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2 capítulo primeiro “Tome-se como exemplo a palavra úmido“Isto não é um capítulo”. Como a “introdução” não foi de fato uma introdução, como ela não introduziu propriamente (se isto for possível) o tema da tese (e se isto for uma tese), então é necessário que, neste primeiro capítulo, realmente se apresente o tema ao qual estou aqui me dispondo a tratar, o modo como eu estou tendo que “lidar” com este dom que recebi através do termo “úmido” e que, enfim, realmente prepare o terreno para o primeiro capítulo de cunho “teorético” da tese (e, neste sentido, o terceiro capítulo será de fato o primeiro e talvez único “capítulo”). A questão “introdutória”, neste caso, desta maneira, seria a seguinte: Se se pode, se se deve – e, caso se possa ou se deva, como – re-contextualizar uma crítica do pensamento moderno e realçar este “criticado” como trunfo de uma certa tendência filosófica da contemporaneidade. um contemporâneo Tendo como mote a “re-contextualização” da citação que intitula este primeiro capítulo da tese, parece que, de início, o problema que surge é quanto ao “transporte” que faço (que logo em seguida se estudará detalhadamente no que concerne ao conceito de “contexto”) de uma concepção “moderna” para um pensamento dito “pós-moderno” – aliás, de uma noção de um dos primeiros ícones da modernidade para um dos mais atuais pensadores. E a primeira parte deste capítulo tratará, pois, desta problemática distinção (problemática como toda distinção) para o pensamento de Derrida. Recentemente, em sua última entrevista, concedida ao jornalista do Le Monde Jean Birnbaum, Derrida utiliza a palavra “geração” 36 para indicar os filósofos que seriam seus contemporâneos, como Lacan, Foucault, Lyotard, Deleuze, Lévinas etc. Antes disto, em seu diálogo com Elizabeth Roudinesco, a primeira parte da conversa foi também sobre a herança que Derrida e seus 36 Ver o já citado Aprender enfim a viver.

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2 capítulo primeiro “Tome-se como exemplo a palavra úmido”

“Isto não é um capítulo”. Como a “introdução” não foi de fato uma introdução,

como ela não introduziu propriamente (se isto for possível) o tema da tese (e se

isto for uma tese), então é necessário que, neste primeiro capítulo, realmente se

apresente o tema ao qual estou aqui me dispondo a tratar, o modo como eu estou

tendo que “lidar” com este dom que recebi através do termo “úmido” e que,

enfim, realmente prepare o terreno para o primeiro capítulo de cunho “teorético”

da tese (e, neste sentido, o terceiro capítulo será de fato o primeiro e talvez único

“capítulo”). A questão “introdutória”, neste caso, desta maneira, seria a seguinte:

Se se pode, se se deve – e, caso se possa ou se deva, como – re-contextualizar uma

crítica do pensamento moderno e realçar este “criticado” como trunfo de uma

certa tendência filosófica da contemporaneidade.

um contemporâneo Tendo como mote a “re-contextualização” da citação que intitula este primeiro

capítulo da tese, parece que, de início, o problema que surge é quanto ao

“transporte” que faço (que logo em seguida se estudará detalhadamente no que

concerne ao conceito de “contexto”) de uma concepção “moderna” para um

pensamento dito “pós-moderno” – aliás, de uma noção de um dos primeiros

ícones da modernidade para um dos mais atuais pensadores. E a primeira parte

deste capítulo tratará, pois, desta problemática distinção (problemática como toda

distinção) para o pensamento de Derrida.

Recentemente, em sua última entrevista, concedida ao jornalista do Le

Monde Jean Birnbaum, Derrida utiliza a palavra “geração” 36 para indicar os

filósofos que seriam seus contemporâneos, como Lacan, Foucault, Lyotard,

Deleuze, Lévinas etc. Antes disto, em seu diálogo com Elizabeth Roudinesco, a

primeira parte da conversa foi também sobre a herança que Derrida e seus

36 Ver o já citado Aprender enfim a viver.

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“contemporâneos” teriam herdado 37. Certamente, Derrida e os filósofos que se

formaram em um mesmo período receberam, ao menos, informações parecidas,

mas isso não permitiria se falar ainda precisamente, devido à gama infindável de

diferenças entre eles, do “pertencimento” a uma geração. E é por isso que, na

mesma entrevista, Derrida objeta o termo e o coloca entre aspas 38.

Mas, antes, para que não pareça arbitrária a afirmação que sustentarei

(qual seja, a de que há sim uma contemporaneidade, mas não relacionada a uma

presença empírica no mundo em determinada época, nem a um co-pertencimento

ou vizinhança de pensamento, e sim ao fato de que, se somos sempre herdeiros da

tradição, só há contemporaneidade), penso ser necessário uma breve apresentação

do que se pretende refutar. Deste modo, que se veja de passagem o que,

correntemente, se toma por “moderno” e “pós-moderno”, e apesar de saber a

extensão deste debate contemporâneo sobre a (pós)modernidade, me aterei apenas

à noção básica desta querela, já que meu intuito é o de apenas justificar os

“contextos” que intercambiarei – e que são, inevitavelmente, para mim,

intercambiáveis.

Ao apresentar a “idéia de modernidade”, Danilo Marcondes afirma que

talvez esta seja uma das idéias de mais fácil apreensão, por estar tão próxima de

nós e, com o que concordo plenamente, “por sermos ainda hoje, de certo modo,

herdeiros desta tradição” 39. Tal tradição, que teria como seus precursores Bacon e

Descartes, seria marcada por um rompimento com a tradição, pela necessidade

filosófica de uma constante revolução e inovação. “O conceito de modernidade

está sempre relacionado para nós ao ‘novo’ (...). Trata-se, portanto, de um

conceito associado quase sempre a um sentido positivo de mudança,

transformação e progresso” 40. Mas a antecipada controvérsia da modernidade

(que envolveu, sobretudo, Habermas e Lyotard) indica que, nos dias de hoje,

haveria duas posições possíveis a serem tomadas em relação a isto que se definiu

acima como modernidade: uma continuísta e a outra descontinuísta. Sob este

aspecto, de um lado, Habermas defenderia o projeto da modernidade, 37 DERRIDA, J. e ROUDINESCO, E. De que amanhã... Diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. 38 Sobre isso, ver o primeiro diálogo entre Derrida e Roudinesco, “Escolher sua herança”, em que Derrida se posiciona frente à sua geração e a tal “pertencimento” (p. 15). 39 MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, pág. 139. 40 MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein, pág. 139.

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“considerando que este projeto não está acabado, mas precisa ser levado adiante”,

e, de outro, Lyotard introduziria a noção de pós-modernidade, “como uma

necessidade de superação da modernidade” 41.

Entretanto, esta aparentemente óbvia oposição não é tão simples assim. O

objetivo de A condição pós-moderna 42 não é o de simplesmente empreender uma

crítica da modernidade,

já que o pensamento pós-moderno não visa a uma crítica ou ruptura com a modernidade, mas sim uma superação de metodologia, dos pressupostos epistemológicos e das categorias de pensamento da modernidade, inclusive da própria idéia de crítica, buscando novos rumos para o pensamento. 43

O que torna a crítica direcionada a Lyotard por Habermas, em “A modernidade –

um projeto inacabado” 44, extremamente suspeita (bem como a crítica que faz, em

geral, aos “pós-modernos”, em O discurso filosófico da modernidade 45). De todo

modo, esta questão, obviamente ainda em aberto – e que deve assim permanecer –

, não pode ser, aqui, aprofundada. Recorro, então, à vaga (e, por isso mesmo,

interessante) definição, encontrada no livro de Marcondes, para dela remarcar o

que me interessa:

O pensamento pós-moderno não se caracteriza como uma corrente ou doutrina nem possui propriamente uma unidade teórica, metodológica ou sistemática, já que em grande parte visa romper exatamente com isso. Na verdade, o ponto comum entre esses autores [dentre os quais são citados Foucault, Deleuze, Lyotard e Rorty, mas não Derrida] parece ser mais a necessidade de encontrar novos rumos para o pensamento, concebendo a filosofia de forma mais ampla e não-linear. 46

*

No entanto, a indicação de uma urgência em se “encontrar novos rumos para o

pensamento” pode ser vista tanto na definição que Marcondes apresenta da 41 JAPIASSÚ, H. e MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, pág. 170. 42 LYOTARD, F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. 43 MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein, pág. 274. 44 HABERMAS, J. “A Modernidade – um projeto inacabado”, in: ARANTES, O. e ARANTES, P. Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas. São Paulo: Brasiliense, 1992. 45 HABERMAS, J. Discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 46 MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein, pág. 275.

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modernidade como da chamada pós-modernidade. Em que, portanto, se difeririam

estes afãs pelo “novo”? Será que não deveria, para-além de uma mera postura de

continuidade ou descontinuidade, se encontrar uma “terceira margem”?

É nesse sentido que pretendo tomar aqui emprestadas algumas das

considerações introdutórias que Gianni Vattimo faz a seu O fim da modernidade.

Em seu empreendimento de um pensamento fraco (que, em suma, propõe uma

releitura de Nietzsche e Heidegger de uma maneira em que sejam amenizados os

traços mais “violentos” destes pensamentos), Vattimo se recusa a ver no prefixo

“pós” uma atitude de superação crítica da modernidade, mas sim uma nova

construção em relação à herança do pensamento europeu, pois, para ele, um

pensamento da “superação” continuaria preso à lógica da modernidade. Para ele,

o pós de pós-moderno indica, com efeito, uma despedida da modernidade, que, na medida em que quer fugir das suas lógicas de desenvolvimento, ou seja, sobretudo da idéia da “superação”crítica em direção a uma nova fundação, busca precisamente o que Nietzsche e Heidegger procuraram em sua peculiar relação “crítica” com o pensamento ocidental. 47

Portanto, não uma “superação”, mas, em seus próprios termos, uma “despedida”.

E, logo em seguida, ao questionar-se sobre essa necessidade de “estabelecimento”,

de nossa época, de localizar-se frente a isso que ele nomeia de “nossa herança

mais próxima” 48, Vattimo objeta que, se de fato se crê estar em um “momento

posterior à modernidade”, se está, ainda mais reforçando o que “caracterizaria

mais especificamente o ponto de vista da modernidade: a idéia de história, com

seus corolários, a noção de progresso e a de superação” 49.

É desta maneira que, para o pensamento fraco, o fato de supor que, em

nossos tempos, há uma “novidade” com relação ao moderno, estabelece uma linha

de continuidade entre a modernidade e a chamada pós-modernidade. Entretanto,

para o filósofo há uma sutil diferença – que para ele constitui uma diferença

radical – se se reconhece o pós-moderno “não apenas como novidade com relação

47 VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pág. VII. Grifo meu. 48 VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, pág. VII. 49 VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, págs. VIII-IX.

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ao moderno, mas também como dissolução da categoria do novo” 50. Essa

sutileza, ou esse enfraquecimento da noção de “novo” é o que distinguiria a

postura pós-moderna (que pretende superar a modernidade) da chamada

modernidade tardia (que indica apenas uma despedida, um afastamento do clima

moderno). E também seria o que, na contracorrente das “filosofias da superação”

contemporâneas, apontaria a modernidade tardia como “o lugar em que se anuncie

uma possibilidade e existência diferente para o homem”, revelando-se “menos

apocalípticas e mais referíveis à nossa existência” 51.

*

Muitos autores ainda insistem neste debate, como, por exemplo, Bruno Latour,

Gilles Lipovetski e Zygmunt Bauman, mas é sabido, como também assumido, que

o pensamento fraco é herdeiro da desconstrução – e por isso dá-se aqui minha

opção pelas definições de Vattimo. Apesar das anunciadas diferenças, o filósofo

italiano, em inúmeros momentos, declarou sua dívida para com Derrida

(sobretudo na abertura do Seminário de Capri em torno da religião 52, em que se

encontravam Gadamer, Derrida e Vattimo. Tendo sido orientando de Gadamer e

admirador de Derrida, Vattimo declarava que estava sentindo-se acompanhado de

um pai e de um irmão mais velho). E, em sua concepção de modernidade tardia –

que a mim é muito cara –, pretendo aqui, pois essa foi minha intenção ao fazer

esta digressão, apontar os ecos derridianos nesta noção que abala, de certo modo,

a oposição figurada por Habermas e Lyotard.

Para tanto, é da última citação de Vattimo que tirarei, a fórceps, os rastros

que enxergo. Ao se colocar contra as “filosofias da superação” e apostar em uma

existência “menos apocalíptica”, ressoam claramente as análises derridianas

contra o “tom apocalíptico” adotado pela sua geração. Derrida, que segue a

linhagem de Lévinas, não comungava com as bandeiras que marcam a chamada

contemporaneidade da filosofia – um termo ainda mais abrangente que o de uma

“pós-modernidade” – e, como se verá um pouco mais à frente, o próprio ideal de 50 VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, pág. IX. 51 VATTIMO, G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, pág. XVII. Grifo meu. 52 VATTIMO, G. e DERRIDA, J. A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

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morte ou de fim não se sustenta em uma perspectiva desconstrutiva, posto que,

para Derrida, nada morre e, como já se falou, tudo, como em Benjamin,

sobrevive.

Este “afã escatológico” é denunciado da seguinte forma em D’un ton

apocalyptique adopté naguère en philosophie:

O ocidente tem sido dominado por um poderoso programa que era também um contrato não rescindível entre discursos do fim. (...) É o fim da história, o fim da luta de classe, o fim da filosofia, a morte de Deus, o fim das religiões, o fim do cristianismo e da moral (...) o fim do sujeito, o fim do homem, o fim do Ocidente, o fim de Édipo, o fim do mundo (...) e também o fim da literatura, o fim da pintura, a arte como coisa do passado, o fim da universidade, o fim do falocentrismo, o fim do falogocentrismo. 53

Como pretendo mostrar, apenas para exemplificar, em Lévinas, Derrida e Vattimo

há uma outra maneira de pensar nosso tempo. Não abandonando os diagnósticos

catastróficos do que se chama contemporaneidade, não se cegando às injustiças, às

violências, por, inclusive, ter sido vítima e testemunha de uma das grandes, senão

a maior atrocidade dos “tempos modernos”, mas também não se curvando aos

modismos niilistas de sua época, cito um trecho de denúncia encontrado em

Humanismo do Outro Homem, de Lévinas:

Fim do humanismo, da metafísica - morte do homem, morte de Deus (ou morte a Deus!) idéias apocalípticas ou slogans da alta sociedade intelectual. Como todas as manifestações do gosto - e dos desgostos - parisienses, estas proposições impõem-se com a tirania da última moda, mas se colocam ao alcance de todos os bolsos e degradam-se. 54

Deste modo, torna-se extremamente difícil se classificar estes três autores anti-

apocalípticos, que viam nestes slogans até mesmo um certo mal-gosto, ou talvez,

uma indelicadeza com a modernidade, como filósofos pós-modernos. E, no

entanto, não há como negar que são contemporâneos.

*

53 DERRIDA, J. D’un ton apocalyptique adopté naguère en philosophie. Paris: Galilée, 1983, págs. 58-60. 54 LÉVINAS, E. Humanisme de l’autre homme. Montpellier, Fata Morgana, 1996, pág. 95 (Humanismo do outro homem, tradução coordenada por Pergentino S. Pivatto. Petrópolis: Vozes, 1993).

