quando as vencer.

(inicialmente publicado no Expresso de 29 de Agosto de 2015)

Page 80: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 80 -

03. EUROPA: DA GRÉCIA AOS MIGRANTES

Tsipras e Mitterrand

JORGE BATEIRA

Na noite de 22 de Março de 1983, véspera do dia em que se esperavam decisões cruciais, François Mitterrand pediu conselho a algumas personalidades sobre o que fazer peran-te a crise que a França enfrentava. A sua política económica de relançamento da economia pela procura interna, num contexto de recessão internacional após a crise petrolífera de 1979, confrontava-se com o agravamento do défice externo e com a especulação levada a cabo pela finança internacional, manifestamente hostil às nacionalizações já realizadas. O mecanismo de taxas de câmbio fixas, no quadro do Sistema Monetário Europeu (SME) da época, estava sob pressão especulativa e já tinha havido duas desvalorizações. Para man-ter a sua orientação política, Mitterrand teria de abandonar o SME, desvalorizar substan-cialmente o franco, controlar os fluxos de capitais e acelerar a sua política industrial de mé-dio prazo para substituir importações de equipamento alemão. Teria de aceitar um pouco mais de inflação para estancar o desemprego e, condição central, seria forçado a suspender a participação da França na CEE para poder executar o seu programa político e o do PSF. Sabemos que Mitterrand decidiu seguir a linha alternativa defendida por, entre outros, Ja-cques Delors. Preferiu a “política de rigor” (hoje “austeridade”) orçamental e subiu a taxa de juro para atrair capitais especulativos, segurando a taxa de câmbio, desse modo travan-do a inflação importada e, reverso da medalha, aumentando o desemprego. Ou seja, optou pela livre circulação dos capitais e a recuperação da “credibilidade” da França nos mercados financeiros, desiludindo as classes populares que tinham festejado na Bastilha a sua vitó-ria e deixando cair a estratégia de desenvolvimento industrial já iniciada. A competitivida-de viria da “contenção salarial” em vez da desvalorização da moeda. Esta guinada política foi então justificada pela necessidade de “fazer uma pausa e comprometer a França com o caminho da integração europeia” para, mais tarde e numa escala superior, se acabar com a especulação através da criação de uma moeda única e da coordenação de outras políti-cas que levariam à convergência real das diferentes economias. A conquista da confiança dos mercados ficou selada com a reprivatização dos bancos e a liberalização do sistema fi-nanceiro francês (ver  Liêm Hoang-Ngoc, “Refermons la parenthèse libérale”, La Dispute).

EUROPA: DA GRÉCIA AOS MIGRANTES

Page 81: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 81 -

03. E

UR

OPA

: DA

GR

ÉCIA

AO

S M

IGR

AN

TES

O drama de Tsipras, na noite do referendo que permitiu aos gregos recusar a chantagem e dizer NÃO aos Memorandos, foi estruturalmente semelhante ao de Mitterrand naquela noite de 1983. A sua formação cultural e política foi, tal como a de Mitterrand, profundamente marcada pelo ideal do europeísmo, pela confusão entre nacionalismo e soberania e por um entendimento da globalização que tolhe a iniciativa transformadora à escala nacional. Tendo que escolher entre a ruptura com um projecto europeu que reconhece ser antidemocrático e prejudicial ao povo grego e a manutenção da Grécia num espaço político supranacional, à espera de melhores dias, Tsipras foi fiel aos valores do europeísmo que defendeu nas eleições para o Parlamento Europeu. A votação do próximo dia 20 é apenas o começo de uma nova etapa na vida política grega. Tsipras bem pode dizer que não tinha alternativa. Ser-lhe-á lembrado pelos ex-camaradas no Syriza que, em momentos cruciais, um dirigente político lidera. Um líder não se sente obriga-do a seguir a opinião pública dominante no momento. Encurralado, fez bem ao propor um referendo (por más razões, porque esperava perder para obter um mandato de capitulação) e, depois, tinha a obrigação de ser consequente com o resultado, recusar a austeridade fazendo a pedagogia da saída do euro. Mitterrand ficará lembrado por ter metido o socialismo na ga-veta. Tsipras será lembrado por ter dado o golpe de misericórdia no europeísmo de esquerda.

(publicado em http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/09/tsipras-e-mitterrand.html)

«O Sobressalto Grego»

PEDRO CALDEIRA RODRIGUES

Na apresentação em Lisboa do livro «O Sobressalto Grego», o autor, Pedro Caldeira Rodrigues, dá-nos uma antevisão de um

livro que não podia ser mais actual. Historiador e jornalista, especialista nos Balcãs, convida desta vez os leitores a alargar

os horizontes sobre o que está em jogo na crise grega.

No dia 26 de Janeiro de 2015, um dia após a vitória eleitoral do SYRIZA nas eleições legislativas antecipadas que decorreram na Grécia, o spot da rádio do partido continuava a emitir os mes-mos acordes da Internacional ao som de um piano.

Um som com o qual muitos gregos já estavam familiarizados, mas que assumia um novo signi-ficado após o «partido da esquerda radical», na sua precisa designação, ter ficado a apenas dois deputados da maioria absoluta e se preparar para o «assalto» ao poder.

Entrava-se num terreno desconhecido. Estaria a Grécia a caminho de um novo género de socialis-

Page 82: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 82 -

03. EUROPA: DA GRÉCIA AOS MIGRANTES

mo alternativo em pleno século XXI? Liderada por uma jovem vanguarda que iria confirmar que «outro mundo é possível», impulsionar um vento revolucionário que iria percorrer o continente e inspirar outros povos da periferia europeia?

Para as gerações da Grécia envolvidas na resistência à ditadura dos coronéis, entre 1967 e 1974 – que se tinham «acomodado» com o regresso da democracia mas optado por regressar ao activis-mo político na sequência da «crise da dívida» a partir de 2009/2010 –, foi um momento exaltante.

