27 os escritos de chuang tsu kwang tze zhuangzi
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OS ESCRITOS DE
CHUANG TSU (OU ZHUANGZI,
OU KWANG TZE)
(na imagem, Chuang Tsu sonhando que uma borboleta,
ou uma borboleta sonhando que Chuang Tsu)
Chuang Tsu (sculo IV a.C.) foi um incrvel contador de histrias, que tornou o Tao
acessvel aos leigos, deixou uma mensagem humanstica profunda e surpreendeu a todos
com sua sensibilidade, agudeza e humorismo. O texto de Chuang Tsu no era menos
profundo de que o de Lao Ts; mas sua maior virtude, talvez, tenha sido a de tornar a
ideia do Tao menos hermtica, mais legvel e compreensvel, ilustrando-a com parbolas
instrutivas e, muitas vezes, divertidas. Em seu livro so tratados os mais diversos
temas, tais como a natureza, a condio do ser humano, o conhecimento, etc.
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SUMRIO Observao Presente Edio ..................................................................................... 3
01 Uma Excurso Feliz ............................................................................................... 3
02 Igualando Todas as Coisas ................................................................................... 9
03 A Preservao da Vida ........................................................................................ 20
04 Este Mundo dos Homens ................................................................................... 22
05 Deformidades, ou Provas de um Carter Perfeito .......................................... 28
06 O Grande Supremo .............................................................................................. 35
07 O Percurso Normal para Governadores e Reis ............................................... 46
08 Dedos dos Ps Unidos ......................................................................................... 50
09 Cascos de Cavalos ............................................................................................... 53
10 Abrindo Cofres, ou um Protesto Contra a Civilizao................................... 55
11 Sobre a Tolerncia ................................................................................................ 60
12 O Cu e a Terra .................................................................................................... 68
17 Inundaes Outonais........................................................................................... 69
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OBSERVAO PRESENTE EDIO Faze o que tu queres h de ser tudo da Lei.
Esta edio de Os Escritos de Chuang Tsu uma compilao de diversas
fontes. Acreditamos que a principal seja A Sabedoria da ndia e da China, de Lin
Yutang.
Originalmente, a obra era composta de 33 livros, sendo que os 7
primeiros (captulos interiores) so atribudos ao prprio Chuang Tsu,
enquanto os demais (exteriores) so adies modernas de seguidores dele.
Nesta compilao dispomos de todos os livros originais, e apenas alguns
captulos adicionais, conforme pode ser verificado no Sumrio.
Talvez uma das nicas obras pares em similaridade de estilo e
profundeza de contedo seja o moderno Livro das Mentiras de Aleister Crowley.
Os Escritos de Chuang Tsu, junto com o Tao Teh Ching, originalmente foram
recomendados no Programa de Estudos do Estudante da AA, conforme pode
ser verificado no The Equinox I (8).
Amor a lei, amor sob vontade
Frater S.R.
01 UMA EXCURSO FELIZ No Oceano do Norte h um peixe, chamado kun, no sei de quantas mil
li de comprimento. Esse kun se transforma num pssaro chamado peng. Suas
costas tm no sei quantas mil li de largura. Quando se move, voando, as asas
escurecem o cu como se fossem nuvens.
Quando viaja, essa ave o faz para o Oceano Sulino, o Lago Celestial. E no
Registro das Maravilhas lemos que quando um peng voa para o sul, a gua se
agita numa extenso de trs mil li ao redor, enquanto o prprio pssaro sobe
num vendaval at a altura de noventa mil li para um voo de seis meses de
durao.
Subindo a essa altura nos ares, a ave v as brancas neblinas moventes da
primavera, as nuvens de poeira e as coisas vivas que exalam seus hlitos no
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meio delas. Imagina se o azul do cu ser sua cor real ou apenas o resultado da
distncia sem fim e verifica que as coisas sobre a terra lhe parecem as mesmas.
Se no houver profundidade suficiente, a gua no far as grandes
embarcaes flutuarem. Derramem uma xcara dgua num buraco no ptio e
tomem um gro de mostarda como barco. Experimentem fazer a xcara flutuar e
ela afundar devido desproporo entre a gua e a embarcao.
O mesmo se d com o ar. Se no houver profundidade suficiente, no
ser possvel o ar suportar asas grandes. E quanto s desse pssaro, uma
profundidade de noventa mil li necessria para aguent-las. Depois,
deslizando sobre o vento com coisa alguma, exceto o cu lmpido, sobre ele e
sem obstculos no caminho, inicia sua jornada para o sul.
Uma cigarra e uma pombinha riram, dizendo Ora, quando voo com
todas as minhas foras o mximo que consigo voar de rvore em rvore. E
muitas vezes no chego a meu destino, pois caio no cho em meio do voo. Para
que ento preciso subir noventa mil li para iniciar a viagem rumo ao sul?.
Quem vai para o campo levando trs refeies consigo volta com o
estmago to cheio como na hora em que partiu. Mas quem viaja cem li deve
levar arroz suficiente para o descanso de uma noite. E quem tem que percorrer
mil li precisa fazer suprimento de provises para trs meses. Aquelas duas
criaturinhas, o que sabiam elas?
O saber limitado no tem o alcance do saber profundo, do mesmo modo
que uma vida curta no tem a mesma durao de uma longa. Como podemos
afirmar que assim ? A planta do fungo, que dura uma manh, no conhece a
alterao do dia e da noite. A cigarra desconhece a mudana das estaes de
primavera e outono. Ambas tm vida curta. Porm, no sul de Chu, h o
mingling (rvore) cuja florao e frutificao duram, cada uma, quinhentos
anos. E antigamente havia uma rvore enorme cuja florao e frutificao
duravam, cada uma, oito mil anos. Contudo, Peng Tsu1 tem renome por ter
alcanado idade e ainda, sim senhores! Objeto de inveja para todos!
Foi sobre esse assunto mesmo que o imperador Tang2 falou a Chi do
seguinte modo Ao norte de Chiungta h o Mar Negro, o Lago Celestial. Nele
vive um peixe de vrias mil li de largura e no sei quantas de comprimento. Seu
1 considerado como tendo vivido 800 anos. 2 1783 a.C.
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5 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
nome kun. H tambm uma ave, chamada peng com as costas como a do
Monte Tai e asas como nuvens que obscurecessem os cus. Ela voa rapidamente
em redemoinho altura de noventa mil li, bem acima da regio das nuvens,
tendo apenas o cu lmpido sobre ela. E em seguida dirige o voo para o Oceano
Sulino.
E um pardal lacustre riu e disse Por favor, digam-me o que aquela
criatura pode estar fazendo? Eu me ergo apenas a alguns metros no ar e torno a
pousar depois de ter voado em crculo por entre os canios. o mximo que
algum pode desejar voar. Ora, para onde pode dirigir-se essa ave?
Tal , na verdade, a diferena entre o pequeno e o grande. Tome, por
exemplo, um homem que preencha suas funes devidamente num pequeno
escritrio, ou cuja influncia se faz sentir sobre uma aldeola, ou cujo carter
agrade a determinado prncipe. A opinio que faz de si mesmo ser a mesma
que a do pardal lacustre. O filsofo Yung, de Sung, rir-se-ia de tal homem. Se o
mundo inteiro o lisonjeasse, ele no se deixaria impressionar, tampouco deixar-
se-ia dissuadir do que pretendia fazer se o mundo todo o censurasse. Pois Yung
capaz de distinguir a essncia da superficialidade e compreende o que
verdadeira honra e vergonha. Tais homens so raros numa gerao. Porm,
nem mesmo ele consegue firmar sua reputao.
Ora, Liehtse3 podia cavalgar sobre o vento alegremente na brisa fresca
assim andaria durante quinze dias antes de voltar. Entre os mortais que
atingem a felicidade, um tal homem raro. Entretanto, embora Liehtse pudesse
dispensar de caminhar, ainda assim dependia de determinada coisa4. Quanto
quele que vai de carro em eterna conformidade com o Cu e a Terra, dirigindo
adiante de si os elementos mudveis, como sua parelha, para errar atravs dos
reinos do Infinito, de que, ento, teria esse algum necessidade de depender?
Assim diz-se O homem perfeito ignora-se a si mesmo; o homem
divino ignora a recompensa do valor; o verdadeiro Sbio ignora a reputao.
* * *
3 Filsofo sobre cuja vida nada se sabe. O livro Liehtse considerado uma compilao
posterior. 4 O vento.
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O Imperador Yao5 desejava abdicar a favor de Hs Yo, dizendo Se,
quando o sol e a lua estivessem brilhando, acendesse-se a tocha, no seria difcil
sobressair luz dessa ltima? Se, quando a chuva est caindo, algum
continuar a regar os campos, no seria tal coisa um desperdcio de trabalho?
Ora, se voc quisesse assumir as rdeas do governo, o imprio seria bem
governado e, no entanto, eu estou preenchendo esse cargo. Tenho pleno
conhecimento de minhas prprias deficincias e pretendo oferecer-lhe o
Imprio.
Est regendo o Imprio e o Imprio est sendo bem governado,
replicou Hs Yu. Por que razo devo tomar seu lugar? Deverei faz-lo por
amor a um nome? Um nome no passa da sombra da realidade e deverei
preocupar-me por causa da sombra? O melharuco, construindo o ninho na
imponente floresta, ocupa apenas um ramo pequeno. O castor sacia sua sede no
rio, porm, bebe apenas o suficiente para encher o estmago. Prefiro ficar em
segundo plano: no serei til ao imprio! Se o cozinheiro no for capaz de
preparar os sacrifcios de funeral, o representante do esprito a quem prestam
homenagem e o encarregado das preces no devem interferir nos vinhos e nas
carnes e prepar-los para ele.
Chien W disse a Lien Shu Ouvi Chieh W falar sobre assuntos
transcendentes e delicados sem esgotar-se. Fiquei muito admirado ouvindo o
que ele dizia porque suas palavras pareciam interminveis como a Via Ltea,
mas eram completamente diferentes das que tiramos de nossa experincia
comum.
Que disse ele? Indagou Lien Shu.
Ele afirmou, retorquiu Chien W, que na montanha Miao ku yi
vive um telogo cuja pele branca como gelo ou neve, cuja graa e elegncia se
assemelham s de uma virgem, que no come cereal algum, mas vive de ar e
orvalho, e que, cavalgando as nuvens sobre drages alados, vagueia pelos ares
passando os limites das regies mortais. Quando seu esprito gravita pode
impedir a corrupo de todas as coisas e trazer boas colheitas. Eis o que eu
chamo absurdo e no creio nele.
Bem, observou Lien Shu, no se pergunta a um cego qual sua
opinio a respeito de um belo desenho, nem se convida um surdo para um
5 2357 a.C.
