20660213 debora godoi
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CENTRO UNIVERSITRIO DE BRASLIA - UniCEUB INSTITUTO DE HUMANAS DEPARTAMENTO DE DIREITO
DBORA DUARTE GODOI
KANT COMO DIVISOR DE GUAS COM O JUSNATURALISMO
Correo metodolgica quase concluda na obra de Rousseau
Braslia 2012
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DBORA DUARTE GODOI
KANT COMO DIVISOR DE GUAS COM O JUSNATURALISMO
Correo metodolgica quase concluda na obra de Rousseau
Monografia apresentada ao Departamento de Direito do Instituto de Humanas do UniCEUB, como requisito obteno do ttulo de Bacharel em Direito, sob a orientao do Prof Dr. Roberto Krauspenhar.
Braslia 2012
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeo meus pais, Joana Darc e Revelson Godoi, por me apoiarem
nessa empreitada, sempre incentivando meus estudos.
Os meus mais sinceros agradecimentos s pessoas que tanta importncia tiveram no
desenvolvimento desse trabalho: meus irmos, Ana Paula Duarte e Vitor Veloso, meu
namorado Vincius Jos, e amigos, Luana Monteiro, Lorena Arajo, Leny Valado, Gerusa
asconcelos, Fabola Xavier, Cristina Azevedo, Joo Moreira e Leonardo Mosqueira.
No dispenso agradecimentos ao meu Orientador, Roberto Krauspenhar, que teve
muita pacincia, ateno e dedicao em me indicar o caminho certo a percorrer nos estudos
filosficos.
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RESUMO
Esta monografia tem por objetivo uma anlise da passagem do jusnaturalismo para o
juspositivismo em Kant, principalmente em como Kant se distanciou da corrente
jusnaturalista e, como extenso da obra de Rousseau, se aproximou do juspositivismo.
Pretendeu-se, primeiramente, estudar os pressupostos histricos e os fundamentos, seguindo
pela diferena entre as doutrinas das Escolas Jusnaturalistas. Posteriormente, empreendeu-se
um estudo detalhado da teoria kantiana do Direito, para se destacar a importncia e inovao
do doutrinador de Konigsberg na polmica dicotomia entre direito natural e direito positivo.
No estudo em Kant, analisaram-se os filsofos que influenciaram sua doutrina, traando,
assim, uma linha de acontecimentos e raciocnios que ampara a abordagem de como se deu
essa aproximao juspositivista em Kant. O estudo da passagem do jusnaturalismo para o
juspositivismo contemporneo, sobretudo porque comtribui para uma compreenso, de
cunho axiolgico, do Direito no sculo XXI, como instrumento de justificao da ordem
poltica e jurdica que vigora.
Palavras-chave: Jusnaturalismo. Rousseau. Locke. Hobbes. Cincia Kantiana do Direito. Justia. Justificao do Estado. Fundamentao Racional da Lei.
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SUMRIO
INTRODUO....................................................................................................................... 6
1. O ESTADO NATURAL E A SOCIEDADE CIVIL NO PENSAMENTO JUSNATURALISTA...................................................................................................... 8
1.1. JUSNATURALISMO COSMOLGICO........................................................................ 13
1.2. JUSNATURALISMO TEOLGICO............................................................................... 32
1.3. JUSNATURALISMO MODERNO ................................................................................. 46
1.4. JUSNATURALISMO RACIONALISTA........................................................................ 66
2. A DOUTRINA DO DIREITO EM EMMANUEL KANT.......................................... 69 2.1. RACIONALISMO E ESCLARECIMENTO EM EMMANUEL KANT ....................... 74
2.2. A TEORIA JURDICA NA OBRA DE EMMANUEL KANT: A PROPRIEDADE E
SUAS IMPLICAES NA COESO DO DIREITO................................................... 78
2.3. A JUSTIA COMO COERO...................................................................................... 83
2.4. A JUSTIA POLTICA E CONTRATUALISMO.......................................................... 88
3. KANT COMO PASSAGEM PARA O JUSPOSITIVISMO: A QUESTO DA
INFLUNCIA SOBRE KELSEN................................................................................... 96
CONCLUSO......................... ............................................................................................107
REFERNCIAS ...................................................................................................................109
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INTRODUO
Fala-se muito do Direito em si (leia-se as leis, normas, decretos, enfim, tudo
que se entende por Direito escrito) e da sua aplicao tcnica e prtica, mas muito pouco se
discute acerca do fundamento desse Direito ou o que lhe confere legitimidade. Foi justamente
pensando nisso que se empreendeu aqui uma busca eminentemente histrico filosfica acerca
do pensamento jurdico no decorrer dos sculos, sobretudo no que tange uma das principais
correntes do pensamento jurdico, qual seja, o jusnaturalismo. O intento , primeiramente,
contextualizar o pensamento jurdico jusnaturalista, sob um olhar crtico e luz da
contribuio de Emmanuel Kant para este movimento jusfilosfico.
Este estudo trabalha com o que foi pensado at agora sobre o Direito e seus
subsdios para a construo do pensamento jurdico. Afinal de contas, preciso pensar o
pensamento. A reflexo sempre foi essencial evoluo humana e no mbito do direito no
podia ser diferente. Necessrio se faz pensar sobre o Direito, seu fundamento e o que seja o
pensamento jurdico, pois no adianta discutir sobre o Direito, se no se discute sobre o que
e qual seu fundamento.
Comprometido nesse desgnio especulativo, natural que algumas perguntas
surjam: Em que se fundamenta o Direito? Porque so obedecidas as regras de Direito? O que
o legitima? O que pensar o Direito? Existe mtodo para isso? De que maneira Kant
completa Rousseau? E em face disso, como ele se torna um marco na passagem para o
juspositivismo? Nem todas essas perguntas sero respondidas neste trabalho e possvel que
nunca sejam satisfatoriamente respondidas. So questes que refletem a curiosidade do ser
humano e, por tal razo, o tema de certa forma inesgotvel. Segundo o autor espanhol Luis
Recasns Siches este tema tem preocupado sempre e em todo momento a todos os grandes
filsofos, aos juristas, conscincia vital dos indivduos e opinio pblica de todos os
povos. 1 enfrentando essas questes que chegaremos a um ponto que, apesar de poder ser
tanto o ponto de partida quanto de chegada, o certo que importa mais o caminho percorrido
do que a prpria meta.
Dessa forma, foi buscando motivar essa discusso, mesmo que de maneira
delimitada, sobre um tema de tamanha importncia, que se enveredou por essa trilha do
processo histrico do pensamento jurdico. Por tal razo utilizou-se do mtodo histrico
jurdico, perpassando por indagaes filosficas e tambm de cunho sociolgico. Utiliza-se
1 SICHES, Luis Recsens. Introduccion al estudio del derecho. Mxico: Porrua, 1970. p. 276.
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tambm o mtodo dedutivo, pois parte-se da conceituao ampla e genrica do que venha a
ser o jusnaturalismo e suas derivaes, para depois buscar a sua observao sob a tica de um
pensador, Emmanuel Kant. No obstante, aps essa incurso histrica, volta-se ao tema inicial
para efeito de observao crtica do tema, tendo como abordagem as influncias e a
contribuio do pensamento de Kant nessa passagem do jusnaturalismo. Ocorre que,
atualmente, a pluralidade metodolgica tida como realidade indeclinvel da pesquisa
acadmica e isso tambm ocorre no mbito do direito. Sobre isso, observa-se o lecionado por
Miguel Reale,2 que se segue:
Hoje sem dia, no tem sentido o debate entre indutivistas e dedutivistas, pois a nossa poca se caracteriza pelo pluralismo metodolgico, no s porque induo e deduo se completam, na tarefa cientfica, como tambm por se reconhecer que cada setor ou camada real exige o seu prprio e adequado instrumento de pesquisa. No que se refere experincia do Direito o mesmo acontece. (grifo nosso)
Assim, a metodologia do presente estudo impe, a ttulo de organizao,
que seu desenvolvimento se d a partir de uma perspectiva histrica. Nesse sentido, cita-se o
entendimento de Comte,3 quando afirma que [...] uma concepo qualquer s pode ser bem
conhecida por sua histria, 4 e continua, [...] no conhecemos completamente uma cincia
se no conhecemos sua histria.5 Necessrio se faz ressaltar que se trata aqui de uma histria
da filosofia do direito, posto que o objetivo final desse trabalho tambm se de cunho
filosfico, como antes dito.
O que se busca, portanto, um estudo da histria do pensamento jurdico,
enquanto embasamento para proposies filosficas, sendo que a observao histrica serve
como maneira de se averiguar como os homens construram um pensar jurdico no decorrer
do tempo. nesse sentido que Bobbio6 afirma que:
O problema filosfico dos direitos do homem no pode ser dissociado do estudo dos problemas histricos, sociais, econmicos, psicolgicos, inerentes sua realizao: o problema dos fins no pode ser dissociado do problema dos meios. Isso significa que o filsofo j no est sozinho. O filsofo que se obstinar em permanecer s termina por condenar a filosofia esterilidade.
So estes os termos em que se coloca o presente trabalho acadmico. Em
resumo, pode-se dizer que a histria foi utilizada enquanto instrumento racional da Filosofia,
2 REALE, Miguel. Lies preliminares de direito. 27. ed. So Paulo: Saraiva. 2009. p. 84. 3 COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva; Discurso sobre o esprito positivo; Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural. 1978. p. 3. 4 Ibidem. p. 29. 5 Ibidem. 6 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus. 2004. p.44.
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pois, como coloca Del Vecchio, a Histria da Filosofia nos oferece [...] um acumulado de
observaes, de raciocnios, de distines, que seria impossvel um nico indivduo reunir,
como seria impossvel a todo artfice inventar, ele prprio, ex novo, todos os instrumentos de
sua arte.7 A pesquisa se deu de forma exclusivamente bibliogrfica e privilegiou as obras que
tratam sobre a insero histrica do pensamento jurdico e tambm aquelas produzidas pelos
prprios pensadores clssicos. Nesse diapaso, o objetivo imediato desse trabalho acadmico
formular um estudo de modo a compreender melhor o que se entende e se entendeu no curso
da histria por jusnaturalismo para efeitos de clareamento da discusso sobre o assunto. De
maneira mediata, acaba por propiciar tambm uma maior clareza de pensamento acerca do
direito, demonstrando a efetiva presena desta corrente filosfica do Direito na trajetria do
pensamento jurdico ocidental, contribuindo assim tambm para a sua cotidiana aplicao.