Como o foi para a maioria dos jovens, 60% estatisticamente desempregados e que tinham esta-do na primeira linha da contestação social e dos intensos confrontos com a polícia, reiniciados em Dezembro de 2008.

«Esperávamos por este momento desde 1944!», foi dito no dia da vitória. Para os homens e mu-lheres que se identificavam com a esquerda grega, com o penoso e contraditório percurso da esquerda grega, vivia-se uma espécie de revolução.

Não um «assalto ao Palácio de inverno», justificado em 7 de Novembro de 1917 porque o voto era, então, apenas uma arma dos privilegiados. Daí, toda a legitimidade do «poder aos sovietes».

Agora, nesta Europa de inícios do século XXI, seria o sufrágio universal a determinar as alterações políticas, económicas e sociais, motivadas pelo amplo movimento de massas dos «indignados», desses 99% que estavam a ser despojados de quase tudo pelo 1% que continuava a acumular quase tudo.

Um movimento de transformação social liderado por uma alternativa política que por fim se sobrepunha às «esquerdas» tradicionais representados pelos partidos socialistas, ou sociais-de-mocratas, e comunistas.

Nas ruas de Atenas, nessa noite de 25 de Janeiro, militantes internacionalistas vindos sobretudo de Itália e de Espanha erguiam o punho, agitavam bandeiras vermelhas e entoavam o Bella Ciao, a canção da resistência italiana, ou a Internacional.

Depois, no dia seguinte, o confronto com a realidade. Os novos líderes da Grécia, esses «rapazes sem gravata», e de formação marxista, tinham um sonho: terminar com a presença da Troika e dos seus programas de austeridade que tinham provocado uma «crise humana» no país, com o seu exército de pobres, desempregados, sem-abrigo, com as restrições aos serviços de saúde básicos, com o ataque às conquistas sociais penosamente alcançadas pelos assalariados durante décadas de combates.

Sabiam que a crise financeira se tinha transformado em crise das dívidas soberanas, pesando particularmente na dívida pública, e diziam não se poderia aceitar mais sacrifícios em nome do euro, um projecto disfuncional.

Renegociação da dívida pública, mais investimento público – com electricidade, medicina e transportes gratuitos para os sectores mais necessitados, ajuda alimentar para as 300 mil famílias que viviam no limiar da pobreza, redução dos impostos sobre os combustíveis –, aumento dos

Page 83: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 83 -

03. E

UR

OPA

: DA

GR

ÉCIA

AO

S M

IGR

AN

TES

salários, em particular do salário mínimo, renacionalização de empresas, caso da companhia aé-rea Olympic Airlines, reabertura da radiotelevisão pública ERT, criação um novo banco de desen-volvimento sob controlo estatal, estas algumas das medidas prometidas. Poucas conseguiram, entretanto, ser concretizadas.

O SYRIZA ambicionava ainda alterar o «funcionamento desigual» da União Europeia, e da zona euro, através da democratização de instituições cada vez mais distantes e estranhas ao cidadão comum, fomentando uma «Primavera dos povos», a «união dos povos do Sul», para contrariar a «ditadura económica europeia imposta pelos poderosos», como dizia então Alexis Tsipras.

Aconteceu o que se sabe, ou que se começa a saber. De finais de Janeiro a inícios de Julho de 2015, um alucinante mas também apaixonante confronto político-ideológico entre os ministros-militantes anti-austeritários, que fizeram questão de se confrontar directamente com os repre-sentantes máximos dos credores prescindindo dos funcionários da Troika que muitas vezes «en-viavam as ordens por email».

Tsipras, Varoufakis, Tsakalotos, versus Merkel, Schäuble, Dijsselbloem. Um desgastante embate que quase monopolizou durante meses seguidos todos os meios mediáticos, que com mais ou menos pudor se debruçavam sobre esta «nova Grécia».

Mas a Grécia estava só.

A animosidade atingiu o clímax em finais de Junho, quando terminou o prolongamento, por quatro meses, do programa acordado em Fevereiro e que já tinha implicado cedências de Ate-nas, em particular no sector bancário.

Mas a Grécia continuava a não receber um cêntimo desde Agosto de 2014 e o cerco apertava-se, enquanto permaneciam os rumores sobre um eventual Plano B congeminado por Atenas e que tentaria minimizar o impacto de uma eventual saída da zona euro.

Tsipras anunciou então, na madrugada de 27 de Junho, um referendo sobre o último acordo pro-posto pelos credores, considerado «humilhante», enquanto a Grécia entrava em incumprimento face ao FMI. O OXI, NÃO, confronta-se com o NAI, SIM, e a Grécia fractura-se.

Pela primeira vez na história das democracias europeias, uma consulta popular decorre com os bancos fechados, uma imposição definida por um investigador e historiador grego como a «uti-lização da arma absoluta», destinada a provocar medo e influir na decisão do eleitorado.

Os principais líderes europeus, também se imiscuem directamente na campanha, e dizem que uma vitória do NÃO implica a saída automática da zona euro. Na Grécia, os partidos do centro e da direita sentiam-se protegidos, e tinham como certa a vitória.

«O SYRIZA tem de ser afastado do poder!», defendia na sua secção «Leaders» o «insuspeito» semanário britânico The Economist nas vésperas do referendo. Nada de novo. Ainda antes das eleições de 25 de Janeiro, o governo alemão considerava quase «inevitável» o Grexit caso o SYRI-ZA vencesse as eleições, abandonasse a linha de rigor orçamental e deixasse de reembolsar as

Page 84: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 84 -

03. EUROPA: DA GRÉCIA AOS MIGRANTES

dívidas do país.

Terá razão outro economista na ribalta, Thomas Piketty, quando disse em entrevista ao semaná-rio alemão Der Spiegel em Março que ao ser criada a zona euro, «criámos um monstro»?

E foi este «monstro» que os novos dirigentes gregos não conseguiram contrariar. Pouco mais de 24 horas após o referendo, a retumbante vitória do NÃO (cerca de 63%) convertia-se em SIM, em nome da permanência da Grécia na moeda única. Mas Tsipras permanecia popular, convocava a oposição em nome do «interesse nacional» e conseguia provocar a demissão do ex-primeiro-ministro direitista Antonis Samaras da liderança do principal partido da oposição.

