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2 Capítulo 2 - Fundamentação Teórica
2.1 O Racionalismo Crítico de Popper – Conjecturas e Refutações
Em sua obra, dedicada principalmente à teoria do conhecimento e em
especial do conhecimento científico, Popper deixa claro a natureza realista,
racional e crítica de sua filosofia. Diz-se realista ao admitir o realismo como única
hipótese sensata frente às demais correntes filosóficas, embora reconheça que o
realismo, como as teorias filosóficas ou metafísicas, não pode ser demonstrado,
testado ou sequer refutado. Defende o que denomina de realismo de senso comum
ao mesmo tempo em que recusa a teoria de senso comum do conhecimento.
Contra a maioria dos filósofos que, segundo ele, parecem ter perdido o contato
com a realidade, escreveu:
“Em minha opinião o maior escândalo da filosofia é que, enquanto em todo o nosso redor o mundo da natureza perece – e não só o mundo a natureza – os filósofos continuam a falar, às vezes brilhantemente e às vezes não, sobre a questão de saber se este mundo existe”. (Popper, 1999, p. 41)
Segundo Popper (2003, p. 145) a “tradição racionalista” foi um dos legados
mais importantes dos gregos à civilização ocidental. Dentro desta tradição a
ciência é reconhecida e valorizada pelos seus resultados práticos, como pretendem
os instrumentalistas, mas também, e principalmente, pelo seu conteúdo
informativo, pela capacidade dos cientistas de criar mitos, conjecturas ou teorias,
em seu empenho de explicar alguns aspectos desse mesmo mundo. Popper admite
que o cientista tenha por finalidade uma descrição verdadeira do mundo ou de
alguns dos seus aspectos, bem como uma explicação verdadeira dos fatos
observáveis. Entretanto, combate à idéia do conhecimento indubitável,
denominado por ele de “essencialismo”, ao assegurar que o cientista nunca pode
saber ao certo se as suas descobertas são ou não verdadeiras (Popper, 2003, p.
162).
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De acordo com a visão popperiana, não existe um método lógico capaz de
justificar a descoberta de novas idéias, ou a reconstrução lógica deste processo. O
objetivo de sua epistemologia seria, portanto, a reconstrução racional das provas
posteriores, no sentido de assegurar que as novas idéias eram realmente novas
descobertas ou aceitas como conhecimento relevante.
Na sua metodologia da ciência Popper pretende a formulação dos problemas
filosóficos de forma racional e clara, com o objetivo de promover a argumentação
crítica, na pretensão de evitar a destruição da filosofia racional e do próprio
pensamento racional. Esta perspectiva da ciência, que Popper preferiu chamar de
“racionalismo crítico”, em oposição aos “realistas ingênuos”, que acreditavam na
possibilidade de alcançar a verdade justificada, e aos céticos que negavam a
obtenção do conhecimento verdadeiro ou de seu progresso (Niiniluoto, 1999,
p.13), passa a ser representada pela tradição epistemológica falibilista.
Para Popper o problema fundamental para a epistemologia decorre da
seguinte questão: “Podemos afinal, conhecer algo?”, questão, que é uma
reformulação do problema kantiano: “Que posso eu conhecer?” (Popper, 1985, p.
548). Nos seus trinta e cinco anos de pesquisa filosófica, descarta o ceticismo, o
relativismo que classifica como pessimismo epistemológico, da mesma maneira
que não concorda com o otimismo epistemológico dos positivistas, que postula o
conhecimento seguro, certo, indubitável. Propõe um racionalismo crítico que tem
como objetivo entender como se dá o conhecimento e seu desenvolvimento,
fundamentado pelo princípio da falseabilidade, ao afiançar que estamos em
condições de aprender através de nossos erros e chegar mais perto da verdade pela
superação destes mesmos erros (Popper, 1985, p. 548).
A idéia central do racionalismo crítico de Popper repousa, portanto, na
premissa de que podemos aprender com nossos erros, ponto de partida para o
desenvolvimento de uma teoria do conhecimento e do seu crescimento (Popper,
2003, p.9).
Na filosofia de Popper esta atitude crítica foi descrita como:
“... uma tentativa consciente de procurar que sejam as nossas teorias, as nossas conjecturas, a sofrer em nosso lugar na luta pela sobrevivência do mais apto. Esta atitude dá-nos uma oportunidade de sobreviver à eliminação de uma hipótese inadequada - quando uma atitude mais dogmática a eliminaria, eliminando a nós mesmos”. (Popper, 2003, p.80)
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Para Popper o progresso do conhecimento e, em particular do conhecimento
científico, se dá através de conjecturas, de antecipações, de suposições, e de
soluções experimentais para os nossos problemas que não se justificam pela sua
origem. Segundo ele, estas conjecturas podem ser controladas pela crítica, ou seja,
por tentativas de refutação por meio de experimentos, embora afirme que estas
teorias mesmo que resistam a tais testes, ainda assim, não poderão ser
demonstradas como absolutamente verdadeiras ou justificadas. Por conseguinte,
para Popper, a crítica de nossas conjecturas revela-se importante na medida em
que ao evidenciar nossos erros podemos obter melhor compreensão das
dificuldades do problema a ser resolvido, e propor soluções mais adequadas. Para
Popper, qualquer séria tentativa de solução de um problema, mesmo refutada,
pode levar a um aumento e evolução do nosso conhecimento que nos aproxima da
verdade pela superação dos erros. O método de conjecturas e refutações, ainda
que admita a possibilidade do crescimento do conhecimento, de forma racional,
exclui a possibilidade de reivindicá-lo como certo e seguro. Para ele as teorias que
resistem à crítica, assim como os relatórios dos testes a que foram submetidas,
podem ser descritos como “a ciência” da época.
A epistemologia de Popper não nos permite, pois, justificar uma teoria como
verdadeira, ou, “positivamente justificada”, mas apenas dizer que foi corroborada
por testes críticos, mostrando-se mais progressiva que suas adversárias na medida
em que pode resolver os problemas não resolvidos pelas antecessoras e propor
questões novas, sendo este caráter crítico e progressivo o que constitui a
racionalidade da ciência (Popper, 2003, p.10).
A preocupação de Popper (1985, p.27) na sua epistemologia foi a de
oferecer uma lógica para a produção do conhecimento científico. Nesta
perspectiva apresenta uma análise lógica desse procedimento de crítica, o que vem
a ser uma exposição do método das ciências empíricas. Para tanto propõe as
seguintes questões como relevantes nesta empresa:
“Que são, entretanto, esses métodos das ciências empíricas?”
“O que denominamos de ciências empíricas?”
Para entender o que Popper chamou de “problema da lógica da ciência”, é
imprescindível conhecer suas idéias acerca da testabilidade e da falseabilidade,
enquanto critério de demarcação entre ciência e a pseudo-ciência, e de sua crítica
lógica à teoria da indução de Hume, enquanto método científico.
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Popper discorda do conceito amplamente aceito de as ciências empíricas se
caracterizarem pela aplicação dos métodos indutivos. Chama de “indutiva” uma
inferência feita a partir de enunciados singulares ou particulares formulados sobre
resultados de observações ou experimentos, que conduz à formulação de
enunciados universais, como as hipóteses ou teorias.
Para Popper não temos como justificar o raciocínio indutivo, ou seja, não há
possibilidade de explicar logicamente como, a partir da descrição das observações
e experiências (enunciados singulares ou particulares), podem ser obtidos
enunciados universais, e afirma que o máximo que se pode dizer acerca dos
enunciados universais seria dizer que foram corroborados, e isto por tempo
limitado continuando sempre passíveis de refutação.
Contrário à perspectiva indutivista, apresenta o método dedutivo da prova,
ao argumentar que uma hipótese só admite prova empírica unicamente após a sua
formulação e a dedução das conseqüências que dela decorrem e que deverão ser
submetidas ao teste.
Para Popper (1985, p.27-31) o problema da indução de Hume se resume em
verificar se as inferências indutivas se justificam, e averiguar se enunciados
universais poderiam ser verificados e ditos verdadeiros com base nas experiências.
Ele afirma que o problema da indução reside em crer que a verdade de um
enunciado universal pode se reduzir à verdade dos enunciados singulares e que,
por experiência, sabe-se serem verdadeiros. Sustenta que o princípio da indução é
supérfluo, conduz a incoerências lógicas, e a tentativa de justificar sua validade na
experiência conduz a certa circularidade, dado que a indução propõe justificar-se
de forma indutiva e, portanto, tautológica. Escreve Popper:
“Para justificá-lo teremos de recorrer a inferências indutivas e, para justificar estas, teremos de admitir um princípio indutivo de ordem mais elevada, e assim por diante. Desta forma, a tentativa de alicerçar o princípio da indução na experiência malogra, pois conduz a uma regressão infinita”. (Popper, 1985, p.29)
Portanto, foi exatamente esta incoerência lógica do método indutivo que
leva Popper a considerar seriamente o problema da indução na preocupação de
oferecer um método da ciência logicamente sustentável. Para Popper os
enunciados de observações e os enunciados que registram resultados
experimentais são interpretações dos fatos observados, e, portanto interpretações à
luz das teorias. Nesta acepção, ele diverge da “objetividade” reclamada pelos
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positivistas, quanto à crença de que se pode partir apenas de observações puras, ao
dizer que a teoria é anterior a observação.