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Deter-me-ei apenas no caso de Derrida, pois é em seu pensamento que pretendo

fazer o prometido enxerto anacrônico e invertido da filosofia baconiana. A

primeira frase de “Derridabase”, de Geoffrey Bennington, é justamente a seguinte:

“seria preciso, portanto, mostrar em quais aspectos Derrida é um

‘contemporâneo’” 55. A proposta de Geoffrey, então, parte de dois princípios

complementares: primeiro, mostrar a “atualidade” do pensamento derridiano, sem

que – como se tenta maldosamente mostrar algumas vezes – que se trata de mais

um “fenômeno da moda”; e, ao mesmo tempo, mostrar como, em sua assumida

“filiação” à tradição, este acaba por rascunhar uma espécie de diferenciação.

Neste sentido, Derrida seria, em sua atualidade, sincrônico: ao lado de Lacan,

Lévinas, Lyotard, Foucault, Deleuze, Blanchot etc; mas, ao mesmo tempo, seria,

em sua contemporaneidade, anacrônico: devido justamente à sua assumida

herança dos fantasmas, como Hegel, Husserl, Heidegger, Nietzsche – e, porque

não, Francis Bacon?

E também, se a prática desconstrutiva consiste na leitura de textos –

levando-se em conta a herança e responsabilidade que isso supõe –, e se estes

textos lidos são sempre rastros, ou espectros – já que um dos objetivos de Derrida

é empreender uma crítica ao que ele chama de “metafísica da presença” –, não se

pode afirmar que tal texto esteja mais “presente” ou mais próximo de Derrida que

outro: e, sob este aspecto, Platão é tão atual como Lévinas em sua obra, mesmo

quando o amigo estava a seu lado, vivo. E, do mesmo modo, como rastro,

Lévinas é tão ausente como Platão na letra derridiana – e nem mesmo os livros de

Derrida, nem ele mesmo, está, desta forma, presente em seus textos, sendo,

também ele, mais um rastro dentre os tantos rastros que constituem o conjunto de

textos que compõem sua obra.

Por isso, não me parece nem um pouco extravagante a idéia de colocar

Francis Bacon em diálogo com Derrida. Nem uma possível objeção a que, de

algum modo, a asserção baconiana que tomarei como contraponto às minhas

especulações já estaria – por ser ele um moderno, e, talvez, mais ainda, um

empirista –, desde o início, refutada. No mais, ainda que como auto-defesa, a

denúncia que Bacon faz do termo “úmido” é, ela própria, quem traz para a

filosofia o termo que ela deseja afastar: ao tentar eliminar a umidade, Bacon a

55 BENNINGTON, G.“Derridabase”, pág. 11.

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introduz como tema na própria filosofia. Assim, mais uma vez, como o

(contra)dom que recebi de Danilo, Bacon foi quem me abriu as portas para pensar

o “úmido”. Além disto, a temporalidade da desconstrução é herdeira da

Nachträglichkeit freudiana 56; Derrida admira, acima de tudo, em Freud, o fato de

que o acontecimento só é passível de ser pensado a posteriori 57; mas mais além

de tudo isso, para a desconstrução, só se pensa com os fantasmas e, por isso, a

obra de arte se apresenta como sobrevida e toda escritura é, por isso,

contemporânea àquele que a lê, pois, independente da temporalidade – da

temporalidade linear, que tanto pode pressupor sucessões como rupturas – todo

texto, de Platão a Heidegger, de Anaximandro a Rorty, apresenta ao leitor,

estruturalmente e de igual maneira, o seu “vem”.

Contemporâneo, contemporaneus, cum tempus, com o tempo. Derrida pensa com o tempo. Derrida pensa com o tempo, não, de modo algum, representando o espírito de tempo (“pós-moderno”, “pós-filosófico”, se diz), mas pensando o tempo de forma a deslocar nossa contemporaneidade. Infeliz daquele que se proclama seu próprio contemporâneo. 58

o “contexto” inicial A frase que dá título a este capítulo, “tome-se como exemplo a palavra úmido” 59,

foi “retirada” de seu contexto (pretensamente original, como se verá logo em

seguida), qual seja, o Livro LX do Novum Organum de Francis Bacon. Portanto,

56 De acordo com Derrida, em “Freud e a cena da escritura”, esta noção teria sido a grande “descoberta” de Freud, possibilitando se pensar um tempo não mais marcado pelo crivo do presente (L’écriture et la différence, págs. 303-314). Também em Gramatologia, Derrida confronta Husserl com Freud, vendo no conceito freudiano de a posteriori ou só-depois um poderoso questionamento de toda presença a si da consciência (Gramatologia, pág. 98). E sobre essa relação entre a fenomenologia e a psicanálise, A voz e o fenômeno também marca esta “resistência” de Husserl ao conceito psicanalítico de “inconsciente” (p. 73). Segundo Laplanche e Pontalis, nachträglichkeit e nachträglich são “termos freqüentemente utilizados por Freud com relação à sua concepção da temporalidade e da cusalidade psíquicas. Há experiência, impressões, traços mnésicos que são ulteriormente remodelados em função de experiências novas, do acesso a outro grau de desenvolvimento. Pode então ser-lhes conferida, além de um novo sentido, uma eficácia psíquica” (LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 33). 57 Sobre isso, remeto ao debate sobre o “acontecimento” 11 de setembro em “Auto-imunidade: suicídios reais e simbólicos: um diálogo com Jacques Derrida” (in: BORRADORI, G. Filosofia em tempo de terror. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2004, pp. 95-145). 58 BENNINGTON, G. “Derridabase”, pág. 14. 59 BACON, F. Novum Organum, tradução e notas de José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1988, pág. 29.

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antes de qualquer transporte (se devido ou indevido ainda não se pode, aqui,

julgar), é necessário que se pense no “contexto” em que o filósofo inglês escreveu

tais palavras.

Dentro de seu projeto empirista 60 – que, ao lado do racionalismo

cartesiano, inaugura o pensamento moderno –, que se preocupa, sobretudo, com a

formulação de um método científico que afaste o erro e conduza o homem no

caminho do conhecimento verdadeiro, um dos aspectos mais marcantes de sua

contribuição filosófica é sua concepção de pensamento crítico (contida justamente

na “teoria dos ídolos”, de seu livro que me inspirou). Um dos traços fundamentais

de sua indução era – o que me interessa – “uma sofisticada taxonomia dos

métodos científicos” 61, e o chamado “método baconiano”, então, preconizava que

o objetivo da ciência é o de estabelecer leis.

Tal estabelecimento, no entanto, só seria possível se houvesse a eliminação

das falsas noções, que Bacon denomina “ídolos, fantasmas de verdade, imagens

tomadas por realidade” 62. E este seria o objetivo fundamental do pensamento

crítico desenvolvido em sua “teoria dos ídolos”, pois estes fantasmas, estas

imagens, “bloqueiam a mente humana, impedindo o verdadeiro conhecimento” 63.

E, como pretendo mostrar, esta atitude de “limpeza” que a filosofia adota com

relação ao que lhe incomoda – ou seja, com o que não pode compreender,

apreender, prender –, esta necessidade de “idéias claras e distintas” é o que

diferiria a corrente de pensamento que aqui pretendo apresentar da postura

tradicional adotada pela filosofia.

De acordo com algumas definições que encontrei para ídolo, destaco duas:

1. “no sentido dado por Francis Bacon, falsa noção, idéia falsa ou ilusória,

preconceito, do qual devemos nos libertar para realizar a ciência como

interpretação verdadeira da natureza” 64; e 2. “os ídolos são eidola, imagens

60 De acordo com o Dicionário Oxford de filosofia, “como filósofo da ciência, foi o primeiro exemplo notável da tendência empirista do pensamento inglês, mas, talvez ainda mais significativamente, o profeta e protetor da revolução científica nascente”. BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pág. 36. 61 BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pág. 36. 62 JAPIASSÚ, H. e MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, pág. 33. 63 MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein, pág. 178. 64 JAPIASSÚ, H. e MARCONDES, D. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, pág. 128.

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transitórias das coisas que, por isso, Bacon considera errôneas” 65. O interessante

desta última definição, encontrada no Dicionário Oxford de Filosofia, é a

referência ao termo grego eidola (que quer dizer imagens) e que, como toda

referência marginal ou passageira (que, como se verá, ocorre com o termo úmido

no projeto baconiano), merece uma paragem. Este termo remete a uma teoria pré-

socrática, a “teoria dos eflúvios”, um esboço arcaico de uma espécie de teoria da

percepção, na qual esta só se daria quando os eflúvios emitidos pelos objetos se

encontram com os eflúvios que o corpo humano libera 66. Assim, nesta arque-

fenomenologia, os eidola seriam a emanação dos fluidos dos objetos percebidos

pelo corpo humano (que seria, de alguma maneira “invadido” por estes corpos

estranhos que invadiriam seus poros 67). Que se guarde em mente, por enquanto, a

relação disto tudo que Bacon, com seu pensamento crítico que visa a “purificar” o

conhecimento, quer combater: imagens (tomadas por realidades transitórias e, por

isso, errôneas), fantasmas de verdade, eflúvios, emanações de fluidos que, vindos

dos objetos (de fora, de algo outro), contaminam o ser humano – estes são os

ídolos a serem destruídos.

*

A crítica baconiana distingue os ídolos em quatro tipos, dentre os quais apenas um

me interessa: os idola fori. De acordo com a ordem apresentada no Novum

Organum, na tentativa de examinar estas causas que não permitem que o homem

trilhe o caminho correto para o pensamento e de descobrir os meios para que se

esteja precavido contra elas, Bacon nomeia os seguintes: “ídolos da tribo”

(enganos inerentes à própria natureza humana em geral); “ídolos da caverna”

(erros provenientes da perspectiva particular de um indivíduo); “ídolos do foro”

(equívocos originados pelo uso das palavras); e “ídolos do teatro” (embustes

oferecidos por sistemas filosóficos). Mas, como é a parte dedicada aos ídolos do

foro ou do mercado que me interessa, dedicarei a ela uma atenção maior.

65 BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pág. 195. 66 BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pág. 384. 67 BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pág. 112.

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Para o próprio Bacon, este tipo de erro ao qual a comunicação conduz é o

mais perigoso, pois são os erros implicados na ambigüidade das palavras e no uso

indevido destas; são os erros que surgem na relação entre as pessoas e nos

discursos. Desta maneira, uma palavra pode ser usada em sentidos diferentes em

um diálogo e levar a uma aparente concordância, enquanto o que há entre os

interlocutores é uma comunicação equivocada. Bacon diz:

Os ídolos do foro são de todos os mais perturbadores: insinuam-se no intelecto graças ao pacto de palavras e de nomes. Os homens, com efeito, crêem que a sua razão governa as palavras. Mas sucede também que as palavras volvem e refletem suas forças sobre o intelecto. 68

E quando esta “força” que as palavras impõem ao intelecto se dá, torna-se

impossível que o conhecimento tenha acesso à natureza das coisas. E é neste

sentido que caberia, então, o empreendimento de “restaurar a ordem”, começando-

se pelas definições. Trata-se, portanto, do esforço em definir claramente o

significado das palavras, apontar seu sentido primeiro e verdadeiro, mas o próprio

Bacon parece enxergar algumas limitações em sua proposta, já que “as próprias

definições constam de palavras e as palavras engendram palavras” 69. E, aqui, já

se vê, como quero mostrar, que esta atitude pode ser tomada como metonímia da

postura filosófica em geral.

Ainda, segundo Bacon, os idola fori dividem-se em duas espécies: ou são

nomes de coisas que não existem ou são nomes de coisas que existem, mas

“confusos e mal determinados e abstraídos das coisas” 70. A primeira espécie de

ídolos, os nomes de coisas que não existem, são os mais fáceis de se expulsar dos

discursos, por serem de fácil refutação; no entanto a segunda espécie é um tanto

mais complicada. Desta maneira, se os ídolos do mercado são, dentre os quatro

tipos de ídolos, os que exigem mais cuidado, o segundo gênero deste tipo de erro

torna-se o mais enganoso dentre os enganosos, pois é mais complexo e mais

profundamente arraigado “por ter se formado na abstração errônea e inábil”. E

prossegue:

68 BACON, F. Novum Organum, págs. 28-29. 69 BACON, F. Novum Organum, pág. 29. 70 BACON, F. Novum Organum, pág. 29. Grifos meus.

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Tome-se como exemplo a palavra úmido e enumerem-se os significados que pode assumir. Descobriremos que esta palavra úmido compila notas confusas de operações diversas que nada têm em comum ou que não são irredutíveis. Significa, com efeito, tudo o que se expande facilmente em torno de outro corpo; tudo que é em si mesmo indeterminável e não pode ter consistência; tudo o que facilmente cede em todos os sentidos; tudo o que facilmente se divide e se dispersa; tudo o que se une e se junta facilmente; tudo o que facilmente adere a outro corpo e molha; tudo o que facilmente se reduz a líquido, se antes era sólido. 71

Como se pode ver, a vontade de Bacon de eliminar a má-determinação

representada pelo termo “úmido” do vocabulário filosófico, de literalmente

extinguí-lo, excomungá-lo, exorcizá-lo, representa o desejo filosófico de clareza,

distinção, imunidade, contenção, determinação, consistência, unidade e

isolamento. Esta estrutura que a umidade do úmido “representa” é um perigo para

a filosofia (e não só à baconiana), pois esta não sabe lidar com isso que, por sua

própria estrutura, a ameaça, não sabendo o que fazer com isso que, de algum

modo, sempre lhe vai escapar.

E tal foi o desejo que se despertou em mim, ao receber estas palavras –

ainda que inversamente – como um dom: tentar “construir” um texto que não

quisesse de modo algum extirpar a umidade e seus semelhantes. Pelo contrário, o

desafio, provável e inevitavelmente paradoxal, de se aceitar, na filosofia, em um

primeiro momento, esta sua umidade, e tentar, além disso, escrever umidamente.

Talvez, agora, possa começar a se “clarear” (entre infinitas aspas, pois,

espero eu, que não de modo claro e distinto), como este pensamento úmido que

pretendo aqui remarcar inicia-se a partir das noções derridianas de contaminação

e disseminação – mas que, para tomar “forma” (esta forma fluida, que é a única

que faria justiça à umidade mesma), junto a Derrida, buscarei auxílio em

Kierkegaard, Nietzsche, Benjamin, Lévinas e na literatura, nas heranças minhas e

da desconstrução.

espectralidades Tome-se como exemplo a palavra espectro. Se o termo úmido é aquilo que, para

Bacon, não é seco nem molhado, como mostrarei no próximo capítulo, para

71 BACON, F. Novum Organum, pág. 30.

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Derrida, o pensamento é justamente composto por estes indecidíveis: rastro,

espectro, phármakon, brisura, sobrevida etc. etc. etc., em uma cadeia infinita e

infinitamente aberta de quase-conceitos. Mas, por enquanto, antes de entrar na

parte propriamente “teórica” da tese, a noção de espectro servirá como um chute

para que se mostre como a tão referida herança desordena a temporalidade e,

depois, como a postura filosófica, conforme a atitude de Bacon, busca sempre

conjurar esta espectralidade, esta umidade.

O quase-conceito “espectro” (que é chamado de quase-conceito

exatamente por não permitir uma definição precisa, clara e distinta, uma

decidibilidade) aparece de modo mais insistente (e não mais “presente”) em

Espectros de Marx 72. E é a este livro que recorro para invocar tais aparições. O

que Derrida, aí, nomeia “espectros de Marx” (tanto os espectros de Marx que nos

assombram como os espectros que assombravam Marx) será, aqui, tomado, por

extensão, ao espectro em geral (pois, se se pensar bem, todo espectro, para ser

espectro, deve ser um espectro em geral). Desta maneira, a questão política de

uma “Nova Internacional”, o espectro do capitalismo e tantas outras questões

políticas serão postas de lado para que se entenda a “estrutura” espectral do

pensamento, através das metonímias e paráfrases que farei deste livro que se

originou de uma conferência pronunciada em duas sessões, nos dias 22 e 23 de

abril de 1993, na Universidade da Califórnia (sendo, este livro, também, uma

herança, uma tarefa e uma dívida de Derrida para com seu amigo Louis Althusser 73).