O resultado do referendo surpreendeu os próprios dirigentes do SYRIZA. Diz-se que muitos apostavam na vitória do SIM para depois justificarem imediatas decisões políticas, como a con-vocação de eleições antecipadas, e com sondagens muito favoráveis.

Pelo contrário, e após 17 horas de negociações em Bruxelas, anunciou-se em 13 de Julho um novo resgate com os credores, agora quatro instituições, com um reforço da ingerência externa no país e novas medidas de austeridade, a troco de mais um avultado empréstimo.

Mas ninguém parece acreditar no seu sucesso, atendendo ao desastre social associado aos dois anteriores programas de resgate. O SYRIZA dividiu-se, perdeu a maioria absoluta no parlamento, e os seus partidos-irmãos na Europa, da Turquia à Irlanda, Escócia, Espanha ou Portugal, também conheciam dificuldades em justificar esta nova viragem. Falou-se de um «golpe de Estado».

Um novo e decisivo congresso do partido da esquerda radical já está convocado para Setembro. As suas conclusões serão determinantes para a permanência do actual governo de coligação ou a convocação de novas eleições antecipadas.

No rescaldo, as instituições europeias clamaram vitória. O ministro das Finanças eslovaco disse que o acordo de Bruxelas foi a «resposta à Primavera grega». E o presidente do Conselho Euro-peu, Donald Tusk, interpretava o acordo como uma forma de «impedir o contágio político» mo-tivado pela crise grega que «forneceu nova energia a grupos políticos de esquerda e de direita, criando uma atmosfera revolucionária a que a Europa não assistia desde 1968».

Mas as instituições europeias também não saíram imunes deste confronto. Neste aspecto, há um antes e um depois da cimeira do Eurogrupo de 12/13 de Julho.

A imagem da Alemanha, em particular, saiu penalizada. A Europa confrontou-se consigo própria e deu-se mal com a experiência. A Grécia pode ter saído humilhada, mas a elite europeia que controla as instituições também se ressentiu.

«O regresso do alemão feio», foi o título escolhido pelo ex-chefe da diplomacia de Berlim e ex-líder dos Verdes, Joschka Fischer, num artigo de opinião em finais de Julho.

«Num fim-de-semana, o governo alemão destruiu diversas décadas de diplomacia» através de um «catálogo de horrores destinados a humilhar a Grécia», escreveu na ocasião o semanário Der Spiegel.

Page 85: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 85 -

03. E

UR

OPA

: DA

GR

ÉCIA

AO

S M

IGR

AN

TES

«A reacção fria e abrupta do Governo alemão [às propostas gregas] foi indigna», considerou por sua vez o filósofo alemão Jürgen Habermas, ao referir-se «ao impacto mundial» suscitado pelo «comportamento brusco e teutónico» da chanceler Angela Merkel e do seu ministro das Finan-ças.

Mas a reacção mais surpreendente veio de onde menos se esperava, ou talvez não…

«Evitámos o pior [com o acordo de Bruxelas de 13 de Julho] não porque sejamos sábios, mas por-que tínhamos medo. Foi o medo [de uma saída da Grécia da zona euro] que permitiu o acordo. (…) Existe de facto uma ruptura dos laços de solidariedade na Europa (…) e os velhos demónios, os ressentimentos nacionais contra os outros ainda permanecem vivos. (…) Os europeus não querem a Europa (…) e a construção europeia, nascida da vontade dos povos, converteu-se num projecto de elite, o que explica o abismo entre as opiniões públicas e a acção política».

Esta confissão do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, numa entrevista em 22 de Julho ao diário belga Le Soir reflete o impacto que a «crise grega» suscitou na hierarquia política europeia. Ainda sem qualquer consequência prática.

Quanto ao SYRIZA, tem sido aconselhado a promover uma «gestão prudente e honesta da der-rota», e com apurado sentido de autocrítica.

No entanto, e como todos suspeitamos, toda esta história ainda não acabou.

(inicialmente publicado em http://pt.mondediplo.com/spip.php?article1069)

Homenagens do vício à virtude

ALEXANDRE ABREU

Disfarçando-se de valores cristãos e solidariedade para com os pobres autóctones, o ego-ísmo xenófobo mostra como, na hipocrisia, o vício homenageia a virtude

O actual afluxo de refugiados ao continente europeu tem sido caracterizado por inúmeros epi-sódios de profundo drama humano, por alguns gestos notáveis de solidariedade... e por de-monstrações de extraordinária mesquinhez e hipocrisia.

Esta última tem-se revestido de duas formas especialmente frequentes nestes útimos dias. A primeira é a crítica à solidariedade e ao acolhimento por parte dos que alegam que o afluxo de refugiados do Médio Oriente e de África, muitos dos quais são muçulmanos, porá em causa ou

Page 86: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 86 -

03. EUROPA: DA GRÉCIA AOS MIGRANTES

perturbará a “matriz cristã” da Europa. Não é um argumento novo – é apenas a aplicação à crise acual da velha ideia islamófoba segundo a qual estaria em curso uma invasão – da qual, nas ver-sões mais imbecis, os refugiados seriam conspirativos executores – com o objectivo de substituir a “população cristã da Europa”.

Pouco importa – pois a racionalidade pouco importa para estas coisas – que quando falamos, por exemplo, de 400.000 refugiados (que é aproximadamente o número total de pedidos de asilo registados em todos os países da União Europeia nos primeiros seis meses de 2015), estejamos a falar de 0,08% da população europeia. Ou seja, um refugiado por cada 1250 habi-tantes – o que, convenhamos, é pouco impressionante como “invasão”. E pouco interessa, claro está, a memória de como a Europa gerou ela própria milhões de refugiados há apenas algumas décadas, tendo na altura muitos deles tido a felicidade de não terem sido rejeitados da forma como estes auto-proclamados defensores da matriz identitária europeia defendem agora que se deva rejeitar quem foge da guerra e da perseguição.