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7 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
concerto. E a cegueira e a surdez no so apenas defeitos fsicos. H a cegueira e
a surdez do esprito. Suas palavras so como uma virgem inocente. A boa
influncia de um tal homem com um tal carter faz-se sentir sobre toda a
criao. Entretanto, devido ao fato de uma gerao miservel pedir em altos
brados a reforma, voc v-lo-ia ocupar-se com os detalhes de um imprio!
As existncias objetivas no lhe podem fazer mal. Numa inundao
que chegasse aos cus ele no seria submerso. Numa seca, embora os metais
corressem lquidos e as montanhas ficassem ressequidas, ele no sentiria calor.
Com esse mesmo barro e peneira voc poderia talhar dois homens tais como
Yao e Shun6. E v-lo-ia ocupar-se com objetivos!
* * *
Um homem do Estado Sung carregava alguns barretes de cerimnia para
vender entre os da tribo de Yueh. Porm, os homens de Yueh costumavam
cortar fora os cabelos e pintar os corpos de modo que no se utilizavam
daqueles objetos. O imperador Yao governava tudo o que havia sob os cus e
dirigia os negcios de toda a regio. Depois de ter ido visitar os quatros sbios
da Montanha Miao ku yi sentiu, ao voltar para sua capital, em Fenyang, que
o imprio no mais existia para ele.
* * *
Hueitse7 disse a Chuangtse O Prncipe de Wei deu-me a semente de
uma espcie de cabaa enorme. Eu a plantei e deu frutos com a capacidade de
uma medida de cinco fangas. Ora, se eu tivesse usado esses frutos para guardar
lquidos teriam ficado pesados demais para que se pudessem carregar; e se eu
tivesse cortado ao meio para outra espcie de recipiente, eles ficariam muito
rasos para servirem. Certamente era uma coisa enorme, mas no os achei teis e
por isso os quebrei.
Acho que era antes voc que no sabia usar recipientes assim
grandes, replicou Chuangtse. Havia um homem de Sung que tinha uma
receita para uma pomada boa para mos gretadas, devido ao fato de sua famlia
ter sido de lavadores de seda durante geraes. Um desconhecido que
ouvira falar nisso foi procur-lo e ofereceu-lhe cem onas de prata pela receita;
diante disso, ele chamou todos os homens de suas famlia e disse -Jamais
6 Imperadores prudentes. 7 Um sofista e amigo de Chuangtse que vrias vezes sustentou discusses com ele.
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fizemos muito dinheiro nesse ofcio de lavar sedas. Ora, podemos vender agora
a receita e ganhar cem onas num s dia. Faamos o que nos prope o
desconhecido.
O desconhecido obteve a receita e foi tratar de obter uma entrevista com
o Prncipe de Wu. O Estado de Yeh estava em guerra e o Prncipe de Wu
mandou um general para travar uma batalha naval com Yeh no comeo do
inverno. Esse ltimo foi completamente derrotado e o desconhecido recebeu
como recompensa uma parte do territrio do rei. Assim, posto que a eficcia do
blsamo para curar mos gretadas fosse, em ambos os casos, a mesma, sua
aplicao foi diferente. Num caso, assegurou um ttulo; noutro, continuaram
como lavadores de seda.
Ora, quanto a essa sua cabaa de capacidade de cinco fangas, por que
no fez uma embarcao com ela e no a ps flutuando pelo rio e pelo lago? E
voc a queixar-se de ser a cabaa grande demais para guardar coisas! Receio
que seu crnio esteja cheio de palha.
* * *
Hueitse disse a Chuangtse Tenho uma rvore enorme chamada
ailanto. Seu tronco to irregular e cheio de ns que no serve para pranchas;
quanto aos galhos so to emaranhados que no podem ser cortados em discos
ou tbuas. Cresce nas margens da estrada, mas nenhum carpinteiro lhe dar
ateno. Suas palavras se assemelham a essa rvore enormes e inteis, de
nada valendo para o mundo.
Por acaso nunca viu um gato selvagem, volveu Chuangtse,
abaixado espera da presa? Para a direita e para a esquerda, para cima e para
baixo, saltando daqui para ali at que cai numa armadilha ou morre num lao.
Alm disso, h o iaque com aquele enorme corpanzil. Temos que admitir que
bem grande ele, porm no pode pegar camundongos. Ora, se voc possui uma
rvore bem grande e no sabe o que fazer com ela, porque no a planta na
Aldeia de Em Alguma Parte, no meio das grandes florestas, onde possa
passar o tempo preguiosamente e jazer em ditoso descanso debaixo de sua
sombra? Ali ela ficar livre do machado e de toda e qualquer injria. Se no tem
utilidade para os outros, qual o motivo para preocupaes?.
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9 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
02 IGUALANDO TODAS AS COISAS Tsechi, de Nankuo, estava sentado e reclinado sobre uma mesa baixa.
Erguendo os olhos para o cu, suspirou com olhar abstrato.
Yencheng Tseyu, que estava de p perto dele, exclamou:
Em que est pensando para que seu corpo tenha ficado como lenho
morto e o esprito se parea com cinzas de fogo extinto? Certamente o homem
que agora mesmo estava reclinado sobre a mesa no o mesmo que a est
Meu amigo, replicou Tsechi, sua pergunta vem a calhar. Hoje perdi meu
Eu... Compreende? Talvez conhea apenas a msica dos homens e no a da
Terra. Ou mesmo que tenha ouvido a msica da Terra talvez no tenha ouvido
a do cu.
Explique-se, por favor, pediu Tseyu.
O hlito do universo, continuou Tsechi, chama-se vento. s vezes
fica inativo. Porm, quando ativo, todas as fendas assobiam ante sua fria. Por
acaso jamais ouviu esse tumulto ensurdecedor?
As tavernas e os fossos das colinas e florestas, as cavidades em
enormes rvores de muitos palmos de circunferncia algumas como narinas e
outras como bocas, outras ainda como orelhas... E o vento por elas entra com
violncia, como torrentes em redemoinho ou setas sibilantes, bramindo, com
fria, gorgolejando, gemendo, clamando, sussurrando, assobiando por um lado
e ecoando no outro, agora suave com o ar fresco, em seguida violento com o
redemoinho de vento, at que a tempestade passe e reine supremo o silncio.
Por acaso nunca reparou como as rvores e os objetos se sacodem e tremem,
emaranham os galhos e se contorcem todas?
Bem, ento, indagou Tseyu, j que a msica da Terra feita com
cavidades e aberturas, e a do homem com flautas e gaitas, de que feita a
msica do Cu?
- O efeito do vento nas vrias fendas, replicou Tsechi, no
uniforme, porm os sons produzidos variam de acordo com sua capacidade
individual. Quem que lhes agita os hlitos?.
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HADNU.ORG 10
- A grande sabedoria generosa; a sabedoria mesquinha gosta de
disputa. Os discursos virtuosos so desapaixonados, os pequenos,
desagradveis.
Pois ainda que a alma esteja presa ao sono, ou mesmo acordada,
enquanto o corpo se move, ns nos empenhamos e lutamos, com as coisas que
nos cercam. Algumas so fceis de resolver e so comodamente aquietadas,
algumas so profundas e dissimuladas, e outras misteriosas. Ora, somos presa
de pequenos terrores, depois perdemos a coragem e desmaiamos devido a
algum enorme terror. Ora, o esprito voa longe, como a flecha desferida pelo
arco, para ser o rbitro do que est direito e do que est errado. Ora fica para
trs, como se tivesse prestado um juramento, para prender-se ao que defende.
Em seguida, como sob a geada do outono e do inverno, vem a queda gradual, e
submerso em suas prprias ocupaes continua a seguir o curso sem voltar
jamais. Finalmente esgotado e aprisionado, seco como a gua de uma velha
sarjeta e decadente, jamais ver de novo a luz8.
-Alegria e clera, tristeza e felicidade, aborrecimento e arrependimento,
indecises e receios, vm-nos por turnos, sempre com apresentaes diferentes,
tal como a msica que sai dos orifcios ou como cogumelos que brotam na
umidade. Dia e noite alteram-se em ns, mas no sabemos como nascem. Ai de
ns! Ai de ns! Poderemos por uma s vez pr o dedo sobre a verdadeira
Causa?.
-Mas no estarei para essas emoes. Contudo, com exceo de mim
mesmo, no haver ningum para senti-las. At ai chegamos, porm no
sabemos em que ordem vm cena. Parece que h uma alma9; mas o principal
para sua existncia querer. Que funciona bem crvel, embora no possamos
ver-lhe a forma. Talvez tenha realidade interior, sem forma externa.
Considere o corpo humano com sua centena de ossos, as nove
cavidades externas e os seis rgos internos, tudo completo. Qual dessas partes
prefere? Por acaso no gosta de todas igualmente, ou tem sua preferncia? Esses
rgos prestam servio de servos a mais algum? Desde que os servos no se
governam, serviro eles de senhores e servos por turnos? inegvel que existe
uma alma para control-los.
8 Agitaes da alma (msica do Cu) comparada com as agitaes da floresta (msica
da Terra). 9 Literalmente "verdadeiro senhor".
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11 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
Porm, tenhamos ou no fixado a verdadeira natureza dessa alma,
isso coisa que pouco interessa prpria alma. Pois, uma vez tomando conta
da forma material, prossegue em seu curso at exaurir-se. Consumir-se nos
trabalhos e nos pesares da vida e ser arrastada sem possibilidade de parar em
caminho no digna de pena? Trabalhar sem cessar a vida toda e depois, sem
viver para colher os frutos, esgotada pelo labor, partir para no se sabe onde
no uma razo para pesar?.
Os homens afirmam que no h morte de que adianta isso? O corpo
se decompe e o esprito desaparece com ele. No motivo para tristeza? O
mundo pode ser to estpido a ponto de no perceber isso? Ou serei eu
somente o estpido e os outros no?
* * *
Ora, se devemos guiar-nos pelos nossos preconceitos, quem ficaria sem
um guia? Que necessidade haveria de fazer comparaes sobre o que est certo
e errado nos outros? E se algum deve seguir o prprio julgamento de acordo
com os seus preconceitos, at os loucos os tm! Mas formar julgamento do que
est direito e errado sem primeiro ter uma opinio o mesmo que dizer Parti
para Yeh hoje e cheguei l ontem. Ou, o mesmo que afirmar que algo que
no existe, existe. As (iluses de) afirmar algo que no existe, como existente,
no podem ser alcanadas nem pelo telogo Y; e ns muito menos poderemos
penetrar.
Porque a palavra no simples sopro de hlito. Ela foi criada para dizer
algo, apenas no se pode determinar o que dizer. H, na verdade, palavra, ou
no h? Podemos ou no podemos distingui-la do chilreio dos filhotes de
pssaros?