Pode-se entender a dificuldade alegada por Popper em obter uma definição
aceitável de “ciência empírica”, ao dizer:
“Algumas dessas dificuldades decorrem do fato de que devem existir muitos sistemas teoréticos cuja estrutura lógica é similar à estrutura lógica do sistema aceito em particular instante da História, como sistema da ciência empírica. Esse fato é descrito, algumas vezes, afirmando-se que há um grande número – presumivelmente infinito – de ‘mundos logicamente possíveis’. Entretanto, o sistema que se denomina ‘ciência empírica’ pretende representar apenas um mundo: o ‘mundo real’, ou o ‘mundo da nossa experiência’”. (Popper, 1985, p.40)
Na intenção de apresentar uma definição mais precisa de ciência empírica
Popper distingue três condições de que devem partilhar um sistema teorético; ser
sintético, na medida em que possa representar um mundo possível (não
contraditório), satisfazer o critério da demarcação, ou seja, deve representar um
mundo de experiência possível (não ser metafísico), e de alguma forma deve ser
diferente de outros sistemas semelhantes, como único representativo de nosso
mundo de experiência. Admite a dificuldade em identificar se um sistema
representa nosso mundo da experiência, contudo reconhece um sistema como
empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência.
“Em outras palavras não exigirei que um sistema científico seja suscetível de ser dado como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei, porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo através de recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve ser possível refutar, pela experiência, um sistema
científico empírico”. (Popper, 1985, p.42)
Portanto, a experiência, na epistemologia de Popper, é vista como um
método característico através do qual se distingue uma teoria da outra. Entretanto,
segundo ele, as ciências empíricas não só devem ser caracterizadas pela forma
lógica de seus enunciados, como também pelo seu método peculiar, ou seja, pelo
método dedutivo de colocá-los à prova.
Conforme observado anteriormente, ao admitir como critério de verificação
de um sistema teorético a falseabilidade, Popper não exige que um sistema
científico seja válido no sentido positivo, e argumenta que sua forma lógica deva
ser tal que admita refutação, pela experiência. Por outro lado, observa uma
assimetria entre a verificabilidade e a falseabilidade, decorrente da forma lógica
dos enunciados universais que nunca poderão ser derivados de enunciados
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singulares, podendo apenas ser contestados por enunciados singulares. Como
consequência, através de recursos a inferências exclusivamente dedutivas, e
fundamentado pela lógica tradicional - modus tollens, se A � B ora não B �
logo não A, Popper conclui acerca da falsidade de enunciados universais a partir
da verdade de enunciados singulares, e admite ser a única espécie de inferência
estritamente dedutiva, embora atue, em “direção indutiva”, ou seja, de enunciados
singulares para enunciados universais.
Este método foi chamado por ele de conjecturas e refutações. O método das
conjecturas e refutações tem como ponto de partida uma nova idéia, conjetural e
não justificada, expressa por meio de hipóteses, antecipações ou sistemas teóricos,
que permitem estabelecer conclusões por intermédio de deduções lógicas,
conclusões estas que devem, por sua vez, ser comparadas entre si e com outros
enunciados pertinentes, pretendendo identificar suas possíveis relações lógicas.
Para submeter uma teoria à prova Popper propõe quatro diferentes ações, a saber:
- Provar a coerência interna do sistema, ao verificar as relações lógicas
existentes (equivalência, dedutibilidade, compatibilidade ou
incompatibilidade) para se obter conclusões que possam ser comparadas
entre si e com outros enunciados pertinentes;
- Investigar a forma lógica da teoria para identificar se é de natureza
empírica, científica ou tautológica;
- Comparar com outras teorias no sentido de verificar se representa um
avanço científico com relação às demais;
- Avaliar a teoria submetendo à prova as conclusões que dela se possa
deduzir, por meio de testes experimentais ou de suas aplicações práticas.
Para Popper (1985, p.33-34) o objetivo desta última espécie de prova seria
verificar até que ponto esta teoria responde às exigências práticas, seja por
experimentos puramente científicos ou por aplicações tecnológicas práticas. Neste
caso, a partir da teoria são formuladas “predições”, chamados por ele de
“enunciados singulares” suscetíveis de serem submetidos à prova, para posterior
confrontação dos resultados das aplicações práticas e dos experimentos. Caso tais
conclusões singulares sejam aceitas ou comprovadas, a teoria será
temporariamente aceita ou corroborada, caso contrário, se as conclusões foram
falseadas, a teoria também o será podendo, desta feita, constituir motivos para
rejeitá-la. Isto é o que Popper denominou como o método dedutivo de prova.
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Conclui-se, de forma concisa, que o método de autocorreção, por meio do
qual a ciência procede, seria “o método de conjecturas ousadas e de tentativas
engenhosas e severas para refutá-las” (Popper, 1999, p.84).
2.1.1 O Problema da Demarcação
Quanto ao problema da demarcação, propriamente dito, a preocupação de
Popper foi estabelecer um critério capaz de oferecer distinção entre ciências
empíricas e “pseudo-ciências” empíricas. Neste sentido, procurou fazer distinção
entre enunciados e sistemas que podiam ser propriamente descritos como
pertencentes à ciência, como a Matemática e a Física, e outros descritos como
“pseudo-científicos” ou “metafísicos”.
De Bacon até os positivistas do Círculo de Viena a concepção mais
disseminada até então definia a ciência em função de sua “base observacional” ou
pela aplicação do método indutivo, enquanto as pseudo-ciências e as metafísicas,
eram caracterizadas pelo seu método especulativo, descrito em Bacon como um
procedimento de “antecipações mentais”. Conforme Popper, os positivistas
admitiam como científicos e legítimos os conceitos ou idéias que “derivassem da
experiência”, por exemplo, as sensações, impressões, percepções, lembranças
visuais ou auditivas. Já os positivistas modernos, entendem a ciência não como
sendo um sistema de conceitos, mas sim de “enunciados”, e aceitam como
científicos e legítimos os enunciados elementares da experiência como as
“sentenças protocolares”, “proposições atômicas” ou “sentenças significativas”,
caracterizadas como descrições ou “afigurações da realidade”. Estes enunciados
são sentenças significativas em contraposição às “pseudo-sentenças”, destituídas
de significado. Wittgenstein, por exemplo, afirma que toda a proposição
significativa precisa ser logicamente reduzível a proposições atômicas, e assim, no
afã de extinguir a Metafísica, os positivistas acabam por aniquilar também a
Ciência Natural, uma vez que as leis naturais não podem ser reduzidas a
enunciados elementares de experiência, assim como não é possível justificar
logicamente a validade dos enunciados universais por esses mesmos enunciados
(Popper, 1985, pp. 37-38).
Este ponto de vista foi rejeitado em Popper, ao demonstrar que as modernas
teorias da Física, especialmente a de Einstein, não se caracterizavam como
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enunciados sem sentido ou ilegítimos, não obstante fossem especulativos e por
demais abstratos, muito afastadas de uma “base observacional. Por outro lado, as
pseudo-ciências, como, por exemplo, a Astrologia, enfatizavam em seus
almanaques e manuais, seu apelo às observações e ao senso comum, ainda que, a
Astrologia tenha sido desconsiderada pela ciência moderna mais pelo método
empregado do que pelo pretenso material indutivo (Popper, 2003, p. 344). Popper
mostra, assim, a necessidade de determinar um critério diferente de demarcação e
propõe a refutabilidade ou método da falseabilidade como a linha de demarcação
entre as ciências empíricas e as metafísicas. Um sistema só deverá ser reconhecido
como científico, escreve, caso faça asserções que permitam deduzir conclusões ou
enunciados particulares que possam colidir com as observações, sendo realmente
testado pelo esforço de produzir estas colisões, ou seja, pelas tentativas de refutá-
lo com a submissão desse enunciado aos testes experimentais ou aplicações
práticas. Neste sentido, a testabilidade equivale à refutabilidade, em Popper. Ao
adotá-la, da mesma forma, como critério de demarcação, ele oferece “... uma
perspectiva da ciência que encara a ‘abordagem crítica’ como sua mais importante
característica.” (Popper, 2003, p. 345).
Algumas teorias são, no entanto, mais audaciosas e precisas que outras por
admitirem testes mais rigorosos, aumentando, desta maneira, suas possibilidades
de refutação. A isto Popper denominou de “graus de testabilidade”. Por outro
lado, quando essas teorias audaciosas resistem ao rigor dos testes críticos, são
mais tenazes, sua corroborabilidade é reforçada. Assim é que segundo Popper, ao
maior grau de testabilidade de uma teoria corresponde ao aumento do seu
conteúdo informativo. Popper admite que seu critério de demarcação não pode ser
aplicado de maneira inequívoca, “... não devemos tentar traçar uma linha
demasiado vincada.” (Popper, 2003, p.346), uma vez que existirão teorias bem
testáveis, dificilmente testáveis e não testáveis, considerando estas últimas de
interesse exclusivo da metafísica, ainda que muitas das teorias científicas tenham
sua gênese em mitos, em teorias filosóficas.