Mas o que é mais curioso, pelo menos do ponto de vista da hipocrisia do discurso, é que os mais acérrimos defensores deste essencialismo cristão europeu estejam tão distantes da fraternidade a que o Papa tem exemplarmente apelado no contexto desta crise, por exemplo instando a que cada paróquia da Europa acolha uma família de refugiados. E não só distantes do discurso do Papa, como também nos antípodas da mensagem cristã exemplificada pela forma como São Martinho rasgou ao meio a sua capa a fim de partilhá-la com o pedinte que tiritava de frio. Re-negando na prática os mesmos valores cristãos com que enchem a boca, estes defensores de uma fictícia identidade europeia estática e exclusivista depressa se revelam, se dúvidas houvera, como racistas vulgares.

Não estao sós na hipocrisia. Outra variedade que foi lesta a emergir nestes últimos dias é a dos que rejeitam o acolhimento e solidariedade para com os refugiados com o argumento de que são muitos os pobres e pessoas sem-abrigo em Portugal e que é a estes que deve ser dada prio-ridade. Curiosamente, quem recorre a este argumento raramente demonstrou anteriormente grande preocupação com os pobres e pessoas sem-abrigo deste país – enquanto que as organi-zações que, pelo contrário, há muito se dedicam a trabalhar para melhorar a situação dos mais pobres estão agora na linha da frente da plataforma de solidariedade que tem vindo a ser organizada para coordenar a ajuda aos refugiados que Portugal vier a acolher. A declara-ção pública desta Plataforma de Apoio aos Refugiados a este respeito é lapidar: “Quem ajuda os sem-abrigo e os pobres em Portugal são as mesmas organizações que estão a organizar o acolhimento dos refugiados. Infelizmente, os que tradicionalmente fazem esta pergunta encontram-se pouco entre os que ajudam os pobres e os sem-abrigo.”

Quer num caso quer no outro, é irónico que o egoísmo, o racismo e a xenofobia se vejam obriga-dos a envergar uma capa de valores cristãos e solidariedade local, reconhecendo assim implicita-mente a sua própria fealdade. A hipocrisia é mesmo a homenagem que o vício presta à virtude.

(inicialmente publicado em http://expresso.sapo.pt/blogues/bloguet_economia/blogue_econ_alexandre_abreu/2015-09-09-Homenagens-do-

vicio-a-virtude)

Page 87: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 87 -

03. E

UR

OPA

: DA

GR

ÉCIA

AO

S M

IGR

AN

TES

A força da grana

HELENA SILVEIRINHA

O mundo é redondo, o que quer dizer que por mais voltas que se dê, a probabilidade de acabar no mesmo sítio é grande. Isto para chegar à conclusão que voltamos sempre ao mesmo, à força do dinheiro que como diz a canção do Caetano Veloso, ergue e destrói coisas belas.

Vi umas imagens em que o Donald Trump dizia, não sei se em resposta a uma jornalista ou como recado para a América, que com ele a indústria militar iria beneficiar muito. Mas ele é um palha-ço, respondem-me. Certo. Mas é dos palhaços que eu mais medo tenho. É que aos palhaços tudo lhes é permitido. Afinal, eles atuam num mundo ilusório, do faz de conta. O problema é quando os palhaços passam para o mundo real e aí deixam de ter piada.

O drama dos refugiados, que só agora, quase a entrar numa fase incontrolável (para nós, euro-peus), começa a despertar a necessária atenção, mais pelos incómodos que está a causar do que pela dimensão humanitária, tem também uma mão invisível. Não tanto a conceptualizada por Adam Smith, de autorregulação, mas aquela que faz com que à custa de lágrimas e sangue a economia se desenvolva e o crescimento económico seja uma realidade para alguns, apesar de haver um risco cada vez maior de no final pagarmos todos.

Que preço paga a humanidade para ter petróleo mais barato, necessariamente comprado tam-bém ao auto intitulado estado islâmico e com o qual as armas são compradas e a guerra financia-da? Quanto custa realmente um barril de crude, já incluídas as mortes e miséria a ele associada? Alguém o está a comprar e se calhar também nós o estamos a consumir.

Com a internet a informação está toda lá, é só querer ver. O Stockholm International Peace Rese-arch Institute, instituto independente dedicado à investigação na área dos conflitos e armamen-to1, mostra-nos quais foram em 2014 os maiores exportadores de armas. Metade da lista com o top 10 é preenchida por países da União Europeia, sendo que logo a seguir aos Estados Unidos e Rússia, que ocupam os dois primeiros lugares, surge a França, o Reino Unido, a Alemanha e a Espanha.

Existe uma pergunta clássica nos inquéritos de ciência política, para aferição do posicionamento ideológico dos indivíduos, onde se questiona se o crescimento económico deve ter sempre prio-ridade, mesmo que seja à custa da proteção ambiental. Talvez seja chegada a hora de reformular a questão e passar-se a perguntar se o crescimento económico deve ter sempre prioridade, mes-mo que seja à custa de vidas humanas. Com a questão ambiental também lá chegaremos, mas através das guerras o efeito é mais rápido.

Page 88: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 88 -

03. EUROPA: DA GRÉCIA AOS MIGRANTES

É claro que esta situação não é de hoje e em muitos pontos do globo a indústria da guerra mata aos milhares, já há muitos anos. Chegou porventura a nossa vez de lidarmos com o problema, pelo menos por via indireta, através dos que nos batem à porta, mais do que pedindo, imploran-do por ajuda.

E agora? Que resposta vamos dar? Que preço estamos dispostos a pagar pelo crescimento eco-nómico, que no final nem sequer tem de ser feito assim?

Acordai, diz a canção de Fernando Lopes-Graça. É bom que acordemos mesmo, a todos os níveis. Se não o fizemos resta-nos aquela única certeza, quase como que uma justiça divina: no final acabamos todos por morrer, os que sofrem pela ação dos outros, mas também os que fizeram sofrer e com isso muito lucraram.

