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2 Aspectos Teóricos: Ideias, Instituições e Lideranças na Formulação de Políticas Públicas
A proposta contida neste capítulo é a de apresentar os pressupostos
teóricos que informaram a pesquisa. Pretendemos esclarecer quais são as
principais abordagens, categorias e conceitos tomados da Análise de Política
Externa (geral e brasileira), do pensamento econômico brasileiro e dos estudos de
Economia Política Comparada que nos permitirão demonstrar, mais adiante, a
importância da “ideia do desenvolvimento” na formulação de políticas públicas de
propriedade intelectual no Brasil – particularmente a política externa e a política
industrial - durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula
da Silva (1995-2010).
As discussões teóricas aqui apresentadas nos auxiliam a verificar que
embora ideias exerçam impacto decisivo na formulação de políticas, não podem
ser compreendidas fora do ambiente institucional em que operam. É preciso
examinar de que modo instituições podem interferir na forma como novas ideias
são assimiladas ou não. Novas ideias podem se encerrar definitivamente no
ambiente institucional e estimular mudanças de longo prazo e duradouras, como
podem muito bem ser refratadas e não exercer grande influência. Estas discussões
foram desenvolvidas em dois níveis de formulação de políticas públicas – o da
política externa e o da política industrial. O referencial examinado permitirá
avaliar, posteriormente, como instituições estatais reagiram a diferentes ideias
sobre o desenvolvimento, durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e
Luiz Inácio Lula da Silva, e como tais diferenças repercutiram na formulação de
políticas públicas de propriedade intelectual.
O ambiente institucional não deve ser entendido exclusivamente em
termos materiais. Ideias são também instituições, isto é, são “hábitos de
pensamento difundidos e não perceptíveis” (CRUZ, 2008b, p. 188).10 É por esta
razão que, ao tratarmos de instituições, nos referimos também a esta acepção mais
10 A frase de Murillo Cruz, Professor do Instituto de Economia da UFRJ, alude ao pensamento do teórico social e economista político Thorstein Veblen, um dos expoentes da Escola Institucionalista na Economia Política.
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ampla, ideacional. Assim, não basta examinar as instituições do Estado no sentido
material. É necessário compreender quem são alguns dos tomadores de decisão
que ocupam postos-chaves no Governo, suas histórias de vida e o que pensam e
quem são os possíveis acadêmicos, conselheiros ou formuladores de políticas que
os influenciam.11
Instituições refletem pensamentos e valores de indivíduos. Embora as
ideias e as instituições sejam vitais para analisar o processo de formulação de
políticas públicas, há igualmente uma dimensão cognitiva, relacionada aos
atributos da personalidade de alguns dos principais tomadores de decisão ou
líderes, que não pode ser desconsiderada. Assim, entendemos que, além das
instituições, determinadas lideranças individuais também atuaram como variáveis
intervenientes entre as ideias e a formulação de políticas públicas de propriedade
intelectual durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula
da Silva.
A proposta então é a de empreender um exame das políticas públicas de
propriedade intelectual no Brasil em duas frentes: no campo da política externa e
no da política industrial. Em termos teóricos, examinamos inicialmente o
“institucionalismo racional” de GOLDSTEIN & KEOHANE (1993) para verificar
como as ideias, entendidas como crenças sustentadas por indivíduos, podem afetar
o processo de formulação da política externa. Já o “institucionalismo histórico” de
autores como HALL (1989) e McNAMARA (1999) e a abordagem cognitivo-
institucionalista de FINNEMORE (1997) e SIKKINK (1991; 1997) constituem o
instrumental preferencial para compreender como instituições e lideranças
influenciaram o processo de formulação de políticas públicas de propriedade
intelectual no Brasil, entre 1995 e 2010. Auxilia-nos a desvelar porque
determinadas ideias sobre o desenvolvimento (e sua relação com a propriedade
intelectual) encontraram ambiente mais adequado para a sua adoção no Governo
11 É preciso, igualmente, admitir que qualquer ideia nova, antes de exercer influência na formulação de políticas, encontra um ambiente ideacional anterior, intersubjetivo, que condiciona também a receptividade que aquela ideia vai receber. Neste ponto, os conceitos de “natureza do discurso político” e de “persuasão” em HALL (1989) foram fundamentais. No que se refere especificamente à política externa, terminologicamente optamos por trabalhar com o conceito de “vetor ideacional”, ao invés de “paradigmas”, por razões explicitadas adiante.
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Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), em contraste com o Governo Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), quando encontraram notável resistência12.
Este capítulo está dividido em mais seis partes. Na próxima, dedicamo-nos
a apresentar alguns conceitos e esclarecimentos preliminares. Em seguida,
dispomo-nos a refletir sobre o lócus ocupado pela Análise de Política Externa no
campo mais amplo da disciplina de Relações Internacionais, com destaque para as
limitações das abordagens teóricas mais tradicionais – o (neo)realismo e o
institucionalismo neoliberal – na interpretação do comportamento estatal, dada a
pouca ou inexistente relevância conferida aos fatores ideacionais.
Ainda neste tópico, discutimos como GOLDSTEIN & KEOHANE (1993)
nos permitem compreender o impacto que ideias podem exercer na formulação da
política externa, não obstante as críticas que invariavelmente apontam para a
aceitação, pelos autores, da premissa de que indivíduos (os tomadores de decisão)
sempre atuam racionalmente. Procuramos conceituar as ideias, não obstante as
dificuldades de ordem epistemológica de separá-las da categoria dos “interesses”.
Examinamos também o “institucionalismo histórico” em suas
características mais amplas e a contribuição de HALL (1989) para dimensionar a
influência das ideias na formulação de políticas públicas de propriedade
intelectual no Brasil entre 1995 e 2010 e no sentido de averiguar como se dá o
processo de incorporação dessas ideais nas instituições estatais.
Tratamos, após, de caracterizar o “desenvolvimento” como ideia
econômica e vetor ideacional da política externa brasileira, bem como de resgatar
a trajetória intelectual de sua apropriação pelas mais diferentes correntes teóricas
do pensamento econômico brasileiro. Assim, o neoliberalismo e o
desenvolvimentismo (com suas diferentes correntes) tendem a conferir
tratamentos bastante distintos à ideia do desenvolvimento, o que repercute de
forma significativa na formulação de políticas.
Na parte seguinte, apresentamos algumas reflexões sobre o lugar conferido
às instituições e às lideranças individuais no processo de formulação de políticas
públicas. Defendemos que não é possível discutir as ideias sem compreender o 12 A todo esse aparato somamos análises desenvolvidas por estudiosos de política externa brasileira e do pensamento econômico brasileiro. Embora o trabalho de GOLDSTEIN & KEOHANE (1993) pertença originalmente ao campo de Análise de Política Externa e os dos demais autores ao de Economia Política, optamos pela comunicabilidade entre estas literaturas para a construção de nosso referencial teórico. Entende-se que o diálogo entre estas duas literaturas é pródigo em possibilidades analíticas.
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papel interveniente desempenhado por algumas instituições e lideranças
individuais que afetam diretamente a forma como aquelas são transmitidas. O
poder de persuasão das ideias é passível de interferências de algumas lideranças
individuais e de alguns de seus atributos pessoais como a “história de vida”, a
desenvoltura, a eloquência, a capacidade argumentativa, o carisma e a
credibilidade. Destes atributos depende muito o alcance que as ideias podem ter
na formulação de políticas públicas, quando se infiltram nas instituições.
O conceito de persuasão, desenvolvido por HALL (1989), revela como
lideranças individuais podem muitas vezes contribuir para o fracasso ou a
aceitação de ideias. No caso em exame, tanto no que tange à política externa de
propriedade intelectual, quanto à política industrial, entendemos que lideranças
individuais exerceram papel proeminente.
O capítulo se encerra com uma síntese do aparato teórico apresentado, de
natureza essencialmente ideacional. Frise-se que não se trata de negar às
abordagens materiais sua validade explicativa, mas apenas de sublinhar como
aspectos ideacionais também podem contribuir para o entendimento de
formulação de políticas públicas de propriedade intelectual no Brasil, como a
política externa e a política industrial.
2.1 Considerações e Esclarecimentos Preliminares
Apresentam-se aqui duas considerações ou esclarecimentos preliminares,
ambos de natureza analítico-conceitual. O objetivo é caracterizar a política externa
e a política industrial como políticas públicas. Após, justifica-se o porquê da
investigação lidar apenas com a fase de “formulação” ou “adoção” de políticas
públicas de propriedade intelectual, e não com a fase de “execução” ou
“implementação”.
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2.1.1 A Política Externa e a Política Industrial como Políticas Públicas
A caracterização da política externa e da política industrial como espécies
do gênero “políticas públicas” demanda, obviamente, certos esclarecimentos de
ordem conceitual. Enfim, o que são políticas públicas? E, mais precisamente, o
que entendemos por política externa e política industrial? Por que ambas podem
ser caracterizadas como políticas públicas?
De acordo com MARTINS (2003, p. 13) políticas públicas são:
[...] um conjunto articulado e estruturado de ações e incentivos que buscam alterar uma realidade em resposta a demandas e interesses dos atores envolvidos. Uma política pública é fruto de um processo de decisão política, usualmente consubstanciado em uma disposição normativa (lei, decreto, documento de governo ou outra forma de policy outcome) que demanda competência autorizativa no âmbito governamental (executivo ou, na maior parte das vezes, executivo e legislativo). As políticas públicas dispõem usualmente sobre “o que fazer” (ações), “onde chegar” (objetivos relacionados ao estados de coisas que se pretende alterar) e “como fazer” (princípios e macro-estratégias de ação). LIMA (2010) também discute o conceito de políticas públicas e reflete
sobre a possibilidade da política externa poder ou não ser caracterizada como tal.
Segundo LIMA (ibid.), a definição clássica de política pública é a do “Estado em
ação”. Ressalta também o traço autorizativo que demarca as políticas públicas, ou
seja, a necessidade de que haja a chancela ou a sanção do Estado para que aquelas
sejam formuladas e implementadas (ibid.). LIMA enfatiza que, mesmo as ações
do Estado que resultam em acordos internacionais, para que sejam legitimadas no
plano doméstico, devem ser autorizadas pelas autoridades competentes, neste
caso, o Congresso Nacional (ibid).13
LIMA aponta, ainda, para uma tendência que estaria contribuindo para
aproximar cada vez mais a política externa da dimensão das políticas públicas: o
da “politização da política externa” (ibid.). Trata-se de fenômeno recente e
gradual do cenário político brasileiro, a partir da redemocratização e da inserção
13 A abordagem de PUTNAM (1988) sobre o jogo de dois níveis é um exemplo da necessidade da formação de “coalizões vencedoras” no plano doméstico para a aprovação de acordos internacionais. A proposta do autor decompõe o processo decisório de política externa em dois níveis: o nível I, o da barganha entre negociadores no plano internacional; e o nível II, das discussões na esfera doméstica, acerca do consentimento para as propostas do Executivo.
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do Brasil no processo de globalização da economia via políticas liberalizantes,
que estimulou o processo de gradual incorporação das questões externas à agenda
de políticas domésticas por meio da mobilização de diferentes grupos de interesse
nacionais que, antes, não se sentiam incentivados a tentar participar de forma
proeminente do processo de formulação da política externa, tradicionalmente
insulado no Itamaraty.14 Enfim, a partir da redemocratização nos anos 80 e da
abertura econômica nos anos 90, a tarefa da diplomacia brasileira deixou de ser a
de representar interesses antes presumidos como unânimes no plano internacional.
A missão tornou-se mais complexa e passou a ter que considerar a defesa de
interesses setoriais, por vezes concorrentes, com maior ou menos acesso aos
canais de decisão na formulação da política externa, inserindo a atividade
diplomática no conflito distributivo (LIMA, 2000). Os assuntos externos
brasileiros, portanto, tornaram-se objeto de debate e controvérsia na política
doméstica de uma forma que não era no passado e divergências intra-burocráticas
sobre quais devem ser as prioridades da política externa também se tornaram mais
frequentes (LIMA & HIRST, 2006, p. 37).
Mesmo assim, LIMA (2005, op. cit, p. 16) admite que uma diferença entre
a política externa e as demais políticas públicas é que as iniciativas da primeira
ainda são menos dependentes de condicionamentos orçamentários e metas
macroeconômicas como, por exemplo, o superávit fiscal. Há maior grau de
liberdade para mudar o rumo da política externa porque ela é menos dependente 14 Há que se ressaltar que estudos recentes como o de NOGUEIRA (2007) demonstram que, embora o processo de liberalização política e econômica tenha contribuído para a criação de condições mais favoráveis à pluralização do processo decisório da política externa brasileira, a incorporação a este das preferências de novos atores depende, em grande medida, do acesso destes aos canais decisórios, ou seja, de arranjos institucionais que são capazes de potencializar ou frear os estímulos à descentralização na tomada de decisões. Enfim, apesar da tendência em países democráticos ser a de uma maior pluralização do processo decisório da política externa e de incorporação das preferências dos atores domésticos, pode-se configurar um cenário em que as instituições mais dificultam aquele processo do que estimulam. No Brasil, apesar da ampliação do processo decisório para outras elites burocráticas e agências do Estado, reafirma-se a tendência de concentração do Poder Executivo no processo decisório, sendo reservado ainda ao Itamaraty protagonismo. Em interessante análise dobre a Diplomacia do Gás no Governo Fernando Henrique Cardoso, NOGUEIRA (ibid, p. 59-60) conclui que a liberalização política não significou uma automática ampliação do número de atores participantes do processo decisório de política externa. Apesar da politização das questões internacionais, o acesso de grupos de interesse, enfim, de novos atores, às arenas de decisão obedecem a um padrão seletivo no qual a incorporação das preferências se verifica apenas quando há convergência e aproximação de propósitos como Executivo. Sobre esta conclusão, sugerimos ainda a leitura de interessante paper de PINHEIRO, NOGUEIRA e MACEDO (2007). Ver também HOLM (1990), KAHLER (1997) que demonstram como a democratização do processo decisório de política externa é ainda uma questão a ser discutida em todos os países democráticos, inclusive os dos países do Ocidente.
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da capacidade de coordenação política e de gestão administrativa do que outras
políticas públicas, já que é conduzida por burocracias especializadas e com
capacidade administrativa instalada (ibid, p. 16).
DA SILVA, ESPÉCIE e VITALE (2010, p. 8) demonstram que, se por um
lado, o conceito de política externa é fortemente influenciado pelas correntes
teóricas de análise das relações internacionais, por outro, emergiu outro enfoque
capaz de impactá-lo, o de uma nova linha de pesquisa surgida nos Estados Unidos
da América, baseada na análise de políticas públicas. Isso ocorre em um momento
histórico em que os Estados deixam de deter o monopólio das comunicações com
os atores externos (ibid, p. 9):
Com efeito, com a globalização, resultante da transnacionalização produtiva, financeira e cultural, acompanhada da revolução tecnocientífica, a discussão evoluiu, de forma que, uma vez desmistificada,a política externa é considerada apenas mais uma entre as políticas de governo, resultado do embate entre as coalizões de forças domésticas. De modo complementar, entende-se que as políticas interna, externa e internacional compõem um continuum do processo decisório poliárquico.15 Por esta razão, uma política pública integral deve ser pensada não apenas em seus imperativos nacionais, mas em termos de utilização dos espaços internacionais relacionados.16 (grifamos) Assim, em um contexto em que as políticas internas se tornam cada vez
mais internacionalizadas e a política internacional é progressivamente
internalizada, passa-se a compreender a política externa não mais apenas como as
relações mantidas pelo Estado com Estados estrangeiros, para ampliar o conceito,
de forma a reconhecê-la como o “conjunto de programas mantidos por um ator
com atores estrangeiros; ampliando-se, assim, os atores que poderão ser
interlocutores (não apenas Estados, mas também uniões aduaneiras, organizações
internacionais, etc.) e os temas envolvidos” (ibid, p. 9).17
15 As autoras afirmam que tal termo passou a ser amplamente utilizado a partir do trabalho de MILNER (1997). 16 Entendemos que a diplomacia do Governo Lula visou, no campo das negociações internacionais em matéria de propriedade intelectual, seguir esta tendência de sinergia entre imperativos nacionais e a utilização de espaços internacionais relacionados ao valer-se da política industrial como forma de fortalecer a posição da diplomacia brasileira nos principais organismos multilaterais. 17 Assim como os autores mencionados na nota 14, as autoras também ressaltam (ibid, p. 10-11) como a diluição entre o interno e o internacional contribuiu para que o processo decisório de política externa passasse também a compreender outros órgãos do Executivo Federal. Esta emergência de novos atores que passam, de certa forma, a rivalizar com o MRE na condução da política externa, levaria à possibilidade de mais incoerências na formulação de políticas, favorecidas ainda por problemas estruturais enfrentados pelas chancelarias como a formação
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No mesmo sentido, HILL (2003) salienta a necessidade de romper com a
associação da política externa a interesses nacionais auto-evidentes. Num mundo
onde importantes disputas internacionais se dão em torno dos temas mais diversos
e específicos como o preço das bananas ou a imigração ilegal, seria absurdo
concentrar a análise da política externa apenas nas relações entre os serviços
diplomáticos nacionais. Embora estes tentem alcançar o status de gatekkepers, na
prática tem que se render às evidências cada vez mais presentes do exercício de
uma ‘diplomacia paralela’ por parte de colegas de outros ministérios e agências
estatais (ibid, p. 4).
Desta forma, a política externa é apresentada por HILL, em uma breve
definição, como “a soma das relações externas oficiais conduzidas por um ator
independente (habitualmente o Estado)” (ibid, p. 3). A definição alude a “ator
independente” para permitir a inclusão de fenômenos como a União Européia
(UE); reporta-se às relações externas “oficiais” porque permite a inclusão de
resultados obtidos por todas as partes dos mecanismos governamentais do Estado
ou de empresas, enquanto ainda mantém parcimônia em relação ao amplo número
de transações internacionais que agora são conduzidas; e ainda, a política é
considerada a “soma” dessas relações oficiais porque, se fosse de outra forma,
qualquer ação particular poderia ser vista como uma política externa em separado.
Finalmente, a política é “externa” porque o mundo ainda é mais dividido em
distintas comunidades do que uma entidade singular e homogênea. Tais
comunidades necessitam de estratégias para lidar com estrangeiros (ou estranhos)
em seus variados aspectos (ibid, p. 3).
Traçando o objetivo de estimular discussão sobre a extensão por meio da
qual a política externa formulada e conduzida pelos governos nacionais lida com o
que denominam de “mundo em transformação”, WEBBER e SMITH (2002, p. 2)
apresentam a seguinte definição:
A Política Externa é composta de objetivos perseguidos, conjuntos de valores, decisões tomadas e ações cometidas pelos Estados e governos nacionais agindo a seu favor, no contexto das relações externas das sociedades nacionais. Ela constitui uma tentativa de planejar, lidar com e controlar as relações externas das sociedades nacionais.18
generalista do corpo diplomático (em contraposição à necessidade de formações técnicas cada vez mais específicas, encontradas nos ministérios temáticos). 18 Tradução livre do original: Foreign Policy is composed of the goals sought, values set, decisions made and actions taken by states and national governments acting on their behalf, in the context of
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Entre os fundamentos apresentados na abordagem que apresentam para o
estudo da política externa, WEBBER e SMITH enfatizam que ela implica na
capacidade de distinguir a política doméstica das relações externas das sociedades
nacionais, e de formar políticas direcionadas a ‘alvos’ externos (ibid, p. 3). Este
postulado levanta questionamentos sobre como o ‘externo’ é definido e
perseguido num mundo crescentemente interconectado (ibid, p. 3). Daí que, ao se
estudar política externa, inevitavelmente há uma confrontação com a relação entre
“política nacional” e “política internacional” e entre a política pública em nível
nacional e as formas pelas quais ela é projetada para além (ibid, p. 4). Desta
forma, a política externa é reconhecida como capaz de projetar outras políticas
públicas, a princípio vistas como exclusivamente “nacionais”.
Além da política externa poder ser caracterizada como uma política
pública como todas as demais19, para ser considerada como bem sucedida, ou seja,
com real influência nas negociações internacionais, deve conseguir trazer
resultados positivos em termos de políticas públicas domésticas. Da mesma
forma, políticas públicas bem sucedidas podem reforçar a posição negociadora
brasileira (OLIVEIRA, ONUKI & VEIGA, 2006, p. 2). 20 É necessária, portanto,
the external relations of national societies. It constitutes an attempt to design, manage and control the foreign relations of national societies. 19 Destaque-se declaração do ex-Chanceler Celso Amorim que, em entrevista a jornalistas da Revista “Desafios do Desenvolvimento”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), declarou que “[...] a política externa é uma política pública como todas as demais. Está sujeita à expressão das urnas” (PORTARI & GARCIA, 2010). Em seu discurso de despedida do cargo de Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim registrou com um dos maiores legados do período em que esteve à frente do MRE a condução de uma política externa “altiva e ativa na qual o povo brasileiro se reconhece”. Declarou então o Ministro: “Tenho tido a oportunidade de constatar este fato nas ruas, onde ando sem segurança e assessores, nas manifestações positivas de nossa elite intelectual e da parte de gente simples, que antes talvez sequer ouvisse falar em Relações Internacionais” (O GLOBO, 2011). Apesar de concordar que a política externa é um assunto cada vez mais discutido por outras parcelas da população, e não mais somente pelo meio diplomático e pela academia, LIMA (2010, op. cit.) discorda que esta “politização da política externa” esteja sendo caracterizada pelo interesse maior pelo tema por parte da população brasileira de forma ampla, mesmo em períodos eleitorais. 20 Compartilhamos da visão defendida por ALMEIDA (2002, p. 169-171) de que o processo de globalização não se traduz num padrão uniforme de políticas públicas por parte dos Estados. Para os que creêm nesta uniformização, as medidas de livre mercado e de estímulo à competição são impulsionadas e impostas pelos organismos econômicos e financeiros multilaterais (como o FMI, o Banco Mundial e a OMC) que “supostamente enquadram as políticas nacionais e condicionam o acesso a mercados e aos créditos e financiamentos, públicos e privados, ao atendimento de uma série de prescrições uniformes emanadas do Consenso de Washington ou da receita neoliberal do mainstream econômico” (ibid, p. 169). Entre essas imposições se encontrariam a discriminação comercial por salvaguardas abusivas, o protecionismo setorial – principalmente na área agrícola – e, de forma geral, as recomendações por orientações liberalizantes nas áreas industrial, comercial e financeira. Apesar de reconhecermos os constrangimentos sistêmicos impostos pelos organismos multilaterais como a OMC - como o Acordo TRIPS, que modificou substancialmente o regime internacional de propriedade intelectual - cuja concepção esteve relacionada ao maior poder de
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uma relação cada vez mais estreita e íntima, em termos sinérgicos, entre a política
externa e outras políticas públicas para o aperfeiçoamento do padrão de inserção
internacional do Brasil.21
Entre estas políticas públicas capazes de reforçar a posição negociadora
brasileira, destaca-se, sem dúvida, a política industrial. Conceituá-la não é tarefa
fácil, e o tema gera profundas divisões entre os economistas (ERBER, 2002a, p.
637). Aqui, se trata da “ação do Estado que visa, explicitamente, alterar o
comportamento das empresas industriais” (ibid, p. 638), sendo duas características
enfatizadas nesta definição. Em primeiro lugar, o objeto da política que são
apenas as empresas industriais. Em segundo, a intencionalidade da política. Ficam
excluídas as medidas de política que são dirigidas a diversos setores, mesmo que
entre estes se inclua a indústria. Desta forma, políticas macroeconômicas ou de
constituição de infra-estrutura não fazem parte da política industrial. Apesar de
tais políticas afetarem o desenvolvimento industrial, entende-se que elas são
concebidas com propósitos diversos. Nesse sentido, constituem uma política
industrial implícita (ibid, p. 638).22
negociação e barganha dos países mais desenvolvidos durante a Rodada Uruguai do GATT, entendemos que há ainda uma razoável “margem de manobra” para que os gestores de políticas públicas em países com desenvolvimento relativo como o Brasil definam seu padrão de inserção na economia internacional: ou mais passivo ou mais engajado. Modificar o regime de propriedade intelectual não é uma questão da agenda da política externa brasileira, mas é possível sim decidir qual a posição a tomar em relação ao mesmo: se de mera aceitação e participação acrítica ou de questionamento e aproveitamento de algumas de suas flexibilidades. 21 Em crítica direta às políticas econômicas e administrativas de corte liberalizante que teriam marcado a política nacional desde o Governo Collor (1990-1992), FIORI (2001, p. 285) aponta para a necessidade de remontagem da capacidade estatal de coordenação de políticas públicas e pela democratização dos principais núcleos decisórios do poder público. Estas seriam formas de “resgatar a autonomia interna e resgatar a soberania do próprio Estado” (ibid, p. 285). Nesta entrevista concedida à Folha de São Paulo e reproduzida em livro publicado em 2001, FIORI afirma que, após 10 anos de políticas liberalizantes, a nova realidade se caracterizava pela desnacionalização da economia e pela desestruturação do Estado. Com efeito, na abordagem comparativa das ideias que informaram as políticas públicas de propriedade intelectual durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, críticas como essa são levadas em consideração, a fim de avaliar sua procedência. Analisar a estrutura do Estado no que tange a sua capacidade de coordenação e articulação de políticas públicas durante os dois governos é um dos aspectos mais importantes a salientar na comparação realizada. Para tanto, utilizamo-nos da tradição de pensamento econômico institucionalista. 22 ERBER observa que políticas industriais explícitas e implícitas podem entrar em conflito na medida em que, por exemplo, a Política Industrial possa desejar ampliar investimentos em projetos de longo prazo de maturação e uma forte incerteza na política monetária direciona os investimentos para aplicações financeiras. Nesses casos, as políticas implícitas tendem a ser dominantes. O cenário brasileiro das duas últimas décadas do século XX seria profícuo nestes exemplos. Para o autor, a eficácia da política industrial depende da sua convergência com as políticas industriais implícitas nas demais políticas, notadamente as de natureza macroeconômica (ibid, p. 638-639).
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Outros autores apresentam definições de política industrial. REICH (1982)
define-a como o “conjunto de ações governamentais planejadas para dar apoio a
indústrias que possuem maior potencial exportador e capacidade de criação de
empregos, assim como potencial para auxiliar diretamente a produção de infra-
estrutura”. Já CHANG (1994), frisando o componente seletivo que a política
industrial pode adquirir, descreve-a como as ações governamentais que estimulam
a geração de produção e de capacidade tecnológica em indústrias consideradas
estratégicas para o desenvolvimento nacional. Na mesma linha, PERES & PRIMI
(2009, p. 14) identificam a política industrial como o:
[...] conjunto de instrumentos (essencialmente incentivos, regulações e formas de participação direta na atividade econômica) através do qual o Estado promove o desenvolvimento de atividades econômicas específicas ou de agentes econômicos (ou de um grupo) baseado em prioridades nacionais de desenvolvimento.
Portanto, não há dúvidas de que a política industrial pode ser
compreendida como uma política pública na medida em que exige que o Estado
desempenhe alguma espécie de papel ativo na sua condução. O Estado pode
desempenhar quatro tipos de intervenção no apoio ao desenvolvimento industrial:
a) como regulador, ao estipular níveis de produção e de tarifas para certas
atividades, ou por meio da criação de incentivos fiscais ou subsídios para apoiar
setores industriais; b) como produtor, participando diretamente da atividade
econômica como no caso de empresas estatais; c) como consumidor, assegurando
um mercado para indústrias estratégicas e atividades econômicas por intermédio
de programas públicos de compras governamentais; e, d) como agente financeiro
ou investidor, influenciando o mercado de créditos e promovendo a alocação de
recursos financeiros públicos e privados para projetos industriais considerados
estratégicos por causa do seu impacto na produtividade, ou por sua capacidade de
absorver mão-de-obra (ibid, p. 14).
Considerando que a política industrial é uma política pública, muitos
países, no entanto, não possuem uma política industrial na forma de um plano
consolidado de desenvolvimento industrial (com objetivos, instrumentos e
responsabilidades institucionais explicitadas), mas possuem sim política industrial
de facto que demanda ações governamentais para desenvolver ou fortalecer
atividades específicas. Exemplo destas políticas pode ser encontrado nos Estados
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Unidos, onde a postura do livre mercado exige, pelo menos na retórica, que o
Estado desempenhe papel mínimo na economia. Embora a referência a ações do
governo como “política industrial” seja evitada, fato é que o governo as adota sim,
com o objetivo de dar suporte ao desenvolvimento industrial nacional. É o caso da
legislação Bayh-Dole de 1980 que regula os direitos de propriedade intelectual
associados com inovações surgidas de pesquisas tecnológicas e do
desenvolvimento de atividades em universidades e laboratórios que recebem
fundos federais. A legislação possui cláusula que dá preferência às indústrias da
América do Norte, permitindo licenças exclusivas para inovações patenteadas
somente se a inovação foi produzida nos Estados Unidos. A seleção de empresas
norte-americanas como beneficiárias destas licenças exclusivas – uma ação
alinhada com a estratégia nacional de proteção da competitividade da indústria
nacional – é claramente uma política industrial de facto, mesmo que oficialmente
seja apresentada como uma medida de gestão dos direitos de propriedade
intelectual (ibid, p. 14-15).
Uma vez esclarecidos os aspectos que permitem caracterizar a “política
externa” e a “política industrial” como “políticas públicas”, vale frisar as
diferenças entre as dimensões da “formulação” e da “execução” de políticas.
Procura-se justificar a opção da análise por se concentrar, fundamentalmente, na
“formulação”.
Com efeito, a formulação de políticas é uma preocupação central para
muitos campos de estudo, o que se constata pelo esforço intelectual considerável
empreendido por psicólogos, economistas e cientistas políticos (entre
investigadores de outras disciplinas) que, de diferentes formas, tentam
compreender como e porque determinadas políticas são adotadas (WEBBER &
SMITH, op. cit, p. 49). A formulação de políticas – ou “processo decisório” –
envolve decisões que, algumas vezes, são rotineiras, mas que, por outras, são
imprevistas e inovadoras. No campo da política externa este é um traço presente:
“a monotonia da diplomacia protocolar coexiste com questões que podem ajudar a
determinar o bem estar e mesmo a sobrevivência nacionais” (ibid, p. 49).
Como distinguir então, em termos analíticos, o estudo da formulação da
política externa do estudo de sua execução? O estudo da formulação procura
focar a natureza do processo decisório e dos tomadores de decisão, dentro de um
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contexto em transformação.23 Para WEBBER & SMITH não se pode presumir
que, uma vez que uma decisão foi formulada ela será automaticamente traduzida
em ação, e os resultados destas ações serão fáceis de reconhecer (ibid, p. 79).
Assim é preciso considerar também as ações, os comportamentos e os obstáculos
que se podem se colocar em face dos objetivos preestabelecidos durante a fase de
formulação. São essas ações e comportamentos - e as reações que eles despertam -
que constituem “o fluxo e a substância da política em si” (ibid, p. 80). É essa a
matéria-prima dos estudos que privilegiam a fase de execução da política externa.