Popper admite algumas objeções contra seu critério de demarcação. A
primeira delas seria a noção pouco intuitiva da sua proposta de demarcação por
um critério negativo, como a refutabilidade, quando se espera da Ciência
informações positivas. Ora, para Popper as chamadas leis da natureza, quanto
mais proíbem mais dizem, isto é, a quantidade de informação positiva acerca do
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mundo, veiculada pelo enunciado científico considerando seu caráter lógico, será
maior quanto maior for o conflito com a experiência dos possíveis enunciados
singulares dele deduzidos. Considera também plausível usar contra a
falseabilidade as mesmas objeções feitas por ele sobre a verificabilidade. Mas se
diz tranquilo ao tomar por base a assimetria entre verificabilidade e falseabilidade
decorrente da forma lógica dos enunciados universais, dado que estes últimos
nunca são deriváveis dos enunciados singulares, embora possam ser contestados
por eles. De acordo com explanação anterior, através de inferências dedutivas,
auxiliado pela tradicional lógica da modus tollens, pode-se concluir acerca da
falsidade dos enunciados universais a partir da verdade dos enunciados singulares.
Mesmo admitindo tal assimetria, pode-se ainda objetar sobre a impossibilidade de
todo um sistema teorético ser conclusivamente falseado, uma vez que é possível
evitar a falsificação pela introdução de hipótese auxiliar ad hoc ou pela alteração
de uma definição. Popper admite a procedência da crítica embora afirme que seu
método empírico é caracterizado por excluir as possibilidades de evitar a
falseabilidade, e por expor à falsificação o sistema a ser submetido à prova, de
todas as maneiras possíveis (Popper, 1985, p. 43-44).
Ao evidenciar o que denominou de “estratagemas convencionalistas” ou
“torção convencionalista”, Popper precisava oferecer uma solução para evitar as
tentativas do que mais tarde qualifica como “imunizar” (expressão atribuída a
Hans Albert) qualquer teoria contra a crítica.
Segundo Popper sua idéia das regras metodológicas e da essencialidade de
sua abordagem crítica, foram decisivas para evitar a intenção de imunizar teorias
contra a refutação, ainda que reconheça o valor de uma atitude “certa” dogmática,
no sentido de não permitir a substituição de uma teoria antes que ela ofereça
contribuição à evolução da ciência (Popper, 1999, p.40).
A proposta do critério de demarcação popperiano, pretende ser também a
solução do problema da indução, pois o método da falsificação, admite como
empíricos os enunciados unilateralmente falseáveis, sendo suscetíveis de
comprovação através de tentativas sistemáticas de falseá-los, abolindo a
contradição gerada pela inferência indutiva, uma vez que seu método dedutivo de
teste não pode e nem pretende instituir ou justificar de forma absoluta os
enunciados sob teste.
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2.1.2 A Verdade como Correspondência
Popper ao discutir sobre a verdade recusa a perspectiva cética e
instrumentalista e defende a idéia de verdade como correspondência objetiva com
os fatos, em contraste com a “verdade subjetiva” (ou “epistêmica”), ou de crença
verdadeira.
Segundo ele, a experiência subjetiva que justifica a crença do conhecimento
verdadeiro, ou seja, do conhecimento bem fundamentado e justificado, não
fornece um critério eficaz, capaz de diferenciar quaisquer experiências de crença
da experiência de uma crença bem fundamentada. Para Popper apesar das teorias
subjetivas da verdade buscarem tal critério, todas elas dizem, de maneira
aproximada, que a verdade se fundamenta nas razões que temos para nela
acreditar. Popper considera que esta visão dogmática está presente nas três rivais
da teoria da verdade como correspondência, quando escreve:
“a teoria da coerência, que confunde consistência com verdade; a teoria da evidência, que confunde ‘conhecido como verdadeiro’ com ‘verdadeiro’; e a teoria pragmática ou instrumentalista, que confunde utilidade com verdade”. (Popper, 1999)
De acordo com Popper, a teoria da verdade objetiva, pode fazer asserções
tais como: uma teoria pode ser verdadeira ainda que ninguém acredite nela, e
ainda que não se tenha razão alguma para pensar que seja verdadeira; e uma outra
teoria pode ser falsa, mesmo que existam boas razões para aceitá-la. Estas
afirmações, podem parecer auto-contraditórias, sob o ponto de vista de qualquer
teoria subjetiva da verdade, entretanto, segundo a teoria objetiva, elas não só são
coerentes como verdadeiras. Outra asserção, de compreensão bem mais imediata,
afirma que mesmo que deparemos com uma teoria verdadeira, estaremos, por via
de regra, meramente conjeturando, nos sendo impossível saber se ela é realmente
verdadeira.
Assim como para Xenófanes, relembra Popper, “... que o conhecimento é
conjectura, opinião – doxa, e não episteme” (Popper, 2003, p.46), e assim como o
filósofo grego admite que:
“... nós procuramos a verdade, mas podemos não saber quando é que a encontramos; que não temos nenhum critério de verdade, mas somos, não obstante, guiados pela idéia de verdade como princípio regulador (como Kant ou Pierce poderiam ter dito); e que, apesar de não existirem
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quaisquer critérios gerais pelos quais possamos reconhecer a verdade – exceto, talvez, a verdade tautológica – existem critérios para reconhecer o progresso em direção a verdade”. (Popper, 2003, p.307)
Como dito anteriormente Popper renuncia ao pressuposto de que existam
fontes últimas do nosso conhecimento, ao asseverar que todo o conhecimento é
humano, e como tal, impregnado de erros, preconceitos, sonhos e esperanças,
portanto podemos apenas tentar buscar a verdade, ainda que esteja fora do nosso
alcance. Nesta busca podemos descobrir conhecimentos relevantes, entretanto,
não existe qualquer autoridade dentro de toda a esfera do nosso conhecimento que
não seja passível de crítica. Segundo ele, seria esta a única forma de reter, sem
risco, a idéia de que a verdade está além da autoridade humana (Popper, 2003,
p.307-309).
2.1.3 A Idéia de Progresso
Conforme ressaltamos anteriormente, para Popper o problema fundamental
da teoria do conhecimento consiste em esclarecer e investigar o processo pelo
qual as teorias podem se desenvolver e progredir.
Segundo Popper a ciência, a filosofia, e o pensamento racional têm como
ponto de partida o senso comum, definido por ele como “... os instintos, ou
opiniões de muitas pessoas às vezes adequados ou verdadeiros e às vezes
inadequados ou falsos” (Popper, 1999, p.42). Para ele todo conhecimento consiste
na modificação de conhecimento prévio, e assevera que a cada etapa da evolução
da vida e do desenvolvimento de um organismo, existe algum conhecimento em
forma de disposições e expectativas, denominadas por ele de expectativas inatas.
O pressuposto de que a maior parte de nosso conhecimento é inato leva Popper a
apresentar duas teses fundamentais:
“Todo conhecimento adquirido, todo aprendizado, consiste da modificação (possivelmente da rejeição) de alguma forma de conhecimento, ou disposição, que exista previamente, e em última instância de disposições inatas. Todo crescimento do conhecimento consiste no aprimoramento do conhecimento existente, que é mudado com a esperança de chegar mais perto da verdade”. (Popper, 1999, p.76)
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Deriva destas teses a afirmação de que nosso conhecimento, tanto científico
quanto metafísico tem como origem um ponto de partida inseguro, cujo principal
instrumento para progredir é a crítica (Popper, 1999, pp.42-45).
Ao analisar a relação entre observação e teoria, Popper assevera que a
teoria sempre antecede a observação, mesmo que seja uma teoria ou expectativa
de natureza rudimentar. O papel fundamental das observações e dos testes
experimentais consiste em tentar refutar hipóteses propostas na busca da produção
de teorias melhores. Não partimos de observações, diz Popper, mas sempre de
problemas – ou de problemas práticos ou de uma teoria que caiu em dificuldades
(Popper, 1999, p.235).