1 http://www.sipri.org/

Page 89: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 89 -

04. N

OTA

S

Economia, Investimento e Produtividade: de que é que

estamos a falar?

MÁRIO BAIRRADA

Com a utilização destes conceitos de forma pouco rigorosa, por pessoas sem ou mesmo com formação, fica fertilizado o terreno do ideológico e em particular da ideologia dominante.

O objetivo desta reflexão não é responder de forma inequívoca à questão colocada em título, mas contribuir para uma melhor aproximação conceptual, através da colocação de problemas ao modo como estes conceitos são introduzidos no léxico comum e, deste modo, “obrigar” a um maior rigor conceptual.

Afastada a intenção de qualquer construção científica, a questão colocada foi sugerida por múltiplas situações, de que extraímos alguns exemplos:

• …”as questões económicas e sociais” (mas a economia não é uma ciência social?);

• “a economia aumentou” (Carlos Carreiras)

• “os chineses investem em Portugal” (e o que se passa com o investimento, variável macroeconómica?)

• “o setor bancário foi onde se registou o maior crescimento da produtividade” (li-vro recentemente editado sobre a economia portuguesa” - o que significa? como se mede?)

• “o emprego aumentou no último trimestre, invertendo a tendência” (não foi ouvida qualquer voz crítica sobre os efeitos na produtividade, como é normalmente enten-dida, dado o fraco crescimento do produto – lei de Okun);

• “se os trabalhadores portugueses tivessem em Portugal a mesma produtividade que têm no Luxemburgo…” (expressão mais evidente da combinatória ideologia - conceito e medida da produtividade obtidos de forma dúbia)

NOTAS

Page 90: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 90 -

04. NOTAS

• de acordo com João César das Neves, economista insuspeito quanto à competência, o problema do país reside na produtividade – baixa porque, entre outros motivos, existem muitas rendas (artigo publicado no jornal Diário de Notícias esta semana. Não se percebe o conceito e medida da produtividade que permite relacionar esta com a distribuição do rendimento);

Pela distribuição dos exemplos percebe-se que será dedicada mais atenção à questão sobre a Produtividade, onde é mais evidente a necessidade de a discutir pela imediata implicação nas políticas económicas, lutas sindicais e “aparelhos ideológicos”.

ECONOMIA

1 – Quando ouvimos dizer que os economistas, em geral, são responsáveis ou não conseguem explicar/resolver a crise, deveremos refletir sobre duas questões: 1ª a economia é uma ciência social e como tal há, o que aprendemos desde os “bancos da escola”, identidade entre o sujei-to e o objeto de investigação; 2ª como consequência, há mais do que um modo de definir o objeto da economia, bem como o respetivo método de investigação, ou seja há mais do que um paradigma económico (nem todos os economistas se reduzem a uma “folha de excel” e pensam a economia como a ciência que procura soluções matemáticas, econométricas, para encontrar situações de equilíbrio definidas por modelos que incluem muitos “como se…”). Ou seja, o facto de não haver acordo total sobre o objeto de investigação, legitima a dúvida sobre se existe uma ciência económica.

Esta questão sobre o objeto e método da economia deixou de fazer parte do ensino da eco-nomia. Daí não se estranhar a resposta evasiva à questão colocada a recém licenciados sobre a definição de economia. Aliás, pode-se estender a perplexidade a economistas “seniores” que frequentemente confundem economia e finanças, a que se associa a confusão entre variáveis de stock e variáveis de fluxo (talvez a expressão máxima seja encontrada na discutido rácio da dívida – confronto de uma variável de fluxo, económica, o PIB, com uma variável de stock, finan-ceira, a dívida.

Afinal, a definição de economia que está subjacente ao discurso dominante, mesmo que nem todos a conheçam decorre da proposta por Lionel Robbins em 1932:

“Economia é a ciência que estuda o comportamento humano como uma relação entre fins e meios escassos que têm usos alternativos”.

Curiosamente, questão colocada por Joaquim Aguiar, esta definição inclui como hipótese cen-tral a escassez de recursos num momento, Grande depressão, em que a taxa de desemprego atingia valores elevadíssimos.

2 – Na definição acima estão colocadas as pedras angulares do edifício económico deste pa-radigma: escassez e eficiência – por isso uma das críticas mais contundentes refere-se a este

Page 91: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 91 -

04. N

OTA

S

paradigma como a “economia de Robinson Crusoé” (as suas preocupações, objeto, e método de resolução são indistintamente aplicáveis a um trabalhador, a um empresário ou a Robinson Crusoé na sua ilha deserta). Ou, apresentar aos alunos em teste de microeconomia, em pleno período recente de elevação da taxa de desemprego, o tradicional problema sobre o trade off de um trabalhador entre trabalho e lazer.

O quanto se produz passa a ser determinante mais do que o como (relações entre os indivídu-os), na procura de soluções eficientes perante recursos ditos escassos. Mas agora numa escala diferente dos clássicos, com Adam Smith pioneiro, que perguntavam o valor das coisas para determinar a riqueza das nações, tendo admitido o trabalho como fonte desse valor.

3 – Uma proposta de construção de um novo paradigma, deixando de parte a abordagem mais crítica desenvolvida pelo pensamento com origem em Marx, parte do reconhecimento dos serviços como a principal origem do valor criado pelas economias atuais mais desenvol-vidas. Serão centrais os conceitos desenvolvidos por Orio Giarini desde os anos 80 do século passado, recentemente resumidos em Giarini (2014): sistema de valor (abandono do valor do produto) e valor de utilização. Como consequência, o output (o quanto) deve ser substituído pelo outcome (o resultado).

INVESTIMENTO

1 – A confusão está estabelecida quando se utiliza o termo Investimento para designar realida-des diferentes (mais uma vez a confusão entre economia e finanças e a ausência do conceito valor acrescentado). Não tem o mesmo significado “a diminuição do investimento tem contribu-ído para a diminuição do emprego” e “a Fosun investiu em Portugal ao comprar a Fidelidade”.