Estudos de política industrial também apontam diferentes etapas para a sua
consecução, entre elas as de formulação e de execução. De acordo com PERES &
PRIMI (op. cit, p. 16), o processo da política industrial possui três fases,
vinculadas por um mecanismo de retroalimentação: de concepção e criação (ou de
formulação), de execução e de avaliação (ou de estimação). A primeira fase
consiste no trabalho prévio que é realizado no sentido de criar consenso em torno
de prioridades, essencial se o que se pretende é que a política produza ações e
resultados.24
É exatamente sobre a fase de formulação, comum à política externa e à
política industrial, que a investigação se concentra. O foco recai sobre o processo
decisório de políticas públicas de propriedade intelectual porque o que se
pretende, prioritariamente, é entender as razões de natureza ideacional que
estimularam tomadores de decisão no Governo Luiz Inácio Lula da Silva a
planejar um novo padrão de inserção do Brasil no regime internacional de
propriedade intelectual, em comparação àquele que havia predominado durante o
Governo Fernando Henrique Cardoso. Sem entender como as ideias dos
tomadores de decisão influenciaram no processo de formulação de políticas 23 WEBBER & SMITH esclarecem que a formulação de política externa exige contínua adaptação e refinamento em face da experiência acumulada e das circunstâncias domésticas e internacionais diferenciadas. Assim, o analista de política externa precisa se confrontar com o problema dos níveis de análise e decidir em qual deve se concentrar: se o do sistema internacional, o estatal ou o individual. Além disso, deve enfrentar questões fundamentais como as seguintes: em qual medida a formulação de política externa é predeterminada pelos constrangimentos do sistema internacional? Qual o espaço que existe para a escolha e o livre arbítrio entre os tomadores de decisão? (ibid, p. 50) A premissa que assumimos aqui, reiteramos, é a de que o regime internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS apresenta constrangimentos estruturais de natureza material e ideacional à formulação da política externa brasileira, mas que há espaços relevantes que o Governo Luiz Inácio Lula da Silva soube explorar de maneira mais propositiva e ousada em comparação com o seu antecessor. 24 PERES & PRIMI argumentam que, embora cada fase tenha importância em si, é o todo interligado das três que assegura que os projetos sejam traduzidos em ações e induzam mudanças na produção e nas estruturas sociais. (op.cit, p. 16).
36
públicas de propriedade intelectual, não há como avaliar a forma como elas foram
executadas e, mais ainda, como estimá-las em termos da consecução ou não de
seus objetivos.
Mesmo assim, não obstante o foco da pesquisa esteja concentrado na etapa
de formulação das políticas públicas, optamos por discutir também o início da
etapa de execução, particularmente o processo de reestruturação institucional
empreendido pelo Governo Luiz Inácio Lula da Silva durante a Gestão Roberto
Jaguaribe, no INPI, entre 2004 e 2006. Procura-se caracterizar tal processo de
reestruturação como um dos reflexos iniciais das mudanças observadas na
dimensão ideacional da formulação de políticas públicas de propriedade
intelectual do Governo Luiz Inácio Lula da Silva para o Governo Fernando
Henrique Cardoso, mudanças estas que foram francamente estimuladas por
alterações no perfil ideacional de tomadores de decisão e também por um
processo de aprendizado institucional. Feitas essas considerações preliminares,
passemos agora à apresentação do arcabouço teórico, a começar pela Análise de
Política Externa.
2.2 A Análise de Política Externa e as Relações Internacionais
Ao começar seu artigo com a sugestiva pergunta “Uma teoria sem lar?”,
HOUGHTON (2007) traz à tona uma das principais questões envolvendo a
análise de política externa. Com efeito, o autor demonstra que durante muito
tempo a análise de política externa tem sido uma espécie de “nau à deriva”,
desconexa das principais teorias das relações internacionais (2007, p. 24). Por
vezes, a análise de política externa é identificada nos principais manuais como
uma subárea do liberalismo, ao passo que, por outras, não sem dificuldades,
estudada no campo do realismo (ibid, p. 24.). Apesar disso, CARLSNAES (2005,
p. 331) enfatiza que se há algo sobre o qual os analistas de política externa podem
hoje estar de acordo é que o seu campo de estudo tem estreita relação com o
domínio disciplinar das Relações Internacionais.
Contudo, identificar imediatamente a análise de política externa como
pertencente a qualquer uma das duas mais tradicionais matrizes teóricas das
relações internacionais equivale a ignorar que os analistas de política externa
37
visam justamente, em grande parte, preencher algumas lacunas presentes nos
estudos realistas e liberais. Por essa razão, antes de adentrarmos na análise
propriamente dita de elementos ideacionais na formulação da política externa,
precisamos frisar as limitações das abordagens que privilegiam fatores materiais
como fonte explanatória para a compreensão do comportamento estatal. A
emergência de elementos ideacionais no campo da análise de política externa só
foi possível devido ao amadurecimento de abordagens que se dedicaram a expor
as debilidades da presunção do Estado como ator unitário, racional e com
preferências dadas no que se refere ao seu comportamento no ambiente
internacional (DE MELLO E SILVA, 1998, p. 142).
De acordo com o modelo da escolha racional, os decision makers ordenam
as alternativas de que dispõem, tomam decisões e agem de forma a alcançar os
resultados mais eficientes em termos dos fins perseguidos. Contudo, este processo
não é isento de valores (VIOTTI & KAUPPI, 1998, p. 404). Em primeiro lugar, a
determinação dos objetivos e fins a alcançar envolve, obviamente, escolhas
demarcadas por um processo de significação (ou seja, valores). Segundo, a ideia
de que os meios escolhidos para se alcançar determinados resultados devem ser os
melhores e mais eficientes ou apenas “bons o suficiente” já é, em si, um valor
subjacente ao cálculo de tomada de decisões. Por último, mesmo que os homens
de Estado (principalmente os diplomatas) possam alcançar consenso sobre quais
os valores gerais devem ser perseguidos internacionalmente, pode haver
desacordos genuínos sobre como estes valores serão definidos e implementados
(ibid, pp. 404-405). Em suma, ao contrário do que se poderia presumir, o modelo
racional de tomada de decisões em política externa não é isento de significação,
particularmente se considerarmos o amplo leque de valores perseguidos pelos
negociadores estatais e as diferentes visões acerca de como eles devem ser
definidos e implementados (ibid, p. 405).25
As abordagens de crítica ao modelo racional concentraram-se,
inicialmente, nos estudos sobre processo decisórios, dedicando-se em seguida a 25 Segundo VIOTTI & KAUPPI um bom exemplo se encontra na área temática de direitos humanos (ibid, p. 405). A despeito da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e das convenções que se seguiram, os autores afirmam que tem sido difícil e complexo forjar um consenso entre os governos nacionais em torno dos critérios que devem ser utilizados ao se abordar questões envolvendo direitos humanos como, por exemplo, quais os direitos que devem ser protegidos, a importância ou o peso relativo dos diferentes valores quando entram em conflito e quais os direitos – individuais, de grupos sociais, de classes ou dos Estados – que devem ter prioridade.
38
tentar compreender os mecanismos de cognição e percepção que determinam a
forma como os tomadores de decisão processam informações.26 Em outras
palavras, passou-se a reconhecer que o processamento das informações acerca do
mundo “objetivo” podia ser imperfeito e que se impunha uma mediação entre o
“real” e a mente do indivíduo (DE MELLO E SILVA, op.cit., p. 142). Portanto,
demarcar as diferenças entre as abordagens “materiais e racionalistas” e as
“ideacionais” é tarefa recomendável para justificar nossa opção por uma análise
ideacional de política externa.
2.2.1 Limitações das Principais Abordagens Centradas em Fatores Materiais e no Modelo Racional
Parte dos estudos dedicados à Análise de Política Externa esteve
empenhada em criticar o modelo do ator racional. Em um dos trabalhos
fundadores do campo de estudo, escrito no final dos anos 50, SNYDER, BRUCK
e SAPIN (2002)27 defendem que é preciso desvendar as variáveis que, dentro e
fora do Estado, atuam na formulação das diferentes políticas externas nacionais
(DE MELLO E SILVA, op.cit., p. 142). De acordo com HUDSON (2002, p. 3), a
mais importante contribuição dos autores para as Relações Internacionais foi a de,
já naquele momento, identificar o ponto teórico de interseção entre os
determinantes mais importantes do comportamento estatal: os fatores materiais e
ideacionais. Este ponto de interseção não é, para os autores, o Estado, e sim o
indivíduo ou tomador de decisão. Criticam os autores o que entendem por
“falácia” da sutil transformação do Estado de uma abstração política pertinente em
um símbolo que representa, supostamente, uma entidade concreta – ou seja, um
objeto ou pessoa com existência própria, de forma apartada das pessoas reais e
dos seus comportamentos (ibid, p. 3).
26 Destacam-se, neste cenário, respectivamente, os estudos de Allison (1971) e Jervis (1976). 27 Trata-se da versão do trabalho clássico dos três autores, Foreign Policy Decision-Making, publicado pela primeira vez em 1954, e revisada por Valerie Hudson para esta edição de 2002, a que tivemos acesso. De acordo com HOUGHTON (2007, p. 31), este trabalho representa o primeiro reconhecimento da produção acadêmica de Relações Internacionais, após a Segunda Guerra Mundial, de que os interesses dos atores não podem ser presumidos ou considerados como “predeterminados” ou “dados”.
39
Assim, desde o seu nascedouro, a Análise de Política Externa representa
um desafio ao realismo e a sua presunção do Estado como ator unitário e racional
(HOUGHTON, op. cit, p. 25). Trata-se do que LIMA denomina de “modelo
clássico” (1994, p. 63), segundo o qual “a política externa resulta da operação de
um duplo filtro: as preferências dos Estados e os incentivos e constrangimentos
presentes no ambiente externo” (ibid, p. 63). O que caracteriza este modelo é a
premissa “de que os interesses são relativamente permanentes no tempo” (ibid, p.
63) já que derivam quer de atributos e capacidades que tipificam um Estado –
como território, população, geografia, recursos naturais, materiais e humanos -,
quer da posição ocupada, em reação aos demais, em um ordenamento qualquer de
poder econômico, político ou militar (ibid, p. 63).28
LIMA afirma que é justamente por tratar essas preferências como
resultado de atributos próprios ao Estado e/ou de sua posição em relação aos
demais que, no modelo clássico, o Estado aparece como ator unitário que interage
com outros atores da mesma natureza, ainda que com atributos e posições
diferentes (ibid, p. 63). No que tange à versão estrutural do modelo clássico
(realismo estrutural ou neorrealismo)29, os interesses/preferências do Estado são
deduzidos da distribuição de poder e este busca políticas consistentes com a
configuração particular do sistema internacional (ibid, p. 63).30
28 Além do “modelo clássico”, LIMA (ibid, pp. 63-64) aponta para a existência de mais dois modelos que constituem enfoques básicos para a abordagem da política externa: o “modelo político-social” e o “modelo interativo”. O modelo “político-social”, espécie de antítese do “modelo clássico”, é aquele segundo o qual as preferências externas são sempre endogenamente determinadas. Defende que, tal como ocorre com as demais políticas públicas, a política externa é resultado da dinâmica de alianças e conflitos entre atores governamentais e societais diversos. A referência deste modelo é o já mencionado trabalho de ALLISON (1971) sobre o modelo de política burocrática, formulado em contraposição do modelo do ator unitário. Já o “modelo interativo” é aquele que visa combinar as possibilidades analíticas do modelo “clássico” e do “político-social” e, ao mesmo tempo, superar suas deficiências. Apesar de reservar o âmbito da política externa à ação dos representantes do Estado, inclui, na análise da política externa, os determinantes domésticos como partidos, grupos de interesses, legisladores e forças sociais. Enfatiza as interconexões da política internacional com a política doméstica. A maior referência deste modelo é o também já mencionado modelo do jogo de dois níveis de PUTNAM (1988). O pressuposto do ator racional, contudo, não é desafiado também nestes dois modelos. 29 Como forma de caracterizar este “modelo clássico”, LIMA afirma que o fato de essas preferências serem endógena ou exogenamente derivadas é menos importante do que o tratamento do Estado como unidade indivisível de decisão, que busca maximizar seus interesses em um contexto restringido quer pela ação dos outros Estados, quer pela interação dos mesmos. Assim, o modelo clássico de LIMA inclui autores como Hans Morgenthau, Kenneth Waltz e Stephen Krasner, não obstante as diferenças entre as suas respectivas abordagens (ibid, p. 63). 30 Há um evidente contraste entre as presunções dos adeptos do realismo estrutural (neorrealistas) e os da análise de política externa. Os neorrealistas defendem que os Estados (atores fundamentais) agem sempre com base num cálculo racional de auto-interesse, ao passo que para os analistas de política externa as elites (estas sim, os atores fundamentais) atuam com base na sua “definição de
40
Segundo a tradição realista, os Estados calculam seus interesses sempre
em termos de poder – entendido como a habilidade que um deles possui de
influenciar outros e os recursos aplicados no exercício desta influência. A noção
de imutabilidade da natureza humana proposta pelo realismo clássico derivaria de
uma visão conservadora da filosofia política e teria dificuldades de se ajustar a
aproximações mais críveis e convincentes sobre os seres humanos trazidas para o
campo da análise de política externa por cognitivistas (HOUGHTON, op. cit, p.
25) que privilegiam a construção de significados e fatores ideacionais e enfatizam
a subjetividade e a dificuldade de previsibilidade, inerentes ao comportamento dos
atores envolvidos no processo de tomada de decisões (fundamentalmente os
indivíduos e as elites envolvidas no processo decisório).31
A associação que pode se buscar estabelecer entre Análise de Política
Externa e o institucionalismo liberal, também é problemática. Da mesma forma
que o neorrealismo, o institucionalismo liberal privilegia o sistema internacional
como gerador de comportamento entre os Estados, ao passo que a Análise de
Política Externa persiste na importância de fatores e atores que atuam no nível das
unidades, para a compreensão e explicação do comportamento estatal. A diferença
básica entre o institucionalismo liberal e o neorrealismo é que os adeptos da
primeira corrente questionam a máxima de que os Estados só agem com o
objetivo de maximizar poder. O sistema internacional pode facilitar ou inibir o
fluxo de informações, desta forma afetando o comportamento dos atores e sua
habilidade para cooperar uns com os outros (KEOHANE, 1986). Adicionalmente,
o institucionalismo liberal compartilha com o realismo (clássico e estrutural) da
presunção do ator racional como ponto de partida: os atores agem sempre de
forma autointeressada e procurando maximizar sua utilidade, sujeitos a
constrangimentos.
É na crítica ao pressuposto racionalista, comum ao (neo) realismo e ao
institucionalismo liberal, que reside o ponto-chave para a compreensão da
proeminência recente que o estudo do impacto das ideias sobre a formação das situação”. Para o neorrealista, a política externa é compreendida como a busca derradeira por segurança no mundo anárquico, enquanto que para o estudioso de política externa é considerada um conjunto de tarefas para a solução de problemas. Enquanto para o neorrealista o poder é a “moeda de troca”, para o analista de política externa o que mais conta é a informação. Finalmente, enquanto que para o neorrealista a estrutura do sistema internacional determina o comportamento do Estado, para o analista de política externa ela é uma mera arena para a ação (HOUGHTON, op. cit, p. 25). 31 Ressalve-se, novamente, o caráter precursor do trabalho de JERVIS (1976).
41
políticas adquiriu nas Relações Internacionais, sobretudo na Análise de Política
Externa. HILL (2003, p. 97) assinala que o conceito de racionalidade é um dos
problemas mais centrais e difíceis em todas as ciências sociais e que qualquer
tentativa de compreender ou prescrever ações não podem fazer mais do que
cálculos com base naquele, já que representa apenas um tipo-ideal tanto para a
tomada de decisões individual, como para a coletiva (2003, p. 97). Abordagens
que privilegiam a escolha racional enfrentaram críticas por parte daqueles
resistentes à concepção de que a política é bem explicada em termos das
interações entre atores que agem egoisticamente e que continuadamente fazem
cálculos sobre o quanto suas preferências serão atendidas por determinado evento.
GOLDSTEIN e KEOHANE (1993, op. cit, p. 5) frisam que mesmo os analistas
racionalistas de política internacional reconhecem que a presunção de
racionalidade é mais uma simplificação teórica útil da realidade do que um
verdadeiro reflexo dela.
Por conta disso, a literatura desenvolveu e sofisticou cada vez mais
abordagens para tratar dos elementos cognitivos que incidem sobre a formulação
de políticas. Conceitos diversos foram formulados – como os de “imagens”,
“mapas cognitivos”, “sistema de crenças”, “códigos operacionais” e “lições do
passado” – todos com a preocupação central de compreender a “brecha” existente
entre a realidade, supostamente “objetiva”, do ambiente operacional e a
representação “subjetiva” na mente do tomador de decisão. A esse conjunto de
abordagens, a literatura costuma se referir como abordagem cognitiva ou
psicológica das Relações Internacionais (DE MELLO E SILVA, op. cit, p. 143).
Vejamos, pois, como, a partir da crítica cognitiva ao modelo do ator racional, o
conceito de “ideia” impregnou-se na Análise de Política Externa.
2.2 As Ideias na Formulação da Política Externa
É no contexto de questionamento das limitações dos modelos racionalistas
que se deve compreender como as ideias alcançaram importância na agenda de
pesquisa das Relações Internacionais. Estudiosos da área se sentiram cada vez
mais motivados a examinar o efeito das ideias na política externa, especialmente
através do esforço para conectá-las causalmente às políticas que elas parecem
42
justificar e, em troca, examinar qual o seu impacto sobre a política externa e,
assim, sobre a ação estatal. A argumentação dessas abordagens é a de que a
explicação da ação política em termos de atores racionais maximizando uma
função utilitária baseada em interesses materiais não dá conta dos
comportamentos observáveis dos atores estatais. Tanto quanto os interesses, as
ideias são importantes para a explicação da política externa (LAFFEY e
WELDES, 1997, p. 193-194).
Discorremos agora sobre as duas correntes teóricas que informam a
pesquisa, no que tange ao estudo das ideias: o “institucionalismo racional” de
GOLDSTEIN e KEOHANE (1993) e o “institucionalismo histórico” de HALL
(1989), SIKKINK (1991; 1997) e FINNMORE (1997)32. Com ambas, apesar de
uma ligeira inclinação pela segunda, pretendemos analisar a influência das ideias
sobre o processo decisório de políticas públicas.
Da abordagem de GOLDSTEIN e KEOHANE, compartilhamos do
objetivo de não querer sugerir uma teoria para a criação das ideias ou um modelo
explicativo para justificar o processo por intermédio do qual determinadas ideias
são selecionadas, mas sim de querer entender as diferentes formas por meio das
quais as ideias possuem potencial de afetar os eventos políticos (1993, op. cit, p.
12).
Já a opção pelo institucionalismo histórico, com o aproveitamento de
insights tomados do institucionalismo racional, aproxima a pesquisa do campo de
estudos que HASECLEVER ET AL (1997) denominam de “cognitivismo
brando”.33 Cognitivistas brandos partilham de algumas presunções. A primeira
delas é a de que entre as estruturas internacionais e a volição humana repousa a
interpretação. Antes que as escolhas sejam feitas, as circunstâncias devem ser
conhecidas e os interesses identificados. Por seu turno, a interpretação depende do
conhecimento que os atores detêm num determinado momento e lugar (ou como
preferem se referir alguns dos cognitivistas brandos, de suas ideias). É este corpo
de conhecimento (ou de ideias) que molda a percepção da realidade e informa os 32 Apesar de conferirmos mais destaque aos autores mencionados, outros, como MC NAMARA (1998), também são comentados. 33 Ver também FINNEMORE e SIKKINK (2001, p. 45). Vale frisar que embora o institucionalismo racional de KEOHANE e GOLDSTEIN seja colocado por estas autoras na mesma categoria de cognitivismo brando em que incluem o institucionalismo histórico de HALL, há diferenças substanciais na forma como cada uma dessas abordagens lida com o papel que as ideias desempenham na formulação de políticas. São justamente estas diferenças que justificam nossa maior inclinação pelo institucionalismo histórico.
43
tomadores de decisão a respeito dos vínculos entre causas e efeitos e, desta forma,
entre meios e fins. Para os cognitivistas brandos, interesses não podem ser
tratados como dados; ao contrário, as preferências dos atores devem ser vistas e
tratadas analiticamente como contingenciais em relação à forma como os atores
compreendem o mundo social e natural. (ibid, p. 140)
Outra presunção é a de que os tomadores de decisão demandam de forma
crescente de informações científicas e de conhecimento confiável. Em virtude da
natureza cada vez mais técnica das questões internacionais, eles experimentam
incertezas duradouras sobre os seus interesses e como atendê-los. As inovações
tecnológicas desvalorizaram estratégias tradicionais de ação e as mudanças sociais
redefinem os parâmetros das relações internacionais. Nesta concepção, os atores
estatais não são apenas perseguidores de poder e riqueza, mas também redutores
de incerteza.34 De forma a fazer escolhas inteligentes diante de situações não
muito familiares, os tomadores de decisão necessitam de informação de alta
qualidade e de conselhos especializados, de expertise. Assim, aqueles que estão
em posição de fornecer o conhecimento desejável em termos ideacionais podem
exercer influência considerável no processo decisório.35
34 Ao tratarmos nos capítulo 5 e 6 da política externa brasileira de propriedade intelectual, sublinhamos a possibilidade de caracterizar o regime internacional como uma arena social para a ação que propicia oportunidade de aprendizado social para os tomadores de decisão brasileiros desde a celebração do Acordo TRIPS. Mas este aspecto é insuficiente de nosso ponto de vista por ignorar outra faceta do regime: o do papel reservado ao poder, aqui enfatizado de um prisma cognitivo, sem ignorar a existência de sua face material. Entendemos que, apesar das ideias terem papel proeminente para auxiliar a explicar mudanças na formulação da política externa brasileira de propriedade intelectual do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, não se pode menosprezar a existência de estruturas materiais e ideacionais de dominação presentes no regime e relativamente estáveis desde 1995. Assim, a forma como o Brasil formula sua política externa em relação ao regime internacional de propriedade intelectual (como define seu padrão de inserção internacional neste caso) esbarra em alguns constrangimentos estruturais. A diferença do Governo Lula em relação ao seu antecessor é uma posição mais crítica e menos passiva em relação a estas limitações, mudança esta que deriva em grande parte de variações ideacionais. Não há pretensão por parte dos formuladores da política externa brasileira de modificar o regime, mas sim de buscar uma inserção mais ativa que permita ao Brasil interferir mais na elaboração de suas regras e normas. 35 Trabalhamos neste ponto de uma perspectiva institucional, sem ignorar as muitas possibilidades oferecidas pelo estudo das comunidades epistêmicas (HAAS, 1995). As instituições podem exercer papel importante ao fornecer este conhecimento especializado e técnico aos tomadores de decisão, sendo em alguns casos impregnadas de ideias que estimulam mudanças organizacionais profundas com o objetivo de empowerment. É o que ocorre de forma cada vez mais habitual na participação do INPI na formulação da política externa brasileira de propriedade intelectual. Vale dizer que reconhecemos que o aprendizado social desde o fim da Rodada Uruguai e celebração do Acordo TRIPS nas negociações dos temas de propriedade intelectual é fator relevante para entender a trajetória da formulação da política externa brasileira de propriedade intelectual desde então. Isto não invalida, no entanto, o argumento de que, no campo das ideias, mudanças importantes se processaram do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Lula. Enquanto a noção de aprendizado social nas negociações internacionais nos estimula a pensar em termos de
44
A caracterização da literatura das ideias no campo da análise de política
externa (institucionalismo racional) e da economia política comparada
(institucionalismo histórico) como “cognitivismo brando” torna necessário
esclarecer qual a fronteira teórica da pesquisa. Com efeito, a literatura enfatizada
aqui não se identifica com a do “cognitivismo forte”, “virada sociológica”,
“construtivismo social” ou simplesmente “construtivismo”. Não são consideradas
algumas proposições centrais do construtivismo como, por exemplo, a noção de
agência – a de que os seres humanos, os agentes, não existem de forma isolada
das estruturas que eles criam e que, portanto, para entender as mudanças na
realidade social é necessário aceitar que agentes e estruturas são mutuamente
constituídos (co-constituição). A variável explicativa central é ideacional (o papel
das ideias), com todas as repercussões analíticas e teóricas que ela implica. O
trabalho de HOUGHTON (2007) é bastante ilustrativo no sentido de demonstrar
as diferenças entre as abordagens cognitivas e o construtivismo.36 Mais do que
isto, o autor demonstra as possibilidades de colaboração entre as duas tradições de
pesquisa e indica as formas pelas quais o construtivismo pode auxiliar na
revitalização da análise de política externa (ibid, p. 33-43).37 Sem ignorar os
aportes deste e de outros trabalhos38, mantém-se a matriz exclusivamente
ideacional.
2.2.1 Ideias e o “Institucionalismo Racional” de GOLDSTEIN e KEOHANE
Entre os estudos dedicados a compreender o impacto das ideias na
formulação de políticas, destaca-se, sem dúvida, o trabalho de GOLDSTEIN E
KEOHANE (1993). BLYTH (1997, p. 239) o qualifica como “a tentativa mais
bem elaborada de incorporar as ideias dentro de um programa de pesquisa
continuidade e evolução, a perspectiva das ideias econômicas nos leva inevitavelmente a pensar em mudança. É este último aspecto que desejamos frisar. 36 Neste artigo, a distinção que é feita entre cognitivismo e construtivismo assemelha-se a que HASENCLEVER ET AL (2001) demarcam respectivamente entre “cognitivismo brando” e “cognitivismo forte”. 37 Algumas das sugestões do autor inspiraram indicações para pesquisas futuras, que apresentamos em nossas considerações finais. 38 Sobre as possibilidades de diálogo entre o construtivismo e a economia política internacional, ver BRAND (2007). No que se refere ao diálogo entre o construtivismo e a Análise de Política Externa, recomendamos a leitura de KUBÁLKOVA (2001).
45
racionalista e institucional”. Os autores sugerem que as ideias, compreendidas
somo “crenças sustentadas pelos indivíduos” (ibid, p. 3) exercem um efeito causal
independente sobre a política, mesmo quando os seres humanos se comportam
racionalmente para atingir seus objetivos (ibid, p. 5). Ancorados nesta premissa
racional, admitem que as ações levadas adiante pelos diferentes seres humanos
dependem da qualidade substantiva das ideias disponíveis, uma vez que estas
ideias ajudam a esclarecer princípios e concepções sobre relações causais, e a
coordenar o comportamento individual (ibid, p. 5). As ideias podem influenciar a
política ao oferecer mapas que ampliam a clareza dos atores sobre os seus
objetivos, ao afetar resultados de situações estratégicas em que não há um único
equilíbrio e ao se encerrarem nestas instituições, situação em que são capazes de
generalizar padrões de comportamento (ibid, p. 8).
Além de discorrer sobre as três formas por intermédio das quais as ideias
podem influenciar a política, GOLDSTEIN & KEOHANE (ibid, p. 8-11) afirmam
que elas podem ser de três tipos: a) “visões de mundo”, que são aquelas que
definem o universo de possibilidades de ação no seu nível mais fundamental e
afetam a vida social de múltiplas formas ao longo do tempo, como ocorre, por
exemplo, com as maiores religiões do mundo e a concepção westfaliana de
soberania39; b) “crenças sobre princípios” que remetem a ideias normativas que
especificam critérios para a distinção entre o certo e o errado e atuam como
mediadoras entre as visões de mundo e conclusões políticas particulares,
traduzindo doutrinas fundamentais em guias para a ação humana
contemporânea40; c) “crenças causais”, que se referem a relações de causa e efeito
que derivam da autoridade do consenso compartilhado de elites reconhecidas
(como cientistas ou líderes espirituais)41.
39 GOLDSTEIN & KEOHANE esclarecem que as visões de mundo são concepções de possibilidades que se encerram no simbolismo de uma cultura e que afetam profundamente modos de pensar e o discurso. Elas se entrelaçam às concepções das pessoas acerca de suas identidades, evocando emoções profundas e lealdades (ibid, p. 8). 40 Visões como a de que “a escravidão é errada” e em favor da “liberdade de discurso” são exemplos que os autores fornecem de crenças sobre princípios. Apesar dos que lutaram pelo fim da escravidão terem, muitas vezes, justificado seus argumentos com base no cristianismo, o fato é que a cristandade tolerou a escravidão durante quase dois milênios. Enfim, foi necessário que crenças sobre princípios, entendidos como ideias normativas, se cristalizassem para que a mediação entre a visão de mundo cristã e a ação humana se modificasse em prol do combate à escravidão (ibid, p. 9). 41 GOLDSTEIN & KEOHANE afirmam que as crenças causais fornecem guias para os indivíduos sobre como atingir seus objetivos. A queda do regime da Hungria em 1989 demonstrou aos povos da Alemanha Oriental e da Tchecoslováquia que protestos de massa pacíficos poderiam derrubar
46
A partir dessa perspectiva, as ideias podem funcionar como “mapas de
estrada” (road maps) quando vemos a política como uma arena em que os atores
enfrentam incertezas sobre os seus interesses e como maximizá-los. As ideias
servem então ao propósito de guiar o comportamento sobre condições de incerteza
ao estipular padrões causais ou fornecendo convincentes motivações éticas ou
morais para a ação. As novas ideias podem levar – se não imediatamente – a uma
mudança significativa na própria constituição dos interesses: isto pode acontecer
quando um conjunto existente de ideias é desacreditado pelos eventos ou quando
uma nova ideia é simplesmente tão convincente que cativa a atenção de um amplo
raio de atores. (ibid, p. 16)
As ideias podem atuar também, para GOLDSTEIN & KEOHANE, como
pontos focais. Do ponto de vista da teoria dos jogos, as ideias podem ser
importantes porque não é possível fazer predições sobre os diferentes resultados
somente por meio do exame de interesses e das interações estratégicas. As ideias
sustentadas pelos diferentes players são a “chave” para o resultado de um jogo.
Não são somente constrangimentos e oportunidades que guiam a ação: os
indivíduos confiam nas suas crenças e expectativas quando fazem escolhas dentro
de um escopo de diferentes resultados potenciais. Neste contexto, o papel que as
ideias desempenham é o de atenuar problemas de coordenação que brotam da
ausência de uma solução única de equilíbrio (ibid. p. 17-18).
As ideias importam ainda de uma terceira forma. Independentemente de
como um conjunto particular de crenças pode vir a influenciar a política, a
utilização dessas ideias ao longo do tempo implica em mudanças nas regras e
normas existentes. As ideias podem ter uma influência duradoura na política
quando elas logram se incorporar no debate político. Contudo, o impacto do
mesmo conjunto de ideais pode ser mediado pela atuação das instituições nas
quais as ideais se impregnam. Quando as ideias conseguem afetar o desenho
organizacional das instituições, sua influência será refletida nos incentivos àqueles
na organização cujos interesses são atendidos por elas.42 Em geral, quando as
governos repressivos de longa duração. Sob tais condições, a eficácia da ação individual depende do apoio de muitos outros, e assim, da existência de crenças sobre princípios compartilhadas. Enfim, “crenças causais implicam em estratégias para alcançar certos objetivos, valorados em função de crenças sobre princípios, e compreendidos somente dentro do contexto de visões de mundo amplas” (ibid, p. 10). 42 Interessante notar que os autores fazem questão de afirmar que as ideias podem afetar as instituições políticas, o que, obviamente, implica na possibilidade de não afetarem de nenhuma
47
instituições intervêm, o impacto das ideias pode ser prolongado por décadas e até
gerações. Instituições políticas exercem uma função mediadora entre as ideias e os
acontecimentos políticos. Embora a institucionalização possa refletir o poder de
alguma ideia, sua existência também pode refletir os interesses dos que detém
mais poder. Mas mesmo neste caso, os interesses que promoveram algum estatuto
podem desaparecer ao longo do tempo, ao passo que as ideias encapsuladas nas
instituições podem continuar influenciando a política. Significa dizer que as ideias
institucionalizadas podem continuar a exercer efeito apesar de não mais presentes
circunstâncias materiais de poder que determinaram sua impregnação
institucional. Não é possível explicar sua resistência e aceitação somente com
base nas configurações contemporâneas de interesses e poder.43 (ibid, p. 20-21).