Importante esclarecer então como os problemas transcendem nosso
conhecimento inato. Segundo Popper, nossas expectativas inatas quando
desenganadas dão origem ao nosso primeiro problema, e, portanto o crescimento
subsequente de nosso conhecimento se dá através de correções e modificações
destas mesmas expectativas, isto é, do conhecimento prévio. Diante desta
convicção estabelece semelhança entre o crescimento de nosso conhecimento e o
processo da “seleção natural” de Darwin. Analogamente o que se dá na seleção
natural da ciência darwiniana, a seleção de nossas hipóteses nos leva a incorporar
ao nosso conhecimento hipóteses que sobrevivem aos testes, eliminando aquelas
menos aptas a resisti-los. No que se refere ao conhecimento científico em
particular, o processo é bem mais penoso em função da crítica sistemática e
consistente de nossas teorias. Embora Popper compare a evolução da ciência à
seleção natural aponta para uma diferença fundamental ao dizer:
“... enquanto o conhecimento animal e o conhecimento pré-científico crescem principalmente através da eliminação daqueles que sustentam as hipóteses incapazes, a crítica científica faz muitas vezes nossas hipóteses perecerem em nosso lugar, eliminando nossas crenças errôneas antes que essas crenças levem à nossa eliminação”. (Popper, 1999, p. 238)
A evolução do conhecimento pelas teorias mais aptas não implica que
Popper defende uma concepção puramente instrumentalista do conhecimento
quando afirma:
“Se o nosso problema é puramente teórico – o de encontrar uma explicação puramente teórica – então a crítica será regulada pela idéia da verdade, ou de chegar mais perto da verdade, e não pela idéia de ajudar-nos a sobreviver”. (Popper, 1999, p. 241)
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Indispensável se faz, do mesmo modo, explicar como uma ciência objetiva
pode almejar teorias que mais se aproximem da verdade. Embora seja impossível
alcançar a verdade uma vez que toda e qualquer teoria é essencialmente falível,
podemos considerá-la mais progressiva que suas predecessoras, quando
apresentam maior poder explicativo, e resolvem problemas que suas antecessoras
não resolviam, além de propor novos e frutíferos problemas.
Deste modo, para Popper, a ciência se desenvolve numa série de sistemas
dedutivos e progride de teoria a teoria, tendo como finalidade a busca da verdade,
mesmo que não se tenha critérios para reconhecê-la. Popper sugere ainda que “... a
Ciência deveria ser perspectivada como progredindo de problemas para problemas
– problemas de uma complexidade sempre crescente”. (Popper, 2003, p.302)
2.1.4 Conhecimento sem Sujeito Conhecedor – Ontologia dos Três Mundos
De certa maneira, Popper considera nossas disposições inatas para reagir aos
desafios provenientes do meio-ambiente, como carregadas de “teoria”. Vai além
ao ampliar o conceito de teoria; “... não há órgão de sentido em que não se achem
incorporados geneticamente teorias antecipadoras” (Popper, 1999, p.76). Ainda
que admita nossas experiências observacionais como bem sucedidas, pois
sobrevivemos, Popper desaprova a teoria do senso comum, não considerando
nossas observações como “diretas”, “imediatas” ou mesmo fidedignas. Assim,
contrário à epistemologia subjetivista que pressupõe um observador, ou um
sujeito conhecedor, capaz de deter conhecimento subjetivo que simplesmente não
pode ser puro, genuíno ou verdadeiro. O conhecimento no sentido objetivo,
diferentemente, diz respeito apenas ao conteúdo lógico de nossas teorias,
conjecturas ou suposições, sendo representado pelas teorias formuladas, pelas
discussões e pelos problemas em conexão com essas teorias. Deste modo, Popper
utiliza os termos “subjetivo” e “objetivo”, no sentido kantiano. Julga que a análise
do conhecimento subjetivo seria uma atribuição da psicologia, uma vez que, a
palavra “subjetivo” se aplicaria aos nossos sentimentos em diferentes graus. Já o
conhecimento objetivo que independe das nossas convicções, seria objeto de
estudo da epistemologia, havendo, em princípio, a possibilidade de justificá-lo
objetivamente, pela intersubjetividade da sua compreensão e prova.
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Orientado pela idéia da epistemologia objetivista, e pela possibilidade do
conhecimento objetivo Popper introduz sua tese dos três mundos. Para ele apenas
uma teoria formulada numa linguagem descritiva pode ser objetiva, e tornar a
crítica possível, ao separar os aspectos psicológicos do problema (convicção
subjetiva) de seus aspectos lógicos e metodológicos. A possibilidade da existência
do conhecimento objetivo, sem sujeito conhecedor, é justificada por Popper pela
existência do que ela chamou de “terceiro mundo”. Popper em 1960 introduziu a
tese dos três mundos, na qual, o “Mundo 1” representa o mundo material, ou dos
estados materiais, incluindo as coisas físicas. Incorpora desde átomos, elétrons,
células, objetos ordinários de médio porte, como pedras e mesas, até objetos
grandes como estrelas e galáxias, abrangendo ainda processos físicos, como
campos de força e etc. Em resumo, o Mundo 1 compreende as coisas materiais,
tanto de natureza orgânica como inorgânica. O “Mundo 2”, por sua vez, consiste
de estados e processos mentais. É o domínio das experiências subjetivas e
pessoais. O “Mundo 3” compreende os produtos da ação social humana, é o
mundo de “conteúdos objetivos de pensamento”, ou como ele prefere denotar, das
“idéias no sentido objetivo” (Popper, 1999, p.152). Neste sentido, o Mundo 3 é o
mundo dos objetos de pensamento possíveis, representado pelas proposições,
argumentos e teorias. Entretanto, diferentemente de Platão, Popper também
concebe que este mundo é uma criação humana no qual se incluem, além das
teorias e formulação dos problemas que supõem o surgimento de uma linguagem
descritiva e argumentativa, ainda outros artefatos como: ferramentas, obras de arte
e produtos culturais representados por revistas, livros e bibliotecas. Em suma, o
Mundo 3 pode compreender as teorias científicas, as produções poéticas e as obras
de arte que não são meramente coisas físicas e, tampouco, processos de
pensamentos ou mentais.
Popper estabelece uma relação entre os três mundos, pretendendo o
segundo como mediador entre o primeiro e o terceiro. As entidades presentes no
Mundo 3 embora tidas como produzidas no Mundo 2, enquanto produtos humanos
se tornam independentes do Mundo 2, na medida em que são expressos em uma
linguagem descritiva e argumentativa, neste sentido o Mundo 3 popperiano é
amplamente “autônomo”. Entretanto, admite a existência de certa interação entre
eles, na qual o Mundo 3 afeta e influencia os “habitantes” do Mundo 1 via Mundo
2, da mesma forma que é influenciado por eles.
30
Vale à pena mencionar a distinção apontada em Popper entre sua
abordagem “objetiva” ou abordagem do “terceiro mundo” e a abordagem que
chama de “subjetiva” ou abordagem do “segundo mundo”, de natureza
behaviorista, psicológica e sociológica. Ao admitir que suas estruturas objetivas
do Mundo 3 sejam causadas por comportamentos humanos, argumenta que a
abordagem subjetiva, pelo fato de ser causal, pode parecer mais científica do que a
abordagem objetiva, sendo esta última procedente de efeitos e não de causas. No
entanto, opõe-se a tal argumento ao alegar que em todas as ciências, a abordagem
comum, parte do efeito na direção das causas. O efeito suscita os problemas que
devem ser explicados, os cientistas, por sua vez, tentam resolvê-los por meio da
construção de uma hipótese explicativa (Popper, 1999, p. 115-116).
Enquanto a epistemologia tradicional tem estudado o conhecimento num
sentido subjetivo, ou seja, no domínio das experiências perceptuais (Mundo 2), na
epistemologia popperiana as experiências subjetivas são irrelevantes para o estudo
do conhecimento científico. Assim, Popper distingue dois diferentes sentidos do
conhecimento, ao escrever:
“(1) conhecimento ou pensamento no sentido subjetivo, constituído de um estado de espírito ou de consciência ou de uma disposição para reagir. (2) conhecimento ou pensamento num sentido objetivo, constituído de problemas, teorias e argumentos como tais. Neste sentido objetivo, o conhecimento é totalmente independente de qualquer alegação de conhecer que alguém faça; é também independente da crença ou disposição de qualquer pessoa par concordar; ou para afirmar, ou para agir. O conhecimento no sentido objetivo é conhecimento sem conhecedor; é conhecimento sem sujeito que conheça”. (Popper, 1999, p. 110-111)
Popper assinala deste modo à relevância decisiva do estudo do terceiro
mundo, autônomo e de conhecimento objetivo, nesta convicção, o estudo dos
produtos para ele é mais importante do que o estudo da produção, e amplia a
compreensão da própria produção e de seus métodos. Neste sentido, o estudo da
epistemologia popperiana privilegia o estudo de problemas científicos, situações
de problema, teorias científicas, como também de discussões científicas, de
argumentos críticos e do papel desempenhado pela evidência destes argumentos,
explicitados através de revistas e livros científicos. Nesta abordagem objetiva, a
ação dos cientistas, mesmo tendo por base uma “crença subjetiva”, busca uma
31
linha de pesquisa promissora, com possibilidade de desenvolvimento no terceiro
mundo do conhecimento objetivo.
Uma epistemologia objetiva que estuda o terceiro mundo pode esclarecer
em muito o segundo mundo da consciência subjetiva, especialmente sobre os
processos subjetivos de pensamento do cientista, mas o inverso não ocorre. Neste
entendimento, embora Popper (1999, p.156) considere o terceiro mundo um
produto humano, igualmente, lhe atribui característica sobre-humana pelo fato de
transcender aos seus fabricantes.
