2015.abreu, r. patriminializacao das diferencas

Upload: monica-guarani-kaiowa-jacome

Post on 09-Jan-2016

219 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

...

TRANSCRIPT

  • Memria e novos patrimnios

    Ccile Tardy et Vera Dodebei (dir.)

    diteur : OpenEdition PressLieu d'dition : MarseilleAnne d'dition : 2015Date de mise en ligne : 12 Fevereiro 2015Collection : Brsil / France | Brasil / FranaISBN lectronique : 9782821853539

    http://books.openedition.org

    dition imprimeISBN : 9782821853522Nombre de pages : 236

    Ce document vous est offert par AixMarseille Universit

    Rfrence lectroniqueTARDY, Ccile (dir.) ; DODEBEI, Vera (dir.). Memria e novos patrimnios. Nouvelle dition [en ligne].Marseille : OpenEdition Press, 2015 (gnr le 12 fvrier 2015). Disponible sur Internet : .

    Ce document est un fac-simil de l'dition imprime.

    OpenEdition Press, 2015Conditions dutilisation : http://www.openedition.org/6540

  • BRSIL / FRANCE | BRASIL / FRANA Saberes cruzados em cincias sociais e humanas

    A coleo do programa Saint-Hilaire

  • Memria e novos patrimnios

    Coordoneo cientifica de Ccile Tardy e Vera Dodebei

    BRSIL / FRANCE | BRASIL / FRANA Saberes cruzados em cincias sociais e humanas

    A coleo do programa Saint-Hilaire

  • Criao grfica: Massimo MiolaIlustrao da capa: Strezhnev Pavel

    Coordenao da traduo: Sabine GorovitzRevisora dos textos: Regina Maria Nogueira, Maria Haddock Lobo

    Diagramao: OpenEdition Press

    Coleo Brsil / France | Brasil / Frana, 2015[Online] http://books.openedition.org/oep/417

    Esta obra encontra-se online em acesso livre Texto: Licena Creative Commons

    Atribuio Uso No - Comercial - Proibio de Realizao de Obras Derivadashttp://creativecommons.pt/cms/view/id/28/

    Todas as ilustraes esto sujeitas ao direito de autor.

    ISBN papel: 978-2-8218-5352-2ISBN eletrnica: 978-2-8218-5353-9

  • Em 1816, o botnico e naturalista francs Auguste de Saint-Hilaire no mediu esforos para participar da misso do Conde de Luxemburgo que rumava para o Brasil. Acabaria passando seis anos no pas, percorrendo mais de 16.500 km pelas suas terras mais afastadas e realizando pesquisas pioneiras sobre a fauna e a flora locais. Fino observador, Saint-Hilaire desenvolveu mtodos cientficos rigorosos, que se tornariam mais tarde um modelo do gnero. Seu herbrio foi logo incorporado ao Museu de Histria Natural de Paris. Alm de suas atividades cientficas, Saint-Hilaire era tambm um humanista e um filantropo que no cessava de maravilhar-se com as potencialidades do Brasil. A coleo de publicaes cientficas Saint-Hilaire presta, portanto, uma homenagem a este grande viajante cientfico, que se tornaria um verdadeiro embaixador do Brasil ao retornar Frana e isto, ao longo de toda sua vida.

    Prefcio coleo

    As publicaes da coleo Saint-Hilaire resultam de uma cooperao entre a Capes (Coordenao de aperfeioamento do pessoal de nvel superior), a agncia federal brasileira do Ministrio da Educao e a Embaixada da Frana no Brasil. Estas obras tm por intuito promover pesquisas conjuntas em cincias humanas e sociais, relativas ao Brasil contemporneo. Sendo assim, universitrios e equipes de alto padro cientfico trabalharam juntos sobre temas que interessam tanto Frana quanto ao Brasil, visando produzir conhecimentos transversais, pertinentes e inovadores.

    A coleo Saint-Hilaire est disponvel a todos, sendo publicada na Internet atravs da plataforma OpenEdition Books. Ao apoiar a edio e a divulgao de contedo cientfico em cincias humanas e sociais, esperamos poder perpetuar a tradio de intercmbio intelectual que une a Frana e o Brasil, maneira de Auguste de Saint-Hilaire.

    DenisPietton Jorge AlmeidaGuimares

  • Comit cientfico do programa Saint Hilaire

    Eckert, Cornelia(co-presidente) - (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

    Thry, Herv(co-president) - (CNRS)

    Barreira, Csar(Universidade Federal do Ceara)

    Couffignal, Georges(universit Sorbonne Nouvelle - Paris 3)

    Jaisson, Pierre(universit Paris XVIII)

    Trein, Franklin(Universidade Federal do Rio de Janeiro)

    Velut, Sbastien(universit Sorbonne Nouvelle - Paris 3)

    Zilberman, Regina (Pontificia Universidade Catolica do Rio Grande do Sul)

  • 67

    Patrimonializao das diferenas e os novos sujeitos de direito coletivo no Brasil

    Regina Abreu

    Dedico este captulo memria de Gilberto Velho que me despertou para as dimenses prticas e reflexivas de uma

    antropologia da patrimonializao das culturas. (Velho, 2007)

    A configurao contempornea dos processos de patrimonializao

    Na formao das naes modernas, a noo de patrimnio associou-se ideia de bem coletivo e pblico expressando um tipo de sociedade como coletivo de indiv-duos e indivduo coletivo. Num primeiro movimento, bens considerados privados e restritos a grupos de elites, notadamente histricos e artsticos, ganharam o estatuto de bens nacionais ou seja, legados de uma coletividade. Processos de patrimoniali-zao tornaram-se objetos de polticas pblicas com agncias voltadas para este fim. Patrimonializar passou a significar um processo de escolha de determinados bens ou artefatos capazes de simbolizar ou de representar metaforicamente a ideia abstrata de nao e seus corolrios, como a ideia de humanidade. Krzysztof Pomian (1997, p. 51-87), em seu verbete sobre coleo, insiste sobre esta mudana de estatuto do objeto aps passar pelo movimento da patrimonializao. Ao integrar uma coleo museolgica, o artefato perde seu valor de uso e adquire um valor simblico. Uma xcara integrada ao acervo de um museu deixou de ser um objeto utilitrio para se tornar um objeto que representa ideias abstratas como estilo de fabricao, pas, regio, uma poca e assim por diante. Novos significados so justapostos e integra-dos a um bem que, na esfera mercantil, era apenas mais um objeto a ser consumido, utilizado, descartado. A patrimonializao concede a este artefato uma nova vida e um novo valor. A partir da patrimonializao, ele deve ser preservado e exposto ao olhar do pblico, ou seja, ele se torna bem pblico e legado de um coletivo de

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 68

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    i ndivduos. Esta uma operao complexa que envolve diversos agentes especial-mente treinados com a finalidade de uma construo especial de valor.

    Os bens patrimonializados so considerados sagrados para uma cultura ou um grupo social organizado. Richard Handler descreve a fora da patrimonializao no Oci-dente moderno para tornar palpveis e materializveis ideias muito abstratas, de difcil assimilao, como a ideia de nao. Referindo-se ao caso do Quebec, Handler usa a expresso fetichismo da cultura material para aludir ao patrimnio como identificador de coletivos de indivduos como culturas, naes e humanidade. Neste contexto, ter um patrimnio passou a significar uma certificao cultural ou uma certificao nacional.

    Eu procuro explicar o que poderia ser chamado de fetichismo da cultura mate-rial que tanto anima os governantes, cidados e curadores de museus em seu af de preservar seus patrimnios. Qual patrimnio uma coleo particular representa frequentemente uma questo em aberto; mas a ideia de que um objeto ou uma cultura material podem sintetizar uma identidade coletiva e a sintetizando, serem considerados como propriedade de uma coletividade raramente colocada em questo. [...] em Quebec o patrimnio um termo comum de uso popular e central no discurso nacionalista. Falar de patrim-nio visualizar uma cultura nacional como propriedade, e a nao como uma propriedade pertencente a um indivduo coletivo, para usar a terminologia de Dumont [...]1.

    Handler refere-se criticamente a este processo mencionando um excesso de objeti-ficao das culturas que os museus, notadamente os museus etnogrficos, acaba-ram promovendo. Exibindo artefatos culturais, os museus acabaram criando a iluso de que, ao vermos estes objetos, estaramos vendoz as culturas neles representadas. O comentrio de Handler interessante tambm para percebermos o sentido e o alcance dos patrimnios no Ocidente moderno. Num mundo organizado em estados-naes, patrimnios servem para identificar e expressar tanto as singularidades de cada um como para marcar as diferenas entre eles. Dois conceitos so decisivos nesta configurao: originalidade e autenticidade.

