2012_joselitajuniaviegasvidotti

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS JOSELITA JÚNIA VIEGAS VIDOTTI POLÍTICAS LINGUÍSTICAS PARA O ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA NO BRASIL DO SÉCULO XIX, COM ÊNFASE NA LÍNGUA INGLESA VERSÃO CORRIGIDA São Paulo 2012

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Tese

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS

    LINGUSTICOS E LITERRIOS EM INGLS

    JJOOSSEELLIITTAA JJNNIIAA VVIIEEGGAASS VVIIDDOOTTTTII

    POLTICAS LINGUSTICAS PARA O ENSINO DE LNGUA ESTRANGEIRA

    NO BRASIL DO SCULO XIX, COM NFASE NA LNGUA INGLESA

    VERSO CORRIGIDA

    So Paulo

    2012

  • JOSELITA JNIA VIEGAS VIDOTTI

    POLTICAS LINGUSTICAS PARA O ENSINO

    DE LNGUA ESTRANGEIRA NO BRASIL DO SCULO XIX,

    COM NFASE NA LNGUA INGLESA

    VERSO CORRIGIDA

    Tese apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Estudos Lingusticos e Literrios em Ingls do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Letras.

    Orientadora: Profa. Dra. Marisa Grigoletto.

    So Paulo

    2012

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meioconvencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo

    V654pVIDOTTI, JOSELITA POLTICAS LINGUSTICAS PARA O ENSINO DE LNGUAESTRANGEIRA NO BRASIL DO SCULO XIX, COM NFASE NALNGUA INGLESA / JOSELITA VIDOTTI ; orientadorMARISA GRIGOLETTO. - So Paulo, 2012. 245 f.

    Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letrase Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.Departamento de Letras Modernas. rea deconcentrao: Estudos Lingusticos e Literrios emIngls.

    1. Anlise do Discurso. 2. Ensino de LnguaEstrangeira. 3. Lngua Inglesa. 4. Lingustica. 5.Poltica. I. GRIGOLETTO, MARISA , orient. II. Ttulo.

  • JJoosseelliittaa JJnniiaa VViieeggaass VViiddoottttii

    Polticas lingusticas para o ensino de lngua estrangeira no Brasil do sculo XIX, com nfase na lngua inglesa

    Tese apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Letras.

    Aprovada em: 25/06/2012

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. Marisa Grigoletto Orientadora

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr Anna Maria G. Carmagnani - Universidade de So Paulo

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr Deusa M. de Souza Pinheiro Passos Universidade de So Paulo

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr Maria Onice Payer - UNIVS

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr Mrcia A. Amador Mascia Universidade So Francisco

    _______________________________________________________________

  • DEDICATRIA A Rebecca e Carlos, filha e esposo, meus pilares Ao meu pai, Antnio, poeta e amante das letras, que nos presenteou com o livro de Sonetos Perfume e Saudade, do qual extra o seguinte verso:

    Que direi dos meus tempos de estudante, Fim de ano, aroeiras to cheirosas, Cagaiteiras de branco, o sol levante A beijar tantas flores perfumosas.

    minha me, Joselita, que aos 85 anos, reuniu suas memrias nos livros O Entardecer e Um pouco de cada um Ao Tiago, a quem amo como um filho

  • AGRADECIMENTOS A Deus, Porque dEle e por Ele, e para Ele, so todas as coisas Romanos 11:36 Aos meus familiares queridos, irmos, irms, sobrinhos e sobrinhas, em especial Veraluce, por possibilitar minha iniciao no estudo da lngua inglesa financiando meu curso Prof Marisa Grigoletto, pela leitura cuidadosa do meu texto e pelos momentos de sbia orientao Banca Examinadora, em especial s Prof Anna Maria Carmagnani e Prof Deusa Passos pelas valiosas sugestes no exame de qualificao Ao Ministrio da Educao, pelo meu afastamento para capacitao com nus Aos professores e colegas do Programa de Ps-graduao em Lingustica Aplicada da UnB, em especial prof. Almeida Filho e prof. Gilberto Chauvet pela orientao no esboo do projeto desta pesquisa Aos amigos Luiz, Mrcio, Paulo Alves, Regina, Carmem, Wanda, Aninha, Suely, Selma, Maria Fernanda, Fawsia, Valria, Rodrigo, Claudinha, Paulo Horlle, Andrs, Claudinho e Mnica, pela pacincia em me ouvir falar de tese o tempo todo Aos amigos do grupo de estudos da USP (LEDI), e aos amigos Bianca Garcia, Bruno Turra e Fabi pelo imenso apoio Aos amigos do MEC da COEF, do GM e da SESU, em especial Hilton Batista pela consultoria em Histria do Brasil s bibliotecas: Biblioteca da Cmara dos Deputados em especial Rosamaria Schertel, da Coordenao de Arquivo do Centro de Documentao e Informao; Biblioteca do MEC; Biblioteca Nacional e ao Arquivo Nacional. Aos meus queridos alunos.

  • Eu agora diria a ns, como educadores e educadoras: ai daqueles e daquelas, entre ns, que

    pararem com sua capacidade de sonhar, de inventar

    a sua coragem de denunciar e de anunciar. Ai

    daqueles e daquelas que, em lugar de visitar de vez

    em quando o amanh, o futuro, pelo profundo

    engajamento com o hoje, com o aqui e com o agora,

    ai daqueles que, em lugar desta viagem constante

    ao amanh, se atrelarem a um passado de

    explorao e rotina.

    Paulo Freire

  • Resumo

    Esta pesquisa tem como objeto de estudo o discurso poltico-educacional sobre o ensino de lngua estrangeira (LE) no Brasil. Primeiramente examinamos o espao de memria de ensino de LE no processo educacional brasileiro. Ao constatarmos que a lei que oficializou o ensino das lnguas inglesa e francesa no Brasil (Deciso n 29) havia se dado no incio do sculo XIX (1809), decidimos investigar que discursos suscitaram a criao de polticas lingusticas para o ensino de LE no Brasil no sculo XIX. Sob a tica da Anlise do Discurso, de linha Pcheutiana, investigamos os efeitos de sentido construdos a partir do discurso poltico-educacional sobre o ensino da lngua inglesa no Brasil do sculo XIX, buscando compreender a formulao das polticas lingusticas da poca em relao s LE e o estatuto destas naquelas polticas. O corpus foi composto por leis, debates parlamentares e relatrios ministeriais relacionados ao ensino da lngua inglesa. A anlise da materialidade lingustica dos enunciados produzidos pelos sujeitos legisladores mostrou que a Deciso n 29 instaurou um acontecimento discursivo, rompendo com a memria de no-regulamentao do ensino de LE no Brasil e fundou o sentido de utilidade das LE para a instruo pblica no Brasil. Constatamos que a poltica de ensino de LE ancorava-se em um saber importado. Conclumos que o acontecimento discursivo instaurado pela Deciso n 29 criou um lugar para as LE e estas tambm fizeram parte de uma poltica de produo e circulao de conhecimento. Palavras-chave: discurso poltico-educacional; lngua inglesa; poltica lingustica; acontecimento discursivo; produo de conhecimento

  • Abstract

    The aim of this study is the political educational discourse (PED) about foreign language (FL) teaching in Brazil. First we examined the space of memory of FL teaching in the Brazilian educational system. Having noticed that the law which regulated English and French language teaching in Brazil (Decree n.29) was promulgated in 1809, we decided to investigate the discourses which generated the establishment of language policies for FL teaching in Brazil in the 19th century. Under the light of the Pecheutian Discourse, we investigated the effects of the meanings produced by the PED about FL teaching in Brazil in the 19th century in order to understand the formulation of the FL teaching policies at that time and the status of FL in those policies. The corpus was built from laws, debates in Parliament and ministerial reports related to FL teaching. The analysis of the linguistic materiality of the discourse produced by legislators showed that the Decree n. 29 established a discourse event, which breaks up with the previous discourse of non-official FL teaching in Brazil and founded the meaning of utility for FL in the public teaching system. We concluded that the FL teaching policy was anchored to an imported knowledge. Also, we concluded that the discourse event caused by the Decree n. 29 created a place for FL and these were part of a policy for knowledge production and circulation. Key-words: Political Educational Discourse; English language; Language Policy; Discourse Event; Knowledge Production.

  • LISTA DE ANEXOS

    ANEXO 1 Estatutos da Universidade de Coimbra ANEXO 2 Deciso n 29 de 14 de julho de 1809 ANEXO 3 Anais da Cmara dos Deputados Lei de 11 de agosto de 1827 Lei de 7 de novembro de 1831 ANEXO 4 Decreto de 02 de dezembro de 1837 Regulamento n 8, de 31 de janeiro de 1838 Discurso de Bernardo de Vasconcellos Anais da Cmara dos Deputados Anais do Senado Federal ANEXO 5 Relatrios do Ministrio do Imprio Decreto n 456, de 6 de julho de 1846 Anais da Cmara dos Deputados

    Decreto n 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854 Decreto n 1.556, de 17 de fevereiro de 1855 Decreto n 1.763, de 14 de maio de 1856 Decreto n 4.468, de 1 de fevereiro de 1870

    LISTA DE SIGLAS

    ACD Anais da Cmara dos Deputados

    ASF Anais do Senado Federal

    CLIB Coleo das Leis do Imprio do Brasil

    RMI Relatrios do Ministrio do Imprio

  • LISTA DE QUADROS E TABELAS

    Quadro 1 Conceito de poltica lingustica

    Quadro 2 Organizao poltica do Brasil no sculo XIX

    Quadro 3 Quadro estatstico das aulas pblicas menores criadas no Municpio da Corte em 1838

    Quadro 4 Sumrio do Regulamento n 8 Quadro 5 A Aula do Comrcio na instruo pblica

    Tabela 1 Reformas educacionais e ensino de lnguas por anos de estudo,

    na segunda metade do sculo XIX Tabela 2 Plano de estudos de 1838 do Colgio Pedro II Tabela 3 Plano de estudos de 1855 Tabela 4 Plano de estudos de 1870

  • Sumrio

    Lista de anexos e siglas .........................................................................................................................

    Lista de quadros e tabelas ...................................................................................................................