Apesar do trabalho de GOLDSTEIN & KEOHANE ter o mérito de
reivindicar que tanto as ideias como os interesses têm importância para a
explicação da política externa, é importante salientar que não desafia a premissa
de que os indivíduos atuam racionalmente. Os autores dão mais importância às
ideias do que as abordagens estritamente materialistas, mas se limitam a mostrar
que a existência de anomalias empíricas pode ser resolvida quando ideias são
consideradas. WENDT demonstra que a perspectiva dos autores trata as ideias
apenas como variáveis intervenientes entre o binômio poder/interesse e os
forma. Vai ser em outra obra, Internationalization and Domestic Politics, escrita em parceria com Helen Milner, que Robert Keohane vai detalhar melhor possíveis comportamentos refratários ou resistentes das instituições políticas domésticas. Neste caso, a preocupação, contudo, é com os efeitos, sobre as instituições, da internacionalização da economia, compreendida como “processos gerados por mudanças subjacentes nos custos de transação que produzem fluxos observáveis de bens, serviços e capitais” (MILNER & KEOHANE, 1996, p. 4). Embora nesta obra a proposta dos autores seja bem diferente da de GOLDSTEIN & KEOHANE - a de medir impactos da economia mundial (de uma perspectiva material) sobre as instituições domésticas -, isto não invalida a propriedade de observar que a tipologia de possíveis “reações institucionais” naquela é mais completa, já que os autores admitem três diferentes efeitos que a internacionalização pode exercer sobre as instituições: bloquear os sinais de preço internacionais (ibid, p. 251-253), congelar as coalizões e as políticas (ibid, p. 253-254) e canalizar respostas às mudanças (ibid, p. 254-255). Como se pretende demonstrar mais adiante, por intermédio da caracterização do regime internacional de propriedade intelectual como uma variável de natureza estrutural – material e ideacional –, nossa abordagem, embora exclusivamente concentrada em demonstrar a influência das ideias na formulação das políticas, não ignora por completo as forças estruturais que podem igualmente afetá-las. Assim, a tipologia mais detalhada de MILNER & KEOHANE oferece sim insights interessantes para examinar porque o INPI não passou por mudanças organizacionais relevantes durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, apesar delas se mostrarem urgentes e necessárias para que o Instituto pudesse desempenhar melhor sua função institucional. 43 Este efeito particular das ideias, presente na análise de GOLDSTEIN & KEOHANE, de gerar padrões de comportamento quando elas se impregnam nas instituições, será importante para efeito da análise que realizamos do INPI como exemplo ilustrativo de instituição que, desde 2004, assimila e encerra as ideias (neo)desenvolvimentistas do Governo Luiz Inácio Lula da Silva, no âmbito da política externa de propriedade intelectual e da política industrial.
48
resultados políticos. Poder e interesse representam os fatores explicativos mais
relevantes, e a abordagem concentra-se em examinar os efeitos das ideias, mas
não o seu processo de constituição (1999, p. 19).
Os próprios GOLDSTEIN & KEOHANE se encarregam de deixar seus
propósitos bem claros ao distinguir sua abordagem de outras abordagens
cognitivas. Admitem explicitamente que estas demonstraram de modo
convincente que as pessoas processam informações de forma que se distanciam
significantemente do tipo-ideal de racionalidade e reconhecem que cientistas
políticos utilizaram-se fartamente de insights psicológicos para construir uma
literatura substancial que enfatiza como o processo cognitivo afeta as escolhas em
política externa. Contudo, embora as abordagens cognitivas certamente se
preocupem com ideias, uma vez que investigam crenças de indivíduos sobre a
realidade social que identificam possibilidades para a ação e refletem princípios
morais e relações causais específicas, os autores fazem questão de esclarecer que
estão preocupados não com as implicações da interpretação que os cognitivistas
conferem à realidade social, mas com outra faceta do papel das ideias: o impacto
de crenças específicas, compartilhadas por um amplo número de pessoas, sobre a
natureza dos seus mundos com implicações para a ação humana. O foco então é
no impacto de crenças específicas, não na relação entre as crenças e a realidade
objetiva. Os autores pretendem explicar não as raízes das ideias; restringem-se
apenas aos seus efeitos. (GOLDSTEIN e KEOHANE, op. cit, p. 6-7).
A perspectiva do “institucionalismo racional” de GOLDSTEIN &
KEOHANE é exemplo contundente de como o estudo das ideias afetou o campo
da análise de política externa. Mesmo assim, a proposta de “virada ideacional”
não esteve imune a algumas críticas. Partindo da concepção das ideias como
“crenças compartilhadas por indivíduos”, LAFFEY & WELDES criticam a
confusão conceitual existente na literatura em relação às ideias e a tendência de
igualá-las a categorias como “percepções” “ideologias” e outras semelhantes que
são empregadas de forma intercambiável (1997, op. cit, p. 197). Os autores
destacam dois aspectos em particular que enxergam como deficientes na análise
da influência das ideias na política externa. O primeiro deles é o de que a
literatura ideacional, embora se apresente como uma alternativa ao domínio das
perspectivas racionais nas relações internacionais e na política externa reproduz
muitos aspectos centrais deste modelo que pretende criticar. Em segundo lugar (e,
49
para os autores, mais importante), a retenção da estrutura racional teve
consequências significativas e problemáticas para a forma como a ideias são
conceituadas (ibid p. 194). Tais problemas derivam da concepção implícita nesta
literatura de tratar as ideias como “objetos”. Esta concepção e suas consequências
para a compreensão do que as ideias são se manifesta em ao menos três
características das análises racionais – em primeiro lugar, as ideias e os interesses
são tratados, mesmo pelos maiores expoentes desta literatura, como variáveis
explanatórias rivais e separadas; em segundo lugar, presume-se que as ideias
possuem efeitos causais no sentido “neo-positivista” da palavra; e terceiro, as
ideias são definidas, ao menos explicitamente, como posses individuais, e
habitualmente como “crenças” ou “crenças compartilhadas”44 (ibid, p. 193-194).
No que tange à separação de ideias e interesses como categorias rivais e
separadas, SIKKINK, em seu estudo sobre a influência das ideais
desenvolvimentistas na Argentina e no Brasil (1991, op. cit, p. 5), reconhece que:
[...] a separação entre ideias e interesses é fundamentalmente falha. Fatores políticos e ideológicos influenciam o verdadeiro significado e a interpretação das ideias e recomendações econômicas. À exceção de sua forma mais crua, a compreensão e a formulação de fatos e interesses implicam na existência de um aparato conceitual. Conceber as ideias como justificativas intelectuais de ações que as pessoas querem tomar de qualquer forma é obscurecer o papel da ideias ao auxiliar as pessoas a compreender, formular e comunicar realidades sociais.45
Em seguida, SIKKINK argumenta que, para efeitos analíticos, pode ser
útil tentar separar inicialmente ideias e interesses e discutir se a política pode ser
entendida primeiramente com base em interesses plausivelmente inferidos dos
atores centrais, ou se é necessário conhecer mais sobre a existência e o conteúdo
das ideias para compreender os acontecimentos políticos (ibid, p. 6). Já
JACOBSEN (1995) aponta para o imbróglio de natureza teórica e metodológica
que deriva do argumento-base de que o poder das ideias explica a sua aceitação. 44 JACOBSEN (1995, p. 2) ao estudar a importância dos fatores cognitivos na economia política, ressalta a importância de excluir idiossincrasias ou crenças particulares de lideranças individuais como explicações aceitáveis. Não obstante, defende-se aqui que atributos pessoais de tomadores de decisão podem sim conferir maior persuasão às ideias. A liderança figura, pois, como uma variável interveniente relevante, de natureza cognitiva. 45 Tradução livre do original: [...] the separation of ideas and interests is fundamentally flawed. Political and ideological factors influence the very meaning and interpretation of economic ideas and recommendations. Except in its crudest form, the comprehension and formulation of facts and interests implies the existence of a conceptual apparatus. To conceive of ideas as intellectual justifications of actions that people wanted to take anyway is to obscure the role of ideas in helping people grasp, formulate, and communicate social realities.
50
Este argumento necessita demonstrar “que interesses são interpenetrados por
ideias, para então demonstrar que essas mesmas ideias exercem uma influência
‘não contaminada’ pelos interesses que, como demonstrado previamente, elas
interpenetram” (DE MELLO E SILVA, op. cit, p. 145). Ideias e interesses só
podem ser concebidas como entidades separadas de um ponto de vista analítico, e
não empírico (JACOBSEN, op. cit, p. 10). As ideias representam suplemento
valioso para as análises racionais, mas não as substituem. Significa dizer que,
embora se deva reconhecer o papel proeminente das ideias na formulação de
políticas, esta teoria é mais uma forma de complementar do que de superar ou
substituir teorias baseadas no interesse (ibid, p. 5).46
Para LAFFEY & WELDES (1997, op. cit, p. 200) a tentativa de distinção
conceitual entre ‘ideias’ e ‘interesses’ tem duas importantes consequências. A
primeira diz respeito a não considerar a forma como os interesses são socialmente
construídos. Em resposta à pergunta “de onde os interesses vêm”, análises
ideacionais tendem a responder implicitamente que eles são determinados
independentemente de, e previamente, à aplicação das ideias (ibid, p. 200).
Pressupõe-se, por mero arbítrio analítico, que os interesses são dados e podem ser
tratados de forma não-ideacional.
A outra consequência é a tendência de compreender as ideias como meras
ferramentas que são utilizadas pelos tomadores de decisão para lidar com
diferentes audiências como as elites internacionais e as burocracias públicas. Se,
de fato, os interesses dos tomadores de decisão são definidos como analiticamente
distintos das ideias, então as ideias são consideradas meras justificativas ou
racionalizações a posteriori das políticas formuladas com base em interesses
materiais que já estão dados (ibid, p. 201). Assim, autores como JACOBSEN (op.
cit, p. 10) e SIKKINK (1993, p. 162) propõem pensar em “ideias” e “interesses”
não como categorias separadas, mas como um cluster em que ambas são
indissociáveis.
Como afirma SIKKINK (1991, op. cit, p. 243):
As ideais são as lentes, sem as quais nenhum entendimento dos interesses é possível. As ideias transformam as percepções dos interesses. As ideias sobre a
46 JACOBSEN alerta para o risco de se perder a noção quanto à dimensão dos fatores materiais que podem auxiliar para o sucesso de uma ideia, quando ela é tratada como um fetiche. Esta tendência seria endêmica às abordagens ideacionais (ibid, p. 5).
51
economia e a política estão presentes desde o início no verdadeiro processo de formulação de interesse, moldando não só as percepções dos atores sobre as possibilidades, mas também seus entendimentos sobre os seus próprios interesses.47
Quanto à concepção neo-positiva de causalidade que informa a literatura
ideacional, LAFFEY & WELDES (1997, op. cit, p. 204) criticam o fato de que,
nesta concepção, a causalidade só pode ser inferida quando há uma mudança
observável na variável dependente (a política) que seja plausivelmente vinculada à
co-variação entre a mudança política e as ‘ideias’ dos tomadores de decisão.
‘Política’ e ‘ideias’ são tratadas como entidades individualizadas. De forma a
reivindicar que existe uma relação causal entre estas entidades, é necessário
demonstrar que as duas variáveis co-variaram, vale dizer, que quando a variável
independente (ideias) adquire um novo valor, a variável dependente (a política)
também muda. Os autores criticam a concepção da causalidade como lógica e
defendem uma concepção de causalidade generativa e relacional: “reivindicações
causais referem-se aos ‘poderes causais’ dos agentes sociais, que são conferidos
àqueles agentes pelas estruturas sociais e relações que os constitui”48 (apud
WELDES, 1989).
No que se refere à caracterização das ideias como “posses individuais”,
“crenças” ou “crenças compartilhadas”, LAFFEY & WELDES (1997, op. cit, p.
205) constroem sua crítica a partir da observação inicial de que há uma notável
incongruência entre as ideias como “crenças compartilhadas” (ou eventos
mentais) e como ferramentas ou implementos (externas aos indivíduos). Não fica
claro como os dois significados podem ser conciliados. Na concepção das ideias
como “crenças compartilhadas”, encontra-se embutido o entendimento de que elas
são, de certa forma, públicas, externas e separáveis dos indivíduos e, portanto,
podem ser utilizadas como “armas” (ibid, p. 206). Mas o que significaria “portar
uma crença compartilhada”? A implicação é pouco plausível para as “crenças”
comumente compreendidas como internas aos indivíduos. LAFFEY & WELDES
crêem que as ambiguidades terminológicas envolvendo as ideias são sintomáticas
47 Tradução livre: Ideas are the lens, without which no understanding of interests is possible. Ideas transform perceptions of interests. Ideas about economics and about politics are present from the beginning in the very process of formulating interests, shaping not only actors´ perceptions of possibilities but also their understandings of their own interests. 48 Tradução livre do original: Causal claims refer to the ‘causal powers’ of social agents, which are conferred on those agents by the social structures and relations that constitute them.
52
da dificuldade em tratar de um fenômeno social em termos individualistas (ibid, p.
206). Ressaltam que tais incoerências derivam de uma concepção implícita na
maior parte das análises ideacionais: a das ideias como commodities. Significa
dizer que elas são tratadas como se fossem mercadorias fornecidas pelos
empreendedores políticos no ‘mercado político’ em resposta às ‘demandas’, e
então ‘circulam’ no meio deste ‘mercado’ para serem ‘vendidas’ e ‘consumidas’
(ibid, p. 207). As ideias são tratadas como “objetos concretos” que podem
influenciar causalmente outros objetos, no caso, a formulação de políticas. Enfim,
entendidas como commodities, as ideias apenas “causam”, elas não constituem ou
definem os interesses.
LAFFEY & WELDES frisam que a plausibilidade do entendimento das
ideias como ‘objetos’ ou ‘commmodities’ deriva do conjunto mais difundido de
entendimentos e analogias presentes na “metáfora do conduite” (conduit
metaphor) que seria dominante na cultura anglo-saxã de estudo da teoria das
comunicações (ibid, p. 208). A “metáfora do conduite” vislumbra as ideias como
objetos capazes de serem traduzidos em palavras, de forma que a linguagem é um
mero “contêiner” para as ideias. Estas são transmitidas por meio de palavras por
intermédio de um ‘conduite’, um canal de comunicação com outra pessoa, que
extrai as ideias das palavras. Dois aspectos dessa metáfora são relevantes para a
“metáfora das ideias como commodities”: as ideias construídas como objetos; e as
ideias como que existindo de forma separável das pessoas (ibid, p. 208).
A proposta de LAFFEY & WELDES é a de conceber as ideias como
“tecnologias simbólicas”, definidas como “sistemas intersubjetivos de
representações e práticas produtivas de representações” (ibid, p. 209). Os autores
sugerem que as ideias são parte de um conjunto mais amplo de práticas
linguísticas e simbólicas e que esta visão permite repensá-las como formas de
ação social, intersubjetivamente constituídas. A noção de “tecnologias
simbólicas” enfatiza os sistemas de representação – metaforicamente,
‘maquinários’, ‘aparatos’ ou ‘implementos’ simbólicos – que se desenvolveram
em circunstâncias espaço-temporais e culturais específicas e tornam possível a
articulação e a circulação de conjuntos de significado mais ou menos coerentes
sobre um objeto em particular. Conceituar as ideais como “tecnologias
simbólicas” permitiria escapar dos problemas associados a definir as ideias como
‘objetos físicos’ (sejam commodities ou outra coisa) ou como ‘coleções de
53
crenças individuais’ (ibid, p. 210). As ideias são apresentadas então como “formas
compartilhadas de práticas, conjuntos de capacidades com os quais as pessoas
podem construir significados sobre si, seu mundo e suas atividades” (ibid, p. 210).
A metáfora das “tecnologias simbólicas” demonstraria o caráter social das ideias
ao propor o abandono do conceito das ideais como ‘crenças’ e sugerir o foco em
‘práticas’, e também ao demonstrar que as ideias não podem ser consideradas
separadas de interesses, mas, ao contrário, constitutivas dos mesmos (ibid, p.
211).
Atentando-se para este conjunto de críticas de LAFFEY & WELDES, é
preciso reconhecer seus méritos ao demonstrar algumas das principais limitações
explicativas das abordagens ideacionais. No que tange ao marco teórico de
referência que pretendemos adotar para a análise das políticas públicas brasileiras
de propriedade intelectual nos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz
Inácio Lula da Silva, são necessários alguns esclarecimentos.
Em primeiro lugar, pretendemos trabalhar com a linguagem como mera
transmissora de ideias que, por sua vez, consideram-se como passíveis de
apreensão das mentes de tomadores de decisão. Não atribuímos à linguagem
nenhum caráter constitutivo nas relações sociais.49 Segundo, as ideias são
propositadamente tratadas a partir de uma perspectiva preponderantemente causal,
como que exercendo influência sobre o processo decisório de formulação de
políticas públicas de propriedade intelectual. Afinal, não se trata de exaurir
explicações com base nas ideias, apenas de demonstrar como a perspectiva
ideacional contribui para a compreensão de mudanças recentes na formulação de
políticas públicas brasileiras de propriedade intelectual.
Não obstante, um aspecto da abordagem de LAFFEY & WELDES merece
ser explorado, ainda que mais na forma de insights que a pesquisa pretende
aproveitar do que na de opção teórica propriamente dita: o da implicação da
concepção das ideais como “tecnologias simbólicas” para as relações sociais de
poder (ibid, p. 210). De acordo com LAFFEY & WELDES, não basta admitir que
as ideias podem ser “sustentadas” ou “utilizadas” pelos mais poderosos ou que
elas são habitualmente adotadas em razão de sua utilidade para interesses
poderosos. As tecnologias simbólicas “são em si formas de poder em função da
49 Como restará demonstrado no capítulo metodológico, a linguagem recebe tratamento como mera transmissora de ideias.
54
capacidade de produzir representações”. Dependendo das circunstâncias do seu
emprego, práticas representacionais podem ter efeitos ideológicos diversos e
aparentemente contraditórios (ibid, p. 210).
Essa concepção das ideias como formas de poder capazes de produzir
representações permite conclusões interessantes para a caracterização do regime
internacional de propriedade intelectual como um ambiente ideacional de natureza
estrutural de constante embate e tensão entre duas “ideias-força”: a do
neoliberalismo/rentismo e a do desenvolvimento.50 Permite ainda caracterizar o
“neoliberalismo/rentismo” e o “desenvolvimento” (e o “novo desenvolvimento”)
não somente como ideias econômicas que influenciaram e influenciam a
formulação de políticas públicas de propriedade intelectual no Brasil, mas
também como representações com efeitos ideológicos diversos. Entre eles,
podemos mencionar o da disseminação do argumento, por força das ideias
neoliberais/rentistas, de que a elevação dos patamares nacionais de proteção dos
direitos de propriedade intelectual constitui caminho necessário para se atingir o
“Eldorado” do clube seleto dos países mais desenvolvidos.51
A “virada ideacional” não esteve restrita, contudo, à Análise de Política
Externa. Repercutiu também em áreas co-relacionadas como a das Políticas
Comparadas, resultando no que se convencionou chamar de “institucionalismo
histórico”. Como veremos, não somente na crítica do institucionalismo racional,
mas também no institucionalismo histórico, há um “lugar reservado para o poder”
do ponto de vista teórico e analítico. Voltamo-nos agora para as características
mais amplas desta escola de pensamento econômico.
2.3 O “Institucionalismo Histórico”: características gerais
Ao discorrer sobre o trabalho de GOLDSTEIN e KEOHANE (1993),
FINNEMORE e SIKKINK (2001, p. 402) afirmam que ele deve ser
compreendido como uma tentativa de compatibilizar os efeitos das ideias com
abordagens utilitaristas – as ideias como “mapas de estrada” e “pontos focais” que
50 Com a assinatura do Acordo TRIPS, entende-se que a segunda foi amplamente sobrepujada pela primeira. Esta discussão é realizada no capítulo 4. 51 Tais efeitos são mencionados no mesmo capítulo 4.
55
auxiliam atores que maximizam utilidades a atingir seus objetivos de forma mais
efetiva. As autoras enxergam semelhanças entre este trabalho e as pesquisas no
campo das políticas comparadas em economia política (ibid, p. 402), em especial
o institucionalismo histórico de HALL (1989), SIKKINK (1991; 1997) e
FINNEMORE (1997).
Por seu turno, BLYTH (1997) critica o institucionalismo histórico ao
afirmar que ele não representa um exame sério acerca do papel das ideias no
campo da economia política: assim como o institucionalismo racional, o
institucionalismo histórico trataria das ideias de forma instrumental e funcional,
como meras extensões progressivas dos seus programas de pesquisa. A crítica do
autor se concentra na tendência das duas abordagens institucionalistas em
caracterizar ideias como meros “excedentes” ou “enchimentos” que sustentam os
programas de pesquisa já existentes, ao invés de tratá-las como objeto de
investigação em seus próprios termos (ibid, p. 229).
Discordamos aqui da crítica de BLYTH, por entendermos que o
institucionalismo histórico logra escapar da armadilha conceitual e analítica
apontada e que GOLDSTEIN & KEOHANE (1993) fazem questão de não
enfrentar. A partir deste momento, vemos como, discorrendo sobre as suas
características gerais.
De acordo com HALL & TAYLOR (1996, p. 6), os institucionalistas
históricos enxergam a organização institucional da política e da economia política
como o fator principal que estrutura o comportamento coletivo e gera distintos
acontecimentos. As instituições são definidas como “os procedimentos, rotinas,
normas e convenções formais e informais encerradas na estrutura organizacional
da política e da economia política” (ibid, p. 6).
Os autores discorrem sobre aquelas que seriam as quatro principais
características distintivas do institucionalismo histórico em relação a outras
abordagens institucionalistas, como o institucionalismo da escolha racional e o
sociológico.52 Tratam-se das seguintes: 1) compreende a relação entre instituições
e comportamento dos atores em termos amplos; 2) enfatiza as assimetrias de
poder relacionadas com a operacionalização e o desenvolvimento das instituições;
3) tende a ter uma visão do desenvolvimento institucional que enfatiza as noções
52 Ver também MISI (2003).
56
de path dependence e das consequências não intencionais; e, 4) procura incorporar
à análise institucional outros fatores, tais como as ideias, e compreender como
elas afetam os eventos políticos (ibid, p. 7). HALL & TAYLOR refletem sobre
cada uma dessas características.
A questão colocada inicialmente é: como as instituições afetam o
comportamento dos indivíduos? Afinal de contas, é por intermédio das ações dos
indivíduos que as instituições exercem efeito sobre os acontecimentos políticos.
De acordo com a literatura institucionalista, haveria duas formas de se responder a
essa pergunta: por intermédio da “abordagem do cálculo” e da “abordagem
cultural”. Cada uma delas oferece respostas bem diferentes às seguintes perguntas:
como os atores se comportam? O que as instituições fazem? Por que as
instituições persistem ao longo do tempo? (ibid, p. 7).
Em relação à primeira questão, os adeptos da “abordagem do cálculo”
destacam aqueles aspectos do comportamento humano que seriam instrumentais e
baseados em cálculos estratégicos. Indivíduos procuram maximizar o alcance de
um conjunto de objetivos e comportam-se estrategicamente, o que significa que
podem avaliar todas as opções possíveis e selecionar aquelas que estão de acordo
com o seu máximo benefício. As preferências e os objetivos dos atores são dados
de forma exógena à análise institucional (ibid, p. 7).
Quanto à pergunta seguinte, acerca do que as instituições fazem, os
partidários da “abordagem do cálculo” entendem que as instituições afetam o
comportamento ao abastecer os atores com maior ou menor grau de certeza sobre
o comportamento presente e futuro de outros atores. Enfim, as instituições afetam
a ação individual ao alterar as expectativas que um ator tem sobre as ações que os
outros estão propensos a tomar em resposta ou simultaneamente à sua própria
ação. A interação estratégica desempenha, portanto, papel central (ibid, p. 7).
As duas questões mencionadas merecem outro tratamento por parte da
“abordagem cultural”. Em relação à primeira, defendemos que o comportamento
dos indivíduos não é completamente estratégico, mas também demarcado por suas
“visões de mundo”. Significa dizer que, sem procurar negar que o comportamento
humano é racional, a “abordagem cultural” enfatiza a extensão por meio da qual
os indivíduos se voltam para rotinas estabelecidas ou padrões familiares de
comportamento para atingir os seus objetivos. A escolha de um curso de ação por
57
um indivíduo depende da sua interpretação mais do que de um cálculo puramente
instrumental (ibid, p. 7-8).
Quanto ao que as instituições fazem, a “abordagem cultural” sustenta que
as instituições fornecem modelos cognitivos para a interpretação e a ação. O
indivíduo é visto como alguém mergulhado em um mundo de instituições,
compostas de símbolos, scripts e rotinas, que oferecem os filtros tanto sobre si
quanto sobre a situação, fora dos quais um curso de ação é construído.
Entendemos que as instituições não somente fornecem informações
estrategicamente úteis, como também afetam as identidades, autoimagens e as
preferências dos atores (ibid, p. 8).
No que se refere às razões dos padrões regulares de comportamento
associados com as instituições terem continuidade ao longo do tempo, a
“abordagem do cálculo” defende que os indivíduos aderem a tais padrões porque
se desviar dos mesmos pode representar algo mais prejudicial do que a adesão.
Em outras palavras, quanto mais uma instituição contribui para a resolução dos
problemas de ação coletiva ou quanto mais ganhos resultantes desta troca ela traz,
mais robusta (sólida) ela será (ibid, p.8). Por outro lado, a “abordagem cultural”
explica a persistência das instituições frisando que muitas das convenções
associadas com as instituições sociais não podem ser consideradas, de plano,
objetos explícitos da escolha individual. Algumas instituições, ao contrário, são
construções coletivas bastante difíceis de serem transformadas por qualquer único
indivíduo. As instituições resistem a serem redesenhadas porque elas estruturam
as verdadeiras escolhas sobre reforma que o indivíduo está propenso a fazer (ibid,
p. 8).
Um traço característico do institucionalismo histórico é o seu ecletismo:
seus adeptos se utilizam de ambas as abordagens – “do cálculo” e “cultural” –
para refletir sobre as relações entre as instituições e a ação. Ao mesmo tempo em
que procuram considerar como os indivíduos maximizam os seus interesses, com
base na estratégia do cálculo racional, sugerem que as estratégias induzidas por
um determinado ambiente institucional podem se solidificar ao longo do tempo
em visões de mundo (ou ideias) que são difundidas por organizações formais e
que, em última instância, também moldam as autoimagens e as preferências dos
atores envolvidos (ibid, p. 9).
58
A segunda característica distintiva do institucionalismo histórico é a do
papel proeminente conferido ao poder e às relações assimétricas de poder em suas
análises:
[...] institucionalistas históricos tem atentado especialmente para a forma pela qual as instituições distribuem poder desigualmente entre grupos sociais. Ao invés de postar cenários de indivíduos “livre-contratantes”, estão mais propensos a aceitar um mundo em que as instituições conferem a alguns grupos de interesse acessos desproporcionais aos canais de tomada de decisões[...]. (ibid, p. 9)
Em interessante estudo sobre mudanças no campo das ideias econômicas,
observadas na CEPAL durante a década de 80, SIKKINK afirma que qualquer
análise sobre transformação ideacional não pode deixar de reconhecer que o poder
claramente desempenha um importante papel (1997, op. cit, p. 236-237). De
acordo com a autora, mudanças de política econômica nos países em
desenvolvimento normalmente implicam em mais coerção externa do que nos
países mais desenvolvidos, porque as decisões dos atores econômicos externos
(notadamente as organizações financeiras internacionais como o FMI e o Banco
Mundial) exercem efeitos mais poderosos em economias mais vulneráveis (ibid,
p. 237). Contudo, mesmo que reconheçamos que a atuação das organizações
financeiras internacionais é vital para a compreensão da adoção de políticas
econômicas neoliberais na América Latina a partir da década de 80, não podemos
atribuir tais mudanças apenas a variáveis externas, correndo-se o risco de omitir
uma parte importante da história (ibid, p. 237).53
No que se refere à preocupação em discutir a relação entre poder e ideias,
é interessante notar como os institucionalistas históricos guardam, neste ponto em
particular, presunções próximas às dos autores que FINNEMORE & SIKKINK
denominam de “construtivistas críticos” (2001, op. cit, p. 398). Os construtivistas
críticos, embora compartilhem das características centrais atribuídas a todos os
construtivistas, são mais céticos quanto à possibilidade de estabelecer uma relação
de autonomia entre as ideias e o poder. Inspirados nos estudos da teoria crítica
social de Anthony Giddens, Jurgen Habermas e Michel Foucault, os
construtivistas críticos acreditam que as construções sociais podem refletir,
53 Da mesma forma, pode-se afirmar que, embora o regime internacional de propriedade intelectual represente uma variável externa estrutural relevante, isto não obstou que se operassem mudanças ideacionais importantes no campo da política externa brasileira de propriedade intelectual.
59
decretar e reificar relações de poder, considerando que certos grupos poderosos
desempenham um papel privilegiado no processo de construção social. Assim, é
necessário desmascarar estas estruturas ideacionais de dominação para facilitar a
imaginação de mundos alternativos. Desse modo, os construtivistas críticos
atribuem às ideias um papel autônomo mais fraco porque elas são vistas como
estreitamente vinculadas às relações materiais de poder.54
Atentamos para estas aproximações entre os institucionalistas históricos e
construtivistas críticos porque compartilhamos aqui da presunção de que ideias e
poder não são entidades conceituais facilmente separáveis. Enfim, o poder
material certamente existe e possui relevância, mas o poder institucional e
normativo não pode ser considerado menos fundamental. Na realidade, o poder
material só adquire eficácia quando ele opera com o suporte de instituições e
valores.55 Este entendimento é fundamental, por exemplo, para compreender o
regime internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS. Instituições
como a OMC foram criadas e valores rentistas (caros à ortodoxia neoliberal)
54 Entre os construtivistas críticos, podemos destacar o estudo de WELDES (1996) sobre a crise dos mísseis em Cuba. A autora argumenta que a crise foi uma construção social forjada por oficiais do Governo dos Estados Unidos de forma a reafirmar sua identidade como líder do “mundo livre”. 55 As limitações da tradição realista, na sua forma estrutural, no que tange à compreensão do poder como restrito exclusivamente a uma dimensão material são expostas no diagnóstico elaborado por Cox: “o neorealismo confere destaque aos Estados reduzidos a sua dimensão de força material e similarmente reduz a estrutura da ordem mundial à balança de poder como uma configuração de forças materiais. O neorealismo tende a atribuir pouco valor aos aspectos normativos e institucionais da ordem mundial” (Cox, 1986, p. 1551). É em razão deste diagnóstico que Cox considera como uma das três forças inter-relacionadas presentes em seu modelo dialético de estruturas históricas, as ideias (as outras duas são as instituições e as capabilities materiais), entendidas como “significados intersubjetivos ou aquelas noções compartilhadas sobre a natureza das relações sociais que tendem a perpetuar hábitos e expectativas de comportamento”. (ibid, p. 1548) As ideias podem ser também “diferentes imagens coletivas da ordem social sustentadas por diferentes grupos de pessoas”. (ibid, p. 1548). Já as instituições são definidas como “amálgamas particulares das idéias e do poder material que por outro lado influenciam o desenvolvimento das idéias e das capabilities materiais”. (ibid, p. 1549) Estas são descritas por Cox como “possibilidades produtivas e destrutivas” (ibid, p. 1548) que “em sua forma dinâmica existem como capabilities organizacionais e tecnológicas e, na sua forma acumulada, como recursos naturais que a tecnologia pode transformar, estoques de equipamentos (indústrias e armamentos) e a riqueza que pode comandar tudo isso” (ibid, p. 1548). Obviamente, sem riqueza, não se pode comandar a produção, mas, para Cox, a capacidade de investir não decorre da mera detenção de dinheiro, mas também de conhecimento (Cox, 1986, p. 1560). Daí a importância da relação dialética das ideias com as demais forças porque também é a partir delas que o desenvolvimento de novas tecnologias, por exemplo, se torna possível (Cox, 1986, p. 1560). Enfim, o poder material não é ignorado por Cox. Contudo, não é a única força social presente para explicar as mudanças na ordem mundial. As instituições são amálgamas do poder material e das ideias e interagem de forma recíproca com estas e as capabilities materiais. Seria reducionismo procurar explicar as mudanças na história somente a partir de uma dimensão meramente material do poder.