    1. Iseektoexplicatewhatmightbecalledthefetichismofmaterialculturethatanimatesgovern-ments,citizens,andamuseumscuratorsalikeintheirzealtopreservetheirheritage.Whoseheritageaparticularcollection represents isoftenopen toquestion;but the idea thatobjects,ormaterialculture,canepitomizecollectiveidentity-and,epitomizingit,beconsideredasthepropertyofthecollectivity-israrelydisputed.()InQuebec,lepatrimoineisatermcommoninpopularusageandcentralinnationalistdiscourse.Tospeakofthepatrimoineistoenvisionnationalcultureasproperty,andthenationasproperty-owningcollective-individual,touseDumontsterm(1971)[].(Handler,1985,p.192-218)[traduolivredaautora]

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 69

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    Podemos, pois, falar em processos de patrimonializao como um movimento pr-prio do Ocidente moderno, com a criao de agncias nacionais e internacionais, a formao de agentes, a definio de polticas pblicas. Trata-se de um campo com muitas disputas e um circuito prprio de circulao de ideias, prticas, artefatos, profissionais. Fazendo um esforo de sntese, podemos apresentar a trajetria dos processos de patrimonializao em trs grandes momentos. No primeiro, que vai do sculo xix primeira metade do sculo xx, os processos de patrimonializao fundamentavam-se na reconstruo do passado (histria) ou na busca e valorizao de uma arte nacional. No segundo, cujo marco fundamental foi a criao da UNESCO nos anos 1940, uma nova e importante varivel absorvida pelos processos de patri-monializao: o conceito antropolgico de cultura. importante ressaltar que o pro-jeto de criao desta agncia internacional esteve ligado diretamente busca da paz entre as naes aps duas guerras mundiais. A noo de que os homens eram seres biologicamente semelhantes e que poderiam marcar suas diferenas pela cultura foi apropriada como um dos fundamentos da UNESCO em que a meta seria a troca e o intercmbio entre as culturas para uma maior aproximao e, consequentemente, um maior entendimento entre os seres humanos. O terceiro momento tem incio no final dos anos 1980, particularmente com o lanamento pela UNESCO da Reco-mendao de Salvaguarda das Culturas Tradicionais e Populares em 1989, quando as polticas preservacionistas passam a ser normatizadas por fruns internacionais, com a predominncia da UNESCO, estimulando uma dinmica globalizada de iden-tificao, proteo, difuso e circulao de valores e signos patrimoniais. neste perodo que se implanta o que estou chamando de tendncia patrimonializao das diferenas, em que a palavra de ordem, capitaneada sobretudo pela UNESCO, que, num mundo com tendncia crescente homogeneizao protagonizada pelo capitalismo globalizado e neoliberal, preciso preservar, ou seja: conceder especial ateno noo de singularidade ou de especificidade local.

    O tema do patrimnio imaterial ou intangvel emerge com especial destaque e mui-tos dos estados-membros colocaro em prtica polticas pblicas especialmente vol-tadas para esta modalidade de patrimonializao. Mas a grande novidade advinda neste perodo que o campo da patrimonializao abarcar dilogos em rede entre representantes de novos organismos agncias locais, nacionais e internacionais e, sobretudo, movimentos sociais, organizaes no-governamentais, coletivos de indivduos oriundos de camadas populares e um sem nmero de sujeitos coletivos favorecidos pelas novas tecnologias, trazendo um novo elemento como contra-ponto para a quase exclusividade das instituies estatais neste domnio at ento. preciso sublinhar que estes novos agentes foram tomando a cena pblica, expres-sando interesses variados e s vezes muito especficos. A partir dos anos oitenta do sculoxx, podemos falar na era das organizaes no-governamentais, cujas repre-

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 70

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    sentaes foram legitimadas, e mesmo desejadas, pelos fruns internacionais, como os fruns promovidos pela UNESCO e pelos governos democrticos em diversos pa-ses. O campo da patrimonializao adquiriu novo dinamismo e a poltica passou a se fazer no corpo a corpo das agncias. E neste contexto que muitas novidades viro, entre elas, a entrada na cena pblica de segmentos sociais antes invisveis, oriundos das camadas populares e de sociedades tradicionais.

    A nova dinmica da patrimonializao das diferenas vai estimular um amplo sistema de informaes numa esfera global. Inventrios, bancos de dados, listas intermin-veis de bens preservados ou passveis de preservao passaram a ser elencados por um contingente crescente de profissionais especialmente formados para traba-lhar em processos de patrimonializao. As universidades e os centros de formao ampliaram os cursos e as especializaes para qualificar novos agentes do patri-mnio, dos museus, da memria. Registramos uma demanda crescente das insti-tuies e agncias por profissionais neste setor e tambm um mercado cada vez mais atraente para jovens em incio de carreira. Podemos dizer que, numa esfera global, o campo do patrimnio vem se profissionalizando e inovando de maneira sur-preendente. Especialmente as polticas pblicas voltadas para patrimonializao de aspectos culturais imateriais ou intangveis vm absorvendo profissionais das reas de cincias humanas, especialmente jovens antroplogos recm-sados dos cursos de graduao ou ps-graduao para a preparao de dossis, projetos de inventrio e registro de manifestaes culturais especficas e singulares.

    Registramos tambm uma tendncia crescente de dissertaes e teses de mestrado e doutorado focalizando temas relacionados patrimonializao em programas de ps-graduao na rea de cincias humanas, especialmente antropologia social e histria cultural, ou em programas interdisciplinares como o de memria social no Brasil e em programas especficos em torno da temtica de memria e patrimnio em diversos pases.

    Foram tambm criadas redes e fruns de discusso na internet de pesquisadores e profissionais do campo do patrimnio congregando significativo nmero de adeptos. Por seu turno, as novas tecnologias dos suportes informacionais passaram a con-tribuir para a produo e gerncia da catalogao e documentao das diferenas culturais, seja por parte das agncias estatais consagradas ao campo, seja por parte dos museus, bibliotecas, arquivos ou ainda organizaes no-governamentais, uni-versidades, redes sociais. A disponibilizao de portais e sistemas informacionais na web gerou tambm uma nova rea cunhada de patrimnio digital. A partir da tecno-logia das redes informacionais, uma nova onda patrimonial foi posta em marcha, com a criao de novos suportes de preservao e memria (Dodebei, 2008).

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 71

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    O fenmeno da patrimonializao das diferenas pode ser descrito como uma rea em ebulio e, num certo sentido, como uma rea de excesso. O excesso de deman-das de patrimonializao convive com polticas de distino, principalmente com a implantao das listas com vrias gradaes: lista dos patrimnios imateriais ame-aados; lista dos patrimnios mundiais; lista das obras-primas do patrimnio oral e imaterial da humanidade. Se, de um lado, no plano dos inventrios, da catalogao, da documentao, os processos de patrimonializao so inclusivos, no plano das listas, a corrida para candidaturas muitas vezes acirra disputas e tenses entre orga-nismos governamentais e no-governamentais em todos os cantos do globo. Outra caracterstica da atual configurao que no basta mais cada estado-nao consti-tuir seu prprio patrimnio, como ocorria at princpios do sculoxx. Agora, preciso tornar patrimnios especficos e singulares visveis globalmente por meio da web. E, num contexto com excesso de informao (ou de patrimonializao), aqueles que se destacam e se distinguem com o selo de patrimnio mundial ou de obra-prima do patrimnio oral e imaterial da humanidade adquirem maior visibilidade, pois figuram no portal da UNESCO e em programas variados de difuso, o que certamente abre e fortalece projetos e demandas de mercantilizao das culturas.

    A importncia que a visibilidade na web adquiriu para o campo do patrimnio pode ser exemplificada pelo caso das patrimonializaes das cidades. A corrida para a obteno do selo de patrimnio mundial concedido pela UNESCO desencadeou expectativas as mais diversas num mundo mercantilizado, onde se destacou o cres-cimento da indstria do turismo. Em finais dos anos 1980, o nmero de cidades dis-tinguidas como patrimnio mundial era de setenta e uma, enquanto, em finais dos anos 1990 (apenas dez anos depois), este nmero se elevou para cento e sessenta e quatro. O socilogo Paulo Peixoto comenta que to ou mais significativo quanto este crescimento o fato de a percentagem de cidades patrimnio mundial situadas na Europa ter passado, na ltima dcada do sculoxx, de 45,1%, em 1989, para 57,3%, em 1999. (Peixoto, 2012, 801-817)

    Podemos sintetizar assinalando que o campo do patrimnio na contemporaneidade constitui-se num campo assaz paradoxal: se, por um lado, abre-se uma comporta para um excesso de patrimonializao impulsionado pela poltica da patrimoniali-zao das diferenas como forma de combate homogeneizao neoliberal, bem como pelas novas tecnologias e os modernos sistemas informacionais, por outro lado, fortalece-se o movimento inverso estimulando aes de distino patrimonial, materializadas por meio dos selos de patrimnio mundial ou de obra-prima do patrimnio oral e imaterial da humanidade.

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 72

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    De qualquer modo, e por mais paradoxal que este fenmeno possa parecer, o que me parece crucial que estas duas modalidades de aproximao com o campo do patrimnio contriburam para disseminar e popularizar a categoria patrimnio. Em outras palavras, a categoria patrimnio caiu na boca do povo. Deixou de ser uma prerrogativa das elites ou das agncias estatais que representavam estas elites, para ser entronizada no senso comum, nos mais diversificados rinces do planeta. A von-tade de patrimonializar cresceu e se capilarizou no tecido social. E muitas tm sido as consequncias deste movimento: uma delas que patrimnio deixou de ser sinnimo de ouro, prata, bronze, coisa duradoura, para tambm contemplar a argila, o barro, o efmero. Outra consequncia que os processos de patrimonializao deixaram de ser atributo de algumas falas autorizadas legitimadas no aparelho de Estado para se converterem em falas plurais tecidas em redes em que interagem diversos agentes, entre os quais se destacam as organizaes no-governamentais, os especialistas, as comunidades, os patrocinadores, os agentes estatais.