O que está em jogo, neste livro aparentemente político, mas que, de tão

pouca política a oferecer, parece inaugurar uma outra forma de política, é a

obsessão mesma: a filosofia como um pensamento sempre assombrado, obsediado

por estes outros que não mais estão presentes. E é Hamlet quem figura esta

“política”. E, com ele, o fantasma de Shakespeare, um fantasma que obriga a um

trabalho, que impõe uma tarefa – por amor. Shakespeare assombrava Marx,

assombrava Valéry, assombrava Derrida e, nesta obsessão, nesta quase-possessão,

os três tomados como exemplo tiveram, assim como Hamlet, que herdar uma

72 DERRIDA, J. Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho de luto e a nova Internacional, tradução para o português de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. 73 Ver o referido diálogo sobre “Escolher sua herança” com Elizabeth Roudinesco em De que amanhã...

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tarefa deste outro que lhes antecedeu 74. Que eu me permita também ser possuído

– o que é inevitável, mas nem sempre, como mostrarei logo em seguida, aceito; e,

ao invés disso, de aceitar a inevitável possessão, apela-se ao exorcismo.

Se se pensar na tradição de Freud e Lacan, na constituição do “eu” pelo

“outro” e na noção de “fantasma”, ou então na tradição que se inicia com Martin

Buber e Emmanuel Lévinas, em que o “sujeito ético” é inaugurado,

dialogicamente, pelo “Tu” (no caso de Buber) ou, assimetricamente, pelo

“terceiro” (em Lévinas), pensar-se-á que Derrida, de fato, não acrescentaria nada

de novo à filosofia. Talvez ele mesmo pensasse isso. Mas é por assumir esta

obsessão (por Freud, Lacan, Lévinas, Buber, Marx, Shakespeare, Hamlet etc.)

como sua única possibilidade que Derrida pretende, em seus termos, inaugurar

uma política dos fantasmas 75 – que se antecipa através da estranha afirmação de

Derrida que diz “eu queria aprender a viver enfim” 76. Mas o que seria isso?

Aprender a viver. Estranha palavra de ordem: Quem pode dar lição? A quem? Que isto sirva de lição, mas a quem? (...) Saber-se-á alguma vez viver, e, primeiramente, o que quer dizer “aprender a viver”? (...) Isoladamente, fora do contexto – mas, um contexto sempre permanece aberto, portanto, falível e insuficiente [como se verá no próximo capítulo] –, esta palavra de ordem sem frase forma um sintagma quase ininteligível. (...) Isto só pode acontecer, se isto se há-de fazer, aprender a viver, entre vida e morte (...), só se há-de valer de algum fantasma. 77

Portanto, para Derrida, esta configuraria uma “locução magistral”, pois é o

que permite que se aprenda a irreversibilidade e a assimetria da relação de

mestria, como tudo aquilo que passa (sem se passar) de pai para filho ou de mestre

para discípulo. Mas esta “aprendizagem” não se dá, no entanto, no nível da

experiência, se se compreende este termo como a filosofia usualmente o faz: 74 Nos Ensaios quase políticos de Valéry, mais precisamente em “A Política do Espírito”, vê-se belíssimas referências a Hamlet. É assumida a influência herdada por Derrida destas passagens (VALÉRY, P. Oeuvres. Paris: Galimard, 1997, págs. 1014-1058). 75 Isso se rascunha primeiramente em Espectros de Marx, pela dívida com Althusser, e se torna emblemático nas palavras que proferiu no velório de Lévinas (em seu Adieu – à Emmanuel Lévinas, seguido da conferência Le mot d’accueil ) e em seu livro Mémoires – pour Paul de Man. Mas a questão mesma do “espírito” na filosofia já estava, não neste sentido de herança, mas como “questão” filosófica, antecipada em De l’esprit e em Glas (em análises sobre a questão do Geist em Heidegger e em Hegel). 76 Isso vai ser explorado de modo mais preciso – esta questão do saber viver e do saber morrer, que menos nos interessa aqui – na entrevista a Jean Birnbaum, posteriormente publicada, em que, inclusive a referência a Walter Benjamin é acrescentada (por ter dele herdado a noção de Überleben, que em Espectros é citada, mas não creditada. Entretanto, tal crédito foi feito, como se verá em mais à frente, ao tratar do problema da tradução em Torres de Babel). 77 DERRIDA, J. Espectros de Marx, págs. 09-11.

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como a experiência de um algo que está aí, ou seja, de uma presença. Derrida diz:

“Mas aprender a viver (...) não é, para quem vive, o impossível? Não vem a ser

isto mesmo que a lógica não permite?”, e prossegue: “Viver, por definição, isso

não se aprende. Não por si mesmo, da vida pela vida. Somente do outro e pela

morte. Em todo caso, do outro no limite da vida” 78. E, todavia, nada seria mais

necessário à vida do que esta sabedoria, esta “heterodidática”.

*

Não sei se devia, mas não consigo deixar de antecipar uma carta que guardo (há

tantos anos) na manga e que, certamente, devo usar em futuros capítulos. Mas me

sinto impelido a aludir aqui a duas experiências que tratam, justamente, do

aprendizado, duas experiências, se assim posso dizer, úmidas: a de Lóri e a de

Riobaldo.

Em Para não esquecer Clarice aforisma: “Eu antes queria ser os outros

para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso

era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos

outros era eu.” 79 Em uma postura aparentemente fenomenológica, em uma

primeira análise, o testemunho de Clarice parece apontar à tentação racionalista de

sempre se guiar pelo “conhece-te a ti mesmo” socrático – e, na verdade, mais

antigo ainda, délfico. Sua aposta então parece caminhar em direção do imperativo

pindárico que convoca, como diria Nietzsche em seu Ecce Homo, alguém a se

tornar o que se é. Mas quem pode nos ajudar nesta aprendizagem do não

entender? Este é o ponto crucial de Lorelei, protagonista da prazerosa

aprendizagem de Clarice (que, não coincidentemente, tem um nome úmido –

nome de uma sereia, ser híbrido, nem humano nem peixe. Ser indecidível e, ainda

por cima, aquático) 80. E ela sabe, como bem coloca Derrida, e eu repito, que

“aprender a viver, aprender por si mesmo, sozinho, ensinar a si mesmo a viver

(‘eu queria aprender a viver enfim’) não é, para quem vive, o impossível?” 81.

78 Espectros de Marx, pág. 10. 79 LISPECTOR, C. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pág. 23. 80 Apesar das sereias gregas, como a que Ulisses enfrentou em sua Odisséia, no retorno à Ítaca, serem seres alados – mas que sobrevoavam e enfeitiçavam os barcos – a figura da sereia eternizou-se sobre a forma feminina da mulher metade humana metade peixe, de beleza e perigo, que vive sobre os rochedos de rios ou mares e encanta pescadores. E, entre elas, há a germânica Lorelei. 81 Espectros de Marx, pág. 10. Grifo meu.

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Por isso esta seria, para Derrida, uma “locução magistral”, pois vem como

um violento imperativo da boca de um mestre, um mestre outro, de um fora. Não

há, para Derrida, aptidão como educação nem como treinamento, mas sim

sabedoria e aprendizado: a referida “heterodidática”. E não é isso o que, em Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres, Lóri busca em Ulisses – no professor de

filosofia, no sábio? Ela busca mestria no viver. E, no entanto, é no silêncio que se

dá esta aprendizagem, não na palavra, na plena presença viva do presente da voz

de Ulisses. A protagonista queixa-se de não saber viver, mas antecipa que sabe

que saberá, pois sabe que “só no impossível está a realidade” 82.

De modo semelhante, em Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa,

através de Riobaldo (que também é água, que é rio errante), diz que “viver é muito

perigoso” 83. E é neste momento perigoso – de vida e de morte, como se verá logo

em seguida com Derrida, mas que certamente ecoa em Clarice e Guimarães –

momento de entrega absoluta, de desprendimento de si mesmo, que Clarice

descreve lindamente a passagem em que Lóri é tomada pelo desejo de mergulhar

no mar de Ipanema. A mulher de útero seco sente uma imensa vontade de

mergulhar no mar – ao amanhecer, em plena solidão. E vai. Ao entrar na água fria,

Lóri sente, ao mesmo tempo, o puxar da maré e a resistência das ondas: chamado

e atrito, identidade e diferença, medo e volúpia. Sensação estranha, mas, como

diz, “sentia-se em casa”, sentia-se chez soi com essa alteridade imensa,

incomensurável que era representada pelo mar, pela – como diria Lévinas –

infinitude disso que é totalmente outro. Lóri sabia que seu ser não era pura água,

que não estava lá em plena completude – que a totalidade não era possível. Ela

sempre antecipou este momento: antes dissera para Ulisses que “um dia será o

mundo com sua impersonalidade soberba versus minha extrema individualidade

de pessoa, mas seremos um só” 84. Este “Mergulho” é esta sensação de

pertencimento e não-pertencimento, ou, de, como diz Derrida em O

monolinguismo do outro, só se ter uma língua e a ela não se ter 85.

Mas a lição de Lóri diz mais, diz que só se consegue ser quando se esquece

de ser e se mergulha. Se não se está preocupado em ser, está-se sendo – e isso é

82 LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, pág. 106. Grifo meu. 83 Citação que aparece repetidas vezes ao longo da obra. GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 84 LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, pág. 73. 85 DERRIDA, J. Monolinguisme de l’autre. Paris: Galilée, 1996, pág. 46.

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vida, mas uma vida mais viva que a vida com a que se está acostumado, que se

acha que é vida, mas que na verdade é uma sub-vida, uma pseudo-vida. Essa vida

maior é mais viva que a vida cotidiana porque é vida e também é morte, é ser-si-

mesmo ao se perder, ou, como dirá Derrida logo em seguida, é uma sobrevida. É,

por isso, uma experiência sem experiência. Em que não se experimenta nem o

tudo nem o nada, nem a presença nem a ausência, mas apenas um rastro de

experiência. Uma experiência, por assim dizer, espectral.

E, então, neste mergulho infinito, ela se sente pronta para ser ela mesma,

ela aprendeu a ser e a se entregar; e para ser o que ela tem de ser, nesta entrega,

Lóri apostou no impossível, e ele aconteceu. Este impossível é o que há, é o vir a

ser o que se é, é o “real” – não é uma substância, um ente, nem ao menos

ontológico, pois não existe; este impossível não é da ordem da existência, mas,

como diria Lévinas, do il y a 86. Em Clarice, esta relação de entrega, de

sensualidade e morte, representa o mais alto grau de religiosidade – fazemos parte

do mundo, sendo um só na separação, e existindo apenas nesse encontro. Ser um

na separação, vida e morte, presença e ausência, rastro (e antecipo, já que estou,

agora, antecipando tanto, que será este o quase-conceito-chave que se verá no

próximo capítulo, mas que, em parte, será aludido logo em seguida ao se retornar

ao espectro).

E estes rastros também se encontram na religiosidade truncada do jagunço

Riobaldo. Para Guimarães, em suas veredas, o rio é mar e a vida é travessia. Em

muitos hexagramas do I-Ching lemos que “é preciso atravessar o grande rio ou

mar”, e essa insistência do oráculo parece indicar a necessidade deste mergulho

que é atravessamento, desta outra concepção de experiência que prescinde de

qualquer presença e, como tentarei mostrar em um capítulo a seguir, está na borda

da filosofia e da fé. Sobre isso, Riobaldo diz:

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. 87

86 Sobre isso ver Da existência ao existente, de Emmanuel Lévinas. 87 GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 26.

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E conclui: “Viver nem não é muito perigoso?” Esse caminho oblíquo, como se

verá, é o mesmo que Derrida apresenta nas páginas iniciais de Paixões 88, essa

resultante que impede que se trilhe um texto paralela ou perpendicularmente. Há a

soma do vetor da nossa “força”, da força do desejo do leitor, com o da “força” do

texto, de seu “vem”. E assim a escritura vai se fazendo, obliquamente, na

travessia, pois, se, como canta Paulinho da Viola, “não sou eu quem me navega,

quem me navega é o mar”, pode-se dizer que não sou eu quem escreve, e que

quem me escreve é a escritura (mais um indecidível que deixo, como quase exige

a desconstrução, em suspenso, reticente, em pontos de suspensão...).

Talvez, para Riobaldo, “por ser de escuro nascimento” 89, por reconhecer

sua ausência de origem, sua Umheimlichkeit, seja mais fácil este lançar-se na vida

que é travessia, descrita nas veredas do jagunço; talvez ele saiba e possa dizer que

“o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da

travessia” 90. Ainda assim, em sua aprendizagem, por vezes era demasiado forte

para Riobaldo a visão do transbordamento. Quando conhecera Diadorim, ainda

menino, no riacho que levava ao do-Chico, lançou-se em sua primeira travessia.

“O vacilo da canoa me dava um aumentante receio” 91, diz, e continua:

Eu não sabia nadar. O remador, um menino também, da laia da gente, foi remando. Bom aquilo não era, tão pouca firmeza. Resolvi ter brio. (...) Eu estava indo a meu esmo. (...) Mas, com pouco, chegávamos ao do-Chico. O senhor surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura: imensidade. (...) Eu tinha o medo imediato. E tanta claridade do dia. O arrojo do rio, e só aquele estrape, e o risco extenso d’água, de parte a parte. Alto rio, fechei os olhos. (...) Aí o bambalango das águas, a avançação enorme roda-a-roda – o que até hoje, minha vida, avistei, de maior, foi aquele rio. Aquele, daquele dia. 92

E sabendo-se que as veredas de Guimarães Rosa são a própria travessia ou

uma aprendizagem, nos termos de Clarice, em que não se aprende a não ser a não

aprender aprendendo, podemos comparar o mergulho no mar de Lóri com o

momento em que Riobaldo encontra a coragem para encarar o Diabo, o coxo,

coisa-ruim, etc. Isso aconteceu também no vazio, na solidão, quando lhe 88 DERRIDA, J. Paixões. Campinas: Papirus, 1995, p. 21: “Em vez de abordar a questão ou o problema de frente, de modo direto, sem rodeios, o que porvavelmente seria impossível, inapropriado ou ilegítimo, deveríamos proceder obliquamente?”. 89 GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 31. 90 GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 52. 91 GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 87. 92 GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, págs. 87-89.

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“requeimava forte sede” e “tinha tanto friúme” 93 (solidão esta que, somente ela,

permite que se vejam os vultos dos fantasmas, de se seja possuído, que se vejam

estes outros-outros, como dirá mais à frente Derrida). Então desceu, “de retorno

para a beira dos buritis, aonde o pano d’água. A claridadezinha das estrelas

indicava a raso a lisura daquilo. Ali era bebedouro de veados e onças”. Curvou-se

e bebeu a água (como, em Uma aprendizagem, Clarice descreve o momento em

que Lóri conhece a alteridade masculina ao beber a água do mar, quando sente “o

gosto do líquido espesso de um homem viril” 94). Bebeu até enxergar melhor os

prazos que principiavam, porque “tudo agora reluzia com clareza” 95. Nas palavras

de Riobaldo, “aquilo molhou minha idéia”, ao contrário do menino da “Terceira

margem do rio”, que fugira na hora de assumir o posto fluvial de seu pai, que não

conseguiu se entregar à tarefa de ser apenas rastro, à “sina de existir, perto e

longe” 96, “no lanço da correnteza enorme do rio” onde “tudo rola o perigoso” 97.