60
acerca da propriedade intelectual afirmados de forma a conferir suporte ao poder
material dos países mais desenvolvidos, detentores de tecnologia e conhecimento
avançados.
De volta às características centrais do institucionalismo histórico, a terceira
delas refere-se à perspectiva de “desenvolvimento histórico” de seus adeptos,
convictos proponentes de uma noção de causalidade social path dependence, no
sentido de que rejeitam o postulado tradicional de que as mesmas forças
operativas irão sempre gerar os mesmos resultados em todo lugar, em favor da
visão de que os efeitos dessas forças são filtrados pelas características contextuais
de uma determinada situação, habitualmente herdadas do passado. Entre tais
características, reputamos as mais significativas como sendo institucionais em sua
natureza. As instituições são vistas como características persistentes do cenário
histórico e um dos fatores centrais responsáveis por impulsionar o
desenvolvimento histórico ao longo de um conjunto de diferentes vias ou rotas –
paths (HALL & TAYLOR, 1996, op. cit, p. 9).
A existência de path-dependence, aceita pelos institucionalistas históricos,
expressa, portanto, o caráter irreversível e histórico de qualquer sistema social que
é estudado (MOREIRA & HERSCOVICI, 2006, p. 551). O passado é irrevogável,
o que significa que ele não pode ser reproduzido com exatidão, uma vez que as
condições iniciais não são mais as mesmas; o futuro, por sua vez, atém-se ao
imaginário dos agentes: ele não existe ex ante (ibid, p. 551).
Finalmente, a quarta e última das características gerais do
institucionalismo histórico é a de que, apesar de conferirem atenção ao papel das
instituições na vida política, seus adeptos raramente defendem que elas sejam a
única força causal na política. Eles procuram situar as instituições numa cadeia
causal capaz de contemplar papéis relevantes para outros fatores, notadamente o
desenvolvimento socioeconômico e a difusão de ideias (HALL & TAYLOR, op.
cit, p. 10).
É este último aspecto central na abordagem do institucionalismo histórico
que enfatizamos agora. Com efeito, FINNEMORE & SIKKINK (op. cit, p. 405)
destacam que, provavelmente, a mais desenvolvida abordagem da literatura
cognitiva seja justamente a literatura ideacional, especificamente a que se
desenvolveu no campo da Economia Política Comparada para explicar a
61
influência das ideias econômicas no processo decisório econômico.56 Segundo as
autoras (ibid, p. 405), as questões centrais objetos de reflexão desta corrente
seriam as seguintes: a) Como novas ideias emergem e ganham proeminência? b)
Como as ideias se institucionalizam e adquirem uma vida própria? c) Como,
porque e quando novas ideias importam, em qualquer circunstância em particular?
Na mesma linha de raciocínio, AKERLOF & SHILLER defendem que não
é possível compreender como a economia funciona sem prestar a devida atenção
aos padrões de pensamento que movem as ideias e os sentimentos das pessoas – o
que os autores chamam de animal spirits (2009, p. 1). O livro dos autores
apresenta um exercício complexo de psicologia aplicada aos estudos econômicos
que visa demonstrar que a crise financeira global de 2008 deve e só pode ser
explicada a partir da aceitação da premissa de que as pessoas não se comportam
apenas racionalmente na perseguição dos seus interesses. Os animal spirits devem
ser levados também em consideração (ibid, p. 3).
A unidade de análise dos trabalhos ideacionais pode ser tanto o indivíduo,
quanto comunidades de indivíduos que compartilham ideias comuns, ou ainda
instituições nas quais as ideias se encerram. Tal literatura se interessa pelos
processos por meio dos quais ideias inicialmente sustentadas por um pequeno
grupo de pessoas (em geral, uma escola de economistas) tornam-se amplamente
defendidas (intersubjetivas). (ibid, p. 406) 57
Um traço em comum dos mesmos trabalhos ideacionais é o de tentar
demonstrar que novas ideias habitualmente emergem em resposta a crises, falhas
ou choques políticos dramáticos, quando políticas passadas comprovadamente
falharam na resolução de problemas, levando à busca de novas concepções que
sirvam de anteparo para as novas políticas (ibid, p. 406). Esta relação entre
crise/falha e a adoção de novas ideias pode ser observada em diferentes países e
períodos históricos. Entre os tipos de crise ou falha mais substanciais estão as
grandes depressões e as guerras. Contudo, embora crises e falhas possam explicar
porque determinadas ideias perdem influência, são insuficientes para explicar
56 Entre os que podem ser mencionados como pertencentes a esta escola, estão os já mencionados trabalhos de HALL (1989), SIKKINK (1991; 1997), FINNEMORE (1997), JACOBSEN (1995), BLYTH (1997) e McNAMARA (1998). 57 Neste aspecto em particular, a literatura ideacional do campo da Economia Política Comparada se aproxima do pensamento construtivista, uma vez que parte dela sustenta que os interesses dos atores são mais construídos por ideias compartilhadas do que presumidos por natureza (ibid, p. 406).
62
porque novos modelos econômicos são aceitos (ibid, p. 406). O que explicaria
então que novas ideias sejam aceitas e adotadas na formulação de políticas?
Ao tentar explicar a cooperação monetária europeia verificada a partir de
metade dos anos 70 e início dos anos 80, McNAMARA (1998) frisa que o
consenso político neoliberal que elevou a perseguição de inflação em detrimento
do crescimento e do emprego instalou-se entre as elites políticas, resultando
eventualmente na convergência descendente das taxas de inflação. Este consenso
político, por sua vez, resultou na redefinição dos interesses estatais em prol da
cooperação, induzindo líderes políticos a aceitar os ajustes políticos domésticos
necessários a permanecer no sistema monetário europeu (ibid, p. 3).
Mas o que explicaria o consenso político neoliberal ter sido tão importante
para o sistema monetário europeu? De onde surgiu este consenso e quais foram
suas fundações políticas? A autora propõe responder a estas perguntas explorando
a interação entre a economia internacional em transformação, em que os fluxos de
capitais cresceram de forma exponencial e os processos domésticos de tomada de
decisões, especificamente as crenças de líderes políticos. Assim, tanto as
transformações na estrutura da economia política internacional quanto os fatores
ideacionais que moldaram as respostas dos tomadores de decisão às mudanças
estruturais são cruciais para conhecer a trajetória da integração monetária europeia
(ibid, p. 3-4).
Assim, para compreender a evolução do sistema monetário europeu não
basta olhar para o nível de análise internacional. É preciso se concentrar também
no processo de tomada de decisões, particularmente em como as elites políticas
medem os custos e benefícios da cooperação monetária dentro do contexto
econômico internacional em transformação (ibid, p. 4). As ideias58 sustentadas
pelos líderes políticos sobre a política macroeconômica são consideradas
fundamentais para explicar o caminho escolhido pelos Estados europeus e para
onde devem se direcionar no futuro. Os atores políticos se utilizam das ideias para
valorar os custos e benefícios da cooperação monetária e escolher uma estratégia
política. Enfim, eles se valem das ideias para apresentar respostas às perguntas
sobre valores e estratégias, como, por exemplo: Quais devem ser os objetivos da
58 McNAMARA adota o conceito de GOLDSTEIN & KEOHANE (1993), das ideias como “crenças causais compartilhadas” (ibid, p. 4).
63
política monetária europeia? Quais os instrumentos que podem ser utilizados na
busca destes objetivos? (ibid, p. 5).
De forma, então, a explicar porque as ideias econômicas neoliberais
triunfaram na arena política europeia, tornando a cooperação monetária mais
provável, McNAMARA apresenta três fatores que entende como essenciais para
responder não só a esta problemática enunciada, como também para compreender
de que forma determinadas ideias se tornam dominantes em certos momentos
históricos, enquanto outras são deixadas de lado: o processo de falha política, a
inovação do paradigma político e a emulação política (ibid, p. 5). Em primeiro
lugar, a sensação de crise política que acompanhou os governos europeus após a
primeira crise do petróleo teria estimulado a busca de alternativas às políticas
keynesianas e criado espaço para novas concepções do papel do governo na
macroeconomia. Segundo, as teorias monetaristas teriam funcionado como
estruturas legitimadoras de uma nova estratégia econômica que tornou a política
anti-inflacionária prioridade, em detrimento dos objetivos de crescimento e
emprego. Finalmente, o sucesso da então Alemanha Ocidental na adoção de uma
política monetária que enfatizava uma moeda forte e estável forneceu aos
tomadores de decisão um poderoso exemplo para emular (ibid, p. 5-6). Ou seja, a
“vontade de outros governos europeus de seguir o exemplo alemão aumentou as
chances de coesão do sistema monetário europeu, porque o marco alemão serviria
de âncora” (ibid, p. 6).
Nota-se que McNAMARA procura preencher a lacuna deixada pela
explicação das “falhas” ou “crises” políticas – satisfatória para entender por que
algumas ideais caem no ostracismo, mas insuficiente para compreender por que
novas ideias emergem, oferecendo um modelo explicativo suplementar que
introduz as noções de “inovação do paradigma político” e “emulação política”.
Embora a abordagem da autora seja interessante e válida, interessou-nos aqui
analisar mais a fundo como outro autor lida com a mesma questão teórica. Com
efeito, o suplemento oferecido por HALL (1989) às noções simples e opostas de
“falha” e “sucesso” é a noção de “persuasão”. Para HALL, o que tornaria uma
ideia persuasiva seria a forma como ela se relaciona aos problemas políticos e
econômicos do momento. Tanto o “sucesso” quanto a “falha” são interpretados
em termos do que é percebido como os problemas mais prementes que um país
enfrenta em um determinado momento (FINNEMORE & SIKKINK, op. cit, p.
64
406). O argumento de HALL alinha-se a uma premissa central desta pesquisa: que
a aceitação de qualquer ideia econômica depende de um bem sucedido e elegante
exercício de retórica e de uma boa capacidade de convencimento.
2.3.1 Peter Hall e o Poder de Persuasão das Ideias Econômicas
Para HALL (1989), no mundo da economia, em que os interesses materiais
e os fluxos monetários tendem a predominar, propor um livro sobre o papel das
ideias pode parecer pouco ortodoxo. Negligenciar o papel das ideias na economia
política, contudo, significa perder de vista um importante componente dos
mundos político e econômico. São as ideias, na forma de teorias econômicas e das
políticas desenvolvidas a partir delas, que permitem aos líderes59 escolher um
curso em momentos de turbulência econômica e formar convencimento sobre o
que é eficiente, expediente e justo de forma a motivar o movimento de uma linha
política para outra. (ibid., p. 361).
HALL reconhece que através dos tempos a política tem sido
tradicionalmente vista como uma luta pelo poder, uma contenda em torno de
recursos escassos que recorrentemente leva a conflitos em razão do desejo de
domínio desses mesmos recursos. Mas, sem querer contestar este postulado,
afirma que a política é muito mais do que isso; ela é também um processo através
do qual os ideais básicos e a identidade de uma nação são definidos, de forma a
tentar controlar os problemas coletivos que assolam as sociedades. Por isso as
ideias são importantes (ibid, p. 389)
Como esclarece o autor, os ensaios que compõem a obra The Political
Power of Economic Ideas: keynesianism across nations, se destinam a fornecer
um relato detalhado da recepção conferida pelas nações mais industrializadas do
mundo às ideias de Keynes e revêem o processo pelo qual estas ideias se tornaram
um componente importante da política. Embora a noção de um “Estado
keynesiano” ou de uma “Era keynesiana” seja comumente empregada para se
referir às práticas econômicas associadas com a administração da economia 59 É uma tônica na análise de HALL o destaque conferido às lideranças no processo de tomada de decisões. É por esta e outras razões que restarão explicadas que a variável “liderança” também figura como importante no nosso marco teórico de referência. Veremos que esta é uma tônica de boa parte das abordagens do institucionalismo histórico.
65
capitalista no período que se seguiu após a Segunda Guerra Mundial, os ensaios
presentes no livro descrevem o processo através do qual uma teoria econômica em
particular adquiriu múltiplos significados em arenas econômicas de diferentes
nações (ibid., p. 3-4).
HALL demarca os três principais objetivos do trabalho.60 Entre eles,
interessa-nos aqui, particularmente, o terceiro: o de “explorar a forma pela qual o
keynesianismo, como um conjunto geral de ideias simbólicas, tornou-se um
componente dos compromissos políticos que estruturaram a economia política do
mundo após a Segunda Guerra” (ibid., p. 7). De fato, muitas das conclusões do
estudo de Hall, no que se refere ao keynesianismo como um conjunto geral de
ideias simbólicas, pode ser transporto para outros conjuntos de ideias econômicas,
como, no nosso caso, o da ortodoxia neoliberal e o do “novo
desenvolvimentismo”.61
Para poder atingir os objetivos propostos, HALL afirma que é necessário
um esforço no sentido de desenvolver um aparato teórico adequado. Desta forma,
constrói uma tipologia de variáveis explicativas sobre a influência do
keynesianismo na adoção de políticas econômicas nacionais. As abordagens que o
autor sugere, com base na revisão da literatura presente nos ensaios, são de três
tipos: 1) “centrada na economia”; 2) “centrada no Estado”; e, 3) “centrada em
coalizões”. É possível que duas ou três delas coexistam, da mesma forma que
cada uma pode incorporar elementos da outra. No entanto, para efeito analítico,
HALL se dedica a explicar cada uma, na forma de “tipos ideais” (ibid, p. 7-8).
No caso da abordagem centrada na economia, ela lida com o problema da
aceitação de políticas fundamentalmente como uma questão de explicar a
influência que determinadas ideias econômicas alcançam entre membros da
profissão de economistas. Esta abordagem contém um modelo implícito de
processo decisório que privilegia o papel dos economistas profissionais e enfatiza
o impacto na política dos conselheiros especializados. Um conjunto de fatores
especialmente significativo na abordagem centrada na economia é o que se refere
60 O primeiro objetivo é o de explicar a vontade dos governos de se engajar em gastos com déficits durante os anos 30 ou lidar com demandas anticíclicas durante o pós-Segunda Guerra. O segundo é o de traçar e dar conta da influência relativa das ideias keynesianas nas políticas de cada nação (ibid, p. 7). Estados Unidos, Grã-Bretanha, Japão, Itália e a antiga República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental) são algumas das nações estudadas. 61 O conceito de ideias econômicas é explicado mais à frente, quando tratarmos da abordagem de SIKKINK (1992).
66
aos parâmetros institucionais que estruturam a comunicação entre os economistas
e a comunicação destes com os tomadores de decisão. Em qualquer nação, isto
deve incluir, entre outros fatores, a abertura das autoridades públicas ao
aconselhamento e ao pessoal oriundos de centros acadêmicos da economia e a
influência relativa de economistas profissionais no processo de tomada de
decisões do governo (ibid, p. 8-9). Este aspecto, da influência de economistas
profissionais no processo decisório de políticas públicas é fundamental para
compreender mudanças ideacionais na formulação da política externa de
propriedade intelectual e da política industrial, do Governo Fernando Henrique
Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da Silva. Em cada um deles, o grau de
influência da academia, de conselheiros e da tecnocracia econômicas (com seus
diferentes perfis) na concepção da política externa de propriedade intelectual e da
política industrial, foi bem distinto.
HALL afirma que a abordagem centrada na economia possui uma grande
virtude e uma grande debilidade. Sua virtude é chamar nossa atenção para as
qualidades das ideias em si, pois sugere que elas podem ter persuasão62 e, assim,
dinamismo político próprio. Deve-se frisar, contudo, que a persuasão de um novo
conjunto de ideias econômicas é sempre relacional, significa dizer, depende não
somente das ideias em si, mas da forma com que se encaixam com outras ideias,
incluídas as teorias econômicas existentes e as observações da economia mundial
contemporânea (ibid, p. 9-10). Deduzimos daí que não há como esperar que a
tentativa de revitalização de uma ideia econômica, como a do desenvolvimento,
faça com que ela possa voltar a se manifestar e influenciar na formulação de
políticas públicas da mesma forma que no passado.63 As novas circunstâncias da
economia internacional e os embates e diálogos com as demais correntes - como,
principalmente, o pensamento econômico neoliberal, predominante durante toda a
década de 90 – levaram a inevitáveis readequações e readaptações.64
62 No caso da formulação da política externa de propriedade intelectual, e da política industrial – com atenção para a reestruturação do INPI -, cremos que fator importante que contribuiu para mudanças no campo das ideias do Governo Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva foi não somente o caráter persuasório das ideias em si, mas também (decisivamente) os perfis de determinadas lideranças individuais. Daí a liderança ingressar como variável interveniente na análise. O argumento desenvolvido é o de que lideranças, com seus atributos pessoais, auxiliam a conferir maior persuasão às ideias. 63 Referimo-nos aqui especificamente ao estruturalismo cepalino, dominante na América Latina entre os anos 50 e 70. 64 Nota-se neste ponto a noção de path dependence. Por isto nos referirmos a um “novo desenvolvimentismo”. Outros motivos para esta terminologia são explicitados mais adiante.
67
A abordagem centrada na economia pode ser considerada problemática,
por atribuir demasiada influência dos profissionais da economia sobre a política.65
HALL admite que mesmo em nações em que os economistas estiveram
fortemente envolvidos no processo político, teorias econômicas foram com
frequência apenas mais uma entre as tantas considerações determinantes para a
política (ibid, p. 10). Não obstante, não há como não se atentar a este aspecto, por
ser uma característica marcante do processo decisório de políticas públicas no
Brasil, de Fernando Collor de Mello a Fernando Henrique Cardoso, o
protagonismo alcançado por tecnocracias econômicas de perfil neoliberal na
formulação de políticas públicas, com repercussões tanto sobre a política externa
quanto sobre a política industrial.
A abordagem centrada no Estado é a segunda das sugeridas por HALL.
Ela sugere que a recepção em relação a novas ideias econômicas será influenciada
pela configuração institucional do Estado e a existência anterior de políticas
relacionadas. Na esfera de formulação de políticas, espera-se que a abertura
relativa das instituições do processo decisório aos conselhos de economistas que
não integram o aparato estatal afete a velocidade com que as considerações da
teoria econômica podem ser incorporadas à política e que as distorções
administrativas implícitas nas divisões institucionais de responsabilidades dentro
do Estado irão condicionar a receptividade das agências centrais às novas ideias.
Alguns Estados irão deter a capacidade burocrática para empreender um novo
programa bem rapidamente, enquanto outros que não a detém poderão hesitar a
aceitá-lo (ibid, p. 11).
HALL entende que a abordagem centrada no Estado tem o mérito de
fornecer um conjunto de ferramentas para explicar variações na receptividade
conferida às ideias econômicas (no caso, keynesianas) em cada um das nações
estudadas. O autor sugere que tais variações podem ser explicadas em referência à
configuração institucional dos instrumentos de formulação de políticas de um
Estado e aos precedentes relevantes acumulados de políticas econômicas
anteriores66 (ibid, p. 12).
65 Para um breve histórico do papel crescente que os economistas assumiram no âmbito da Administração Pública, a partir da Segunda Guerra Mundial, ver BACKHOUSE (2007, p. 339-341). 66 Nota-se aqui uma semelhança com o fator da emulação, presente em McNAMARA (1998).
68
Contudo, a abordagem centrada no Estado guarda também algumas
ressalvas. Para o autor, a visão Estado-cêntrica privilegia o papel dos oficiais, das
burocracias e desvaloriza o dos políticos. Subestima-se a contribuição que os
líderes políticos podem prestar para um determinado resultado político e se
superestima a imutabilidade das instituições e a capacidade de domesticação das
políticas predominantes (ibid, p. 12). Filiamo-nos a esta crítica, por entendermos
que lideranças políticas individuais tiveram marcada influência sobre o processo
decisório de políticas públicas de propriedade intelectual no Brasil no Governo
Luiz Inácio Lula da Silva, particularmente no processo de formulação da política
industrial e na proposta de reestruturação do INPI levada a cabo a partir de 2004.
Conhecer e compreender os atributos de personalidade de algumas dessas
lideranças é fundamental, pois é com base nestes atributos e em suas experiências
pessoais e profissionais que elas procuram conferir maior persuasão às ideias e
fazer com que as mesmas se impregnem de forma bem sucedida nas instituições
que comandam.
A terceira e última das abordagens apresentadas por HALL é a abordagem
centrada em coalizões, cujo foco é no sistema político mais amplo para a
explicação da política econômica. Esta abordagem enfatiza que as políticas devem
angariar apoio de amplas coalizões de grupos econômicos de cujos votos e boa-
vontade os políticos em última instância dependem. Assim, o quanto uma nação
se encontra disposta a implantar determinadas políticas pode depender da
habilidade de seus políticos para forjar uma coalizão de grupos sociais que seja
ampla o bastante para mantê-los em seus cargos e que esteja inclinada a
considerar as políticas propostas como de seu interesse. A viabilidade de tal
coalizão depende da engenhosidade de seus políticos e da constelação de
preferências expressas pelos grupos econômicos relevantes (ibid, p. 12).
Para HALL, a abordagem centrada em coalizões é importante por nos
fazer recordar que a política trata, em última instância, de conflitos entre grupos
com interesses divergentes. A economia política traz consequências importantes
para os interesses materiais dos grupos sociais. Contudo, apesar de ter o mérito de
trazer os políticos e os grupos sociais mais diretamente para a explicação da
política, deixa um tanto em aberto a questão sobre como esses grupos acabam por
definir seus interesses de uma forma em particular. Para o autor, isto depende de
algumas variáveis adicionais como o legado das políticas existentes e o impacto
69
que a teoria econômica pode ter sobre as formas convencionais de se enxergar o
mundo (ibid, p. 13).
Do exposto até aqui, depreendemos que a tipologia de HALL apóia-se na
identificação de determinados mecanismos causais através do quais as ideias
podem produzir impacto significativo sobre a formulação de políticas. Dois deles
constituem mecanismos institucionais: o centrado na economia, cujo foco
explicativo recai sobre o impacto teórico e acadêmico de uma determinada
corrente de pensamento sobre os economistas e a posição ocupada por estes
últimos na formulação de políticas; e o centrado no Estado, cuja explicação é
buscada nos diferentes arranjos e ethos burocrático-administrativos de cada
Estado e sua maior ou menor permeabilidade à absorção de novas ideias (DE
MELLO E SILVA, op. cit, p. 145). A estes dois mecanismos acrescenta-se outro,
de natureza não institucional – o centrado em coalizões – que confere importância
à ressonância encontrada pelas prescrições ideacionais junto a grupos sociais
relevantes e à sua eficácia em forjar e/ou consolidar novas coalizões políticas
(ibid, p. 145-146).
O objetivo da análise de HALL, por intermédio de sua tipologia de
mecanismos causais, é o de demonstrar que as ideias econômicas não podem ser
tratadas, como muitas vezes ocorre, como uma simples variável exógena no
processo de tomada de decisões, sem muita atenção ao por que destas ideias
específicas importarem. Não é simplesmente fazendo menção às ideias que se
ganha poder explicativo para compreender por que determinado conjunto delas
tem mais força do que outras em alguns casos. Se o que se pretende é conferir às
ideias papel explicativo na análise de formulação de políticas, HALL entende que
é necessário conhecer mais as condições que conferiram força a um conjunto de
ideias em detrimento de outro, num cenário histórico particular (1989, op. cit, p.
362). Portanto, HALL pretende que sua tipologia de mecanismos causais
contribua para uma compreensão do processo de caráter histórico através do qual
as novas ideias adquirem influência sobre a formulação de políticas. As respostas
dos tomadores de decisão às ideias são condicionadas não só pela viabilidade
econômica das mesmas, mas também por suas viabilidades política e
administrativa (ibid, p. 363). Em outras palavras, é preciso examinar como estes
70
três fatores centrais condicionam o julgamento que os tomadores de decisão
fazem das ideias. 67
A viabilidade econômica das ideias “se refere a sua capacidade aparente de
resolver um conjunto relevante de problemas econômicos” (ibid, p. 370). Outro
fator que pode afetar a viabilidade econômica é o da qualidade da nova doutrina
(das novas ideias) como uma teoria econômica. Qualquer doutrina é mais
propensa de ser aceita pelos economistas profissionais se tiver apelo teórico, o que
irá favorecer sua relação ou diálogo com a teoria predominante.68 Finalmente,
outro fator importante para compreender a viabilidade econômica das ideias em
cada nação são a estrutura da economia nacional e os tipos de constrangimentos
internacionais enfrentados. HALL reconhece que a posição relativa dentro dos
regimes econômicos internacionais pode limitar a viabilidade de determinadas
políticas econômicas (ibid, p. 372). Este reconhecimento por parte do autor da
possibilidade de constrangimentos estruturais poderem limitar o alcance e a
viabilidade das ideias é fundamental para compreender como o regime
internacional de propriedade intelectual representou e ainda representa um fator
estrutural de constrangimento, de ordem material e normativa, para o processo de
formulação da política externa brasileira de propriedade intelectual, responsável
por definir o padrão de inserção do Brasil naquele regime. Igualmente, não só o
regime internacional de propriedade intelectual, como as condições mais amplas
da economia internacional têm que ser levadas em consideração numa abordagem
comparativa entre os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da
Silva, no campo da formulação de políticas públicas de propriedade intelectual.
HALL afirma que as ideias também são afetadas por sua viabilidade
administrativa, o que significa dizer que elas são mais propensas a ser aceitas se
estiverem de acordo com as inclinações das autoridades responsáveis por aprová-
las e se parecerem viáveis à luz das capacidades estruturais reais de
implementação por parte do Estado. Ou seja, a receptividade das autoridades a
uma nova teoria econômica pode ser condicionada à forma através da qual o poder
sobre o processo econômico de tomada de decisões é distribuído entre as 67 A análise de HALL prescreve que as ideias podem transformar e ser transformadas por essas três categorias básicas pelas quais enxergamos a realidade. 68 O neoliberalismo possui sem dúvida estas duas qualidades, como demonstraremos ao tratar das ideias econômicas que moldaram a formulação da política externa de propriedade intelectual e da política industrial no Governo Fernando Henrique Cardoso (especialmente no seu primeiro mandato).
71
principais agências do Estado e pelas percepções prevalecentes acerca da
capacidade do Estado para implementar a nova política (ibid, p. 173-174).
De fato, no campo da política industrial, este aspecto mostra-se essencial,
em face das diferentes concepções em termos de poder de decisão conferidos ao
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) nos Governos
Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, tanto no que tange ao
seu relacionamento e autonomia decisória relativa face aos outros Ministérios ou
agências da área econômica (notadamente o Ministério da Fazenda, o Ministério
do Planejamento e o Banco Central), quanto no que se refere às diferenças quanto
à percepção econômica estratégica acerca da propriedade intelectual, o que
explica, em parte, a canalização de recursos humanos e econômicos destinados a
empreender o processo de reestruturação no INPI, a partir de 2004.
No âmbito da formulação da política externa de propriedade intelectual, as
diferenças que apresentamos decorrem, em parte, da atitude receptiva das
principais agências do Estado envolvidas em políticas públicas de propriedade
intelectual durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva (Itamaraty e MDIC,
notadamente) às ideias econômicas do “novo desenvolvimentismo”, após a
descrença em torno da ortodoxia neoliberal predominante durante o Governo
Fernando Henrique Cardoso, ocasião em que o espectro pessoal do Presidente
também exerceu marcada influência na definição de políticas. Enfim, o descrédito
das ideias neoliberais em parte das instituições estatais, somado à relativa (e
inegável) ingerência do Presidente na formulação da política externa, propiciou ao
Itamaraty, durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, resgatar centralidade,
apesar de longe de poder ser caracterizada como insularidade, no que se refere ao
comportamento diplomático intraestatal.
Finalmente, para que uma nova ideia econômica adquira influência na
formulação de políticas, HALL entende que é preciso que ela tenha viabilidade
política, a saber, algum apelo junto à arena política mais ampla. Significa dizer
que a avaliação que as ideias econômicas recebem depende também de fatores
como os objetivos gerais dos partidos políticos e os interesses dos grupos sociais e
econômicos organizados com acesso aos canais de decisão estatais - que podem
formar com o Governo coalizões mais amplas - e da reputação alcançada pelos
principais expoentes daquelas ideias (ibid, p. 375).
72
Resumindo, a análise de HALL sugere que se deve observar se um novo
conjunto de ideias econômicas adquiriu um grau mínimo de viabilidade em todas
essas três dimensões – econômica, administrativa e política – de forma a ser
incorporada na formulação de políticas. Daquelas três dimensões, interessou-nos
aqui avaliar as dimensões da viabilidade econômica e da viabilidade
administrativa, tanto no que concerne à política externa de propriedade intelectual
quanto à política industrial.69 Como antecipação de algumas conclusões,
verificamos que, tanto no que concerne à viabilidade econômica quanto à
viabilidade administrativa, a formulação de políticas públicas de propriedade
intelectual no Brasil recente se caracteriza por um momento de contenda entre
ideias neoliberais, há cerca de uma década e meia predominantes na esfera estatal
e na inteligentsia econômica de dentro e de fora do Governo, e ideias
“neodesenvolvimentistas” que, se não conseguem ainda representar uma ampla
ameaça in concreto ao ideário neoliberal, ao menos na formulação da política
externa e da política industrial adquire contornos de viabilidade e aceitação cada
vez maiores, encerrando-se de forma gradual e discreta, em termos institucionais,
em algumas arenas do aparato estatal.70
Após apresentar os três fatores que podem condicionar a aceitação e a
avaliação das ideias econômicas, HALL enumera aqueles que ajudam a explicar
por que elas podem ser adotadas em certos tempos e lugares e em outros não. O
argumento é o de que qualquer conjunto de ideias econômicas é afetado pela
“orientação econômica do partido governista”, pela “estrutura das relações
Estado-sociedade” e pela “natureza do discurso político” (ibid, p. 389).
No que tange às “orientações do Partido Governista”, os estudos presentes
no livro organizado por HALL denotam que as ideias keynesianas foram mais
facilmente introduzidas nos países governados por partidos sócio-democratas,
sendo depois mantidas por partidos mais conservadores que os sucederam. Assim,
a orientação do partido governante afeta a possibilidade de que determinadas
políticas com base em certas ideias econômicas sejam perseguidas (ibid, p. 376-
377). Constatamos, no entanto, que, a concepção do Partido dos Trabalhadores 69 Não tratamos aqui da questão da viabilidade política, nos termos definidos pelo autor, embora consideremos que examinar como a aceitação das ideias econômicas pelos grupos de interesses organizados represente um ângulo essencial de análise que poderá ser desenvolvido por outras pesquisas. 70 A noção de “dança de paradigmas” proposta por CERVO (2003) é importante neste sentido porque demonstra que ideias concorrentes podem coexistir no processo de formulação de políticas.
73
sobre a política internacional, por intermédio de sua assessoria internacional e de
seus principais assessores, como Marco Aurélio Garcia, teve pouco peso na
formulação de políticas públicas de propriedade intelectual, durante o Governo
Luiz Inácio Lula da Silva. Contou mais o aprendizado nas negociações
diplomáticas e o resgate da ala crítica de diplomatas vinculados intelectualmente à
tradição desenvolvimentista, que passaram a ocupar postos-chave no MRE.
Quanto à orientação ideacional neoliberal do PSDB durante o Governo Fernando
Henrique Cardoso, esta se explica, em parte, pelos constrangimentos ideacionais
internacionais do receituário do Consenso de Washington predominante em toda a
América Latina durante os anos 90, e também (e este é o aspecto que mais nos
interessou) pela influência da visão pessoal do Presidente e de sua equipe
econômica na formulação de políticas públicas. No campo da política externa,
importou a posição presidencial em relação à qual deveria ser o padrão de
inserção internacional do Brasil nos diferentes regimes internacionais. Na política
econômica, contou a influência presidencial, mas também a percepção, por parte
dos mais importantes técnicos da área econômica, de que a estabilidade
macroeconômica era a prioridade fundamental a se alcançar, mesmo que isto
representasse descartar outras prioridades, como a política industrial.