Como Tao pde ser to obscuro de modo que precisa haver a distino
do verdadeiro e do falso? E como a palavra pode ser to obscura de modo que
precisa haver uma distino entre o direito e o errado10? Onde voc pode ir e
achar que Tao no existe? Onde voc pode ir e achar que as palavras no
podem ser provadas? Tao no pode ser apreendido perfeitamente por nossa
compreenso inadequada, e as palavras no se patenteiam perfeitamente
devido s expresses floreadas. Da as afirmativas e negativas das escolas de
10 Shih e fei significam julgamentos morais gerais e distines mentais: "direito" e
"errado", "verdadeiro" e "falso", "ser e no ser", "afirmativo" e "negativo", bem como "fazer a
justia" a "condenar", "afirmar" e "negar".
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HADNU.ORG 12
Confcio e de Motse11, cada qual negando o que a outra afirma e afirmando o
que a outra nega. Cada qual negando o que a outra afirma e afirmando o que a
outra nega, s nos pode redundar em confuso.
No h nada que no seja isto; no h nada que no seja aquilo. O
que no pode ser visto por aquilo, (a outra pessoa) pode ser compreendido
por mim. Da eu digo, isto emana daquilo; aquilo tambm deriva disto.
Esta a teoria da interdependncia disto e daquilo (relatividade dos
padres).
No obstante, a vida decorre da morte, e vice-versa. A possibilidade
decorre da impossibilidade, e vice-versa. A afirmao baseia-se na negao, e
vice-versa. Sendo esse o caso, o verdadeiro sbio rejeita todas as distines e
refugia-se no Cu (Natureza). Pois algum pode base-las sobre isto, embora
isto seja tambm aquilo e aquilo seja tambm isto. Isto, outrossim,
tem seus direitos e errados, e aquilo tambm tem seus direitos e
errados. Ento existe realmente, ou no, a distino entre isto e aquilo?
Quando isto (subjetivo) e aquilo (objetivo) so ambos sem seus correlatos,
esse o verdadeiro Eixo de Tao. E quando esse Eixo passa atravs o centro
para o qual o Infinito converge, as afirmaes e as negaes confundem-se
igualmente no infinito nico. Da se diz que no h nada como usar a Luz.
Tomar um dedo como prova de que um dedo no um dedo no to
bom como tomar qualquer coisa que no seja um dedo para provar que um
dedo no e um dedo. Tomar um cavalo como prova de que um cavalo no um
cavalo no to bom como tomar algo que no seja um cavalo para demonstrar
que um cavalo no e um cavalo12. O mesmo se d com o universo que no
nem dedo nem cavalo. O possvel possvel: o impossvel impossvel. Tao
trabalha e o resultado obtido o seguinte; as coisas recebem nomes e afirma-se
serem o que so. Por que so assim? Porque se afirma serem como so! Por que
no so de outro modo? Afirma-se no serem assim! As coisas so assim por si
mesmas e tm possibilidades por si prprias. No existe nada que no seja de
certo modo e no existe nada que no possa ser de certo modo.
11 Os seguidores de Motse eram poderosos rivais dos confucianistas nos tempos de
Chuangtse. Veja as selees de Motse. 12 O significado das duas sentenas torna-se claro pela linha abaixo: "Porm se ns
pusermos as diferentes categorias numa s, ento as diferenas de categorias cessam de existir".
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13 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
Por conseguinte tome, por exemplo, um galho novo e uma coluna, ou
uma pessoa feia e uma grande beleza e tudo o que for estranho e monstruoso.
Tudo isso igualado por Tao. A diviso o mesmo que criao; a criao o
mesmo que destruio. No h uma criao ou uma destruio, porque essas
condies so novamente igualadas numa nica.
Somente os verdadeiros sbios compreendem esse principio de igualar
todas as coisas numa nica. Descartam-se das distines e se refugiam nas
coisas comuns e ordinrias. As coisas comuns e ordinrias servem a certas
funes e, portanto, conservam a integridade da natureza. Partindo dessa
integridade, uma pessoa compreende, e da compreenso chega a Tao. A para.
Parar sem saber como para eis o Tao.
Mas cansar o intelecto numa ligao obstinada com a individualidade
das coisas, no reconhecer o fato de que todas as coisas so uma nica chama-
se a isso Trs pela Manh. O que Trs pela Manh? Um tratador de
macacos disse a respeito das raes de nozes, que cada macaco devia comer trs
nozes pela manh e quatro noite. Desse modo os macacos ficavam com muita
fome. Ento o tratador resolveu que eles poderiam ter quatro nozes pela manh
e trs noite e com esse arranjo todos ficaram satisfeitos. O numero de nozes
continuou a ser o mesmo, porm havia uma diferena devida a (avaliao
subjetiva de) gostos e averses. Isso tambm deriva disto (princpio de
subjetividade). Por consequncia, o verdadeiro Sbio rene todas as coisas
diferentes e descansa no natural Equilbrio do Cu. A isto se chama (o principio
de seguir dois cursos, de uma vez).
O conhecimento dos homens antigos tinha um limite. Qual era esse
limite? Ele remontava a um perodo em que a matria no existia. Era a esse
ponto extremo que chegava seu saber. O segundo perodo era o da matria,
porm de matria sem condio (indefinido). A terceira poca viu a matria
com condio (definido), mas ainda se desconhecia o que foi depois julgado
verdadeiro ou falso. Quando esses apareceram, Tao comeou a declinar. E com
o declnio de Tao surgiu o fim individual (subjetividade).
Alm disso, Tao teria realmente chegado ao apogeu e declinado13? No
mundo da (aparente) ascenso e do declnio, o famoso msico Chao Wen tocava
13 Cheng e kuei, literalmente - "completo e "deficiente". "Integridade" refere-se
unidade intacta de Tao. Nas frases seguintes ch eng usada no sentido de "sucesso".
explicado pelos comentadores que "integridade" de msica existe apenas no silncio e que mal
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HADNU.ORG 14
realmente instrumento de corda; mas a respeito do mundo sem ascenso e
declnio, Chao Wen no tocara mesmo o instrumento de corda. Quando Chao
Wen deixou de tocar instrumento de corda, Shih Kuang, (mestre de msica)
abandonou a vareta do tambor (para ganhar tempo) e Hueitse (o sofista) deixou
de argumentar, todos eles compreendiam a chegada de Tao. Esses homens eram
os melhores nas respectivas artes e, portanto, legaram seus nomes
posteridade. Cada um deles adorava sua arte e ansiava por exceder os prprios
mritos. E devido ao fato de amarem a arte, desejavam que os demais a
conhecessem. Todavia estavam tentando ensinar o que (em sua natureza) no
podia ser compreendido. Por consequncia, (Hueitse) acabou nas obscuras
discusses do difcil e branco; e o filho de Chao Wen tentou aprender a
tocar o instrumento de corda durante toda sua vida sem consegui-lo. Se se pode
chamar a isso sucesso, ento eu tambm o obtive. Mas se nenhum deles pode
ser considerado como tendo sido bem sucedido, ento, nem eu nem outros
obtivemos xito. Por conseguinte, o verdadeiro Sbio foge da luz que o
deslumbra e se refugia no comum e no ordinrio. Por esse meio chega
compreenso.
Suponhamos que haja uma afirmativa. No sabemos se pertence a uma
categoria ou a outra. Mas se reunirmos as diferentes categorias numa nica,
ento, as diferenas de categorias deixam de existir. Devo explicar, entretanto.
Se houver um comeo, ento houve uma poca antes desse comeo, e uma
poca antes da poca que ficava antes da do comeo. Se h uma existncia, deve
ter havido uma no-existncia. E se houve um tempo em que nada existia, ento
deve ter havido uma poca em que nem mesmo o nada existiu. O nada veio a
existir repentinamente. Algum pode dizer realmente se pertence categoria da
existncia ou da no-existncia? At mesmo as palavras que acabo de proferir
no posso dizer se significam, ou no, alguma coisa.
Sob o plio do cu no h nada maior do que o comprimento da
penugem de um pssaro no outono ao passo que a Montanha Tai pequena.
Tampouco h vida mais longa do que a da criana ceifada pela morte na
infncia, enquanto o prprio Peng Tsu morreu jovem. O universo e eu viemos
existncia juntos; eu e tudo que existe somos uma nica coisa.
ferida uma nota, as outras a mantm. O mesmo se d com os argumentos: quando
argumentamos, necessariamente partimos a verdade ao frisar certos aspectos dela.
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15 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
Se, pois, todas as coisas, so uma nica, qual o lugar para a palavra? De
outro lado, desde que eu posso dizer a palavra nica, como a palavra pode
no existir? Se existe mesmo, temos nica e a palavra dois; e dois e um
trs14, desse ponto em diante at os melhores matemticos deixam de alcanar
(o derradeiro); ento as pessoas comuns? Falhariam muito mais?
Da, se de nada se pode chegar a alguma coisa, e subsequentemente a
trs, segue-se que ser ainda mais fcil se se partir de algo. Desde que no se
pode prosseguir, para-se a.
Ora, Tao pela sua natureza mesmo jamais pode ser definido. A palavra
por sua natureza mesmo no pode exprimir o absoluto. Da surgem as
distines. Essas distines so: direito e esquerdo, parentesco e dever,
diviso e discriminao, rivalidade e esforo. So os chamados Oito
Predicados.
Alm dos limites do mundo externo, o Sbio reconhece que existe, mas
no fala sobre o assunto. Dentro dos limites do mundo externo, o Sbio fala,
mas no comenta. Com respeito sabedoria dos antigos, como incorporada no
cnon de Primavera e Outono, o Sbio comenta, mas no interpreta. E assim,
entre as distines feitas, existem distines que no podem ser feitas; entre as
coisas interpretadas existem coisas que no podem ser interpretadas.
Como pode ser? Pergunta-se. O verdadeiro Sbio guarda seu
conhecimento para si, enquanto os homens, em geral, citam o seu em
argumentos, com o fito de convencerem-se uns aos outros. E, portanto, se diz
que aquele que argumenta assim o faz porque no pode ver determinados
pontos.
Ora, o Tao perfeito no pode receber um nome. Um argumento perfeito
no emprega palavras. A bondade perfeita no se preocupa com (atos
individuais de) bondade15. A integridade perfeita no ponto de crtica para
outros16. A coragem perfeita no se arremessa para diante.
Porque o Tao que se manifesta no Tao. A palavra que argumenta fica
longe do seu alvo. A bondade que tem objetivos fixos, perde seu escopo. A
integridade que bvia no acreditada. A coragem que se atira para diante,
14 Ver Laotse, Ch. 42. 15 Ver Laotse, Ch. 5. 16 Ver Laotse, Ch. 58.
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HADNU.ORG 16
jamais completa coisa nenhuma. Esses cinco so, como foram, crculos (suave)
com forte propenso para a quadratura (violncia). Por conseguinte, o saber que
para naquilo que no sabe o mais alto saber.
Quem conhece o argumento que no pode ser arguido sem palavras, e o
Tao que no se declara Tao? Aquele que sabe isso pode afirmar-se que entrar
no reino espiritual17. Sendo enchido sem ficar cheio e esvaziado sem ficar vazio,
sem saber como foi feito isso eis a arte de Ocultar a Luz.