Mas a tarefa do menino com seu pai, isso, parafraseando Guimarães, é

uma outra estória, mesmo. O que eu queria aqui destacar, depois deste enorme

parêntese enxertado no texto derridiano, é que, também para Riobaldo, este

aprender a viver se deu quando este teve sua idéia molhada, e enfrentou-se com a

alteridade que ele mais temia, o espectro demoníaco do qual tanto fugira ao longo

de sua destinerrância. Meu ímpeto de antecipar este mergulho, de sentir que era a

hora disto, parece interessante, visto agora, para não apenas ilustrar (pois isso a

filosofia sempre fez bem: ilustrar suas “teorias” com a literatura), mas para deixar

que minha escrita se contamine com essas experiências totalmente outras – e

totalmente úmidas – para que, assim, minha travessia aconteça.

Points de suspension...

Espero que, ao menos, esta “estrutura” da desconstrução eu esteja conseguindo

fazer operar em meu texto: esta estrutura de promessa-adiamento-perjúrio. Mas eu

preciso reafirmar meu desejo de voltar a todas estas promessas que tenho feito até

agora, que tenho apenas deixado em suspenso, que não se trata apenas de falsos 93 GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 372. 94 LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, pág. 80. 95 GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas, pág. 373. 96 GUIMARÃES ROSA, J. “Terceira margem do rio”. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, pág. 80. 97 GUIMARÃES ROSA, J. “Terceira margem do rio”, pág. 82.

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juramentos. Entretanto, deve-se mais uma vez objetar que essa suspensão que

Derrida aponta não se aproxima em nada de um processo dialético. Não haverá

Aufhebung no sentido hegeliano, em que o que é suspenso (aufgehoben) 98 agora

se resolve futuramente, em um processo reconciliador. Não haverá, espero eu, de

fato, nenhuma reconciliação com o prometido, mas meu intuito é que, nas

repetições e remarcas às quais me proponho, algo “novo” vá se somando ou, ao

menos, podendo ser resignificado a posteriori, para tomar emprestado o termo de

Freud que Derrida tanto admirava.

Que se volte, então, aos espectros – e este “eterno retorno” aos espectros,

ou melhor, este eterno retorno dos espectros não poderia mesmo se dar de outra

forma; não poderia ser linear, seguir uma seqüência lógica e, assim, ser

aprisionado pela presença de um sentido a ser seguido, de uma “orientação”; os

passos da escritura são, literalmente, pas d’écriture, passos de escritura e não-

escritura ao mesmo tempo e, por isso, para que se respeite mesmo a proposta desta

tese, a linearidade temporal deve ser rompida e o encadeamento das idéias (no

qual, no próprio termo, já está sugerida a clausura, o fechamento da abertura)

disjunto.

“Enter the Ghost, exit the Ghost, re-enter the Ghost”, diz Shakespeare. E,

aqui, se pode tentar começar a pensar essa “ética” do espectro ao qual Derrida

aponta no início de sua primeira conferência sobre Marx. A partir do que se

mostrou, “viver, por definição, isto não se aprende. Não por si mesmo, da vida

pela vida. Somente do outro e pela morte. Em todo caso, do outro no limite da

vida”: eis a heterodidática entre vida e morte (e, observo que Derrida não diz entre

a vida e a morte, como se pudesse haver, neste caso, uma presença e uma 98 As traduções para o português para aufgehoben (suprimido, suspenso, suprassumido, superado) tentam dar conta do triplo movimento do verbo aufheben, quais sejam: 1. o de conservar, guardar, manter, por exemplo, como quem diz a um comerciante para guardar o troco de uma compra. E neste sentido pode-se pensar em algo semelhante a deixar em suspenso um assunto, guarda-lo para depois etc.; 2. o de negar, cancelar, por exemplo quando é cancelada uma reunião. Também neste sentido, o verbo suspender em português teria uma coerência maior que o mais adotado “suprassumir”, pois comumente se pode dizer, sem nenhum problema, que as aulas foram suspensas; 3. elevar, levantar, o que, no movimento próprio da dialética, vai fazer com que haja a mudança de uma figura da consciência para outra no processo de fenomenalização do Espírito. Neste caso, apesar de insuficiente, pode-se pensar em uma suspensão também como levantamento, como quem pede para que se suspenda um pouco um móvel qualquer para se ver o que há debaixo. Na língua francesa, também não há acordo quanto a esta tradução, e a proposta por Derrida foi, para o verbo aufheben, réléver; para o substantivo Aufhebung, rélève; e para o adjetivo aufgehoben, rélévé. Essa tradução é apresentada em “O poço e a pirâmide: introdução à semiologia de Hegel” (em Margens da filosofia) e retomada e discutida em “Qu’est-ce qu’une traduction ‘relevante’?”, em Quinzièmes Assisses de la traduction Littéraire, Arles, Actes Sud, 1998.

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ausência, ou uma presença e uma não-presença). Esta aporia, entre as muitas que

ainda aparecerão e que são constituintes do próprio pensamento de Derrida, são

aquilo que não permite que este se encerre, se feche em si próprio, se “resolva”. E

esta é a própria aporia da vida, o que poderia se chamar de uma “ética da vida”

segundo a desconstrução: aprender a viver, pois “a vida não sabe viver de outro

modo” senão estar sempre tentando aprender a viver. Derrida, então, ironiza:

“estranho compromisso para quem está vivo, supostamente vivo, uma vez que tal

compromisso é, ao mesmo tempo, impossível e necessário” 99. E é por esta razão

que, para Derrida, este desejo de aprender a viver não pode ser justo se não

trouxer consigo o ensinamento da morte: a minha morte (como defende

Heidegger) e a morte do outro (como defende Lévinas).

Portanto, entre vida e morte, vida-morte, sobrevida: uma tal análise como

a que é aqui proposta só pode caminhar se se pensar este entre, o qual, para ser

realmente aprendido, não pode ter nenhum “tutor”, nenhuma qualidade de

presença e, portanto, pode ser apenas aprendido com os fantasmas:

Nem na vida nem na morte apenas. O que se passa entre dois, e entre todos os “dois” que se queiram, como entre vida e morte, só se há-de valer de algum fantasma. Seria preciso, então, dar lição aos espíritos. Mesmo e antes de tudo se isto, o espectral, não existe. Mesmo e antes de tudo se isto, sem substância nem essência nem existência, não está jamais presente enquanto tal. 100

Este novo tempo que Derrida aponta, a temporalidade espectral, faz com que se

remarque a questão inicial deste livro, o “aprender a viver”, resignificado sob a

noite do espectro: aprender a viver é aprender a viver com os fantasmas. Como

antecipei com Clarice, a viver isso que pode ser chamado de “vida mesma” e não

a subvida, empírica ou ontológica, que comumente se concebe. Nem ôntica nem

ontologicamente, mas “a viver de outro modo [autrement], e melhor. Não melhor,

mais justamente [e ecoam os sussurros levinasianos da coincidência entre justiça e

justeza]” 101.

Com isso, para Derrida, abre-se o que ele chama de uma “política” da

memória e das gerações. Este viver de modo mais justo, reto ou correto, implica

necessariamente este estar-com os fantasmas; e é em nome desta justiça, deste

99 Espectros de Marx, pág. 10. Grifo meu. 100 Espectros de Marx, págs. 10-11. 101 Espectros de Marx, pág. 11.

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fazer justiça a esta estranha alteridade, que Derrida mantém sua obsessão por falar

de espectros, de herança e de gerações: “gerações de fantasmas”, segundo ele,

“certos outros que não estão presentes, nem presentemente vivos, nem para nós,

nem em nós, nem fora de nós” 102. Tal atitude inaugura, certamente, uma outra

remarca para as noções tradicionais de “ética”, “política” e “justiça”. Pois se estas

noções passam a ser vistas sob a economia do espectro, então não podem se

apresentar ou se deixarem representar presentemente, como a política do espectro,

a ética do espectro e assim por diante. Aliás, se se rompe com o tempo presente e

com a presença, um pensamento espectral desta política, desta ética ou desta

justiça só acontece onde ainda não há política, ética ou justiça (pois elas podem

acontecer, pode ser que haja justiça, ética ou política, mas elas nunca existirão)

ou onde elas não mais estão. Daí se segue um dos trechos mais belos do livro e, a

meu ver, mais significativos para que se comece a pressentir esta relação com o

inefável – que é a relação com o por-vir:

É preciso falar do fantasma, até mesmo ao fantasma e com ele, uma vez que nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível, pensável e justa, sem reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros que não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí, presentemente vivos, quer já estejam mortos, quer ainda não tenham nascido. Justiça alguma (...) parece possível ou pensável sem o princípio de alguma responsabilidade, para além de todo presente vivo, nisto que desajunta o presente vivo, diante dos fantasmas daqueles que já estão mortos ou ainda não nasceram (...). Sem essa não-contemporaneidade a si do presente vivo, sem isto que secretamente o desajusta, sem essa responsabilidade e respeito pela justiça com relação a esses que não estão presentes, que não estão mais ou ainda não estão presentes e vivos, que sentido teria formular-se a pergunta “onde?”, “onde amanhã?” (“whither?”). 103

Deste modo, a temporalidade espectral pode ser vista, de certa maneira,

sob uma possível ótima messiânica, pois traz consigo sempre uma questão sobre o

depois, sobre o que virá. De acordo com Derrida, quando se pergunta sobre este

futuro, excede-se toda presença a si do presente, pois a pergunta (a questão e, mais

ainda, a questão da questão), que é voltada ao por-vir, que aponta em sua direção,

é também uma questão que provém do porvir. E, caso pareça extremamente

radical a afirmação de rompimento com qualquer possibilidade de presença a si,

esta questão que é colocada pelo espectro “ao menos, só deve possibilitar essa

102 Espectros de Marx, pág. 11. 103 Espectros de Marx, págs. 11-12.

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presença a partir do movimento de algum desajuntamento, disjunção ou

desproporção: na inadequação a si” 104. Para a desconstrução, isso que aqui, neste

momento, Derrida chama de questão nada mais é a justiça mesma, a possibilidade

de romper com a presença plena no tempo e no espaço: e isso só se consegue se se

aceita o assombramento por essas entidades, que nem sequer se pode determinar

se são pessoas, livros, pensamentos, apenas rastros ou espectros.

Os espectros vêm até nós, não em uma fenomenologia dos espíritos, mas

em uma fenomenalidade não-fenomenal, não aparente, e, deste modo, nos

impõem uma tarefa. Nos legam, por assim dizer, uma herança. Como o fantasma

do pai ao qual Hamlet não pode deixar de ouvir, de seguir e de cumprir sua tarefa,

a tradição nos assombra com livros, lidos ou não, discursos ouvidos ou não, textos

conhecidos ou não, etc. Enfim, escrituras que infinitamente dizem “vem” e que só

se pode, como resposta, responder. E, como se disse, é uma questão-tarefa

disjunta ou desajuntadora, que, de acordo com a economia espectral, “umedece” a

linearidade do tempo e com a certeza da presença espacial. Os fantasmas

endereçam questões, colocam, deste modo, também em questão, o próprio

questionado – e, como se disse, se tal questão provém do porvir,

o que se mantém diante dela deve também precedê-la como sua origem: antes dela. Mesmo se do porvir é a sua procedência, este porvir deve ser, assim como toda procedência, absolutamente e irreversivelmente passado [o que se verá no capítulo seguinte, ao se pensar o rastro a partir de Lévinas e Derrida]. “Experiência” do passado como porvir, um e outro absolutamente absolutos, para além de toda modificação de um presente qualquer. 105

Este tipo de questão, que talvez seja o único questionamento que há, deve ser

levada a sério, pois, como antecipei, é esta pergunta que traz consigo a justiça –

ainda que, como se sabe, assimétrica e oblíqua. É este “tipo” de questão, que vem

desta alteridade inominável, que pode conduzir o questionado para além da vida

presente, disto que se chama minha vida em geral, pois esta “minha vida” de hoje

é a mesma “minha vida” de alguém de amanhã ou de ontem, sendo, então, “minha

vida” de outros e, além disso, “minha vida” de outros outros – o que colocaria isso

que se chama de vida para além do presente vivo em geral e inauguraria, assim,

uma justiça-justeza na injunção.

104 Espectros de Marx, pág. 12. 105 Espectros de Marx, pág. 12.

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Ser justo, desta forma, só é possível para além do presente vivo em geral.

Trata-se de um momento espectral: “um momento que não pertence mais ao

tempo, caso se compreenda debaixo desse nome o encadeamento das

modalidades do presente (presente passado, presenta atual: ‘agora’, presente

futuro)” 106. Portanto, tem-se, de um lado, um conceito tradicional de tempo, este

“encadeamento” linear entre as várias manifestações do presente, e, de outro, o

justo tempo, do espectro, em que passado e futuro estão de tal modo contaminados

que não se pode determinar nenhuma espécie de presença a si. O tempo do

espectro é o tempo do acontecimento, do impossível, que não há como se

determinar; que, como uma irrupção, disjunta o tempo e acontece e nem “dá

tempo” de se prevenir, de fechar os olhos... É, segundo Derrida, furtivo e

intempestivo, e certamente irrefutável:

Mas o irrefutável supõe que essa justiça conduza a vida para além da vida presente ou de seu estar-presente efetivo, de sua efetividade empírica ou ontológica: nem em direção a uma morte, mas em direção a uma sobre-vida, a saber, um traço [trace, rastro] com relação ao qual vida e morte seriam somente traços e traços de traços [rastros e rastros de rastros], uma sobrevida cuja possibilidade vem antecipadamente desajuntar ou desajustar a identidade a si do presente vivo. Espíritos. É preciso contar com eles. Não se pode não dever, não se pode não poder contar com eles, que não mais de um: o mais de um. 107

heranças

Espíritos, espectros, rastros... Eles são sempre mais de um, nunca unos, nem na

singularidade nem na totalidade da presença. Sequer formam uma multidão, um

grupo de fantasmas associados – não há conjunção, sem conjuntura 108.

Agora vou começar a tratar propriamente do que se herda e do que se

conjura: herança, na disjunção, e a conjuntura da conjuração filosófica – à qual

tomo como metonímia o termo “úmido”. Mas se agora começo a escrever, este

agora não pode ser o agora do presente presente-a-si da plena presença viva, e

simplesmente pode ser um neste exato momento eis-me aqui. Apenas uma

resposta frente a isso que – de súbito – aparece e diz: “vem”, a esse fantasma que 106 Espectros de Marx, pág, 12. Grifo meu. 107 Espectros de Marx, pág, 12. 108 Sobre isso, ver CRAGNOLINI, M. “Una ontología asediada por fantasmas: el juego de la memoria y la espera en Derrida”. In: Escritos de Filosofía, Academia Nacional de Ciencias, Nº 41-42, Buenos Aires, 2002, pp. 235-241. Também disponível na página “Derrida en Castellano” (http://www.jacquesderrida.com.ar).

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entra, sai e re-entra e convoca à resposta, ao responder-por da responsabilidade

mesma. Tal fato foi inigualavelmente abordado no momento do velório de

Emmanuel Lévinas, quando Derrida profere suas palavras de Adeus. Apesar de já,

tantas vezes, ter tratado deste tema, que amo, como, em tese, uma tese de

doutorado deve ser mais completa que todos os escritos já escritos pelo autor da

tese, não me permito apenas a indicar a discussão sobre o adeus109.

Para Lévinas, algo que ele insistentemente trabalha em La mort e le temps,

totalmente contra a autenticidade da morte própria da ontologia heideggeriana, é

que a morte do outro é aquilo que me inaugura como sujeito ético; o que me

convoca a assumir minha responsabilidade frente ao outro; a, no momento mesmo

da morte, receber do outro que não mais responde a procuração para que minha

assinatura, meu nome próprio, de agora em diante, passe a responder pelos dois. E

foi Jacques, amigo próximo de Lévinas, quem sentiu na pele o que significa esta

lição de adeus do filósofo lituano, se é que ela signifique algo. Foi Derrida o

filósofo que se preocupou em dar prosseguimento a esta noção de “a-Deus”

apenas indicada nos cursos de Lévinas na Sorbonne e é a ele que, agora, recorro,

no intuito de tentar esclarecer esta noção tão enigmática.