Para HALL, as ideias são afetadas também pela “estrutura das relações do
Estado com a sociedade”. É preciso considerar que os políticos operam dentro de
um aparato institucional de determinado Estado, responsável por estruturar o
fluxo de aconselhamentos que ele recebe, por conferir a algumas autoridades mais
poder decisório em matéria econômica do que a outras, e por fornecer um
conjunto específico de competências institucionais para a implementação da
política. No que tange ao estudo específico das ideias keynesianas, o autor aponta
algumas características das estruturas estatais que afetaram sua aceitação, entre
elas a permeabilidade do serviço público (no que tange à possibilidade de
formação de novos staffs e equipes) e o grau de concentração de poder nos
responsáveis pela gestão macroeconômica (ibid, p. 278). Para fazer julgamentos
econômicos complexos, os políticos confiam nos conselhos de especialistas. Em
alguns Estados, estes aconselhamentos vêm em primeiro lugar do corpo
permanente de servidores que detém o monopólio no acesso à informação
econômica oficial e aos tomadores de decisão. Em outros, uma nova
74
administração pode trazer seus próprios conselheiros e consultar-se amplamente
com economistas de fora do aparato estatal (ibid, p. 378).
A estrutura das relações entre o Estado e a sociedade também auxilia a
compreender como mudanças no campo das ideias econômicas favoreceram
transformações no processo de formulação de políticas públicas de propriedade
intelectual, do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio
Lula da Silva. Com efeito, a despeito da opção por manter um receituário
ortodoxo de estabilização macroeconômica – levando especialistas como Carlos
Lessa a criticarem a continuidade da política econômica71 – no Governo Lula,
outras agências estatais, como o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio (MDIC), tiveram ampliada sua capacidade de definir mais
autonomamente suas políticas públicas (como a política industrial), não obstante a
política austera de cumprimento de metas de inflação e de elevação de superávits
primários por parte de outras agências da área econômica como os Ministérios da
Fazenda e do Planejamento, além, é claro, do Banco Central.
Foi importante neste sentido o perfil gerencial/empresarial do Ministro do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio durante o primeiro mandato do Governo
Lula (2003-2006), e também a receptividade à ideia de necessidade de fomento às
políticas industriais e tecnológicas por parte de outros economistas situados em
áreas estratégicas da Administração Pública.72 De fato, a figura de Luiz Fernando
Furlan73 é central para compreender a formulação de uma nova política industrial
engendrada com base num ideário econômico que procurou privilegiar a conquista
71 Ver entrevista do economista concedida ao Correio da Cidadania em NADER (2006). Lessa critica as limitações que teve para conduzir as reformas que considerava necessárias para transformar o BNDES novamente num banco de desenvolvimento, enquanto Presidente da instituição entre 2003 e 2004, já que na sua acepção, durante os Governos Collor e Fernando Henrique Cardoso, aquele teria assumido um perfil de banco de investimentos. 72 O BNDES foi uma importante instituição no processo de formulação e consecução da nova política industrial, especialmente durante as administrações de Carlos Lessa, Guido Mantega e Luciano Coutinho. Não obstante as críticas a que nos referimos, apresentadas por Lessa, entendemos que parte das razões para não ter conseguido empreender todas as reformas que julgava necessárias e que dependiam da aquiescência e medidas de outras agências do Estado, como a redução dos juros, deve-se ao fato do período em que esteve na Presidência do BNDES coincidir com o início do Governo Lula, quando foi forte o desejo de passar a ideia de credibilidade internacional vinculada à manutenção da política econômica do governo anterior. 73 O perfil dinâmico do ex-Ministro levou analistas a qualificá-lo, positivamente, de “mascate” de nossos bens primários e secundários nos mercados internacionais. Ver SCANTIMBURGO (2007). Sugerimos também a leitura da entrevista de 2003 com Juan Quirós, presidente da APEX então (ATTUCH, 2003). O ex-Ministro é uma das lideranças individuais que destacamos para compreender as ideias econômicas que informaram a formulação de políticas públicas de propriedade intelectual no Governo Luiz Inácio Lula da Silva.
75
de mercados por intermédio de uma maior inserção internacional das empresas
brasileiras.74 Daí o inédito lugar estratégico conferido ao tema da propriedade
intelectual no âmbito da política industrial, tida como instrumento primordial para
a proteção à inovação e ao patrimônio imaterial daquelas empresas.75 Não há
como compreender o processo de reestruturação do INPI, a partir de 2004, fora
desse contexto.
No que refere à formulação da política externa de propriedade intelectual,
as relações entre o Estado e a Sociedade destacadas por HALL guardam algumas
linhas de continuidade entre os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz
Inácio Lula da Silva, com um legado institucional significativo daquele para este,
mas também com a ocorrência de mudanças. A articulação entre o Estado e a
sociedade civil (nacional e internacional) lograda pela diplomacia brasileira
durante o Governo Fernando Henrique Cardoso no episódio do conflito com
corporações transacionais farmacêuticas (com apoio do Governo dos Estados
Unidos da América) em torno da discussão de acesso universal e gratuito a
medicamentos genéricos contra o vírus HIV/AIDS propiciou resultados
internacionais positivos e um “efeito demonstração”: fortaleceu-se a ideia de que a
transversalidade do tema propriedade intelectual exigia uma articulação complexa
na formulação de políticas, sendo necessário ampliar a participações de outros
atores, além do Itamaraty, no processo decisório, ainda que restritos à arena
estatal. Assim, criou-se ainda durante o Governo Fernando Henrique Cardoso o
Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI)76 com a atribuição de
subsidiar a diplomacia brasileira em negociações internacionais na matéria.77 Foi
um momento de inflexão relevante no padrão de formulação da política externa de
propriedade intelectual no Brasil, antes insulado no Itamaraty.
Vai ser somente no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, contudo, que o
GIPI vai se articular com força e contribuir para o desenho de uma posição
internacional mais assertiva do Brasil em matéria de propriedade intelectual, em
74 O Ministro Miguel Jorge, que sucedeu Luiz Fernando Furlan no MDIC, manteve o estilo de seu sucessor. Ver OLIVEIRA (2009). 75 Obviamente, a política industrial do Governo Lula, em suas duas versões, o PITCE e o PDP, não esteve imune a críticas, como se demonstrará no capítulo 6. 76 Maiores detalhes sobre o contexto de criação do GIPI, suas atribuições, composição e atuação fazem parte do capítulo 5. 77 Não se pode deixar de reconhecer também a experiência diplomática brasileira nas negociações da Rodada Uruguai do GATT como importante para a criação do GIPI. Entrevistas com SUGUIEDA (2009) e JAGUARIBE (2010) corroboram esta afirmação.
76
um esforço concertado com o Itamaraty e outras agências estatais, como o INPI.
Tais circunstâncias vão contribuir para a estruturação de uma agenda ampla e
propositiva, em termos de estratégias de contestação mais articuladas, nos
diferentes fóruns internacionais como a OMC e a OMPI, a contornos do regime
internacional de propriedade intelectual, apontados como excludentes para os
países em desenvolvimento.
O terceiro fator, e mais importante em termos ideacionais78, capaz de
condicionar a aceitação e a avaliação das ideias econômicas é a “estrutura do
discurso político”. HALL atenta para o fato de que a tomada de decisões tem
lugar não somente em um determinado ambiente institucional, mas também
dentro de um conjunto de ideias políticas (ibid, p. 383):
O processo decisório tem lugar dentro de uma estrutura institucional, cuja configuração varia de nação para nação, mas ele também ocorre dentro do contexto de um conjunto prevalecente de ideias. Estas incluem concepções compartilhadas sobre o papel apropriado do governo, a quantidade de ideias políticas comuns e memórias coletivas de experiências políticas passadas. Juntas, estas ideias constituem o discurso político de uma nação. Elas fornecem uma linguagem na qual a política pode ser descrita dentro da arena política e os termos por meio dos quais as políticas são nela julgadas.79
Assim, da mesma forma que a estrutura do Estado ou a orientação do
partido do Governo, a natureza do discurso político pode ter impacto na
probabilidade de um conjunto de ideias econômicas ser aceito.80 HALL vai além e
afirma ainda que as ideias econômicas podem contribuir para mudanças nos
próprios termos do discurso político (ibid, p. 366). É importante este último
aspecto porque denota que as ideias não são concebidas por HALL como um fator
que, ao entrar na arena política, simplesmente se coloca “por cima” de outros
fatores já presentes. Ideias econômicas podem contribuir para alterar os próprios
termos do discurso político tanto no plano doméstico como no internacional. Elas
introduzem novas categorias de representação e interpretação do mundo, fazendo 78 Para nossa análise, obviamente. 79 Tradução livre do autor: Policy making takes place within an institutional framework, whose configuration varies from nation to nation, but it also occurs within the context of a prevailing set of political ideas. These include shared conceptions about the appropriate role of government, a number of common political ideas, and collective memories of past policy experiences. Together, such ideas constitute the political discourse of a nation. They provide a language in which policy can be described within the political arena and the terms in which policies are judged there. 80 HALL reconhece que a natureza do discurso político pode trabalhar a favor ou contra novas propostas políticas (ibid, p. 383), o que ajuda a explicar os diferentes graus de aceitação de uma ideia, de nação para nação.
77
com que os atores (economistas, políticos, agências do Estado e grupos sociais)
passem a interpretar e definir seus próprios interesses por meio daquelas
categorias (DE MELLO E SILVA, op. cit, p. 146).
Dessa forma, é preciso reconhecer que a abordagem de HALL não logra
escapar do impasse teórico-metodológico da inviabilidade de se separar ideias e
interesses como categorias isoladas, a não ser para fins analíticos. Com efeito, o
que HALL sustenta é que diferentes atores que participam do processo de
formulação de políticas podem passar a interpretar seus interesses de forma
diferente, devido ao advento de novas categorias de representação introduzidas
pelas ideias. Mas há que se reconhecer a contribuição do autor por abordar as
ideias não apenas a partir de uma perspectiva passiva, como mero suplemento
causal para os atores. As ideias são analisadas também sob uma ótica ativa, já que
elas penetram na arena política introduzindo novas categorias cognitivas que
estimulam os atores a redefinir seus interesses por intermédio delas.
Repassamos agora, de forma resumida, o argumento desenvolvido por
HALL: as ideias econômicas são julgadas em termos de sua viabilidade
econômica (explicação centrada na economia), administrativa (explicação
centrada no Estado) e política (explicação centrada em coalizões). A
probabilidade de uma nação implantar novas propostas de um ideário econômico
depende da orientação do partido governista, da estrutura do Estado e das relações
Estado-sociedade e da natureza do discurso político existente (ibid, p. 390).
Podemos afirmar que a abordagem de HALL se sustenta em um conjunto
de diferentes mecanismos causais ao procurar explicar como ideias econômicas
podem influenciar o processo de formulação de políticas públicas. Do modelo
teórico proposto, nos ativemos a dois destes mecanismos: o que enfatiza o papel
dos economistas no processo decisório de formulação de políticas (centrado na
economia) e o que busca explicações nos diferentes arranjos burocrático-
administrativos estatais e a sua maior ou menor permeabilidade à absorção de
novas ideias (centrado no Estado). No que se refere aos fatores capazes de
condicionar a aceitação e avaliação de novas ideias econômicas, a natureza do
discurso político existente foi o elemento que mais pesou nas análises que
empreendemos.
Análises ideacionais que enfatizam a noção de aprendizado social e o
papel de lideranças individuais também contribuem para a compreensão de como
78
se dá o processo político de aceitação de novas ideias econômicas como, por
exemplo, a do desenvolvimento, em diferentes âmbitos institucionais. Propomos
aqui que a formulação de políticas públicas de propriedade intelectual deve ser
analisada levando-se em consideração também esse aparato teórico que pretende
demonstrar: 1) como as ideias econômicas podem se infiltrar e se encerrar nas
instituições; 2) como o trabalho organizacional destas pode, por meio de um
processo de aprendizado social, optar pela promoção de determinadas ideias; e, 3)
como lideranças individuais podem contribuir para a sua aceitação e
disseminação.
Antes, contudo, de analisarmos como as instituições e lideranças podem
exercer papel interveniente relevante na forma como as ideias influenciam a
formulação de políticas públicas81, é necessário precisar a ideia que representa
nossa variável explicativa central: a do “desenvolvimento”. O “desenvolvimento”
é tratado como ideia econômica passível de diferentes abordagens e apropriações,
especialmente no que se refere ao seu lugar no pensamento econômico nacional e
ao seu papel como estratégia de ação da política externa brasileira. Vale dizer que
não pretendemos apresentar uma ampla revisão de toda literatura econômica
voltada para o tema, mas apenas demarcar a natureza do desenvolvimento como
um fenômeno ideacional contingente e variável.
Tratamos, ainda, de enfatizar como uma acepção particular de
desenvolvimento – marcada pela influência do pensamento desenvolvimentista e
estruturalista latino-americano dos anos 50 - se tornou, durante praticamente
quatro décadas, o principal vetor ideacional da política externa brasileira. A
importância deste vetor é tamanha, que mesmo a prevalência das ideias
neoliberais na década de 90 não representou um sepultamento definitivo do
pensamento desenvolvimentista predominante nas quatro décadas anteriores. Ao
contrário, estimulou readequações teóricas por parte de alguns economistas
brasileiros capazes de trazer novamente, para a agenda da política econômica do
Governo Federal (especialmente a partir da ascensão à presidência de Luiz Inácio 81 No dimensionamento das mudanças de atuação institucional, a abordagem comparativa entre as políticas públicas de propriedade intelectual dos Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva recaiu, do ponto de vista da política industrial, sobre os arranjos burocrático-administrativos estatais, a saber, na relação do MDIC com os principais ministérios da área econômica, e no papel conferido ao INPI nesse contexto, com seu reposicionamento no âmbito da Administração Pública, a partir de 2004. No que tange à política externa, importou a forma como a atuação do GIPI ampliou e sofisticou o processo decisório dentro da arena estatal. Trata-se da abordagem “centrada no Estado”.
79
Lula da Silva), o desenvolvimentismo “repaginado”, buscando gradualmente
reencontrar aceitação em espaços institucionais de tomada de decisões no meio
estatal.
2.4 O “Desenvolvimento” como Ideia e Variável Independente
De acordo com COOPER & PACKARD (1997, p. 1), nos últimos
cinqüenta anos presenciamos transformações profundas na geografia política
global, na medida em que áreas antes conhecidas como “colônias” passaram a ser
denominadas de “países menos desenvolvidos” ou “Terceiro Mundo”. Os povos
dos impérios em declínio, das superpotências mundiais da Guerra Fria que
dominaram os assuntos internacionais (Estados Unidos e União Soviética), dos
novos países surgidos das primeiras descolonizações, e das novas nações da
África e da Ásia tiveram que pensar em como o mundo estava constituído. Dessa
forma (ibid, p. 1):
A ideia de desenvolvimento – e a relação que ela implica entre nações ricas e industrializadas e nações pobres, emergentes – tornou-se a chave para uma nova estrutura conceitual. Ao contrário das reivindicações anteriores da Europa de uma superioridade inerente ou de uma “missão civilizadora”, a noção de desenvolvimento teve apelo tanto junto aos líderes das sociedades “subdesenvolvidas”, assim como junto aos povos dos países desenvolvidos, e ela conferiu aos cidadãos de ambas as categorias o compartilhamento de um universo intelectual e de uma comunidade moral que cresceu em torno da iniciativa de desenvolvimento mundial da era Pós-Segunda Guerra Mundial. Esta comunidade compartilhou a convicção de que o alívio da pobreza não ocorreria simplesmente por processos autorregulados de crescimento econômico ou de mudança social. Ela requereria uma intervenção concertada por governos nacionais tanto dos países ricos quanto pobres em cooperação com um conjunto emergente de organizações de ajuda internacional e de desenvolvimento. 82
82 Tradução livre: The idea of development – and the relationship it implied between industrialized, affluent nations and poor, emerging nations – became the key to a new conceptual framework. Unlike the earlier claims of Europe to inherent superiority or a “civilizing mission”, the notion of development appealed as much to leaders of “underdeveloped” societies as to the people of developed countries, an it gave citizens in both categories a share in the intellectual universe and in the moral community that grew up around the world-wide development initiative of the post-World War II era. This community shared a conviction that the alleviation of poverty would not occur simply by self-regulating process of economic growth or social change. It required a concerted intervention by the national governments of both poor and wealthy countries in cooperation with an emerging body of international aid and development organizations.
80
O problema do desenvolvimento, assim, propiciou o surgimento de um
esforço genuíno nas ciências sociais, com uma relação complexa e ambígua com
agências governamentais, internacionais e privadas ativamente empenhadas em
promover o crescimento econômico, aliviar a pobreza e expandir mudanças
sociais benéficas em regiões “em desenvolvimento” (ibid, p. 1). Segundo
ESCOBAR (1995, p. 4), a específica conjuntura histórica do final da Segunda
Guerra Mundial é fundamental para compreender como o objetivo do
desenvolvimento ganhou amplitude e aceitação entre os países de economia
avançada, particularmente os Estados Unidos, que passaram a advogar que as
características de suas sociedades como os altos níveis de industrialização e
urbanização, o aprimoramento técnico na agricultura, o rápido crescimento da
produção material e dos padrões de vida e a difusão de uma educação moderna e
de valores culturais poderiam ser expandidas para todos os povos do planeta (ibid,
p. 4).
A “ortodoxia do desenvolvimento” é então caracterizada por um conjunto
de presunções surgidas a partir da década de 40: que a ajuda externa e os
investimentos em termos favoráveis, a transferência do conhecimento em técnicas
de produção, as medidas para promover a riqueza e a educação e o planejamento
econômico habilitariam países mais pobres a se tornarem economias de mercado
“normais” (COOPER & PACKARD, op. cit, p. 2).83 As novas condições mundiais
pesaram decisivamente na formação e na consolidação da hegemonia do
pensamento desenvolvimentista. Contribuíam para tanto o fracasso econômico
liberal dos anos 20/30, a necessidade de reconstrução do pós-guerra, o novo
cenário de disputa geopolítica e ideológica da Guerra Fria e a disputa dos
territórios que foram se tornando independentes dos impérios europeus, na medida
em que avançava o processo de descolonização asiático e africano (FIORI, 2000,
p. 22-23). As Nações Unidas e várias outras instituições multilaterais criadas
depois da Segunda Guerra Mundial colaboraram decisivamente na difusão de
novas ideias que acompanharam, por exemplo, os programas de ajuda
83 Utilizando-se das categorias de GOLDSTEIN & KEOHANE (1993), SIKKINK (1997, op. cit., p. 229) defende que a maior parte das ideias econômicas, como a do desenvolvimento, são ideias causais, uma vez que tratam de relações de causa e efeito que fornecem estratégias para o atingimento de objetivos. Apesar da maior parte das ideias econômicas serem ideias causais, SIKKINK reconhece que elas não ingressam em um vácuo ideológico, mas, ao contrário, em um espaço político altamente controverso de crenças e valores pré-existentes sobre a economia. É o que Hall prefere chamar de “natureza do discurso político”.
81
internacional e os financiamentos do Banco Mundial. Enfim, cimentou-se a
convicção de que criar infraestruturas, modernizar instituições e incentivar as
industrializações nacionais deveriam ser as palavras de ordem do mundo político
e os temas-objeto das preocupações acadêmicas do Terceiro Mundo (ibid, p. 23).
O desenvolvimento surge, portanto, como uma resposta específica para a
problemática da pobreza.84 ESCOBAR defende que o desenvolvimento deve ser
visto como um constructo histórico que fornece um espaço no qual os países
pobres são conhecidos, particularizados e situados (op. cit, p. 45). Entre os
mecanismos que contribuem para que o desenvolvimento, como constructo
histórico, se torne uma força real e ativa estão os processos de profissionalização e
institucionalização. O de profissionalização se refere principalmente ao conjunto
de técnicas, estratégias e práticas disciplinares que organizam a geração, validação
e a difusão do conhecimento sobre o desenvolvimento, incluindo as disciplinas
acadêmicas, métodos de ensino e pesquisa, critérios de expertise e diversas
práticas profissionais, enfim, todos os mecanismos que conferem a certas formas
de conhecimento o status de verdade (ibid, p. 45).85 Contudo, não só a
profissionalização contribuiu para o que ESCOBAR denomina de “invenção do
desenvolvimento”; concorreu igualmente a criação de um campo institucional no
qual os discursos são produzidos, memorizados, estabilizados, modificados e
postos em circulação. A institucionalização do desenvolvimento teve lugar em
todos os níveis, desde organizações internacionais, passando por agências
públicas nacionais até organizações não-governamentais. Iniciado no meio dos
anos 40, com a criação das grandes organizações internacionais, este processo não
cessou de crescer, resultando na consolidação de uma efetiva rede de poder (ibid,
p. 46).86
84 De fato, durante o apogeu do desenvolvimentismo, entre as décadas de 50 e 70, particularmente a de 70, assistiu-se a uma diminuição global da distância entre os países industrializados e os países em desenvolvimento. Segundo FIORI (2000, p. 23), deve-se, claro, considerar que as estatísticas que apontam nesta direção foram fortemente influenciadas pela crise generalizada dos países mais ricos e pelo crescimento excepcional dos países do Leste Asiático, e do Brasil e do México, na América Latina. Ver também ARRIGUI (1997). 85 ESCOBAR afirma que a profissionalização do desenvolvimento também tornou possível remover os problemas dos campos da política e da cultura para remodelá-los em termos do campo aparentemente mais neutro da ciência. 86 Para compreender a noção de poder em ESCOBAR, é preciso analisar primeiramente a discussão que o autor desenvolve sobre Economia (ibid, p. 59-61). ESCOBAR afirma que os economistas tendem a considerar seu campo de estudo (ou ciência) como uma representação neutra do mundo e uma verdade sobre o mesmo. O autor sustenta que a economia não apresenta este caráter neutral e que, na realidade, ela é uma estrutura marcada por um código cultural
82
Para ESCOBAR, portanto, o desenvolvimento não é exatamente uma
ideia, mas um regime de discurso ou representação, em que identidades são
construídas e também em que a violência é originada, simbolizada e administrada
(ibid, p. 10).87 ESCOBAR argumenta que o desenvolvimento funcionou desde o
final da Segunda Guerra Mundial como um discurso que adquiriu o status de
certeza no imaginário social de tal forma que tornou impossível conceituar a
realidade, a partir de então, em outros termos (ibid, p. 5). Sua premissa
organizacional seria a da crença no papel da modernização como a única força
específico, resultante do desenvolvimento e da consolidação de uma visão dominante da prática da economia na história europeia. Ancorado ao que se refere como “antropologia da modernidade”, ESCOBAR sugere questionar o que denomina de “contos do mercado, produção e trabalho” que estariam na raiz do que hoje se conhece como economia Ocidental. Estes “contos” são raramente questionados como formas naturais de enxergar a vida. ESCOBAR entende que as noções de economia, mercado e produção são contingenciais do ponto de vista histórico, sendo possível demarcar suas genealogias. A economia Ocidental é feita de um conjunto peculiar de discursos e práticas. Assim, ESCOBAR propõe que, ao invés de pensarmos na economia Ocidental como um sistema de produção, ela deve ser vista como uma instituição composta de sistemas de produção, poder e significação. Estes três sistemas, por sua vez, são formas culturais por meio das quais os seres humanos são transformados em sujeitos produtivos. Dessa forma, a economia não é somente, ou principalmente, uma entidade material. É acima de tudo uma produção cultural, “um modo de produzir seres humanos e ordens sociais de certo tipo” (ibid, p. 59). Embora, no que se refere à produção, a história da economia Ocidental seja bem conhecida – por exemplo, pelo surgimento do mercado e mudanças nas forças produtivas e nas relações sociais de produção - o poder e a significação foram menos incorporados na história cultural da economia Ocidental. Quanto ao poder, ESCOBAR recorre ao pensamento de FOUCAULT (1991) para afirmar que a institucionalização da economia de mercado nos séculos XVIII e XIX necessitou de uma profunda transformação no campo individual - a saber, na produção de ‘corpos dóceis’ - e também na regulação de populações de forma consistente com os movimentos do capital. Ou seja, “as pessoas não foram para as fábricas alegremente e de forma espontânea: todo um regime de disciplina e normalização foi necessário” (ibid, p. 60). Além da expulsão dos camponeses e servos da terra e da criação da classe proletária, a economia moderna necessitou de uma profunda reestruturação de corpos, indivíduos e formas sociais. No que diz respeito à significação, ESCOBAR argumenta que o primeiro aspecto histórico importante a considerar é o da invenção da economia como um campo autônomo. Como um domínio em separado, à economia teve que ser conferida uma expressão própria; uma ciência que surgiu ao final do século XVIII e à qual foi dado o nome de Economia Política. Na sua formulação clássica, presente em Smith, Ricardo e Marx, ela se estruturou em torno das noções de produção e trabalho. Além de racionalizar a produção capitalista, a Economia Política foi bem sucedida em impor a produção e o trabalho como um código de significação da vida social como um todo. A linguagem do dia-a-dia foi impregnada pelos discursos da produção e do mercado. O conceito de poder apresentando por ESCOBAR se aproxima daquele discutido quando nos reportamos às semelhanças entre a abordagem institucionalista e a dos construtivistas críticos (p. 36). Na discussão sobre o atual regime internacional de propriedade intelectual, defendemos que ideias e poder não são entidades facilmente separáveis. Ambas conformam o regime. 87 O intento do autor é utilizar esta noção de regime de representação como princípio teórico e metodológico para o exame dos mecanismos e das consequências do que denomina de “construção do Terceiro Mundo” (ibid, p. 10). Enfim, o que pretende é “fornecer um mapa geral que oriente qualquer pessoa nos discursos e práticas que contribuem para as atuais formas dominantes de produção sociocultural e econômica do Terceiro Mundo” (ibid, p. 10-11). Segundo o autor, as noções de subdesenvolvimento e de Terceiro Mundo foram os produtos discursivos do ambiente do pós-Segunda Guerra Mundial. Tais conceitos não existiam antes de 1945 e surgiram como princípios organizacionais dentro do processo por meio do qual o Ocidente – e, de diferentes formas, o Oeste – redefiniu a si mesmo e ao resto do mundo (ibid, p. 31).
83
capaz de destruir relações supersticiosas arcaicas, a qualquer custo social, cultural
e político. A industrialização e a urbanização são vistas como as rotas inevitáveis
e necessárias rumo ao progresso. Assim, apenas por intermédio do avanço
material poder-se-ia alcançar o progresso social, cultural e político (ibid, p. 39).
Entre os fatores que contribuíram para a elaboração e a justificativa do “discurso
do desenvolvimento”, ESCOBAR aponta a fé na ciência e na tecnologia como um
dos mais relevantes (ibid, p. 34):
Acreditava-se que a tecnologia não somente ampliaria o progresso material, ela também conferiria ao mesmo um senso de direção e significado. Na vasta literatura da sociologia da modernização, a tecnologia foi teorizada como um tipo de força moral que operaria por meio da criação de uma ética da inovação, produção e resultado. [...] O conceito de transferência de tecnologia tornar-se-ia no tempo um componente importante dos projetos de desenvolvimento. Nunca se levou em conta que tal transferência dependeria não meramente de elementos técnicos, mas também de fatores sociais e culturais. A tecnologia foi vista como neutra e inevitavelmente benéfica [...] (ibid, p. 36).88 Não obstante o mérito de ESCOBAR na caracterização do
desenvolvimento como um regime de representação discursiva e constructo
histórico que promove um “encontro cultural” entre os povos e as pessoas e que
cria situações por meio das quais estes passam a ver uns aos outros
necessariamente de determinadas formas – ou como desenvolvidos ou como
subdesenvolvidos (ibid, p. 49), COOPER & PACKARD apresentam críticas a sua
abordagem e de outros autores que seguem linha semelhante (op. cit, p. 3).89 Estes
autores, tidos como “pós-modernos”, pecariam por enxergar no desenvolvimento
88 Tradução livre do original: Technology, it was believed, would not only amplify material progress, it would also confer upon it a sense of direction and significance. In the vast literature of sociology of modernization, technology was theorized as a sort of moral force that would operate by creating an ethics of innovation, yield and result […]. The concept of the transfer of technology in time would become an important component of development projects. It was never realized that such a transfer would depend not merely on technical elements but on social and cultural factors as well. Technology was seen as neutral and inevitably beneficial […]. Embora a análise não privilegie a via discursiva proposta por ESCOBAR, cremos que este trecho em muito reflete um dos aspectos principais de nossa análise do atual regime internacional de propriedade intelectual: o de uma variável estrutural cuja face ideacional é fortemente marcada pela ideia-força de que a propriedade intelectual, principal instrumento de proteção da inovação tecnológica, também é algo necessariamente benéfico em si mesmo. Invariavelmente, entre os entrevistados, este aspecto, chamado por alguns de “naturalização” ou de “mistificação” da propriedade intelectual foi criticado. Outro aspecto, o do automatismo, ou seja, o de que a elevação dos patamares de proteção aos direitos de propriedade intelectual asseguraria o caminho ao progresso econômico e social, igualmente criticado por alguns entrevistados, também se encontra presente na configuração ideacional do regime. 89 Podemos mencionar, por exemplo, Ashis Nandy, autor, entre outras obras, de Science, Hegemony and Violence: a Requieum for Modernity.