* * *
H muito o imperador Yao dizia a Shun Ainda hei de arruinar os
Tsungs, e os Kueis e os Hs aos. Desde que subi ao trono essa questo tem me
preocupado. O que pensa a respeito?
Esses trs Estados, replicou Shun, ficam em regies selvagens e
pouco adiantadas. Por que no afasta esse pensamento da idia? Uma vez, dez
sis saram juntos e todas as coisas se iluminaram desse modo. De que
grandeza seria o poder da virtude capaz de sobrepujar os sis?
Yeh Chen perguntou a Wang Yi Sabe, com certeza, se todas as coisas
so iguais?
Como posso saber? Volveu Wang Yi.
Voc sabe o que no sabe?
Como posso saber? Tornou Yeh Cheh.
Mas ento ningum sabe?
Como posso saber? Disse Wang Yi. No obstante, procurarei
explicar-me. Como se pode saber que o que eu chamo saber no realmente
saber e o que eu chamo de no saber no realmente no saber? Agora eu lhe
farei uma pergunta Se um homem dorme num lugar mido, fica com
lumbago e morre. Mas o que me diz de uma enguia? Viver no cimo das rvores
vida precria e mexe com os nervos. Mas o que me diz dos macacos? Qual o
habitat indicado para a enguia, o macaco e o homem? Qual o perfeitamente
certo? Os seres humanos se nutrem de carne, os veados de ervas, as centopeias
de pequenas cobras, as corujas e os corvos de camundongos. desses quatro,
17 Literalmente - No "Palcio Celeste".
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17 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
qual o que tem, absolutamente, o gosto perfeito? O macaco une-se com a fmea
que tem cabea parecida com a do co, o gamo com a gazela, a enguia com os
peixes, enquanto os homens admiram Mao Chiang e Li Chi, vista de quem os
peixes mergulham profundamente ngua, os pssaros alam voo alto no ar e os
veados fogem correndo. Contudo, quem diria qual o perfeito padro de beleza?
Em minha opinio, as doutrinas de humanidade e justia e os caminhos do
direito e do erro so to confusos que impossvel conhecer o que contm.
Se voc ento, tornou Yeh Cheh, no sabe o que bom e mau, o
Homem Perfeito igualmente no tem esse conhecimento?
O Homem Perfeito, retrucou Wang Yi, um ser espiritual. Mesmo
que o oceano borbulhe sob o sol, ele no se sente quente. Mesmo que os grandes
rios se congelem, no sentem frio. Mesmo que as montanhas se partam por
efeito do raio e suas enormes profundezas se revirem por efeito da tempestade,
ela no tremer de medo. Assim, subir acima das nuvens do cu e guiando o
sol e a lua adiante, passar alm dos limites da existncia mundana. A morte e a
vida no lhe oferecem mais vitrias. Como, ainda menos, preocupar-se- com a
distino entre lucro e perda?
* * *
Ch Chao dirigiu-se a Chang Wutse do seguinte modo Ouvi
Confcio dizer: O verdadeiro Sbio no presta ateno aos negcios deste
mundo. Ele nem procura o ganho nem evita as perdas. Nada pede das mos
dos homens e no adere s rgidas regras de conduta. Algumas vezes diz algo
sem falar, e outras, fala sem nada dizer. E assim paira alm dos limites do
mundo dos homens. Isso, comenta Confcio, so fantasias fteis. Mas para mim
so a personificao do Tao mais maravilhoso. Qual sua opinio?
So fatos que deixaro perplexo at o Imperador Amarelo, replicou
Chang Wutse. Como saberia Confcio? Voc est se adiantando muito.
Quando v o ovo de uma galinha, na verdade espera ouvir o galo cantar.
Quando v uma funda, na verdade espera ter pombo assado. Dir-lhe-ei
algumas palavras a exemplo e ouvi-las- do mesmo modo.
Como o Sbio se senta ao sol e luz e conserva nas mos o universo?
Rene tudo num todo harmonioso rejeitando a confuso disto e daquilo. Ttulo
e precedncia, coisas que o homem vulgar cultiva cuidadosamente, o Sbio
totalmente ignora, amalgamando as disparidades de dez mil anos numa
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HADNU.ORG 18
matria pura. O prprio universo, tambm, conserva e mistura tudo do mesmo
modo.
Como sei que o amor da vida no uma iluso? Como sei que aquele
que teme a morte no uma criana que se perdeu em caminho e que no sabe
voltar casa?
A senhora Li Chi era filha do oficial de Ai. Quando o Duque de Chin a
quis tomar para si, ela chorou at que o corpete de seu vestido ficou ensopado
de lgrimas. Porm, quando chegou residncia real, partilhou o luxuoso leito
do duque e comeu finas iguarias, arrependeu-se de ter chorado. Como ento
poderei saber que o que morre pode se arrepender de se ter agarrado tanto
vida anterior?
Os que sonham com o festim, acordam para os lamentos e os pesares.
Os que sonham com os lamentos e os pesares acordam para reunir-se aos que
vo caar. Enquanto sonham, no sabem que esto sonhando. Alguns at
interpretaro o sonho mesmo que estavam tendo; e apenas quando acordam
compreendem que fora um sonho. Pouco a pouco aproximam-nos do grande
despertar e ento verificamos que esta vida foi realmente um grande sonho. Os
tolos pensam que esto acordados agora e ficam convencidos de que tudo
sabem este um prncipe e aquele um pastor. Que estreiteza de esprito!
Confcio e voc so ambos sonhos; e eu que afirmo que so sonhos eu no
passo de um sonho tambm. um paradoxo. Amanh um Sbio talvez se erga
para explicar isso; mas amanha no vir seno depois que se tiverem passado
dez mil geraes. Contudo talvez voc o encontre ao dobrar a esquina.
Suponhamos que voc e eu discutamos. Se voc levar a melhor, e eu
no conseguir argumentos melhores, voc, necessariamente, quem tem razo
e eu estou errado? Ou se eu levar a melhor, e no voc, sou eu, necessariamente
quem tem razo e voc est errado? Ou ambos teremos razo em parte e
estamos errados em parte? Ou ambos estamos completamente certos e
completamente errados? Voc e eu no podemos sab-lo e portanto vivemos
todos nas trevas.
A quem chamaremos para rbitro nessa questo? Se eu pedir a
algum que tenha a sua opinio, para servir de juiz, ele ficar de seu lado. O
que adiantar um tal juiz entre ns? Se eu pedir opinio de algum que tenha o
meu ponto de vista, ele ficar de meu lado. O que nos adianta um tal rbitro? Se
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19 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
eu chamar algum cujas opinies sejam diferentes das nossas, ele, igualmente,
ficar em situao de no poder decidir entre ns, j que difere de ambos. E se
eu chamar algum que concorde com os dois, tambm ficar em situao de no
poder decidir, j que concorda com ambos. Desde que voc e eu, e outros
homens, no podemos decidir, como podemos depender um do outro? As
palavras dos argumentos so todas relativas; se ns queremos alcanar o
absoluto precisamos harmoniz-los por intermdio da unidade de Deus e
seguir sua evoluo natural de modo que possamos completar a durao de
vida que nos foi concedida.
Mas o que harmoniz-los por meio da unidade de Deus? isso. O
direito pode no ser realmente direito. O que parece assim pode no s-lo
realmente. Mesmo que o que direito seja realmente direito. Mesmo que o que
aparece onde difere do que no o , tambm no pode ser evidenciado por
argumento.
No repare no tempo. Nem no direito, nem no errado. Passando para
dentro do reino do Infinito faa seu repouso final l.
A Penumbra disse Sombra. Voc se move agora; daqui a pouco fica
parada. Ora, se senta, daqui a pouco levanta-se. Por que essa instabilidade?
Talvez eu dependa, replicou a Sombra, de algo que me faa fazer o que fao;
e talvez que essa coisa dependa, por sua vez, de outra que a obriga a fazer o que
faz. Ou talvez minha dependncia seja como (movimento inconsciente) as
escamas de uma serpente ou as asas de uma cigarra. Como posso dizer porque
fao uma coisa ou porque no fao outra?
* * *
Certa vez eu, Chuang Chou18, sonhei que era uma borboleta, adejando
daqui para acol, com todos os fins e propsitos de uma borboleta. S tinha
conscincia de minha felicidade como borboleta sem saber que eu era Chou.
Depressa acordei e ali estava eu, eu mesmo, na verdade. Agora no sei se eu era
um homem sonhando ser borboleta, ou se eu sou uma borboleta sonhando ser
um homem. Entre um homem e uma borboleta h, naturalmente, uma
distino. A transio chamada transformao de coisas materiais19.
18 Nome pessoal de Chuangtse, "tse" sendo o equivalente de "Mestre". 19 Idia importante que ocorre freqentemente a Chuangtse; todas as coisas so defluxo
constante e se transformam, mas no passam de aspectos diferentes de uma nica.
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HADNU.ORG 20
03 A PRESERVAO DA VIDA A vida humana limitada, mas a cincia ilimitada. Obrigar o limitado a
seguir em busca do ilimitado fatal; e supor que algum sabe realmente bem
fatal, na verdade!
Ao praticar o bem, evite a fama. Ao fazer o mal, fuja da desgraa. Como
princpio, siga um termo mdio. Assim preservar seu corpo do mal, guardar
a vida, preencher os deveres para com seus pais e viver o tempo de vida que
lhe tinha sido concedido.
* * *
O cozinheiro do Prncipe Huei estava partindo um bezerro. Cada golpe
de sua mo, cada erguer de ombros, cada passo de seus ps, cada movimento
de joelho, cada pedao de carne rasgada, cada golpe do faco estavam em ritmo
perfeito tal como a dana da Alameda das Amoreiras, tal como os acordes
harmoniosos de Ching Shou.
Muito bem! Bradou o prncipe. bem hbil na verdade!
Senhor, replicou o cozinheiro descansando o faco, sempre me
devotei a Tao que mais sublime do que a simples percia. Quando comecei a
retalhar bezerros, via diante de mim bezerros inteiros. Aps trs anos de
prtica, no mais via os animais inteiros. E agora trabalho com minha
inteligncia e no com meus olhos. Minha mente trabalha sem parar, sem o
controle dos sentidos. Recaindo nos princpios eternos, vou resvalando pelas
grandes juntas, ou cavidades, como se apresentam, obedecendo constituio
do animal. Nem chego a tocar nas ligaes do msculo e do tendo e muito
menos tento cortar os grandes ossos.