Adeus a Emmanuel Lévinas configura um elogio a Emmanuel Lévinas

feito por Jacques Derrida que tem por base as palavras que foram lidas por

ocasião do sepultamento do amigo, no cemitério de Pantin, a 27 de Dezembro de

1995. Em suas primeiras últimas palavras, Derrida ocupa-se e preocupa-se com a

tarefa de dar adeus a Emmanuel Lévinas: ou seja, em todo momento, procura

relembrar o que a palavra a-Deus significou no pensamento do amigo. Um ano

depois, em um seminário organizado por Danielle Cohen-Lévinas no Collège

International de Philosophie, intitulado “Visage et Sinaï”, Derrida prestava uma

nova homenagem a Lévinas, apresentando a conferência “a palavra de acolhida”,

que trata, na verdade, de um aprofundamento mais elaborado das questões

levantadas em Adieu. Não obstante, antes de tudo, precisa-se que se veja o que,

aqui, interessa tomar como metonímia para esta relação – ou, como diria Lévinas,

este face-a-face – com o fantasma (e lembrando que, também em Lévinas este

rosto do outro, apesar de epifânico, não apresenta feição, não é distinguível). Que

se veja, então, as indicações que o próprio texto oferece, sobretudo no que se

109 O artigo em que me deparei mais longamente sobre este tema foi: “O Adeus da desconstrução: alteridade, rastro e acolhimento”, em Às margens: a propósito de Derrida.

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refere ao quase-indefinível caráter da palavra adeus. Na tradução americana,

Adieu to Emmanuel Lévinas, a opção pela não tradução da palavra adieu já nos

indica a indecidibilidade de seu sentido. Segundo o tradutor grego Vanghélis

Bitsoris, responsável pela primeira tradução, este termo adieu pode significar ao

menos três coisas: 1. saudação dada tanto no encontro como na separação (Olá!,

Te vejo! etc.); 2. saudação dada no momento de uma separação sem volta,

também aplicável ao momento da morte; 3. o a-deus, “o para Deus ou o diante de

Deus antes de tudo e em toda relação ao outro, em todo outro adieu. Toda relação

ao outro seria, antes e depois de tudo, um adieu” 110. Esta elucidação proposta

pelo tradutor grego, que tem por base o que o próprio Derrida escreve em Donner

la mort, mostrou-se de tal modo significativo à compreensão de seu texto que a

própria edição francesa optou pela sua inclusão em forma de nota de fim de texto,

relativo à primeira aparição da grafia “à-Dieu”.

Deste modo, a relação com o outro é constituída sempre por um adeus,

cumprindo sempre um papel de saudação e de despedida. No adeus, não há a

quem responsabilizar a não ser a si próprio, já que o outro, agora, não está mais

lá: como se sabe, nunca lá esteve, e toda saudação de chegada nunca significou

mais que uma despedida, pois a alteridade sempre emerge do para-além-do-ser,

sempre passado e sempre futuro - nunca no presente, nunca presente.

“Nós seguiremos o rastro de Lévinas” 111, diz Derrida. Tarefa esta que,

antes, já teria descrito: “Eu gostaria de fazê-la com palavras nuas, tão infantis e

desarmadas quanto minha dor (...) a endereçar-se diretamente, corretamente, a este

que não está mais aí, que não responderá mais” 112. Esta empreitada insinua-se nas

palavras retas de Derrida, neste seguir rastros que o pensamento de Lévinas

mostra como único modo de vislumbrar-se o rosto do outro, demandando para

isso a retidão e o acolhimento necessários à relação ética. Assim, a despedida

proferida é metáfora de toda relação com a alteridade – e o cemitério onde Derrida

se atravessou por suas palavras (direta, reta e corretamente) é o palco de toda

relação. O outro sempre já se foi, o que apenas realça a infinita responsabilidade

que me resta a assumir; o outro sempre me deixa a palavra, e, ainda que

emudecido e com lágrimas nos olhos, sou chamado a comparecer, a falar e a

110 DERRIDA, J. Adieu à Emmanuel Lévinas, pág. 28. 111 Adieu à Emmanuel Lévinas, pág. 51. 112 Adieu à Emmanuel Lévinas, pág. 11-12.

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assinar por todos aqueles que já não mais estão entre nós, por todos os outros.

Esta é a lei da retidão: lei diretriz (do que é de direito e do que é direto) da

droiture levinasiana, que delega a fala direta e correta ao outro. A retidão nomeia

aquilo que é “mais forte que a morte”, e, para defini-la, Lévinas afirma que ela “é

a urgência de uma destinação que conduz ao outro e não um eterno retorno ao

mesmo”, uma “inocência sem ingenuidade, uma retidão sem tolice, retidão

absoluta que é também absoluta crítica de si” 113.

Esta retidão conduz imediatamente à noção de responsabilidade, mas a

uma “responsabilidade ilimitada”, que excede e precede minha liberdade. A lição

sobre a responsabilidade, que Derrida retira de Quatre lectures talmudiques, parte

do princípio de que esta seria uma responsabilidade baseada em um sim

incondicionado, “um sim mais antigo que a ingênua espontaneidade, um sim que

está de acordo com esta retidão que é fidelidade original em consideração de uma

aliança irresiliável” 114, um “vem”. Como se viu, a retidão desta devoção ética ao

outro está subsidiada pela radical irretidão que o outro apresenta: tanto por sua

intempestividade (sendo ele desordenamento da temporalidade, já que sempre

houve outros e sempre haverá) como por sua infinitude (devido à abstração de seu

rosto, da nudez de sua face epifânica, que indica tão-somente a assimetria absoluta

da relação). O outro se apresenta a mim através desta extrema irretidão, mas esta

irretidào também só me é apresentada pelo outro. E são estes traços da alteridade

– o que, nos termos de Derrida, em frente do corpo morto do amigo, seria sua

espectralidade, sua fantasmagoria – o que nos chama a responder; é deste não-

estar-sempre-aí que nossa resposta é convocada, que a procuração é outorgada e

que, enfim, me torno infinitamente responsável pelo outro.

Em Lévinas, um pensamento do adeus seria algo como um pensamento

àquele que não é mais responsável porque não responde mais, e que, assim, me

convoca a responder-por, na responsabilidade e na responsibilidade. Mas e as

lágrimas e as preces de Derrida? E suas trêmulas e tementes palavras neste

enterro? Será que apenas apontam a uma “técnica” ou “lógica” da herança? Há

tristeza, e espanto: a morte, dizia Lévinas, é sempre um espanto, pois nunca é nem

pode ser antecipada. Permanecer vivo, sobre-viver, neste sentido, faz parte do que

Derrida chama de “luto impossível”, ou semi-luto: nunca se apaga este rastro que

113 Quatre lectures talmudiques, pág. 105. 114 Adieu à Emmanuel Lévinas, pág. 13.

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o outro deixa, e essa marca de uma presença-ausência do outro, espectral, é o que,

de algum modo, faz com que se trabalhe com os “mortos”. Entretanto, para

Derrida, isso é o que torna infinita e irrestituível a dívida para com o outro; é o

débito que, neste caso, desde então, Derrida passa a ter com o amigo ausente, uma

responsabilidade neste exato momento herdada. A morte do outro não é apenas,

como queria Heidegger, uma facticidade empírica, pois o rosto, que, para Lévinas,

é sempre nudez e sempre ausência, é o que me chama a assumir

responsabilidades, e é a partir desta percepção deste “rosto sem face”,

fantasmagórico, que me responsabilizo.

Responsabilidade é, literalmente, o ato de responder por, de “assumir por

um outro, no lugar, em nome de um outro ou em seu nome como outro, frente a

um outro, e um outro do outro, a saber, o inegável mesmo da ética” 115. Esta

responsabilidade que, em Paixões, Derrida define como amizade, esta

“responsabilidade de refém” à qual se está desde sempre preso, é experiência de

substituição e sacrifício, pois se assume sua responsabilidade e se passa a

responder pelo outro. Se se pode conceber, em Lévinas, algo próximo a uma

concepção de “subjetividade”, isso consistiria em que o próprio “eu” (eu vivo, eu

presente a mim, minha consciência etc.), seria uma resposta a este apelo do outro

para que se responda por outrem – “subjetividade” constituída por uma

responsabilidade indizível, por feixes de fantasmas.

É devido a este chamado ético que a morte do outro me afeta; essa é a

relação à morte e ao espírito, ao mais de um ou ao totalmente outro, na deferência

frente estes outros sempre outros que não respondem mais, na sobre-vida. A

relação com a morte é impossível, portanto, e, em Violence et Métaphysique,

Derrida enfatiza que o pensamento de Lévinas é uma filosofia do indizível, ou

seja, do que há. E Lévinas sempre esteve consciente de sua responsabilidade, que,

de acordo com Derrida, com sua morte, veio a ele como herança, na ordem de um

“sim incondicional”; uma resposta a uma “questão-prece” que colocou Derrida no

frace-a-face com Lévinas (e, agora, que me coloca frente aos dois). A questão-

prece à qual Derrida responde é a questão do adeus frente à morte é a experiência

do para-Deus em que saudação não significa fim, já que a morte não é uma

115 DERRIDA, J. Paixões, pág. 18.

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passagem ao nada e nem, muito menos, uma última passagem. Como se vê, é um

adeus:

Mas eu disse que eu não queria simplesmente recordar o que ele nos confiou do a-Deus, mas antes de tudo dizer a ele adeus, chamá-lo por seu nome, chamar seu nome, seu primeiro nome, o que se chama no momento quando, se ele não mais responde, é porque ele responde em nós, do fundo de nosso coração, em nós, mas adiante de nós, em nós diante de nós – nos chamando, nos recordando: a-Deus 116.

E Lévinas foi mais um dos espectros que assombraram Derrida, pois, como

se viu, nunca há apenas um espírito, sempre mais de um: por isso não ser possível

afirmar que, em Derrida (como em qualquer pessoa), há uma filiação: nem

Heidegger, nem Lévinas, nem Freud, nem Nietzsche, nem Lacan, nem Husserl,

mas todos esses, junto a Marx, Benjamin, Kierkegaard, ao próprio Derrida como

fantasma-de-si, e a tantos outros que não sei e sequer ele sabia. No entanto, para

me aprofundar neste tema da espectralidade e da herança, que Derrida desenvolve

em “seus” Espectros de Marx, tive de recorrer aos fantasmas que mais me

obsediaram nestes últimos anos – sobretudo Lévinas. Creio que, agora, consigo

seguir os rastros derridianos apontados até então, para – eu mesmo – compreender

esta estrutura de disjunção e conjuração da filosofia.

conjurar – o úmido Tentando, com a mínima violência possível, mas inevitável, montar as peças deste

quebra-cabeça que estou colocando à minha frente, vou me dedicar à leitura de

Espectros de Marx como metonímia da tradição filosófica, a fim de entender

porque isso que sempre nos assombra, mas que é inevitável (neste caso, o espectro

e, mais precisamente, o espectro e os espectros de Marx; mas, no meu caso, no

caso que neste momento apresento, o espectro é o que chamei da estrutura úmida

do úmido), é o que de toda maneira se tenta conjurar. Então, as paráfrases da

escritura derridiana que farei buscarão, tomando uma parte pelo todo (se houver

algum todo possível), substituir o movimento de herança e resistência ao

marxismo, apresentado no texto de Derrida, pela herança derridiana e a resistência

ao “úmido”, que é ao que viso. 116 Adieu à Emmanuel Lévinas, pág. 27.

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os espectros

Derrida se pergunta o porquê desse plural. Há fantasmas? O mais de um, como se

disse, não pode querer dizer uma associação ou uma multidão de fantasmas a

serviço de algum propósito; no entanto, é menos de um, pois não pode se

simplificar na pura e simples dispersão. E é esse isso que faz com que se inicie

uma obra, qualquer que seja. Toda tarefa começa com a aparição do espectro, que

disjunta o tempo, como conclama Shakespeare ao dizer: “the time is out of joint” 117. Assim começa a tarefa de Hamlet, com a aparição do pai-morto-vivo, assim

começa o Manifesto do partido comunista: “Um espectro ronda a Europa – o

espectro do comunismo”. “Tudo começa pelo aparecimento do espectro. Mais

precisamente pela espera deste aparecimento” 118, pois, como se viu através dos

exemplos de abertura em Clarice e Guimarães Rosa, é preciso espera – e que se

esforce para que se mantenha aberta a abertura. Hamlet, ao saber da aparição do

pai, inquieta-se; teme, mas não vê a hora de ver o invisível. A espera é a

antecipação do por vir e, ao mesmo tempo, abriga a ansiedade, a angústia e a

fascinação necessárias a toda aparição (que é sempre uma re-aparição e, no

entanto, é também sempre uma primeira vez):

Isso, a coisa (this thing) terminará por chegar. A aparição virá. Ela não pode tardar. Como tarda. Com maior exatidão ainda, tudo se abre na iminência de uma re-aparição, mas da reaparição do espectro como aparição pela primeira vez na peça. O espírito do pai vai retornar e em pouco tempo lhe dirá “I am thy Fathers Spirit” (ato I, cena V), mas aí, no começo da peça, ele retorna, se assim podemos dizer, pela primeira vez. Trata-se de uma première, a primeira vez em cena. 119

Derrida oferece algumas sugestões a se pensar sobre essa cena. A cena,

como toda cena, é histórica, encena uma estória e encena a história mesma da

historicidade, mas segundo uma obsessão que não data e nem pode se permitir

encadear de acordo com a cronologia do presente. Não se pode marcar no

117 “The time is out of ioynt: Oh cursed spight, That ever I was borne to see it right. Nay, come let’s goe together” (SHAKESPEARE, W. Hamlet. Ato I, cena V), citado por Derrida em Espectros de Marx, pág. 15. na edição brasileira, abaixo do original, encontra-se a tradução de Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes: “O mundo está fora dos eixos. Oh! Maldita sorte... Por que nasci para colocá-lo em ordem! Mas, vinde, entremos juntos”. 118 Espectros de Marx, pág. 18. 119 Espectros de Marx, pág. 18.

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calendário o dia ou a hora da aparição; e, além disso, como se verá um pouco

adiante, a aparição nunca “chega”, de tão intempestiva: na verdade, não ocorre a

aparição do fantasma, uma fenomenalização, mas um saber-se obsediado.

Parafrasearei do meu modo para ilustrar o que está agora me passando pela

cabeça: Minha “hipótese” é a de que um espectro ronda a Filosofia – o espectro

do úmido. Espectro este que, como todo espectro, é mais de um, por ser

participante da umidade mesma. Minha pretensão é a de ver em Derrida (ou, mais

pretensiosamente ainda, a de ver em mim vendo em Derrida) a figura de Hamlet.

primeiro ato

Cito longamente sem aspas, alterando e adaptando: Exórdio ou incipit: Como em

Hamlet, em Marx (e em Derrida), príncipes de um Estado apodrecido, tudo

começa pelo aparecimento do espectro. Mais precisamente, pela espera deste

aparecimento. Mas essa obsessão não chega, não se deixa docilmente datar, não

sobrevém, como no caso do marxismo, um dia à Europa [e do mesmo modo, a

desconstrução não se deixa datar, não sobreveio datadamente, na década de

sessenta, à filosofia], como se esta data, em um determinado momento de sua

história [e da história da filosofia e, mais precisamente ainda, do pensamento

francês contemporâneo], viesse a sofrer de um certo mal, como se houvesse

deixado habitar por dentro, ou seja, obsediar por um hóspede estrangeiro

[exatamente como, para Derrida, há desconstrução, sempre houve e sempre

haverá; não foi uma criação sua que, como uma infecção, foi tomando a filosofia.