O caminho percorrido, buscando realizar o intento inicial deste estudo, foi
assim. Primeiramente, buscou-se delinear a problemtica do direito natural, discorrendo sobre
cada modalidade de jusnaturalismo, e como cada filsofo trabalhou com a ideia do direito e
seu fundamento. Depois de apresentar o contexto inicial da teoria do jusnaturalismo,
pretende-se trabalhar com a teoria kantiana do direito. Para tanto, separou-se o segundo
captulo nos temas principais de sua teoria. Finalmente, o terceiro captulo, como concluso
da construo terico-histrica proposta pelo trabalho, analisou a influncia de Kant na
passagem para o juspositivismo de Kelsen.
Por fim, acredita-se que este estudo possa ser relevante para o conhecimento
e compreenso do debate acerca do fundamento da legitimidade da ordem jurdica positiva,
hoje, e em todos os tempos.
1. O ESTADO NATURAL E A SOCIEDADE CIVIL NO PENSAMENTO
JUSNATURALISTA
O jusnaturalismo se afigura como uma das principais correntes do
pensamento jurdico. Como corrente jusfilosfica que , o jusnaturalismo busca a
fundamentao do direito justo, ou seja, que atenda ao critrio de justia, passando pelos
sofistas, esticos, padres da igreja, escolsticos, racionalistas do sculo XVII e XVIII, at a
filosofia do direito natural do sculo XX.
7 DEL VECCHIO, Giorgio. Histria da Filosofia do Direito; traduo de Joo Batista da Silva. Belo Horizonte: Ed. Lder. 2004. p. 11.
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Para introduzir o tema proposto pelo trabalho, faz-se necessrio definir o
conceito ou os conceitos- de Direito Natural. Afinal, o que o Direito Natural? Qual a
diferena bsica entre Direito Natural e Direito Positivo? Quem dita o Direito Natural e qual a
sua origem? Nas palavras do autor italiano Giorgio Del Vecchio:
Direito natural , pois, o nome com que se designa, por tradio muito antiga, o critrio absoluto do justo tendo sido o conceito elaborado em razo da constatao por parte de pensadores, da possibilidade de instituies contraditrias no campo histrico tornando necessrio admitir um critrio absoluto, ideal, do justo e do Direito, independente do fato da sua sano positiva, e sobranceiro ao flutuar dos conhecimentos.8
Para Garcia-Maynez, denomina-se Direito Natural [...] a un orden
intrinsecamente justo, que existe al lado e por encima del positivo. 9 Impende destacar o
entendimento do autor austraco Hans Kelsen que apregoa serem as normas de Direito Natural
normas que j nos so dadas na natureza anteriormente a toda a sua possvel fixao por atos
da vontade humana, normas por sua prpria essncia invariveis e imutveis. 10
Acerca da noo de Direito Natural acrescenta Hans Welzel que [...] em la
base del Derecho Natural se halla la idea de que el Derecho puede deducirse e interpretarse
partiendo de la peculiariedad de la naturaleza humana .11
A partir de tais definies podemos concluir que, por Direito Natural,
entende-se aqueles princpios que, atribudos a Deus, ou, por certas vezes razo ou ainda
decorrente da prpria natureza do homem e das coisas, dariam subsdios para a elaborao das
leis escritas. Assim, conforme leciona Viviane Nunes Arajo Lima, a noo de um Direito da
natureza ou decorrente da racionalidade humana estaria acima de qualquer tipo e Direito e
serviria de base determinante na criao deste. 12
Bobbio, por sua vez, taxativo ao afirmar:
Chamo de > aqueles sistemas de idias nos quais aparecem, pelo menos, estas duas afirmaes: 1) alm do Direito Positivo (cuja existncia nenhum filsofo jamais ousou negar), existe o Direito Natural; 2) o Direito Natural superior... ao Direito Positivo. 13
8 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5ed, 1979. p. 334. 9 GARCIA-MAYNEZ, Eduardo. Introduccin al estudio Del derecho.Editorial Porru, 41 ed., Mxico. 1990. p. 40. a uma ordem intrinsecamente justa, que existe ao lado ou acima da positiva. 10 KELSEN, Hans. A justia e o direito natural. Coimbra: Editora Armnio Amado, Sucessor, 2ed., 1979. p. 94. 11 WELZEL, Hans. Introduccin a La filosofia Del derecho. Madrid: Editora Biblioteca Jurdica Aguilar, 2ed., 1971. p. 5. 12 LIMA, Viviane Nunes Arajo. A saga do Zango: uma viso sobre o direito natural. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 10. 13 BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1999. p. 138.
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Segundo Bobbio, 14 podem-se vislumbrar duas teses do movimento
jusnaturalista. A primeira tese corresponde a pressuposio da existncia de duas espcies de
Direito: o natural e o positivo. Nesse ponto e com base no magistrio de Bobbio, necessrio se
faz se tecerem consideraes no tocante s duas espcies de direito propostas pelo
jusnaturalismo.
Preliminarmente, a expresso positivismo jurdico no decorre da de
positivismo no sentido filosfico, embora tenha havido ligao entre os dois termos, pois
alguns positivistas jurdicos eram tambm positivistas filosficos. Bobbio 15 enfatiza que a
expresso positivismo jurdico deriva da locuo direito positivo em contraponto quela de
direito natural.
Toda tradio do pensamento jurdico ocidental dominada pela
diferenciao entre direito positivo e direito natural. Assim, conforme magistrio de Bobbio, 16 deve-se entender que essa distino feita relativamente natureza da linguagem, e no do
direito em si. A distino decorre entre aquilo que por natureza e aquilo que por
conveno ou posto pelos homens. A problemtica que surge pela linguagem, qual seja, se
algo natural ou convencionado a mesma transposta ao direito.
O termo positivo faz referncia justia ou, mais precisamente, justia
natural, isto , as leis naturais que regem o cosmos, a criao e constituio do universo. No
se pode confundir, no entanto, com a justia positiva, que a das leis reguladoras da vida
social. Bobbio 17 esclarece que a distino conceitual entre direito natural e direito positivo
fora matria dissertada por Plato e Aristteles, o que pode ser demonstrado segundo citao
de trecho de tica a Nicmaco, obra aristotlica, que deixa claro que o direito positivo
chamado de direito legal.
Da justia civil uma parte de origem natural, outra se funda em lei. Natural aquela justia que mantm em toda parte o mesmo efeito e no depende do fato de que parea boa a algum ou no; fundada na lei aquela, ao contrtio, de que no importa se suas origens so estas ou aquelas, mas sim como , uma vez sancionada. (Da traduo de A. Plebe, ed. Laterza, pp. 144-145.) 18
14 BOBBIO, Norberto. O jusnaturalismo jurdico: lies de Filosofia do Direito. So Paulo: cone, 1999. p. 22-26. 15 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico: Lies de filosofia do direito/ Norberto Bobbio; compiladas por Nello Morra; traduo e notas de Mrcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. So Paulo: cone. 1995. p. 15-19. 16 Ibidem 17 Ibidem 18 ... legal, a que de incio indiferente, mas deixa de s-lo depois que foi estabelecida.... Captulo VII do livro V da obra tica a Nicmaco. A TRADUO DE Leonel Vallandro e Gerd Bornheinm a partir daquela inglesa de W.D. Rosa e publicada na coleo Os pensadores, vol. 4. Abril S/A/ Cultural e Industrial. 1973. p. 331.
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Observa-se que dois so os critrios usados por Aristteles para distinguir o
direito natural e o direito positivo: A) o direito natural aquele que afeta toda parte com a
mesma eficcia, enquanto o direito positivo tem eficcia apenas em comunidades singulares
em qual posto e B) O direito natural prescreve aes cuja bondade objetiva, ou seja, aes
que so boas em si mesmas e independem do fato de se configurarem boas para uns e ms
para outros. O direito positivo, em contraposio, aquele que estabelece aes que, antes de
serem reguladas, eram indiferentes aos agentes, mas uma vez estabelecidas em lei, tornam-se
corretas e necessrias. Para ilustrar a situao, suponhamos que em determinada comunidade
seja costumeiro, na ceia de Natal, sacrificar uma cabra. Assim, em determinado tempo,
elabora-se uma norma proibindo tal prtica. O ato de sacrificar uma cabra para ceia de natal
s se tornou uma conduta reprovvel em decorrncia da norma que instituiu sua proibio.
Portanto, antes dessa hipottica norma, a ao de sacrificar uma cabra era indiferente aos
agentes. Aps a edio da norma, esta ao toma relevo de incorreto.
A segunda tese do movimento jusnaturalista a que demonstra a
superioridade do direito natural em face do direito positivo. Nesse sentido, o direito positivo
deveria, segundo a doutrina jusnaturalista, adequar-se aos parmetros imutveis e eternos de
justia. Assim, segundo Ricardo Maurcio Freire Soares, 19o direito valido e legtimo
enquanto obediente ao critrio de justia, da decorrendo a subordinao da validade
legitimidade da ordem jurdica.
Com base no acima articulado, podemos concluir na possibilidade de se
retirar algumas caractersticas do Direito Natural que so consideradas como sendo elementos
inerentes prpria noo de jusnaturalismo, independente da fase a que estivermos nos
referindo. Em outras palavras, devido multiplicidade de reflexes elaboradas sobre o
jusnaturalismo desde a Grcia Antiga, algumas caractersticas lhe so atribudas quase que
unanimemente pelos estudiosos do assunto.
Segundo leciona Bobbio, 20 a primeira semelhana entre as formas de
jusnaturalismo que o Direito Natural seria sempre um sistema de normas superiores e
anteriores ao prprio Estado e a ordem jurdica positiva, ficando as leis postas subordinadas
aos preceitos do Direito Natural. A segunda caracterstica, decorrente dessa sobreposio do
direito natural ao direito positivo, pontua que caso haja discordncia ou conflito entre as 19 SOARES, Ricardo Maurcio Freire. Reflexes sobre o jusnaturalismo: o direito natural como direito justo. Disponvel em: Acesso em: 2/jun/2011. 20 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico: Lies de filosofia do direito/ Norberto Bobbio; compiladas por Nello Morra; traduo e notas de Mrcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. So Paulo: cone. 1995. p. 15-44.