    Introduo ............................................................................................................................................ 1

    Justificativa ................................................................................................................ 11

    Objetivos .................................................................................................................... 14

    Perguntas de pesquisa .............................................................................................. 15

    Fundamentao terica ............................................................................................ 15

    Metodologia ............................................................................................................... 19

    Organizao da tese .................................................................................................. 21

    Captulo 1 - Memria de lngua estrangeira no espao educacional brasileiro ........23

    1.1. As lnguas estrangeiras no sculo XVIII ........................................................ 26

    1.2. Reorganizando o Estado Portugus .............................................................. 30

    1.2.1 A presena britnica .................................................................................... 32

    1.3. O Brasil semi-colonial ..................................................................................... 34

    1.3.1 A regulamentao das lnguas inglesa e francesa ..................................... 35

    1.4. As LE no Brasil independente ........................................................................ 38

    1.5. As LE no Colgio Pedro II ............................................................................... 40

    1.6. As LE nas Reformas do CPII ........................................................................... 41

    1.6.1 A Reforma Couto Ferraz .............................................................................. 41

    Captulo 2 - O acontecimento discursivo da Deciso n 29 ....................................... 46

    2.1 Memria de LE ................................................................................................... 48

    2.2 Um novo dizer .................................................................................................... 50

    2.3 As LE e a matemtica ........................................................................................ 61

    2.4 O silenciamento de outras LE ........................................................................... 64

    2.5 Status de lngua nobre....................................................................................... 67

    2.6 Enquanto o compndio no vem ...................................................................... 68

    2.7 Cultura do saber ................................................................................................ 70

    Captulo 3 As lnguas estrangeiras e a construo de um novo Estado ......... 73

    3.1 Predicaes sobre a lngua inglesa .................................................................... 80

    3.1.1 As lnguas e o saber ..................................................................................... 80

    3.1.2 Lngua da liberdade ..................................................................................... 86

    3.1.3 Lngua do aliado .......................................................................................... 90

    3.2 Duelo de prestgios ............................................................................................. 91

  • Captulo 4 - Em busca de um modelo .................................................................................... 96

    4.1 A construo da ordem poltica ........................................................................ 97

    4.2 Organizando os saberes ..................................................................................... 99

    4.3 Nos moldes franceses ....................................................................................... 105

    4.4 A legitimao de um discurso .......................................................................... 112

    4.4.1 Um modelo deficitrio ............................................................................... 113

    4.4.2 A disciplina de Napoleo ........................................................................... 115

    4.4.3 O saber que vem de fora ............................................................................ 126

    4.5 Bacharel x artfice ............................................................................................ 133

    Captulo 5 - Novas polticas para novos saberes ......................................................... 136

    5.1 Um outro lugar para a lngua inglesa ............................................................. 137

    5.2 Uma lngua para o Brasil ................................................................................. 148

    5.3 A comparao como lema ............................................................................... 152

    5.4 A consolidao das LE na instruo ............................................................... 157

    Consideraes finais ................................................................................................................... 162

    Referncias ...................................................................................................................................... 166

    Anexos ................................................................................................................................................ 178

  • 1

    INTRODUO

    Quando pensamos em poltica de lnguas j pensamos de imediato nas formas

    sociais sendo significadas por e para

    sujeitos histricos e simblicos

    Eni Orlandi

    A interveno do Estado nas questes lingusticas tem sido constante no

    desenrolar do percurso histrico do ensino de lnguas no Brasil. A ao do

    governo pombalino de imposio da lngua portuguesa como lngua oficial do

    Brasil no sculo XVIII, coibindo quaisquer outras manifestaes lingusticas

    (consequentemente o uso de lnguas indgenas), ilustra o controle sobre as

    lnguas pelo Estado por meio da legislao. No que tange ao ensino de lnguas

    estrangeiras (doravante LE), no encontramos registros de legislao para esse

    fim no Brasil no sculo XVIII.

    Fixando os olhos no sculo XIX, perodo enfatizado em nossa pesquisa,

    constatamos que o Estado promulgou inmeras leis, estabelecendo polticas

    lingusticas (PL) para o ensino das lnguas clssicas (grego e latim), da lngua

    portuguesa e de LE na instruo pblica secundria1.

    Na base das aes polticas do sculo XIX esto os discursos que

    permitiram a elaborao de tais leis. Dentro dessa perspectiva, esta pesquisa

    investiga os discursos que suscitaram a formulao das PL para o ensino de LE

    no Brasil, no sculo XIX, com nfase na lngua inglesa.

    1 A instruo secundria, composta de 7 anos e equivalente hoje segunda etapa do Ensino Fundamental e o

    Ensino Mdio, foi instituda e assim denominada em 1837, com a criao do Colgio Pedro II. Mantivemos a

    expresso instruo pblica utilizada poca.

  • 2

    A lngua portuguesa novamente foi objeto de imposio do Estado em

    1930, quando da interdio no Brasil do uso das LE em comunidades de

    imigrantes, durante o governo Vargas. As LE vieram compor as polticas de

    ensino de mbito nacional nas Reformas Educacionais de 1911 (Rivadvia), de

    1915 (Maximiliano), de 1925 (Rocha Vaz), de 1931 (Francisco de Campos), de

    1942 (Capanema) e nas Leis de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de

    1961, 1971 e 1996.

    O conceito de poltica lingustica (PL) definido por Calvet (1996) como a

    determinao das grandes decises referentes s relaes entre as lnguas e a

    sociedade (p. 11). Embora abrangente, a noo de PL traz em seu bojo a

    configurao de uma prtica poltica, pois interfere nas situaes lingusticas

    envolvendo, portanto, sujeitos e lnguas. Tal conceito, desenvolvido

    principalmente por pesquisadores da Sociolingustica, encontra-se atrelado

    noo de planejamento lingustico, que concerne implementao dessas

    decises polticas.

    O uso pioneiro do termo planejamento lingustico atribudo a Einar

    Haugen, que em 1959 desenvolveu um estudo2 sobre a padronizao de lnguas

    na Noruega. Para Haugen, planejamento lingustico consiste em normatizar a

    ortografia, a gramtica e o dicionrio visando orientar uma comunidade cujos

    falantes no possuem uma lngua homognea (HAUGEN, 1959, apud RICENTO,

    2006, p. 26).3 No entanto, o campo da PL tornou-se bem mais abrangente que o

    modelo de Haugen, passando a tratar de questes relacionadas funo da

    lngua e seu valor na sociedade.

    2 Haugen, E. Planning in Modern Norway, in Anthropological Linguistics, 1/3, 1959.

    3 As tradues para a lngua portuguesa dos textos do livro Language Policy (RICENTO, 2006) so de nossa

    inteira responsabilidade.

  • 3

    Comecemos por esclarecer que a distino entre os conceitos de poltica e

    de planejamento no surge de forma regular na literatura. Alguns autores se

    preocupam mais com a questo tcnica (implementao) e outros com o poder

    (deciso). Wodak (2007) defende que uma PL toda influncia do Estado na

    comunicao entre lnguas, a soma de todas as iniciativas polticas ascendentes e

    descendentes (p. 170). Compartilhamos da posio de Calvet (1996) de que uma

    PL inseparvel de sua aplicao, uma vez que uma ao (lei) por si s no se

    executa, mas necessita do poder para ser colocada em prtica e somente o

    Estado tem os meios de implementar suas escolhas polticas. Assim, o conceito

    poltica/planejamento implica a elaborao de uma interveno de uma situao

    lingustica e os meios para execut-la. Veremos mais adiante que, no prprio

    corpo da lei, podemos identificar ao mesmo tempo a exposio da deciso e o

    planejamento dos elementos necessrios sua aplicao. Rajagopalan (2009)

    corrobora essa noo ao afirmar que uma PL consiste numa srie de aes que

    objetivam intervir na vida lingustica de um pas. Ela por excelncia prescritiva e

    normativa (grifo no original).

    Calvet (1996) distingue dois tipos de gesto das situaes lingusticas: uma

    que procede das prticas sociais (gesto in vivo) e outra da interveno sobre

    essas prticas (gesto in vitro). A primeira diz respeito forma como as pessoas

    resolvem problemas de comunicao no cotidiano que pode resultar nas lnguas

    aproximativas (pidgins), ou veiculares ou promovidas (que tem suas funes

    ampliadas), (p. 69). Trata-se, portanto, de um produto de uma prtica e no tem

    relao com uma deciso oficial, como uma lei. O segundo tipo de gesto

    lingustica (in vitro) o analisado neste estudo e representado por documentos

    jurdicos (leis), produzidos pelo Estado. Isso implica que as decises tcnicas e

  • 4

    polticas so impostas aos grupos sociais. Para tanto, o Estado dispe

    essencialmente da lei, de forma que no existe planejamento lingustico sem

    suporte jurdico (p. 75).

    As intervenes do Estado podem se dar no mbito da forma da lngua

    (corpus), bem como na funo que essa lngua possa exercer (status). Calvet

    (1996) salienta que historicamente o poder poltico no apenas legislou sobre a

    forma da lngua, como tambm interveio na funo das lnguas na sociedade:

    A interveno humana na lngua ou nas situaes lingusticas no novidade: sempre houve indivduos tentando legislar, ditar o uso correto ou intervir na forma da lngua. De igual modo, o poder poltico sempre privilegiou essa ou aquela lngua, escolhendo governar o Estado numa lngua ou impor maioria a lngua de uma minoria (p. 11).

    Para uma melhor distino entre os tipos de leis lingusticas, apresentamos

    uma classificao proposta por Calvet (1996, p.75-76), ressaltando que o objetivo

    de tal abordagem no o de esgotar uma tipologia, mas fornecer elementos que

    tragam subsdios para a compreenso do tipo de lei que analisamos nesta

    pesquisa. H leis que se ocupam:

    a) Da forma da lngua;

    b) Do uso que as pessoas fazem das lnguas (estabelecimento de uma

    lngua oficial de um pas ou as lnguas de trabalho de uma organizao)

    c) Da defesa das lnguas (promoo ou proteo)

    A partir dessa categorizao, podemos aprofundar o conceito de uso

    (status) que as pessoas fazem das lnguas e sua funo para exprimirmos melhor

    o tipo de PL que analisamos nesta pesquisa. A distino entre poltica de corpus e

  • 5

    poltica de status vem enriquecer a elaborao da abordagem de PL que

    utilizamos:

    o planejamento do corpus se relacionava s intervenes na forma da lngua (criao de uma escrita, neologia, padronizao (...), enquanto o planejamento do status se relacionava s intervenes nas funes da lngua, seu status social e suas relaes com as outras lnguas (CALVET, 1996, p. 29)

    Estamos lidando, portanto, com um tipo de ao de poder (leis) que no se

    ocupa da forma da lngua (corpus), mas do uso que as pessoas fazem das

    lnguas e, portanto, do status destas como LE.

    O tipo de PL que analisamos pode ser mais bem compreendido como uma

    subcategoria de uma poltica/planejamento lingusticos (PAULSTON, C.;

    HEIDEMANN, K., 2006, p. 292), a partir de uma poltica de status, conforme

    ilustramos a seguir:

    Quadro 1 - Conceito de Poltica Lingustica

    Fonte: Elaborado pela autora

    No obstante a prtica de interveno na lngua pelo Estado se

    desenvolver h sculos, as PL se firmaram como um campo de investigao

    terico e emprico apenas no sculo XX. A PL enquanto disciplina surgiu em

    decorrncia do processo de descolonizao da sia e frica. No Brasil, segundo

    Poltica lingustica

    Poltica de corpus

    Poltica de status

    Poltica de ensino de LE

  • 6

    Miller (1996), apenas nas duas ltimas dcadas que a discusso em torno das

    PL ganhou visibilidade, principalmente no que diz respeito ao conceito de lnguas

    brasileiras, estas abrangendo todas as lnguas faladas por comunidades de

    cidados brasileiros.