84
apenas um discurso que impõe um aparato de controle e subserviência. O
desenvolvimento seria então nada mais do que uma série de discursos e práticas
de controle – um “regime de poder e conhecimento” – localizado numa vaga
noção de ‘Ocidente’ ou em pretensas reivindicações da Ciência Social Europeia
de ter encontrado categorias universais para compreender e manipular a vida
social em toda parte (op.cit, p. 3).90 A debilidade maior dos pós-modernos
residiria na atitude de abstração em relação às instituições e estruturas em que a
ação econômica tem lugar e que moldam aqueles discursos e práticas (ibid, p. 3).91
90 Sobre a “noção de Ocidente”, recomendamos a leitura de interessante artigo de JAGUARIBE (2002). Para o autor, a pergunta pela “essência” de uma cultura ou civilização é uma pergunta que se dirige ao que, nessa cultura, no seu processo histórico, constitui seu âmago: aquilo que, ao longo do tempo, permanece estavelmente como sua característica, relativamente a outras culturas. Consiste também em questionar quais são suas raízes e legado fundamental. JAGUARIBE enxerga no cristianismo um elemento central da cultura ocidental. Outra característica fundamental seriam suas raízes greco-romanas. Mas é somente a partir do processo divisivo que separou o cristianismo romano do bizantino – a partir do Concílio de Nicéia e no curso da Alta Idade Média até a coroação de Carlos Magno em 800DC – que se pode distinguir a evolução de uma sociedade romano-cristã ocidental de sua congênere oriental. Desde então, a sociedade cristã ocidental passará por alguns momentos históricos cruciais como o Império Carolíngio, o Feudalismo, o Renascimento, a Reforma, o Iluminismo, o século XIX e a Primeira Guerra Mundial. A partir deste último evento, JAGUARIBE entende que, no plano cultural, a sociedade ocidental procedente do Iluminismo, do Romantismo e do Positivismo embarcou num crescente desenvolvimento científico-tecnológico que conduziu a uma crescente laicização do mundo e à substituição da crença básica do Ocidente, fundada em Deus e Jesus Cristo, por uma crença na ciência e na tecnologia, independentemente de terem persistido, no Ocidente, as convicções religiosas (a mesma fé na ciência e tecnologia da qual trata ESCOBAR). Durante a Segunda Guerra Mundial, o nazismo colocou de forma nítida, pela primeira vez no mundo, a tensão entre dois ingredientes fundamentais da cultura ocidental: o da “technê” e o do “telos”, o dos processos relacionados com a eficiência operacional e dos processos relacionados com valores superiores, tal como incorporados na noção de humanismo. A cultura greco-latina permitiu, mais durante alguns períodos e menos em outros, uma combinação harmônica e exitosa entre um sentido de eficácia dado pela “technê” helênica e pela organização político-militar-romana, e uma orientação a valores superiores, dada pelo humanismo, com Sócrates, Platão, Aristóteles e com os epicuristas e estóicos romanos como Lucrécio, por um lado, e Cícero e Sêneca, por outro. O nazismo rompeu, na civilização ocidental, o equilíbrio entre o sentido da eficácia e o sentido humanista, optando contra este e por aquele, em favor de um racismo germânico. JAGUARIBE afirma que “sua derrota salvou a humanidade de um barbarismo tecnológico que poderia ter longa duração” (ibid, p. 110). O autor enxerga, no início do século XXI, em termos obviamente mais suaves e menos radicais do que o nazismo (mas não por isto menos difundidos), um novo conflito entre o sentido da eficácia e os valores do humanismo. Sua ideologia é, aponta, o neoliberalismo, que tem nos Estados Unidos seu centro propagatório e na atual cultura anglo-saxônica seu transfundo legitimador, por intermédio de seu positivismo lógico e eficientismo operacional (ibid, p. 110). JAGUARIBE alerta para os efeitos predatórios das sociedades supereficientistas atuais “que operam no sistema internacional como uma espécie de tiranossauros” (ibid, p. 111) e clama pela necessidade de dosagem e compatibilização entre o eficientismo e o humanismo. O diagnóstico de JAGUARIBE atinge o âmago do embate ideacional que se dá atualmente, no regime internacional de propriedade intelectual. Sua análise é exemplo de que não é assim tão vaga a “noção de Ocidente”, tal qual apregoam os críticos dos pós-modernos. 91 Vale mencionar que esta mesma crítica é dirigida por COOPER & PACKARD a outro conjunto de críticos da ortodoxia do desenvolvimento, denominado de “ultramodernos” (ibid, p. 2-3). Por ultramodernos, os autores entendem o conjunto de economistas teóricos que insistem que as leis da economia tem se provado válidas e que defendem que a mão invisível do mercado aloca os recursos otimamente. Para estes teóricos, o que existe é só a economia e não uma “economia do
85
Compartilhamos dessa crítica dirigida aos pós-modernos, por entendermos
que o fenômeno do desenvolvimento - seja ele tomado conceitualmente como
“ideia” ou “discurso”92 - não pode ser compreendido adequadamente sem estar
localizado no conjunto específico de aparatos institucionais internacionais e
nacionais que ajudaram e ajudam a moldá-lo. Em sua análise sobre o
desenvolvimento, FERGUSON (1990) demonstra que o Estado nos países “menos
desenvolvidos” e as organizações internacionais como o Banco Mundial
encontraram, cada um, seus respectivos papéis a desempenhar: os governos
nacionais alocando recursos e representando a si mesmos como agentes da
modernidade, enquanto as agências internacionais intervêm legitimamente nos
Estados soberanos apresentando seus serviços como benevolentes, técnicos e
neutros politicamente. A conclusão a que se chega é a de que aumentam as
possibilidades de determinadas ideias serem perseguidas e aceitas se elas
contarem com o suporte de instituições poderosas seja no âmbito nacional, ou no
internacional (COOPER & PACKARD, op. cit, p. 4).
desenvolvimento”. Sempre que os governos nacionais ou organizações internacionais tentam fazer o mercado funcionar melhor, eles introduzem distorções que fazem com que piore. Embora os autores não mencionem os autores ou escolas que integram o grupo dos ultramodernos, entendemos que estão se referindo aos economistas graduados em universidades norte-americanas (especialmente a de Chicago) que, durante aos anos 70 e 80, apresentaram críticas ao discurso do desenvolvimento e ao Welfare State europeu (inspirado no pensamento keynesiano), em prol das ideias neoliberais, tendo em Friedrich Hayek e Milton Friedman dois de seus mais importantes artífices. O neoliberalismo ingressará, pois, aqui, como o conjunto de ideias econômicas que influenciou de forma decisiva a formulação de políticas públicas de propriedade intelectual durante o Governo Fernando Henrique Cardoso (especialmente em seu primeiro mandato), ancorado numa concepção preponderantemente negativa da ideia de desenvolvimento. Esta concepção não decorreu exclusivamente de influências estruturais, mas também (decisivamente) de escolhas internas, com atores bem definidos. 92 Apesar de nossa análise privilegiar as ideias enquanto variável explicativa, a abordagem de representações discursivas de ESCOBAR não é descabida como forma de auxiliar a caracterização, no próximo capítulo, do regime internacional de propriedade intelectual como um constructo histórico. Em nota explicativa (nota 11 do cap. 1), ESCOBAR argumenta que os métodos da história das ideias e o do estudo das formações discursivas não são incompatíveis. Enquanto o primeiro confere atenção às dinâmicas internas da geração social de ideias de uma forma que o segundo por vezes subestima (dando a impressão de que os modelos de desenvolvimento foram meramente impostos “de fora” aos países do Terceiro Mundo e não também resultantes de escolhas internas), a história das ideias tende a ignorar os efeitos sistêmicos da produção discursiva que, de forma importante, moldam o que conta como ideia em primeiro lugar (ESCOBAR, op. cit, p. 228). Com efeito, em nossa análise, o regime internacional de propriedade intelectual ingressa como uma variável sistêmica que impõe constrangimentos à dimensão doméstica de formulação de políticas públicas de propriedade intelectual. Esta variável é conformada por aspectos materiais e ideacionais, sendo possível caracterizá-la não só a partir desta perspectiva, mas também como uma formação discursiva ou um discurso de dominação resultante de um contexto histórico determinado: o da finalização da Rodada Uruguai do GATT, fim da Guerra Fria e aprofundamento do processo de globalização comercial e financeira.
86
Enfim, a força e continuidade das ideias dependem do grau por meio do
qual elas se encerram nas instituições. As ideias que conseguem ser
implementadas e consolidadas de forma bem sucedida são aquelas instiladas para
dentro de um ambiente institucional, onde uma equipe de pessoas e lideranças
comprometidas com uma mesma visão é capaz de transformar ideias individuais
em um propósito institucional (SIKKINK, 1991, 1997; FINNEMORE, 1997).
Significa dizer, sem negar que as instituições respondem a interesses econômicos
e políticos específicos, que é preciso examinar com mais exatidão por que e como
determinadas instituições “aprendem” e adotam um novo conjunto de políticas em
determinados momentos.93 Antes, no entanto, é necessário compreender como o
desenvolvimento, tratado aqui como ideia, adquiriu o status de vetor conceitual e
ideacional da política externa brasileira, e também do pensamento econômico
nacional.
2.4.1 O “Desenvolvimento” como vetor ideacional da Política Externa e seu lugar no pensamento econômico brasileiro
É fato que as Relações Internacionais desenvolveram suas reflexões mais
consistentes, como disciplina acadêmica, nos Estados Unidos, ao longo de todo o
século XX. Em função disto, ao iniciar sua discussão sobre os diferentes enfoques
paradigmáticos que apresenta como capazes de analisar a política externa
brasileira, CERVO afirma que é preciso estar atento para o risco pedagógico de
uma teoria alheia ser epistemologicamente inadequada para explicar as relações
internacionais de outros países, como o Brasil (2003, op.cit, p. 5). Cada país deve
ser capaz de partir para construções teóricas que sejam epistemologicamente
adequadas e socialmente úteis, no que concerne à compreensão de sua respectiva
realidade. Com base nesta constatação, CERVO propõe-se a refletir acerca da
política exterior e das relações internacionais do Brasil, de forma a elaborar
conceitos que lhes confiram inteligibilidade orgânica e forneçam, ao mesmo
tempo, critérios de avaliação de resultados (ibid, p. 6).
93 Esta noção de “aprendizado institucional”, presente nos trabalhos de SIKKINK (1991; 1997) e FINNEMORE (1997) completa nosso aparato teórico, composto ainda pela análise ideacional de política externa e pelo institucionalismo histórico.
87
A proposta de CERVO, especificamente, é o de analisar a política exterior
do Brasil com base em um conceito paradigmático. O paradigma, assevera,
equivale a uma explanação compreensiva do real que, nas ciências sociais,
procura “dar inteligibilidade ao objeto, iluminá-lo através de conceitos e dar
compreensão orgânica ao complexo mundo da vida humana” (ibid, p. 7). CERVO
esclarece que a análise paradigmática corresponde, antes de tudo, a um método.
Ele permite a construção de conceitos, pela via da observação empírica, com a
história constituindo o campo de observação e o laboratório de experiências sobre
as quais o autor se inclina (ibid, p. 7).
Entre os pressupostos evocados pela análise paradigmática, CERVO
afirma que, por trás de um paradigma, “verificamos a ideia de nação que um povo
– ao menos seus dirigentes – faz de si mesmo, a visão que projeta do mundo e o
modo como percebe a relação entre esses dois elementos” (ibid, p. 7). Portanto, o
“paradigma comporta uma cosmovisão, a imagem que uma determinada
formulação conceitual projeta dos outros povos, nações ou do mundo todo” (ibid,
p. 7).94 Da análise paradigmática, é possível esperar dois resultados. De um lado,
podemos esperar um efeito cognitivo, “uma vez que o paradigma organiza a
matéria, sempre complexa, difusa e disparatada quando se trata do comportamento
humano, conferindo-lhe o grau possível de inteligibilidade orgânica” (ibid, p. 7).
Por outro lado, existe o efeito operacional. Equivale a dizer que “um paradigma
inclui um modo de proceder, no caso, de fazer política exterior ou de controlar as
relações internacionais (ibid, p. 7). 95
Uma importante observação realizada por CERVO é a de que todos “os
países abrigam sempre suas políticas exteriores e seu modelo de inserção
internacional dentro de paradigmas” (ibid, p. 8). Significa dizer, em outras
palavras, que os paradigmas informam a política externa brasileira, seja na fase de
formulação ou na de execução.
Por seu turno, LIMA afirma que os paradigmas de política externa
representam “verdadeiras teorias de ação diplomática, constituídas por um
94 Não há como deixar de registrar aproximações com o conceito de “estrutura do discurso político” em HALL (1989). Ver p. 56. 95 Com base nesta categorização apresentada por CERVO acerca da possibilidade de dois tipos de resultados da análise paradigmática, vale frisar que nossa pesquisa ocupou-se em privilegiar mais os efeitos cognitivos do que os operacionais. De fato, os efeitos cognitivos estão mais relacionados à fase de formulação de políticas, ao passo que os operacionais referem-se preponderantemente à de implementação ou execução.
88
conjunto mais ou menos articulado de ideias-força, que pode ou não estar
respaldado em visões e teorias existentes” (1994, op. cit., p. 66, grifamos).
Considerada a “natureza interpretativa desses mapas cognitivos, que ajudam o
diplomata a dar sentido à complexidade do mundo que o circunda, deles se
derivando alternativas distintas de ação, esses paradigmas são relativamente
excludentes entre si”. (ibid, p. 66).96
É possível notar, tanto na descrição de CERVO dos paradigmas de política
externa como “cosmovisões”, quanto no de LIMA como “mapas cognitivos” ou
“conjunto mais ou menos articulado de ideias-força”, que os elementos
ideacionais são vitais para a sua compreensão. Não à toa CERVO distingue dois
conjuntos de componentes do paradigma, o “bloco mental”, composto de
ideologia e política, e o “bloco duro”, composto de percepção de interesses
nacionais, relações econômicas internacionais e os impactos sobre a formação
nacional (2003, op. cit., p. 8).
Assim, elementos ideacionais e materiais conformam os paradigmas de
política externa. Como demonstrado na discussão conceitual acerca das ideias,
separá-las dos interesses resulta muito mais de uma necessidade analítica e
metodológica do que uma possibilidade teórica. Desta forma, tendo em vista a
nossa prioridade analítica conferida aos elementos ideacionais (particularmente as
ideias) – ou “bloco mental” como prefere CERVO –, optamos
terminologicamente pelo emprego da expressão “vetor ideacional” em detrimento
de “paradigma”.97 O vetor ideacional, portanto, nada mais é do que o conjunto de
elementos não-materiais que ajuda a conformar um paradigma de política externa.
96 Para LIMA (ibid, pp. 66-67), a capacidade de articulação de paradigmas de política externa se encontra entre os recursos organizacionais detidos pelo MRE que viabilizam seu peso institucional na formulação da política externa brasileira. Os dois demais seriam: 1) as características institucionais próprias do Itamaraty, que o aproximam do modelo clássico de civil service, com padrões regulares de carreira, controle sobre o recrutamento, o sistema de treinamento de avaliação profissional; 2) o alto grau de insulamento dessa burocracia em relação aos influxos provenientes do seu ambiente político e social. Sobre este último aspecto, referente ao insulamento, a discussão que apresentamos na p. 29 (nota 17) demonstra que houve um relativo enfraquecimento da tradição insular do Itamaraty, sendo hoje o processo decisório razoavelmente compartilhado com outros ministérios e agências do Estado, apesar de ainda se reservar ao MRE protagonismo. Quanto ao primeiro aspecto, de institucionalização da carreira diplomática, recomendamos a leitura de CHEIBUB (1985). 97 Outra motivação, de ordem analítica e terminológica, nos estimulou a adotar a expressão “vetor ideacional”, em vez de “paradigma”. Com efeito, a discussão apresentada em seguida por SIKKINK (1997) e FINNEMORE (1997) dedica-se a explorar como e por que, em determinados momentos, consensos em torno do “receituário desenvolvimentista” em determinadas instituições foram rompidos, motivando “mudanças de paradigmas institucionais”. As autoras examinam como e por que determinadas instituições (nos casos mencionados, a CEPAL e o Banco Mundial)
89
Passamos assim a explorar desde quando e como o “desenvolvimento”
impregnou-se de forma permanente e duradoura, como ideia (ou vetor ideacional),
no processo de formulação da política externa brasileira, gozando, por
praticamente seis décadas, de ampla legitimação e aceitação política e social,
sendo relegado da agenda de prioridades do comportamento estatal a partir da
última década do século XX.98 Essa explanação não prescinde de referências a
elementos materiais, especialmente no que se refere à “estrutura das relações do
Estado com a Sociedade”, fator assinalado por HALL (1989), como capaz de
afetar o fluxo das ideias. Afinal, conferir prioridade aos elementos ideacionais não
implica em exclusividade.
Outro esclarecimento se faz necessário. Uma vez que a opção analítica e
metodológica foi a de colocar a “ideia do desenvolvimento” como eixo-central
(variável explicativa) na análise que apresentamos da política externa brasileira,
priorizamos aquelas que, justamente, optaram por escolha igual ou semelhante.99
Procuramos, contudo, não negligenciar abordagens como as de LIMA (1994) e
PINHEIRO (2000). Estas duas autoras, em suas análises paradigmáticas sobre a
política externa brasileira, recorrem a outros eixos para a definição de seus
paradigmas, mas não por isto deixam de lidar com a “ideia do desenvolvimento”,
seja ela discutida como um dos objetivos centrais da política externa dentro de sua
tipologia de paradigmas (como em LIMA), ou como outro eixo estruturante da
abandonaram determinadas ideias em torno do desenvolvimento em prol de outras (CEPAL) ou passaram a adotar ideias antes não cogitadas (Banco Mundial). Assim, o emprego da expressão “vetor ideacional de política externa” ajuda-nos a não confundir as “mudanças paradigmáticas institucionais”, às quais as autoras se referem, com a noção de “paradigmas de política externa”. Além disso, como a abordagem institucionalista de SIKKINK e FINNEMORE auxilia-nos a explicar mudanças de paradigmas institucionais na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, esta foi mais uma razão para termos e expressões como “paradigma”, “mudanças de paradigmas” e “mudanças paradigmáticas” serem utilizados exclusivamente ao lidarmos com a abordagem institucionalista das autoras. 98 Para CERVO (2008, p. 13), o Brasil é um país que acumulou sólido pensamento, que não evoluiu, contudo, para a teorização das relações internacionais. Apesar de existir este consistente pensamento ainda a ser mais profundamente investigado, o autor afirma que é possível detectar dois traços em sua trajetória recente: a vinculação com teorias latino-americanas de relações internacionais e o problema epistemológico central, o desenvolvimento. CERVO sublinha, ainda, que “conquanto os pensadores brasileiros tenham centrado sua reflexão sobre o desenvolvimento da nação, não coincidiram no modo de conceituá-lo e, logicamente, nos mecanismos de como alcançá-lo” (ibid, p. 13). Sobre a necessidade de o Brasil desenvolver teorização própria em Relações Internacionais, recomendamos a leitura de artigo de FIORI (2010). 99 A mais óbvia é a do paradigma do Estado desenvolvimentista (1930-1989) em CERVO (2003), cujo “bloco mental” é caracterizado, segundo o autor, pela ideologia econômica desenvolvimentista.
90
política externa brasileira, além dos próprios paradigmas propostos (como em
PINHEIRO).
Com efeito, de acordo com LIMA (1994), ao longo da história
republicana, a corporação diplomática brasileira articulou dois paradigmas de
política externa brasileira: o americanista (ou da aliança especial com os Estados
Unidos) e o globalista. De acordo com o primeiro, a aproximação com
Washington é vista como um instrumento de ampliação da capacidade de
negociação do Brasil no sistema internacional, ao passo que, no segundo, o maior
poder de barganha do Brasil decorreria da estratégia inversa, a saber, de busca da
independência em relação aos Estados Unidos, obtida a partir da diversificação
das relações exteriores (ibid, pp. 66-67). Tanto um como outro visam ao alcance
do duplo objetivo que norteou a diplomacia brasileira desde os seus primórdios: a
conquista da autonomia no plano internacional e a promoção e o alcance do
desenvolvimento econômico interno (NOGUEIRA, op. cit., p. 25). Quanto ao
segundo objetivo, sua permanência ao longo do tempo está relacionada não só à
capacidade institucional que o MRE teve para articulá-lo e promovê-lo, mas
também na legitimação da política externa como instrumento de desenvolvimento
nacional, junto às elites domésticas (LIMA, 2005, op. cit., p. 16).100 Assim,
podemos dizer que, em LIMA (1994), independentemente da estratégia de ação
escolhida pela diplomacia brasileira, o desenvolvimento manteve-se como
objetivo central de nossa política exterior ao longo da maior parte da trajetória
republicana. A diferença básica entre as duas para alcançá-lo, em termos
ideacionais, reside nas suas influências intelectuais e nas suas respectivas
prescrições de políticas econômicas e sociais, tanto no âmbito doméstico quanto
no internacional.
PINHEIRO (2000), por sua vez, propõe-se não só a aprimorar as
categorizações dos tradicionais paradigmas de política externa brasileira – o
100 Para LIMA (ibid, p. 16), a crença na política externa como instrumento importante de um projeto de desenvolvimento nacional se consolidou não só como resultado de uma construção intencional dos agentes diplomáticos, mas também como um legado do processo de formação do Estado brasileiro. Significa dizer que o fato do país ter ingressado no início do século XX com praticamente todos os conflitos territoriais com os seus vizinhos resolvidos de forma pacífica contribuiu para fomentar entre as elites a percepção de que as principais ameaças externas ao Brasil não decorriam de questões clássicas de guerra e segurança militar, mas sim das questões relacionadas à vulnerabilidade econômica e ao desenvolvimento.
91
americanista e o globalista101 -, como também refletir sobre o novo tempo da
economia e política nacionais a partir do Governo Fernando Collor de Mello
(1990), que teria contribuído para a crise final de ambos.102
O que mais vale sublinhar, contudo, na análise da autora, é o
reconhecimento do desenvolvimento econômico como um segundo eixo de
estruturação da política externa, somado aos paradigmas que apresenta. Este
segundo eixo, afirma, contribuiu para que diplomatas e analistas percebessem uma
forte linha de continuidade na diplomacia, apesar dos momentos de ruptura (ibid,
p. 311). O objetivo do desenvolvimento, pautado no modelo de industrialização
por substituição de importações (MSI), esteve presente, pelo menos entre 1930 e
1990, e o que teria mudado ao longo da história teriam sido apenas as visões sobre
o melhor meio para alcançá-lo (ibid, p. 311).
Disposto a mostrar como a evolução histórica da formulação política do
conceito de desenvolvimento influiu na atuação diplomática brasileira, COSTA E
SILVA NETO (1989) afirma que foi na década de 30, quando os interesses
urbano-industriais nacionais se tornaram mais visíveis e conquistaram um espaço
político autônomo, que a industrialização se cristaliza, identificada como
modernização e desenvolvimento (ibid, p. 131). Vários fatores concorreram para
esta transformação. No âmbito externo, os mais importantes foram a crise
econômica internacional, a disputa pelo mercado e pelo sistema produtivo por
parte das potências capitalistas, a divisão do mundo em blocos e a política de boa-
101 De acordo com a autora, a política externa brasileira pode ser dividida, historicamente, em quatro períodos, cada um deles correspondendo à hegemonia de um dos paradigmas propostos por LIMA (1994). Do início do século até o final da década de 50, e entre 1964 e 1974, o americanismo foi o paradigma hegemônico. Entre 1961 e 1964, anos da Política Externa Independente, surge o globalismo que, após interrompido por cerca de dez anos por uma nova onda americanista , vai ressurgir no Governo Geisel (1974), só vindo a ceder lugar para novas articulações no anos 90, quando atinge o seu limite (ibid, pp. 308-309). PINHEIRO afirma ainda que a rigidez com que os dois paradigmas foram acima apresentados não é impedimento, contudo, para identificar nuances na dinâmica política em cada um deles. Assim, à divisão da política externa por fases, acrescenta uma nova subdivisão: a do americanismo pragmático (1902/1945, 1951/1961 e 1967/1974), a do americanismo ideológico (1946/1951, 1964/1967), a do globalismo grotiano (1961/1964) e, finalmente a do globalismo hobbesiano (1974/1990). A autora discorre sobre as razões teóricas para tais categorizações (ibid, pp. 308-310). 102 Valendo-se das explicações presentes em LIMA (1994, op. cit, p 70) a autora afirma que, no Governo Collor, testemunha-se uma dissociação entre os valores e as razões pragmáticas do Executivo que justificavam a retomada do americanismo e os valores e os interesses das forças políticas e sociais mais relevantes que não endossavam mais esta alternativa (PINHEIRO, op. cit., p. 311). Quanto ao globalismo, seu esgotamento se explicaria pela fragmentação da coalizão diplomática em razão das transformações na ordem mundial com o fim da Guerra Fria que minou o poder dos países do Sul e o discurso terceiro-mundista (PINHEIRO, 2000, p. 311 apud LIMA, op. cit., p. 70; FONSECA JÚNIOR, 1998, p. 347).
92
vizinhança de Franklin D. Roosevelt (CERVO, op. cit, p. 11). Novas forças
políticas internas, em especial a nascente burguesia-industrial e massas urbanas
em busca de emprego e renda, responderam à atitude dos países capitalistas mais
avançados de regresso ao protecionismo e a soluções nacionalistas com demandas
por modernização. Tais forças “criticavam a dependência e o atraso histórico e das
demandas de uma sociedade que se havia transformado” (ibid, p. 11). O resultado
vai ser a redefinição das metas econômicas brasileiras em direção à
industrialização com a formação gradual de uma ideologia que passa a identificar
o interesse do setor industrial com o interesse da nação como um todo (COSTA E
SILVA NETO, op. cit., p. 132).
Assim, dois fatores exerceram grande influência a partir dos anos 30 na
caracterização dessa ideologia e na identificação da industrialização com o
desenvolvimento: 1) o surgimento de uma burguesia industrial que passou a tomar
consciência da sua importância política e do seu papel como classe; e, 2) a
formação de um Estado centralizador, de cunho intervencionista, aliado a uma
burocracia-técnica (especialmente economistas) com certas concepções
modernizantes (ibid, p. 131). No que tange ao primeiro aspecto, a burguesia
industrial passou a se mobilizar em torno da defesa de seus interesses dentro da
política econômica do Governo, de forma a exercer pressão sobre o aparelho
estatal, com a formulação de uma plataforma industrialista. Quanto ao segundo, o
aspecto burocrático marcante da “Era Vargas” foi a multiplicação de agências
governamentais. A proposta do Estado era a de racionalizar (burocraticamente)
sua ação centralizadora e dar resposta política para a coexistência do setor então
tradicional (agro-exportador) e do setor moderno (ibid, p. 132). Esta estratégia de
transpor o conflito entre um setor nascente e pujante e um setor tradicional para a
multiplicidade dos órgãos governamentais, mediante a representação de classes
dentro deles, acabou por possibilitar a penetração do pensamento industrialista no
seio da burocracia (ibid, p. 132).
Portanto, desde a Era Vargas (1930-1945), o Estado tendeu a acompanhar
de perto o processo de desenvolvimento da indústria nacional.103 Emergiu a partir
103 O texto de COSTA E SILVA NETO (1989) é bastante elucidativo da trajetória histórica do conceito de desenvolvimento e da forma como se firmou como uma das bases da ação externa do Brasil, desde a Era Vargas até o fim do regime militar de 1964-1985. Aqui, não resgatamos todas estas passagens porque fogem ao escopo das pretensões deste tópico. Apenas frisamos o momento em que o desenvolvimento ingressa definitivamente como eixo estruturante da política externa.
93
dos anos 30 uma modalidade de Estado autocrático e desenvolvimentista que, por
ter adquirido tais características básicas sob a presidência de Getúlio Vargas, pode
ser denominada de “varguista” (SALLUM JR, 2003, p. 35). Podemos afirmar,
portanto, que, dos anos 30 até os anos 90, prevaleceu no Brasil esta modalidade de
Estado que cumpriu o papel de núcleo organizador da sociedade e funcionou
como alavanca para a construção de um capitalismo industrial, nacionalmente
integrado, mas dependente do capital externo, por meio de uma estratégia de
substituição de importações (ibid, p. 35).104
O MRE seguiu a tendência geral do Estado a partir dos anos 30 e
transformou o desenvolvimento em ponto central da agenda diplomática. O
desenvolvimento tornou-se um aspecto duradouro e consistente da política externa
brasileira, afirmando-se como seu vetor conceitual.105 Conferiu nova
funcionalidade ao setor externo, inventando o modelo de inserção internacional do
Brasil que visa realizar os interesses de uma sociedade cada vez mais complexa,
com o auxílio de uma política exterior que privilegie a autonomia decisória, a
cooperação externa, uma política de comércio exterior flexível e não doutrinária e
a subordinação das questões de segurança aos fins econômicos (CERVO, op. cit.,
p. 12).
No mesmo sentido, LIMA & HIRST afirmam que a política externa
brasileira possui um forte componente desenvolvimentista (2006, op. cit, p. 22).
Este traço característico se revelou no fato da trajetória da política externa estar 104 Sobre a denominação “varguista”, SALLUM JR reconhece que ela é apenas mais uma entre outras modalidades autocráticas e desenvolvimentistas de Estado ocorridas na periferia capitalista no mesmo período. Com a mesma ressalva, adotamos esta denominação para nos referimos ao modelo de Estado prevalecente no Brasil entre 1930 e 1990. O autor reputa os processos de democratização política e liberalização econômica dos anos 80/90 como “dimensões-chave” para compreender a transformação daquela forma de Estado. Apesar de demonstrar que a partir do Governo da “Nova República” de José Sarney (1985-1990) o Estado brasileiro vai gradualmente abandonando o modelo varguista, SALLUM JR afirma que foi somente no primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso que o Estado ganhou definitivamente outra feição, segundo um novo padrão hegemônico de organização, inclinado ao liberalismo em assuntos econômicos, e identificado com a democracia representativa (ibid, p. 36). Enfim, podemos afirmar que, durante o primeiro Governo Fernando Henrique Cardoso se cimentou definitivamente um novo pilar informador das relações entre o Estado e a sociedade. 105 Apesar de reconhecer que o Brasil soube reagir ao estrangulamento econômico provocado pela crise econômica mundial de 1930 e posterior início da Segunda Guerra Mundial, por meio da implementação de políticas públicas que fortaleceram a o Estado Central e sua economia nacional, FIORI (2007, pp. 237-238) afirma que o país só se tornou uma experiência original de desenvolvimento acelerado e industrialização pesada depois de 1955, durante o Governo Juscelino Kubistchek, sob a liderança dos investidores estatais e do capital privado estrangeiro, provenientes de quase todos os países do núcleo central do sistema capitalista. Neste momento é que o Brasil teria começado a exercitar uma política externa mais autônoma, combativa e global, ao lado de suas políticas econômicas desenvolvimentistas.
94
estreitamente vinculada às conjunturas críticas que atingiram o modelo econômico
desenvolvimentista. Conjunturas críticas são trazidas por uma combinação de
mudanças sistêmicas e domésticas; enfim, são aqueles momentos em que “o
padrão dominante tanto do desenvolvimento econômico quanto internacional
chegam à exaustão e uma nova coalizão vencedora é constituída, levando a
mudanças tanto na política externa econômica, como na política externa” (ibid,
pp. 22-23). De acordo com LIMA & HIRST, duas destas conjunturas críticas
podem ser identificadas no século passado: a primeira, justamente nos anos 30
com a já comentada crise no modelo agroexportador e sua substituição pelo MSI,
e a segunda, nos anos 90, quando se exaure o regime de “industrialização
protegida”, que é substituído por um modelo de integração competitiva na
economia global (ibid, p. 23).
LIMA & HIRST (ibid, p. 23) descrevem, de forma sintética, o modelo de
desenvolvimento econômico dominante no Brasil entre os anos 30 e 90 e como a
política externa tornou-se um instrumento fundamental para a sua afirmação:
O Brasil se industrializou rapidamente durante a segunda metade do século XX e o país foi um dos exemplos mais exitosos da industrialização por substituição de importações. As principais características desde modelo de desenvolvimento foram o papel central na regulação, provisão dos incentivos e na produção; a discriminação relativa em relação às importações; e a participação em larga escala do investimento estrangeiro direto num amplo escopo de setores industriais. Nos anos 60 e 70 um componente exportador foi adicionado a esta estratégia de desenvolvimento. A política externa se tornou um importante instrumento do modelo de substituição de importações (MSI), e este, por seu turno, auxiliou a abastecer as demandas brasileiras por um tratamento diferenciado aos países em desenvolvimento no regime de comércio, pela criação de um Sistema Geral de Preferências (SGP) para as exportações dos países em desenvolvimento, e também pela abertura de novos mercados e pela expansão da cooperação econômica com os países do Sul.106 As autoras afirmam que os development paths (vias ou rotas do
desenvolvimento) criam novas ideias, interesses e instituições (ibid, p. 23). Uma
106 Tradução livre do original: Brazil industrialized rapidly during the second half of the twentieth century and the country was one of the most successful examples of import substitution industrialization. The major characteristics of this development model were a central role for the state in regulation, in the provision of incentives, an in production; relative discrimination against imports; and large-scale participation of foreign direct investment in a wide range of industrial sectors. In the 1960s and 1970s an export component was added to this development strategy. Foreign policy became an important instrument of the ISI model, and this in turn helped to fuel Brazilian demands for the creation of a Generalized System of Preferences (GSP) for developing countries’ exports, and also for the opening of new markets and the expansion of economic cooperation with southern countries.
95
vez que um país move-se em direção a um caminho (path) em particular, este se
torna muito difícil de desalojar. As condições internacionais que contribuíram
para a emergência de um determinado development path podem até modificar ou
mesmo desaparecer, sem que isto implique em mudanças nas ideias, interesses e
instituições relacionadas àquela trajetória (ibid, p. 23). LIMA & HIRST afirmam,
então, que as trajetórias do desenvolvimento no Brasil são path dependent (ibid, p.
23).107 Daí a estabilidade e a continuidade da política externa do país ao longo do
período do MSI.
A afirmação das autoras de que “development paths criam novas ideias,
interesses e instituições” ajuda a explicar como e por que a “ideia do
desenvolvimento” adquiriu predominância enquanto categoria conceitual e
ideacional e se constituiu em um dos principais eixos estruturantes da política
externa brasileira.108 Analiticamente, as autoras atribuem sua estabilidade e
continuidade a vários fatores, entre eles o relativo insulamento burocrático do
Itamaraty e sua promoção de um conjunto particular de ideias, à forma pela qual
ideias passadas continuaram a influenciar a visão de mundo dos tomadores de
decisão brasileiros e ao estreito vínculo entre a identidade internacional do Brasil
e sua orientação de política externa (ibid, p. 23).