    Uma caracterstica nova dos atuais processos de patrimonializao, especialmente aqueles ligados a bens culturais de sociedades tradicionais, que os grupos sociais ligados a estes bens que devem demandar a patrimonializao, ou pelo menos endossar as demandas de patrimonializao. Estas novas prticas, socialmente mais inclusivas, contrastam com prticas anteriores, principalmente quando a hegemonia do campo patrimonial se configurava como histrica e artstica, ficando ao encargo dos especialistas destas reas a constituio dos processos de patrimonializao. perceptvel o quanto estes processos deixaram de contemplar quase que exclusi-vamente reconstrues do passado para focalizarem manifestaes culturais vivas e pulsantes como festas, rituais, saberes, conhecimentos tradicionais. Neste movi-mento, os protagonistas dos bens passveis de serem patrimonializados entraram em contato com a lgica patrimonial. Muitos destes indivduos, integrantes de etnias indgenas e diversos grupos tradicionais, tiveram que se relacionar com a lgica da patrimonializao aprendendo que manifestaes culturais praticadas milenar-mente pelo grupo poderiam ganhar novos significados no contato com a sociedade nacional. Esta mudana de estatuto dos bens culturais, ao passarem pelo processo de patrimonializao, vem implicando tambm em mudanas de percepo, novos trnsitos e a transformao de vises de mundo numa perspectiva dialgica entre diferentes agentes. sobre este momento de ultracriatividade que o fenmeno da patrimonializao das diferenas engendra o que trata este artigo.

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 73

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    O papel decisivo da UNESCO

    J mencionamos o lugar hegemnico da UNESCO na nova configurao dos processos de patrimonializao. Numa ordem global, este lugar exercido de diferentes manei-ras, mas uma ferramenta tem se destacado: as recomendaes que, de tempos em tempos, a UNESCO lana, sugerindo aes e polticas pblicas aos estados-membros. evidente que cada estado-nao desfruta de autonomia para suas tomadas de deci-so, o que confere a estas recomendaes o carter de sugesto, mais do que de for-mulao de uma poltica para a rea. Entretanto, na prtica, grande tem sido o grau de adeso s formulaes desta agncia internacional. Neste contexto, importante destacar a Recomendao sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, lan-ada em 15 de novembro de 1989, documento que trouxe um conjunto de novas questes, desdobrado posteriormente na Declarao Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, de 2001, na Declarao de Istambul, de 2002, e na Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial, de 2003.

    A Recomendao para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, de 1989, apro-vada pela Conferncia Geral da UNESCO, configurou-se numa espcie de discurso fundador, colocando na ordem do dia uma nova diretriz: a identificao, a salva-guarda, a conservao, a difuso e a proteo da cultura tradicional e popular, por meio de registros, inventrios, suporte econmico, introduo de seu conhecimento no sistema educativo, documentao e proteo propriedade intelectual dos gru-pos detentores de conhecimentos tradicionais. A recomendao definia como cul-tura tradicional e popular:

    o conjunto de criaes que emanam de uma comunidade cultural fundadas sobre a tradio, expressas por um grupo ou por indivduos, e reconhecidas como respondendo s expectativas da comunidade enquanto expresso da sua identidade cultural e social, das suas normas e valores transmitidos oralmente, por imitao ou por outros meios. As suas formas compreendem, entre outras, a lngua, a literatura, a msica, a dana, os jogos, a mitologia, os rituais, os cos-tumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes. (UNESCO, 1989)

    Os documentos da UNESCO, neste perodo, vo enfatizar a enorme perda cultural para indivduos, pases e para a humanidade advinda das mudanas drsticas pro-duzidas pelo capitalismo em sua feio globalizada. Uma preocupao recorrente consistia em salvar tradies culturais em acelerado processo de desaparecimento. Um dos documentos trazia a imagem metafrica de perdas importantes para a huma-nidade, caso no fossem imediatamente postos em prtica programas e polticas pblicas de valorizao e de registro da cultura tradicional e popular: em sociedades

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 74

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    tradicionais, quando um ancio morre, muitas vezes uma biblioteca inteira que se queima.

    Por outro lado, na dinmica de encontros da UNESCO, emergiam diferentes relatos de modos de preservao e polticas de patrimonializao abrindo novas perspecti-vas. Uma das experincias mais marcantes neste sentido relacionava-se vertente oriental, especialmente vertente japonesa de poltica patrimonial, voltada para a preservao dos processos e do saber-fazer, mais do que para a preservao dos produtos como objetificao de ideias abstratas como cultura, nao ou um cole-tivo de indivduos. Desde os anos cinquenta do sculo passado, este pas possui uma legislao especfica voltada ao estmulo da transmisso do saber-fazer incenti-vando grupos e pessoas que so guardies de tradies culturais relevantes. O pro-cesso de patrimonializao, neste sentido, relaciona-se ao estmulo da transmisso, ou seja, implica aspectos performticos decorrentes de vivenciar uma experincia do fazer de novo e do mesmo modo, ou seja, seguindo as mesmas tcnicas, de modos de fazer milenares, seja uma casa, uma festa, um arranjo floral, um estilo de escrita, uma maneira de tingir tecidos e assim por diante. Este processo de patrimoniali-zao diferia bastante do processo de patrimonializao que at ento o Ocidente conhecia e que consistia em tirar da circulao um determinado objeto, auferir-lhe um especial estatuto, proteg-lo das intempries do tempo e deix-lo visvel para um amplo pblico, seja num espao pblico, quando se trata de bens imveis como igrejas, templos ou palcios, seja num museu, quando se trata de um bem mvel. A diferena aqui no tanto a questo da materialidade ou da imaterialidade do bem patrimonializado, mas fundamentalmente das diferentes maneiras de patrimonializar e das diferentes consequncias que este processo envolve.

    O documento que coroou esta nova perspectiva da UNESCO, surgida a partir da recomendao de 1989, foi a Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial, de 2003. Neste documento, havia algumas ideias-chave que norteariam o campo do patrimnio no milnio que se iniciava: primeiro, a nfase recaa no mais em cultura tradicional e popular, mas em patrimnio cultural imaterial; segundo, associava-se este patrimnio cultural imaterial noo de desenvolvimento sus-tentvel, ou seja, o patrimnio cultural imaterial como fonte de diversidade cultural e garantia de desenvolvimento sustentvel. Tratava-se de uma mudana signifi-cativa: longe de salvaguardar a cultura tradicional e popular como resqucios ou remanescentes do passado, a inteno aqui era estimular que os estados-membros encontrassem mecanismos para patrimonializar a cultura tradicional e popular, pois esta seria a fonte de um estilo de desenvolvimento que se queria promover: desenvolvimento com sustentabilidade e com diversidade cultural. Percebia-se tam-bm uma grande nfase na noo de humanidade e numa vertente universalista da

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 75

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    patrimonializao. No se tratava apenas de patrimonializar aquilo que distinguia um coletivo de indivduos de outro, ou seja, de marcar os patrimnios culturais imateriais como nacionais. O documento partia de uma vontade universal e da preocupao comum de salvaguardar o patrimnio cultural da humanidade e entendia que as comunidades, em especial as indgenas, os grupos e, em alguns casos, os indiv-duos, desempenham um importante papel na produo, salvaguarda, manuteno e recriao do patrimnio cultural imaterial, assim contribuindo para enriquecer a diversidade cultural e a criatividade humana.

    A Conveno de 2003 define patrimnio cultural imaterial como as prticas, repre-sentaes, expresses, conhecimentos e tcnicas junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes so associados que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimnio cultural. Este patrimnio cultural imaterial, que se transmite de gerao em gerao, constantemente recriado pelas comunidades e grupos em funo de seu ambiente, de sua interao com a natureza e de sua histria, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito diversidade cultural e criatividade humana. Segundo esta mesma Con-veno, este patrimnio cultural imaterial se manifesta nos campos das tradies e expresses orais, incluindo o idioma como veculo do patrimnio cultural imaterial, expresses artsticas, prticas sociais, rituais e atos festivos; conhecimentos e prti-cas relacionados natureza e ao universo, tcnicas artesanais tradicionais.

    Aps a definio do objeto da Conveno, o documento estipula como atribuio para os estados-membros adotar as medidas necessrias para garantir a salva-guarda do patrimnio cultural imaterial presente em seu territrio. Por fim, espe-cial destaque conferido participao das comunidades, grupos e organizaes no-governamentais pertinentes na identificao e definio dos diversos elemen-tos do patrimnio cultural imaterial presentes em territrios nacionais. Este novo agenciamento dos processos de patrimonializao a um conjunto de agentes sociais marca uma distncia com relao a antigos procedimentos, quando os processos de patrimonializao eram atribuio de agentes estatais e especialistas. Esta uma mudana, a meu ver, altamente significativa, pois vai alterar os mecanismos, os ritos e fundamentalmente as correlaes de poder. O campo do patrimnio a partir de ento dever integrar organismos do Estado e da sociedade civil.