    A distino entre planejamento do corpus e planejamento do status foi

    introduzida por Kloss (CALVET, 1996) e torna-se indispensvel para que

    compreendamos a abordagem aqui utilizada: uma lei que se ocupa da funo de

    uma determinada lngua em uma sociedade, mais especificamente, de uma LE no

    sistema educacional.

    O conceito de PL como uma subcategoria da poltica de status afina-se

    com o pensamento de Rajagopalan (2005) no que tange concepo de PL

    como um ramo da cincia poltica e no da lingustica, em virtude da conotao

    poltica da funo da lngua em uma sociedade. Em outras palavras, a escolha da

    lngua estrangeira a ser ensinada em um sistema educacional uma questo

    poltica.

    Ao contrrio das PL estabelecidas pelo Marqus de Pombal e do

    Presidente Vargas, calcadas na ideia de interdio de outras lnguas em favor da

    lngua portuguesa, as PL do sculo XIX visavam promover o ensino de LE, como

    parte do processo de construo de um Estado independente.

    A Deciso n 29, de 14 de julho de 18094 (ANEXO 2), criou no Brasil as

    primeiras cadeiras de matemtica, lngua inglesa e francesa, para a recm-

    instalada Corte Portuguesa. Considerando que a criao dessas cadeiras havia

    se dado em um contexto de profundas transformaes na histria do pas,

    4 As Decises eram tomadas sobre representao ou requerimento de partes interessadas e baixadas pelos

    ministrios, que tambm desempenhavam a funo de um tribunal superior, cujas sentenas valiam como lei.

    Elas eram numeradas e rubricadas pelo regente ou imperador (OLIVEIRA, 2006, p. 25).

  • 7

    decidimos optar por uma anlise que nos levasse compreenso dos lugares

    ocupados por essas lnguas nesse novo cenrio e os desdobramentos desse

    gesto poltico ao longo daquele sculo. Essa lei tornou-se um ponto de partida

    acessvel para compreendermos como a lngua inglesa se inscreveu nos novos

    moldes da Colnia, que passara repentinamente condio de sede do governo

    portugus, dando incio ao processo de institucionalizao das LE, instaurando

    uma poltica de ensino de LE no Brasil.

    At ento, a legislao sobre o ensino de LE no Brasil em vigor eram os

    Estatutos da Universidade de Coimbra (1772) que recomendavam as lnguas

    inglesa e francesa para o exame de admisso nos cursos superiores da Europa.

    As LE faziam parte do iderio de progresso apregoado na Reforma Pombalina e

    que foi aos poucos penetrando o imaginrio do Brasil aps a instalao da Corte

    Portuguesa. Vrias polticas foram implementadas com vistas a alcanar esse

    ideal de equiparao com as naes cultas da Europa. Entre essas polticas de

    produo e circulao do conhecimento no Brasil podemos citar a criao dos

    cursos cirrgicos e da Academia Militar. Assim, as cadeiras de ingls e francs se

    inserem nessa poltica, uma vez que a circulao do conhecimento se dava por

    intermdio dessas lnguas. A lngua inglesa, portanto, foi objeto de uma poltica

    lingustica que resultou de vrios processos que envolveram o conjunto de

    saberes de que necessitava aquela sociedade em transformao.

    Tendo em vista que foi no sculo XIX que se estabeleceram essas

    polticas, nossa postura se difere da posio de Chagas (1957) que, ao descrever

    a evoluo das lnguas no Brasil, afirma que, em termos didticos, foi smente a

    partir de 1931 que se comeou, verdadeiramente, a levar a srio o estudo dstes

    idiomas em nosso ensino secundrio oficial (p. 83, grifo nosso). Esse divisor de

  • 8

    guas proposto por Chagas (1957) encontra ecos em pesquisas sobre a evoluo

    do ensino de LE no Brasil, ganhando estatuto de verdade. Tal periodizao partiu

    de um olhar sobre o status das LE no cenrio brasileiro a partir da implementao

    do Mtodo Direto no Colgio Pedro II (doravante CPII), em cumprimento

    Reforma Francisco de Campos, de 30 de junho de 1931. Esse Mtodo consistia

    em ensinar a lngua estrangeira na prpria lngua estrangeira e fazia parte de

    uma poltica de ensino com vistas a atualizar o estudo dos idiomas modernos

    (CHAGAS, 1957, p. 91, aspas no original). Isso significava tentar romper com uma

    tradio de ensino baseada na traduo e verso e exerccios de aplicao de

    itens gramaticais. No entanto, segundo o autor, as circunstncias desfavorveis

    transformaram o programa em autntica letra morta (p. 92).

    Independentemente dos desdobramentos daquela poltica, cremos que

    uma proposta de mudana na metodologia de ensino no reflete,

    necessariamente, seriedade no ensino. O discurso que afirma que o

    desenvolvimento de didtica das lnguas, entre ns, tem que forosamente ser

    apreciado ao longo de duas fases claramente definidas (p. 83) apaga dizeres em

    torno do lugar das LE no sculo XIX. O que procuramos salientar a ideia de que

    a insero das LE na instruo pblica pela Deciso n 29 configura-se

    como uma poltica lingustica e como tal, pressupe seriedade (mesmo sem

    mudanas metodolgicas). Da, portanto, a nossa posio contrria ao paradigma

    de diviso do ensino de LE em antes e depois de 1931.

    Ao examinar as leis concernentes ao ensino de LE no sculo XIX,

    identificamos PL para o ensino de LE que privilegiavam determinada lngua ao

    inseri-la ou exclu-la do currculo secundrio, ora aumentando, ora diminuindo a

    carga horria das LE, bem como das lnguas clssicas, ao contrrio do que

  • 9

    ocorreu na Deciso n 29, onde as lnguas inglesa e francesa apareciam como

    equivalentes.

    A lngua inglesa, por exemplo, no foi objeto da PL para o ensino de LE no

    Brasil recm-independente, quando da criao do curso jurdico em 1827. Apenas

    a lngua francesa fora exigida como requisito para a admisso no curso e,

    consequentemente, fazia parte das cadeiras preparatrias que seriam criadas. No

    entanto, na lei de 7 de novembro de 1831, a lngua inglesa veio compor as

    cadeiras preparatrias para esse curso, mesmo no tendo sido prevista na lei de

    1827. Essas aes nos impulsionaram a examinar tambm os dizeres sobre LE

    nos debates parlamentares que antecederam aquela lei, no intuito de

    compreender as bases dessas PL. Isso se d em virtude do carter dinmico do

    corpus, cujo fechamento, segundo Zoppi-Fontana (2005) necessariamente

    provisrio e se d juntamente com a finalizao das anlises (p. 96).

    Em 1837, as lnguas inglesa e francesa passaram a compor o currculo do

    recm-inaugurado CPII5. Este estabelecimento de instruo secundria,

    idealizado para ser uma escola modelo para o Brasil, testemunhou diversas

    reformas em seus Estatutos. Tais reformas estabeleceram, no domnio da

    memria, uma relao tensa entre os lugares atribudos s LE. Essas tenses

    despertaram o desejo de compreender o funcionamento discursivo que constri o

    lugar a ser ocupado pela lngua inglesa e seu ensino, lugar este sempre

    construdo em relao s demais LE. A compreenso desse funcionamento

    discursivo nos fornece as bases para investigar as PL que marcaram aquele

    perodo.

    5 Utilizamos a denominao corrente Colgio Pedro II, embora poca ele fosse chamado Colgio de

    Pedro II.

  • 10

    Considerando a inquietao relatada e a constatao de que a Deciso n 29

    havia instaurado no mbito especfico do Brasil ainda colonial uma PL para o

    ensino de LE, decidimos analisar o discurso poltico educacional sobre a lngua

    inglesa estabelecendo como corpus a legislao educacional do Brasil e

    documentos oficiais, a partir de uma genealogia do lugar ocupado pela lngua

    inglesa no quadro das PL para o ensino de LE no Brasil do sculo XIX.

    O foco deste estudo, portanto, uma reflexo discursiva sobre a lngua

    inglesa e seu ensino, visando compreenso das PL para o ensino de LE no

    Brasil do sculo XIX, desde a chegada da Famlia Real Portuguesa no Brasil em

    1808 at o fim do Perodo Imperial (1889), com nfase na lngua inglesa.

    O corpus estabelecido para a anlise constitudo por peas legislativas

    do sculo XIX, a saber:

    a) Lei Deciso n 29, de 14 de julho de 1809 criao das primeiras

    cadeiras de ingls e francs no Brasil (ANEXO 2);

    b) Anais da Cmara dos Deputados Sesso parlamentar de 11 de agosto de

    1826 (ANEXO 3, p1);

    c) Lei Decreto de 11 de agosto de 1827 criao dos Cursos jurdicos de

    So Paulo e Olinda (ANEXO 3, p4);

    d) Lei Decreto de 7 de novembro de 1831 criao da cadeira preparatria

    de ingls e francs para os Cursos Jurdicos, prevista no Decreto de 11 de agosto

    de 1827 (ANEXO 3, p6);

    e) Lei Decreto de 2 de dezembro de 1837 Criao do CPII (ANEXO 4, p1);

    f) Lei Regulamento n 8, de 31 de janeiro de 1838 contm os Estatutos do

    CPII (ANEXO 4, p3);

  • 11

    g) Discurso de inaugurao do CPII, proferido pelo Ministro Bernardo

    Vasconcellos em 1838 (ANEXO 4, p14);

    h) Anais da Cmara dos Deputados Sesso parlamentar de 19 de maio de

    1838 (ANEXO 4, p17)

    i) Anais do Senado Federal Sesso parlamentar de 08 de outubro de 1839

    (ANEXO 4, p19);

    j) Anais do Senado Federal Sesso parlamentar de 10 de outubro de 1839

    (ANEXO 4, p21);

    k) Relatrio do Ministrio do Imprio relativo ao ano de 1839 (ANEXO 5, p1);

    l) Relatrio do Ministrio do Imprio relativo ao ano de 1843 (ANEXO 5, p2);

    m) Anais da Cmara dos Deputados Sesso parlamentar de 31 de julho de

    1846 (ANEXO 5, p4);

    n) Relatrio do Ministrio do Imprio relativo ao ano de 1850 (ANEXO 5, p5 );

    o) Lei Decreto n 1556, de 17 de fevereiro de 1855 Reforma Couto Ferraz,

    Plano de Estudos (ANEXO 5, p8);

    p) Lei Decreto n 4.468, de 01 de fevereiro de 1870 Reforma Paulino de

    Souza altera os regulamentos relativos ao Imperial Colgio de Pedro II (ANEXO

    5, p13).