Um bom cozinheiro substitui o faco uma vez por ano porque sabe
cortar. Um cozinheiro ordinrio, uma vez por ms porque s sabe picar. Mas
tenho usado esse faco durante dezenove anos e embora tenha retalhado
muitos milhares de bezerros, o fio se mantm to aguado como se tivesse sido
amolado agora mesmo. Pois nas juntas sempre existem interstcios e o fio de um
faco, quase sem espessura, basta inseri-lo nos interstcios. Na verdade, h
muito onde usar a lmina. Foi assim que consegui conservar meu faco durante
dezenove anos com o fio igual ao dos que acabam de passar pela pedra de
amolar. No obstante, quando deparo com uma parte dura que difcil de
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21 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
cortar tomo todas as precaues. Fixando os olhos sobre ela, apoio a mo e
delicadamente me utilizo da lmina at que com um pequeno movimento essa
parte ceda como terra que se desmorona. Em seguida, tiro o faco e, de p,
lano os olhos em redor fazendo uma pausa com ar de triunfo. Depois limpo
meu faco e o ponho cuidadosamente de lado.
Bravo! Bradou o prncipe. Pelas palavras desse cozinheiro aprendi
como cuidar de minha vida.
* * *
Quando Hsien, da famlia Kungwen, avistou certo oficial, ficou
horrorizado e disse Quem aquele homem? O que lhe aconteceu para perder
uma perna? Foi trabalho de Deus, ou do homem?
Ora, naturalmente, trabalho de Deus e no do homem, foi a rplica.
Deus fez esse homem com uma s perna. O aspecto dos homens sempre
equilibrado. Por a se torna claro que foi Deus e no o homem que o fez assim.
Um faiso dos pntanos pode ser obrigado a dar dez passos para pegar
alimento, cem para beber. Ainda assim, os faises no querem ser alimentados
numa gaiola. Pois, embora possam ter menos preocupaes, no gostariam de
tal vida.
* * *
Quando Laotse morreu, Chin Yi foi ao funeral. Soltou trs gritos de dor e
saiu.
Um discpulo dirigiu-se a ele perguntando Voc no era amigo de
nosso Mestre?
Era, replicou Chin Yi.
Assim sendo, acha que foi suficiente sua expresso de pesar pela sua
morte?, tornou o discpulo.
Acho, respondeu Chin Yi. Estive pensando que ele era homem
(mortal), porm agora sei que no era. Quando cheguei para os psames,
encontrei pessoas de idade que choravam como chorariam pelos filhos, jovens
que se lastimavam como se tivessem perdido as mes. Quando essas pessoas se
encontraram deviam ter dito palavras sobre o acontecimento e derramado
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HADNU.ORG 22
lgrimas sem inteno alguma. (Chorar assim pela morte de algum) fugir dos
princpios naturais (de vida e morte) e aumentar o apego humano, esquecendo-
se da fonte da qual recebemos esta vida. Os antigos chamavam a isto fugir
retribuio do Cu. O mestre veio porque tinha chegado a hora de nascer,
partiu porque chegou o tempo de partir. Os que aceitam o curso natural e a
sequncia das coisas e vivem em obedincia a eles esto acima da alegria e dos
pesares. Os antigos falavam disto como a emancipao da escravatura. Os
dedos podem no ser capazes de fornecer todo o combustvel, porm o fogo
transmitido e ns no sabemos quando terminar.
04 ESTE MUNDO DOS HOMENS Yen Huei20 foi despedir-se de Confcio Para onde se destina?
perguntou-lhe o Mestre.
Parto para o Estado de Wei, foi a resposta.
E o que se prope fazer l? continuou Confcio.
Ouvi dizer, volveu Yen Huei, que o Prncipe de Wei de idade
madura, mas intratvel. Porta-se como se o povo no merecesse considerao
e no quer reconhecer os prprios defeitos. Menospreza as vidas humanas e o
povo morre; seus corpos jazem insepultos como as ervas rasteiras num pntano.
Seus sditos no sabem para onde virar-se em busca de auxilio. E ouvi o senhor
dizer que se um estado for bem governado pode-se passar sem v-lo; se for mal
governado, ento devemos visit-lo. Na porta da casa dos mdicos h muita
gente doente. Experimentarei o que sei nesse sentido e talvez eu possa ser til e
fazer algum bem a esse estado.
Ai de mim! Exclamou Confcio, est apenas indo cumprir o destino.
Pois Tao no deve intrometer-se. Se o fizer haver alvos divergentes. De alvos
divergentes resulta inquietude; da inquietude vem a preocupao e da
preocupao chega-se a um estgio onde se fica alm da esperana. Os Sbios
antigos primeiro fortaleciam seus prprios caracteres antes de tentar fortalecer
o dos outros. Antes de ter firmado bem o seu, que tempo ter voc para prestar
ateno s faanhas dos homens perversos? Alm disso, sabe onde a virtude
desaparece com o ar e onde termina a cincia? A virtude desaparece no ar ante
20 o melhor discpulo de Confcio.
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23 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
o desejo de fama e a cincia termina em competies. Na luta pela fama os
homens se esmagam mutuamente, ao passo que sua sabedoria no provoca
seno rivalidade. Ambos so instrumentos do mal e no so princpios dignos
de bem viver.
Alm disso, se diante do slido carter de algum e de sua integridade
os homens se deixarem influir e diante do menosprezo de algum pela fama ele
chegar ao corao dos homens, esse algum poderia prosseguir no esforo de
pregar a caridade, o dever e as regras de conduta aos homens perversos, mas
conseguiria apenas fazer com que esses o detestassem por sua bondade mesmo.
Tal pessoa bem merecia ser chamada de mensageira do mal. Um mensageiro do
mal ser a vtima do mal feito pelos outros. Esse, pobre de voc! Ser seu fim.
Por outro lado, se o prncipe adora o bem e detesta o mal, qual o
objetivo que ter voc em convid-lo a mudar de ideias? Antes de abrir a boca,
o prncipe mesmo j ter-se- aproveitado da oportunidade de arrancar-lhe a
vitria. Voc ficar deslumbrado, sua animao desaparecer, suas palavras
sero gaguejadas, seu rosto denotar confuso e seu corao desfalecer em seu
peito. Ser como se voc lanasse mo do fogo para dominar o fogo, a gua
para dominar a gua, o que, como se sabe, s pode agrav-los. E se comear por
fazer concesses, no haver fim para elas. Se no prestar ateno a esse
conselho justo e falar demais, morrer s mos daquele homem violento. H
muito tempo passado, Chieh assassinou Kuanlung Pang, e Chou matou o
Prncipe Pikan. Suas vtimas eram ambas homens que se tinham aperfeioado e
que se interessavam pelo bem do povo e por isso ofenderam a seus superiores.
Portanto, estes livraram-se daqueles devido sua bondade. Eis o resultado do
amor que tinham fama. H muito tempo, Yao atacou os pases de Tsung
chin e de Hsao e Y atacou o de Yu-hus. As terras foram devastadas, os
habitantes chacinados e os governantes mortos. Contudo eles combateram sem
cessar e finalmente puseram-se a disputar os objetos. So esses os exemplos de
luta pela fama ou por bens materiais. Por acaso no ouviu falar que at os
Sbios no podem dominar esse amor pela fama e esse desejo pelos bens
materiais (nos governadores)? Voc tem probabilidades de ser bem sucedido?
Mas, naturalmente tem um plano. Conte-o.
Gravidade de conduta e humildade; persistncia e singeleza de
propsito serviro? indagou Yen Huei.
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HADNU.ORG 24
Infelizmente no, volveu Confcio, como podero servir? O
prncipe uma pessoa altiva, cheia de orgulho e volvel. Ningum se ope a
ele e por isso veio a ter verdadeiro prazer em calcar os sentimentos dos demais.
E se, como vemos, falhou na prtica das virtudes rotineiras voc espera que ele,
prontamente, se apegar virtudes mais altas? ele persistir em sua conduta e
embora possa concordar externamente com voc, interiormente no se
arrepender. Como, pois, f-lo- emendar-se?
Ora, ento, (replicou Yen Huei) eu posso ser internamente reto e
externamente condescendente, e substanciarei o que digo fazendo apelo aos
exemplos antigos. Aquele que internamente reto um servo de Deus. E o que
um servo de Deus sabe que o Filho do Cu e ele mesmo so iguais aos filhos
de Deus21. Dever tal pessoa perturbar-se se suas palavras so aprovadas ou
desaprovadas pelo homem? Tal homem comumente considerado como uma
criana (inocente). Isto ser servo de Deus. Aquele que externamente
condescendente um servo de homem. Curva-se, ajoelha-se cruza as mos tal
o cerimonial de um ministro. O que todos os homens fazem, no deverei fazer
tambm? O que todos os homens fazem, nenhum deles poder censurar-me por
fazer. Isso ser um servo do homem. Aquele que frisa suas palavras com apelos
Antiguidade um servo dos Sbios antigos. Embora eu cite palavras de
conselho e o repreenda, so os Sbios da Antiguidade que falam e no eu;
assim, no incorrerei na censura por causa de minha retido. Isso ser servo
dos Sbios antigos. Servir isso? Ou ento, disse Yen Huei, no poderei ir
mais adiante. Atrevo-me a pedir-lhe um mtodo.
Respondeu Confcio: jejue e eu lhe direi o que fazer. Acha que pode ser
fcil quando ainda conserva a compreenso limitada? Aquele que trata as coisas
com essa leviandade no deve ser aprovado pelos Cus iluminados.
Minha famlia pobre, respondeu Yen Huei, e durante muitos
meses no provamos nem vinho nem carne. No jejum isso?
um jejum segundo as regras religiosas, retrucou Confcio, porm
no o jejum do corao.
E posso perguntar-lhe, volveu Yen Huei, em que consiste o jejum do
corao?
21 Literalmente: Considerado como filhos do Cu.
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25 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
Concentre sua vontade. No oua com os ouvidos e sim com o
crebro; no com o crebro e sim com o esprito. Deixe o sentido da audio
parar com os ouvidos e deixe o esprito parar com suas imagens. Deixe seu
esprito, no obstante, ser como uma carta branca, passivamente
correspondente s circunstncias externas. Numa receptividade completa
somente Tao poder habitar. E essa receptividade o jejum do corao.
Ento, observou Yen Huei, a razo pela qual eu no posso usar esse
mtodo devida conscincia de meu eu. Se puder aplicar esse mtodo ser
porque a encarnao do prprio eu ter desaparecido. Ser isso o que chama de
estado de receptividade?.