Em termos económicos falamos de Investimento quando o dinheiro se transforma em capital produtivo – aquisição de máquinas, edifícios, material de transporte, ao mesmo tempo que cria emprego e valor, havendo que distinguir o Bruto do Líquido (depreciações e amortizações). Em termos financeiros falamos de aplicação de poupanças (por isso a Contabilidade distingue na Classe Investi-mentos, os Investimentos Financeiros dos Ativos Fixos Tangíveis e Ativos Intangíveis).

A igualdade fundamental da macroeconomia, S (poupança) = I (investimento), nada tem a ver com a referida aplicação de poupanças.

A compra de uma empresa, tal como a compra de ações, é idêntica à constituição de uma em-presa por um indivíduo. O seu dinheiro é aplicado tornando-se empresário e o novo Capital Próprio da nova empresa transforma esse dinheiro em capital ao financiar a compra de máqui-nas, edifícios (Investimento) e a aquisição de força de trabalho.

Uma outra questão diz respeito à despesa feita pelo Estado na construção de autoestradas, por exemplo. Deve ser considerada um investimento (público)? Esta questão não é consen-sual. Pela definição apresentada de Investimento, ao referirmos a transformação de dinheiro capital, estamos a excluir a hipótese da existência de Investimento público

Page 92: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 92 -

04. NOTAS

2 – A diferença entre Investimento e Aplicação de Poupanças fica evidente ao observarmos os diferentes estádios do ciclo do capital, ou seja, capital sob as formas: produtiva – criador de valor (edifícios e máquinas), mercadoria – valor a realizar (stocks) e dinheiro – a aplicar na criação de valor ou na obtenção do valor criado.

PRODUTIVIDADE

1 – Associada às grandes questões definidas pelo mainstream como objeto da economia, escassez e eficiência, a produtividade desempenha um papel central nos modelos e políticas económicas.

Sem procurar a exaustão e sem rigor analítico, relembremos alguma “história da produtividade”:

• a importância da divisão (técnica) do trabalho (a sua teorização foi iniciada por Adam Smith na observação da produção de alfinetes);

• prolongamento dessa divisão às diversas áreas de uma organização com a conse-quente especialização dos trabalhadores (Taylor);

• acréscimos de produtividade obtidos pela estandardização do output – divisão técnica do trabalho realizada pela associação entre linhas de montagem e tarefas simples e desqualificadas dos trabalhadores (Ford – os ganhos de produtividade repartidos entre trabalho e capital permitindo um modelo de consumo assente na aquisição de bens duradouros foram teoricamente categorizados pelos regulacio-nistas);

• a sua integração numa função de produção (Cobb-Douglas), relacionando trabalho e capital (definido no sentido físico) de forma matemática (função potência) evi-denciando as igualdades entre rendimentos e produtividades marginais. A função admite a produtividade marginal do capital mas normalmente apenas são retirados resultados da produtividade do trabalho, com implicações na fixação de salários;

• melhorias desta função, ou tentativas, pela integração do progresso tecnológico (Solow), pela consideração de diferenças no nível de qualificação dos trabalhadores (Denison), mas mantendo o reconhecimento de que existe um resíduo sem expli-cação (“medida da nossa ignorância” – Abramovitz) e ainda assim utilizável na de-terminação do produto potencial com impactes conhecidos na definição do défice orçamental;

• relação da produtividade com os padrões de vida através da equação (relação em-pírica):

N – população total; L – emprego; H – nº de horas de trabalho

x x

Page 93: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 93 -

04. N

OTA

S

em que a evolução do padrão de vida medido pelo PiB por habitante, depende quase exclu-sivamente da produtividade, PIB / L, dado que a evolução do volume de emprego (tempo de trabalho multiplicado pela taxa de emprego) não é, normalmente, significativa;

• relação da produtividade com a competitividade no plano internacional, assumindo preocupações com o custo unitário do trabalho (relação entre evolução do salário e da produtividade).

2 – Um artigo de Syverson (2011) na importante revista de economia Journal of Economic Literature de-fine produtividade: “de modo simples, produtividade é a eficiência na produção: quantidade de output obtida a partir de um dado conjunto de inputs”.

No entanto, esta aparente simplicidade deve ser questionada, o que é decisivo para ajudar a desmontar o edifício teórico do mainstream parcialmente referido acima. É o que nos propomos apresentando o conceito produtividade articulado com outros conceitos, sendo essa articu-lação a provável origem da confusão, socorrendo-nos do texto de Djellal e Gallouj (2008).

Os conceitos em causa são:

Desempenho (performance) – conceito colocado no patamar mais elevado e que significa a capaci-dade de uma organização “alcançar determinado número de objetivos gerais, predefinidos, relativos a dados aspetos do seu desenvolvimento” (ex. no caso de um país: crescimento do produto de x% e melhoria de y p.p. da parte do trabalho no rendimento);

Eficácia – avaliada pelo nível de alcance dos objetivos definidos, desejavelmente mensuráveis (económicos, sociológicos, ecológicos, etc.);

Eficiência – avaliada pelo nível dos objetivos conseguidos com a minimização dos recursos.

E é neste conceito que devemos fazer a distinção decisiva entre eficiência entendida do ponto de vista monetário e do ponto de vista técnico. Do ponto de vista monetário falamos de rendibilidade e apenas do ponto de vista técnico (físico ou real) é que falamos de produtividade.

Deixando de parte a confusão estabelecida de um modo geral sobre o conteúdo destes dos conceitos acima, eficácia e eficiência, concluímos

produtividade = eficiência técnica

Esta distinção permite-nos:

• confirmar o que temos afirmado, a propósito da produtividade nos serviços, que a produtividade é um conceito eminentemente industrial;

• criticar a equivalência entre Produto por ativo (Y / nº ativos) e produtividade (do trabalho).