    2. JUSTIFICATIVA

    O estudo das PL para o ensino de LE na instruo pblica no Brasil tema

    pouco explorado nas pesquisas desenvolvidas na rea de ensino/aprendizagem.

    O estudo que ora apresentamos possui tangncias com algumas pesquisas sobre

    PL, tais como: perodo enfocado, perspectiva discursiva e o ensino de LE.

  • 12

    Todavia, no encontramos estudos que contemplassem PL para o ensino de LE

    no Brasil do sculo XIX numa perspectiva discursiva.

    Estudos recentes que abordam o tema sobre PL no Brasil foram

    organizados por Orlandi no livro Poltica Lingustica no Brasil (2007a), e abordam

    a questo da lngua em sua dimenso poltica, cujas reflexes abarcam

    diferentes pocas, diferentes lnguas e diferentes reas disciplinares.

    Entre as pesquisas desse livro que trataram de PL para o ensino de LE no

    sculo XX, podemos citar o trabalho de Payer (2006), que aborda o tema da

    imigrao, do sujeito imigrante no Brasil, suas lnguas e a interdio jurdica

    delas, da parte do Estado brasileiro, entre os anos 20 e 50 do sculo XX,

    decorrente de uma poltica de nacionalizao. Por meio do estudo da oralidade,

    buscando marcas da memria da lngua materna dos imigrantes na lngua

    portuguesa, a autora identificou traos da imigrao presentes na constituio do

    sujeito brasileiro, concluindo que a lngua pode e deve ser um lugar de memria.

    Embora a PL adotada por Getlio Vargas tenha interferido no uso das LE e,

    consequentemente, no seu ensino, no se trata de uma PL para o ensino de uma

    LE, ao contrrio, uma poltica de difuso da lngua portuguesa visando ao

    apagamento das lnguas dos imigrantes, por representarem, no jogo poltico-

    ideolgico, lnguas de outros pases em territrio brasileiro, vindo, portanto, no

    sentido contrrio aos propsitos do Estado Novo.

    Embora no contemple a questo da PL, no podemos deixar de citar o

    trabalho de Mascia (1999), ainda com foco no sculo XX, cuja tangncia com

    nossa pesquisa o discurso poltico educacional sobre lngua estrangeira. A

    autora investigou o iderio de progresso no espao discursivo de documentos

    curriculares de ensino de ingls no estado de So Paulo na dcada de 80. Os

  • 13

    resultados apontam para um discurso calcado na dicotomia presena/ausncia de

    progresso, sustentado pela Ideologia Positivista que permeia as relaes de

    poder-saber.

    No que tange s pesquisas com foco no sculo XIX, sob a perspectiva

    histrica, h o trabalho de Oliveira (2006), que investiga o processo de

    institucionalizao do ensino de LE no Brasil, observando o caso especfico da

    lngua inglesa, visando estabelecer uma periodizao relacionada s principais

    finalidades assumidas pelo ensino daquelas Lnguas no sistema de Instruo

    Pblica do pas (p.4). No entanto, a pesquisa no aborda a questo das LE como

    uma PL, tampouco contempla a dimenso discursiva.

    A lngua portuguesa a lngua investigada na maioria das pesquisas que

    enfocam as PL no sculo XIX, entre as quais podemos citar o trabalho de Mariani

    (2004) que aborda o processo de discusso e de gramatizao da lngua

    portuguesa como lngua nacional no sculo XIX, muito embora a autora

    concentre suas pesquisas nos processos de colonizao lingustica, no que se

    refere lngua portuguesa nos sculos XVI a XVIII. A autora defende que a

    institucionalizao oficial do portugus no territrio nacional pelo projeto

    colonizador portugus configurou-se como espao de lutas ideolgicas

    divergentes quanto homogeneizao lingustica. Esse lugar de resistncia

    lingustica deu incio ao processo de historicizao do portugus brasileiro na sua

    variante, decorrente das misturas entre as lnguas portuguesa, geral e africanas.

    Os trabalhos de Dias (2007) e Pagotto (2007), contidos no livro Poltica

    Lingustica no Brasil j mencionado nesta seo, enfocam as PL no sculo XIX.

    Dias (2007) analisa as demandas que presidem a constituio do campo de

    produo de gramticas no Brasil no sculo XIX. Pagotto (2007) explora a relao

  • 14

    entre a implementao de PL e a normatizao da vida social, observando a

    adoo de um sistema ortogrfico oficial do portugus nos finais do sculo XIX e

    incio do XX. O autor discorre sobre a questo das PL, das formas de

    implementao das aes do Estado, procurando destacar as razes que esto

    na base de uma PL. Ao analisar a escolha de um sistema ortogrfico do

    portugus, Pagotto tenta demonstrar as contradies presentes na adoo de PL.

    Apesar da utilizao de peas legislativas para a anlise, e a despeito de se tratar

    do sculo XIX, a pesquisa de Pagotto no toma a legislao como espao

    discursivo e tambm no analisa PL para o ensino de LE.

    A anlise de PL para o ensino de LE no Brasil com foco nos documentos

    legislativos do sculo XIX, sob uma perspectiva discursiva, a forma de

    contribuio desta pesquisa para os estudos e reflexes em torno do

    ensino/aprendizagem de lngua estrangeira. Nossa pesquisa justifica-se pela

    carncia de estudos que analisem os processos de constituio de PL

    direcionadas para o ensino de LE no Brasil no sculo XIX.

    Tendo como tese central o fato de que diversos discursos suscitaram a

    criao de PL para o ensino de lnguas estrangeiras no Brasil do sculo XIX, este

    trabalho visa a investigar tais discursos a fim de compreender o que est nas

    bases dessas PL.

    3. OBJETIVOS

    - investigar os efeitos de sentido construdos a partir do discurso

    poltico-educacional sobre o ensino da lngua inglesa no Brasil do sculo XIX.

    - compreender a formulao das polticas lingusticas da poca, em

    relao s LE.

  • 15

    - compreender o estatuto da lngua inglesa dentro da PL da poca em

    relao s outras lnguas.

    Para tanto, esta tese analisa os discursos formulados sobre a lngua

    inglesa e seu ensino quando de trs momentos especficos: a) a construo de

    um pas independente; b) a criao do CPII; c) a promulgao das reformas

    educacionais na segunda metade do sculo XIX.

    4. PERGUNTAS DE PESQUISA

    Com base nos objetivos, formulamos as seguintes perguntas de pesquisa:

    - Que polticas lingusticas permearam o ensino de lngua estrangeira no

    Brasil no sculo XIX?

    - Que discursos suscitaram a criao dessas polticas?

    - Qual era o estatuto da lngua inglesa em relao s outras lnguas?

    5. FUNDAMENTAO TERICA

    A fim de responder s indagaes relatadas na exposio do tema desta

    pesquisa, trabalhamos com a tica da Anlise do Discurso (AD), fundada na

    Frana por Michel Pcheux nos anos 60, que prope articular trs regies de

    conhecimento: a Lingustica, o Materialismo Histrico e a Teoria do Discurso,

    regies atravessadas por uma teoria da subjetividade de natureza psicanaltica.

    A AD toma como objeto de estudo o discurso, cuja noo distancia-se da

    acepo de mensagem, advinda do senso comum, de uma transmisso de

    informao entre A e B. Pcheux define discurso como um efeito de sentidos

  • 16

    entre locutores, um objeto socio-histrico em que o lingustico est pressuposto

    (1969, p.15).

    Tambm no se deve tomar o discurso como fala (na dicotomia

    lngua/fala), proposta por Sausurre, pois no se ope lngua enquanto um

    sistema fechado, e tambm no apenas uma ocorrncia casual da lngua, mas

    uma manifestao atestada de uma sobredeterminao de toda fala individual

    (MAZIRE, 2005, p. 13).

    Um conceito fundamental para a AD a noo de sujeito. Pcheux

    elaborou uma teoria no subjetivista do sujeito a partir da ideia de que o sujeito

    no o indivduo, um sujeito fsico, emprico e intencional e, portanto, no estaria

    na origem do seu dizer. Partindo das contribuies do materialismo histrico,

    Pcheux ressignifica a noo de ideologia a partir da considerao da linguagem

    e afirma que o sujeito atravessado (em seu discurso) por ideologias, quer sejam

    crenas, valores e atitudes. Em outras palavras, o indivduo no escolhe

    deliberadamente o que dizer em uma determinada situao, pois o seu dizer

    estar sendo afetado por este j l. Pcheux criticou as teorias que se

    contentam em reproduzir no nvel terico esta iluso do sujeito, atravs da ideia

    de um sujeito enunciador portador de escolha, intenes, decises etc.

    (PCHEUX & FUCHS, 1975, p. 175).

    Para a AD, o sujeito do discurso histrico, social e descentrado. Os

    sujeitos so tomados como sujeitos historicamente determinados e, por isso, os

    sentidos so produzidos sob a ao das condies de produo (CP). Para

    Pcheux, o discurso se produz materialmente pela lngua e precisa ser entendido

    em sua dupla materialidade, lingustica e histrica. As CP, portanto, dizem

  • 17

    respeito ao momento histrico, s caractersticas sociais e s formaes

    ideolgicas.

    No Brasil, as discusses da AD foram estendidas e aprofundadas por

    Orlandi, em muitas obras, dentre elas, Orlandi (1999). Segundo a autora, a AD

    no trabalha com a lngua enquanto um sistema abstrato, mas com a lngua no

    mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a

    produo de sentidos enquanto parte de suas vidas (p. 15). A AD apresenta-se,

    assim, como um campo disciplinar que trata da linguagem em seu funcionamento.

    Para compreender o funcionamento do discurso, necessria a remisso a

    um outro conceito basilar para a anlise de discurso, o de formao discursiva,

    que aquilo que, numa formao ideolgica dada, isto , a partir de uma posio

    dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes,

    determina o que pode e o que deve ser dito, lugar da constituio do sujeito. A

    AD considera o texto na sua opacidade, o que significa que o sentido de uma

    palavra no existe em si mesmo, mas determinado pelas posies ideolgicas

    colocadas em jogo no processo scio-histrico no qual as palavras so

    produzidas (PCHEUX, 1975, p. 160-162).

    Assim, o discurso um complexo processo de constituio de sujeitos e

    sentidos afetados pela lngua e pela histria:

    as palavras, expresses, proposies, etc., mudam de sentido segundo as posies sustentadas por aqueles que as empregam, o quer dizer que elas adquirem seu sentido em referncia a essas posies, isto , em referncia s formaes ideolgicas (PCHEUX, 1975, p. 160).