Exatamente, volveu o Mestre. Deixe-me explicar-lhe. Entre para o
servio desse homem, porm sem ideia de obter fama. Fale quando ele estiver
com disposio de ouvir e pare assim que ele no mais quiser ouvi-lo. Faa-o
sem qualquer espcie de rtulo ou auto referncias. Conserve-se ligado
nica e deixe as coisas tomarem o curso natural. Assim poder ter
probabilidades de sucesso. fcil parar de andar: o que embaraa andar sem
tocar o solo. Como um agente do homem fcil lanar mo de planos artificiais;
porm no como um agente de Deus. Voc ouviu falar de criaturas de asas, que
voam. Nunca ouviu falar de voos sem asas. Ouviu falar de homens sbios sem
esses conhecimentos. Olhe para esse vazio. H brilho numa sala vazia. A boa
sorte reside no repouso. Se no houver repouso (ntimo) seu esprito estar
vagueando por todo lado embora voc esteja parado e sentado. Deixe os
ouvidos e os olhos comunicarem-se interiormente, mas impea a entrada a todo
o conhecimento que venha do esprito. Ento a alma vir para habitar ali, para
no falar no homem. esse o mtodo para a transformao (influente) de toda
Criao. Era a chave para a influncia de Y e Shun e o segredo do sucesso de
Fu Hsi e Chi Ch. At que ponto o homem comum seguiria essa mesma regra?
(Aqui foram omitidos dois trechos. Editor).
Certo carpinteiro Shih viajava para o Estado de Chi. Ao chegar ao
Circulo Sombrio, viu uma rvore li sagrada no templo do Deus da terra. Ela era
to grande que sua sombra podia abrigar um rebanho de vrios milhares de
cabeas. Tinha centenas de palmos de circunferncia e subia a oitenta ps antes
de abrir os ramos. Uma dzia de botes poderiam ser cortados de seu tronco. Em
multides as pessoas paravam para olh-la, mas o carpinteiro nem a notou e
prosseguiu em seu caminho sem mesmo lanar um olhar para trs. Entretanto,
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HADNU.ORG 26
o aprendiz olhou-a bem e quando alcanou o mestre disse Desde que manejo
a machadinha em seu servio nunca vi uma pea de madeira to esplndida.
Por que razo o senhor, Mestre, nem mesmo se deu ao trabalho de parar para
olh-la?
Esquea-se dela. No merece que conversemos a tal respeito,
replicou o mestre. No serve para nada. Transformada num bote, afundaria;
num caixo de defunto apodreceria; em moblia, quebrar-se-ia facilmente; numa
porta, racharia; numa coluna seria devorada pelos vermes. No madeira de
qualidade e no til: por isso chegou aos nossos dias presentes. A chegar em
casa, o carpinteiro sonhou que o esprito da rvore lhe aparecia e lhe falava do
seguinte modo: Com que pretendeu comparar-me? Com madeira suave?
Olhe para uma cerejeira, uma pereira, uma laranjeira, uma ameixeira e outras
rvores frutferas. Mal seus frutos amadurecem so esbulhadas e tratadas com
indignidade. Os grandes galhos so retirados, os pequenos ficam quebrados.
Assim, devido ao prprio valor dessas rvores, elas sofrem enquanto vivem.
No podem viver o perodo de vida que lhes concedido, mas perecem
prematuramente porque destroem-se pela (admirao do) mundo. O mesmo se
d com todas as coisas. Alm disso, eu tentei durante longo tempo ser intil.
Muitas vezes estive em risco de ser decepada, porm finalmente alcancei o que
desejava e assim tornei-me excessivamente til a mim mesmo. Tivesse eu
prestado para alguma coisa e no teria chegado altura a que cheguei. Demais
tanto voc como eu somos coisas criadas. O que adianta criticarmo-nos
mutuamente? Um sujeito que no presta para nada em perigo de morte
iminente e uma pessoa indicada para falar de uma rvore que no presta para
nada?
Quando o carpinteiro Shih acordou e contou o sonho que tivera, o
aprendiz disse: Se a rvore ansiava por ser intil como foi que conseguiu
tornar-se uma rvore sagrada ?
Psiu! Volveu o mestre. Fique calado. Ela simplesmente refugiou-se
no templo para fugir ao abuso dos que a no apreciavam. Se no tivesse se
tornado sagrada quantos no teriam desejado cort-la! Alm disso, os meios
que adota para sua segurana so diferentes dos outros e critic-los pelos
padres ordinrios ser ficar bem longe do objetivo.
* * *
-
27 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
Tsechi, de Nan-po, estava viajando pela colina de Shanga quando viu
uma enorme rvore que muito o surpreendeu. Mil carros com quatro animais
atrelados poderiam abrigar-se sob sua sombra.
Que rvore essa? Exclamou Tsechi. Certamente h de ser de
finssima madeira. Em seguida olhando para cima, viu que seus galhos eram
tortos demais para fazer vigas; e olhando para baixo verificou que a madeira
era muito cheia de ns, o que a tornava imprestvel para fazer atade. Provou
uma das folhas e pensou que lhe tinham arrancado a pele dos lbios; e o odor
era to forte que bastaria para intoxicar um homem durante trs dias seguidos.
Ah! Disse Tsechi, essa rvore realmente no serve para nada e foi
por isso que chegou at essa idade. Um homem de esprito bem pode seguir seu
exemplo de inutilidade.
No Estado de Sung h uma terra pertencente aos Chings, onde medra a
catalpa, o cedro e a amoreira. As que tm um palmo ou pouco mais de
circunferncia so cortadas para gaiolas de macacos. As de dois ou trs palmos
so cortadas para vigas das belas casas. As de sete ou oito palmos so cortadas
para as partes internas dos atades dos ricos. Assim nunca as rvores vivem o
tempo que lhes concedido, pois perecem jovens sob o machado. Tal a
desgraa que cai sobre os que prestam para alguma coisa.
Para os sacrifcios ao Deus Rio nem os touros com testa branca, nem os
porcos com focinhos altos, nem os homens que sofrem de hemorroidas podem
ser utilizados. Isto sabido de todos os adivinhos, pois so coisas consideradas
como pouco auspiciosas. Os judiciosos, entretanto, considerariam tais crenas
como extremamente auspiciosas (para si mesmos).
Houve um corcunda chamado Su. Os queixos batiam-lhe pelo umbigo.
Os ombros ficavam mais altos do que a cabea. Os ossos do pescoo
salientavam-se apontando o cu. As vsceras ficavam voltadas para baixo. As
ndegas estavam onde deviam estar as costelas. Ganhava a vida como alfaiate
ou lavando roupa. Peneirando arroz fazia o suficiente para sustentar uma
famlia de dez pessoas. Quando vieram as ordens para uma conscrio, o
corcunda passou pela multido sem ser notado. E do mesmo modo, na
conscrio do governo para trabalhos pblicos, sua deformidade salvou-o de
ser chamado. Por outro lado, quando o governo distribuiu cereais para os
incapazes, o corcunda recebeu tanto como trs chung alm de dez feixes de
lenha para fogo. E se a deformidade fsica foi suficiente para preservar seu
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HADNU.ORG 28
corpo at o fim de seus dias, quanto mais no seria de utilidade a deformidade
moral e mental!
* * *
Quando Confcio estava no Estado Chu, o excntrico Chieh Yu passou
diante de sua porta dizendo: fnix! fnix! Como tua virtude caiu! No
esperes pelos anos vindouros, no suspires pelo passado. Quando os princpios
de direito prevalecerem no mundo, os profetas cumpriro sua misso. Quando
os princpios de direito no prevalecerem, eles s cuidaro de preservar-se a si
mesmos. Na poca atual eles s cuidam de conservar-se fora das prises. As
boas sortes desse mundo so leves como penas, contudo ningum as estima
pelo seu valor real. As infelicidades dessa vida so pesadas como a terra,
contudo ningum sabe como conservar-se fora de seu alcance. No mais, no
mais ostentes tua virtude. Cuidado, cuidado, move-te cautelosamente!
espinheiro! espinheiros! no firam meus passos! Escolherei meu caminho, no
firam meus ps22!
As rvores da montanha convidam os homens a abaterem-nas; o leo da
lmpada convida o homem a queim-lo. A casca da canela pode ser comida, por
conseguinte a rvore cortada. A laca tem utilidade, portanto a rvore
arranhada. Todos os homens sabem qual a utilidade das coisas teis; porm no
sabem a utilidade da inutilidade.
05 DEFORMIDADES, OU PROVAS DE
UM CARTER PERFEITO23 No Estado de Lu vivia um homem chamado Wang Tai, a quem tinham
amputado uma das pernas. Seus discpulos eram numerosos como os de
Confcio.
Chang Chi fez a seguinte pergunta a Confcio: Esse Wang Tai um
mutilado, no entanto tem tantos partidrios como o senhor, no Estado de Lu.
No se levanta para pregar nem se senta para discursar, contudo, os que o
procuram sem nada saber voltam satisfeitos. Ele ser daquelas pessoas que
22 A primeira parte desse cntico acha-se nos "Analectos". 23 Esse captulo trata inteiramente de deformidades - uma observao literria para
frisar o contraste do homem interior com o exterior.
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29 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
podem ensinar sem palavras e influenciar o esprito das multides sem
empregar meios materiais? Que homem ele?
Ele um sbio, replicou Confcio. Bem quisera ir procura-lo, porm
eu ficaria simplesmente atrs de outros. Mesmo assim irei e f-lo-ei meu mestre
porque no faro o mesmo que so menos do que eu? E eu farei com que no
s o Estado de Lu, como o mundo inteiro, o sigam.
O homem um mutilado, tornou Chang Chi, e ainda assim o povo
o chama Mestre. Deve ser um homem muito diferente dos homens comuns.
assim sendo, como exercita seu esprito?
A vida e a Morte no passam de transformaes do grande
momento, respondeu Confcio, mas no podem afetar-lhe o esprito. O cu e
a terra podem entrar em colapso, porm seu modo de pensar perdurar. Sendo
sem falhas, na verdade, no partilhar o destino de todas as coisas. Pode
controlar a transformao das coisas enquanto conserva intacta a verdadeira
fonte.
Como assim? Indagou Chang Chi.
Do ponto de vista de diferenciao das coisas, replicou Confcio,
ns distinguimos entre o fgado e a blis, entre o Estado de Chu e o de Yueh.
Do ponto de vista de sua semelhana todas as coisas so uma nica. Aquele
que v as coisas sob essa luz, nem mesmo se perturba pelo que lhe chega
atravs os sentidos da audio e da viso, deixando o esprito vagar na
harmonia moral das coisas. Ele v a unidade nas coisas e no nota a perda dos
objetos particulares. E assim a perda de sua perna representa para ele o mesmo
que a perda de outro tanto de barro.
Mas ele cuida apenas de sua prpria cultura, disse Chang Chi.
Utiliza-se de seu saber para aperfeioar o esprito e desenvolve em
Mentalidade Absoluta. Porm, por que o povo se aglomera ao redor dele?
Um homem, replicou Confcio, no procura mirar-se na gua
corrente e sim na gua parada. Pois somente o que em si mesmo quietude
pode instalar quietude nos outros. A graa da terra culminou apenas nos
pinheiros e nos cedros; o inverno e o vero so verdes igualmente. A graa de
Deus caiu sobre Yao e Shun, e s este chegou retido. Felizmente ele era capaz
de corrigir-se e assim obteve os meios pelos quais tudo se corrige. Pois a posse
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HADNU.ORG 30
da primitividade de algum (natureza) evidencia-se na verdadeira coragem.