2.2 A Ciência Revolucionária de Kuhn
Ao estudar as teorias científicas tendo por referencial suas respectivas
épocas, e não o ponto de vista da ciência atual, Kuhn entende que a concepção
tradicional de ciência não se ajusta ao modo pelo qual a ciência realmente nasce e
se desenvolve no decorrer do tempo. Distingue um primeiro momento, apontado
como “fase pré-paradigmática”, período no qual reina ampla divergência entre os
pesquisadores, ou grupos de pesquisadores, “... regularmente marcado por debates
frequentes e problemas a respeito de métodos, problemas e padrões de solução
legítimos” (Kuhn, 2006, p.73). Ao constatar o predomínio de tais
comportamentos, segundo Kuhn a disciplina não alcança o estatuto de ciência, ou
seja, não se constitui como uma ciência genuína. De acordo com esta acepção uma
disciplina, em última instância, vem a ser ciência quando sua prática é norteada
por um “paradigma”, sendo este o critério de demarcação que Thomas Kuhn
propõe para distinguir as ciências empíricas das demais disciplinas, em
substituição aos critérios propostos pelo indutivismo e falseacionismo.
A transição do conhecimento pré-científico, ou pré-paradigmático para a
fase científica, ou paradigmática, evidencia dois momentos distintos da prática da
comunidade científica, delineados como “ciência normal” e “ciência
extraordinária” em Kuhn (2006).
Nos períodos da ciência normal, a emergência de um paradigma dominante
capaz de constituir uma sólida rede de compromissos e adesões pela comunidade
científica aos conceitos, teorias, metodologias e instrumentos faz com que a
prática da ciência normal, caracterizada pela busca da solução dos problemas
32
científicos, seja comparada à resolução de quebra-cabeças (Kuhn, 2006, p. 66).
Nestas ocasiões os cientistas não pretendem produzir nenhuma “novidade
inesperada” tendo como motivação do seu trabalho a ampliação de precisão do
alcance do paradigama e do seu campo de aplicação. Neste sentido admite até
uma espécie de progresso cumulativo.
Tendo em vista esta perspectiva Kuhn estabelece a função dialética da
ciência normal que tanto promove o desenvolvimento contínuo e preciso do
conhecimento científico vigente, quanto dispõe de mecanismos implícitos que
levam ao surgimento da ciência extraordinária ou revolucionária. Neste período, a
eficácia do paradigma vigente passa a ser questionada a ponto de provocar uma
ruptura nas “crenças estabelecidas”. Esta ruptura Kuhn denomina de “revolução
científica”, e se configura justamente através da rejeição do paradigma anterior e
aceitação do novo paradigma num procedimento que mais se assemelha a “um ato
de fé” da comunidade científica.
A evolução histórica do empreendimento científico é marcada por uma
sucessão de períodos ligados à tradição e pontuados por rupturas não-cumulativas.
Deste modo, o progresso da ciência para Kuhn caracteriza-se como um processo
revolucionário, não cumulativo. Essa evolução Kuhn não entende como um
processo teleológicamente orientado que ao seu final encontraria a verdade, ao
escrever:
“O processo de desenvolvimento descrito neste ensaio é um processo de evolução a partir de um início primitivo – processo cujos estágios sucessivos caracterizam-se por uma compreensão sempre mais refinada e detalhada da natureza. Mas nada do que foi dito transforma-o num processo em direção a algo”. (Kuhn, 2006, p. 215)
2.2.1 Paradigma - Relevância e Divergências
O paradigma constitui-se como elemento central da proposta epistemológica
de Kuhn alcançando grande repercussão no meio científico e filosófico, embora o
seu entendimento se apresente cercado de críticas e dúvidas.
Em seu sentido coloquial, o termo paradigma, é compreendido como um
modelo ou padrão capaz de ser reproduzido, como por exemplo os paradigmas
verbais. Neste sentido, divergem do paradigma kuhniano que deve ser entendido
33
como um objeto a ser melhor articulado e precisado em condições novas ou
rigorosas. Na prática científica um paradigma raramente é suscetível de
reprodução (Kuhn, 2006, p. 44).
A investigação histórica das práticas das comunidades científicas específicas
nos mostram, de acordo com Kuhn, que os paradigmas possam ser mesmo
anteriores à explicitação de um conjunto de regras que deles possam decorrer,
apresentando quatro razões que o levaram a tal conclusão.
A primeira delas reside na dificuldade encontrada em descobrir as regras que
guiaram tradições específicas da ciência normal. A segunda, da qual a primeira
seria uma decorrência quase imediata, diz respeito à natureza da educação
científica. Para Kuhn os cientistas trabalham a partir de modelos adquiridos na sua
educação e na literatura pertinente à sua área de especialização. Aprendem as leis,
conceitos e teorias contextualizados numa unidade histórica anterior, normalmente
apresentados pela aplicação destes instrumentos intelectuais, e da exposição a
soluções concretas na resolução de problemas. Neste caso quando um cientista
formula hipóteses próprias, elas são percebidas em Kuhn como uma habilidade
demonstrada em realizar pesquisas bem sucedidas, mesmo sem recurso a regras
hipotéticas. A terceira razão se baseia na prevalência das regras toda vez que um
paradigma é evidenciado como inseguro, ou seja, quando os cientistas não
concordam quanto à existência ou não de soluções para os problemas
fundamentais de sua área de estudos. Durante o período pré-paradigmático,
caracterizado pelos debates constantes acerca de métodos, problemas e padrões de
soluções legítimos, conforme Kuhn, a procura por regras adquire importância que
não possui normalmente, seja orientando as pesquisas, ou modelando-as
diretamente ao dizer que:
“enquanto os paradigmas permanecem seguros, eles podem funcionar sem que haja um acordo sobre as razões de seu emprego ou mesmo sem qualquer tentativa de racionalização”. (Kuhn, 2006, p.74)
A quarta razão reside no fato do paradigma kuhniano não poder ser visto como
uma estrutura rígida e monolítica, podendo, ao invés disso, dar origem
simultaneamente às diversas tradições da ciência normal que coincidem apenas
parcialmente. Neste caso a substituição do paradigma pelas regras explícitas
facilita a compreensão da diversidade de campos e especializações científicas.
Thomas Kuhn ilustra esta perspectiva com a mecânica quântica que pode ser um
34
paradigma para uma ampla comunidade de físicos, mas em função de suas
especializações profissionais o significado que a mecânica quântica possui para
cada um deles está diretamente relacionado com as aplicações paradigmáticas que
eles dominam. Este fato poderia explicar o motivo pelo qual uma revolução
produzida no interior de uma dessas tradições pode não afetar necessariamente
outras.
O paradigma na epistemologia de Kuhn assume diferentes papéis tanto no
âmbito da comunidade científica quanto no processo evolutivo da ciência. No
contexto da estrutura da comunidade científica um paradigma antes de nortear
um objeto de estudo, orienta um grupo de praticantes da ciência (Kuhn, 2006, p.
226).
No primeiro estágio do desenvolvimento científico, estabelecido em Kuhn
como “pré-paradigmático”, quando ainda não existe um corpo de crenças e
fundamentos comuns para direcionar as observações e experimentações dos
cientistas, os resultados obtidos não são vistos como ciência. Tais observações
históricas permitiram a Kuhn atribuir outra importante função ao paradigma,
equivalente ao papel de uma bússola, orientando a definição de fatos científicos
pertinentes e promovendo a articulação de uma teoria emergente. Outra função do
paradigma, apontada em Kuhn, na ocasião da gênese de uma ciência, seria atrair a
maioria dos indivíduos e grupos daquele campo de estudo induzindo o
desaparecimento das escolas anteriores.
Kuhn descreve um tipo de paradigma capaz de apontar tanto os quebra-
cabeças desafiadores como oferecer as pistas para possíveis soluções, atribuindo
desta forma um novo propósito ao paradigma, diferente do observado no período
pré-paradigmático.
Além disso, Kuhn admite alguns problemas de entendimento, ao fazer
referência aos diferentes sentidos conferidos ao paradigma. No posfácio publicado
em 1969, concernente ao livro “A Estrutura das Revoluções Científicas” (2006,
pp. 219-220), Kuhn apresenta uma perspectiva mais aprimorada acerca do
paradigma, atribuindo a maior parte destas supostas variações a meras
"incongruências estilísticas", reconhecendo apenas dois usos distintos do termo:
um mais global, que chamou de sociológico, definido como uma constelação de
crenças, valores e técnicas compartilhadas pela comunidade científica, e outro de
35
caráter mais específico e preciso, designado como “exemplares”. Neste segundo
sentido, o termo paradigma é representado pelos “exemplos que incluem ao
mesmo tempo, lei, teoria, aplicação e instrumentação” e oferece aquelas soluções
concretas de problemas apresentadas nos laboratórios, pelos manuais técnicos,
periódicos, que indicam através de exemplos compartilhados, como os cientistas
devem realizar seu trabalho. Para evitar equívocos no que diz respeito a esta
segunda acepção Kuhn propõe substituir o termo paradigma pelo que chama de
“matriz disciplinar”. Considera o termo mais adequado ao esclarecer que uma
“matriz” pode ser constituída de elementos ordenados de várias espécies, e
“disciplinar” porque se remete a um grupo de praticantes de uma disciplina
específica. Dentre os principais componentes desta matriz disciplinar se destacam
as “generalizações simbólicas”, os “paradigmas metafísicos”, “valores” e os
“exemplares”.