    Isso quer dizer que os sentidos no esto fixados a priori nas palavras, no

    so transparentes, evidentes, mas so determinados pelas posies ideolgicas

    que esto em jogo no processo scio-histrico no qual as palavras, expresses e

  • 18

    proposies so produzidas (PCHEUX, 1975, p. 160). Desse modo, o sentido

    sempre determinado ideologicamente e pode ser assumido ou no pelo sujeito, a

    depender das posies discursivas que este poder ou no ocupar em funo do

    funcionamento da ideologia.

    Como dito anteriormente, os dizeres so efeitos de sentido produzidos em

    condies determinadas. Essas CP compreendem os sujeitos e a situao, bem

    como a memria. Na perspectiva discursiva, a memria tratada como

    interdiscurso, ou seja, aquilo que fala antes, em outro lugar,

    independentemente. um conjunto de formulaes feitas e j esquecidas que

    determinam o que dizemos (ORLANDI, 1999, p. 31).

    Os sentidos de todo e qualquer discurso so constitudos no interdiscurso.

    Este o domnio do dizvel que constitui as formaes discursivas que, por sua

    vez, representam no discurso as formaes ideolgicas. o eixo da memria e

    da historicidade, dos enunciados j ditos em outros discursos, da materialidade

    histrica. Pela ideologia, naturaliza-se o que produzido pela histria. Assim, a

    formao discursiva constitui-se na relao com o interdiscurso (a memria do

    dizer), ou o todo complexo com dominante das formaes

    discursivas (PCHEUX, 1975, p. 162).

    A AD teoriza a interpretao, trabalha seus limites e mecanismos como

    parte do processo de significao. A noo de interpretao, amplamente

    trabalhada por Orlandi (1996), consiste no fato de que no h sentido sem

    interpretao. Em decorrncia da ideologia na constituio dos sujeitos, teremos

    diferentes gestos de interpretao inscritos em diferentes regies de sentidos.

    No h uma verdade oculta atrs do texto, h gestos de interpretao que o

    constituem. Sendo assim, a partir do texto, deve-se buscar compreender o

  • 19

    processo de produo de sentidos que a ausncia de transparncia da

    lngua(gem) possibilita resgatar (ORLANDI, 1999).

    Outros conceitos da Anlise do Discurso sero explicados medida que

    forem mobilizados na anlise, tendo em vista as caractersticas de movncia,

    opacidade e alteridade, assumidas pelos discursos.

    6. METODOLOGIA

    Analisar os discursos que circulavam no sculo XIX sobre as LE e as

    polticas para o seu ensino demandou um longo percurso de leituras, de

    construo de arquivos, em virtude do volume de peas legislativas promulgadas

    naquele sculo.

    Um primeiro recorte foi traado e estabeleceu como textos pertinentes para

    anlise documentos oficiais da legislao brasileira que tm como tema o ensino

    da lngua inglesa na instruo secundria no sculo XIX. No processo de

    construo do arquivo, selecionamos trechos de debates do parlamento brasileiro

    e relatrios ministeriais relacionados ao ensino de LE para compor o corpus. As

    leis concernentes instruo pblica primria e superior no foram contempladas

    no corpus desta pesquisa. Essa seleo se deve ausncia de documentos que

    atestem o ensino oficial da lngua inglesa nos dois nveis de ensino. Entretanto,

    sero consideradas para anlise as leis referentes instruo superior no que diz

    respeito aos requisitos e exames preparatrios para o ingresso naqueles cursos.

    O corpus desta pesquisa composto por materiais de arquivo. Pcheux

    (1982, p. 57) define arquivo como um "campo de documentos pertinentes e

    disponveis sobre uma questo". Segundo Guilhaumou e Maldidier (1994), o

    arquivo no um simples documento no qual se encontram referncias; ele

  • 20

    permite uma leitura que traz tona dispositivos e configuraes significantes.

    Portanto, ele nunca dado a priori, e em uma primeira leitura, seu funcionamento

    opaco, o que significa dizer que o corpus construdo pelo gesto do analista de

    ler, relacionar, recortar e, novamente, relacionar (p. 164).

    preciso ressaltar que a teorizao determina o procedimento

    metodolgico, e ambos levam constituio do corpus. A escolha do corpus se

    respalda no fato de que a legislao atua ideologicamente no apenas por

    pertencer ao plano da superestrutura jurdica, mas porque tem um discurso

    explcito diferente do discurso real, ou seja, proclama uma coisa, enquanto deseja

    e visa outra (SEVERINO, 1986, p.56).

    Os trechos das leis que constituem o corpus desta pesquisa encontram-se

    na seo ANEXOS e sero identificadas ao longo do texto, quando necessrio,

    por uma sigla referente ao nmero do anexo em questo, seguida da indicao da

    pgina do anexo correspondente, por exemplo, A1p3 (para anexo 1, pgina

    trs), A2p5 (para anexo 2, pgina 5) e assim por diante.

    As sequncias discursivas (SD) sob anlise so identificadas com uma

    sigla atribuda sequncia. Para remeter s SD no texto, ser mencionado o

    nmero da pgina, por exemplo, SD1, pgina 15, neste captulo.

    Os registros dos Anais da Cmara dos Deputados contendo debates sobre

    matria diversa encontram-se sob a forma de espessos volumes impressos, cujo

    manuseio torna-se complexo, agravado por um ndice temtico de carter

    bastante geral, o que demanda buscas incessantes ao seu interior. No entanto, o

    acesso leitura desses volumes possvel por meio da Internet, disponveis na

    forma de cpias escaneadas, que podem ser consultadas por meio de um

    calendrio virtual, contendo um link para os dias em que houve sesso no

  • 21

    parlamento. Pode-se seguir um procedimento semelhante a esse para acessar os

    ndices das sesses no Senado Federal.

    Os endereos eletrnicos para o acesso das leis e debates no Congresso,

    bem como para os Relatrios do Ministrio do Imprio esto disponveis na

    primeira pgina da seo ANEXOS ao final desta tese.

    7. ORGANIZAO DA TESE

    A pesquisa est organizada em cinco captulos. O primeiro captulo aborda

    as condies de produo do discurso poltico educacional sobre o ensino de LE

    no Brasil no sculo XIX incluindo um breve panorama do lugar das LE em

    Portugal, Frana e Inglaterra no final do sculo XVIII; o captulo segundo analisa

    as PL para o ensino das lnguas inglesa e francesa, no espao discursivo da

    legislao brasileira, tomando como base a Deciso n 29, lei de

    institucionalizao das LE no Brasil em 1809; o captulo terceiro analisa as PL no

    Brasil ento independente, na lei de criao dos cursos jurdicos, utilizando-se

    tambm do espao discursivo parlamentar no que tange aos debates que

    antecederam essa lei; o quarto captulo analisa as PL para o ensino de LE no

    decreto de criao do CPII e seus Estatutos. O quinto captulo trata da lei de

    Reforma Educacional do currculo brasileiro de 1854 e seus desdobramentos,

    buscando compreender o lugar das LE e sua relao com as outras lnguas,

    inclusive com a lngua portuguesa.

    Em suma, esta pesquisa visa a compreender, no espao discursivo da

    legislao educacional brasileira do chamado sculo ingls, as PL para o ensino

  • 22

    de LE na instruo pblica brasileira, por meio de uma anlise do discurso sobre

    a lngua inglesa e seu ensino no Brasil.

  • 23

    CAPTULO I

    Memria de lngua estrangeira no espao

    educacional brasileiro

    Uma memria no poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam

    transcendentais histricos e cujo contedo seria um

    sentido homogneo... necessariamente um espao

    mvel de divises, de disjunes, de deslocamentos e

    de retomadas, de conflitos de regularizao

    Michel Pcheux

    Se pudssemos lanar um olhar sobre o Brasil do sculo XIX como um flash de

    uma cmera fotogrfica, registraramos, provavelmente, um ou mais dos seguintes

    cenrios: fragatas pelo Atlntico, a instalao da Corte Real Portuguesa no Rio de

    Janeiro, Dom Pedro I s margens do Ipiranga, a Proclamao da Repblica e tantas

    outras paisagens consagradas pela Histria e to arraigadas em nossa mente. Ao

    fazermos recortes nesses cenrios, encontramos vestgios de um sculo pleno de vrios

    acontecimentos no s de cunho poltico, mas tambm econmico, religioso e, sobretudo,

    cultural e social.

    Entre as mudanas mais significativas no mbito poltico brasileiro, o sculo XIX

    testemunhou a mudana da condio de Brasil Colnia para sede do Reino Portugus, o

    processo de Independncia, proclamada em 1822, e a passagem da Monarquia

    Repblica em 1889.

    Em termos de organizao poltica, o Brasil oitocentista presenciou dois regimes de

    governo: o Monrquico e o Republicano. Segundo Carvalho (1993), o Brasil viveu o

  • 24

    regime monrquico durante todo o perodo colonial (1500 a 1821) e durante os 67 anos

    de vida independente (1822-1889). Quanto forma de governar, Portugal reinou absoluto

    at a independncia. Na organizao do novo estado, a monarquia era limitada por uma

    constituio votada por uma assembleia (regime monrquico constitucional). A

    organizao poltica do Brasil oitocentista pode ser conferida no quadro a seguir:

    Quadro 2 Organizao poltica do Brasil no Sculo XIX

    MONRQUICO REPUBLICANO

    Perodo Colonial Perodo Imperial 1 Perodo

    Republicano

    1500-1759

    Perodo Jesutico

    1759-1822

    Perodo Pombalino

    1808-1821

    (Perodo Joanino)

    1822-1830

    Primeiro Reinado

    (D. Pedro I)

    1831-1840

    Perodo Regencial

    1841-1889

    Segundo Reinado

    (D.Pedro II)

    1889- [1930]

    Primeira Repblica ou Repblica Velha

    No que tange ao ensino de LE, temos a criao das primeiras cadeiras2 de ingls e

    francs no Brasil, por meio da Deciso n 29, de 14 de julho de 1809, baixada pelo

    prncipe regente D. Joo, logo aps a instalao da famlia real portuguesa e sua Corte no

    Rio de Janeiro; a instituio das cadeiras de ingls e francs nos estudos preparatrios

    para os Cursos Jurdicos, criados em 1827; a insero dessas duas lnguas no Plano de

    Estudos do Colgio Pedro II, inaugurado em 1837; a exigncia da lngua inglesa ou

    francesa para as Aulas do Comrcio fixada pela lei de 1846; a presena das LE, incluindo

    as lnguas alem e italiana, nas leis que reformaram os estatutos do CPII na segunda

    1 Alguns historiadores consideram como incio do perodo monrquico a instituio do imprio (1822), porm utilizarei

    a periodizao de Carvalho (1993), que considera tambm todo o perodo colonial. 2 As cadeiras eram unidades de ensino, como se fossem cursos especficos, regidas por professores nomeados pelo

    Prncipe, geralmente ministrados em casas alugadas e subsidiadas pelo Governo, uma vez que no havia Escolas. As

    cadeiras, portanto, no se articulavam entre si.