Se toda escritura é constructo, então é, por princípio, por seu princípio mesmo e

por sua estrutura interna, desconstruível. Do mesmo modo que não penso ter

achado nenhum caminho meu, nisso que aponto como um pensamento úmido a

partir de Derrida – apenas estou tentando, como Derrida fez, não negar esse

“estar possuído” por isso que é estrangeiro, pelo totalmente outro, mas, ao

contrário, assumi-lo; assumir a possessão mesma como princípio para o

pensamento e não querer exorcizá-la, como tentou fazer Bacon, por exemplo].

E o fato de ter desde sempre ocupado a domesticidade da Europa [como o

caso da estrutura da umidade na filosofia] não torna o hóspede menos estrangeiro.

Isso porque, e agora cito Derrida ipsis literis, “não havia dentro, não havia nada

dentro antes dele [do espectro]. O fantasmático deslocar-se-ia como o movimento

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dessa história. A obsessão caracterizaria, de fato, a existência da Europa” 120. O

que, em meus termos, resumir-se-ia na seguinte conclusão (precipitada como

qualquer conclusão): A umidade do úmido deslocar-se-ia como o movimento

dessa história da filosofia, da tradição. A umidade caracterizaria, por um lado, a

quase-substância mesma da filosofia; ao mesmo tempo, um certo tipo de luta ou

resistência aberta, declarada e assumida contra esta estrutura do úmido

configuraria a própria existência da filosofia.

segundo ato

Uma outra sugestão de Derrida para esta cena da escritura diz respeito a isso que

vê sem ser visto, esta figura assombrosa que, como eflúvios, pode penetrar em

nosso corpo (e lembro aqui o antepassado pré-socrático dos eidola de Bacon, que

invadiam o corpo sensível).

Este algum outro espectral nos olha; sentimo-nos olhados por ele, fora de toda sincronia, antes mesmo e para além de qualquer olhar de nossa parte, segundo uma anterioridade (que pode ser da ordem da geração, de mais de uma geração) e uma dissimetria absolutas, segundo uma desproporção absolutamente incontrolável. A anacronia faz a lei aqui. Que nos sintamos vistos por um olhar com que sempre será impossível cruzar, aí está o efeito de viseira, a partir de que herdamos a lei. 121

Deste mesmo modo, os eflúvios, as imagens, os fantasmas de verdade, os ídolos

do foro sempre nos obsediaram: e não basta creditar ao platonismo, ao

cartesianismo, à filosofia crítica essa tentativa de purificação ou exorcismo. Pode-

se ver em exemplos bem recentes como este “outro que nos olha e que não

vemos” ou tudo isso que “não se pode nomear” está presente no pensamento

contemporâneo. Dois grandes exemplos, que serão retomados adiante, são

Saussure e Austin: o primeiro ao falar da “monstruosidade” da escrita e o segundo

ao falar dos “parasitas” da língua. E, para além destes exemplos berrantes, que

serão apresentados no capítulo seguinte, pode-se pensar a postura fenomenológica

também como uma espécie de “higienização”: seja no “retorno às coisas mesmas”

de Husserl, em que tudo o mais deve ser suspenso, posto entre parênteses (ou seja,

não levado em conta, excluído etc.); seja na autenticidade única do “pensamento

120 Espectros de Marx, pág. 19. 121 Espectros de Marx, pág. 23.

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do Ser” de Heidegger, em que tudo o que não é digno de ser pensado é tido como

impróprio; seja em uma “ética do infinito” como a de Lévinas, em que se deve

abandonar o clima de qualquer ontologia e apagar do mapa qualquer vestígio

heideggeriano.

*

Entretanto, por outro lado, não vejo quem me vê – e é este quem faz a Lei. Tal Lei

– mais uma antecipação do que se mostrará à frente – resume-se em “que haja

lei!”, que Derrida toma emprestado do Processo de Kafka 122. Está-se sempre

diante da lei, sempre, sem cessar – e esta lei é a lei do fantasma, “daquele que não

deve ser nomeado”, e quem nem pode ser, nem que se quisesse, pois é a Lei da

umidade que, querendo ou não, entra efluvialmente pelos poros do pensamento:

seja a lei do existente, da filosofia como ético-política rumo à lei do Todo-Outro

disseminado; seja a lei da metaforicidade mesma, da filosofia como alegoria; seja

a lei da impossibilidade de tradução, da filosofia como monolinguismo do outro;

seja a lei do “como se”, da filosofia como ficção; seja a lei da assinatura, da

filosofia como o autobiográfico. Estes cinco aspectos que acabo de nomear, de

batizar, como sendo desdobramentos da mesma Lei são aquilo que penso – e

como penso – poder apresentar como isso que chamo de pensamento úmido.

Seriam os traços desta Lei da umidade que a filosofia tanto se esforça por

exorcizar, por se auto-exorcizar, e que eu vejo assumidos e tomados como

princípio mesmo da desconstrução em Derrida. E, se haverá, aqui, nisto que “não

deve ser nomeado” de uma tese, alguma tese, aspectos que terão de – apesar de

não deverem – ser nomeados de capítulos, serão este pentágono. Ou melhor, já

que a geometria seria mais uma extirpação do úmido, então a figura geométrica

não caberia como metáfora, não há cinco lados distintos que formam um conjunto,

uma unidade da tese, mas são cinco aspectos da mesma Lei que comporão a

segunda parte desta: trata-se de um pentatlo.

É nesta esteira – em que me exercito, ando, caminho quilômetros sem sair

do lugar, mas que produz, é certo, um efeito – na esteira dos espectros de Derrida,

dos que o assombraram e que me assombram, assim como os do que me

122 Isso será tratado mais pacientemente no quinto capítulo da segunda parte, sobre a ficcionalidade da língua.

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assombram e que eu faço assombrar Derrida, neste “rumo” desorientado que tento

escrever. E, nesta esteira, em que Derrida caminha com Marx e Shakespeare,

“aquele” que vê e que faz a lei, o mais de um, é quem “liberta a injunção” – este

alguém impreciso, objeto não-identificado, mas que demanda, em seu

ordenamento, trabalho e fé: é preciso que se acredite no fantasma. Se o que

assombra o pensamento é a umidade mesma do úmido, esse algo quase-

ectoplasmático, sobretudo alegórico, isto pode tomar a forma que quiser e se

apresentar a mim como quiser, e Lévinas já dizia que o rosto do outro é um rosto

sem face, que, portanto, se esfacela. Esta tarefa é, portanto, também, um segredo

(e, continuo repetindo, estou antecipando inúmeros quase-conceitos que tentarei

responder-por nesta escrita), e, como observa Derrida sobre Hamlet, só se pode

acreditar na palavra disto que diz “I am thy Fathers Spirit” e, sem se ter certeza de

nada, seguir o ordenamento e assumir a herança: “submissão essencialmente cega

ao seu segredo, ao segredo de sua origem, eis uma primeira obediência à injunção.

Ela condicionará todas as outras. Pode-se sempre tratar de algum outro” 123.

Mais acima, Derrida referira-se a um certo “efeito de viseira” que compõe a

lei da anacronia que se herda: o pressuposto espírito do pai de Hamlet “aparece”

completamente recoberto por uma armadura; esta armadura cobre todo seu corpo;

e não se pode identificar se esta faz parte ou não da encenação do espírito.

A armadura não deixa ver nada do corpo espectral, mas à altura da cabeça e sob a viseira, permite ao soi-distant pai ver e falar. Fendas aí são preparadas e ajustadas, permitindo-lhe ver sem ser visto, mas falar para ser ouvido. O elmo (helm, o capacete), como a viseira, além de garantir uma proteção, encimava o escudo de arma e designava a autoridade do chefe, como o brasão de sua nobreza. 124

E prossegue:

Para o efeito de elmo basta que uma viseira seja possível, e que se jogue com ela (...). Mesmo quando está erguida, a viseira permanece, recurso e estrutura disponíveis (...). Eis o que distingue uma viseira de uma máscara, com que, no entanto, compartilha esse poder incomparável, talvez a insígnia suprema do poder: ver sem ser visto. O efeito de elmo não é suspenso quando a viseira está erguida. 125

123 Espectros de Marx, pág. 23. 124 Espectros de Marx, pág. 23. 125 Espectros de Marx, págs. 23-24.

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Tal fato, no momento da aparição do espírito do pai a Hamlet é, para Derrida,

extremamente marcante para que se pense esta estrutura espectral. Hamlet, assim

que Horácio lhe conta que uma aparição semelhante a seu pai aparecera armada

dos pés à cabeça (“Arm’d at all points exactly, Cap a pe” 126), interroga-se,

primeiramente, sobre esta armadura (“Hamlet: Arm’d, say you? Both: Arm’d, my

Lord. Hamlet: From top to toe? Both: My lord, from head to foote”) e, logo em

seguida, para se certificar da aparição do espectro de seu pai, interroga-se sobre a

visão de seu rosto (“Hamlet: Then saw you not his face? Então não lhe pudeste

ver o rosto? Horácio: O yes, my Lord, he wore his Beauer vp. Como não? A

viseira estava erguida”. Ato I, cena II). As observações derridianas que se seguem

à exposição desta passagem da encenação decompõem analiticamente em três

coisas essa coisa (o espectro, o rei, o pai: “The body is with the King, but the King

is not with the body. The King, is a thing”), e a elas me deterei.

Antes, e sempre, o luto, como se viu no Adeus. Sempre se começa e,

portanto, sempre se fala de ou em um luto, enlutado, mas em um contínuo

processo de luto, em que o objeto nunca é substituído, nem introjetado – já que

não há vida, nem morte, mas apenas sobre-vida, há uma constante semi-perda que

é também um semi-ganho; e isso caracterizaria um semi-luto para-além do estrito

sentido do luto freudiano (que também seria, assim, uma semi-melancolia). Para

Derrida, não se fala senão do luto, deste luto-impossível 127. “Este consiste sempre

em tentar ontologizar os restos, torna-los presentes, em primeiro lugar em

identificar os despojos e em localizar os mortos” 128 e isso configuraria o objetivo

de todo pensamento filosófico, hermenêutico e psicanalítico. Mas que, por estar,

de tal modo, presa a esta sistematização dos defuntos não permite que se pense

este aquém que Derrida propõe com a questão do espectro. A postura filosófica

tradicional, deste modo, precisa saber, saber quem é este espectro, como ele é,

onde ele está e, para Derrida, “nada seria pior para o [seu] trabalho de luto do que

a confusão e a dúvida: é preciso saber quem está enterrado onde – e é preciso

(saber – assegurar-se) que, nisso que resta dele, há resto” 129. E, portanto, só a

confusão permanece, os restos, rastros, traços. Qualquer catalogação ou 126 Todas as passagens de Hamlet são retiradas do texto de Derrida. 127 Sobre isso, ver a “Entrevista com Geoffrey Bennington” em Desconstrução e ética (pp. 228-231). Ver também “Luto e alteridade no pensamento de Jacques Derrida”, de Ana Maria Continentino (Analógos, v. V, novembro de 2005). 128 Espectros de Marx, pág. 25. 129 Espectros de Marx, pág. 25.

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taxonomia dos cadáveres se torna impossível: há restos, aliás, só há e sempre só

houve restos, mas, para ser realmente um resto, um resto digno do nome resto, ele

não pode ser catalogado nem submetido a nenhuma nomenclatura – sendo, como

entendo, sempre úmido.

Uma segunda análise de Derrida sobre a coisa diz que “não se pode falar de

gerações de crânios ou de espíritos (...) a não ser sob a responsabilidade da

língua” 130. Como se verá em seguida, ao tratar da língua, da minha língua, a

estrutura que Derrida apontou aqui como a estrutura da “vida própria” se repete. A

minha língua, a única que eu falo, que eu possuo, não me pertence. No entanto, só

se fala de ou na língua, nesta língua que nada mais é que uma estrutura de

promessa e adiamento, uma língua, deste modo, também espectral e que vem do

outro. Como se verá, meu monolongüismo é um monolingüismo do outro: e, no

entanto, esta língua, tão minha como a minha vida que não me pertence, sempre

vem do outro e não é de fato mono nem auto, mas sempre hetero e multi. A língua

que pode acolher esse pensamento de gerações de fantasmas, nos termos de

Derrida, ou de uma sucessão de eflúvios, não pode ser o pretenso auto-mono-

lingüe idioma filosófico, mas sim o hetero-poli-(ou multi)-lingüismo da

desconstrução – que mais que hetero, poli ou multi, é um alter-iter-lingüismo.

E depois do luto e da língua, do luto da língua inclusive, Derrida encerra

sua apresentação do problema (do marxismo como metonímia para o fantasma, e,

aqui, do fantasma como sinonímia do úmido) com a seguinte questão: “Aonde?”.

Aonde se irá ao se seguir um fantasma? Qual a destinação que uma presença-

ausência pode apontar? E, mais ainda, “o que é seguir um fantasma? E se isso

significasse ser seguido por ele, sempre, perseguido, talvez em razão da caçada

que lhe fazemos?” 131. Que reentre o fantasma: Hamlet aceita seguir o fantasma

do pai (“I’ll follow thee”, ato I, cena IV), mas, logo depois, pergunta: “whither?”,

para onde? (“Hamlet: Where wilt thou lead me? Speak; I’ll go no further. Ghost:

Mark me […] I am thy Fathers Spirit”). Deve-se aceitar, assim, a seguir isto que

nem se sabe se é ou não o que se diz e, além disso, segui-lo sem saber para onde –

simplesmente segui-lo, seguir a ordenação que diz “vem” do outro, a autoridade

da alteridade radical que, em todo caso, é inevitável, mas às vezes reprimido,

recalcado, evitado, renegado ou conjurado. Esta estrutura já se viu antecipada, de

130 Espectros de Marx, pág. 25. 131 Espectros de Marx, pág. 25.

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algum modo que aqui me aproprio, em “Violence et Métaphysique”, no qual

Derrida confronta Lévinas com Heidegger. Se Derrida mostra como Lévinas, o

discípulo, transformara-se em um parricida, com seu desenho ferrenho de fundar

uma filosofia pré-heideggeriana, descontaminá-la de toda ontologia, como

Macbeth frente ao espectro de Banquo, é porque este, no início, assumira a

postura de Hamlet e ouvira o “chamado” de Heidegger. A crítica de Derrida a

Lévinas não se deve ao fato do parricídio, pois a desconstrução, em grande parte,

tem como pressuposto a crítica da ética levinasiana; mas o que Lévinas não viu,

ou ao menos não assumiu, é que tudo o que ele escreveu estava já contaminado

por Heidegger, e que, se ele seguiu um rumo totalmente outro do de Heidegger

foi, justamente, por ter começado com Heidegger, com seu espectro e a segui-lo

sem saber pra onde. E, assim, se se segue o espectro sem se saber para onde,

acaba-se por se traçar um rumo próximo de algo que é próprio, uma travessia

obliqua.

terceiro ato

“Enter the Ghost, Exit the Ghost, Re-enter the Ghost”. A aparição como

reaparição. O fantasma como retorno e, ao mesmo tempo, inauguração: injunções

temporais, temporalidades out of joint, sem-junção, dis-juntas. “Repetição e

primeira vez, eis talvez a questão do acontecimento como questão do fantasma; o

que vem a ser um fantasma?” – e, neste caso, esta aparição para mim do úmido,

de modo absolutamente espectral, isso que se mostrou a mim pela primeira vez

não é mais que uma repetição, uma remarca, como objetei. Mas é nesta remarca,

aponta Derrida, que pode haver alguma espécie de, entre infinitas aspas,

“...“singularidades”...”.