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normas positivadas e o direito natural, prevalece o direito natural. A terceira caracterstica
que o Direito Natural, para os jusnaturalistas, imutvel em seus princpios e valores. Isto
deriva do fato de o fundamento do Direito Natural estar na natureza, que por essncia
imutvel. Logo, por derivao e conseqncia lgica, o Direito Natural possui o atributo da
imutabilidade. Sobre a imutabilidade das leis naturais, justifica-a Hans Kelsen dizendo serem
as mesmas:
[...] imanentes vontade de Deus, o qual, por sua prpria natureza, um Deus justo. Como no so postas pela vontade de Deus, tambm no podem ser modificadas pela vontade do mesmo Deus. So eternas, imutveis. Assim como um Deus, ao qual a justia imanente, no pode modificas as normas da justia, tambm no pode esse mesmo Deus criar uma natureza que no seja justa, se a esta natureza so imanentes as normas da conduta justa, isso assim apenas porque ela foi criada por um Deus ao qual a justia imanente. [...] 21
Pode-se deduzir, portanto, serem os princpios do Direito Natural universais,
posto que so princpios vlidos e legtimos em qualquer parte, comum a todos os povos, j
que os direitos naturais so inerentes ao homem, simplesmente em razo da qualidade de ser
homem. Esta a quarta caracterstica inerente a noo do jusnaturalismo. Por fim, a ltima
semelhana estaria no carter metafsico dessa corrente do jusnaturalismo, que por sua vez
invoca tambm uma reflexo metajurdica, eis que o fundamento do Direito Natural est
sempre na idia de natureza, Deus ou na razo.22
Por fim, cabe ressaltar que apesar das particularidades comuns s diversas
fases do jusnaturalismo, no seu desenvolvimento histrico no correto afirmar a existncia
de uma univocidade na noo de Direito Natural. Assim, aponta-se apenas para a
possibilidade da identificao de um padro de pensamento tangente a todas as doutrinas
jusnaturalistas. 23
A anlise do percurso histrico do jusnaturalismo permite uma melhor
compreenso da essncia do Direito Natural, atentando-se para distino acima articulada
entre direito positivo e direito natural. A doutrina do direito natural, embora norteada pela
busca de uma justia eterna e imutvel, mostrou vrios fundamentos para a compreenso do
que viria a ser entendido por direito justo ao longo da histria.
21 KELSEN, Hans. A justia e o direito natural. Armenio Amado- Editor, Sucessor, 2. ed. Coimbra. 1979. p. 102. 22 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico: Lies de filosofia do direito/ Norberto Bobbio; compiladas por Nello Morra; traduo e notas de Mrcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. So Paulo: cone. 1995. p. 15-23. 23 LIMA, Viviane Nunes Arajo. A saga do Zango: uma viso sobre o direito natural.Rio de Janeiro: Renovar. 2000.p. 13.
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Diante disso, o jusnaturalismo pode ser agrupado em cinco grandes grupos:
1. Jusnaturalismo cosmolgico; 2. Jusnaturalismo teolgico; 3. Jusnaturalismo moderno; 4.
Jusnaturalismo racionalista e 5. Jusnaturalismo contemporneo. Os quatro primeiros tipos de
jusnaturalismo so pertinentes ao atual estudo, portanto, no trataremos do jusnaturalismo
contemporneo.
1.1. O JUSNATURALISMO COSMOLGICO
O jusnaturalismo cosmolgico, como leciona Ricardo Maurcio, 24 foi a
doutrina do direito natural que caracterizou a antiguidade grego-latina, fundado na idia de
que os direitos naturais corresponderiam dinmica do prprio universo. Essa riqueza do
pensamento helnico antigo nesse tema, apesar de no poder ser homogeneizada, possvel
apontar o entendimento de que tanto a natureza fsica quanto a natureza social so regidas por
leis eternas, universais e imutveis.
De acordo com Danilo Marcondes, 25 antes do surgimento da filosofia nos
moldes conhecidos pelo ocidente, j se firmavam idias e concepes sobre o significado do
justo. Assim, desde o sc. VI a.C., que correspondeu ao perodo cosmolgico, j se admitia
uma justia natural, emanada da ordem csmica, marcando a indissociabilidade entre
natureza, justia e direito. Nesse interstcio, os gregos no se debruavam sobre problemas
ticos, nem to pouco jurdicos, pois se preocupavam exclusivamente com a natureza fsica. 26
Nesse momento da histria, inmeros pensadores se propuseram a formular
os princpios mais remotos de justia, com base em diversos fundamentos, tais como: o valor
perene da lei natural, de Sfocles, a necessidade humana, de Homero, o valor supremo da
comunidade protetora do trabalho humano juntamente com a ordem e a paz, de Hesodo, a
igualdade, de Slon, a segurana, de Pndaro, a idia de retribuio, de squilo, a eficcia da
norma, de Herdoto, e a identificao com a legalidade, de Eurdepes. 27
Nessa fase do pensamento grego, denominada naturalista, a lei era
considerada emanao dos deuses, sendo revelada aos homens pela manifestao da vontade
divina, o que atribua a esta fase do Direito grego, uma inevitvel identificao entre a
24 SOARES, Ricardo Maurcio Freire. Reflexes sobre o jusnaturalismo: o direito natural como direito justo. Disponvel em: Acesso em: 2.jun. 2011. 25 MARCONDES, Danilo. Iniciao histria da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 26-35. 26 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5. ed, 1979. p. 32. 27 SOARES, Ricardo Maurcio Freire, op. cit., p. 3.
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religio, a natureza e o prprio Direito. A justia, por analogia, tambm teria origem divina,
alm de fundamentar todas as leis humanas, que, por sua vez, decorreriam de uma lei eterna e
imutvel.
Sobre essa ligao entre Direito e Religio esclarece o doutrinador Edgar
Bodenheimer, in verbis:
O famoso Orculo dos Delfos, considerado voz autorizada para enunciao da vontade divina, era frequentemente consultado em questes de Direito e legislao. As formas de elaborao das leis e decises judiciais eram mescladas de cerimnias religiosas, e os sacerdotes representavam importante papel na administrao da justia. Como supremo juiz, acreditavam-se que o rei fosse investido no seu cargo e na sua autoridade pelo prprio Zeus. 28
Uma das primeiras manifestaes do iderio de direito natural encontra-se
na pea teatral do dramaturgo Sfocles, Antgona, 29 na qual a protagonista invoca leis
divinas, eternas, superiores e anteriores ao dito real para justificar sua desobedincia a ordem
posta. Neste trecho, pode-se ver que Antgona invoca uma lei divina que seria superior lei
positivada, in verbis: Antgona: Sim, porque no foi Jpiter que a promulgou; e a Justia, a deusa que habita com as divindades subterrneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu dito tenha fora bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas so irrevogveis; no existem a partir de ontem, ou de hoje; so eternas, sim!- Tais decretos, eu, que no temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso venham a punir os deuses! [...] 30
28 LIMA, Viviane Nunes Arajo, A saga de Zango, apud BODENHEIMER, Edgar. Cincia do direito, filosofia e metodologia jurdicas, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1966. p. 18. 29 Em apertada sntese, a pea narra a histria-tragdia de Antgona, filha de dipo e Jocasta, que foi a nica filha que no abandonou seu pai quando este foi expulso de seu reino, Tebas, pelos seus dois filhos. Antgona acompanhou o pai em seu exlio at sua morte. Quando voltou a Tebas, seus irmos, Polinice e Etocles, brigavam pelo trono. Polinice se casa com Argia a filha mais velha de Adrasto, rei de Argos, e junto dele arma um ataque contra Tebas, que chamado de expedio dos "Sete contra Tebas" onde Anfiarau prev que ningum sobreviveria, somente o rei de Argos. Como a guerra no levou a lugar nenhum os dois irmos decidem disputar o trono com um combate singular, onde ambos morrem. Creonte, tio deles, herda o trono, faz uma sepultura com todas as honras para Etocles, e deixa Polinice onde caiu, proibindo qualquer um de enterr-lo sob pena de morte. Antgona, indignada, tenta convencer o novo rei a enterr-lo, pois, quem morresse sem os rituais fnebres seria condenado a vagar cem anos nas margens do rio que levava ao mundo dos mortos, sem poder ir para o outro lado. Antgona v-se diante do dilema entre obedecer s ordens do rei, seu tio, ou obedecer a aquelas leis que foram ditadas, no pelos homens, ainda que reis, mas pelo prprio Zeus, numa aluso existncia de um Direito acima daqueles elaborados pelos mortais. No se conformando, ela rouba o cadver insepulto, e tenta enterrar Polinice com as prprias mos, mas presa enquanto o fazia, sendo condenada a pena de morte. 30 ROSENFIELD, Denis (org.). Sfocles & Antgona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, (Passo-a-Passo, 9). p. 31.
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Antgona no tinha dvidas sobre qual lei seguir e, como qualquer heri do
teatro grego, ela dominou o medo e ousou desafiar a tirania do seu tio Cleonte, mesmo ciente
que a punio para tal ato de desobedincia seria a pena de morte, pois acreditava que as leis
civis eram inferiores aos desgnios divinos. Assim, em adio ao sentimento de injustia sobre
aquele decreto humano, outros personagens se manifestaram na tentativa de convencer o rei a
no condenar Antgona pena de morte, como seu prprio filho, Hmon, trecho em que, mais
uma vez, Sfocles invoca a insurgncia do Direito Natural, in litteris: CREONTE: Miservel! O que te leva a divergir tanto do teu pai? HMON: que te vejo violar os ditames da Justia! CREONTE: E o que h de injusto em sustentar minha autoridade? HMON: No vilipendiando os preceitos divinos que se sustenta a autoridade! 31
Nesse trecho, Sfocles, atravs do personagem de Hmon, questiona a
legitimidade da autoridade do rei, Creonte, sob o argumento de contrariar uma lei divina,
sendo que essa aproximao se d pelo preceito de justia. Esta idia avultada pelo
dramaturgo Sfocles, de um direito justo por natureza, contido em leis imutveis e no-
escritas, que no se conhece da sua origem e que no sero jamais ultrapassadas por seres
emanaes da vontade divina, marcara todo Direito grego antigo, chegando at Roma, atravs
da filosofia estica.
Em retrospecto, como antes dito, a filosofia grega, em primeiro momento,
no se envolveu com problemas ticos ou jurdicos, relevando apenas a natureza fsica.
Gabriel Chalita, quanto aos filsofos da natureza, acrescenta o que se segue: Os filsofos gregos, observando as constantes transformaes que ocorrem na natureza, buscavam uma explicao racional para os fenmenos naturais, explicao que no era satisfatoriamente oferecida pelos mitos ou pelos deuses. Na verdade, aqueles homens de esprito inquieto queriam descobrir os princpios eternos. No era apenas uma tentativa e explicar raios e trovoe ou a chuva e o sol; no queriam, tampouco, somente entender a noite e o dia. Buscavam a causa primeira, a origem de tudo o que h no universo. Pode-se dizer que os filsofos pr-socrticos deram o passo inicial na tentativa de uma forma mais ordenada, mais lgica de pensar, que posteriormente daria origem s cincias naturais que conhecemos, como a fsica, a biologia, a astronomia e outra. 32
Assim, a Escola Jnica, a mais antiga (sc. VI a.C.), representada por Tales,
Anaximandro e Anaxmenes, e a Escola Eletica, cujo fundador Parmnides, tentaram
. 31 ROSENFIELD, Denis (org.). Sfocles & Antgona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, (Passo-a-Passo, 9). p 31. 32 CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. So Paulo: Atual, 2002. p. 32.