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 76

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    Ressonncias

    A Conveno entrou em vigor em 20 de abril de 2006 para os estados que haviam depositado seus respectivos instrumentos de ratificao, aceitao, aprovao ou adeso em 20 de janeiro de 2006 ou anteriormente. Para os demais estados, ficou estipulado que a Conveno entraria em vigor trs meses depois de efetuado o dep-sito de seu instrumento de ratificao, aceitao, aprovao ou adeso. Eram ento considerados estados-partes da Conveno aqueles que ratificaram a Conveno. Estes esto divididos em cinco grupos: frica; Estados rabes; sia e Pacfico; Europa e Amrica do Norte; Amrica Latina e Caribe. At o incio de 2012, cento e quarenta e dois estados j haviam ratificado a Conveno. O primeiro deles foi a Arglia, enquanto o ltimo foi o Cazaquisto (abril de 2012). O Brasil ocupa a trigsima stima posio, tendo ratificado a Conveno em um de maro de 2006. (UNESCO, 2012a)

    Entretanto, alguns dados revelam diferentes ressonncias com relao participa-o dos estados no projeto da UNESCO. Analisando a lista de patrimnio imaterial, verificamos que, no momento, apenas noventa pases participam de processos de patrimonializao, o que significa que, embora signatrios, cinquenta e dois pases ainda no se mobilizaram efetivamente para participar do projeto. Os motivos so diversos. O pesquisador Ismail Ali El-Fihail, do Departamento de Patrimnio Intangvel da Unio dos Emirados rabes Abu Dhabi, United Arab Emirates (UAE), em comuni-cao durante o Colquio Local Vocabularies of Heritage. Variabilities, Negotiations, Transformations, ocorrido em 8 a 10 de fevereiro de 2012, na Universidade de vora, comentou, por exemplo, que a reao dos pases que formam o mundo rabe Con-veno foi muito desigual. Enquanto a Arglia foi o primeiro pas do mundo a ratificar a Conveno, trs importantes pases rabes levaram seis anos para dar o mesmo passo. Quatro outros pases rabes ainda no so signatrios da Conveno, entre eles, Bahrain e Kuwait. Ironicamente, a Lbia estava prestes a ratificar a Conveno antes da queda do regime de Gadaffi, mas agora o assunto ainda precisa ser mais trabalhado. A Somlia tambm no ratificou a Conveno e pode continuar a no se posicionar com relao a este tema devido guerra civil em curso. Estes exemplos podem ser indcios de que, em pases com governos pouco democrticos ou em situ-ao de instabilidade social e poltica, a ressonncia para a Conveno da Proteo ao Patrimnio Imaterial seja pequena ou mesmo inexistente.

    No portal da Conveno, so sugestivas as notcias de fomento a comunidades tradicionais como forma de estimular um aumento da participao no projeto. Na frica, por exemplo, foi criada uma Escola do Patrimnio Africano e a UNESCO tem procurado realizar aes nesta escola com apoio de um Fundo Internacional para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural. O objetivo trabalhar numa ao conjunta de

  • 77

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    sensibilizao dos estados nacionais e de fortalecimento do papel das comunidades nos assuntos de patrimonializao. Segundo o texto publicado no portal da Conven-o, o objetivo da sensibilizao atravs de oficinas destacar o papel dos estados na adoo das medidas necessrias para garantir a salvaguarda do patrimnio cul-tural imaterial em seus territrios, tais como a adoo de uma poltica geral, a desig-nao de organismos competentes, o fomento de estudos cientficos e a adoo de medidas legais, tcnicas e administrativas apropriadas. O papel das comunidades na identificao e transmisso do patrimnio cultural imaterial ocupa tambm um lugar destacado, assim como a importncia para salvaguardar o patrimnio cultural imaterial para o desenvolvimento sustentvel e a coeso social. (UNESCO, 2012b)

    Em 27 de janeiro de 2012, o portal da Conveno noticiou que mais de um milho de dlares americanos haviam sido colocados disposio para assegurar esfor-os de salvaguarda do patrimnio imaterial em oito pases da regio da sia e do Pacfico (Buto, Camboja, Monglia, Nepal, Papua Nova Guin, Samoa, Sri Lanka e Timor Oriental). Como justificativa para esta ao, a UNESCO reiterava que a enorme riqueza das prticas culturais, os sistemas de conhecimento e os rituais existentes na regio se encontram ameaados. Que a salvaguarda do patrimnio vivo se faz cada vez mais necessria para o desenvolvimento sustentvel dos pases implicados, e que o patrimnio imaterial influi no bem-estar das pessoas, nas suas relaes com as demais e com seu entorno natural, alm de dotar as comunidades de um sentido de pertencimento e favorecer a coeso social. Com recursos da Noruega para o Fundo, outro projeto em andamento centra-se no desenvolvimento dos conhecimentos e da capacidade institucional em pases da sia Central, e pases africanos de fala portu-guesa e do Caribe. Para fomentar o projeto no Cazaquisto, representantes de organi-zaes governamentais e no-governamentais, instituies acadmicas e educativas e as comunidades recebero uma formao sobre a aplicao da Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial de 2003 em nvel nacional, com recursos provenientes de vrios pases, entre eles Bulgria, Chipre, Flandres (Blgica), Hungria, Japo, Noruega, Repblica da Coreia, Espanha, Emirados rabes e Unio Europeia.

    A trajetria da patrimonializao das diferenas no Brasil

    O Brasil promulgou a Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial em 12 de abril de 2006 pelo Decreto n. 5.753, assinado pelo ento ministro das Rela-es Exteriores, Celso Amorim, e o ento presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva. importante chamar a ateno para a conjuntura favorvel que se criou no pas a partir do processo de redemocratizao iniciado no final dos anos 1980 e que

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 78

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    consolidou uma crescente participao da sociedade civil no governo, sobretudo das camadas populares durante o perodo de governo do presidente Lula (2003-2010). Na rea da cultura, tendo frente o ministro Gilberto Gil, um novo Plano Nacional de Cultura foi formulado e pactuado entre diversos setores, com a realizao de in-meros fruns de discusso por todo o pas. H que se registrar a criao, em 2003, da Secretaria da Diversidade e Identidade Cultural no contexto deste Ministrio que visava, entre outras aes, democratizar o acesso aos mecanismos de apoio, pro-moo e intercmbio cultural entre as regies e grupos culturais brasileiros, consi-derando caractersticas identitrias por gnero, orientao sexual, grupos etrios, tnicos e da cultura popular.

    Uma das metas desta Secretaria, em consonncia com a plataforma do prprio governo, consistia em estimular aes para que a cultura se tornasse ferramenta efe-tiva de desenvolvimento sustentvel em microrregies do pas. Levando em conta o tamanho do territrio brasileiro e as histricas desigualdades regionais no que tange ao acesso cultura e ao desenvolvimento, a criao desta Secretaria reforava uma poltica do Ministrio da Cultura de incluso social e construo da cidadania. Lem-bremos do slogan do governo Lula, Brasil, um pas de todos. Lembremos tambm que o regime federativo no Brasil implicou historicamente em dissimilitudes com rela-o ao alcance de polticas pblicas nacionais, inclusive no que tange ao campo da patrimonializao. Lembremos ainda que, no bojo do processo de redemocratizao do pas, a partir dos anos 1980, novas formas de financiamento das aes culturais, inclusive relativas s polticas de patrimonializao, entraram em cena. Ficou popu-larmente conhecido como leis da cultura um conjunto de medidas para estimular o mecenato e o investimento da rea privada em projetos culturais. O papel do Estado na rea da cultura foi completamente redefinido. De grande promotor e financiador da cultura, o governo brasileiro passou ao papel de estimulador e regulador da entrada do capital privado por meio de mecanismos de renncia fiscal. (Abreu, 2010, p. 163-203)

    neste contexto de redemocratizao e no interior de um Estado em pleno processo de reforma e redefinio de seu papel que uma das instituies mais prestigiadas do pas, o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional Iphan traou seus novos rumos. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), j havia sido criado um programa voltado para a patrimonializao do imaterial, como consequncia direta da Recomendao para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular lanada em 1989. Para debater a Recomendao, um grupo de profissionais do Iphan reuniu-se na cidade de Fortaleza, no Cear, ali formulando um documento e uma proposta de ao. A conjuntura era altamente favorvel, um ano aps a promul-gao da nova Constituio brasileira de 1988. Esta nova carta magna brasileira, no artigo 216, j havia ampliado a definio de patrimnio cultural brasileiro:

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 79

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    [...] bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em con-junto, portadores de referncia identidade, ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expresso; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criaes cientficas, artsticas e tecnolgicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificaes e demais espaos destinados s manifestaes artstico-culturais; V - os conjun-tos urbanos e stios de valor histrico, paisagstico, artstico, arqueolgico, pale-ontolgico, ecolgico e cientfico. [A mesma carta magna (art. 216 pargrafo 1) apontava caminhos para os processos de patrimonializao, entendendo como dever do Poder Pblico] com a colaborao da comunidade, promover e pro-teger o patrimnio cultural brasileiro, por meio de inventrios, registros, vigi-lncia, tombamento e desapropriao, e de outras formas de acautelamento e preservao. (Brasil, 1988)

    Como consequncia direta, criou-se, em 4 de agosto de 2000, por meio do Decreto Federal n. 3.551, o Programa Nacional de Patrimnio Imaterial com o objetivo de viabilizar projetos de identificao, reconhecimento, salvaguarda e promoo da dimenso imaterial do patrimnio cultural. Observemos que este programa nasce como um programa de fomento que busca estabelecer parcerias com instituies dos governos federal, estadual e municipal, universidades, ONGs, agncias de desen-volvimento e organizaes privadas ligadas cultura, pesquisa e ao financiamento. (Iphan, 2012) O Decreto Federal n. 3.551 tratava de estimular a prpria sociedade a construir uma mentalidade de promoo e proteo ao patrimnio imaterial, pro-pondo aes e estabelecendo parcerias. Este aspecto me parece central, pois reflete o esprito dos novos tempos, em que o Estado aparece como fomentador e regulador de uma poltica que deve necessariamente envolver vrios setores da sociedade: as comunidades, os especialistas, as organizaes no-governamentais, as empresas privadas, as universidades.