Um homem pode, mesmo com um s brao, desafiar um exrcito inteiro. E se
um tal resultado pode ser conseguido por algum em busca de fama por meio
de autocontrole, quanta coragem poder ser exibida por quem a maneja sobre
os cus e terra e d agasalho a todas as coisas, quem, temporariamente
habitando o interior de um corpo com desprezo pelas superficialidades de vista
e som, traz seu saber ao ponto de nivelar os conhecimentos e cujo esprito
nunca perece! Alm disso, ele (Wang Tai) espera apenas a hora indicada para
subir aos Cus. Os homens na verdade renem-se ao redor dele de comum
acordo. Como poder ele levar a srio os negcios mundanos?
***
Shentu Chia tinha uma perna apenas. Ele estudava sob a direo de
Pohun Wujen (Imbecil Como Ningum) juntamente com Tsechan24 do Estado
de Cheng. Esse ltimo disse-lhe Quando eu me despedir primeiro, voc
ficar. Quando voc se despedir primeiro, eu ficarei.
No dia seguinte, quando estavam novamente sentados juntos na sala de
aula, Tsechan disse:
Quando eu me despedir primeiro, voc ficar. Ou se voc sair
primeiro, ficarei eu. Estou para sair. Vai ficar ou no? Reparo que voc no
demonstra respeito por uma personagem superior. Quem sabe se voc no se
julga um meu igual?
Na casa do Mestre, replicou Shentu Chia, j h uma personalidade
superior (o Mestre). Talvez voc pense que essa personagem superior e por
conseguinte deve ter precedncia sobre os demais. Ora, ouvi dizer que se um
espelho perfeitamente lmpido, a poeira no o empanar, e se o empanar ser
porque ele no se mostra mais lmpido. Aquele que se associa durante muito
tempo aos sbios ficar sem falha. Ora, voc tem estado pesquisando as grandes
coisas aos ps de nosso Mestre, e ainda assim pode pronunciar palavras como
as que proferiu. No acha que est cometendo um erro?
Embora voc j seja assim aleijado, volveu Tsechan, ainda procura
competir em virtude com Yao. Olhando para voc, direi que tem bastante o que
fazer se refletir nos seus passados erros!
24 Bem conhecido personagem histrico, ministro modelo que referido nos analectos.
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31 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
Os que ocultam seus pecados, disse Shentu Chia, para no perder as
pernas, so muito numerosos. Os que se esquecem de ocultar seu mau
comportamento e por isso perdem as pernas (por meio de castigo) so poucos.
Porm, apenas os homens virtuosos podem reconhecer o inevitvel e continuar
inalterveis. Quem passeia diante dos olhos do touro quando Hou Yi (famoso
arqueiro) estiver mirando para atirar, ser atingido. Os que no forem feridos
salvar-se-o por pura sorte. Existem muitas pessoas com pernas perfeitas que se
riem de mim por no t-las. Isso costumava encolerizar-me. Todavia, desde que
vim estudar sob direo de nosso Mestre, deixei de aborrecer-me por isso.
Talvez nosso Mestre tenha conseguido lavar-me (purificando) com sua
bondade. De qualquer modo, tenho estado com ele dezenove anos sem pensar
em minha deformidade. Agora voc e eu estamos vagueando pelo reino
espiritual e voc est me julgando no reino fsico25. No estar cometendo um
erro?
Diante dessa resposta Tsechan comeou a inquietar-se e sua fisionomia
transformou-se pedindo, finalmente, a Shentu Chia para no mais falar no
caso.
***
Havia um homem no Estado de Lu que tinha sido mutilado; chamava-se
Shushan Sem Dedos dos Ps. Andando sobre os calcanhares, foi procurar
Confcio, mas Confcio lhe disse Voc foi descuidado e por isso carrega
consigo esse infortnio. O que adianta vir ver-me agora? Foi porque fui
inexperiente e descuidado com meu corpo que feri meus ps, retrucou Sem
Dedos dos Ps, Agora vim com algo mais precioso do que os ps e isso o
que procuro preservar. No h homem nenhum, mas o Cu o abriga; e no h
homem nenhum, porm a Terra o sustenta. Pensei que o senhor, Mestre, seria
como o Cu e a Terra. Nunca pensei ouvir essas palavras de sua parte.
Perdoe minha estupidez, disse Confcio. Por que no entra?
Discutirei com voc o que sei. Sem Dedos dos Ps saiu.
Assim que Sem Dedos dos Ps se afastou, Confcio disse a seus
discpulos Aproveitem a lio. Sem Dedos tem uma s perna, contudo
procura aprender a fim de expiar seus erros anteriores. Quanto mais no devem
fazer os que no tm erros para expiar?
25 Literalmente: "O exterior do corpo e dos ossos".
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HADNU.ORG 32
Sem Dedos saiu para ver Lao Tan (Laotse) e disse Confcio ou no
homem Perfeito? Por que razo se mostra to ansioso para aprender com o
senhor? Ele est procurando obter reputao por meio de seu saber oculto e
estranho, o que considerado pelo Homem Perfeito como simples grilhes.
Por que no o fez considerar a vida e a morte, e a possibilidade e
impossibilidade como alternaes de um nico e mesmo princpio, respondeu
Lao Tan, livrando-o assim dos grilhes?
Deus quem assim o castigou, retrucou Sem Dedos dos Ps.
Como poder livrar-se?.
***
O Duque Ai do Estado de Lu disse a Confcio No Estado de Wei h
um homem feio chamado Aitai (Feio) To. Os homens que convivem com ele
no podem esquec-lo. As mulheres que o veem dizem aos pais Preferiria ser
a concubina desse homem a ser a esposa de um outro. So muitas as mulheres
que assim pensam. Ele nunca tenta dirigir os outros, mas apenas os segue. No
tem a seu dispor nenhum poder de governante pelo qual possa proteger as
vidas dos homens. Tampouco tem fortuna amontoada com a qual lhes satisfaa
os apetites e , alm disso, terrivelmente feio. Segue mas no dirige o seu nome
no conhecido alm do prprio Estado. Todavia os homens e as mulheres
procuram igualmente sua companhia. Assim deve haver nele algo diferente dos
demais. Fui procur-lo e verifiquei que , na verdade, amedrontadoramente
feio. Entretanto ainda no tnhamos estado muitos meses em contato quando
comecei a ver que havia algo nesse homem. Antes de um ano comecei a confiar
nele. Como meu estado necessitasse de um Primeiro Ministro ofereci-lhe o
cargo. Olhou-me de mau humor antes de responder e pareceu-me que preferia
declinar a oferta. Talvez no me julgasse bom demais para ele! De qualquer
modo dei-lhe o cargo; porm dentro de muito pouco tempo ele me deixou e foi-
se. Afligi-me como se tivesse perdido um amigo, como se no houvesse mais
ningum com quem eu pudesse viver alegremente em meu reino. Que espcie
de homem ele?
Quando estive em certa misso no Estado de Chu, retrucou
Confcio, vi uma poro de porquinhos que sugavam as tetas da porca morta.
Depois de algum tempo olharam-na e em seguida todos abandonaram o corpo
e fugiram. Pois sua me no mais os olhava e tampouco parecia mais ser de sua
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33 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
espcie. O que eles amavam era sua me! E no o corpo que a continha e sim o
que fazia ser o corpo o que ele era. Quando um homem morto numa batalha,
seu caixo no coberto pelo dossel reto. Um homem cuja perna foi decepada
no dar valor a um presente de sapatos. Em todos esses casos, o propsito
original dessas coisas desapareceu. As concubinas do Filho do Cu no cortam
as unhas nem furam as orelhas. As (servas) que se casam tm que viver fora (do
palcio) e no podem ser novamente empregadas. Tal a importncia ligada
conservao de todo o corpo. Como no ser mais valioso aquele que preserva
sua virtude intacta?.
Ora, o Feio To nada disse e recebeu confiana. Nada fez e foi
procurado e at lhe ofereceram o governo de um pas com o nico receio de que
ele pudesse no aceitar. Na verdade, ele deve ser aquele cujos talentos so
perfeitos e cuja virtude no tem exterioridades!.
-O que pretende dizer afirmando que seus talentos eram perfeitos?
indagou o duque.
A Vida e a Morte, respondeu Confcio a posse e a perda, o sucesso
e a bancarrota, a pobreza e a riqueza, a virtude e o vcio, a boa e a m reputao,
a fome e a sede, o calor e o frio so transformaes no curso natural dos
acontecimentos. Dia e noite sucedem-se um ao outro, e nenhum homem pode
dizer de onde brotam. Por conseguinte no se deve permitir que perturbem a
harmonia natural, nem que entrem nos domnios da alma. Deve-se viver assim,
a fim de ficar em harmonia constante com o mundo, sem perda de felicidade e,
dia e noite, partilhando a paz de primavera com as coisas criadas. Desse modo
continuamente se cria as estaes no prprio peito. De uma tal pessoa pode
dizer-se que tem talentos perfeitos.
E o que a virtude sem exterioridade?.
Quando parada, disse Confcio, a gua fica em perfeito estado de
repouso. Que ela seja seu modelo. Permanece calma interiormente e no se agita
exteriormente. do cultivo de uma tal harmonia que resulta a virtude. E se a
virtude no apresentar exterioridades, o homem no ser capaz de conservar-se
distante dela.
Dias depois, o Duque Ai contou o seguinte a Mintse dizendo Quando
tomei as rdeas do governo pela primeira vez, pensei que guiando o povo e
tomando cuidado de sua vida cumpriria todo meu dever de governante. Porm
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HADNU.ORG 34
agora, depois de ter ouvido as palavras de um homem perfeito, receio que no
tenha conseguido meu objetivo e que no fiz seno dissipar loucamente a
energia de meu corpo e trazer a runa para meu pas. Confcio e eu no somos
prncipe e ministro e sim amigos espirituais.
Corcunda Lbios Deformados falou com o Duque Ling de Wei e o
duque agradou-se dele. Quanto aos homens sem defeitos fsicos, ele achava que
tinham os pescoos finos demais. Papo Grande Como Jarro falou com o
Duque Huan de Chi e o duque agradou-se dele. Quanto aos homens sem
deformidades, ele achava que tinham os pescoos magros demais.
Assim acontece quando a virtude existe: a forma exterior esquecida.