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explicar os fenmenos do mundo sensvel, erguendo-se um conceito metafsico, ao qual
sustentou que o ser uno, imutvel e eterno. Tales considerado o fundador da filosofia
cosmolgica, por ter sido o primeiro pensador a procurar responder filosoficamente como o
mundo surgiu e o que explica sua existncia. 33 A Escola Eletica, diferentemente da Jnica,
aceitava como nica a distino dos fenmenos do mundo sensvel entre aquilo que e
aquilo que no . Em outras palavras, o no-ser simplesmente no existe, sendo inconcebvel
mesmo para o pensamento, pois, se pudesse ser pensado, existiria pelo menos como idia.
Quase tudo que se sabe sobre Parmnides, dos eleatas o mais ilustre,
provm do poema de sua autoria, denominado Sobre a natureza. Parmnides afirmava que o
ser imutvel e eterno, porque se sofresse uma transformao qualquer, teria de deixar de ser
(isto , tornar-se no-ser) para tornar-se outra coisa (isto , de no-ser, tornar-se ser), mas
como nada pode surgir do no-ser, essa mutao seria impossvel, o que fortalecia sua teoria
de que o ser imutvel. Assim, segundo essa concepo essencialista ou substancialista do
Direito Natural para essas escolas helenas, a natureza contm em si a sua prpria lei, fonte da
ordem, em que se processam os movimentos dos corpos, ou em que se articulam os seus
elementos constitutivos essenciais. 34
Com o advento da filosofia, ainda tratando-se dos pr-socrticos, destaca-se
Pitgoras que, dentre estes, a sua obra a que tem mais forte conexo com o tema em estudo.
Dentre os pensadores tributrios da Escola Pitagrica, podemos citar ainda Filolau de Crotone
(sc. V a.C.), Arquitas de Tarento (400?-356? a.C), Parmnides de Elia (515?-450? a.C) e
Demcrito de Abdera (460 370 a.C) como filsofos representativos dessa escola. Os dados
biogrficos de Pitgoras so escassos, pois ele transmitia seus ensinamentos oralmente a um
crculo restrito de discpulos, mas sabe-se que ele nasceu em Samos, no ano de 582 a.C., e
emigrou pra Itlia Meridional, para Crotone, onde fundou uma sociedade. 35
Pitgoras conhecido, principalmente por acadmicos secundaristas, pelo
seu famoso teorema. Matemtico e filsofo, este filsofo pr-socrtivo ainda cultivava uma
religiosidade profunda e se preocupava com as questes morais de seu tempo. Para Pitgoras,
descobrir a essncia de todas as coisas, o princpio de tudo, significava estudar as relaes
matemticas que estariam ocultas em todos os fenmenos do universo, essa era a sua intuio
33 Ibidem, p. 34. 34 XIMENES, Julia Maurmann. Reflexes sobre o Jusnaturalismo e o Direito Contemporneo. Disponvel em: . Acesso em: 29/abr/2011. 35 CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. So Paulo: Atual, 2002. p. 37-40.
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fundamental. Como explica Del Vecchio, 36 para esse filsofo grego, a essncia de todas as
coisas o nmero. Portanto, para os pitagricos, a Justia seria uma relao aritmtica, uma
equao, ou uma igualdade, podendo-se deduzir dessa convico os conceitos de retribuio,
de correspondncia entre fato e o tratamento adequado a ele.
Os pr-socrticos priorizavam, portanto, a busca da origem do universo e o
exame das causas das transformaes da natureza, revelando uma inequvoca preocupao
cosmolgica. Procuravam, nesse sentido, desenvolver formas de explicao da realidade
natural, do mundo que os cercava, a partir da prpria natureza. Sobre esse aspecto da filosofia
dos pr-socrticos, assim se referem Eduardo Bittar e Guilherme Almeida:
Ainda que no haja uma identidade de escola entre eles, a unidade entre eles no se deve somente ao perodo histrico por eles vivido, muito menos se deve a uma nica localidade da qual provenham (uns da Jnia, outros de Elia), mas sim preocupao cosmolgica comum a todos, busca de uma explicao para o despertar do pensamento voltado para a compreenso do universo e do mundo natural, das coisas como existentes e de suas respectivas origens. [...] Avaliando o perodo como um todo, e considerando indistintamente os movimentos filosficos e suas diferenas conceituais, possvel partir em direo a uma generalizao e afirmar, sem margem para erros, que se trata de um perodo em que se consagra uma viso de mundo onde predomina um jusnaturalismo cosmolgico. 37
Em seguida e com o desenvolvimento da cincia e da poltica, surge o
pensamento dos Sofistas, sendo a escola que em primeira mo enfrentou os problemas do
esprito humano, do conhecimento e da tica. Sua preocupao filosfica se voltava para o
homem e a vida em sociedade, sendo que as questes que preocupavam os pr-socrticos,
dirigidas a natureza e a essncia do universo, foram colocadas em segundo plano.
Em apertada retrospectiva histrica, no sculo V a.C., e com fulcro nos
ensinamentos de Gabriel Chalita e Del Vecchio, 38Atenas vivia o auge de um regime
ateniense de democracia. Os homens livres decidiam os interesses comuns a todos os
cidados. Eles determinavam em discusses pblicas como a cidade deveria ser administrada.
Cumpre salientar que era considerado cidado o homem que possusse alguma propriedade,
que possusse tambm escravos e que no fosse estrangeiro. Os estrangeiros no tinham voz
na democracia ateniense. Desses requisitos para obteno da identidade de cidado ateniense
logo exclumos as mulheres. Assim, apesar desse regime de governo ateniense no garantir os 36 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5 ed, 1979. p. 34. 37 BITTAR, Eduardo C. B; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. So Paulo: Atlas, 5 ed., 2007. p. 72. 38 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5ed, 1979. p. 32-64; CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. So Paulo: Atual, 2002. p. 36.
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mesmo direitos para todas as pessoas, representou uma importante mudana no modo de ver o
mundo, pois tinha como fundamento a idia de que o homem tinha soberania sobre seu
destino. E nesse contexto que se desenvolve, na Grcia antiga, o pensamento sofstico, que
rene como expoente Protgoras (485?-410? a.C.), Grgias (483?-376? a.C), Hpias,
Transmaco, Prdico e outros.
Para os sofistas, tudo deveria ser avaliado segundo os interesses do homem
e de acordo com a forma como v a realidade social. Isso significa que, segunda essa corrente
de pensamento, as regras morais, as posies polticas e os relacionamentos sociais deveriam
ser guiados conforme a convenincia individual. 39 Por esse fim, qualquer pessoa poderia se
valer de um discurso convincente, mesmo que falso ou sem contedo. Por esta razo, os
Sofistas fizeram deram vazo a uma diversidade de concluses e a um patente antagonismo,
suscitando srias dvidas em relao existncia da verdade. Os sofistas usavam complicados
jogos de palavras, trocadilhos, raciocnios sem lgica, todos os recursos da retrica para
demonstrar a verdade daquilo que se pretendia alcanar. Esse tipo de argumentao
conhecida como sofisma.40
A esse respeito leciona Del Vecchio, 41 in litteris: Os sofistas eram individualistas e subjetivistas. Ensinavam que cada homem tem um modo prprio de ver e de conhecer as coisas, do que resultava a tese de que no pode existir uma verdadeira cincia objetiva e universalmente vlida. Clebre o dito de Protgoras: o homem a medida de todas as coisas [...] Isto : todo indivduo possui uma viso prpria da realidade.
Assim, negando os Sofistas toda e qualquer verdade objetiva, tambm
negavam a existncia de uma justia absoluta. Por conseguinte, o Direito , para os sofistas,
por si, relativo, sendo uma expresso do arbtrio e da fora: o justo o que favorece o mais
poderoso. 42 No obstante a constatao do ceticismo moral dos sofistas, o professor italiano
Del Vecchio continua:
[...] grande mrito foi o seu por terem atrado a ateno dos homens sobre dados e problemas relativos ao homem, ao pensamento humano; e a perturbao trazida pela sua atividade conscincia pblica foi ainda benfica e fecunda, pois aguou o esprito crtico para muitos temas que at ento a ningum preocupavam... A eles se deve, por exemplo, a colocao rigorosa do problema de saber se a justia tem um fundamento natural; se aquilo que justo por lei ou, como ns dizemos, o Direito positivo- tambm justo por natureza... Os Sofistas foram, em sntese, o fomento que
39 CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. So Paulo: Atual, 2002, p. 46. 40 Ibidem 41 DEL VECCHIO, Giorgio. Histria da Filosofia do Direito; traduo de Joo Batista da Silva, Belo Horizonte: Ed. Lder, 2004. p.15. 42 Ibidem
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suscitou a grande filosofia idealista grega... Esta resume-se, principalmente, nos nomes de Scrates, Plato e Aristteles [...]. 43
Dessa forma, ao contrrio dos filsofos naturalistas da Escola Jnica, que
consideravam apenas a natureza exterior, os Sofistas se debruavam para a considerao de
problemas psicolgicos, morais e sociais. Foram eles que, a ttulo ilustrativo, propuseram o
problema da fundamentao da justia, ou seja, se a justia tinha um fundamento natural se
o que justo por lei tambm justo por natureza-, como se extrai do excerto da obra de Del
Vecchio, exposto acima. Os Sofistas responderam negativamente a tal indagao, observando
que, se existisse um justo por natureza, todas as leis seriam iguais. 44
Sobre esse respeito, interessante o posicionamento de Ricardo Maurcio
Freire, 45 in verbis: [...] os sofistas se apresentavam como a maior expresso do relativismo filosfico, porque no acreditavam na capacidade humana de conhecer as coisas, ao duvidar da potencialidade cognitiva do ser humano e sustentar que ele no estava apto a alcanar a verdade. Essa crise da razo humana descambou para a crise social, pois, se o ser humano no poderia alcanar a verdade, as instituies poltico-jurdicas da polis grega no poderiam alcanar a verdade, e, portanto, a justia plena, lanando-se as sementes do jusnaturalismo. Sendo assim, ao valorizar o poder do discurso, a retrica sofstica desemboca na relativizao da justia, situando-a no plano do provvel, do possvel ou do convencional. [...]