Repetição e primeira vez, mas também repetição e última vez, pois a singularidade de toda primeira vez faz dela também uma última vez. Cada vez, trata-se do acontecimento mesmo, uma primeira vez e uma última vez. Totalmente outro. (...) Chamemos isso de uma obsidiologia. Essa lógica da obsessão não seria somente mais extensa e mais poderosa do que uma ontologia ou um pensamento do ser (do “to be”, supondo-se que em “to be or not to be” esteja em questão o ser [como afirmou Lévinas], e nada é menos certo. Ela abrigaria em si, mas como lugares circunscritos ou efeitos particulares, a escatologia e a teleologia. Ela as compreenderia, mas incompreensivelmente. 132

132 Espectros de Marx, pág. 26.

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De modo semelhante, que é o que eu pretendo, um pensamento úmido ou uma

umidologia teria sua singularidade em apenas tentar repetir de outro modo o que

já “está” aí. Em um primeiro lugar, tentar compreender a atitude crítica de Bacon,

estendê-la à filosofia crítica, em geral, e talvez de modo mais generalizado ainda à

tradição filosófica, mas não tentando apreendê-la em uma lógica minha, dominá-

la, tê-la como meu objeto. Como tentei captar de Clarice e de Derrida, é no

escapamento por entre os dedos disto que tanto quero agarrar que algum

conhecimento é possível, incompreensivelmente – que, como ecoa nos dois: o

impossível acontece. Mas este “correr atrás” é inevitável, é o que produz a própria

escritura, só não se pode ter a pretensão de ter enfim agarrado o instante-já, enfim

compreendido um autor e enfim aprendido a viver. Sobre isso, faço questão de

repetir Clarice em Água Viva:

Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais... E quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já. 133

E esse impossível, que está além do dizível e do conhecível é, ele mesmo, a

própria alteridade, o espectro, o úmido (não estes outros aqui presentes, pessoas,

coisas, discursos, pois estes já estão inseridos na lógica do possível). E é isso que

leva Derrida a afirmar que a desconstrução é um acontecimento; há

desconstrução: não existe nenhum sujeito desconstrutor, um agente ativo que

promova a cerimônia do acontecer, ela simplesmente acontece. Sobre isso, Paulo

Cesar Duque Estrada diz que:

Em termos mais positivos, a alteridade que virá, quando a barreira da exclusão for rompida, virá como um acontecimento inesperado, justo por não se tratar de nenhuma alteridade já previamente determinada e, portanto, familiar de alguma forma, calculável, previsível, apreensível, etc. 134

Pois, como diz Derrida: “o interesse da desconstrução, de sua força e de seu

desejo, se é que ela os tem, é uma certa experiência do impossível: quer dizer, (...)

do outro, a experiência do outro como invenção do impossível, em outros termos,

133 LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, pág. 09. 134 DUQUE-ESTRADA, P.C. “Alteridade, violência e justiça: trilhas da desconstrução”, pág. 37.

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como a única invenção possível” 135. E é justamente esta experiência, esta nova

maneira de se conceber a “experiência” (que rompe com o ideal de presença e

com a junção do tempo) que os espectros e os eflúvios podem nos ensinar. Esta

lição acena para o aprendizado do impossível, ou melhor, trata de aprender a não

lidar com o impossível, pois essa é a única relação possível com esse “isso” que

sempre escapará.

E, no entanto, é sempre um trauma. A experiência de se ter à frente um

espectro não pode ser algo fácil. E este trauma, no sentido derridiano do

rompimento com a ordem do possível e do cálculo que todo acontecimento traz

consigo, é por certo tudo aquilo que a filosofia, por auto-imunidade, tenta afastar.

Nos tempos sombrios, macabros, em que os funerais são bandeiras filosóficas, e

sempre festejados, quando, como Marcelo diz que “Something is rotten in the

state of Denmark”, o cheiro de putrefação impregna o ar, o melhor a fazer seria,

mesmo, se certificar de que os cadáveres estão bem enterrados e bem mortos – e,

assim, catalogá-los, esquartejá-los e ou guardá-los em formol. Mas não, Derrida

vem e afirma que nada morre (contudo, nem vive), tudo sobrevive: platonismo,

cristianismo, Deus, arte, sujeito, marxismos etc... Todos esses espectros

continuam a assombrar o pensamento, por mais que a tentativa de grande parte da

tradição seja a de parricídio e sepultamento, mesmo quando se traveste de

eternização e preservação e determinação de essências. Não é à toa que o úmido

incomodava tanto Francis Bacon, pois, em uma experiência como essa, de

confrontamento e assunção da estrutura úmida da umidade, muito se tem a perder,

certamente, aliás, tem-se a perder praticamente tudo. Mas dever-se-ia aprender

que é nesta perda – de tempo e de espaço – que há algo a se ganhar, no trauma.

Um acontecimento sempre provoca uma ferida no curso cotidiano da história, na repetição e antecipação comum de toda experiência, (...) precisamos questionar sua crono-logia. (...) Estamos falando de um trauma e, portanto, de um acontecimento cuja temporalidade não procede do agora que está presente, nem do presente que é passado, mas de um im-presentável por vir (...) um futuro tão radicalmente por vir que resiste mesmo à gramática do futuro do pretérito 136.

O fantasma entra, sai e retorna. Escrever, portanto, é uma questão de

repetição, para Derrida – escrever, pensar, se relacionar em geral com qualquer 135 DERRIDA, J. Psyché. Inventions de l’autre. Pág. 27. 136 BORRADORI, G. Filosofia em tempo de terror, tradução de Roberto Muggiati. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pág. 106.

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outro (como se fosse possível não se relacionar com o outro, mesmo que seja uma

relação a si como outro de si). Um espectro é sempre um retornante, ele sempre

começa por retornar e é por esta razão que não se pode controlar suas idas e

vindas, suas aparições: não há como invocar nenhuma entidade; ou ela irrompe ou

não. É isso que torna impossível a tarefa que Derrida se coloca, que me obsedia e

que penso ser desprezada por grande parte da filosofia, qual seja, falar do

espectro, falar ao espectro, falar com ele, logo, e principalmente, fazer ou deixar

falar um espírito. E se, em Espectros de Marx, existe um momento realmente

crítico, tal seria o ponto em que Derrida coloca como esta dificuldade se acentua

quando se trata de um leitor, um erudito, um scholar. “Teoricamente”, o último a

quem um espectro apareceria seria a um teórico, isso em teoria. E, como se trata

ainda de um capítulo introdutório, talvez retomando a metáfora esportiva, antes do

pentatlo, o momento do aquecimento, devo pensar em como eu, pretenso

acadêmico, que deseja ser “aceito” pela sociedade intelectual, bem visto etc.,

posso fazer ou deixar falar o úmido.

Não há mais, nunca houve, um scholar capaz de falar tudo dirigindo-se a qualquer um, e principalmente aos fantasmas. Nunca houve um scholar que tivesse verdadeiramente, enquanto tal, lidado com fantasma. Um scholar tradicional não acredita em fantasmas – nem em tudo a que se poderia chamar o espaço virtual da espectralidade. Nunca houve um scholar que, enquanto tal, não acreditasse na distinção entre o real e o não-real, o efetivo e o não-efetivo, o vivo e o não-vivo, o ser e o não-ser (to be or not to be, conforme a leitura convencional), a oposição entre o que está presente e o que não está, por exemplo sob a forma da objetividade. Para além dessa oposição, não há para o scholar senão hipótese acadêmica, ficção teatral, literatura e especulação. 137

E, se tomo, a partir desta crítica ao pensamento crítico, Bacon, entre muitos, como

a figura exemplar do scholar e sua dificuldade de admitir que há o úmido, e que

ele deve haver, devo ressaltar que Derrida fala – apesar da clara firmeza – que

nunca houve, entre o que se tem tradicionalmente por scholar, um scholar capaz

disso. E é por este motivo que, aos espectros de Derrida, ao longo de toda a escrita

desta tese, para-aquém de toda invocação, tentarei deixar ou fazer falar tantos

outros espectros “marginais” que me assombram.

137 Espectros de Marx, pág. 27.

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quarto – e penúltimo ato

E um penúltimo ponto a se insistir: a injunção. Retomando “As três falas de

Marx” 138, de Blanchot, segundo Derrida, “de uma incomparável densidade, de

modo ao mesmo tempo discreto e fulgurante”, o filósofo franco-argelino retira,

desta obra, não uma resposta à questão da herança, mas o fato de que, hoje, se é

herdeiro de “mais de uma fala, como de uma injunção em si mesma desajuntada” 139. A herança é sempre de uma heterogeneidade radical, que não se pode nunca

juntar: e se há algo próximo a uma espécie de unidade na herança, esta consiste na

injunção mesma de se reafirmar sempre isso que é por nós, de certo modo,

escolhido. “É preciso, quer dizer é preciso filtrar, peneirar, criticar, é preciso

escolher entre vários possíveis que habitam a mesma injunção. E habitam-na de

modo contraditório, em torno de um segredo” 140. E “herda-se sempre um

segredo”, mas um segredo, como se verá à frente, de uma extrema radicalidade e

alteridade, um segredo absolutamente secreto, que só se transmite em sua

criptidade mesma. A injunção é o que diz que se deve herdar e, mais ainda,

escolher o que se herda, pois não existe um algo a se herdar, senão as múltiplas

vozes do mais de um.

“The time is out of joint”. É o imperativo herdado de Hamlet que o faz,

incessantemente e por fé, tentar manter junto o que é absolutamente separado, na

injunção de um tempo infinitamente disjunto. E, nas análises de Derrida, o que se

diz do tempo, neste caso, mas também em todo caso, serve também para a

história, e, neste caso aqui, para a história do pensamento: mesmo se o objetivo de

uma história ou de uma história do pensamento for o de juntar isso que, por

“natureza” é disjunto.

“The time is out of joint”, o tempo está desarticulado, demitido, desconjuntado, deslocado, o tempo está desconcertado, consertado e desconcertado, desordenado, ao mesmo tempo desregrado e louco. O mundo está fora dos eixos, o mundo se encontra deportado, fora de si mesmo, desajustado. 141

Retomando as quatro mais respeitadas traduções do francês para a disjunção, o

out of joint, Derrida encontra uma multiplicidade de interpretações para esta tarefa

138 BLANCHOT, M. L’Amitié, Paris: Gallimard, 1971, págs. 109-117. 139 Espectros de Marx, pág. 33. 140 Espectros de Marx, pág. 33. 141 Espectros de Marx, págs. 34-35.

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de Hamlet: 1. a tradução mais fiel, de Yves Bonnefoy: “Le temps est hors de ses

gonds”, “O tempo está fora de seus gonzos”, “fora de si” 142; 2. a tradução

arriscada de Jean Malaplate: “Le temps est detraqué”, “O tempo está alterado”; 3.

a tradução próxima ao original de Jules Derorquigny: “Le monde est à l’envers”,

“O mundo está às avessas”; e 4. a surpreendente tradução de André Gide: “Cette

époque est déshonorée”, “Esta época está desonrada” – a qual, para Derrida, pela

surpresa mesma, desperta um interesse, por introduzir um caráter ético-político à

sentença.

Se “há algo de podre no reino da Dinamarca”, Hamlet está, sim, inserido em

uma decadência moral, em uma perversão dos costumes, e, assim, não é de se

surpreender que o príncipe herdeiro pense o desajustado como injusto. Derrida se

questiona, então, se se poderia justificar esta passagem do desajuste – um valor, a

princípio, ontológico – à injustiça. Mas, na verdade, o que se deve entender, como

já se deve supor com o que se viu até agora, é que este desajuste, esta disjunção,

é, isso mesmo, a condição de possibilidade da justiça – guardando em mente, de

acordo com a máxima de Lévinas que Derrida assume ter herdado, a máxima de

Totalidade e Infinito que assombra Força de lei, que a justiça é ela mesma a

relação com o outro 143.

Esta é a tarefa de Hamlet que o impõe a fazer justiça ao mundo, a herdar

uma responsabilidade infinita deste outro que lhe comanda uma ação, a agir reta e

corretamente, de acordo com a retidão, como dizia Lévinas. A dissimetria radical,

absoluta, é quase insuportável (como se verá no capítulo sobre a relação com o

outro), pois o “eu” só pode dizer “sim”, responder (infinitamente) a isto a que ele

nunca conseguirá responder, mas que é incessantemente convocado a fazer. É por

isso que, em um primeiro momento, Hamlet amaldiçoa seu tempo, esta injustiça

de ser ele o “eleito” a fazer justiça ao tempo desajustado. Hamlet “amaldiçoa a sua

missão: fazer justiça, de uma de-missão do mundo. Pragueja contra um destino

que o leva a fazer justiça a partir de um erro, um erro do mundo e dos tempos” 144;

como Jó, Hamlet amaldiçoa o dia em que nasceu: “The time is out of joint: O 142 Anamaria Skinner indica que, em português, encontram-se as seguintes traduções: 1. “Dos gonzos saiu o tempo”, de Carlos Alberto Nunes; 2. “Como as coisas andam / fora dos eixos!”, de Péricles Eugênio da Silva Ramos; 3. “O mundo está fora dos eixos”, de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. (Espectros de Marx, pág. 36.). 143 A afirmação de Lévinas que se encontra em Totalidade e Infinito (p. 76) é retomada por Derrida tanto em Force de loi: le “fondement mystique de l’autorité” (p. 958) como no debate com John Caputo em Deconstruction in a nutshell (pp. 17-18). 144 Espectros de Marx, pág. 37-38.

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Cursed spite, That ever I was born to see it right ”, amaldiçoa o “erro trágico” que

teria sido feito em seu nascimento – e, no entanto, é essa perversão originária que

fez Hamlet ser Hamlet.

Só há tragédia, só há essência do trágico desde que haja essa originaridade, mais precisamente, essa anterioridade pré-originária e propriamente espectral do crime. Do crime do outro, um crime grave cujo acontecimento e a realidade, e a verdade, não podem nunca apresentar-se em carne e osso; podem apenas se deixar presumir, reconstruir, fantasmar. 145

Para Derrida, esta tragédia é a constituição da única possibilidade de justiça:

ser parte de uma geração sempre posterior, sempre segunda, e antecedida pela

absoluta disjunção do outro, uma contemporaneidade sempre tardia e somente,

então, destinada a herdar isso que é sempre uma injunção e mais de um – o

espectro, o úmido. Essa ferida sem fundo, essa tragédia originária, esse trauma é o

que constitui o “eu” como tal e o que o faz obrar. Para que haja obra é necessário

que o tempo esteja out of joint.

último ato

Porque se insistir nisso, aqui e agora? Porque insistir no espectro (para Derrida,

em um congresso que se perguntava sobre o amanhã do marxismo) e no úmido

(para mim, em uma tese que quer pensar, a partir de Derrida, a própria

academicidade da academia, o escrever acadêmico e em que medida a própria

escrita de uma tese não anula a própria “força”, a espectralidade e a umidade

mesma da tese). No “contexto” derridiano, endereçado aos scholars, o filósofo via

a importância de ressaltar a atual despolitização do marxismo através de sua

teorização, a tentativa acadêmica de, com isto, neutralizar a sua força, aceitando-

se seu retorno, mas não seu aspecto revolucionário. Para Derrida, “agora que

Marx está morto, e principalmente que o marxismo parece em plena

decomposição, parecem dizer alguns, vamos poder ocupar-nos de Marx sem ser

incomodados” 146. Ou seja, agora se pode tratar disso que, antes, tanto incomodou

a academia, o pensamento, tanto assombrou; e agora, então, se pode tratar disso

de modo claro e distinto, sistematicamente, respeitando-se as normas, já que

145 Espectros de Marx, pág. 38. 146 Espectros de Marx, pág. 51.

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Marx, hoje, morto, seria mais um filósofo entre tantos outros mortos – “e até se

pode dizer, agora que tantos marxistas estão calados, um grande-filósofo, digno de

figurar nos programas de concursos de que durante muito tempo foi proscrito” 147.