    O Decreto n. 3.551 instituiu dois mecanismos de valorizao dos chamados aspec-tos imateriais do patrimnio cultural: o inventrio dos bens culturais imateriais e o registro daqueles considerados merecedores de uma distino por parte do Estado. Foram considerados bens culturais imateriais, as festas, celebraes, narrativas orais, danas, msicas, modos de fazer artesanais, enfim, um conjunto de expres-ses culturais que no estavam contempladas nas polticas patrimoniais at ento, predominantemente voltadas para o patrimnio material. Segundo Marcia SantAnna (2009), uma das formuladoras deste programa, o objetivo do Programa Nacional do Patrimnio Imaterial consistiu em implementar uma poltica de identificao, inventrio e valorizao desse patrimnio. Foram institudos livros para inscrever os bens a serem registrados (patrimonializados), respectivamente, Livro de Registro dos

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 80

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    Saberes (para o registro de conhecimentos e modos de fazer); Livro de Registro das Celebraes (para as festas, os rituais e os folguedos), Livro das Formas de Expres-so (para a inscrio de manifestaes literrias, musicais, plsticas, cnicas e ldi-cas), e Livro dos Lugares (destinado inscrio de espaos onde se concentram e se reproduzem prticas culturais coletivas).

    Paralelamente, o Iphan desenvolveu uma metodologia de inventrio de referncias culturais instrumento para subsidiar as aes de registro e realizar um recense-amento mais amplo das manifestaes culturais do pas. Nas palavras de Marcia SantAnna (2009, p. 56):

    O Inventrio Nacional de Referncias Culturais (INRC) um instrumento de pesquisa que busca dar conta dos processos de produo desses bens, dos valores neles investidos, de sua transmisso e reproduo, bem como de suas condies materiais de produo. Operando com o conceito de referncia cul-tural, o INRC supera a falsa dicotomia entre o patrimnio material e o imaterial, tomando-os como faces de uma mesma moeda: o patrimnio cultural.

    Com este programa nacional de patrimnio imaterial, o Iphan antecedeu-se Con-veno de Salvaguarda do Patrimnio Imaterial da UNESCO de 2003. Quando, em 2006, o Brasil ratificou a Conveno, aes concretas j estavam em andamento para a promoo e proteo do patrimnio cultural imaterial brasileiro.

    Tendo em vista que o aspecto substantivo destas aes era de fomento e estmulo ampla participao da sociedade para a demanda de patrimonializaes (registros) e a realizao de inventrios (INRC), novos elementos emergiram na dinmica dos processos de patrimonializao. Um destes elementos consistiu na mencionada par-ticipao da comunidade ou grupo social envolvido com a referncia cultural inventa-riada ou candidata patrimonializao. J vimos que a tnica nos programas tanto no nvel internacional quanto no caso brasileiro enfatizavam a participao popular nos programas de patrimonializao. Percebe-se, portanto, uma inteno clara de reco-nhecimento do protagonismo social dos grupos envolvidos. A prpria Constituio brasileira de 1988, em seu artigo 215, assinala o papel do Estado como protetor das manifestaes das culturas populares, indgenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatrio nacional.

    Outro elemento importante relaciona-se ao papel dos especialistas, notadamente dos antroplogos, nas aes referentes patrimonializao nesta nova configura-o. Aos antroplogos era destinada uma funo importante no assessoramento aos grupos sociais detentores das manifestaes culturais a serem inventariadas ou

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 81

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    registradas. O prprio mtodo do INRC foi criado tendo por base uma experincia piloto coordenada por um antroplogo, Antnio Augusto Arantes, em Porto Seguro, na Bahia, em 1999. A metodologia de pesquisa proposta inspira-se fortemente na tradio dos estudos antropolgicos, sendo previstos: um levantamento preliminar, quando so realizadas pesquisas em fontes secundrias e em documentos oficiais, seguido de entrevistas com a populao e contatos com instituies, propiciando um mapeamento geral dos bens existentes num determinado stio e a seleo dos que sero identificados. Nesta fase, identificam-se os aspectos bsicos dos processos de configurao da manifestao, seus executantes, seus mestres, seus aprendizes e seu pblico, assim como suas condies materiais de produo (matrias-primas e acesso a estas, recursos financeiros envolvidos, comercializao, distribuio, entre outros). Esta etapa inclui uma documentao por meio de registro audiovisual. O estgio seguinte, relacionado ao registro, isto patrimonializao propriamente dita, corresponde a um trabalho tcnico, mais aprofundado, de natureza eminente-mente etnogrfica. (Santanna, 2009, p. 57)

    Como assinalou Maria Ceclia Londres Fonseca, uma das formuladoras do Programa Nacional do Patrimnio Imaterial e consultora do Ministrio da Cultura na ocasio, o que est sendo patrimonializado neste caso no so bens materiais, edificaes, stios e obras de arte, mas fundamentalmente, narrativas ou ainda uma formao discursiva que permite mapear contedos simblicos, visando a descrever a forma-o da nao e constituir uma identidade cultural brasileira. (Fonseca, 1997, p. 209) Neste caso, portanto, o que est sendo inventariado e passvel de ser inscrito no livro de registros do patrimnio cultural brasileiro uma materialidade discursiva, por meios escritos ou audiovisuais que sero posteriormente transformados em bits e inscritos no portal do Patrimnio Cultural Imaterial brasileiro e, em alguns casos, no portal do Patrimnio Cultural da UNESCO, em suas listas de patrimnios da humani-dade. Esta produo discursiva complexa implica uma srie de agenciamentos entre os especialistas, grande parte antroplogos, e as comunidades e seus representan-tes. Com relao a estes ltimos, h que se levar em conta que as comunidades raramente apresentam caractersticas de homogeneidade e unidade, o que significa travar contato com um mundo pleno de clivagens, hierarquias e tenses. H ainda outros elementos que passam a integrar esta nova dinmica de patrimonializao: os patrocinadores, os poderes pblicos locais e nacionais e outras instituies e agncias como as universidades, as instituies no-governamentais, as associa-es comunitrias.

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaNotaATENO!!!

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 82

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    A construo dos dossis: patrimonializando uma cultura indgena, o caso Wajpi

    No dia 4 de agosto de 2002, o Iphan conferia o ttulo de patrimnio cultural do Brasil arte Kusiwa pintura corporal e arte grfica Wajpi, dos ndios Wajpi do Estado do Amap, registrando esta manifestao cultural no Livro dos Saberes. O certificado da titulao constitui uma espcie de sntese de um extenso dossi contendo docu-mentos textuais, bibliogrficos e audiovisuais produzido pela antroploga Dominique Tilkin Gallois (2006) com apoio de outros pesquisadores do Ncleo de Histria Ind-gena e do Indigenismo da Universidade de So Paulo (NHII/USP) e com a colabora-o dos assessores do Programa Wajpi desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa e Formao Indgena/Iep. A iniciativa da candidatura ao Programa Nacional do Patri-mnio Imaterial correspondia a uma solicitao expressa dos principais chefes e professores indgenas, representados no Conselho das Aldeias Wajpi/Apina com o qual o Museu do ndio (instituio vinculada ao governo federal) vinha mantendo parceria desde 2001, no mbito da preparao e montagem da exposio Tempo e Espao na Amaznia: os Wajpi. (Gallois, 2005, p. 110-129; Abreu, 2012)

    Esta sntese do dossi expressa peculiar esforo de traduo cultural e de descrio de uma manifestao cultural exercida no cotidiano das aldeias Wajpi. A arte Kusiwa definida, em poucas palavras, como um sistema de representao, uma linguagem grfica dos ndios Wajpi do Amap que sintetiza seu modo particular de conhecer, conceber e agir sobre o universo. Ainda segundo este documento, o sistema grfico Kusiwa opera como um catalisador para a expresso de conhecimentos e prticas que envolvem relaes sociais, crenas religiosas e tecnologias, at valores estticos e morais. A arte Kusiwa tambm considerada como uma arte grfica de excepcio-nal valor, funcionando como um conhecimento complementar arte verbal ou aos relatos orais do grupo indgena. Ou ainda uma prtica permanentemente interativa, viva e dinmica. Trata-se de um acervo cultural que se transforma de forma dinmica, com a incluso de novos elementos, enquanto outros podem entrar em desuso ou se modificar atravs de suas variantes. A descrio contabiliza vinte e um padres utilizados, que representam partes do corpo ou da ornamentao de animais, como sucuris, jiboias, onas, jabotis, peixes, borboletas; e objetos, como limas de ferros e bordunas e que podem ser combinados de muitas maneiras diferentes.

    O registro patrimonial diz ainda que o grafismo tradicionalmente utilizado como pin-tura corporal, por prazer esttico e desafio criativo em atividades do cotidiano, reali-zada no mbito familiar. Sendo uma tradio viva, modificaes ocorrem de tempos em tempos. Diz ainda o documento que a arte Kusiwa, antes reservada apenas ao corpo, est sendo aplicada pelos Wajpi a um conjunto variado de suportes. Fazem

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 83

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    desenhos nas peas de cermica destinada venda, decoram suas cuias com moti-vos incisos, utilizados tambm na tecelagem de bolsas e tipoias e no tranado de seus cestos. O uso do papel e de canetas coloridas constitui-se num campo novo e muito apreciado para esta expresso cultural. Mas tradio utilizar recursos da flo-resta como sementes de urucum, leo de andiroba, gordura de macaco, carvo para a obteno das trs cores utilizadas: o vermelho claro, o preto azulado, o vermelho escuro. (Iphan, 2002)

    O registro explicita que a descrio sinttica apresentada corresponde ao con tedo de um processo administrativo mais amplo, no qual se encontra reunido o mais completo conhecimento sobre este bem cultural, contido em documentos textuais, bibliogrficos e audiovisuais e que o presente registro est de acordo com a deciso proferida na trigsima oitava reunio do Conselho Consultivo do Patrimnio Cultural.