Assim, pode-se dizer que a sofstica destrua os fundamentos de todo
conhecimento, j que tudo seria relativo e os valores seriam subjetivos, assim como impedia o
estabelecimento de um conjunto de normas de comportamento que garantissem os mesmo
direitos a todos os cidados da polis. Foi nesse contexto que surgiu um pensador cuja doutrina
se opunha profundamente aos Sofistas: Scrates, um dos principais fundadores da tica.
A maioria as coisas que se sabe sobre a vida e pensamento de Scrates
(470?-399? a.C) advm dos comentrios dos filsofos que seguiram suas idias, sendo fonte
os escritos de Plato e Xenofonte, pensadores atenienses que eram grandes admiradores de
Scrates, e tambm do dramaturgo e filsofo Aristfanes, sendo que em uma de suas peas de
teatro que satirizada os sofistas, As nuvens, Scrates era um personagem, aparecendo como
43 DEL VECCHIO, Giorgio. Histria da Filosofia do Direito; traduo de Joo Batista da Silva, Belo Horizonte: Ed. Lder, 2004. p. 16. 44 Ibidem 45 SOARES, Ricardo Maurcio Freire. Reflexes sobre o jusnaturalismo: O Direito natural como Direito justo. Disponvel em: Acesso em: 2/jun/2011.
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caricatura. O estudo do pensamento socrtico realizado, principalmente, em face da sua
oposio ao movimento sofista. 46
Ao contrrio dos Sofistas, que tudo afirmavam saber, Scrates declarava
nada saber. A necessidade de autoconhecimento era uma das bandeiras hasteadas por ele,
difundindo essa necessidade atravs do preceito do Orculo dos Delfos, Conhece-te a ti
mesmo, expresso que se afigura a palavra-chave para a compreenso do humanismo
socrtico. Este filsofo ateniense transmitia seus ensinamentos a qualquer homem, tivesse ele
interesse no debate filosfico ou no. Acontece que ter domnio da oratria era primordial
para os cidados atenienses que participavam da poltica, pois nos moldes da democracia de
Atenas, eles tinham que defender suas propostas e opinies publicamente, por meio de
discursos proferidos na gora. 47 Por isso havia cidados que procuravam aperfeioar sua
habilidade de discursar, afim de melhor convencer os outros de suas crenas e opinies. Este
contexto poltico que favoreceu o surgimento dos sofistas, que dominavam a arte da oratria e
ensinavam sua arte em troca de pagamento, e Scrates veio posteriormente em corrente
contrria, como leciona Gabriel Chalita e Danilo Marcondes. 48
Scrates no cobrava para lecionar e se utilizava do dilogo para o exerccio
de sua atividade filosfica. Segundo Chalita, sua tcnica se dividia em duas etapas: a primeira
era a ironia, onde Scrates, fingindo que no conhecia do tema abordado, levava o
interlocutor a apresentar suas opinies, e ia questionando-o, apontando para as falhas que
encontrava no discurso do orador, at que este chegava a contradies do seu prprio
pensamento, revelando sua total ignorncia sobre o tema. A segunda etapa do dilogo
socrtico a maiutica ou parto das idias- momento que Scrates levava o prprio
interlocutor a chegar a suas prprias formulaes. Assim, para este filsofo, o homem no
poderia conhecer a realidade objetiva se desconhecesse a si mesmo, pelo que a formao tica
demandaria desse indivduo a busca pelo (auto)conhecimento, chegando assim na Felicidade. 49
Enquanto os Sofistas sustentavam a desobedincia das leis, e apregoavam
sua efemeridade e sua contingncia no tempo e no espao, Scrates criou um sistema tico de
valores objetivos, um verdadeiro sistema idealista, onde a busca do princpio da verdade da
46 CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. So Paulo: Atual, 2002. p. 46-49,104. 47 A gora, nas antigas cidades gregas, era a praa onde os cidados se reuniam para discutir a admirao da polis, tambm sendo o lugar onde se fazia comrcio e se realizavam cultos religiosos. (CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. So Paulo: Atual, 2002, p. 46). 48 CHALITA, Gabriel, op. cit., p. 40-50. 49 CHALITA, Gabriel. Op. cit., p. 40-50; SOARES, Ricardo Maurcio Freire. Reflexes sobre o jusnaturalismo: o direito natural como direito justo. Disponvel em: Acesso em: 2/jun/ 2011.
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Justia seria a prpria razo da filosofia50. Empenhou-se, portanto, em restabelecer para
Atenas o imprio do ideal cvico, liame indissocivel entre o indivduo e a sociedade.
Nesse sentido est o que doutrina Del Vecchio, como se segue:
[...] Ensinou a respeitar as leis (que os Sofistas haviam ensinado a desprezar), e no s as leis escritas, mas tambm as que, embora no escritas, valem igualmente em todos os lugares, e so impostas pelos deuses aos homens. Scrates afirmou assim a sua f em uma Justia superior, para a validez da qual no preciso sano positiva, nem formulao escrita. A obedincia s leis do Estado , no entanto, para Scrates, um dever que deve cumprir-se em todos os casos. [...] 51
Assim, pelo excerto extrado, pode-se ver que, para Scrates, o Direito
Natural anterior e superior as normas escrita que, por servirem de fundamento para a
elaborao dessas, no descaracteriza a obrigatoriedade dos cidados se submeterem s leis. A
obedincia as leis positivas adviria da necessidade de se estabelecer paz social e harmonia
entre os cidados. Assim, para este filsofo, o bom cidado deveria obedecer s leis, mesmo
estas sendo ms, simplesmente para no estimular os maus cidados a violar as boas leis.
Scrates levou a finco seus ensinamentos, pois mesmo sendo injustamente e falsamente
caluniado de corromper a juventude ateniense, e com isso, ser condenado a morte por
envenenamento, no negou suas teorias e tampouco quis fugir, mostrando que mesmo que
ms, a lei deveria ser cumprida.
Plato (428?-348? a.C), um dos discpulos de Scrates, assistiu
inconformado a sentena de morte de seu mestre. 52 Como Scrates, acreditava na razo
filosfica como o caminho que levaria o homem ao exerccio da justia e pratica da virtude.
Grande parte das obras de Plato tratam da boa convivncia dos homens em sociedade,
caracterstica que herdou de seu mestre, pois este tambm orientou a sua meditao para o
estudo do homem. Scrates preconizava a necessidade de se diferenciar aquilo que seria
apenas impresso dos sentidos e por isso varivel de pessoa para pessoa, daquilo que seria
50 LIMA, Viviane Nunes Arajo. A saga do Zango: uma viso sobre o direito natural. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 22. 51 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5. ed, 1979. p. 38. 52 Este momento retratado em um dos primeiros, seno o primeiro dos dilogos de Plato, A Apologia, escrito ainda sobre forte impacto do julgamento e da condenao de Scrates. Ensina Danilo Marcones (in MARCONDES, Danilo. Textos bsicos de Filosofia, Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 5 ed., 2007. p. 20), que A Apologia consiste no discurso de Scrates perante o jri ateniense que o condenou. Acusado de desrespeitar as leis da cidade e os deuses tradicionais e de corromper a juventude ateniense, Scrates levado a julgamento. Recusa-se a apresentar uma defesa tradicional, o que poderia, dada sua habilidade, t-lo livrado da condenao, mas defende sua liberdade de pensamento e o carter crtico da filosofia em um verdadeiro desafio ao jri, que acaba por consider-lo culpado. Scrates, por fim, rejeita a alternativa do exlio, mantendo-se coerente com seu estilo de vida e de filosofar, afirmando que a vida sem reflexo no vale a pena ser vivida.
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fruto da razo, onde se encontrariam os conhecimentos necessariamente iguais para toda a
humanidade. Esse era seu grande argumento contra o ceticismo e o agnosticismo dos sofistas,
pois, ao contrrio do que estes apregoavam em sntese, que tudo era relativo- Scrates
diferenciou o que seria produto de opinio pessoal do que seria um conhecimento equnime
do homem.
Nessa senda, de acordo com o pensamento platnico, o desprezo razo
conduz valorizao apenas das paixes pessoais, agressividade e imprudncia, que
resulta em ao violenta contra o prximo. 53 Uma das obras de Plato interessa a este estudo,
A Repblica, dilogo onde o autor detalha as suas idias a respeito da Justia, do Estado e das
Leis, sempre tendo a polis como referncia.
No dilogo A Repblica, Plato apresenta a sua concepo de Estado,
criando um modelo ideal de cidade, a cidade justa, e onde ele insere a questo da justia,
pois para definir o que a cidade justa, ele comea a examinar o que a justia, estabelecendo
a diferena entre esta e suas idias a respeito das leis. 54 Conforme entende Edgar
Bodenheimer:
A sua teoria da justia era minuciosa, e constitui a pedra angular do edifcio de toda a sua filosofia; e, alm disso, permaneceu inalterada durante toda a sua vida. As suas idias acerca da lei, no entanto, eram perifricas no esquema do seu pensamento.55
Nesta obra, Plato afirma serem a polis e suas leis os meios para a
concretizao da idia do homem, sendo o Estado a grande figura educada, responsvel pela
formao moral dos indivduos, imprimindo-lhes os princpios de justia, a honra e a
fidelidade e as virtudes supremas, conduzindo-os felicidade. Plato, neste dilogo,
estabelece uma comparao entre o Estado e o homem, sendo que o Estado seria como o
corpo humano, composto de rgos que lhe do funcionamento. Assim, este filsofo
diferencia as classes de homens que corresponderiam a cada rgo responsvel pela vida do
macrohomem- Estado. Plato demonstra tambm que, como no corpo humano, h
desigualdade de importncia natural entre os homens.56
53 CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia, So Paulo: Atual, 2002. p. 52. 54 LIMA, Viviane Nunes Arajo. A saga do Zango: uma viso sobre o direito natural. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 23. 55 BODENHEIMER, Edgar. Cincia do direito-filosofia e metodologia jurdicas, p. 21. 56 Nesta cidade sois todos irmos, mas Deus, ao fazer-vos, ps ouro naqueles dentre vs que so capazes para governar; da merecerem esses a maior deferncia. Ps prata nos auxiliares, e ferro e cobre nos agricultores e outros artfices. Na sua maioria, os vossos filhos so da mesma natureza que vs, porm, como sois todos afins, do outro poder descender prata, ou de prata, ouro, e assim em todas as classes. Portanto, o primeiro e mais incisivo mandamento de Deus aos que governam este: que mais do que ningum eles guardem e eduquem cuidadosamente os seus descendentes, procurando descobrir que outros metais trazem de mistura em suas almas;
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Melhor explicando a questo posta em A Repblica, a primeira considerao
a ser reforada que Plato imaginou a polis como modelo de vida em grupo. Assim, na
cidade, os filsofos, tendo conhecido a verdade atravs da contemplao do mundo das Idias,
teriam o dever de tomar as rdeas da administrao da cidade. Esse nus seria conseqncia
do fato de que, por conhecerem o que o Bem, somente poderiam desejar que esse bem se
estendesse vida de todos os homens. O Agir Bem, para Scrates e conseqentemente para
seu seguidor, Plato, a conseqncia inevitvel de quem conhece a verdade. O bem e a
verdade estariam intimamente ligados: logo, conhecer seria igual a conhecer o bem. 57 Agir
conforme o bem seria decorrncia do conhecimento, que, pelo mesmo raciocnio temos que
uma ao danosa a si ou a outros seria decorrncia do desconhecimento. Portanto, para Plato,
os filsofos tinham que ocupar a posio de governadores, criando leis e controlando as
atividades dos membros da sociedade. Na diviso da alma, 58 teoria tambm elaborada por
Plato, os filsofos seriam a parte racional da alma.