Contudo a humanidade no se esquece do que deve ser esquecido, esquecendo-
se de que no deve ser esquecido. Isso , na verdade, esquecimento! E assim o
Sbio deixa seu esprito em liberdade enquanto o conhecimento considerado
como extica manifestao; os ajustes so feitos para cimentar as relaes de
amizades, os bens apenas para os trficos sociais, e as artes mecnicas apenas
para servir o comrcio. Porque o Sbio no inventa e portanto no emprega o
que sabe; ele no se separa do mundo e portanto no necessita de cimentar as
relaes; no sofre perdas e portanto no tem necessidade de adquirir; nada
vende e por conseguinte no se utiliza do comrcio. Essas quatro qualificaes
foram-lhe doadas por Deus, isto , ele alimentado por Deus. E aquele que
assim alimentado por Deus pouca necessidade tem de ser alimentado pelo
homem. Tem a forma humana sem as paixes humanas. Devido ao fato de ter a
forma humana associa-se aos homens. Devido ao fato de no ter paixes
humanas, as questes de direito e errado no o tocam. Na verdade
infinitesimal o que pertence ao ser humano; infinitamente grande o que
completado por Deus.
Hueitse disse a Chuangtse Os homens primitivamente no tinham
paixes?
Certamente, retrucou Chuangtse.
Mas se um homem no tem paixes, argumentou Hueitse, o que
que o faz ser um homem?
Tao, volveu Chuangtse, lhe d suas expresses e Deus a forma.
Como no ser um homem?
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35 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
Se ento ele um homem, tornou Hueitse, como pode no ter
paixes?
O direito e o errado (aprovao e desaprovao) respondeu
Chuangtse, so ao que me refiro ao dizer paixes. Por um homem sem paixes
eu me refiro ao que no permite que preferncias e repulsas disturbem sua
harmonia interna, porm antes sujeita-se natureza e no tenta melhorar (as
coisas materiais) da vida.
Mas como um homem vive sua vida material, indagou Hueitse, se
ele no procura melhorar (as coisas materiais) de seu viver?
Tao lhe d expresso, observou Chuangtse, Deus lhe d sua forma.
Ele no permitiria que preferncias e repulsas lhe perturbassem sua economia
interna. Porm, agora voc est empregando a inteligncia nas exterioridades e
esgotando o seu esprito vital. Recoste-se a uma rvore e cante; ou sente-se
perto de uma mesa e durma! Deus lhe deu uma viso bem proporcionada,
contudo seu nico pensamento o difcil e o branco26.
06 O GRANDE SUPREMO Aquele que sabe o que de Deus e o que sabe o que do Homem
alcanou verdadeiramente o cimo (da sabedoria) aquele que sabe o que de
Deus, molda sua vida segundo Deus. Aquele que sabe o que do Homem, pode
ainda usar sua cincia para desenvolver o conhecimento do desconhecido,
vivendo at o fim de seus dias e no perecendo jovem. Eis a perfeio do saber.
Nisso, entretanto, h uma falha. O saber correto depende dos objetos,
mas os objetos da cincia so relativos e incertos (mutveis). Como se pode
saber que o natural no realmente do homem e o que do homem no
realmente natural? Ns devemos, alm disso, ter os homens verdadeiros antes
de termos a cincia verdadeira.
Mas o que o homem verdadeiro? O verdadeiro homem de antigamente
no se aproveitava do fraco, no atingia seus fins pela fora bruta, e no reunia
ao redor de si os conselheiros. Assim, falhando, no tinha motivo para
arrependimentos; sendo bem sucedido, nenhuma causa para satisfao prpria.
26 Hueitse vrias vezes discute a natureza dos atributos, como a "dificuldade" e a
"brancura" dos objetos.
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HADNU.ORG 36
E podia subir a alturas sem tremer, entrar na gua sem molhar-se e passar pelo
fogo sem queimar-se. Eis a espcie de conhecimento que chega s profundezas
de Tao. Os verdadeiros homens de antigamente dormiam sem sonhos e
acordavam sem preocupaes. Comiam indiferentes ao paladar e aspiravam
fundamente o ar. Porque os verdadeiros homens aspiram o ar at os
calcanhares; os vulgares at, apenas, a garganta. Da boca dos perversos as
palavras so expelidas como vmitos. Quando as afeies do homem so
profundas, seus dons divinos so superficiais.
Os verdadeiros homens antigos no sabiam o que era amar a vida ou
temer a morte. No se alegravam pelos nascimentos nem se esforavam para
evitar a dissoluo vinham sem preocupaes e partiam sem preocupaes. Era
tudo. No se esqueciam de onde tinham surgido, mas no procuravam indagar
quando voltariam para l. Alegremente aceitavam a vida esperando pacientes
pela redeno (o fim). Eis o que se chama no desencaminhar o corao de Tao,
e no suprir o natural por meios humanos. A um homem desses chamar-se-ia
com razo um homem verdadeiro.
Homens assim so de esprito livre e calmos no agir e tm testas altas.
Algumas vezes so desconsolados como o outono, e outras animados como a
primavera; suas alegrias e tristezas esto em razo direta com as quatro
estaes, em harmonia com toda a criao e ningum pode conhecer-lhes o
limite. E assim que quando o Sbio assalaria a guerra, ele pode destruir um
reino e sem perder contudo a afeio do povo; espalha bnos sobre todas as
coisas, porm isso no devido a seu (consciente) amor dos semelhantes.
Portanto aquele que sente prazer em compreender o mundo material no um
Sbio. O que tem afeies pessoais no humano. O que calcula o tempo de
suas aes no inteligente. O que desconhece a diferena entre o beneficio e o
mal no um homem superior. O que anda atrs da fama sob risco de perder o
prprio eu no um erudito. O que perde a vida e no sincero para si mesmo,
nunca pode ser mestre dos homens. Assim Hu Puhsieh, Wu Kuang, Po Yi, Shu
Chi, Chi Tse, Hsu Yu, Chi To e Shentu Ti foram os servos dos governantes e
cumpriram o mandato de outros e no o seu prprio.
Os verdadeiros homens de antigamente pareciam ser de estatura
gigantesca e, contudo, no podiam ser abatidos. Portavam-se como se em si
prprios faltasse alguma coisa, mas sem olhar para os outros. Naturalmente
independentes de esprito, no eram severos. Vivendo em liberdade sem peias
todavia no tentavam exibi-la. Pareciam sorrir quando quisessem e mover-se
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37 OS ESCRITOS DE CHUANG TSU
apenas segundo necessidade. Sua serenidade flua da bondade interior. Nas
relaes sociais conservavam o carter ntimo. De esprito tolerante, pareciam
grandiosos; gigantescos pareciam acima de controle. Constantemente dentro de
suas casas, pareciam portas fechadas; de esprito abstrato, pareciam ter
esquecido o dom da palavra. Viam nas leis penais uma forma externa; nas
cerimnias sociais, certos meios; na cincia, instrumentos de utilidade; em
moralidade, uma guia. Eis a razo pela qual, para eles, as leis penais
significavam uma administrao misericordiosa; as cerimnias sociais, um meio
de caminhar com o mundo; a cincia, uma ajuda para fazer o que no podiam
evitar; e a moralidade, um guia que os podia fazer andar ao lado de outros para
chegar a uma colina. E todos os homens pensavam realmente que eles sofriam
para viverem corretamente.
Pois o que lhes prendia a ateno era o nico e o que no os preocupava
era o nico tambm. O que consideravam como nico era nico e o que no
consideravam como nico era nico outrossim. No que era nico, eles eram de
Deus; no que no era nico, eram do homem. E assim, entre o humano e o
divino no se produzia nenhum conflito. Eis o que era ser um homem
verdadeiro.
A vida e a Morte fazem parte do Destino. Sua sequncia, como o dia e a
noite, de Deus, acima da interferncia do homem. Tudo isso existe na
natureza inevitvel das coisas. Ele olha simplesmente para Deus como seu pai;
se ele o ama com seu corpo, por que no am-lo tambm com o que maior do
que o corpo? Um homem olha para o dirigente das massas como para algum
que lhe superior; se ele quer sacrificar seu corpo (por seu dirigente) no
oferecer tambm o que tem de puro (esprito)?
Quando a lagoa seca e os peixes ficam sobre o solo seco, de preferncia a
deix-los procurarem umidade com suas secrees e saliva seria bem melhor
deix-los esquecidos em seus rios e lagos nativos. E seria melhor do que rezar a
Yao e censurar Chieh por ter esquecido ambos (o bom e o mau) e perder-se em
Tao.
O Grande (universo) deu-me essa forma, essa lida na virilidade, esse
repouso na velhice e o descanso na morte. E certamente quem um tal rbitro
de minha vida o melhor rbitro de minha morte.
Um bote pode ser escondido numa enseada, ou oculto num pntano,
geralmente considerando-se que fica em lugar escuro. Mas meia noite um
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HADNU.ORG 38
homem forte pode vir e carreg-lo nas costas. Os de compreenso difcil no
percebem que, embora se possa esconder as coisas pequenas nas maiores,
sempre haver uma probabilidade de perd-las. Porm se voc confiar o que
pertence ao universo inteiro, dali no haver fuga possvel. Pois essa a grande
lei das coisas.
Termos sido lanados nessa forma humana para ns fonte de alegria.
Que alegria maior, alm de nossa concepo, saber que o que est agora sob
forma humana pode sofrer transies sem fim tendo apenas o infinito por
limite? Eis porque o Sbio se regozija com aquilo que no pode perder-se e sim
que dura sempre. Pois se imitamos os que aceitam graciosamente unia vida
longa ou uma vida curta e as vicissitudes dos acontecimentos, quanto mais no
imitaramos o que anima toda criao da qual dependem todos os fenmenos
de transformao?
Pois Tao tem sua realidade interior e suas evidncias. desprovido de
ao e de forma. Pode ser transmitido mas no recebido. Pode ser obtido, mas
no visto. Baseia-se em si mesmo, tem razes em si prprio. Antes da existncia
do cu e da terra, Tao existia por si desde muito. D o esprito e rege seus
poderes espirituais, e deu ao Cu e Terra seu nascimento. Para Tao o znite
no alto, nem o nadir, baixo; nenhum ponto no tempo passou-se h muito,
nem pelo lapso das eras ficou velho.
Hsi Wei obteve Tao e assim ps o mundo em ordem. Fu Hsi27 o obteve e
pde roubar os segredos dos princpios eternos. A Grande Ursa o obteve e
jamais se desviou de seu curso. O sol e a lua, o obtiveram e nunca mais
deixaram de girar. Kan Pi28 o obteve e foi morar nas montanhas Kunlun. Ping
I29 o obteve e rege as correntes. Chien Wu30 o obteve e mora no Monte Tai. O
Imperador Amarelo31 o obteve e vagueia acima das nuvens, do cu. Chuan
Hs32 o obteve e vive no Palcio Negro. Yu Chang33 o obteve e estabeleceu-se
no Plo Norte. A Rainha Me Ocidental (Fada) o obteve e fixou-se em Shao
27 Imperador mtico (2852 a.C.) a quem se atribui a descoberta dos princpios de
mutao de Yin e Yang. 28 Com cabea de homem, mas com corpo de besta. 29 Esprito do rio. 30 Um Deus montanhs. 31 Um governante meio mtico que regeu 2698-2597 a.C. 32