    Tomando por base a literatura sobre processos de patrimonializao, na qual se chama a ateno para a mudana de estatuto de um bem cultural que sai de circu-lao em certa esfera para adquirir significados simblicos em outra, as perguntas que podemos fazer so: O que muda em casos como este? Quais as novidades des-tes processos de patrimonializao com relao queles existentes para a cultura material? E o que permanece sob novas roupagens? Uma primeira observao que, neste caso, o bem cultural no sai de circulao, ou seja, no perde seu valor de uso para usar a expresso de K. Pomian. (1997, p. 51-87) Mas, efetivamente, ele adquire um valor simblico que antes no encarnava, mesmo continuando a ser amplamente usado no cotidiano. A patrimonializao envolve uma dimenso valora-tiva ainda que a atividade consagrada componha o simples dia a dia das aldeias e que no se pretenda alterar este ritmo. Como salienta o documento referente ao certifi-cado de registro, as pinturas aplicadas no corpo no so tatuagens, nem decalques, nem so marcas tnicas ou smbolos rituais, mas so simplesmente uma tradio por prazer esttico e desafio criativo, realizada por todos das aldeias homens, mulheres, crianas em atividades cotidianas. (Iphan, 2002)

    Esta dimenso valorativa a mesma que o Iphan confere s igrejas barrocas de Ouro Preto, ao edifcio modernista do Palcio Gustavo Capanema, ao prdio do Museu Histrico Nacional. Trata-se de um ttulo honorfico e com alto grau de simbolismo. Por meio de um ritual que confere a este bem cultural o ttulo de patrimnio cultural do Brasil, sinaliza-se uma dimenso simblica de representao da nacionalidade. Neste sentido, a arte Kusiwa ganha o mesmo estatuto de proteo que qualquer bem material tombado. Ela investida desta aura simblica que identifica o bem cultural (parte) com o coletivo de indivduos (todo) e o indivduo coletivo que a nao representa. E esta aura simblica traz os ndios Wajpi da Amaznia para bem perto

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 84

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    de ns, os brasileiros. Somos todos Wajpi e festejamos com eles a conquista deste ttulo. Esta similitude aproxima a arte Kusiwa de tantos outros bens culturais nos quais reconhecemos o signo construdo do pertencimento nao brasileira. E por meio do Decreto n. 3.551/2000, a arte Kusiwa passa a ter o mesmo estatuto de pro-teo do Estado que no Brasil tem a coroa do imperador ou na Inglaterra as joias da Coroa. E este s o incio do processo, pois a mquina do Estado, uma vez acionada, gerar os desdobramentos previstos de difuso e construo de uma longa trajetria de acompanhamento do bem cultural patrimonializado.

    Mas aqui se coloca a questo: diferentemente das igrejas barrocas de Ouro Preto ou das joias da Coroa britnica, este bem cultural se mantm vivo no cotidiano das aldeias Wajpi. Ele no perdeu seu valor de uso. Como bem cultural vivo nas aldeias Wajpi, a memria desta tradio repassada cotidianamente entre os indgenas. E o grande paradoxo que, enquanto bem cultural patrimonializado, ele no pode mor-rer, ou seja, no pode deixar de ser uma tradio viva no cotidiano das aldeias. Quer dizer, no pode perder seu valor de uso sob pena de perder o ttulo. Alis, o ttulo tambm uma forma de proteo de que seu valor de uso no ser perdido. Neste sen-tido, como apontou Jean Davallon em conferncia recente, a poltica de patrimoniali-zao do imaterial est patrimonializando a memria de um grupo social. Caso este grupo decida, por algum motivo, abolir a prtica que foi patrimonializada, o objeto da patrimonializao perde o sentido. Desse modo, quero chamar a ateno para o fato de que o discurso, a narrativa construda para a patrimonializao de um bem cultural deste tipo constitui a primeira forma de sua proteo. neste momento que registra-se num livro especial, no caso dos Wajpi, no Livro dos Saberes, uma des-crio do bem cultural a ser certificado. Chamo a ateno para que no por acaso que registro o nome convencionado para a atribuio do ttulo de patrimnio cultural do Brasil a um bem cultural imaterial, distinguindo-se do dispositivo similar, tombamento para bens culturais materiais. O tombamento sinaliza que uma edificao ou um objeto no pode ser destrudo fisicamente. O registro sinaliza que uma primeira proteo foi estabelecida para que um bem cultural imaterial no desaparea da memria social. O registro uma forma de estimular a reativao de um bem cultural imaterial caso ele venha a sofrer a ameaa de desaparecimento.

    Bem, chegamos agora a alguns desdobramentos. Se o registro fundamental, ele implica uma traduo entre dois regimes culturais diferentes. A produo do dis-curso relativo ao inventrio e registro de um bem cultural imaterial necessita de tra-dutores para o dilogo entre a comunidade onde a manifestao cultural cultivada e a instituio que realiza a patrimonializao. Esta traduo, como fica visvel nos certificados da titulao, impe uma atitude reflexiva com relao ao bem cultural em processo de patrimonializao. As comunidades tradicionais, como, por exemplo,

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 85

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    a comunidade Wajpi, passar, a partir de ento, a trabalhar com duas modalidades de relao com o respectivo bem cultural. De um lado, vivenciando-o e mantendo a tradio em circulao no grupo e na memria social e, de outro lado, sistemati-zando-o discursivamente, isto , representando, por meio de linguagens audiovisuais, fotogrficas, digitais, aspectos desta tradio que devem ser permanentes. Como previsto que o bem cultural possa se modificar com o tempo, ele deve ser acompa-nhado por meio de alguns dispositivos, entre eles um plano de salvaguarda.

    Retomemos a trajetria da arte Kusiwa Wajpi. Segundo relato da antroploga Domi-nique T. Gallois (no prelo), em 2003, o Conselho das Aldeias Wajpi encaminhou, atravs do Museu do ndio Funai e do Ministrio da Cultura, sua candidatura 2a Proclamao das Obras-Primas do Patrimnio Oral e Imaterial da Humanidade, pro-pondo o desenvolvimento de um plano de salvaguarda intitulado Plano integrado de valorizao dos conhecimentos tradicionais para o desenvolvimento socioambiental sustentvel das aldeias Wajpi do Amap. Em novembro do mesmo ano, a UNESCO anunciou o resultado distinguindo as Expresses grficas e orais dos ndios Wajpi na lista das obras-primas do patrimnio oral e imaterial da humanidade. A comuni-dade indgena encheu-se de autoestima e festejou com alegria o feito de terem alcan-ado agora um ttulo internacional. Dominique T. Gallois (2005, p. 110-129) relata que as festas do prmio ocorreram na virada do ano, em cinco aldeias concomitante-mente, e nenhum karik (no ndio) foi autorizado a participar.

    ainda Dominique T. Gallois quem relata que o plano de salvaguarda foi elaborado em 2003/2004 por alguns chefes da aldeia, com a colaborao de professores, de alguns agentes de sade e com a sua assessoria. Um dos objetivos consistia em mobilizar as quarenta e oito aldeias Wajpi na valorizao dos saberes e prticas tra-dicionais. A estratgia escolhida pelos chefes indgenas foi a de organizar uma turma de pesquisadores Wajpi, recrutados em diversas aldeias, que deveriam ser forma-dos para auxili-los na discusso das transformaes em curso no modo de vida e para ajudar os professores a inserir, de forma adequada, a cultura wajpi na escola.

    A experincia com o plano de salvaguarda bastante ilustrativa das questes que envolvem a difcil tarefa da traduo cultural que a patrimonializao das diferenas envolve. De um lado, a dupla patrimonializao como patrimnio nacional e como patrimnio da humanidade encheu a comunidade Wajpi de orgulho. De outro lado, um longo e novo caminho se imps trazendo questes at ento impensadas. Refle-tindo sobre estas questes mais de dez anos depois, a antroploga Dominique T. Gallois nos traz algumas coisas boas pra pensar. Para se compreender a maneira pela qual os Wajpi apropriaram-se das novas polticas pblicas de patrimonializa-o, tanto no campo nacional quanto internacional, preciso retroceder um pouco

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 86

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    no tempo e entender o lugar que as comunidades indgenas conquistaram no Brasil a partir do processo de redemocratizao e da Constituio de 1988.

    A nova dinmica social no Brasil e os sujeitos de direito coletivo

    A nova configurao social e poltica que se produziu no Brasil no final dos anos 1980, e que se consolidou com a promulgao de uma nova Constituio em 1988, afetou diversos campos, entre eles, o campo do patrimnio, principalmente por tor-nar possvel a entrada em cena de novos sujeitos de direito coletivo, defendendo seus prprios interesses e trazendo suas prprias demandas de patrimonializao e preservao de suas tradies. Por meio de uma crescente participao da socie-dade civil no governo, o pas deu um salto de qualidade no fortalecimento de movi-mentos de ao afirmativa, no empenho da construo da autoestima e dignidade social para agrupamentos sociais que antes eram marginalizados social, econmica e politicamente. Novas identidades coletivas foram construdas e potencializadas pelos movimentos sociais e pelas novas conquistas democrticas.

    Como consequncia de muitos anos de mobilizao, a nova Constituio bastante avanada no que diz respeito proteo de direitos sociais, da diversidade cultural e da biodiversidade. Nela, legitima-se, a partir da perspectiva da etnicidade, a emer-gncia de novos sujeitos coletivos com proteo especial garantida por lei: os povos indgenas, os quilombolas, os povos da floresta e outros grupos sociais com interes-ses coletivos de natureza econmica, poltica e cultural. Podemos dizer, pois, que a Constituio de 1988 representou um marco no pas como discurso fundador que desencadeou novas perspectivas para as identidades coletivas emergentes.