Resta averiguar, assim, as influências políticas e intelectuais decisivas que
contribuíram para a consolidação do desenvolvimento como vetor conceitual e
ideacional da política externa brasileira. De acordo com CERVO, o “bloco
mental” do paradigma desenvolvimentista penetrou com força a opinião pública e
a vida política no Brasil a partir dos anos 50. Entre os homens de Estado mais
receptivos a esse ideário figuraram Getúlio Vargas, Juscelino Kubistchek e
Ernesto Geisel. Entre os intelectuais brasileiros e estrangeiros responsáveis pela
construção do pensamento desenvolvimentista, destacaram-se Raúl Prebish, Celso
107 Sobre a discussão conceitual de path dependence, ver a p. 40. Portanto, a abordagem das autoras revela este liame com o institucionalismo histórico, que possui justamente na noção de path dependence uma de suas premissas teóricas centrais. 108 A abordagem das autoras se aproxima também da discussão sobre a interferência das instituições como canais capazes de filtrar e modificar o fluxo das ideias, objeto do próximo tópico. Por um processo de “aprendizado social”, defendemos que as instituições são capazes não só de encerrar ideias, mas também de, a partir das mesmas, modificar seu padrão de atuação intelectual e política e sua configuração material. Para tanto, principalmente na fase de adoção das novas ideias, são fundamentais também as lideranças individuais e os atributos de suas personalidades.
96
Furtado, Ruy Mauro Marini, Robero Lavgana, Theotonio dos Santos e outros
(ibid, p. 23) .
A afirmação do ideário desenvolvimentista no Brasil sofreu influência de
um movimento continental (latino-americano) com um centro difusor intelectual
bem determinado: a CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina, órgão
especializado das Nações Unidas criado no final dos anos 40 e sediado em
Santiago do Chile, que abrigou um relevante grupo de economistas e outros
cientistas sociais, liderados por Raúl Prebish, que chegou à organização em 1949.
O conjunto de proposições teóricas e de políticas econômicas elaboradas por esse
grupo desde então deu substância ao que passou a ser chamado de
desenvolvimento cepalino, “referindo-se o termo às teses dos autores da CEPAL
que propunham que a industrialização apoiada pela ação do Estado seria a forma
básica de superação do subdesenvolvimentismo latino-americano”
(COLISTETTE, 2001, p. 21). Mais do que isto, o pensamento de Raúl Prebish e
do grupo que ele compôs, com destaque para Celso Furtado, “constitui o ponto de
partida de uma teoria latino-americana e brasileira das relações internacionais
(CERVO, 2008, op. cit., p. 14). Em outras palavras, “o pensamento denominado
como ‘Prebish-Cepal’ constituiu o ponto de início de desenvolvimento do
pensamento próprio, latino-americano, em Relações Internacionais” (BERNAL-
MEZA, 2004, p. 209).
Prebish e seus companheiros construíram uma abordagem estruturalista
das relações econômicas internacionais que foi crucial para o apelo que o
desenvolvimento, como ideia, teve para os principais líderes latino-americanos.
Os cepalinos sustentavam que as relações internacionais, particularmente o
comércio, “comportavam mecanismos que reproduziam as condições de
subdesenvolvimento, perpetuando-as no tempo, ou seja, convertendo-as em
estruturas permanentes” (ibid, p. 14). A noção de “deterioração dos termos de
troca” ancora-se na visão de um “centro” da economia mundial que produz bens
manufaturados e uma “periferia” produtora de produtos primários. O argumento
cepalino é o de que as transações do mercado mundial tenderiam a desfavorecer
os últimos perpetuando a sua situação de subdesenvolvimento (COOPER &
PACKARD, op. cit., p. 10).109 A vertente desenvolvimentista da CEPAL sofreu
109 Autor de interessante artigo em que questiona os principais componentes da formulação teórica da CEPAL e procura identificar em que aspectos gerais ela pode ter influenciado o pensamento
97
transformações (CERVO, op. cit., p. 13), desde os conceitos originais de Prebish
até a teoria do desenvolvimento de Celso Furtado que insiste sobre o componente
da desigualdade tecnológica110, chegando também aos enfoques da teoria da
dependência dos anos 60/70.
Segundo LIMA (1994, op. cit., p. 67), um dos principais méritos das
formulações cepalinas foi o seu sentido universalizante e sua capacidade de
“fornecer uma identidade econômica própria aos países em desenvolvimento, a
despeito de suas diferenças nacionais específicas, em termos de localização
geográfica, sistema econômico e regime político”.111 No caso do Brasil, no início
dos anos 60, as teorias cepalinas contribuíram para que a política externa buscasse
no eixo Norte-Sul o espaço para exercício de um papel protagônico pelo Brasil
(ibid, p. 67). Foi este eixo que propiciou ao MRE, no papel de agência
responsável pela condução da política externa, “encontrar na diplomacia
econômica no âmbito multilateral uma missão organizacional específica,
econômico brasileiro subsequente, COLISTETE (op. cit, p. 23) sintetiza o seu núcleo básico em duas proposições: a) as economias latino-americanas teriam desenvolvido estruturas pouco diversificadas e pouco integradas com um setor primário-exportador dinâmico, mas incapaz de difundir o progresso técnico para o resto da economia, de empregar produtivamente o conjunto da mão-de-obra e de permitir o crescimento sustentado dos salários reais. Ao contrário do que pregava a doutrina do livre-comércio, esses efeitos negativos se reproduziriam ao longo do tempo na ausência de uma indústria dinâmica, entendida como a principal responsável pela absorção de mão-de-obra e pela geração e difusão do progresso técnico, pelo menos desde a Revolução Industrial britânica; e, b) o ritmo de incorporação do progresso técnico e o aumento de produtividade seriam significativamente maiores nas economias industriais (centro) do que nas economias especializadas em produtos primários (periferia), o que levaria a uma diferenciação secular de renda favorável às primeiras. Os preços de exportação dos produtos primários tenderiam a apresentar uma evolução desfavorável frente à dos bens manufaturados produzidos pelos países industrializados. Como resultado, haveria uma tendência à deterioração dos termos de troca que afetaria negativamente os países latino-americanos através da transferência dos ganhos de produtividade no setor primário-exportador para os países industrializados. 110 Aprofundamo-nos um pouco mais à frente sobre o pensamento de Celso Furtado. 111 LIMA (ibid, p. 67) afirma que as formulações cepalinas tiveram este mérito em comparação aos princípios neutralistas e não-alinhados que, por estarem muito vinculados ao eixo “Leste-Oeste”, dificultavam a adesão dos países latino-americanos. No Brasil, a posição neutralista e não-alinhada resultava, em grande parte, da crítica nacionalista à matriz americanista da política exterior, crítica esta que foi gerada no âmbito do ISEB – Instituto de Estudos Superiores Brasileiros, especialmente pelos estudos de Hélio Jaguaribe. O nacionalismo político de Hélio Jaguaribe reivindica para o Brasil, no plano das relações internacionais (1958, p. 32), “uma posição de maior autonomia, em face dos Estados Unidos e das grandes potências europeias e se inclina para uma linha neutralista em relação ao conflito norte-americano-soviético”. O que LIMA argumenta é que a política externa brasileira logra, por intermédio da articulação do paradigma globalista, ultrapassar a mera posição de descontentamento com a clivagem Leste-Oeste para formular uma nova teoria de ação diplomática em que as relações estreitas com os Estados Unidos deixam de ser meios para aumentar o poder de barganha do Brasil e em que o desenvolvimento da capacidade industrial é uma condição indispensável para a atuação mais autônoma do país no sistema internacional (op.cit., p. 67). Para mais informações sobre o pensamento de Hélio Jaguaribe, engendrado no âmbito do ISEB, sugerimos a leitura de WEFFORT (2006, pp. 297-321).
98
complementar às políticas governamentais de desenvolvimento industrial” (ibid,
p. 67).
Mas se, por um lado, o pensamento cepalino contribuiu decisivamente para
que o desenvolvimento se incorporasse definitivamente como vetor conceitual e
ideacional da política externa, por outro, não houve consenso interno sobre a
melhor forma de atingi-lo. Economistas, dirigentes da esfera pública, Chefes de
Governo (democráticos ou do regime militar) e a opinião pública divergiram
sobre qual o modelo de desenvolvimento a adotar, desde que a ideologia
desenvolvimentista ganhou força no Brasil, a partir do final dos anos 40 e,
principalmente, início dos anos 50.112 De um lado, observou-se a defesa de uma
estratégia de desenvolvimento associado às forças externas do capitalismo, de
estreitos vínculos políticos, geopolíticos e econômicos com a matriz deste sistema,
os Estados Unidos (CERVO, op. cit., p. 13). De outro, uma proposta mais
autônoma de desenvolvimento, a ser tocado essencialmente pelas forças da nação
(ibid, p. 13). Não obstante a falta de consenso, as duas estratégias coexistiram de
forma razoavelmente pacífica no país, ora pendendo o governo para uma delas,
ora para outra, dialogando com ambas, contribuindo para que, no Brasil, se
afirmasse um modelo de desenvolvimento “misto”, fechado e aberto em doses
medidas e equilibradas (ibid, p. 13).113 Entres os associados às forças externas
estariam os Governos de Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), Castelo Branco
(1964-1967), Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002). Já entre os adeptos da estratégia de desenvolvimento
autônomo estariam os Governos de Getúlio Vargas (1950-1954), João Goulart
(1961-1964) e Ernesto Geisel (1974-1979).114
112 Ver comentários a FIORI, na nota 105, p. 93. 113 Este cenário não se repetiu, contudo, em muitos dos países vizinhos, onde as diferentes estratégias de desenvolvimento foram vistas como excludentes e foram objeto de acirrados embates políticos na esfera estatal e também na opinião pública. A Argentina é um claro exemplo disso. Com efeito, SIKKINK (1991, pp. 4-5) demonstra que o Brasil teve mais sucesso na sua estratégia de inserção internacional no sistema capitalista do que a Argentina, porque teve mais continuidade na formulação de políticas econômicas e também porque as elites mostraram-se mais unidas em torno do ideário desenvolvimentista como um projeto nacional. Sobre este trabalho da autora, nos aprofundamos um pouco mais logo em seguida. 114 CERVO não menciona, nesta passagem, o Governo Juscelino Kubistchek (1955-1960), pelo que deduzimos que provavelmente represente, para o autor, o governo que mais simbolizou o modelo “misto” de desenvolvimento. Como já vimos na explicação de FIORI (2007, p. 238), as lideranças dos investimentos estatais e do capital privado estrangeiro foi fundamental para que o Brasil alcançasse um processo de desenvolvimento acelerado e industrialização pesada durante o Governo JK.
99
Entre os autores que se dispõem a compreender o debate econômico
brasileiro em torno de desenvolvimento, BIELSCHOWSKY (2007) é um dos que
mais avança na sua compreensão, motivo pelo qual resolvemos nos alinhar a sua
categorização. Disposto a compreender o período 1945-1964, quando, afirma, o
desenvolvimentismo tornou-se a ideologia econômica dominante115, o autor
apresenta um quadro conceitual composto por cinco correntes de pensamento
econômico, dentro das quais identifica a grande maioria dos economistas e
intelectuais que participaram do debate econômico brasileiro: os neoliberais, os
desenvolvimentistas do setor privado, os desenvolvimentistas não-nacionalistas do
setor público, os desenvolvimentistas nacionalistas do setor público e os
socialistas.116
A corrente neoliberal “compreende os economistas que defendiam a
prioridade da livre movimentação das forças de mercado como meio para atingir a
eficiência econômica” (ibid, p. 33). De acordo com BIELSCHOWSKY, “não
necessariamente se opunham à industrialização”, mas guardam como traço
característico a oposição, ou pelo menos omissão, quanto a propostas
desenvolvimentistas (ibid, p.33).117 A participação dos neoliberais no debate
econômico está fundamentalmente vinculada à proposta de estabelecer as
condições do equilíbrio monetário e financeiro, que, segundo dizem, é
115 BIELSCHOWSKY define o desenvolvimento como o “projeto de superação do subdesenvolvimento através da industrialização integral, por meio de planejamento e decidido apoio estatal” (ibid, p. 33). 116 Aqui, preocupamo-nos em descrever apenas as quatro primeiras, por entendermos que o debate ideacional que demarca as diferenças entre os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva no campo da formulação de políticas públicas de propriedade intelectual permaneceu adstrito à fricção “neoliberalismo x desenvolvimentismo”, sendo o socialismo uma opção descartada por ambos. Assim, o legado ideacional das correntes neoliberais e desenvolvimentistas do período investigado por BIELSCHOWSKY foi o que nos interessou. Do mesmo modo, entre as três correntes desenvolvimentistas, interessou-nos mais as duas do setor público (nacionalista e não-nacionalista) porque entendemos, igualmente, que são as que mais reverberaram nas diferenças ideacionais econômicas entre os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, com suas consequências na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual. No entanto, apresentamos alguns comentários sobre os desenvolvimentistas do setor privado. Sobre a corrente socialista, ver BIELSCHOWSKY (ibid, pp. 181-207). 117 Lembramos que o autor se refere ao período 1945-1964. No momento em que voltarmos a nos reportar ao pensamento neoliberal no Brasil, predominante durante todos os anos 90, a defesa da desnecessidade de uma política industrial sob a tutela estatal torna-se um elemento totalmente desinibido do discurso. Vale esclarecer que o prefixo “neo” desta corrente reporta-se, de acordo com BIELSCHOWSKY, ao fato de que os liberais brasileiros passaram a admitir, em sua maioria, após 1930, a necessidade de alguma intervenção estatal, saneadora de imperfeições de mercado que, reconheciam, poderiam afetar economias subdesenvolvidas como a brasileira. Contudo, eram ardorosos defensores do princípio de redução da intervenção do Estado na economia e não propunham medidas de suporte ao projeto de industrialização, sendo frequentemente contrários a essas medidas (ibid, pp. 37-38).
100
indispensável para a maximização da eficiência dos mecanismos de mercado
(ibid, p. 33). Entre os economistas mais destacados, adeptos dessa corrente,
encontravam-se Eugênio Gudin e Octávio Gouveia de Bulhões, que tiveram na
Fundação Getúlio Vargas (FGV) seu principal núcleo de militância intelectual
(ibid, p. 38).
Como visto, entre os desenvolvimentistas, BIELSCHOWSKY distingue
três correntes. Como elo entre elas, destaca “o projeto comum de formar um
capitalismo industrial moderno no país e a perspectiva de que, para isso, era
necessário planejar a economia e proceder a distintas formas de intervenção
governamental” (ibid, p. 77). Entre os desenvolvimentistas do setor privado,
encontrava-se uma corrente de economistas que assumiam uma posição
antiliberal, com posições variadas sobre o grau de participação estatal e do capital
estrangeiro que convinha ao processo (ibid, p. 34). Contribuiu para a afirmação do
ideário desenvolvimentista no setor privado a atuação de entidades representativas
do setor industrial (CNI, FIESP, etc) que ampliaram seu horizonte de
reivindicações. Roberto Simonsen surge como o pensador individual mais
proeminente desta corrente e liderança incontestável, sendo o maior responsável
por garantir a legitimidade do projeto desenvolvimentista junto ao empresariado
industrial (ibid, pp. 78-79). 118
No setor público, a primeira das duas correntes destacadas por
BIELSCHOWSKY é a dos desenvolvimentistas “não-nacionalistas”, favoráveis
ao apoio estatal à industrialização, mas com acentuada preferência por soluções
privadas nos casos de disputas de inversões estatais (2007, op. cit., p. 34). Outra
de suas características marcantes, em contraste com os “desenvolvimentistas
nacionalistas” e próximos dos neoliberais, é o da prioridade conferida às políticas
de estabilização monetária, apesar de frisarem a ideia de não prejudicar os
investimentos fundamentais, por conta dessas políticas (ibid, p. 34). Entre as duas
correntes desenvolvimentistas, a constituída pelos nacionalistas foi, sem dúvida,
majoritária no Brasil (ibid, p. 103). Contudo, apesar de pouco numerosa, a 118 BIELSCHOWSKY aponta Simonsen como o maior líder industrial brasileiro e ideólogo do desenvolvimentismo. Sua militância política e intelectual deu-se preponderantemente entre os anos 30/40, vindo a falecer em 1948. Empresário, engenheiro e economista, Simonsen participou da vida política nacional através dos postos de comando que assumiu nas entidades representativas do empresariado industrial. Apesar de representar e liderar os interesses do setor privado, Simonsen não somente influenciou como apoiou os desenvolvimentistas do setor público. O autor apresenta um resgate de sua rica trajetória política e intelectual (ibid, pp. 81-89). Sobre a importância de Simonsen para a afirmação do desenvolvimentismo no Brasil, ver SIKKINK (1991, op. cit., p. 9).
101
corrente “não-nacionalista” mostrou-se bastante ativa e influente na esfera
governamental (ibid, p. 103).
Assim, embora a tendência predominante no setor público, desde as
origens da aceitação do desenvolvimentismo como ideia econômica nas décadas
de 30/40 até seu apogeu nas décadas de 50/70, tenha sido a de ceticismo quanto à
possibilidade de os capitais estrangeiros virem a ter grande participação na
produção industrial brasileira ou interesses de longo prazo no processo de
industrialização nacional, os “não-nacionalistas” não só vislumbravam como
admitiam e defendiam tal possibilidade (ibid, p. 103).
BIELSCHOWSKY afirma que as divergências entre os nacionalistas e os
“não-nacionalistas” se davam essencialmente em dois pontos: a) embora não
fossem essencialmente contrários a investimentos estatais, os “não-nacionalistas”
combatiam sua proliferação, com o argumento de que o Estado não deveria
desempenhar função e ocupar espaço que a iniciativa privada poderia
desempenhar e ocupar com maior eficiência. Especialmente no que tange a
grandes projetos de infraestrutura e mineração, os “não-nacionalistas” defendiam
a opção pelo capital estrangeiro, por entenderem que o capital nacional não tinha
suficiente suporte financeiro para tal (ibid, p. 104), e ; b) davam grande ênfase à
necessidade de controle da inflação e ao apoio de medidas de estabilização
monetária.119 Outras terminologias igualmente utilizadas para se referir,
respectivamente, aos desenvolvimentistas não-nacionalistas e aos
desenvolvimentistas nacionalistas são as de “liberais desenvolvimentistas” e
“nacional-desenvolvimentistas”.120
Os desenvolvimentistas “não-nacionalistas” não se valeram de instituições
nucleares para a difusão de seu pensamento econômico, como os neoliberais, com
a FGV. Sua atuação mais relevante se deu como parte da cúpula dirigente do
então BNDE, entre 1952 e 1959. O economista de maior destaque desta corrente
foi, sem dúvida, Roberto Campos, cujas ideias tiveram bastante repercussão e
119 BIELSCHOWSKY enfatiza que estes dois pontos representam os pontos de contato básicos entre os “desenvolvimentistas não-nacionalistas” e os neoliberais, pontos estes que reduzem a distância ideológica entre as duas correntes. Tal distância refere-se no alinhamento dos desenvolvimentistas “não-nacionalistas” ao projeto de industrialização e em sua inequívoca inclinação pelo planejamento econômico (ibid, 104). 120 Em interessante artigo em que apresenta uma abordagem comparativa entre as ideias de Roberto Campos e Celso Furtado, SANTORO (2008) afirma que elas são ilustrativas das controvérsias entre os desenvolvimentistas próximos dos liberais (não-nacionalistas) e aqueles que se vinculavam ao nacionalismo.
102
representatividade. BIELSCHOWSKY reputa-o um “pensador certeiro” (ibid, p.
105) e “o economista da nova ordem do Brasil, que passava da velha estrutura
agrário-exportadora à nova estrutura de economia industrial internacionalizada”
(ibid, p. 105). Para o autor, “Campos apostou na industrialização pela via da
internacionalização de capitais e apoio do Estado e ganhou”.121 E complementa:
“de todos os economistas brasileiros mais ativos, foi aquele cujo projeto
desenvolvimentista esteve mais próximo da política de investimentos
efetivamente realizada” (ibid, p. 105). Chega o autor a afirmar que “os traços
básicos da formação da estrutura industrial brasileira nos anos 50 passavam da
cabeça de Campos aos pronunciamentos e à política desenvolvimentista de
Juscelino Kubistchek”, Chefe de Estado entre 1950 e 1955 (ibid, p. 105).122
A última das três correntes desenvolvimentistas apontadas por
BIELSCHOWSKY é, como já mencionado, a dos “desenvolvimentistas
nacionalistas”. Como os demais desenvolvimentistas, defendiam a constituição de
um capitalismo industrial moderno no país, mas guardavam três traços distintivos
que os diferenciavam. O primeiro deles é o de uma decidida inclinação pela
ampliação da intervenção do Estado na economia, por meio de políticas de apoio à
industrialização, integradas em um minucioso e abrangente sistema de
planejamento, e incluindo investimentos estatais em setores tidos como
estratégicos, como petróleo, mineração e siderurgia (ibid, pp. 127-128). Outro
121 BIELSCHOWSKY observa que, apesar de suas preocupações com a estabilidade monetária, o fato de Roberto Campos ter sido um dos criadores do BNDE e protagonista na execução do Plano de Metas do Governo JK, entre outras atividades, caracteriza-o, sem dúvida, como um desenvolvimentista (ibid, p. 38). Diplomata de carreira, graduado em Economia pela Universidade de Columbia, Roberto Campos é descrito pelo autor como possuidor de “um espírito tipicamente cosmopolita e uma verve crítica ímpar entre os economistas brasileiros”, além de “argumentador incisivo e envolvente, capaz de confundir o mais inteligente dos adversários” (ibid, pp. 104-105). A opção de BIELSCHOWSKY de, ao abordar cada uma das correntes do pensamento econômico brasileiro, enfatizar a influência intelectual e política de seus principais representantes individuais (como Roberto Campos, entre os desenvolvimentistas “não-nacionalistas” e Celso Furtado, entre os desenvolvimentistas nacionalistas), alinha-se com nossa visão de que economistas são capazes de exercer forte influência na formulação de políticas públicas, por intermédio de estratégias intelectuais de persuasão. A persuasão, conceito central da abordagem “centrada na economia” do institucionalismo histórico de Peter Hall, é importante na análise que apresentamos da formulação de políticas públicas de propriedade intelectual durante os Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. 122 Apesar do desempenho de Roberto Campos no cenário político brasileiro posterior a 1964, que o identifica como um “homem de direita (ibid, p. 105), BIELSCHOWSKY enfatiza que não se deve extrair disto conclusões preconceituosas sobre as características teóricas do pensamento econômico que expressava nos anos 50. No início dos anos 50, sua defesa da industrialização com apoio do Estado e de planejamento colocou-o em franca confrontação teórica com a essência da ortodoxia liberal (ibid, p. 105). Ainda assim, o autor identifica diferentes fases em sua trajetória intelectual e política durante a década de 50 (ibid, p. 106).
103
traço distintivo é a sistemática defesa da subordinação da política monetária à
política de desenvolvimento econômico (ibid, p. 130).123 Finalmente, o terceiro e
último traço era a inclinação política por medidas de caráter social (ibid, p.
130).124 Os perfis dos economistas nacionalistas eram os de pessoas preocupadas
com questões como desemprego, pobreza e atrasos culturais e regionais da
população brasileira, e também com o lado arcaico das instituições do país, seja
no campo ou no interior da administração estatal (ibid, p. 130). 125
Os conceitos cepalinos, que sugeriam aos dirigentes latino-americanos
uma estratégia política de superação da desigualdade entre as nações, tiveram
grande influência sobre a geração dos desenvolvimentistas nacionalistas
brasileiros, especialmente por causa de Celso Furtado, que trabalhou com a equipe
de Raúl Prebish na CEPAL, entre 1949 e 1953. Foi ele o grande representante da
corrente desenvolvimentista do país. De acordo com BIELSCHOWSKY, seu
“fôlego inesgotável e sua admirável capacidade de combinar criação intelectual e
esforço executivo, assim como sua habilidade e senso de oportunidade para abrir
espaço às tarefas desenvolvimentistas que propagava” (ibid, p. 132) é que
explicam a liderança que conseguiu exercer entre os economistas, especialmente
durante os anos 50 quando ajudou a fundar o Clube dos Economistas, órgão que
reuniu alguns dezenas de técnicos nacionalistas do governo federal e alguns
desenvolvimentistas do setor privado (ibid, p. 129).
A condição de Celso Furtado de economista mais emblemático da corrente
nacionalista do desenvolvimentismo deu-se muito em função de ter conseguido
consolidar, entre os desenvolvimentistas nacionalistas brasileiros, um
entendimento homogêneo da problemática do subdesenvolvimento do país, 123 Neste ponto, os desenvolvimentistas nacionalistas eram aliados dos desenvolvimentistas do setor privado, mas não coincidiam quanto à interpretação do processo inflacionário e à forma de combatê-lo. Os desenvolvimentistas nacionalistas introduziram e difundiram no Brasil o estruturalismo cepalino e, salvo algumas exceções, desconsideraram as medidas de curto prazo para o controle inflacionário – que, para os desenvolvimentistas do setor privado, deveriam incluir redução salarial e tributária (ibid, p. 130). 124 Leciona JAGUARIBE (1972, p. 13) que “o processo do desenvolvimento econômico é um processo de crescimento da renda real caracterizado pelo melhor emprego dos fatores de produção, nas condições reais da comunidade e ideais do tempo”. Assim, a ideia de desenvolvimento econômico deve ser diferenciada da ideia de crescimento. O crescimento “se refere ao simples aumento quantitativo da riqueza ou do produto per capita, enquanto a ideia de desenvolvimento abrange o sentido de um aperfeiçoamento qualitativo da economia, através de melhor divisão social do trabalho, do emprego de melhor tecnologia e da melhor utilização dos recursos naturais e do capital” (ibid, p. 13). Como vimos na discussão sobre o desenvolvimento como ideia, a preocupação com a erradicação da pobreza dos países do Terceiro Mundo após a Segunda Guerra Mundial, foi fundamental para sua aceitação e afirmação. 125 Ver também SANTORO (op. cit., p. 9).
104
munindo-os de uma arma teórica para combater as propostas e análises das
correntes adversas (ibid, p. 133).
Celso Furtado defendia a liderança do Estado na promoção do
desenvolvimento, através de investimentos em setores estratégicos e,
principalmente, do planejamento econômico. Não era irremediavelmente contrário
aos investimentos estrangeiros, desde que estes ficassem limitados a setores não-
estratégicos e fossem submetidos a controles.126 Acreditava que só através de uma
decidida ação estatal seria possível “internalizar os centros de decisão sobre a
economia brasileira e romper com as relações de submissão ao comando
tradicional dos países desenvolvidos” (ibid, p. 134).
O argumento de Celso Furtado da “inadequação da tecnologia” repercutiu
em determinados gestores públicos e outros atores com poder decisório,
vinculados à tradição do desenvolvimentismo nacionalista (ou nacional-
desenvolvimentismo), no início do Governo Luiz Inácio Lula da Silva. Contudo,
sua utilização nas políticas públicas se deu, em alguns casos, de forma distorcida
por parte de alguns agentes estatais com poder decisório.127 Isso ocorreu devido a
mudanças nos perfis de alguns agentes com poder decisório, escolhidos com base
em critérios exclusivamente políticos e não de méritos, resultando em algumas
experiências não muito bem sucedidas em relação à propriedade intelectual e
inovação, logo superadas.
Furtado defende que o papel das diferenças no domínio tecnológico é um
elemento constitutivo da configuração dual do mundo – o centro/desenvolvido e a
periferia/subdesenvolvida. Significa dizer que “o subdesenvolvimento teria se
constituído como processo histórico e como outra face do desenvolvimento
capitalista, desde que alguns centros de inovação tecnológica, situados na Europa,
irradiaram sua dominação sobre países ou regiões atrasadas” (CERVO, 1998, op.
cit, p. 15). Ou seja: “o subdesenvolvimento é um processo histórico autônomo e
não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já
alcançaram grau superior de desenvolvimento” (FURTADO, 1979, p. 189).128 Ele
126 Segundo SANTORO (op. cit, p. 9), o maior símbolo da corrente nacionalista foi a campanha do “petróleo é nosso”, que culminou na criação da Petrobrás. 127 Para maiores detalhes do conceito de “inadequação da tecnologia” no pensamento de Celso Furtado, recomendamos a leitura de ALBUQUERQUE (2007b). No capítulo 6, comentamos o caso da EMBRAPA que revela a utilização política e distorcida do pensamento de FURTADO. 128 FURTADO afirma que o advento de um núcleo industrial, na Europa do século XVIII, implicou em uma modificação qualitativa na economia mundial que a partir de então passou a
105
possui raízes próprias e distintas, relacionadas à emergência do desenvolvimento
capitalista e à forma pela qual o progresso tecnológico molda a divisão
internacional do trabalho, criando um centro dinâmico e uma periferia na qual o
desenvolvimento é fundamentalmente um processo responsivo
(ALBUQUERQUE, op. cit., p. 672).
Enfim, FURTADO rejeita a visão simplificada de um processo homogêneo
de difusão geográfica da civilização industrial capitalista e denuncia as
malformações sociais engendradas desse processo de difusão (1998, p. 47). É na
evolução das estruturas sociais internas que entende que é possível enxergar com
clareza a especificidade da “industrialização dependente” (1978, p. 49). Neste
quadro da “industrialização dependente”:
[...] o fator determinante da tecnologia utilizada é o grau de diversificação da demanda (a natureza dos produtos finais) gerada pelos grupos sociais que tiveram acesso indireto à civilização industrial. As implicações deste fato são consideráveis, pois o que chamamos de tecnologia não é outra coisa senão o conjunto de transformações no sistema produtivo e nas relações sociais que têm na acumulação o seu vetor. Como o acesso indireto à civilização industrial significou a introdução dessas transformações no nível da demanda final (sob a forma de modernização), o processo de industrialização assumirá a forma de um esforço de adaptação do aparelho produtivo a essa demanda sofisticada, o que o desvincula do sistema de forças produtivas pré-existentes. Surge assim um subsistema produtivo de alta densidade de capital, que não corresponde ao nível de acumulação alcançado no conjunto da sociedade [...]. Como o referido subsistema permanece estruturalmente ligado a economias não somente mais
condicionar o desenvolvimento econômico subsequente em todas as regiões do mundo. De acordo com o autor, a ação desse núcleo exerceu-se em três direções distintas. A primeira marca a linha de desenvolvimento dentro da própria Europa Ocidental. Neste caso, o desenvolvimento assumiu a forma de desorganização da economia artesanal pré-capitalista e de progressiva absorção dos fatores liberados, a um nível mais alto de produtividade, com o auxílio da flexibilidade conferida pelo progresso técnico. A segunda linha de desenvolvimento da economia industrial europeia consistiu no deslocamento para além de suas fronteiras de mão-de-obra, capital e técnica, onde houvesse terras desocupadas e com características similares à própria Europa. Esse processo de desenvolvimento, portanto, não se diferenciava basicamente do processo de desenvolvimento europeu. Dele fizeram parte economias como a australiana, canadense e a estadunidense, simples prolongamentos da economia europeia. Nestes casos, as populações que emigraram para os seus territórios levavam as técnicas e os hábitos de consumo da Europa e, ao encontrarem uma base favorável onde houvesse recursos naturais, alcançavam, rapidamente, níveis de produtividade e de renda altos, comparando-se, inclusive, aos europeus. A terceira linha de expansão da economia industrial europeia foi em direção às regiões já ocupadas, muitas com sistemas econômicos seculares e densamente povoadas, mas todas de natureza pré-capitalista. O efeito do impacto da expansão capitalista sobre essas estruturas variou de região para região, de acordo com as circunstâncias locais, do tipo de penetração capitalista e da intensidade desta. O resultado, no entanto, foi quase sempre a criação de estruturas dualistas, uma parte tendente a se organizar à base de maximização do lucro e da adoção de modernas formas de consumo, conservando-se a outra dentro de formas pré-capitalistas de produção. (ibid., pp. 187-188). FURTADO afirma, por fim, que “esse tipo de estrutura socioeconômica dualista está na origem do subdesenvolvimento contemporâneo” (ibid, pp. 188-189).