Para Kuhn as generalizações simbólicas são compreendidas como
expressões que podem ser representadas sob uma forma lógica, simbólica ou
textual, e servem de ponto de apoio à aplicação de técnicas especializadas de
manipulação lógica e matemática no trabalho de resolução de enigmas. Já os
paradigmas metafísicos ou “partes metafísicas do paradigma” representam os
compromissos coletivos com crenças em determinados modelos (desde heurísticos
até ontológicos). Tais modelos são capazes de oferecer aos grupos de uma
comunidade científica as analogias ou metáforas preferidas ou possíveis e ajudam
a determinar que tipo de explicações e soluções de quebra-cabeças serão aceitas,
além de definir os quebra-cabeças não-solucionados e suas respectivas
prioridades. Os valores, terceiro grupo de elementos da matriz disciplinar,
costumam ser mais amplamente compartilhados por diferentes comunidades do
que as generalizações simbólicas ou modelos. Por exemplo, para Thomas Kuhn a
adesão dos cientistas aos valores costuma ser mais ampla do que aos outros dois
tipos de elementos da matriz disciplinar, dado que os valores se referem às
predições acuradas, preferencialmente em termos quantitativos, e respeitam
limites pré-estabelecidos. Existem valores que são utilizados para avaliar teorias
completas e devem permitir a formulação de quebra-cabeças e soluções simples,
dotadas de coerência interna e plausível, sendo compatíveis com outras teorias
atuais. Os valores também ajudam a mitigar riscos uma vez que diante de uma
anomalia a escolha individual em aceitar ou abandonar uma teoria pode ser feita
36
antes pelos valores partilhados do que pelas regras partilhadas (Kuhn, 2006, p.
222-233).
“Exemplares são problemas concretos com as respectivas soluções” (Kuhn,
1977, p. 358-359 e 368). Constituem o componente central da matriz disciplinar,
ao incluir os “exemplos compartilhados” e as soluções concretas de problemas,
tendo como função estabelecer a ligação entre os fenômenos empíricos e as
generalizações teóricas que capacitam a produção de conhecimento pela
exposição direta ao modo de fazer ciência. Assim, por exemplo, é somente
fazendo óptica à maneira de Newton que se pode conhecer completamente o
paradigma óptico newtoniano, ou praticando eletromagnetismo à maneira de
Maxwell que se pode conhecer completamente o paradigma eletromagnético.
Encontramos em Laudan et al. (1993, p.46) outra perspectiva interessante
para o termo paradigma ao descrevê-lo como “suposições diretivas de um
campo”, podendo ser entendido como um aforismo da definição que se segue:
“Considero paradigmas as realizações científicas universalmente reconhecidas que durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. ( Kuhn, 2006, p.13)
Na opinião de Kuhn a explicitação dos elementos constitutivos do
paradigma nunca poderia ser completa. Todavia, na pretensão de fornecer um
modelo didático do que seriam as partes constituintes deste paradigma científico
indica-se como alguns componentes possíveis: uma ontologia que sugira o
elemento essencial que constitui a realidade; princípios teóricos fundamentais que
especifiquem as leis gerais que regem o comportamento dessas coisas; princípios
teóricos auxiliares que estabeleçam sua conexão com os fenômenos e as ligações
com as teorias de domínios conexos, regras metodológicas, padrões e valores que
direcionem a articulação futura do paradigma; exemplos concretos de aplicação
da teoria; etc.
Portanto, mais do que fornecer os fundamentos sobre os quais a comunidade
científica desenvolve suas atividades, um paradigma pode ser entendido como um
“mapa” a ser usado pelos cientistas na exploração da Natureza.
37
2.2.2 Ciência Normal e Paradigma
A “ciência normal” é caracterizada como uma atividade que consiste em
solucionar quebra-cabeças, tendo por objetivo a ampliação contínua do alcance e
da precisão do paradigma, e de acordo com Kuhn, trata-se de um empreendimento
altamente cumulativo e extremamente bem sucedido em seu propósito (Kuhn,
2006, p. 77).
Kuhn emprega o termo quebra-cabeças no sentido comum, apresentado
como uma categoria particular de problemas que servem antes para testar a
engenhosidade ou habilidade dos cientistas para sua resolução (Kuhn, 2006, p.
59). A qualidade dos problemas da ciência normal, assim como, a qualidade de
um quebra-cabeça não depende de quão importante seja seu resultado, mas que
apresente sempre uma solução e obedeça a regras pré-estabelecidas. Na ciência
normal estas regras podem ser explicitadas através das leis, conceitos e teorias
científicas, e num patamar mais concreto, pelos instrumentos científicos e seus
métodos de utilização. A existência dessa sólida rede de compromissos ou
adesões-conceituais, teóricas, metodológicos e instrumentais é fonte principal da
metáfora, proposta por Kuhn que relaciona ciência normal à resolução de quebra-
cabeças. Alega que esses compromissos proporcionam ao praticante de uma
especialidade amadurecida, regras que lhe revelam a natureza do mundo e de sua
ciência, permitindo-lhe assim concentrar-se com segurança nos problemas
esotéricos definidos por tais regras e pelos conhecimentos existentes (Kuhn, 2006,
p.66). Estas comunidades que compartilham um mesmo paradigma estão
comprometidas com as mesmas regras e práticas da ciência normal, por
conseguinte, são responsáveis pela geração e pela continuidade de uma tradição
de pesquisa estabelecida.
A devoção dos cientistas à resolução de problemas próprios à ciência
normal, problema estes que normalmente apresentam soluções antecipadas,
segundo Kuhn, têm pouca importância e quando não resolvidos atestam o
fracasso pessoal do cientista. O que anima os cientistas a resolver um problema da
ciência normal é alcançar o antecipado de uma nova maneira, o que exige a
solução de todo o tipo de complexos quebra-cabeças instrumentais, conceituais e
matemáticos (Kuhn, 2006, p. 59). Em última instância, estes problemas desafiam
38
os cientistas a testar suas habilidades, solucionando um quebra-cabeça que não
tenha sido resolvido por ninguém ou, pelo menos, não tenha sido resolvido de
maneira tão modelar.
As publicações especializadas, o estabelecimento de sociedades de
especialistas e a proposição da inclusão desta nova ciência nos currículos de
estudo, são indícios que o grupo aceitou um paradigma e, por conseguinte, que um
campo de estudos tornou-se uma ciência. Uma vez adotado pela comunidade
científica, o paradigma deve ser mais bem articulado e precisado em condições
novas ou rigorosas (Kuhn, 2006, p. 44-45). Nos primeiros estágios de
desenvolvimento de um paradigma sua abrangência e precisão são limitadas,
tratando-se apenas de uma promessa de sucesso. Com o passar do tempo,
conforme Kuhn, a ciência normal conduz à especialização do paradigma, sendo
responsável pela sua articulação, ora ampliando o conhecimento de fatos
relevantes apresentados pelo paradigma, ora correlacionando estes fatos com as
predições feitas por ele.
Para Kuhn, a ciência normal tenta submeter à natureza aos limites pré-
estabelecidos pelo paradigma. Observa que os cientistas praticantes da ciência
normal não têm por objetivo identificar novos fenômenos ou inventar novas
teorias, mas argumenta que tanto essa visão restrita de fatos pré-estabelecidos
quanto o comprometimento dos cientistas com o paradigma, são essenciais para o
desenvolvimento da ciência. Neste sentido, a articulação do paradigma pelos
cientistas faz emergir simultaneamente problemas teóricos e experimentais que
são rotulados em três classes – determinação do fato significativo, harmonização
do fato com a teoria e a articulação da teoria. Estas três classes de problemas de
acordo com Kuhn, dão conta das questões atinentes à ciência normal, tanto teórica
quanto empírica (Kuhn, 2006, p.55). Contudo, com o avanço da ciência normal
surge um tipo específico de problema, o problema extraordinário que só aparece
com o amadurecimento da ciência normal.
39
2.2.3 Ciência Normal e Ciência Revolucionária
Kuhn reconhece o valor da ciência normal que orienta a resolução de
problemas tendo por referência o paradigma vigente, assegurando ser esta prática
que possibilita a emergência de novas descobertas e teorias, embora não concorde
com a concepção limitada da ciência, como a do positivismo lógico, que lhe
confere um caráter cumulativo e evolutivo. Sob o ponto de vista kuhniano, seria
improvável estabelecer relações entre a dinâmica newtoniana e einsteiniana ou
entre a astronomia de Ptolomeu e a de Copérnico. Contrapondo-se à concepção de
uma ciência puramente evolucionária Kuhn afirma que após uma revolução
científica os paradigmas não são apenas incompatíveis mas também
incomensuráveis. Se a teoria anterior fosse um caso especial da nova teoria esta
passaria a ser válida num universo restrito de observação, o que conduziria os
cientistas a “não pesquisa”, ou seja, quando confrontados com um problema que
exigisse uma precisão não atendida pela prática anterior, seriam coibidos de
fundamentar a própria pesquisa nesta teoria, portanto sem o comprometimento dos
cientistas com um paradigma a ciência normal não existiria.