    Nos anos que se seguiram, e especialmente aps a Conveno da Biodiversidade de 1992, vrios projetos de lei foram sendo sancionados com relao s culturas populares e tradicionais e tambm ao conhecimento tradicional associado bio-diversidade. (Arajo, 1996, 2006; vila, 2006) Proliferaram os documentos, leis e decretos em torno da questo da diversidade cultural, dos recursos genticos e dos conhecimentos tradicionais associados, o que permite perceber uma expres-siva quantidade de foras sociais envolvidas. Percebe-se tambm o progressivo alar-gamento do conceito de patrimnio e seus qualificativos: gentico, qumico, natural, imaterial ou intangvel, entre outros. (Abreu, 2007, p. 271-284; 2009, p. 34-48)

    A Constituio e os novos projetos de lei que se seguiram garantiram caminhos possveis para a proteo de interesses coletivos de coletividades singulares-

    MonicaRealce

  • 87

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    denominadas ora por comunidades locais ora por populaes tradicionais. Ligados a uma coletividade determinvel, surgiram os interesses coletivos de natureza econmica e de contedo cultural, alm dos interesses de natureza ambiental e social. No livro organizado pela antroploga Eliane Cantarino ODwyer (2002), encontramos a expresso remanescentes de quilombos como referncia a grupos tnicos que guardam referncias identitrias comuns associadas a uma representao do passado, especialmente da vivncia da escravido, bem como a um tipo de organizao que persistiu ao longo dos anos. Como assinalou o antroplogo Alfredo Wagner de Almeida: (2008, p. 70)

    a categoria povos da floresta, que emerge em 1988, a partir de mobilizaes polticas, sintetiza este processo social e identitrio. Trata-se de um primeiro momento para se compreender o surgimento de novas identidades coletivas e sua objetivao em movimentos sociais, apoiados na fora mobilizatria de etnias, de comunidades extrativistas, que agrupam famlias de produtores dire-tos com conscincia ambiental aguada e laos locais profundos. Neste pro-cesso, os agentes sociais deixam de ser vistos como indivduos biolgicos, de existncia serial e atomizada, para assumir, sob condies de existncia cole-tiva, uma posio de sujeitos sociais. As referncias empricas em pauta nos remetem diretamente a sujeitos sociais construdos em consonncia com suas condies especficas de existncia coletiva e afirmao identitria, a saber: seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babau, quilombolas, pes-cadores, ribeirinhos e povos indgenas, ento agrupados na Unio das Naes Indgenas (UNI). A aproximao destas identidades emergentes, que se apoiam numa autoconscincia cultural e comeam a se organizar como fora poltica, resulta na denominada aliana dos povos da floresta, consolidando um signi-ficado mais abrangente de natureza, capaz de expressar a diversidade social e tnica e seus repertrios de reivindicaes face aos aparatos de Estado.

    Os antroplogos que focalizam a nova dinmica social no Brasil, como o prprio Almeida, vm sinalizando para o surgimento de novas percepes, novas maneiras de fazer poltica, novas ontologias. Os novos sujeitos sociais passaram a falar em seus prprios nomes, no mais aceitando que tudo ficasse depositado na razo iluminista ou na ao estatal. Segundo Almeida,

    As novas relaes dos sujeitos sociais com a natureza, com a terra, com o trabalho, com os outros homens, com a cultura erodiram o velho sistema clas-sificatrio que os reduzia a ocupaes econmicas homogneas ou a figu-ras tpicas como pescadores, lavradores, agricultores, operrios, soldados, marinheiros e assim por diante. Estas categorias deixaram de ter funes

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 88

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    explicativa s e foram transformadas com as mobilizaes polticas, a cons-cincia ambiental e o advento das novas identidades coletivas. O que passa a importar como esses grupos sociais se autodefinem e chamam a si mesmos, e no mais como os outros os designam. No importa mais como o Estado, os grandes empreendimentos econmicos ou os eruditos os classificam ou querem classificar. J no se catalogam pessoas como se catalogavam indiv-duos e espcies da natureza e as variedades no correspondem diver-sidade social. Assim, em vez de ter apenas uma razo em pauta, passamos a ter mltiplas. Estamos diante, hoje, sobretudo a partir de 1988, de mltiplas racionalidades concorrentes, implodindo com a ideia de um racional supe-rior alimentado secularmente pelo colonialismo. Trata-se do reconhecimento jurdico-formal de uma diversidade social liberta da moldura fisiogrfica. (Almeida, 2008 p. 73-74)

    neste contexto que podemos falar em mudanas efetivas das correlaes de fora dos agentes sociais e governamentais nos processos de patrimonializao. Estas mudanas ficam visveis quando analisamos casos especficos da apropriao das polticas pblicas no campo do patrimnio cultural pelas chamadas comunidades tradicionais. Uma categoria central como a de tradio ganha novos contornos e parece estar sendo construda social e politicamente no tempo presente, a partir de projetos de futuro. Assim, o que muitas vezes chamamos de comunidades tra-dicionais, como as sociedades indgenas, so os novos sujeitos coletivos que nada tm a ver com remanescentes de comunidades primitivas ou resduos de estgios anteriores na formao social. Estas sociedades so permanentemente redefinidas e recicladas a partir dos efeitos de movimentos sociais.

    interessante observar como os novos sujeitos de direito coletivo passaram a articu-lar projetos polticos e sociais a partir de estratgias patrimoniais. Alm do Programa Nacional do Patrimnio Imaterial, estas comunidades vm experimentando novas modalidades de relao com a construo e a difuso de suas prprias memrias em projetos de museus sociais. (Abreu & Chagas, 2007, p. 130-152; Freire, 2009, p. 217-253) e outros programas fomentados pelo governo, como os pontos de mem-ria e as organizaes no-governamentais voltadas para direitos humanos e para a incluso social e poltica destas populaes. So novas formas de apropriao das polticas pblicas em memria e patrimnio que esto associadas a lutas por direitos sociais, da propriedade territorial e de garantias de cidadania. Em torno de polticas nacionais e internacionais relacionadas ao campo do patrimnio, observa-se ainda uma tendncia crescente valorizao da cultura popular, da tradio de grupos populares. E esta tendncia vai revelando um patrimnio mais ligado ao cotidiano, a formas de vida populares e relacionadas com a natureza. O patrimnio monumental

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaNotaATENO!!!

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaNotaATENO!

    MonicaRealce

  • 89

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    relacionado s elites perde fora neste novo enquadramento. Quero enfatizar aqui a concepo de que se processam diferentes formas de apropriao da categoria patrimnio e diferentes usos das polticas nacionais e internacionais do campo do patrimnio por estes sujeitos coletivos. Tal como ocorreu com o conceito de cul-tura, o tema do patrimnio encarna hoje um novo papel como argumento poltico e vem servindo como arma dos fracos. (Cunha, 2009)

    Desdobramentos e consequncias de processos de patrimonializao das diferenas

    O caso Wajpi muito emblemtico e serve como bom exemplo tanto para analisar a nova configurao da patrimonializao das diferenas movimento que se capi-lariza mundialmente a partir do protagonismo da UNESCO quanto para analisar os efeitos desta nova configurao no caso brasileiro. Por um lado, como vimos, a patrimonializao da arte Kusiwa seguir todos os procedimentos e percursos pr-prios desta modalidade de patrimonializao. Imagino que, nos mais de cem pases que ratificaram a Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Imaterial, questes relativas necessidade de traduo cultural, registro, discursividade, reflexividade estejam surgindo e um caso como este dos Wajpi possa talvez servir para iluminar muitos outros. Entretanto, tenho certeza de que h diferenas impostas pelos con-textos sociais e polticos em que estas patrimonializaes ocorrem. Sendo assim, preciso analisar cada caso e perceber as novidades que podem estar trazendo.

    No Brasil, as polticas pblicas relativas salvaguarda da cultura tradicional e popular e, mais especificamente, salvaguarda do patrimnio cultural imaterial, j encon-tram um terreno frtil ao se voltarem para as chamadas sociedades tradicionais. Estas, especialmente as sociedades indgenas, j vinham de um longo processo de lutas polticas e de reconhecimento e valorizao de identidades tnicas. Particular-mente importante foram os processos de lutas pelas terras com polticas de efetivas demarcaes de territrios indgenas. Nestes processos, foram tambm se tecendo relaes de aliana com diversos setores do governo e da sociedade civil: univer-sidades, organizaes sociais, instituies de pesquisa, agncias governamentais, agncias internacionais de apoio e patrocnio. Particularmente os antroplogos vm desempenhando importantes papis de mediadores e de defensores de causas des-tes novos sujeitos coletivos e, portanto, de tradutores culturais no contexto de uma extensa rede. Estas conquistas implicam em conquistas jurdicas e envolvem diversos poderes e instncias governamentais (locais, nacionais, internacionais). Dominique T. Gallois (2011, p. 95-116) cita ainda a instalao de escolas, as prticas de assistncia sade, que vm h dcadas sendo operadas como poltica pblica

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 90

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    (primeiro pelo Servio de Proteo ao ndio, depois pela Fundao Nacional do ndio Funai e, na sequncia, por ministrios preocupados em incluir os ndios).