Estas questões que o texto derridiano coloca, são, para mim, já que se

pretende concluir, enfim, mas ainda não agora este capítulo, profundamente

tocantes e urgentes. Em primeiro lugar, sobre meu tema: se eu acredito – e

realmente acredito – que há um caráter revolucionário em todo pensamento que

assume o caráter úmido (como em Kierkegaard, Nietzsche, Benjamin, Lévinas e

Derrida, entre meus espectros), não posso e nem devo, em respeito a esse

pensamento mesmo, seguir as normas que, desde sempre, o tem aprisionado.

Devo correr o risco de me lançar na contaminação e na disjunção: por uma escrita

úmida, dentro de sua impossibilidade mesma; além disso, por amor a Derrida,

que, como se sabe, apesar de ser um acadêmico, sempre sofreu resistência,

sobretudo da filosofia.

Sem querer me deixar tomar completamente pela autobiografia, minha

estória no doutorado atestou em alguns momentos esta resistência – e o

acolhimento pelos departamentos de Letras e pela psicanálise sempre foi tanto

mais gentil. E se, pelo contrário, na filosofia, um dos órgãos mais respeitados –

sobretudo por sua “neutralidade” – o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq)

chega a emitir um parecer dizendo, entre outras coisas, que “Derrida não pode ser

considerado um autor formador para uma pesquisa de doutorado” 148 – o que,

apesar de me abalar momentaneamente me deu mais desejo de pensar o porquê

desta observação científica – penso que minha tarefa, então, torna-se aqui mais

séria do que imagino. Talvez, como Hamlet, tenha me sentido mais injustiçado

que todos neste mundo acadêmico out of joint, desajustado. Por que me senti

assombrado por este espectro, agora mesmo morto, e impelido a fazer justiça a

este crime que, talvez, ele mesmo, o próprio Derrida, tenha cometido? Mas, por

isso mesmo, já que assumi essa herança e essa responsabilidade (e, devo admitir,

muito mais depois de ler o referido parecer; e o que antes ocupava apenas um

lugar secundário passou a ser, desde então, uma questão de honra, como diria

Hamlet), não posso fazer, nem aceitar que se faça o que Derrida denuncia que se

147 Espectros de Marx, pág. 52. 148 Referência ao parecer negativo do CNPq, dado por um parecerista anônimo, sobre meu pedido de bolsa de doutorado sanduíche.

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fez com Marx (e com Nietzsche, com Benjamin etc.): tornar Derrida, agora que

morto e, por isso, aparentemente inofensivo, um grande filósofo, e decretar,

assim, a morte da desconstrução, do que há de revolucionário em seu pensamento.

São essas questões que me assombram – e, como já disse, por amor – que

me fizeram não querer ser um especialista em Derrida, um “comentador” de sua

obra, alguém que lhe restituísse sua verdade: um scholar. Optei por pensar a

partir de Derrida, com ele, na ingratidão necessária para que seu pensamento não

se inscreva na ordem do mesmo e não se aprisione em si. E, como ele mesmo

disse, para isso, é preciso se falar com e aos fantasmas: os que assombram

Derrida, o próprio Derrida como mais de um fantasma, e os meus fantasmas...

Derrida diz que é preciso que se impeça, em um congresso sobre o

marxismo e seu futuro, que prevaleça um retorno filosófico a Marx, mas não que

este retorno não deva ter espaço. É necessário que se retorne filosoficamente a

Marx, como aqui é inevitável que eu retorne incessantemente a Derrida, mas o que

não pode acontecer é que este “filosófico” do neutro e do científico, do

encadeamento, da junção e da conjunção, prevaleça – pois seu prevalecimento é

seu triunfo, é o triunfo mesmo do triunfo, e para que haja um pensamento de fato

úmido não pode haver triunfo. É preciso, na ótica de Derrida “este outro

pensamento do saber” 149: precisa-se que se reconheça a impossibilidade mesma,

como fez Blanchot, de se receber e de se entender uma fala ao recebê-la como

herança, “eis o que torna seguramente (...) a injunção, a herança e o porvir, numa

palavra, o outro, impossíveis” 150 - mas aí, como em tantos outros lugares, sempre

que se trata de desconstrução, é preciso ver nisso uma afirmatividade na

“experiência” do impossível, na aporia e, por conseguinte, em uma concepção de

experiência que se mantém sempre às margens do talvez.

*

Ao pensar o título da série de conferências reunidas sobre o nome de espectros,

Derrida pensou inicialmente em nomear todas as formas de obsessão que

dominam o discurso hoje, mas logo em seguida se apercebeu de que toda

nomeação, toda organização participa da hegemonia mesma que o próprio Marx

149 Espectros de Marx, pág. 54. 150 Espectros de Marx, pág. 55.

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tanto criticou. Deve-se, portanto, neste sentido, pensar a palavra conjuração, para

que se alerte à hegemonia de qualquer espécie de pensamento (e nem mesmo, de

um pensamento úmido, pois a umidade como a que aqui quero ver pensada é a

impossibilidade mesmo de qualquer hegemonia, de qualquer totalitarismo do

discurso, pois vai sempre permitir uma fenda, uma brecha, uma contaminação).

Tanto em francês como em português, a palavra conjuração possui uma

multiplicidade de acepções que aqui muito podem interessar: em uma primeira

análise, conjuração é uma conspiração, assumida ou secreta, por meio de um

juramento, contra um poder superior. É esta a conjuração de Hamlet que a

“aparição” do fantasma exige: pai e filho, obsessor e obsediado, fantasma e

herdeiro se conjuram para que advenha algum acontecimento; sob um outro

prisma, conjuração é também um “encantamento mágico” no qual se pretende

evocar, convocar um feitiço ou um espírito. “Conjuração exprime, em suma, o

apelo que faz vir pela voz e portanto faz, vir por definição, o que não está presente

no momento presente do chamado” 151. Para isso, como se viu, precisa-se de uma

certa fidelidade à infidelidade, de uma insistência, de que se lute para que se

permaneça no perjúrio.

Assim, devo, antes de tudo ter feito um juramento; ter aceitado escrever

uma tese, ter me comprometido formalmente: com um departamento, um

orientador, uma instituição, e mais de uma, com agências fomentadoras, também

mais de uma (que recusam certo tipo de bolsa, por não acharem o autor

“formador” para um doutorado, mas concedem outro tipo, e, incoerentemente, até

mesmo com uma certa “dignidade”), ter jurado, dentro de certos limites, que já

aceitam alguma espécie de perjúrio, defender esta tese em um certo tempo e de

uma certa maneira; e também ter me comprometido informalmente: comigo

mesmo, com a filosofia, com Derrida, com o Paulo Cesar – e não com “o

orientador formal”, com os professores que acompanharam estas – e outras –

inquietações etc. Portanto, esta conjuração também apresenta uma dupla sessão,

como diz Derrida: jurei, primeiro secreta e depois publicamente, me filiar à

desconstrução, mas não como a um partido, pois onde só cabe “tomar posições”

não cabe “tomar partido”: Não há hasteamento de uma bandeira derridiana, mas a

assunção de uma herança que eu, junto a outros, vivos e mortos, conjurei; depois,

151 Espectros de Marx, pág. 62.

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como por encantamento, através da aparição pela voz de Danilo Marcondes do

fantasma da umidade que, entrando por meus poros como eflúvios, me possuiu,

tive que, em inúmeros momentos, sentar e invocar, chamar, pedir para que a

aparição retorne e possibilite que se escreva, assim, na disjunta herança que

conjuro.

*

“A especulação é sempre fascinada, enfeitiçada pelo espectro” 152, mas o

problema é que a atitude tradicional da especulação é, opostamente, a de recusar

este fato. O teórico é aquele que acredita suficientemente nas fronteiras, nos

limites das oposições e, assim, na eficácia das definições. Acredita, crê que, com

uma teoria das definições, com uma sistematização ou ontologização

fundamental, consegue denunciar e, conseqüentemente, expulsar e exorcizar os

espectros, exatamente do modo como Bacon age com o termo ao qual é de tal

modo hostil. E aqui entra em cena um outro aspecto do conjurar.

Marx não gosta mais dos fantasmas que seus adversários. Recusa-se a acreditar nisso. Mas só pensa nisso. (...) Essa hostilidade para com os fantasmas, uma hostilidade aterradora que se defende, às vezes, do terror pela gargalhada, é talvez o que Marx sempre terá tido em comum com seus adversários. Ele também gostaria de conjurar os fantasmas, e tudo isto que não era nem a vida nem a morte, a saber, a re-aparição de uma aparição que nunca será nem o aparecer nem o desaparecido, nem o fenômeno nem seu contrário. 153

E este é o problema que quero aqui me propor, agora, de fato, tentando concluir

isto que, a princípio, não era para ser um capítulo, mas uma introdução. A

filosofia e o pensamento crítico em geral empreendem uma batalha, por mais que

esta batalha seja ou tenha sido necessária ou, em sua época, revolucionária (como

Platão, Aristóteles, Agostinho, Descartes, Bacon, Kant, Hegel, Marx...), para

exorcizar (ou, como diz Derrida, exorçanalisar) a espectralidade do espectro:

descontaminar o pensamento, ressecar, enrigecer, desumedecer a filosofia.

Isso porque, em uma terceira análise do conjurar, além de juramento e

invocação, um conjuro também pode ser o exorcismo propriamente dito, em que

152 Espectros de Marx, pág. 69. 153 Espectros de Marx, págs. 69-70.

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se invoca o espírito maligno que assombra o assombrado para, assim, poder

expulsá-lo deste corpus.

Pois conjurar quer dizer também exorcizar: tentar simultaneamente destruir e denegar uma força maligna, endemoninhada, endiabrada, o mais das vezes, um espírito malfeitor, um espectro, uma espécie de fantasma que retorna ou que ainda corre o risco de retornar post mortem. O exorcismo conjura o mal, segundo vias igualmente irracionais e segundo práticas mágicas, misteriosas, até mesmo mistificantes. 154

E prossegue:

Sem excluir, muito pelo contrário, o procedimento analítico e o raciocínio argumentativo, o exorcismo consiste em repetir, sob o modo da encantação, que o morto está de fato morto. Procede por meio de fórmulas, e, às vezes, as fórmulas teóricas desempenham esse papel com tal eficácia que engana quanto à sua natureza mágica, seu dogmatismo autoritário, o oculto poder que repartem com isso que elas pretendem combater. 155

E, neste momento, ao menos para mim, parece clara a advertência que devo tomar

como pressuposto para o empreendimento que assumo, doravante, como meu.

Devo, parafraseando Derrida, começar a falar disto que eu chamo úmido, desta

herança, de sua aparição e seu retorno, que tantas vozes se erguem e ergueram

para conjurar, para exorcizar essa quase-entidade maléfica cuja ameaça consiste

em obsediar o pensamento.

Mas atente-se ao fato de que, como estou tentando alertar, o cadáver não

está realmente morto, pois nunca se morre, como nunca se vive. O desaparecido, o

aparentemente conjurado sempre re-aparece quando sua aparição é inconsiderável,

e, em seu aparecer, faz trabalhar – aliás, é apenas isso o que faz trabalhar: um

modo de produção fantasmático, como diz Derrida 156. E, como em um tropo,

posteriormente a um capítulo unicamente teórico (que me sinto na obrigação de

fazer, já que não se pode evitar por completo a violência), tentarei apontar o

quíntuplo desdobramento que enxergo deste modo de produção úmido, já

enumerado como meu pretenso pentatlo.

E depois de tanto aquecimento, e do anunciado alongamento teórico, sentir-

me-ei mais preparado para as cinco provas que disputarei, tentando ilustrar as

154 Espectros de Marx, págs. 70-71. 155 Espectros de Marx, pág. 71. 156 Espectros de Marx, pág. 134.

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cinco leis que eu vejo se desdobrarem deste modo de produção específico da

umidade – e, só depois, poderei me permitir o relaxamento necessário. O chavão

diz que o pódio não importa, e sim a competição mesma – mas é claro que se

escreve sempre para o outro, mesmo que para mim como leitor de mim mesmo, e,

neste caso, para ao menos mais cinco ou seis leitores. E, ainda que não se espere

uma medalha de honra ao mérito, mas também não meramente um prêmio de

consolação, é preciso que se saiba as regras do jogo, que neste exato momento

nesta obra, podem ser simplificadas na consciência deste luto interminável, sem

normalidade, sem limite, entre luto e melancolia, entre incorporação e introjeção 157, na atenção à injunção do tempo e da presença e na assunção de uma herança e

responsabilidades infinitas, às quais nunca se poderá responder-por propriamente.

Conjurar – o úmido. Tarefa da filosofia. Jurar, seguir sem saber para onde,

invocar. E saber que se tenta exorcizar o pensamento disto que é sempre estranho,

mas que a isto pertence, estruturalmente – e mais ainda, sendo isto talvez, essa

estranheza mesma, que constitua o pensamento como tal –, guardar em mente que

a tentativa deste exorcismo que o pensamento crítico empreendeu é tão místico e

misterioso como isto que ele tenta expelir. Como, em um passe de mágica, para

Bacon, o úmido sumiria da linguagem; para Heidegger, o Ser seria propriamente

pensado; para Lévinas, poder-se-ia voltar para aquém da ontologia; para Marx, o

capitalismo seria superado pelo comunismo etc. etc. etc.

E, para terminar, dou voz ao espectro que tanto invoquei e que tanto

invocarei nesta tentativa minha de conjurar justamente o úmido. Que se ouçam as

primeiras e as últimas palavras dos Espectros de Marx de Derrida:

Um nome por um outro, uma parte pelo todo: poder-se-á sempre tratar a violência (...) como uma metonímia. Em seu passado como em seu presente. Segundo diversas vias (condensação, deslocamento, expressão ou representação), poder-se-ão sempre decifrar por meio de sua singularidade tantas outras violências em andamento. Ao mesmo tempo parte, causa, efeito, sintoma, exemplo, o que lá ocorre traduz o que tem lugar aqui, sempre aqui, onde quer que se esteja e que se

157 Incorporação: “processo pelo qual o sujeito, de um modo mais ou menos fantasístico, faz penetrar e conserva um objeto no interior de seu corpo” (LAPLANCHE e PONTALIS, p. 238); e introjeção: “processo evidenciado pela investigação analítica. O sujeito faz passar, de um modo fantasístico, de ‘fora’ para ‘dentro’, objetos e qualidades inerentes a esses objetos”. “A introjeção aproxima-se da incorporação, que constitui o seu protótipo corporal, mas não implica necessariamente uma referência ao limite corporal (...). está estreitamente relacionada com a identificação (LAPLANCHE e PONTALIS, p. 248).

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olhe, o mais próximo de si. Responsabilidade infinita, desde então, repouso inadmissível para todas as formas da reta consciência. 158

E, enfim:

Ele [o “erudito”] deveria aprender a viver aprendendo a não conversar com o fantasma, mas a ocupar-se dele, dela, a deixar-lhe ou restituir-lhe a fala, seja em si, no outro, no outro em si: eles estão sempre aí, os espectros, mesmo se eles não existem, mesmo se eles não são mais, mesmo se eles não são ainda. Eles nos dão a pensar o “aí” desde que se abre a boca. 159

Enfim...

158 Espectros de Marx, pág. 07. 159 Espectros de Marx, pág. 234.

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