  • 25

    metade do sculo XIX. Cabe lembrar que as lnguas clssicas (latim e grego) mantiveram

    seu prestgio no currculo secundrio brasileiro, embora o latim fosse cada vez mais

    cedendo espao para a lngua portuguesa.

    Da decorre a indagao: e o que esses processos histricos tm a ver com o

    discurso sobre lngua estrangeira que analisamos? Para analisarmos o discurso

    poltico-educacional sobre o ensino de LE naquele sculo, precisamos compreender como

    se constituiu historicamente o dizer dos sujeitos-legisladores na relao com outros

    dizeres, considerando que o sujeito se forma na histria por meio do trabalho da

    memria. Esta permite que os sentidos j-ditos por algum signifiquem em uma situao

    discursiva dada (ORLANDI, 1999). Nos documentos analisados, os sentidos de utilidade

    das LE para a instruo pblica se ancoram nesse espao de memria, relacionando-se

    com diversas regies do interdiscurso.

    A Anlise do Discurso parte do pressuposto de que a lngua no pode ser estudada

    desvinculadamente de suas CP, uma vez que os processos que a constituem so

    histrico-sociais. As CP compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situao.

    Devemos considerar de onde o sujeito do discurso enuncia, qual sua funo no ato da

    enunciao, em que condies este discurso foi produzido. De que lugar fala o sujeito

    legislador do sculo XIX? Que sentidos o seu discurso produz sobre a lngua inglesa e o

    ensino de LE? Estas so questes relevantes, uma vez que determinantes de significado.

    Dessa forma, buscamos compreender como se deu esse espao de memria nos

    documentos oficiais (leis, debates parlamentares e relatrios ministeriais) sobre ensino de

    LE e recorremos, assim, Histria a fim de explicitar os processos ideolgicos que fazem

    com que um determinado enunciado aparea em seu lugar e no outro (FOUCAULT,

    1969), uma forma de histria que d conta da constituio dos saberes, dos discursos,

    dos domnios de objeto, etc. (FOUCAULT, 1979, p.7).

  • 26

    A Histria aqui tomada em toda sua dimenso, no considerando-a como apenas

    o resultado da combinao e da articulao de processos ou de mecanismos de natureza

    econmica, sociolgica, psicolgica que a anlise cientfica traria de cada uma dessas

    disciplinas e de sua metodologia (HENRY, 1997, p. 30). Para a AD, a histria no

    cronologia, mas produo de sentidos, uma vez que intervm no dizer, movimentando os

    sentidos.

    Antes de discutirmos as CP do discurso poltico-educacional no sculo XIX,

    apresentamos um breve panorama do ensino de lnguas na Europa no final do sculo

    XVIII, no intuito de compreender o lugar da lngua inglesa em relao s outras lnguas

    antes da oficializao das lnguas inglesa e francesa em solo brasileiro em 1809, por meio

    da Deciso n 29, que objeto de anlise no captulo seguinte.

    1.1 As lnguas estrangeiras no sculo XVIII

    A insero das lnguas inglesa e francesa na instruo pblica brasileira em 1809

    nos remete evoluo das lnguas na Europa para que possamos compreender o lugar

    dessas lnguas no Brasil quando de sua institucionalizao.

    Na Europa, durante a Idade Mdia, o latim possua muito prestgio, sendo

    considerado a lngua da igreja, dos negcios, das relaes internacionais, das

    publicaes filosficas, literrias e cientficas. No plano metodolgico, o modo de ensino

    do latim que prevaleceu durante toda a Idade Mdia. O ensino das lnguas clssicas

    seguia um sistema de traduo e anlise gramatical que atravessou os sculos. Os

    homens cultos escreviam em latim, a lngua internacional da sabedoria, mas no sculo

    XVIII houve um aumento gradual de publicaes em ingls, francs, alemo, italiano e

    espanhol.

  • 27

    Segundo Howatt (1984), no sculo XVIII, o ensino de LE nas escolas da Europa

    era fato raro. Ensinavam-se, de um modo geral, as regras gramaticais do latim para

    serem aplicadas na aprendizagem de novas lnguas. Normalmente quem se dedicava a

    estudar uma LE eram adultos bem instrudos no latim, cujo domnio permitia que eles

    aplicassem as categorias gramaticais na interpretao de textos com o uso de dicionrios.

    No Brasil, a instruo pblica era exercida pela Companhia de Jesus, que construiu

    um aparato que inclua escolas de ensino de primeiras letras, os cursos de Letras e

    Filosofia, considerados secundrios, e o curso de Teologia e Cincias Sagradas, de nvel

    superior. Este era o nico curso de nvel superior existente no Brasil at a chegada da

    famlia real em 1808. As lnguas estrangeiras no participavam do Ratio Studiorum,

    documento que regulamentava as escolas jesutas, apenas o latim e o grego,

    consideradas disciplinas dominantes.

    Aps 210 anos de reinado, a ordem religiosa jesuta encerrou-se com a expulso

    dos jesutas de Portugal e seus reinos (1759), em decorrncia dos interesses portugueses

    por uma poltica que visava alar Portugal e seus reinos a uma situao econmica

    capaz de competir com as potncias estrangeiras (CARVALHO, 1978, p. 100). Essa luta

    do Estado portugus teve como expoente o Marqus de Pombal, primeiro-ministro de

    Portugal de 1750 a 1777, cujo objetivo primordial era equilibrar a balana comercial e uma

    das providncias seria atenuar os privilgios de que gozavam as ordens religiosas.

    Entre as aes nas mais diversas reas, Pombal fixou uma reforma educacional

    denominada Reforma Pombalina dos Estudos Menores. Esta desenvolveu-se em duas

    fases que se iniciam respectivamente com a promulgao do Alvar Rgio de 28 de junho

    de 1759 (que cria as aulas rgias3 de gramtica latina, retrica e grego), e da Lei de 6 de

    3 As aulas rgias foram assim denominadas na Reforma Pombalina e consistiam de aulas isoladas que compreendiam o

    estudo das humanidades e que deveriam suprir as disciplinas antes oferecidas nos extintos colgios jesutas e

    perduraram no Brasil at 1822, quando passaram a ser chamadas de Aulas Pblicas. Somente em 1835 que as Aulas

    Pblicas (cadeiras) passaram a ser objeto de um corpo organizado, nos denominados liceus.

  • 28

    novembro de 1772 (que cria as aulas rgias de leitura, escrita e clculo, alm das

    cadeiras de filosofia). A partir de ento, a Reforma colocou o Estado como orientador das

    polticas educacionais, passando a ser tutor da educao. Na parte que toca s lnguas,

    destacamos a proibio do uso das lnguas gerais e imposio do idioma portugus em

    1767, pelo documento Diretrio dos ndios, que pregava a integrao dos ndios

    sociedade portuguesa, uma poltica que visava difuso do portugus como lngua e

    cultura da metrpole, um monolinguismo idealizado (MARIANI, 2004, p. 31).

    A segunda fase da Reforma Pombalina coincide com a reforma dos estatutos da

    Universidade de Coimbra e onde as LE entram como recomendao para os cursos de

    Medicina e Matemtica sem a obrigao de exames admissionais, como podemos

    observar nos trechos da lei que versam sobre os conhecimentos preparatrios (A1p1):

    tambem he para desejar, que os Estudantes Medicos se instruam nas Linguas Vivas

    4 da Europa; principalmente na Ingleza, e Franceza, nas quaes estam

    escritas, e se escrevem cada dia muitas Obras importantes de Medicina (PORTUGAL, 1772a, 1772b, p. 9).

    O texto do curso matemtico era bem semelhante no que tange s lnguas e s

    obras escritas nelas (A1p2). Os cursos jurdico e teolgico no recomendavam as lnguas

    inglesa e francesa para a matrcula, apenas o grego e o latim, que compunham a lista dos

    conhecimentos desejados para todos os cursos (A1p3). Vale salientar que as mudanas

    ocorridas em Portugal no se replicaram no Brasil. Enquanto na Metrpole as lnguas

    estrangeiras e a cincias vieram compor o plano de estudos secundrios, no Brasil elas

    ficaram margem em decorrncia da ao do modelo de ensino jesutico que manteve

    sua ao pedaggica (SECO, 2006). Apenas no incio do sculo XIX que as LE

    despontaram no cenrio educacional brasileiro.

    4

    O termo lnguas vivas era a nomenclatura utilizada na poca para designar lngua estrangeira, em oposio a lnguas clssicas (Latim e Grego).

  • 29

    Em suma, as reformas pombalinas filiavam-se ao iderio das Luzes, como

    expresso do Iluminismo em Portugal. Movimento iniciado na Frana do sculo XVII, o

    Iluminismo ocorreu na Europa na primeira metade do sculo XVIII, no governo de Lus

    XIV, denominado o Rei Sol. O sculo XVIII ficou conhecido como o Sculo das Luzes.

    Para Fausto (1994), o Iluminismo pode ter sido o estgio mais crucial do surgimento de

    um conceito dominante na moderna cultura europeia: a ideia de progresso (p. 492).

    Veremos que as ideias do Iluminismo so frequentemente abordadas nos textos dos

    debates parlamentares que analisamos como um ideal a ser alcanado. Essa busca pelo

    progresso com vistas a engrandecer o Brasil e ergu-lo ao nvel das naes cultas,

    principalmente a Frana, configurou-se como um alvo forte que norteou os pensamentos

    dos dirigentes na elaborao de polticas para o ensino de lnguas.

    O Iluminismo pregava a f inabalvel na cincia, na razo humana e no prprio

    homem. Segundo os iluministas, o homem tornava-se vtima de si mesmo ao permitir que

    as instituies orientassem sua vida, particularmente as autoridades polticas e

    eclesisticas. Da o protesto s formas remanescentes da poca feudal na vida

    intelectual, nos hbitos no-cientficos do pensamento, e contra as teorias que insistem na

    impotncia humana (GILES, 1987, p. 171).

    Apesar de se desenvolver com mais intensidade na Frana, onde influenciou a

    Revoluo Francesa atravs de seu lema liberdade, igualdade e fraternidade, o

    movimento contou com pensadores na Alemanha, Esccia, Estados Unidos, Inglaterra e

    no espao luso-brasileiro. O Iluminismo influenciou uma srie de movimentos na Europa e

    fora dela que abalaram definitivamente o Antigo Regime ao longo dos sculos XVIII e XIX

    como, por exemplo, a Independncia dos EUA e a Revoluo Francesa.