Nesse sentido, Del Vecchio, como se segue:
[...] h que distinguir no Estado trs classes: A dos sbios, destinados a dominar; a dos guerreiros, chamados a defender o organismo social; a dos artfices e agricultores, a quem cabe nutri-lo. Mas, assim como o indivduo deve ser dominado pela razo, assim tambm o Estado o deve ser pela classe que representa a sabedoria, isto : pelos filsofos.[...] 59
Cumpre destacar que, apesar de existir o instituto da escravido em Atenas,
os servos e escravos estavam excludos das trs classes que dividem os homens no Estado.
Essa teoria permanece em outros dilogos de autoria de Plato, como Poltico, onde indaga
sobre a justificativa para o governo do filsofo, como se segue:
[...] No nisso que reside a verdadeira frmula e uma administrao correta da cidade, segundo a qual o homem sbio e bom administrar os interesses de seu povo? Da mesma forma como o piloto que conduz o barco, longe de escrever um cdigo, mas tendo sempre a ateno voltada para o bem do navio e seus marinheiros, estabelece a sua cincia como lei e salva tudo o que com ele navega, assim tambm, de igual modo, os chefes capazes e
se trouxerem uma mistura de cobre ou ferro, no devero ter piedade, e sim destin-los s posies prprias de sua natureza, que so as de artesos ou lavradores; e se. Por outro lado, dentre estes nascerem crianas com mistura de outro e prata, devero ser tratadas com honrarias e indicadas, as primeiras para guardis, e as segundas para auxiliares. Porque, segundo um orculo, a cidade ser destruda no dia em que for guardada por ferro ou cobre (A Repblica, Livro III, Cf. op. cit, p. 21 apud LIMA, Viviane Nunes Arajo, A saga de Zango, 2000, p. 24, nota 34). 57 CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia, So Paulo: Atual, 2002. p. 48. 58 Segundo Del Vecchio, (1979, p. 40), Plato d uma base psicolgica ao traar o paralelo entre o Estado e o indivduo, criando trs partes, ou faculdades, existentes na alma do indivduo: a razo, que domina; a coragem. Que atua; os sentidos, que obedecem. 59 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Editora Armnio Amado. 5ed. Coimbra.1979. p. 40.
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praticar esse mtodo realizaro a constituio verdadeira, fazendo de sua arte uma fora mais poderosa do que as leis. [...] 60
Nessa polis tambm haveria grupos de guerreiros que se caracterizavam por
sua fora, integridade e fidelidade. Eles corresponderiam parte emocional da alma, e
obedeceriam aos filsofos governantes, defendendo a cidade de eventuais inimigos. Eles eram
responsveis ela parte pragmtica na aplicao da justia entre os habitantes, conforme os
reis pensadores determinassem. Finalmente, nessa diviso de funes elaborada por Plato,
haveria os homens que, por meio de seus diferentes trabalhos, garantiam o sustento da cidade,
que so os agricultores, pastores, artesos, construtores e teceles. Esse grupo de homens de
homens corresponderiam parte sensual da alma, por serem movidos pela ambio pelo lucro
e no pelo desejo do bem. Como ensina Gabriel Chalita:
Embora necessrio para a sobrevivncia material de todas as pessoas, precisaria ser controlado pelos guardies da cidade, segundo as ordens dos dirigentes filsofos, que ditariam as normas de comportamento, a distribuio dos alimentos e a realizao de melhorias urbanas. 61
O Estado, segundo Plato e em geral para os gregos, tem como principal
caracterstica a sua funo educadora. Portanto, para este filsofo, o Estado domina a
atividade humana em todas as suas manifestaes, e a este instituto cabe a promoo do Bem,
tambm em todas as suas formas. Logo, poder do Estado se afigura ilimitado, eis que nada
fica reservado ao arbtrio dos cidados, sendo tudo coberto pela competncia e interveno do
Estado. Kant, como veremos no captulo que se avizinha, um dos filsofos que contrrio a
essa concepo absolutista do Estado. Na concepo kantiana do Estado de Direito, existe
limites bem determinados para a atividade Estatal.
Em sntese, verificamos, nas palavras de Ylves Jos Miranda que:
Como trajetria jusnaturalista e Plato pode-se assinalar o Estado fundado na natureza do homem; a importncia acendrada a razo sobre a vontade e os instintos; a diviso do trabalho e o bem comum justificador do poder do Estado e verdadeiras leis que tenham em foco a justia. Pode-se divisar, em todo, o seu pensamento poltico, moral e sobre o Direito, um apoio na realidade social e individual, como aluso ao ideal, como realidade mais alta, submetendo o Direito tica e poltica. 62
Completando o humanismo de Scrates e o idealismo de Plato, Aristteles,
desenvolve mais detalhadamente as idias acerca da justia como contedo das leis, da
60 MARCONDES, Danilo. Textos bsicos de Filosofia. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 5 ed., 2007. p. 25. 61 CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. So Paulo: Atual, 2002. p. 58. 62 GUIMARES, Ylves Jos Miranda, Direito Natural- viso metafsica e antropolgica. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitria, 1991. p. 25.
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felicidade como bem supremo e da distino entre o justo por natureza e o justo por
conveno, chegando a construir uma verdadeira teoria da justia.63
A grande trade filosfica grega se completa com Aristteles, que
freqentou, durante vinte anos, a Academia de Plato, saindo de l s quando seu mestre
morreu. Sendo discpulo de Plato, evidentemente, sofreu forte influncia das idias do mestre
em sua prpria obra, apesar de alguns doutrinadores, e.g. Giorgio Del Vecchio, consider-los
antagnicos, ou que havia uma oposio significativa entre os dois. Nesse sentido expe Del
Vecchio:
O carter do seu gnio diferente do de Plato: este, por sua ndole, mais especulativo, Aristteles mais inclinado observao dos fatos. Nas questes cardeais da Filosofia, contudo, no se afasta muito do Mestre; , por isso, errado apresent-los, como vulgarmente acontece, na qualidade de seu adversrio ou antagonista. verdade que Aristteles expressamente refuta algumas teorias de Plato. Amide se faz referncia s discrdias pessoais que teriam oposto o mestre ao discpulo. Mas, provavelmente, exagerou-se a este respeito e formaram-se lendas em torno das relaes entre os dois grandes filsofos. Deve-se reconhecer, em todo o caso, que tambm Aristteles foi essencialmente metafsico e idealista. 64
Uma de suas principais obras, a Poltica, interessa particularmente esse
estudo, pois onde este filsofo de Estagira constri seu modelo de Estado, e a sua doutrina
sobre justia e equidade. O carter mais observador de Aristteles o fez perceber que a
organizao do Estado ideal formulada por seu mestre, Plato, esbarraria em alguns
problemas da prpria natureza humana. Assim, Aristteles formulou uma forma de Estado
que teria como alicerce o Direito, sendo esta a nica forma possvel de existncia humana
numa comunidade poltica.
Portanto, notvel que as leis possuem vital importncia para Aristteles,
sendo primordial que elas sejam bem formuladas. Alis, para este filsofo, todos os homens
deveriam participar do processo legislativo, distinguindo entre eles o que bom, atravs do
dilogo. Assim, as leis tomariam posio de superioridade em relao aos indivduos. Quanto
a importncia dada por Aristteles s leis, escreve Miguel Reale:
O estagirita reconhece que existe o justo por lei e o justo por natureza, afirmando que este tem por toda a parte a mesma fora, por no depender das opinies e dos decretos dos homens, expresso que da natureza racional do homem. A lei a inteligncia menos a paixo, ou seja, depurada
63 LIMA, Viviane Nunes Arajo. A saga do Zango: uma viso sobre o direito natural. Rio de Janeiro: Renovar. 2000. p. 25. 64 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5 ed, 1979. p. 44.
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de todas as inclinaes capazes de lanar um homem contra outro homem, esquecidos das exigncias racionais, ambiciosos de mando e vido de bens.65
Para Aristteles, assim como para Plato, o sumo bem a Felicidade, sendo
necessria a existncia do Estado, que no possui um simples papel de estabelecer aliana
entre os indivduos, mas significa a perfeita unio orgnica, tendo por fim a virtude e a
felicidade universal, ou seja, o Estado representa, para estes filsofos, a comunho necessria
ao servio da perfeio da vida. 66 Assim, Aristteles no concede a idia de existir indivduos
sem o Estado, pois ao Estado incumbe regular a vida dos cidados mediantes as leis, que eram
substancialmente justas. Nessa senda, Aristteles deixou uma profunda analise, onde
Aristteles divide a justia em vrias espcies, 67 dentre elas a justia distributiva e a justia
corretiva, conforme exps Del Vecchio:
O princpio da justia a igualdade, a qual aplicada de vrias maneiras. Aristteles distingue, portanto, a justia em muitas espcies. A primeira de entre leis a chamada justia distributiva, que preside distribuio das honras e dos bens e tem por fim obter que cada um receba daquelas e destes a poro adequada ao seu mrito. 68
Segundo Aristteles, o princpio da justia a igualdade, apesar de elaborar
sua teoria demonstrando a desigualdade entre as pessoas quanto ao mrito de cada uma,
assinalando um aspecto de bilateralidade na aplicao da mesma. Viviane Arajo assinala
que ao apreciar a questo da justia, Aristteles apenas o far a partir da noo de
proporcionalidade entre o bem recebido e o seu merecimento e na medida em que considera
como um bem de outrem, uma espcie de proporo de homem para homem, e modo que
no j justia de um homem para consigo mesmo.69
Tratando da justia como uma das virtudes, para Aristteles, continua
Miguel Reale: 65 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. So Paulo: Saraiva, 9. ed., 1982. p. 619. 66 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5 ed, 1979. p. 45. 67 Aristteles distingue, inicialmente, dois tipos de justo poltico: o justo natural e o justo legal. O justo natural expressa uma justia objetiva imutvel e que no sofre a interferncia humana. J o justo legal a lei positiva que tem sua origem na vontade do legislador e que sofre a variao espao-temporal. Existem, ainda, a justia geral e a justia particular. De um lado, a justia geral figura como a virtude da observncia da lei, o respeito legislao ou s normas convencionais institudas pela polis. Tem como objetivo o bem comum, a felicidade individual e coletiva. A justia geral corresponde pelo que se entende por justia legal. Por outro lado, a justia particular tem por objetivo realizada a igualdade entre o sujeito que age e o sujeito que sofre a ao. Refere-se singularmente, no tratamento entre as partes. A seu turno, a justia particular dividi-se em justia distributiva e justia corretiva. (SOARES, Ricardo Maurcio Freire. Reflexes sobre o jusnaturalismo: O Direito natural como Direito justo. Disponvel em: Acesso em 2/jun/2011). 68 Ibidem 69 LIMA, Viviane Nunes Arajo, A saga de Zango, p. 27 apud Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1982. p. 620.