Page 94: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 94 -

04. NOTAS

Ou seja, Π = Y / nº ativos é o produto por ativo e não mais do que isso.

• perceber que a associação entre a medida anterior, utilizada como medida da pro-dutividade, e o custo unitário do trabalho (definida como relação inversa), associa-ção que define a competitividade, mais não é que uma aproximação à eficiência monetária e, como tal, a diminuição do custo unitário do trabalho significa o au-mento da rendibilidade (lucro nas empresas, excedente na economia).

3 - Ainda que Π, definido acima, represente a produtividade, encontramos novos problemas, porventura definitivos, na respetiva medida. Centramos esses problemas na medida do ou-tput (valor acrescentado).

Sinteticamente, revisitando o “Manual” da OCDE (2001), o output (valor acrescentado) é obtido em duas etapas:

• deflacionação do valor bruto da produção por um índice de preços de produção;

• diferença entre o valor bruto da produção a preços constantes e o valor dos consu-mos intermédios a preços constantes

• Definição dos problemas na medida da produtividade por dificuldade na medida do output – valor acrescentado a preços contantes:

• cálculo do índice de preços em alguns serviços (saúde, educação, serviços financeiros);

• variação da qualidade e introdução de novos bens / serviços (particularmente nas tecnologias de in-formação e comunicação que, pela rapidez em que estas alterações ocorrem, inva-lidam a utilização de amostras estáveis para a construção dos índices de preços);

• medida do valor acrescentado pelo rendimento (é o caso dos serviços públicos, colocando em posi-ção ridícula quem fala em produtividade na Administração Pública);

• medida do valor bruto da produção no comércio e nos serviços financeiros (no comércio identifica-se às margens e nos bancos e seguros?)

Daqui que concordemos com a conclusão de Djellal e Gallouj (2008, p. 28) “A única solução é parar com a utilização do conceito para avaliar o desempenho de um indivíduo, equipa, ou uma organização” (extensivo a um país, acrescente-se) nas situações, por exemplo, em que existam fortes relações de serviço (sociais ou cívicas) tornando contraditórias qualidade do serviço e produtividade – o caso da saúde é por demais evidente e a utilização do conceito produtividade neste setor revela, para além de insensibilidade, desconhecimento económico dado que a medida da produtividade só fará sentido quando o produto n é igual ao produto n-1. Poderíamos acrescentar o exemplo caricatural de Baumol – para aumentar a produtivida-de de uma orquestra retiram-se elementos?

Sem desenvolver, dir-se-ia que há necessidade de introduzir um novo conceito e medida, para além do valor de utilização referido antes, partindo da análise dos serviços. Isto é, em substi-tuição ou complementar ao output dever-se-á pensar em termos de outcome (resultado). Mais uma

Page 95: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 95 -

04. N

OTA

S

vez, os casos da saúde e educação são ilustrativos desta necessidade.

Do que se disse sobre produtividade conclui-se que os trabalhadores com o salário mínimo não são defendidos quando se coloca em lei a fixação do salário dependente da evolução da produtividade. Essa fixação deve depender da evolução do excedente económico.

REFERÊNCIAS

Djellal, Faridah and Gallouj, FaÏz (2008), Measuring and Improving Productivity in Services – Issues, Strategies and Challenges, Edward

Elgar Publishing Limited

Giarini, Orio (2014), New Paradigm in the Service Economy-The Search of Economics for Scientific Credibility: In Between Hard and Soft

Sciences, Cadmus, outubro, disponível em http://www.cadmusjournal.org/sections

OECD (2001), OECD Productivity Manual: A Guide to the Measurement of Industry-Level and Aggregate Productivity Growth, março

Syverson, Chad (2011), What Determines Productivity?, Journal of Economic Literature, 49:2, 326-365, disponível em: http://www.aea-

web.org/articles.php?doi=10.1257/jel.492.326

A mistificação do José Gomes Ferreira

VÍTOR JUNQUEIRA

«Há uma mistificação em relação aos números da pobreza que tem a ver com o seguinte. O que entrou na discussão política em Portugal é o risco de pobreza. Que é de 40 e tal por cento, é verdade. Mas esse não é o indicador da riqueza em Portugal! E muitas vezes eu vi neste estú-dio e em muitos estúdios e em muitos jornais e na discussão pública do país dizer-se uma coi-sa que é um erro, que é dizer ‘aumentou a pobreza em Portugal’, falando do aumento do risco de pobreza, e a pobreza efetiva não aumentou! Não é verdade! Está nos 18,4… ou qualquer coisa por cento. Porquê? Porque ao mesmo tempo funcionou uma coisa chamada estabili-zadores automáticos que é pôr o Orçamento a dar mais dinheiro a quem precisa. Ao contrário da discussão toda em que se disse que se cortou muito! Pois cortou, naqueles que eram ele-gíveis para receber, é verdade, mas apareceram outros no sistema. E, portanto, quando a co-ligação diz assim ‘nós não deixámos aumentar a pobreza’, em valor absoluto é verdade.» (José Gomes Ferreira, Sic-Notícias – Edição da Noite, 9 de setembro de 2015)

Há muito, provavelmente desde que são publicados indicadores relativos à pobreza, que há

Page 96: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

- 96 -

04. NOTAS

enganos na sua leitura, ora por parte de jornalistas, ora por parte de responsáveis políticos, ora até por parte da academia. Convenhamos, não é fácil. A metodologia não é tão simples quan-to a do indicador de pobreza absoluta do Banco Mundial (“menos de um euro por dia”). Mas tem havido progresso nesta matéria. Por exemplo, ao contrário do que vinha sendo habitual, a reação mediática à divulgação pelo INE dos números mais recentes da pobreza, em janeiro passado, esteve praticamente imaculada de erros. Coisa rara. Mas, entretanto, temos o jorna-lista-opinante televisivo com mais fãs que qualquer outra figura política a entornar o caldo. Vamos por partes, que estes dois minutos de disparates merecem ser dissecados.