    A seguir, discutiremos as CP do discurso poltico-educacional sobre LE no sculo

    XIX, com foco no ensino da lngua inglesa. A discusso dessas CP visam a subsidiar a

  • 30

    anlise do discurso poltico-educacional sobre a lngua inglesa e seu ensino, com o

    objetivo de compreender as PL para o ensino de LE no Brasil naquele sculo.

    1.2 Reorganizando o Estado Portugus

    Em face dos conflitos com a Frana (guerras napolenicas), em 1807, D. Joo

    recorreu quela com quem travava estreitas relaes comerciais. Portugal mantinha

    relaes de dependncia econmica com a Inglaterra desde o Tratado de Methuen, em

    1703, no entanto, Freyre (1948) menciona a poca de Crommwell - 1654, quando os

    ingleses possuam diversas regalias como a liberdade de comrcio sem salvo-conduto

    nem Licena em Portugal e em todos os seus domnios, entre outras (p. 18).

    D. Joo transfere a Famlia Real Portuguesa para o Brasil, sob a proteo naval da

    marinha inglesa, em troca da abertura dos portos brasileiros aos navios ingleses. Em

    virtude disso, alterou-se a condio colonial dando incio reorganizao do Estado por

    meio da criao dos Ministrios do Reino e rgos da administrao e da justia. Entre as

    mudanas educacionais, Romanelli (1978) cita como principal a criao dos cursos

    superiores (no-teolgicos): a Academia Real da Marinha e Militar, os cursos mdico-

    cirrgicos da Bahia e Rio de Janeiro.

    O considerado volume de peas legislativas publicadas nos primeiros anos aps a

    chegada de D. Joo aponta para um contexto de organizao de um novo Estado. So

    inmeras Cartas Rgias, Alvars e Decretos promulgados em to curto espao de tempo,

    na tentativa de fundar as principais instituies de que precisava para a manuteno da

    monarquia portuguesa. Entre estas podemos citar o Supremo Conselho Militar e de

    Justia, Casa da Suplicao do Brasil, Corpo da Brigada Real da Marinha, Real Fbrica

    de Plvoras, Arquivo Militar, Errio Rgio e o Banco do Brasil (OLIVEIRA, 2006).

  • 31

    A transferncia da famlia real para o Brasil em 1808, sob a gide da esquadra

    britnica, significou para o Brasil, sob o ponto de vista poltico e principalmente

    econmico, um compromisso no qual D. Joo garantiria realizar a abertura dos portos

    brasileiros para naes estrangeiras. Alm da escolta, os ingleses tambm se

    comprometeram a dispor de suas tropas para combater os exrcitos franceses que

    invadiriam Portugal. As demais naes do mundo tambm foram contempladas com a

    liberao dos portos em 1810, por meio do Treaty of Cooperation and Friendship

    (Tratado de Cooperao e Amizade). No entanto, a vantagem obtida pelos ingleses nesse

    acordo era latente a considerar as alquotas alfandegrias. Logo que os portos brasileiros

    foram abertos, a Inglaterra iniciou sua dominao no mercado consumidor brasileiro,

    consolidando a hegemonia britnica sobre o comrcio brasileiro e a influncia poltica nas

    decises da Corte. A dependncia econmica permaneceu e veio a manifestar-se no

    processo de independncia do Brasil, quando Portugal reconheceu a nova nao, anos

    aps a declarao do fico por D. Pedro I e de inmeros conflitos internos e externos,

    mas no por menos do que dois milhes de libras, financiados pela Inglaterra (FAUSTO,

    1994).

    Atrelado ao aumento da movimentao do comrcio, veio o estabelecimento em

    1808 de uma cadeira de cincia econmica, organizada por Jos da Silva Lisboa, futuro

    Visconde de Cairu. Segundo Oliveira (2006), o ensino comercial estava sob a

    responsabilidade da Real Junta do Comrcio, Agricultura, Fbricas e Navegao do

    Estado do Brasil e Domnios Ultramarinos, que criou as Aulas de Comrcio em 1809.

    Embora houvesse bastante literatura sobre o tema em ingls e francs, essas lnguas no

    eram exigidas para a matrcula no referido curso. Apenas em 1846 elas passaram a ser

    requisitos para a admisso. O lugar dessas lnguas no discurso poltico-educacional

    analisado no captulo 5 desta tese.

  • 32

    Fausto (1994) relata que uma vida cultural comeou a se esboar naquele incio

    daquele sculo e uma relativa circulao de ideias, por meio do acesso aos livros

    (circulao antes controlada por Pombal), do primeiro jornal editado na Colnia (a Gazeta

    do Rio de Janeiro), dos teatros, bibliotecas, academias literrias e cientficas, para

    atender aos requisitos da Corte e de uma populao urbana em rpida expanso (p.

    125). A importao de livros ingleses, somada forte presena deste povo no Brasil,

    apontada por Freyre (1948) como uma das consequncias da conquista da lngua inglesa

    do prprio reduto brasileiro da [lngua] latina (p. 74). Discutiremos a seguir alguns

    aspectos da influncia britnica na vida cultural do Brasil.

    1.2.1 A presena britnica

    Gilberto Freyre, em sua obra Ingleses no Brasil, define as relaes entre a Gr-

    Bretanha e o Brasil ainda semi-colonial como "mais ou menos imperiais" (1948). A vinda

    da Corte Real Portuguesa para o Brasil trouxe consigo a influncia britnica. Pantaleo

    (1997) salienta que o sculo XIX foi, sobretudo na sua primeira metade, o sculo ingls

    por excelncia:

    Da velha metrpole transferia-se para o Brasil a presena inglesa. As necessidades do governo portugus, primeiro, e depois os problemas iniciais do Brasil independente, favoreceram a posio dos ingleses, que souberam aproveitar as circunstncias para defender seus interesses, sobretudo comerciais (p.64).

    Segundo Freyre (1948), a preponderncia econmica dos britnicos no poderia

    deixar de transbordar, como transbordou, noutras esferas de influncia: um conjunto de

    influncias culturais de toda espcie, tanto imaterial como material. Os ingleses influram

    em todos os aspectos da vida brasileira: no mercado, nos investimentos em ttulos de

    emprstimo do governo, em companhias mineiras, em estradas de ferro, nos costumes de

  • 33

    moradia, na moda, nos mveis e objetos das casas. Surgiram as carruagens, os

    machados e serras inglesas. Alm disso, houve a influncia intelectual, atravs dos seus

    livros em prosa ou verso, dos livros tcnicos e cientficos, traduzidos no desejo de

    aproximao dos grandes mestres da Literatura Inglesa como Byron, Scott, Swift,

    Dickens, Doyle, entre outros.

    De acordo com Pallares-Burke (FREYRE, 1948, orelha do livro), a influncia

    britnica sobre o Brasil do sculo XIX foi to marcante que se dizia que estava

    londonizando nossa terra. Tais palavras encontram respaldo em Freyre (1948):

    A presena da cultura britnica no desenvolvimento do Brasil, no espao, na paisagem, no conjunto da civilizao do Brasil, das que no podem ou no devem? ser ignoradas pelo brasileiro interessado na compreenso e na interpretao do Brasil (p. 46)

    Apesar da forte presena britnica, o Brasil foi bastante influenciado pela cultura

    francesa. No prefcio primeira edio de Ingleses no Brasil (FREYRE, 1948), Tarqunio

    de Sousa defende que a Frana fora sempre a rival da Inglaterra no Brasil, a disputar-lhe

    a clientela comercial e o domnio dos espritos. O historiador defende que, a despeito do

    poderio econmico britnico, a Frana chegou a suplantar a Inglaterra, no apenas na

    moda feminina e nos perfumes, mas influiu por suas ideias, suas doutrinas polticas, seus

    poetas, seus livros (p.24). Essa influncia tornou-se mais intensa aps 1816,

    consolidando-se com a vinda da Misso Cultural Francesa, que culminou na criao da

    Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil, o Museu Real, a

    Biblioteca Pblica e o Jardim Botnico.

    No que tange instruo pblica, a influncia da Frana nas leis brasileiras foi

    bastante acentuada, contudo, as decises em torno de que modelo de educao seguir

    apontam para as naes cultas, a includas a Inglaterra, a Alemanha, a Holanda e a

    Blgica.

  • 34

    1.3 O Brasil semi-colonial

    O processo de construo da instruo pblica no Brasil no sculo XIX foi lento e

    desenvolvido de forma desordenada. Ao nos debruarmos sobre a legislao do incio do

    sculo, nos deparamos com a ausncia de um sistema pblico educacional, ou seja, um

    Plano de Estudos para a instruo secundria.

    No Brasil oitocentista, o Estado era tutor da instruo pblica que desde as

    chamadas reformas pombalinas dos estudos menores, em 1759, passou a ter a

    responsabilidade sobre ela. Vale lembrar que a instruo pblica destinava-se aos

    cidados, excluindo, portanto, os escravos. Alm disso, a instruo para meninas

    restringia-se ao ensino elementar ou (de primeiras letras), que previa somente noes de

    aritmtica e prendas que servem economia domstica e das boas maneiras, e em

    alguns casos, a lngua francesa (HAIDAR, 1972, p. 231).

    A instruo pblica antes da chegada da Corte Real Portuguesa era constituda de

    algumas poucas escolas e aulas rgias, destinadas preparao de uma elite da

    populao colonial para estudos posteriores na Europa.

    Cabe-nos ressaltar a preeminncia da instruo superior sobre a primria e

    secundria. Segundo Haidar (1972), j havia instruo superior no Brasil antes mesmo

    que nele fosse organizada a instruo secundria. A instruo primria continuou sendo

    prerrogativa da famlia, segundo a tradio das camadas privilegiadas. A instruo pblica

    era, portanto, organizada de cima para baixo, revelando a continuidade de uma tradio

    aristocrtica, o que caracterizou tambm boa parte do Perodo Imperial. O alto grau de

    importncia dado instruo superior se reflete nos extensos relatrios do Ministrio do

    Imprio (1832-1889), principalmente no que se refere aos cursos e exames preparatrios

    para as Faculdades de Direito e Medicina.