    Para um estudo sobre os efeitos das polticas de patrimonializao das diferenas importante levar em conta as condies sociais e polticas que antecedem os pla-nos de salvaguarda. Como j assinalamos, estas so polticas que dependem em larga medida de um protagonismo das comunidades envolvidas. Os tradutores cul-turais apenas podem agir em comunidades dispostas a levar adiante os processos de patrimonializao. Citamos anteriormente diferentes casos em pases da frica, da sia e da Amrica Latina em que a UNESCO busca dispositivos para instrumen-talizar a populao e construir indivduos capazes de exercer a liderana e se torna-rem gestores de processos de patrimonializao. O caso brasileiro apresenta como peculiaridade e, especialmente, entre os povos indgenas, o fato de que algumas destas etapas j foram vencidas em funo de outras experincias de contato. Pode-mos supor que comunidades tradicionais que passaram por experincias histricas traumticas como guerras e conflitos sociais ou que no se libertaram de governos autoritrios passem por trajetrias bem diferentes das que vm ocorrendo em casos como este que descrevo no Brasil.

    Os Wajpi foram adquirindo uma conscincia de si e forjando uma identidade tnica no prprio contexto da demarcao de suas terras que comeou em 1994. Foi neste mesmo ano que eles criaram uma organizao no-governamental, o Conselho das Aldeias Wajpi, a Apina. Atualmente, eles vivem numa terra indgena protegida pelo Estado, com cerca de seiscentos e quatro mil hectares. Cada grupo Wajpi mora em uma aldeia separada. Somam um total de treze aldeias, e a populao vem aumen-tando sensivelmente. Atravs da Apina, eles vm promovendo projetos de desen-volvimento sustentvel ligados ao artesanato e ao garimpo, com substncias no poluentes. Praticam tambm o extrativismo como alternativa econmica de sustento na floresta sem causar o desmatamento e a poluio ambiental, produzindo e ven-dendo produtos agrcolas, como o cupuau, a copaba e a castanha.

    Ao analisar os efeitos da patrimonializao da arte Kusiwa, dez anos depois, a antro-ploga Dominique T. Gallois assinala que muitas das questes que chegaram com os ttulos de patrimnio cultural do Brasil e de patrimnio oral e imaterial da huma-nidade j eram enfrentadas anteriormente. A patrimonializao trouxe novos ingre-dientes e favoreceu certos processos que j estavam em curso. Uma das questes relaciona-se construo de uma postura reflexiva que o plano de salvaguarda e as necessrias sistematizaes dos processos tradicionais envolvem. Estas questes j ocorriam a partir da chegada da escola nas aldeias.

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 91

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    A transposio para a escrita de narrativas mticas, ou seja, de experincias de encontros entre ancestrais e seres do incio dos tempos, criou tantas confu-ses, crticas e disputas de verses que esses jovens passaram a desenvolver reflexes muito interessantes a respeito dessa dificuldade de transposio e registro escrito. Alguns deles procuravam manter em seus registros no s as marcas autorais correntes na narrao como discutiam cuidadosamente as variaes, percebidas como valor, e no como problemas. Como diziam esses professores indgenas, difcil resumir a cultura Wajpi. Afirmavam inclusive que ela no existe mesmo se utilizam a palavra cultura para uso poltico em palcos intertnicos. Alis, o que pensam os mais velhos, que continuam con-tando como os Wajpi, em tempos remotos, roubaram dos animais ou dos ini-migos a maior parte dos elementos culturais de que fazem uso hoje. Da mesma forma, como vimos, no h problema em afirmar que tal padro grfico ou canto ou item decorativo foi apropriado dos Wayana, ou de outro grupo. Cultura wajpi mesmo, como eles dizem, no existe. (Gallois, 2011, p. 114)

    Mas, embora fossem enormes os problemas de transcrio das narrativas orais para o domnio da escrita, a antroploga assinala que, no processo de construo do plano de salvaguarda, estes problemas foram minimizados diante da importante aproximao que ocorreu entre os mais velhos e os mais jovens das aldeias. Estes ltimos afastavam-se cada vez mais dos saberes tradicionais e dos mais velhos e viam na escola um espao para se aproximarem do universo dos no ndios que mais lhe interessavam. Com o processo de patrimonializao, os mais jovens comearam a valorizar os saberes tradicionais e os mais velhos, trazendo uma nova perspectiva para a comunidade.

    Ao propor um plano de salvaguarda para os grafismos e expresses grfi-cas Wajpi, o Iphan (PCI) estimulou a realizao de oficinas e uma discusso entre os Wajpi sobre a temtica da cultura. Toda essa discusso levou alguns jovens interessados em comparar o que os Wajpi chamam de dois caminhos o dos saberes dos no ndios e dos saberes dos antigos a uma reimerso nos saberes tradicionais. So poucos indivduos ainda, mas determinados e engajados em aprender com os mais velhos as formas de enunciao julga-das corretas, belas. Esse foi, certamente, o resultado mais promissor desse trabalho inicial de discusso sobre a temtica da cultura, que se ampliou hoje na forma de um plano de salvaguarda, conduzido pelo Conselho das Aldeias Wajpi Apina e pelo Instituto de Pesquisa e Formao em Educao Indgena Iep, com apoio do Iphan, da UNESCO, da Petrobrs Cultural e de outras instituies. A via da patrimonializao suscitou, assim, um movimento de rea-proximao entre as geraes, que est se consolidando lentamente, no bojo

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 92

    MEMRIAENOVOSPATRIMNIOS

    de novas p rticas de transmisso. Se o inventrio dos bens imateriais Wajpi vai demorar a ser concludo, ou seja, se esta experincia de um programa de salvaguarda no resultar em produtos to acabados como se costuma exigir nesse tipo de projetos, certo que a reflexo de jovens e velhos Wajpi sobre todo esse percurso de sua cultura ter valido a pena. (Gallois, 2011, p. 114)

    No contexto do registro do sistema grfico Kusiwa como patrimnio cultural imaterial, os jovens Wajpi, estimulados por uma equipe acadmica liderada por Dominique Gallois, se mobilizaram para realizar pesquisas junto aos mais velhos. As lideranas Wajpi avaliaram que seria interessante um novo encontro com os saberes tradicio-nais, uma vez que os professores indgenas e os jovens ainda no so detentores nem transmissores competentes dos conhecimentos de suas respectivas comunida-des. Foi realizada uma pesquisa colaborativa intitulada Saberes Wajpi, realizada conjuntamente com pesquisadores acadmicos do NHII-USP, educadores do Iep, representantes do Conselho das Aldeias Wajpi/Apina e vinte jovens pesquisadores em formao. Estas pesquisas tornaram-se uma oportunidade para um reencontro entre geraes, em torno de problemticas do conhecimento.

    Dominique T. Gallois avalia positivamente a participao dos Wajpi no processo de patrimonializao. Por um lado, o Programa Nacional do Patrimnio Imaterial vem possibilitando um conjunto de apoios s comunidades indgenas, bem como fomen-tando parcerias:

    Investimentos em servios de assessoria tcnica e cientfica, alocao de novas tecnologias de registro, com recursos pblicos e privados, constituem sem dvida uma dimenso econmica a ser considerada, com impactos sociais, polticos e culturais. So apoios que hoje se multiplicam no Brasil, viabilizando a agregao de valor a algumas produes indgenas, em que o bem cultural , muitas vezes, menos importante que a produo de produtores desses bens. Mesmo se admitimos que os resultados desses investimentos econmi-cos no so to significativos no que diz respeito sua resultante mercadol-gica. (Gallois, 2011, p. 98)

    Por outro lado, para Dominique T. Gallois, o mais importante para os Wajpi tem sido a participao deles nos prprios processos de patrimonializao. A riqueza destes processos parece ultrapassar qualquer resultado com relao aos produtos finais em si mesmos (se que eles existem no caso do patrimnio cultural imate-rial). Transitando entre regimes culturais diferenciados, construindo novas formas de olhar para si prprios e suas tradies, redescobrindo novos aspectos em seus cotidianos, valorizando os mais velhos e seus saberes, enfim, a partir de um leque

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce

  • 93

    PRIMEIRAPARTE.ABORDAGENSTERICAS

    amplo de novas perspectivas que as prticas patrimoniais engendram, na avaliao de Gallois, os Wajpi:

    no s criam novos objetos, como constroem a si mesmos, enquanto sujei-tos polticos e ativos agentes da mudana [...] A produo de objetos cultu-rais (neste caso) parece ser indissocivel da produo de sujeitos sociais. [Ou ainda:] no campo do reconhecimento poltico, da agregao de valores sim-blicos que eles (os processos de patrimonializao)contribuem para a cons-truo da cidadania das populaes indgenas. (Gallois, 2011, p. 98)

    A complexidade da nova configurao colocada em marcha por polticas de patri-monializao das culturas nos mais longnquos rinces do globo terrestre parece ensejar novas modalidades de pesquisa. Como assinalou Jean Davallon (2010), a instabilidade da noo de patrimnio designando realidades largamente contradit-rias, tem levado os estudiosos a trabalharem com o conceito de patrimonializao. Entender seus processos por meio de levantamentos detalhados em estudos de caso pode ser um bom caminho para descortinar novos horizontes. J no h mais tempo a perder em polmicas carregadas de juzos de valor que opem a cultura material cultura imaterial, discutindo as vantagens desta ou daquela via. O fenmeno da patrimonializao das diferenas tal como aqui foi exposto me parece constituir um ponto de partida para o que ainda est por vir. hora de contribuirmos com pesqui-sas consistentes refletindo sobre seus efeitos e desdobramentos.

    MonicaRealce

    MonicaRealce

    MonicaRealce