Na ciência normal os quebra-cabeças nos são apresentados pela Natureza, e
muitos deles, ao longo da exploração de um paradigma se mostram de difícil
solução. O dever do cientista é insistir o quanto possa no emprego das regras e
princípios paradigmáticos fundamentais, sem transgredí-los. Entretanto, no caso
da ciência, esse apego ao paradigma é essencial mas não deve ser levado ao
extremo. Quando o quebra-cabeças sem solução configura-se como uma
“anomalia” ao resistir por longos períodos aos melhores esforços dos melhores
cientistas, e incide sobre áreas vitais da teoria paradigmática, chegou o tempo de
considerar a substituição do próprio paradigma. Nestas situações de “crise”, os
pesquisadores mais ousados e criativos da comunidade científica propõem
alternativas ao paradigma. Perdida a confiança no paradigma vigente, tais
alternativas começam a ser levadas a sério por um número crescente de cientistas.
Instala-se um período de discussões e divergências sobre os fundamentos da
ciência que lembra um pouco o que ocorreu na fase pré-paradigmática. A
diferença básica é que mesmo durante a crise o paradigma até então adotado não é
40
abandonado enquanto não surgir um outro que se revele superior a ele em
praticamente todos os aspectos.
Quando um novo paradigma vem a substituir o antigo, ocorre o momento
de mudança de paradigma denominado de “revolução científica”, definida em
Kuhn como: “um deslocamento da rede conceitual através da qual os cientistas
vêem o mundo” (2006, p. 137). Assim, por exemplo, na transição da mecânica
newtoniana para a einsteinianana, os referentes físicos da teoria quântica de modo
algum são idênticos aos da teoria de Newton1. Para Thomas Kuhn:
“revoluções científicas são aqueles episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma antigo é total ou parcialmente, substituído por um novo incompatível com o anterior”. (Kuhn, 2006, p. 125)
A recepção de um novo paradigma exige, pois, com frequência a
redefinição da ciência correspondente. A tradição científica normal que surge de
uma revolução científica é não somente incompatível, como na maior parte dos
casos incomensurável com a anterior.
De acordo com Kuhn, novos paradigmas emergem de antigos, incorporando
boa parte do vocabulário, e dos aparatos que o paradigma tradicional empregava,
entretanto ele argumenta que os proponentes de paradigmas concorrentes nunca
conseguem estabelecer uma conexão completa entre seus pontos de vista
divergentes. Nesta acepção, no novo paradigma os termos, conceitos e
experiências do paradigma anterior não só adotam um novo sentido, como
também estabelecem novas relações entre si, afirmando que a comunicação entre
a linha divisória revolucionária ocorre sempre de maneira parcial.
Na intenção de oferecer uma melhor compreensão da sua visão de
revolução científica, Kuhn estabelece uma relação de paralelismo entre as
revoluções sociais e científicas, não obstante concorde que existam diferenças
essenciais que as separam. Questiona tanto o motivo pelo qual a mudança
paradigmática é vista como uma revolução, quanto a relação metafórica possível
da palavra revolução, na ciência e na política.
1 Ver na Estrutura, 2006, p. 136, as diferenças apontadas por Kuhn com relação ao conceito
de massa da mecânica newtoniana e einsteinianana.
41
Uma crise política, conforme Kuhn, pré-requisito para a revolução, se inicia
com a percepção, por parte de um segmento da comunidade, do mau
funcionamento das instituições. Nos períodos de crise da ciência normal, observa
o mesmo sentimento por parte dos cientistas quanto ao mau funcionamento do
paradigma e pondera ser possível empregar o termo revolução tanto nas mudanças
relevantes de paradigma, quanto em outras de menor alcance, pois, para o grupo
por elas afetado, terão sempre um aspecto revolucionário.
Assim, como nos períodos de revolução social, a comunidade costuma
abandonar as instituições em favor de outra, os cientistas rejeitam o paradigma
vigente em favor de um candidato a paradigma, mais promissor. A crise política,
atenua a importância das instituções tanto quanto a crise na ciência atenua a
importância do paradigma. Como consequência, tanto as instituições passam a não
governar a sociedade quanto os paradigamas passam a não ser reconhecidos pelos
cientistas. Kuhn observa, também, um comportamento de alienação e
excentricidade dos indivíduos que vivenciam a crise e à medida que esta se torna
grave, alguns indivíduos se envolvem com um novo projeto. Durante este
processo, os indivíduos se dividem em grupos partidários e os cientistas
estabelecem novas comunidades de especialistas, ocorrendo uma polarização das
discussões. Para Kuhn, neste momento do conflito os argumentos de natureza
política são inócuos, prevalecendo as técnicas de persuasão de massa,
acompanhadas da coerção pela força. Apoiado nesta metáfora e na historiografia
da ciência, Kuhn sustenta que tanto a escolha entre duas instituições políticas em
competição como a escolha entre paradigmas concorrentes, são escolhas entre
modos incompatíveis de vida comunitária, portanto no caso da ciência, não podem
ser resolvidos aplicando-se unicamente a lógica e os experimentos.
Kuhn evidencia a existência das revoluções científicas com exemplos
ilustrativos do desenvolvimento de diferentes teorias ao longo da história nos
diversos campos da ciência, como a física, a química, a astronomia e a
matemática, mas constata que tais exemplos são normalmente considerados,
segundo ele, erroneamente como adições ao conhecimento científico e não como
revoluções.
42
As fontes de autoridade, representadas pelos principais manuais científicos, textos
de divulgação e obras filosóficas, são as responsáveis pela percepção equivocada
que leigos e cientistas têm sobre a existência e o significado das revoluções
científicas. Kuhn considera que estes documentos confirmam os aspectos
tradicionais da ciência normal, pois as novas teorias só são divulgadas quando já
estão estabelecidas e amplamente aceitas pela comunidade científica. Segundo
esta percepção todo o conhecimento científico dos profissionais e leigos se baseia
nestes manuais e em seus sub-produtos, sendo estes produzidos e orientados
pedagógicamente pela ciência normal. Ele conclui que os manuais atuais
obliteram a compreensão dos cientistas quanto à história da sua própria disciplina,
e dissimulam ou até suprimem a possibilidade da ocorrência de revoluções
científicas. A interpretação linear e cumulativa da história da ciência afeta os
cientistas, que tendem a examinar suas próprias pesquisas como extensão das
idéias de seus predecessores, distorcendo o processo revolucionário que os
conduziu a reformular perguntas e respostas não observadas pelos defensores do
paradigma predecessor.
2.2.4 Estrutura e Práxis da Comunidade Científica
A estrutura comunitária da ciência apresentada em Kuhn (2006, p.222),
adota a noção de uma comunidade formada pelos praticantes de uma
especialidade científica que foram submetidos a uma iniciação profissional e
educação muito semelhantes, norteados pela mesma literatura técnica e da qual
aprendem as mesmas lições. As fronteiras de cada comunidade científica são bem
demarcadas através de uma literatura-padrão, metodologia própria e instrumentos
comuns que restringem o objeto de estudo científico, assim como definem os
limites de ação da própria comunidade. Como consequência seus membros se
reconhecem mutuamente como únicos responsáveis pela busca de um objetivo
comum, e pelo treinamento de seus sucessores. A comunicação flui com
facilidade no âmbito da comunidade, observando-se geralmente unanimidade nos
julgamentos profissionais.
Entretanto, Kuhn reconhece o aparecimento de divergências à medida que
diferentes comunidades científicas passam a se interessar por assuntos distintos,
43
sugerindo a existência destas comunidades em diferentes níveis (Kuhn, 2006, p.
223). No nível mais mais global, encontramos a comunidade dos cientistas ligados
à ciência natural, no nível imediatamente inferior estariam os físicos, químicos
astrônomos, e outras comunidades afins, cujo reconhecimento de pertinência é
assegurado pela alta titulação, participação em sociedades profissionais, e leitura
de periódicos especializados. Os problemas empíricos tendem a emergir em sub-
grupos deste nível imediatamente inferior, como por exemplo o dos químicos
inorgânicos, bioquímicos. Kuhn define estas unidades ou comunidades, como
produtoras e legitimadoras do conhecimento científico, que vêem os paradigmas
como algo a ser compartilhado pelos seus membros.
Usando a metáfora de um jogo de xadrez compara o cientista ao enxadrista
que testa as diversas opções de resolução dos quebra-cabeças indicados pelo
paradigma, testando sua capacidade em resolvê-lo, não pondo em dúvida as regras
do jogo. Neste caso, o que está em jogo é a habilidade e o conhecimento do
cientista.