  • 35

    1.3.1 A regulamentao das lnguas inglesa e francesa

    Foi no incio do sculo XIX que as LE foram institucionalizadas no Brasil, selando o

    sentido de utilidade das LE para a instruo pblica secundria brasileira. Por meio da

    assinatura da Deciso n 29 Resoluo de Consulta da Mesa do Desembargo do Pao5

    de 14 de julho de 1809 (A2p1), pelo Prncipe Regente de Portugal D. Joo, recm-

    chegado ao Brasil, criaram-se as cadeiras de ingls e francs no Rio de Janeiro:

    E sendo outrossim to geral, e notoriamente conhecida a necessidade, e utilidade das lnguas franceza e ingleza, como aquellas que entre as linguas vivas teem o mais distinto logar, de muito grande utilidade ao Estado, para augmento, e prosperidade da instruco pblica, que se cre nesta capital uma cadeira de lingua franceza, e outra de ingleza (CLIB [1809] 1891)6

    Como exposto na Introduo desta pesquisa, a promulgao dessa lei um divisor

    de guas para a histria do ensino de LE no Brasil e, acima de tudo, produz um discurso

    que funda um lugar para as LE. Essa lei analisada no captulo 2 desta pesquisa, pois

    instaura uma PL para o ensino de LE no Brasil. Ainda em 1809 foram feitas, e

    assinadas por D. Joo, as Cartas de nomeao dos professores das Lnguas Francesa e

    Inglesa. A primeira nomeava o padre Boiret Professor da Lngua Francesa com o

    ordenado de 400 mil ris por ano. No dizer dessa lei, o francs ganhava estatuto de

    lngua universal: a lngua francesa sendo a mais difundida e, por assim dizer, universal, a

    criao de uma cadeira desta lngua muito necessria para o desenvolvimento e

    prosperidade da instruo pblica (apud ALMEIDA, 1889, p. 42).

    5 As Decises eram tomadas sobre representao ou requerimento de partes interessadas e baixadas pelos ministrios,

    que tambm desempenhavam a funo de um tribunal superior cujas sentenas valiam como lei. Eram numeradas e

    rubricadas pelo regente ou imperador (OLIVEIRA, 2006). 6 O ano entre colchetes o da promulgao da lei, seguido do ano da obra citada.

  • 36

    nomeao do professor de francs seguiu-se a do professor da cadeira de ingls,

    o padre Jean Joyce, com o salrio de 400 mil ris por ano, na qual observamos lugares

    atribudos lngua inglesa, como lngua rica e difundida, porm sem o carter universal:

    era necessrio criar nesta capital uma cadeira de lngua inglsa, porque, pela sua difuso e riquesa, e o nmero de assuntos escritos nesta lngua, a mesma convinha ao incremento e prosperidade da instruo pblica (apud ALMEIDA, 1889, p. 42).

    No encontramos na legislao do incio do sculo registros de ensino da lngua

    inglesa na instruo pblica primria, tampouco nas dcadas subsequentes. Esse ramo

    da instruo pblica era confiado aos preceptores (instruo no prprio lar) ou a

    professores particulares. Freyre (1948) fornece inmeros relatos de prtica de ensino de

    ingls no Brasil por professores particulares. Vejamos, por exemplo, um anncio no jornal

    brasileiro de maior circulao da poca, a Gazeta do Rio de Janeiro7, oferecendo servios

    de Professora Ingleza:

    Na Rua dos Ourives n. 27 mora huma Ingleza com casa de educao para meninas que queiro aprender a ler, escrever, contar e falar Inglez e Portuguez, cozer, bordar, etc. (GAZETA DO RIO DE JANEIRO, de 08.02.1809, apud FREYRE, 1948, p. 266)

    Freyre (1948) salienta a ousadia das professoras inglesas ao se oferecerem para

    ensinar ingls s meninas do Rio de Janeiro, citando um anncio veiculado nesse

    peridico, que divulgava um verdadeiro colgio:

    D.Catharina Jacob toma a liberdade de fazer sciente ao Publico, que ella tem estabelecido huma Academia para instruco de Meninas na rua da Lapa, defronte da Ex.ma Duqueza, em que ensinar a lr, escrever, e fallar as lnguas Portugueza, e Ingleza grammaticalmente; toda a qualidade de costura e bordar,

    7 A Gazeta do Rio de Janeiro pode ser acessada pelo endereo eletrnico:

    http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/gazeta_rj/gazeta.htm, e faz parte do projeto da Fundao Biblioteca Nacional denominado Rede da Memria Virtual Brasileira.

  • 37

    e o manejo da Caza [grifos no original] (GAZETA DO RIO DE JANEIRO, apud FREYRE, 1948, p.266-267)

    Podemos observar que a lngua inglesa, ao lado da portuguesa, ocupava um lugar

    na formao integral das meninas, distanciando-se do carter meramente instrumental

    atribudo ao ensino preparatrio para os cursos superiores, reservado aos meninos

    (VIDOTTI, 2010b).

    O ensino da lngua francesa tambm era ofertado publicamente naquele incio de

    sculo, conforme relata Freyre: os jornais se enchem de anncios de professores de

    francs e de ingls (1948, p. 266), como em um anncio sobre ensino de francs no

    Seminrio de S. Jos:

    A 2 de Outubro se abrio no Seminario de S. Jos desta Corte a Aula Regia da Lingua Franceza: os que quiserem aprende-la, tornando-se assim mais teis Patria, procurem ao digno Professor, o P. Renato Boiret, morador da rua do Cano, n. 13 (GAZETADORIODEJANEIRO, 1809, p.4, grifo no original).

    As ofertas de aulas de lngua inglesa e francesa eram, assim, divulgadas por

    diversas formas de apelo comercial como nesse anncio veiculado no mesmo peridico

    citado, cujo autor se mantm no anonimato, apenas se auto-denominando natural de

    Londres:

    Quem quizer aprender a Lingua Ingleza grammaticalmente com perfeio em pouco tempo, ha de fallar com Francisco Ignacio da Silva na casa de Caf na rua Direita, o qual h de entregar hum bilhete com o nome do Mestre, natural de Londres (GAZETA DO RIO DE JANEIRO, apud FREYRE, 1948, p. 270, grifo no original)

    Observamos uma caracterstica comum aos professores: a do falante nativo. A

    primazia da nacionalidade do professor sobre sua identidade no anncio acima parece

    al-lo a um ideal de lngua a ser alcanado, procurando legitimar o lugar do professor

    nativo como aquele que domina a lngua que ensina, conferindo-lhe um lugar de verdade.

    Notamos tambm a partir dessa perspectiva, que o falar corretamente funciona como uma

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    espcie de chamariz na tarefa de fisgar o interessado em aprender a lngua

    grammaticalmente.

    1.4 As LE no Brasil independente

    Aps a Independncia do Brasil, em 1822, o sistema administrativo passou por um

    processo transitrio. Em 1823, foi criada a Assembleia Geral, formada pela Cmara dos

    Deputados e Senado, porm dissolvida pelo imperador. A partir da Constituio do Brasil

    outorgada em 25 de maro de 1824, organizou-se a administrao do Imprio sob o

    governo monrquico, representativo e constitucional, dividido em provncias, governadas

    por um presidente nomeado pelo imperador. Aps a promulgao da Carta Magna, deu-

    se incio aos trabalhos no parlamento brasileiro (1826). Entre os assuntos em debate, a

    criao de um curso jurdico no Brasil tomou conta dos primeiros meses de discusses

    sobre os novos rumos da nova Nao (A3p1). Esse debate ocupa um lugar de destaque

    na anlise que empreendemos no captulo 3 desta tese. De igual modo, o debate de 1826

    traz o tema da formulao da questo da lngua nacional do Brasil; as discusses no

    Senado e na Cmara acerca do CPII e Aulas do Comrcio, respectivamente. Por ltimo, o

    debate de 1846 versa sobre a criao de um liceu nacional, cuja polmica girou em torno

    da primazia das LE sobre a lngua nacional.

    No Primeiro Reinado (1822-1831), o Imperador D. Pedro I criou os cursos primrios

    em todo o pas, por meio da Lei de 15 de outubro de 1827, adotando um plano para a

    instruo primria denominado Sistema de Ensino Mtuo (ou Mtodo Lancasteriano),

    bastante em voga na Inglaterra e j propagado na Frana, Sua, Rssia e Estados

    Unidos. Esse mtodo apoiava-se no trabalho dos monitores, escolhidos entre os alunos

    mais habilitados, que eram instrudos parte pelo mestre. Na prtica, os monitores eram

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    responsveis por uma decria, ou um grupo de 10 alunos. Vale salientar que as Escolas

    Primrias nada mais eram do que aulas funcionando em casas alugadas pelo Estado.

    Ainda no ano de 1827, foram institudos por D. Pedro I os cursos jurdicos de So

    Paulo e Olinda (A3p4), mais tarde denominados Faculdade de Direito, ao lado dos j

    existentes cursos mdico-cirrgicos transformados em Faculdades de Medicina.

    Em 1831, D. Pedro I abdicou do trono em favor de seu filho, Pedro II, iniciando o

    Perodo Regencial (1831-1840). Nesse mesmo ano, foram baixados os Estatutos dos

    Cursos de Cincias Jurdicas e Sociais do Imprio (A3p6), que previam a incorporao s

    Academias de seis cadeiras destinadas a ministrar os conhecimentos exigidos para os

    exames de preparatrios, entre elas a de ingls e francs. Junto s Faculdades de Direito,

    instalaram-se cursos destinados a ministrar os conhecimentos preparatrios para os

    Estudos Superiores. Apenas em 1853, a lngua inglesa passou a ser exigida para

    admisso nos Cursos Jurdicos e de Medicina8.

    O Perodo Regencial (1831-1840) testemunhou o Ato Adicional Constituio do

    Imprio. Essa lei, aprovada em 1834, estabelecia como capital do pas o Rio de Janeiro,

    como Municpio Neutro ou Municpio da Corte, desvinculado da provncia do Rio de

    Janeiro. Essa Reforma Constitucional atribuiu s assembleias provinciais o direito de

    legislar sobre a instruo pblica. Sistemas paralelos de ensino em cada provncia foram

    estabelecidos, visando sanar questes anteriormente centralizadas pela Coroa. O poder

    central ficou encarregado de promover e regulamentar a instruo apenas no Municpio

    da Corte (atual cidade do Rio de Janeiro), e a instruo superior em todo o Imprio.

    Segundo Almeida (1889), o direito das provncias de legislar sobre a Instruo Pblica

    resultou em uma multido de leis incoerentes (p.64). Criaram-se escolas sem se cogitar

    da importncia de formar professores.

    8 Decreto n. 1.134 de 30 de maro de 1853.

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    Haidar (1972) revela que, antes do Ato Adicional de 1834, a instruo pblica

    secundria encontrava-se reduzida a um punhado de aulas espalhadas pelos quatro

    cantos do imprio (p. 20). A falta de estruturao e fiscalizao das aulas avulsas levou o

    Ministro Chichorro da Gama, em 1834, a propor a criao de um estabelecimento de

    ensino onde se pudessem reunir as aulas num s edifcio, para que fossem mais bem

    dirigidas.

    1.5 As LE no Colgio Pedro II

    Imbudos pelo desejo de elevao do Brasil ao nvel das naes cultas da Europa,

    os regressistas criaram o Colgio Pedro II (CPII), pelo Decreto de 2 de dezembro de

    1837, estabelecimento que