José Gomes Ferreira: «O que entrou na discussão política em Portugal é o risco de pobreza. Que é de 40 e tal por cento, é verdade. (…) e a pobreza efetiva não aumentou! Não é verda-de! Está nos 18,4… ou qualquer coisa por cento »

Bom, 40 e tal por cento nunca houve em Portugal, desde que existe medição da pobreza:

Nem na Roménia, nem na Grécia. O que confunde mesmo o José Gomes Ferreira, a tal ponto o levar a “maisdoqueduplicar” um dado estatístico oficial para o depois tentar corrigir mais à fren-te, é a designação “risco de pobreza”. Ora, este não é mais do que um eufemismo imposto por alguns Estados-membros do norte da Europa, que não queriam que se andasse por aí na praça pública a dizer que existem 10%, 15% ou 20% de pobres nos seus países, mas sim 10%, 15% ou 20% de pessoas a viverem em risco de pobreza. Nem o José Gomes Ferreira, nem ninguém, precisa de conhecer a história para falar de pobreza, mas aqui está ela. E, convenhamos, dada a natureza relativa desta medida (isto é, a pobreza é medida face aos rendimentos medianos de cada país), quase que podemos dizer: “com essa pobreza, até nós nos governávamos bem”. Será que o José Gomes Ferreira acha que uma pessoa que tenha rendimentos inferiores a 4937 euros/ano – repito por extenso, quatro mil, novecentos e trinta e sete euros ao ano – se encontra apenas em risco de pobreza? Isto é, que esta possa não ser realmente efetiva? É que em 2013 era esse o valor, o chamado limiar de pobreza, abaixo do qual as pessoas em Portugal se consideravam como estando em… risco de pobreza. E nesse ano eram 19,5% da população (gráfico acima). Um quinto da população, José Gomes Ferreira.

José Gomes Ferreira: «E muitas vezes eu vi neste estúdio e em muitos estúdios e em muitos jornais e na discussão pública do país dizer-se uma coisa que é um erro, que é dizer ‘aumen-tou a pobreza em Portugal’, falando do aumento do risco de pobreza, e a pobreza efetiva não aumentou! Não é verdade! (…) Porquê? Porque ao mesmo tempo funcionou uma coisa chamada estabilizadores automáticos que é pôr o Orçamento a dar mais dinheiro a quem precisa.»

• As transferências sociais são provavelmente o melhor exemplo de estabilizador automático para os rendimentos das famílias. Em alturas de crise, permitem que as famílias não sejam afetadas tão gravemente quanto seriam se apenas houvesse rendimentos de mercado (rendimentos de trabalho, rendimentos de capitais ou de propriedade). Em teoria. As pensões mantém os rendimentos dos idosos; os subsí-

Page 97: #3€¦ · Em tempos de intenso debate e reflexão sobre politicas que foram desenvolvidas nesta legisla- tura e que são preconizadas para a próxima, o número 3 da revista Crítica

#3

- 97 -

04. N

OTA

S

dios de desemprego sustem, em parte, a quebra de rendimentos de trabalho trazida pela perda do emprego; os rendimentos mínimos estão lá para proporcionar uma rede de segurança mínima aos mais carenciados. Em teoria, mais uma vez. Porque na prática, o que vimos acontecer ao longo dos últimos anos foi, só para citar alguns pontos de uma longa lista negra de austeridade:

• cortes no subsídio de desemprego (nos limites máximos e na duração);

• cortes ou manutenção do valor das pensões que não as mínimas;

• cortes e promoção da burocracia no RSI, que levou à diminuição para metade do número de beneficiários (mesmo em tempo de crise!)

• cortes no Complemento Solidário para Idosos, o instrumento que se dirige aos pen-sionistas pobres (ao contrário das mínimas, que se dirigem a todos);

• manutenção dos valores de prestações indexadas ao IAS (Indexante de Apoios So-ciais, que se encontra congelado desde… 2009!);

Claro, sem estabilizadores automáticos o panorama seria muito mais trágico. Mas da maneira que viram a sua eficácia ser afetada ao longo destes anos, invoca-los para tentar justificar uma mentira («a pobreza efetiva não aumentou») é, no mínimo, uma expressão de ignorância.

José Gomes Ferreira: «E muitas vezes eu vi neste estúdio (…) dizer-se uma coisa que é um erro, que é dizer ‘aumentou a pobreza em Portugal’, falando do aumento do risco de pobre-za, e a pobreza efetiva não aumentou! Não é verdade! (…) E, portanto, quando a coligação diz assim ‘nós não deixámos aumentar a pobreza’, em valor absoluto é verdade.»

Não é verdade, José Gomes Ferreira. A pobreza aumentou em qualquer sentido que lhe quei-ramos dar. Aumentou em termos relativos, tal como ela é medida oficialmente, e para tal basta olhar para o gráfico lá mais em cima. Os 19,5% de pobres em 2013 só são superados, regressando no tempo, pelos 20,4% de 2003. Desde 2003 que não tínhamos uma pobreza relativa tão elevada. E a pobreza também aumentou em termos absolutos, e ainda mais. Facilmente se prova mais este engano do José Gomes Ferreira, olhando para a evolução da taxa de pobreza ancorada a 2009, que é um indicador que usa não o limiar de pobreza do ano observado, mas sim o limiar de 2009, atualizado com os preços. Ou seja, é um indicador que nos diz quantos pobres existiriam hoje se o limiar de pobreza fosse o de 2009. E em 2013, José Gomes Ferreira, essa taxa era de 25,9%, tristemente comparável com os 17,9% de 2009. Em quatro anos, José Gomes Ferreira, 8% dos portugueses (repito, por extenso: oito por cento) passaram a viver com menos rendimentos que o limiar de pobreza de 2009. Mais do que um quarto da população, José Gomes Ferreira, seria considerada pobre se considerasse o limiar de pobreza pré-austeridade.

(inicialmente publicado em http://buracosnaestrada.blogspot.pt/2015/09/a-mistificacao-do-jose-gomes-ferreira.html)