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Aristteles soube genialmente determinar o que a distingue e a especifica (a justia), a sua proporcionalidade a outrem, ou, em palavras modernas, a nota e socialidade. A justia uma virtude que implica sempre algo de objetivo, significando uma proporo entre um homem e outro homem; razo pela qual toda virtude, enquanto se proporcione a outrem, , a esse ttulo, tambm justia. 70
A segunda espcie de justia elaborada por Aristteles a justia corretiva
ou equiparadora, por presidir s relaes de troca, configura a proporo aritmtica na teoria
aristotlica, uma vez que intenta situar as partes da relao numa idia de bilateralidade,
imanente concepo de justia conforme dito supra.
Discorrendo sobre a justia equiparadora, aponta Del Vecchio:
Esta espcie de justia procura lograr que as duas partes, que se encontram em relao, venham a achar-se, uma relativamente outra, em condies de paridade; e de tal sorte, que nenhuma receba ou d demais ou de menos. Daqui segue-se a definio desta espcie de justia como ponto mdio ou meio termo entre o dano e a vantagem. No entanto, estes termos compreendidos em sentido amplo aplicam-se no s s relaes voluntrias ou contratuais, mas tambm s que tm origem no delito; portanto tambm se exige uma certa equiparao, ou seja: uma exata correspondncia entre o delito e a pena. A justia corretiva, retificadora ou equiparadora preside, assim, a todas as trocas e relaes quer de natureza civil quer de natureza penal. 71
A justia corretiva, ou equiparadora, ainda se sub-dividia em duas outras
espcies: a justia comutativa, ou compensativa, e a justia judicial, ou reparadora. primeira
seria responsvel por nortear a formao das relaes de troca, enquanto segunda incumbiria
a punio do culpado, imposta mediante uma terceira pessoa (o juiz), que deve decidir sobre
as relaes mtuas e o eventual descumprimento de acordos particulares.
Impende destacar, ainda, o conceito de equidade, para Aristteles. Define a
equidade como uma retificao da lei quando deficiente em virtude de sua generalidade,
cabendo ao critrio de equidade, aplicado pelos magistrados, corrigir a rigidez da lei
adequando-a ao caso em questo segundo os ditames da justia natural, reparando, assim, as
imperfeies do Direito escrito. Para Aristteles, portanto, a equidade estaria servio do
direito natural. A equidade palavra-chave para teoria de justia de Aristteles, pois previu
ele que, no momento de se aplicar a lei seja para proibir ou para prescrever uma conduta
desejada- a sua rigidez, soberania e generalidades poderiam produzir injustias e efeitos
70 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. So Paulo: Saraiva, 9 ed., 1982. p. 619-620. 71 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5 ed, 1979. p. 45-50.
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danosos se no fossem levadas em consideraes as particularidades de cada caso submetido
as leis. 72
Um pouco mais adiante, no perodo ps socrtico, a filosofia grega passa a
ser dominada pela preocupao humanstica centralizada no problema tico-moral,
influenciando notadamente o Direito Romano. 73 Surge, ento, no cenrio do pensamento
grego a Escola Estica, fundada em Atenas por volta de 308 a.C., por Zeno de Cipro (320?-
250? a.C.).
A busca da felicidade foi o problema fundamental escolhido pelos esticos,
se preocupavam, outrossim, em saber como o indivduo deveria agir para viver bem, estando
de acordo consigo mesmo e com a vida em sociedade. Sendo assim, felicidade para esta
corrente do pensamento grego, era um estado de tranqilidade plena, em que s podia ser
atingido por meio da prtica virtuosa.
Portanto, atribuiu-se aos esticos a concepo de um sistema filosfico onde
o eixo central das suas indagaes giraria necessariamente em torno do conceito de natureza.
Assim, a virtude, para os esticos, era definida como uma negao constante, que consistia na
indiferena dirigida a todas as experincias da vida. A indiferena, nesse caso, significava no
sobre nem agir por nenhuma paixo. Gabriel Chalita, sobre esse tema, diz que o mximo da
virtude seria alcanado quando o homem ficasse alheio a tudo, vivendo como numa fortaleza
interior, tendo como seu tesouro o pensamento e a sabedoria filosfica. 74 Em outras
palavras, o homem no deveria se preocupar com a morte, riqueza, beleza, trabalho, por
exemplo. O nico valor, segundo os esticos, a sabedoria, que alcanada atravs do
pensamento, que por sua vez, a nica atividade em que vale a pena se empenhar.
Sobre os esticos e suas crenas, leciona Viviane Nunes Arajo Lima,
como se segue:
Entendia a Escola Estica ser a natureza o princpio dominador que paira por todo o universo, o qual, de modo pantestico, eles identificavam como o prprio Deus, entendendo ainda ser esse universo, ou cosmos, organizado de maneira ordenada e racional, composto por um nico elemento: a razo. 75
Conclui a doutrinadora supra mencionada que, em decorrncia dessa
identificao da natureza com Deus, para os esticos, a lei da natureza seria igual lei da
razo. Decorrente dessa premissa, concluem esses pensadores que, pelo fato do homem fazer
72 CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. So Paulo: Atual, 2002. p. 60-70; 163. 73 LIMA, Viviane Nunes Arajo. A saga do Zango: uma viso sobre o direito natural. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 31. 74 CHALITA, Gabriel, Vivendo a filosofia, 2002. p. 77. 75 LIMA, Viviane Nunes Arajo. A saga do Zango: uma viso sobre o direito natural. op. cit., p. 31.
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parte dessa ordem csmica, ele um ser essencialmente racional. Logo, tendo-lhe sido
atribuda capacidade de agir conforme a reta razo, o homem participava, para os esticos,
da lei considerada universalmente vlida, ou seja, da lei da natureza, que impunha ao homem
a prerrogativa de sempre agir de acordo com a razo.
Continua Viviane Nunes:
Melhor dizendo, o homem deveria conduzir sua vida conforme sua prpria natureza; ora, se a natureza individual de cada homem fazia parte de um composto pela razo, isto implicaria reconhecer que a sua natureza seria racional. Indagado sobre a peculiaridade do homem, teria respondido o filsofo Sneca: Que , ento, peculiar ao homem? A razo. Quando esta reta e atingiu a perfeio, a felicidade do homem completa. 76
Partindo dessas concluses, os esticos inauguram uma nova forma de
pensar o homem, o Estado e Deus, pois, para eles, a lei natural universal. Por conseguinte,
todos os homens seriam iguais e pertenceriam algo denominado por Del Vecchio de
sociedade do gnero humano. 77
Quanto s inovaes trazidas pelos esticos, salienta Carl Friederich:
[...] os esticos fizeram explodir a estrutura da polis, que para Plato e Aristteles fora algo indiscutvel, e proclamaram a humanidade como uma comunidade universal. Um deus, um Estado, uma lei esta bem conhecida frmula estabelece a doutrina dos esticos de um modo bastante simples e claro. Um homem diferente de outro homem no pelo fato de pertencer a uma polis, mas unicamente por ser um homem sbio, que reconhece a doutrina estica, ou um tolo, que no a reconhece. Por essa razo, a verdadeira polis no qualquer polis existente, como Atenas, mas, de fato, uma comunidade de todos esses homens sbios. Todos esto sujeitos a um Deus e a uma lei.78
Essa idia foi denominada de cosmopolitismo, onde esses pensadores que o
homem no seria cidado de um Estado determinado, mas de um Estado Universal, sendo na
verdade cidado do mundo. Para sintetizar a doutrina estica, em especial no que acontece
cosmopolitizao da espcie humana, esclarece Bodenheimer:
Como fora universal encontrada em todo o cosmo, a razo era considerada pelos esticos a base da lei e da justia. A razo divina, diziam eles, se encontra em todos os seres humanos, em qualquer parte, independentemente da sua raa ou nacionalidade. Existe uma lei comum da natureza, baseada na razo, que obriga a todos os homens em qualquer parte do mundo. Os filsofos esticos ensinavam que no devia haver diferentes cidades-estado, cada qual distinta das demais pelo seu prprio sistema peculiar de justia.
76 LIMA, Viviane Nunes Arajo. A saga do Zango: uma viso sobre o direito natural. Rio de Janeiro: Renovar. 2000.p. 30-32. 77 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5 ed, 1979. p. 52. 78 LIMA, Viviane Nunes Arajo, A saga de Zango, apud FRIEDERICH, Carl, p. 32.
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Desenvolveram eles uma filosofia cosmopolita, baseada no princpio da igualdade de todos os homens e na universalidade das leis naturais. Seu ideal mais alto era um estado-mundo, em que todos os homens vivessem juntos harmoniosamente sob o comendo da razo divina.79
Merece ainda ateno a doutrina de Epicuro. A corrente de pensamento que
se originou deste pensador homenageou seu prprio nome, o epicurismo. O epicurismo
pregava que a finalidade da vida est no prazer. No um prazer obtido atravs dos instintos e
das paixes, mas sim por meio da razo. Assim, o verdadeiro prazer estaria em superar todos
os desejos, no ter necessidade de nada. Nessa senda, a justia, para Epicuro, consistia em no
causar dano a outrem ou causar-lhe sofrimento. Este filsofo atribuiu grande importncia aos
prazeres e s dores espirituais. Logo, para os epicuristas, o meio tcnico de tornar efetiva essa
moral do prazer tranqilo consistia no direito justo, cuja finalidade era prescrever as aes que
propiciavam a felicidade ao maior nmero de pessoas.80
Sobre a doutrina de Epicuro, traz Del Vecchio 81 que esta apregoava o
carter necessrio e til do Estado nas solues de conflitos intersubjetivos. Epicuro
acreditava que o homem no era naturalmente socivel. Assim, ele estaria constantemente em
luta com o seu semelhante, sendo causa de sofrimento. A ento entra o Estado, como
entidade que suprime esse sofrimento causado aos indivduos por eles mesmos. luz dessa
concepo, o direito, para Epicuro, um pacto ditado pela utilidade, dominando nesse campo
o utilitarismo. Por isso, explica o Del Vecchio, que para este pensador, o homem poderia
sempre romper com seu pacto com o Estado, sempre quando da sua manuteno deixar de
resultar a utilidade em funo da qual adveio a sua celebrao.