No intuito de entender o que induziria alguns pesquisadores a formular uma
nova interpretação da natureza, Kuhn recorre aos textos históricos e identifica
particularidades comuns a estes grupos, não observadas nos demais membros da
comunidade científica. Afirma que estes pesquisadores normalmente estão com a
atenção voltada para problemas que causaram as crises, e em sua maioria são
muito jovens ou estão atuando tão recentemente na área em crise, que conseguem
descartar as teorias e regras do velho paradigma vendo a ciência e o mundo de
uma outra maneira.
Para Kuhn um paradigma só começa a ser testado com afinco pelos
especialistas quando da emergência de um novo novo candidato a paradigma. Na
prática científica, os testes não ocorrem através da comparação de um único
paradigma com a natureza, mas sim pela confrontação entre paradigmas rivais
pretendendo conquistar a adesão da comunidade científica. Conforme Kuhn, a
incomensurabilidade dos paradigmas em competição leva os proponentes de
paradigmas divergentes a praticarem seus ofícios em mundos diferentes, onde
grupos diferentes de cientistas podem olhar para um mesmo ponto numa mesma
direção e ver coisas diferentes, encontrando relações diferentes entre elas.
Baseado nesta premissa conclui que a comunicação entre estes grupos só pode
44
ocorrer através da conversão dos demais grupos ao paradigma do grupo
dominante. Esta transição entre incomensuráveis, ou entre paradigmas
divergentes, ocorre de maneira abrupta tal qual a mudança de forma visual
(gestalt), não podendo ser visto como um processo evolutivo e gradual, como
constatado na prática da ciência normal.
Embora a resistência seja vista, em Kuhn, como um fenômeno inevitável ao
afirmar que muitos cientistas podem resistir indefinidamente ao novo paradigma,
estes mesmos cientistas também podem ser movidos pelo recurso à técnicas de
persuasão, argumentos e contra-argumentos que não podem ser provados, levando
a conversão gradual de alguns grupos ao novo paradigma. Dentre as várias
possibilidades que podem promover a conversão dos cientistas ao novo
paradigma, Kuhn relaciona as idiossincrasias, crenças, dogmas, a nacionalidade
ou a reputação do cientista inovador e dos seus mestres. Kuhn não está interessado
nas razões que provocam as conversões individuais, mas nas características da
comunidade que se re-configura como um único grupo. Nesta perspectiva sugere
que existem alguns tipos de argumentos bastante convincentes, utilizados pelo
grupo proponente do novo paradigma, sendo o mais eficaz deles a afirmação que
o novo paradigma pode solucionar problemas que levaram o antigo a uma crise.
Caso este argumento seja legitimado através de experiêcias vistas como decisivas,
mostrando que o novo paradigma apresenta uma precisão quantitativa bem
superior ao antigo, este novo paradigma tem uma probabilidade maior de sucesso
sobre o anterior. Embora os argumentos baseados na comparação entre a
habilidade de paradigmas competidores para resolver problemas sejam muito
atraentes, não são, no entanto, suficientes para explicar todas as adesões. Kuhn
defende também outra espécie de argumento, que suscita no indivíduo um
sentimento do que é apropriado ou estético, descrito por ele como uma teoria
“mais clara”, “mais adequada” ou “mais simples” que a anterior.
Como para Kuhn, nem a inadequação do paradigma a determinados
problemas, nem as crises advindas de tais inadequações são razões suficientes
para que os cientistas rejeitem um paradigma, sugere outra razão, decorrente de
um ato de fé dos cientistas no novo paradigma e da sua suposta capacidade para
resolver os problemas futuros. Está fé foi descrita, em Kuhn, como uma atitude
não necessariamente racional, podendo ser explicada exclusivamente por
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considerações estéticas pessoais. Entende que esta fé é necessária para que alguns
adeptos do novo paradigma possam desenvolvê-lo, produzindo argumentos
objetivos que assegurem a adesão crescente de mais profissionais, até que sejam
produzidas experiências, instrumentos, artigos e livros que multipliquem e
disseminem o novo paradigma e sua adoção por toda a comunidade científica.
Portanto, o estudo da estrutura comunitária da ciência ganha posição de
destaque na epistemologia de Kuhn ao escrever que:
“O conhecimento científico, como a linguagem, é intrinsecamente a propriedade de um grupo ou então não é nada. Para entendê-lo, precisamos conhecer as características essenciais dos grupos que o criam e o utilizam”. (Kuhn, 2006, pp.259-260)
2.2.5 O Progresso da Ciência
Kuhn acredita que existe uma ligação estreita entre as noções de ciência e
progresso. A existência de uma prática paradigmática nas assim chamadas “hard
sciences” é que explica a maior visibilidade de sua dimensão progressiva em
relação às ciências sociais.
Kuhn apresenta diversas razões que explicam e justificam a maneira pela
qual os cientistas ligados às ciências naturais promovem o indiscutível progresso
em sua área de conhecimento. Conforme exposição anterior, durante a prática da
ciência normal não se observam escolas concorrentes, prevalecendo o consenso
dos grupos em torno dos fundamentos, objetivos e critérios comuns, pela adoção
de um único paradigma ou de um conjunto de paradigmas correlatos. Trabalham
isolados das exigências práticas da sociedade, tendo como audiência exclusiva a
própria comunidade científica, permitindo que cada cientista concentre esforços
sobre os problemas que julgue ter competência para equacionar e que possa levar
em consideração os instrumentos disponíveis para resolvê-los. Kuhn reconhece,
também, a grande eficácia da natureza do aprendizado das ciências naturais que
potencializa ainda mais o isolamento deste grupo. A educação formal tem como
principal fonte de estudos os manuais técnicos que apresentam de forma precisa e
sistemática o corpo da teoria e das experimentações, incluindo os instrumentos,
que o cientista deve adotar. A conjunção de todos estes aspectos notados por
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Kuhn, nas ciências naturais e pouco observados na história das ciências sociais,
explicaria o progresso superior que as primeiras exibem em relação as segundas.
Kuhn sugere ainda outro aspecto para a questão do progresso científico em
geral, examinando as práticas da ciência extraordinária. Em períodos de crise
quando surge um novo candidato a paradigma, os cientistas relutam em aceitá-lo e
só o fazem quando percebem que o novo candidato é uma promessa de solução de
algum problema reconhecido como extraordinário pela comunidade e que não
possa ser resolvido de nenhuma outra maneira. Tal paradigma deve, ainda,
preservar boa parte da capacidade objetiva de resolver problemas conquistados
pelos paradigmas anteriores, e ainda admitir a solução concreta de problemas
adicionais. De acordo com Kuhn (2006, p. 210-211) as revoluções científicas
terminam com a vitória de um dos dois campos rivais, fato que assegura, pelo
menos a facção vitoriosa, o direito de afirmar que o resultado de uma revolução
deve ser o progresso. Kuhn contraria esta perspectiva àquela que considera que só
há progresso se cumulativo que ocorre no período da ciência normal. Conclui que
a rejeição de um paradigma e a escolha de outro sempre resulta em perdas e
ganhos. Daí a dificuldade de se saber se houve progresso nesta situação particular.
Após a escolha do novo paradigma, a comunidade de especialistas opera no
sentido de assegurar o crescimento contínuo dos dados coletados que conseguem
examinar de maneira cada vez mais precisa e detalhada. Estes cientistas têm um
compromisso dito “virtual” com a ciência, compromisso este que assegura um
aumento do número de problemas resolvidos e a precisão das soluções dos
problemas individuais.
Nesta perspectiva Kuhn compara sua idéia de progresso à teoria darwiniana
da evolução pela seleção natural, e oferece uma interpretação refinada ao
problema do progresso científico. Apresenta uma analogia da evolução das idéias
científicas com a evolução dos organismos, ao escrever:
“O processo que o capítuloonze descreve como a resolução das revoluções corresponde à seleção pelo conflito da maneira mais adequada de praticar a ciência – seleção realizada no interior da comunidade científica. O resultado final de uma sequência de tais seleções revolucionárias, separadas por períodos de pesquisa normal, é o conjunto de instrumentos notavelmente ajustados que chamamos de conhecimento científico moderno. Estágios sucessivos desse processo de desenvolvimento são marcados por um aumento de articulação e especialização do saber científico. Todo esse processo pode ter ocorrido,
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como no caso da evolução biológica, sem o benefício de um objetivo preestabelecido, sem uma verdade científica permanentemente fixada, da qual cada estágio do desenvolvimento científico seria um exemplar mais aprimorado”. (Kuhn, 2006, p.217)
O processo kuhniano de desenvolvimento científico, como vimos, rejeita a
idéia de evolução teleológica, orientada para um objetivo, “evolução-em-direção-
ao-que-queremos-saber”, e propõe substituí-la pela evolução a partir de um início
primitivo, “evolução-a-partir-do-que-sabemos” (Kuhn, 2006, p. 215-216).