Finalizando essa corrente do pensamento grego ps socrtico, cumpre
ressaltar as palavras de Miguel Reale quanto ao Direito grego:
H, pois, na obra de Aristteles, uma Teoria Geral do Estado, entendida como um complexo unitrio, no qual ainda no se destaca o Direito. Nem demais lembrar...que na Grcia no existe uma palavra prpria para mencionar o Direito, pois o conceito ainda se funde no conceito universal de justo. [...] Reconhece-se, em geral, que o Direito na Grcia permaneceu numa dependncia da Retrica e da Moral, no se diferenciando propriamente o jurista do filsofo ou o homem de Estado. 82
79 LIMA, Viviane Nunes Arajo, A saga de Zango, apud BODENHEIMER, Edgar. Cincia do direito, filosofia e metodologia jurdicas, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1966. p. 27. 80 SOARES, Ricardo Maurcio Freire. Reflexes sobre o jusnaturalismo: o direito natural como direito justo. Disponvel em: Acesso em: 2/jun/2011. p. 4. 81 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5 ed, 1979. p. 53. 82 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. So Paulo: Saraiva, 9 ed., 1982. p. 625.
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Miguel Reale, sobre o tema, observou que do posto de vista da Filosofia do
Direito, o pensamento ps socrtico acaba por fundamentar uma concepo mais cosmopolita
do homem, adaptada nova realidade do Estado-Imprio, cristalizando a idia do direito
natural que iria impregnar a Roma antiga.83 De fato, a grande contribuio romana para o
mundo ocidental foi o Direito, tendo sido fundada, mesmo, uma rea da Filosofia do Direito
que ainda hoje rege a prtica da justia em vrios pases, inclusive no Brasil. Alm do mais,
os romanos foram os primeiros a teorizar a respeito do Direito, empregando o termo
jurisprudncia, para designar a arte de criar e aplicar o seu Direito.
Nesse sentido, observa Ricardo Maurcio Freire Soares:
A jurisprudncia romana se desenvolve, ento, sob a gide da doutrina do direito natural, na esteira das concepes herdadas do pensamento clssico. Em Roma, as idias mais ou menos difusas na moral estica, de que os postulados da razo teriam fora e alcance universais, encontraram ambincia favorvel sua aplicao prtica. O direito natural a ser ento, concebido como a prpria natureza baseada na razo, traduzida em princpios de valor universal. 84
Roma no foi reconhecida por fundar uma corrente puramente filosfica
prpria, recebendo fortes influncias do pensamento filosfico grego, em especial do
estoicismo. Assim como o supremo tema da atividade Grega foi a filosofia, em Roma foi o
Direito. Como pode se depreender da referncia acima, em Roma tambm se admitia a ideia
de uma lei natural, decorrente da natureza e da razo que ordena e rege o universo,
conseqentemente, imutvel e universal. Por receberem influncia dos esticos, os romanos
tambm acreditavam na existncia de uma lei eterna, impressa na natureza de todos os
homens por meio da razo. Geralmente, ao tratar dessa temtica, doutrinadores citam Ccero,
advogado e estadista, como representante dos grandes jurisconsultos romanos. 85
Para Ccero, existiria uma verdadeira lei: a reta razo conforme a natureza,
que seria eterna e constante de todos os homens. A sua tese principal atesta que o direito no
resulta do arbtrio, mas dado pela natureza. Ccero estabelece uma relao com a doutrina
aristotlica 86 quando afirma que o Estado, para ele, seria um produto da natureza, sendo um
instituto natural que impele o homem para a convivncia poltica.
83 REALE, Miguel, Teoria tridimensional do direito. So Paulo: Saraiva, 1994. p. 627-630. 84 SOARES, Ricardo Maurcio Freire. Reflexes sobre o jusnaturalismo: O Direito natural como Direito justo. Disponvel em: Acesso em: 2/jun/2011, p. 3. 85 Idibem 86 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5 ed, 1979. p. 54-59.
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Os juristas romanos no foram grandes formuladores de abstraes tericas,
nem se tratando do ramo da filosofia. Mas podemos dizer que eles se destacaram na
transposio das abstraes filosficas para a prtica do Direito Positivo, nas suas aplicaes.
Os romanos souberam satisfazer as exigncias lgicas e as necessidades mutveis da
realidade. Muito embora eles guardassem maior respeito e dedicao pelas formas histricas e
tradicionais das instituies, nunca perderam a vista a vida concreta e a natureza das coisas.
Souberam, outrossim, contribuir permanentemente para o progresso jurdico, com uma
perfeita tcnica formal. E nisto est o seu mrito. A disciplina de Filosofia do Direito tem por
fontes clssicas, portanto, a filosofia grega e a jurisprudncia romana. Afinal de contas, os
romanos foram, sem dvida, os fundadores do Direito como cincia autnoma.
1.2. O JUSNATURALISMO TEOLGICO
O jusnaturalismo teolgico se consolida como doutrina jusfilosfica na
Idade Mdia, advindo da forte influncia do cristianismo. 87 O cristianismo trouxe baila
novas discusses em relao questo da justia, apesar de originalmente no nascer com
significado jurdico ou poltico, mas sim com propsito meramente moral. Princpios de
caridade, amor ao prximo, fraternidade, liberdade e igualdade de todos os homens so, sem
dvidas, princpios pregados pela filosofia crist, 88 propondo ao indivduo adepto dessa
religio mudanas comportamental e de sua conscincia, no possuindo cunho poltico. 89
Del Vecchio e Miguel Reale, ttulo exemplificativo, so alguns
doutrinadores que assinalam o carter inicialmente apoltico da doutrina crist. Assim, apesar
de o cristianismo originalmente no servir a interesses polticos ou jurdicos, fato que com
ele engendrou-se uma verdadeira revoluo poltica, fazendo prevalecer, na Idade Mdia, o
87 NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2000. p. 117-127. 88 Embora alguns importantes historiadores da filosofia afirmem no ser totalmente correto utilizar a expresso filosofia crist para designar as correntes de pensamento formuladas pelos jusnaturalistas medievais que professavam o cristianismo, optou-se por usar tal denominao para ressaltar a ligao entre Direito-Filosofia e Teologia. 89 Para ilustrar a desvinculao original da filosofia Crist do contexto poltico, Del Vecchio aponta que ensinamentos de Jesus como Dai a Csar o que de Csar no tem carter poltico, sendo dotado exclusivamente de um significado espiritual, significando que os impostos deveriam ser pagos ao Estado, pois este estaria responsvel por assuntos mundanos, enquanto Igreja cabe se importar com assuntos espirituais. Tanto assim que, apesar de a Igreja pregar a igualdade entre todos os homens, o instituto da escravatura no foi abolido, permanecendo por esse tempo sob a justificativa de ser uma instituio humana. Nesse sentido, Del Vecchio complementa: Os Padres da Igreja chegaram a consider-la como condio propcia aos servos e aos senhores: aos primeiros, para se exercitarem na pacincia e obedincia devida aos segundos; a estes, na doura e benevolncia devida queles. (DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Editora Armnio Amado. 5ed. Coimbra.1979. p. 59-60).
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que Jos Vilanova chamou de cosmoviso, ou seja, uma viso comum a todos os homens
acerca do universo ou da representao do mundo. 90
Nesse mbito leciona o autor argentino supracitado, ao discorrer sobre a era
medieval:
Nela denomina, praticamente sem deixar resqucio algum, uma cosmoviso bem clara e definida. a ltima poca da humanidade que reina uma cosmoviso indiscutida. [...] Na poca medieval domina uma cosmoviso teolgica e teocrtica. Dentro dela o homem est situado em um vale de lgrimas para cumprir com uma espcie de prembulo ou prmio outra vida que a autntica e verdadeira: a vida eterna... sob o prisma da cosmoviso medieval, tudo o que h neste mundo tem uma importncia puramente preparatria para o ingresso no outro mundo. 91
Como explicitado, a doutrina crist gerou influncias notveis na Poltica,
desenvolvendo-se, sobretudo no perodo da Idade Mdia. O primeiro reflexo decorrente da
herana crist na poltica a aproximao do Direito da Teologia.92 Desse efeito deriva-se o
entendimento de que se o mundo governado por um Deus, logo, o Direito deve ser emanado
por uma ordem divina e o Estado como instituio divina.
Nesse sentido, explica Del Vecchio, in litteris: S na poca do Renascimento, na qual se verificou, de certo modo, um ressurgimento da Filosofia e da cultura greco-latina, a doutrina clssica recebeu reconfirmao e voltou a dizer-se que o Direito independente da Teologia e deriva da natureza humana. 93
Outro efeito trazido por Del Vecchio, considerando que a filosofia
evanglica carregada de subjetividade, que o cristianismo trouxe uma nova concepo do
Estado e da posio deste em face da Igreja. Ou seja, antes da poltica e justia sofrerem
influncia do Cristianismo, portanto, na antiguidade clssica, o Estado era a nica entidade
superior ao indivduo. Esse tinha o dever de ser bom cidado, enquanto o Estado cumpria o
papel de provedor. Assim, o homem era visto somente como cidado, e para ele, nada mais
havia alm do Estado. Com o advento do Cristianismo outro olhar dado ao homem, que
agora tributrio a um fim religioso, ultrahumano. 94 Portanto, o homem no busca apenas
por uma vida civil harmnica, mas a partir desse momento anseia pela felicidade plena e
eterna.
90 LIMA, Viviane Nunes Arajo. A saga do Zango: uma viso sobre o direito natural. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.p. 45. 91 VILANOVA, Jos. Elementos de filosofia Del derecho. Buenos Aires: Ed. Abeledo-Perrot, 1984. p. 66. 92 DEL VECCHIO, Giorgio. Lies de Filosofia do Direito. Coimbra: Editora Armnio Amado, 5 ed, 1979. p. 60-61. 93 Ibidem. 94 Ibidem.