106
avançadas na acumulação, mas também em permanente expansão, os vínculos de dependência tendem a reproduzir-se (ibid, p. 50, grifamos).
Uma das principais propostas de Furtado, pois, é a de que a superação do
subdesenvolvimento passa pela eliminação da disparidade tecnológica, que é
medida pela estrutura ocupacional (BIELSCHOWSKY, op. cit., p. 140).
FURTADO denuncia o que chama de “falso neutralismo das técnicas” (1998, op.
cit., p. 47).129 Percebe que o progresso técnico é um fator dinâmico da economia
capitalista, mas afirma que o “espírito de empresa” não pode ser visto como uma
categoria abstrata.130 Defende que os principais obstáculos à passagem “da
simples modernização mimética ao desenvolvimento propriamente dito
cimentam-se na esfera social” (1998, op. cit., p. 48). Enfim, “o avanço na
acumulação nem sempre produziu transformações nas estruturas sociais capazes
de modificar significativamente a distribuição da renda e a destinação do novo
excedente” (ibid, p. 48). Se, por um lado, a acumulação nas economias centrais
levou à escassez de mão-de-obra e criou as condições para que emergissem
pressões sociais que conduziram à homogeneização social, por outro, nas regiões
periféricas, produziu efeitos totalmente distintos: engendrou a marginalização
social e reforçou estruturas sociais de dominação ou as substituiu por similares. O
processo de acumulação periférica esteve preferencialmente a serviço da
internacionalização dos mercados que acompanhou a difusão da civilização
industrial (ibid, p. 48). 129 As analogias que podem ser estabelecidas com a discussão de ESCOBAR (p. 83, nota 88) são evidentes. ESCOBAR denuncia também a “fé na ciência e na tecnologia”, ou seja, a ideia de que a tecnologia é algo necessariamente benéfico, por sua própria natureza. Este automatismo que demarca a visão mais aceita sobre a tecnologia é também característico da forma predominante de se enxergar a propriedade intelectual: apenas como mero instrumento per se de proteção das inovações que, de forma automática, é capaz de induzir o desenvolvimento econômico, sem interferência estatal. Podemos afirmar que o advento do Acordo TRIPS consagrou do ponto de vista internacional esta visão. BROAD & CAVANAGH (2006, pp. 23-25) criticam também o “mito do desenvolvimento” como um processo linear de indivíduos todas as condições sociais que se utilizam de novas tecnologias para subir a “escada da modernização”. Para os autores, há que se refutar o foco ahistórico sobre a tecnologia e entender que aceitar que o acesso à tecnologia não implica em garantir o fim da pobreza. 130 Sugerimos a leitura dos interessantes comentários de FURTADO à figura do “empresário schumpeteriano” (1979, op. cit., pp. 46-51). Apesar de reconhecer a importância da teoria das inovações de Schumpter, FURTADO critica que o empresário seja nela visto como uma categoria abstrata, independentemente do tempo e da ordem institucional. O autor afirma que a teoria das inovações de Schumpeter tem na mudança de enfoque seu maior mérito em relação aos neoclássicos, justamente por realçar o papel dinâmico do progresso técnico. Mas o mesmo mérito não se verifica em relação a sua capacidade explicativa do processo de desenvolvimento econômico. FURTADO entende que uma teoria do desenvolvimento deve ter por base uma explicação do processo de acumulação de capital. Não se pode, portanto, pretender formular uma teoria das inovações independentemente de uma teoria da acumulação de capital.
107
A conclusão disso, para Furtado, é a de que o desenvolvimento
tecnológico se deu, em boa parte das regiões do mundo (ditas periféricas), de
forma dependente. Significa dizer que não se limitou à introdução de novas
técnicas, mas impôs a adoção de padrões de consumo sob a forma de novos
produtos finais que correspondem a um grau de sofisticação e de acumulação
técnica que só existem na forma de enclaves naquelas sociedades (ibid, p. 48).131
Com base nessa observação, FURTADO levanta algumas questões: Existe
a possibilidade de acesso à tecnologia de vanguarda da civilização industrial e de
escapar à lógica do atual sistema de divisão internacional do trabalho? Até que
ponto a tecnologia pode ser posta a serviço da consecução de objetivos definidos
de forma autônoma por uma sociedade de nível de acumulação relativamente
baixo e que pretende a homogeneização social? Seria a dependência tecnológica
simples decorrência do processo de aculturação das elites dominantes nas culturas
periféricas?132 É possível ter acesso à tecnologia moderna sem submeter-se ao
processo de mundialização de valores impostos pela dinâmica dos mercados?
(ibid, pp. 49-50).133
As questões expostas por FURTADO apontam na direção de muitas das
inquietudes que nos levaram a refletir sobre o padrão de inserção do Brasil no
regime internacional de propriedade intelectual. Se, de fato, após o Acordo
TRIPS, tornou-se praticamente impossível para países como o Brasil conduzir
suas políticas públicas de propriedade intelectual com a autonomia, o
desembaraço e a flexibilidade com que muitos dos países mais desenvolvidos
fizeram no passado (especialmente durante o século XIX e primeira metade do
século XX) para alcançar seus atuais patamares de desenvolvimento (por meio de 131 Pedimos ao leitor que atente para o pitoresco episódio relatado por Roberto Jaguaribe, em entrevista que nos foi concedida, em um encontro entre representantes do mercado da moda italiano com funcionários de escritórios africanos de propriedade intelectual, na sede da OMPI, em Genebra, que ilustra bastante, entre outras coisas, o que pode ser entendido como “imposição de padrões de consumo”. A referência a este episódio consta do cap. 6. 132 FURTADO afirma estar convicto de que “a permanência do subdesenvolvimento se deve à ação de fatores de natureza cultural. A adoção pelas classes dominantes dos padrões de consumo dos países de níveis de acumulação muito superiores aos nossos explica a elevada concentração de renda, a persistência da heterogeneidade social e a forma de inserção no comércio internacional” (ibid, p. 60). A variável independente do subdesenvolvimento para FURTADO é, pois, “o fluxo de inovações nos padrões de consumo que irradia dos países de alto nível de renda” (ibid, p. 60). 133 O desafio que se coloca, para FURTADO, é alcançar mudanças estruturais (como nos padrões de consumo, no quadro de uma ampla política social), sem comprometer o espírito de iniciativa e inovação que assegura a economia de mercado. A experiência de industrialização tardia dos países asiáticos teria a ensinar sobre como conjugar planejamento com iniciativa privada, pois estes países conseguiram se antecipar na difícil tarefa de reconstrução de estruturas sociais anacrônicas (ibid, p. 60).
108
políticas industriais com traços marcantes de planejamento e intervenção estatais),
quais são as alternativas que permitiriam àqueles, em tempos atuais, alavancar
suas economias e sociedades e ter acesso à tecnologia moderna, sem deslizar nas
formas de dependência apontadas por FURTADO? Como veremos, os
constrangimentos impostos pelo TRIPS são fortíssimos, o que, todavia, não
sugere que uma mera postura de passividade e aceitação inerte seja a via mais
indicada como forma de inserção.
Antes, contudo, como forma de encerrar a discussão teórica deste capítulo,
resta refletir sobre como as instituições são capazes de interferir no fluxo das
ideias. Por um processo de “aprendizado social”, defendemos que as instituições
são capazes de encerrar ideias (apesar de, por vezes, poder resistir a assimilá-las),
e também de, com base nas mesmas, modificar seu padrão de atuação política e
sua configuração material. Instituições podem passar por “mudanças
paradigmáticas” em razão do advento de novas ideias e se tornar algumas de suas
principais defensoras e porta-vozes.
Principalmente na fase de adoção de novas ideias, por muitas ocasiões são
fundamentais, para a sua aceitação, o desempenho político e intelectual de
lideranças individuais e os atributos de suas personalidades. As instituições e as
lideranças podem atuar, portanto, como importantes variáveis intervenientes no
que se refere à forma como as ideias impactam a formulação de políticas públicas.
2.5 Instituições e Lideranças na Formulação de Políticas: as perspectivas de Kathryn Sikkink e Martha Finnemore
A discussão conceitual que apresentamos sobre o desenvolvimento
auxiliou-nos a caracterizá-lo como uma ideia que, principalmente a partir dos anos
50, surgiu como um objetivo atraente para diversas regiões do mundo, em especial
as recém descolonizadas da África e da Ásia. Vimos, igualmente, que a ideia do
desenvolvimento esteve relacionada inicialmente à crença de que, por intermédio
de ajuda externa, da transferência de conhecimento e de tecnologia, de medidas
para promover a riqueza e a educação e do planejamento econômico, seria
possível converter os países mais pobres do mundo em economias de mercado
“normais”. Esta crença não impediu, contudo, que surgissem propostas
109
alternativas, como as da CEPAL de Raúl Prebish, que questionaram a “interação
Norte-Sul” como algo naturalmente benéfico para ambas as partes ou o
desenvolvimento como um mero “ato de generosidade” dos ricos em relação aos
pobres (COOPER & PACKARD, op. cit., p. 10).
Portanto, a ideia do desenvolvimento esteve sempre sujeita a diferentes
apropriações. Em certos momentos e em certos lugares, houve uma maior
convergência em torno de modelos e teorias acerca do desenvolvimento.134
Algumas destas convergências tiveram maior tempo de duração, enquanto outras
se mostraram mais efêmeras, emergindo em certos momentos, de forma bastante
dominante, para, em seguida, perderem apoio para a emergência de um novo
paradigma (ibid, p. 19).135
Como compreender as “mudanças paradigmáticas”, no âmbito
institucional?136 SIKKINK (1997) e FINNEMORE (1997) analisam dois
momentos em que mudanças desta natureza ocorreram: no Banco Mundial, 134 Foi o que ocorreu, como vimos, no Brasil entre as décadas de 30 e 90, principalmente a partir dos anos 50, quando o modelo de industrialização por substituição de importações vigorou de forma hegemônica, a despeito de algumas discordâncias entre as diferentes correntes de desenvolvimentistas que repassamos. 135 Relembramos os comentários sobre LIMA & HIRST (2006, op. cit., p. 23) na p. 74. Segundo as autoras, duas destas mudanças de paradigmas ou “conjunturas críticas” ocorreram no século passado: a primeira, nos anos 30, com a crise do modelo agroexportador e sua substituição pelo modelo de substituição de importações (MSI), e a segunda, nos anos 90, quando se exaure o regime de “industrialização protegida”, substituído por um modelo de integração competitiva na economia global (ibid, p. 23). 136 A palavra “paradigma” é aqui empregada em sentido diverso do anterior, de “estratégia de ação da política externa”. Referimo-nos ao conceito de paradigma elaborado por Thomas Kuhn, em “A Estrutura das Revoluções Científicas”. Como explica GONÇALVES (2001, p. 94), no sentido kuhniano, o paradigma “deve ser entendido como a forma cientificamente dominante de observação de um determinado objeto, o que é o mesmo que dizer a abordagem por meio da qual uma comunidade científica encaminha seu pensamento sobre uma área de pesquisa, apontando suas características mais importantes, os enigmas que precisam ser decifrados e os critérios que orientam a pesquisa”. Para KUHN, a evolução do pensamento científico se dá à base da crise da “ciência normal” que, por não conseguir mais explicar satisfatoriamente as interrogantes lançadas pelos cientistas, passa a receber críticas até ser substituída por outro paradigma científico que, após um período de incerteza, adquire o status de “ciência normal” (ibid, p. 94). Para compreender como o conceito de paradigma de Thomas Kuhn se tornou proeminente na disciplina de Relações Internacionais, recomendamos a leitura de GUZZINI (1998, pp. 3-5). De acordo com o autor, o conceito kuhniano de paradigma possui duas facetas. A primeira delas - a do conteúdo do paradigma - reflete a ideia de uma lógica interna, uma visão de mundo que guia a pesquisa, define os problemas a serem resolvidos e sugere os métodos que devem ser utilizados. A segunda faceta é a do grupo de praticantes (cientistas) para os quais o paradigma funciona como uma ferramenta legitimadora e definidora de uma disciplina (ibid, p. 4). Significa dizer que, de acordo com a concepção kuhniana, um paradigma não pode ser compreendido fora do seu contexto histórico e do entendimento de sua funcionalidade para a comunidade científica. A análise de um paradigma, pois, deve começar pela identificação sociológica do seu grupo responsável (ibid, p. 4). Na análise que empreendemos das políticas públicas de propriedade intelectual, o objetivo foi traçar este caminho, identificando os indivíduos responsáveis pela difusão e aceitação das ideias. Mudanças ideacionais na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual podem ser caracterizadas como “mudanças paradigmáticas”.
110
durante os anos 70 (na gestão de Robert McNamara), quando o planejamento de
políticas de combate à pobreza se afirmou na organização (FINNEMORE); e na
CEPAL, durante os anos 80, quando o estruturalismo, até então predominante,
deu passagem às propostas de políticas de cunho neoliberal (SIKKINK) - apesar
da resistência demonstrada pelas ideias desenvolvimentistas das décadas
anteriores. Nas duas situações, foram observadas mudanças em relação ao melhor
receituário para se atingir o desenvolvimento.
As análises das autoras exploram esses dois momentos de mudanças
paradigmáticas dentro de organizações internacionais e procuram atribuir estas
mudanças preferentemente a novas ideias e ao processo social de aprendizado ao
qual elas são submetidas do que às pressões dos Estados ou da estrutura do
sistema internacional. Igualmente, ambas destacam o papel das estruturas dessas
organizações e de seus líderes centrais como partes indispensáveis para as
explicações sobre as mudanças observadas nas instituições em foco (SIKKINK,
op. cit, p. 229). Enfim, o que as autoras pretendem demonstrar é que, muito
embora não se possa negar que instituições podem reagir a interesses econômicos
e políticos bem identificáveis ou a constrangimentos de ordem estrutural, é
preciso um exame mais acurado sobre como e por que as instituições “aprendem”
e por que adotam um novo conjunto de políticas em determinados momentos
(COOPER & PACKARD, op. cit., p. 20).
Em trabalho comparativo sobre a trajetória do desenvolvimentismo na
Argentina e no Brasil, SIKKINK (1991) também realça o papel interveniente que
instituições e lideranças individuais podem exercer na afluência e aceitação de
ideias e na sua tradução em políticas. A preocupação da autora, neste caso, não é
trabalhar com momentos de “mudanças paradigmáticas” em determinadas
instituições, mas compreender por que as ideias desenvolvimentistas tiveram uma
maior e mais prolongada influência no processo de tomada de decisões no Brasil,
ao longo do século XX, em comparação com o país vizinho. Segundo a autora, a
resposta está na base institucional de sustentação das políticas
desenvolvimentistas no Brasil (ibid, p. 25). Lideranças ingressam também como
variáveis importantes na análise, especialmente na fase de adoção de políticas, que
antecede as de implantação e de consolidação (ibid, pp. 26-27).137
137 Esta distinção que SIKKINK (1991) estabelece entre as fases de adoção, implantação e de consolidação é explicada um pouco mais adiante. Enquanto a fase de adoção se aproxima
111
Passemos então à análise dos três trabalhos das autoras, começando por
FINNEMORE (1997, pp. 203-227).
A proposta da autora é examinar como o desenvolvimento foi “redefinido”
a partir do final dos anos 60, momento em que o alívio da pobreza tornou-se uma
das principais (se não a principal) prioridades da agenda internacional. Antes
disso, FINNEMORE afirma que o desenvolvimento era identificado
internacionalmente como uma mera estratégia de crescimento econômico, sem
muitas preocupações sociais e que a pobreza recebera pouca atenção nas
principais organizações internacionais, nos estudos acadêmicos e nos
planejamentos estatais de desenvolvimento (ibid, p. 203).138 O que teria
contribuído, então, para tal mudança?
FINNEMORE entende que o Banco Mundial é fundamental para
compreender por que a pobreza tornou-se um elemento essencial da “missão
desenvolvimentista transnacional” (ibid, p. 204). O Banco foi instrumental para
esta mudança de duas formas. Em primeiro lugar, foi decisiva a chegada de um
novo Presidente, Robert McNamara, em 1968, que trouxe com ele preocupações
com a pobreza e contribuiu para institucionalizá-las no Banco.139 Entre os fatores
que teriam contribuído para McNamara conseguir institucionalizar a preocupação
com a pobreza na organização estão os seus atributos pessoais: foi o primeiro
presidente do Banco Mundial que não era um banqueiro, mas um empresário e
gestor. McNamara atuou como Secretário de Defesa dos Estados Unidos durante
os Governos Kennedy e Lyndon Johnson (1961-1968). Era, segundo
FINNEMORE, um “clássico ativista kennedyano” que acreditava no ‘exercício do
poder’ e trouxe para o Banco um claro conjunto de objetivos para os quais o poder
deveria ser direcionado (FINNEMORE, op. cit., p. 211). Tais objetivos giravam
em torno de uma firmada e profunda crença nas virtudes e na eficácia da ajuda conceitualmente do que entendemos por “formulação”, as fases de “implantação” e “consolidação” relacionam-se mais à fase de execução. Ver pp. 14-16. 138 A preocupação do ideário desenvolvimentista durante os anos 50 e maior parte dos 60 teria sido apenas com o aumento do produto interno bruto dos países por meio de projetos de industrialização, sem a pobreza figurar como uma preocupação visível. Mesmo Prebish não teria se preocupado com o tema da pobreza. Ver FINNEMORE (ibid, pp. 206-209). 139 Para mais detalhes sobre a Gestão McNamara no Banco Mundial, ver PEREIRA (2010, pp. 175-238). McNamara estudou e lecionou na Harvard Business School, presidiu a Ford Motor Company e integrou o conselho consultivo da Fundação Ford. Foi Secretário de Defesa dos Estados Unidos durante o Governo Kennedy em 1961 e mantido no cargo por Lyndon Johnson (ibid, p. 177). Sua atuação à frente do Banco Mundial teria contribuído para dinamizar, inovar e expandir as operações do Banco em escala até então inédita, e para consolidar a organização como uma agência protagonista no âmbito das políticas de desenvolvimento (ibid, p. 177).
112
externa. A marca mais forte de sua gestão era a conexão estreita entre segurança e
desenvolvimento (PEREIRA, op. cit., p. 178):
McNamara acreditava tanto que a ajuda era uma obrigação moral das nações ricas quanto que tal ajuda poderia funcionar e funcionaria. Ele era um internacionalista guiado por uma moralidade e um otimismo internacionalistas. Por meio da ajuda aos pobres, as nações ricas poderiam responder ao imperativo moral de servir aos seus próprios interesses ao mesmo tempo. A pobreza gerou a violência, tanto internacionalmente quanto domesticamente. Aliviando a pobreza dos demais, as nações ricas poderiam criar um mundo mais seguro e estável para si próprias (FINNEMORE, op. cit., p. 211).140 Assim, sob a influência do binômio “segurança-desenvolvimento”, desde
que assumiu a Presidência do Banco Mundial McNamara entendeu que sua
missão principal era a de fazer algo a respeito da pobreza mundial.141 Com este
objetivo, tratou então de dar início a uma ampla e profunda reforma do Banco em
sua estrutura e estilo organizacionais. FINNEMORE demonstra como, entre 1968
e 1973, McNAMARA conseguiu dobrar o número de recursos aportados pelos
países desenvolvidos ao Banco, de modo a poder conceder mais empréstimos
(ibid, p. 211).142 Além disso, empreendeu esforços no sentido de mudar o estilo do
staff da organização e ampliá-lo. O Banco passou a contemplar mais economistas
e administradores comprometidos com suas ideias e menos advogados e
banqueiros, pertencentes ao antigo quadro funcional e a uma estrutura
caracterizada por maior detalhamento no acompanhamento de projetos e
dificuldade e lentidão na concessão de empréstimos (ibid, pp. 213-214). O “novo
estilo” adotado incluía empréstimos orientados para projetos menores, que
exigiam menos informação e que eram difíceis ou impossíveis de quantificar
utilizando-se as ferramentas-padrão de análise econômica (ibid, p. 213). Diante
das resistências do antigo staff em trabalhar de acordo com o novo método,
140 Tradução livre do original: McNamara believed both that aid was a moral obligation of rich nations and that such aid could and did work. He was an internationalist driven by internationalist morality and optimism. By helping the poor, rich nations could answer the moral imperative and serve their own interests at the same time. Poverty caused violence, internationally as well as domestically. By alleviating the poverty of others, rich nations could create a more stable and secure world for themselves. 141 De acordo com PEREIRA (2010, p. 178), a marca mais forte da gestão McNamara foi a conexão estreita e explícita entre segurança e desenvolvimento. Esta relação, formulada ainda quando era Secretário de Defesa, remetia, de forma direta, à irrupção de guerrilhas urbanas e, sobretudo, rurais, na periferia do capitalismo. 142 Entre 1969 e 1973, o Banco Mundial obteve mais empréstimos do que nos seus 20 anos anteriores (ibid, p. 212).
113
McNamara optou por aprofundar o grau de burocratização da organização,
utilizando-se dos poderes presidenciais que lhes foram conferidos, tornando o
Banco Mundial um espaço mais hierarquizado. De acordo com FINNEMORE,
McNamara foi responsável por “transformar o que era um clube numa burocracia”
(ibid, p. 213).143
Além de McNamara, um segundo fator é importante para compreender a
contribuição do Banco Mundial para que o combate à pobreza se afirmasse como
um elemento essencial no esforço internacional para o desenvolvimento.144 Com
efeito, se a liderança individual de McNamara foi vital para que a preocupação
com a pobreza se instalasse no banco, logo após, passou a importar tanto ou mais
como este interpretou e traduziu o alívio à pobreza em termos programáticos, por
intermédio de suas próprias estruturas burocráticas (ibid, p. 204). FINNEMORE
demonstra que as preferências entre o conjunto particular de políticas propostas
para combater a pobreza entre 1970 e 1971 – projetos de controle populacional, de
nutrição, de saúde, educacionais, de industrialização intensiva em mão-de-obra,
etc – resultaram menos do mérito intrínseco de cada política sobre a outra e mais
de qual delas melhor respondia às exigências e competências organizacionais do
Banco (ibid, p. 215). A falta de expertise e de credibilidade em políticas como a
de controle populacional, nutrição e saúde levaram o Banco a concentrar seus
projetos na área de desenvolvimento rural e na ajuda financeira a pequenos
produtores, em que os atrativos organizacionais para tal abordagem eram maiores
(ibid, pp. 215-216).
A análise de FINNEMORE sobre a “redefinição do desenvolvimento” no
Banco Mundial ajuda-nos a compreender como lideranças individuais podem ser
decisivas para que instituições aceitem e assimilem novas ideias. Demonstra 143 FINNEMORE detalha com riqueza o amplo leque de estratégias de McNamara para conseguir institucionalizar a preocupação com a pobreza no Banco Mundial, a partir de 1968. Aqui, preocupamo-nos somente em realçar sua liderança fundamental neste processo. 144 FINNEMORE afirma que a “redefinição do desenvolvimento” que o Banco Mundial ajudou a promover, de forma a incluir o “alívio da pobreza”, mudou o entendimento coletivo internacional do que é o desenvolvimento e os tipos de atividades desenvolvimentistas que devem ser promovidas. Antes, a pobreza era entendida como uma condição dos países e não de seres humanos individuais. O desenvolvimento era planejado apenas como uma forma de criar economias modernas, industrializadas e em crescimento nos países pobres. Enfim, o “alívio da pobreza” tornou-se parte do esforço internacional pelo desenvolvimento e a responsabilidade pela pobreza foi internacionalizada. Tal internacionalização, levada a cabo também por outras instituições internacionais, é controversa até hoje porque parece se chocar com os princípios da autodeterminação e da soberania estatal. A autora afirma que só é possível compreender este tipo de atividade intervencionista entendendo-se os esforços organizacionais das instituições que promovem essas ideias (ibid, pp. 220-221).
114
também que, embora lideranças individuais (com seus atributos pessoais) possam
exercer um efeito catalisador inicial relevante para que novas ideias se encerrem
nas instituições, sua permanência depende da forma como tais ideias serão
assimiladas e moldadas pelas mesmas, em termos de suas necessidades e
expectativas organizacionais (que incluem aspectos materiais, como os recursos
financeiros e humanos disponíveis, e ideacionais, como a formação profissional e
intelectual do seu corpo funcional). Líderes podem ser importantes a fim de
canalizar mais recursos para uma instituição de forma a aparelhá-la melhor e
revitalizá-la e também no processo inicial de convencimento dos que trabalham
numa instituição em que novas ideias devem ser adotadas, mas é inevitável que,
após este estímulo inicial do líder, em determinado momento, a instituição, por
moto próprio, tenda a, preponderantemente, querer moldar como as ideias são
traduzidas em políticas.145
SIKKINK (1991; 1997) também apresenta exemplos de como instituições
e lideranças podem afetar a forma como as ideias influenciam a formulação de
políticas. No primeiro caso (1991), a prioridade da autora é explicar a
continuidade e o sucesso mais prolongado das políticas desenvolvimentistas no
Brasil em comparação à Argentina. No segundo (1997), o objetivo é o de
compreender um momento de “mudança paradigmática” em uma organização
internacional – a opção pelo neoliberalismo durante os anos 80, em detrimento do
estruturalismo na CEPAL, até então predominante. Em ambos, podemos enxergar
conclusões comuns com o trabalho de FINNEMORE (1997), tanto no que refere à
importância das ideias serem assimiladas pelas instituições para garantir sua
longevidade, quanto no que se refere ao papel exercido pelos líderes para a
mobilização em torno das mesmas ideias e para a sua aceitação. Também
enxergamos pontos de contato com HALL (1989), devido ao papel de destaque
conferido à força política (persuasão) das ideias econômicas e à forma como
economistas e outros tomadores de decisão com percepções específicas sobre a
economia internacional e doméstica podem influenciar a formulação de políticas
públicas.
145 Como afirmam GOLDSTEIN & KEOHANE (1993, op. cit., p. 20), “instituições políticas exercem uma função mediadora entre as ideias e os acontecimentos políticos”. Ver discussão sobre esta função mediadora nas pp. 26-27.
115
Em Ideas and Institutions: Developmentalism in Brazil and Argentina
(1991), o argumento de SIKINK é o de que as ideias desenvolvimentistas foram
adotadas no Brasil e na Argentina, a partir dos anos 50, em resposta às novas
ideias sustentadas pelos tomadores de decisão e a mudanças na economia
doméstica e internacional (ibid, p. 2). SIKKINK reconhece que as ideias não
operam livres de constrangimentos materiais. No caso da opção pelas ideias
desenvolvimentistas, os dois países foram constrangidos pela sua posição
subordinada na ordem econômica internacional, pelo tamanho limitado de seus
mercados domésticos e por grupos domésticos poderosos que vetaram
alternativas. Contudo, mesmo reconhecendo que o desenvolvimentismo foi um
programa construído dentro de uma matriz de constrangimentos e oportunidades
internacionais e domésticos, SIKKINK afirma que estes de constrangimentos e
oportunidades não existem fora da cognição individual; “pelo contrário, eles são
percebidos pelos tomadores de decisão de acordo com suas estruturas conceituais”
(ibid, p. 19).146
Três fases ou etapas da trajetória das ideias desenvolvimentistas no Brasil
e na Argentina são identificadas pela autora. A estas três etapas chamamos
sucessivamente de “adoção”, “implantação” e “consolidação”. Na primeira, as
ideias dos principais tomadores de decisão influenciam a adoção de novos
modelos econômicos. Em sistemas presidenciais fortalecidos como os dos dois
países, as ideias sustentadas pelos presidentes e por seus principais ministros e
agentes da área econômica são essenciais para uma compreensão de quais
políticas foram adotadas (ibid, p. 2). Para que sejam implantadas com sucesso,
todavia, estas ideias dependem de uma segunda etapa que envolve a forma como
elas são encerradas nas instituições. Quando as novas ideias surgem, elas podem
sobreviver e florescer na medida em que encontrem quem lhes forneça um
adequado abrigo institucional. As ideias se incorporam às instituições nos seus
regimentos, planejamentos estratégicos e programas de pesquisa e treinamento,
que, por seu turno, tendem a perpetuar e propagar as ideias (ibid, p. 2).
Finalmente, para que um novo modelo econômico inspirado em determinadas
146 Tal como explicamos em outras passagens, assumimos também esta premissa, por entendermos que o regime internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS representa um relevante constrangimento de ordem estrutural (não só material, como ideacional) que, apesar de impor limites, não impede por completo, contudo, diferentes escolhas na formulação de políticas públicas.
116
ideias se consolidar, é necessário considerar que novas ideias não emergem dentro
de um vácuo ideológico: elas se inserem em um espaço político já ocupado por
ideologias historicamente construídas. Assim, para que as novas ideias se
consolidem é necessário que elas se ajustem com as ideologias existentes e com
os grupos sociais e econômicos relevantes (ibid, p. 2).
Entre essas três etapas, nos interessa prioritariamente como SIKKINK
analisa as influências das ideias na fase de adoção das políticas
desenvolvimentistas no Brasil e na Argentina, devido às analogias ou paralelos
que traçamos mais adiante com o processo de adoção de novas ideias econômicas
pelo Governo Luiz Inácio Lula da Silva na formulação de políticas públicas de
propriedade intelectual. Subsidiariamente, interessa-nos a de implantação.147 Em
ambas, SIKKINK defende que os indivíduos e as instituições responsáveis por
introduzir novas ideias “moldam a forma pela qual essas ideias são recebidas e
desempenham um papel crucial intermediário na interpretação delas” (ibid, p.
253).
No que se refere à fase de adoção, a mudança para novos modelos
econômicos é considerada “resultado da mudança das ideias dos principais
tomadores de decisão que respondem ao que eles percebem como
constrangimentos no cenário doméstico e no internacional” (ibid, p. 244). Assim
como HALL (1989), SIKKINK confere bastante ênfase às ideias sustentadas por
indivíduos. No caso de Argentina e Brasil na década de 50, o foco recai sobre as
ideias sustentadas pelos principais tomadores de decisão, como os presidentes
Arturo Frondizi, da Argentina (1958-1962) e Juscelino Kubistchek (1956-1961),
do Brasil, seus principais assessores e conselheiros e também em lideranças
147 De fato, o foco da pesquisa está na “formulação” de políticas (ver pp. 14-16) que coincide com o que SIKKINK denomina de “adoção”. Argumentamos que o Governo Luiz Inácio Lula da Silva adotou novas ideias econômicas na concepção de políticas públicas de propriedade intelectual, em oposição à matriz predominantemente neoliberal do Governo Fernando Henrique Cardoso (que terminou de implantar e de consolidar ideias adotadas a partir do Governo de Fernando Collor de Mello, em 1990). Quanto à fase de implantação de novas políticas públicas de propriedade intelectual, a despeito da tomada de posse de um novo governo (Governo Dilma Rousseff), entendemos que ainda se encontra em curso e que, portanto, deve ser observado em termos de possíveis recuos e avanços. A continuidade das políticas públicas de propriedade intelectual do Governo Luiz Inácio Lula da Silva dependerá fundamentalmente do perfil intelectual dos tomadores de decisão do novo governo em agências-chave como o MRE, o MDIC, o INPI, do poder decisório e autonomia destas instituições face às principais agências da área econômica (Ministério da Fazenda e Banco Central) e da forma como as novas ideias adotadas durante o Governo Luiz Inácio da Silva continuarão a ser nelas encerradas. No que tange à consolidação, entendemos que se trata de processo mais complexo e, obviamente, de longo prazo, para o qual apresentamos algumas reflexões breves nas considerações finais do trabalho.
117
intelectuais como Raúl Prebish (ibid, p. 244). Enquanto Frondizi e seus assessores
falharam em conseguir manter uma coalizão minimamente unida e capaz de dar
sustentação às políticas desenvolvimentistas, Kubitscheck foi bem sucedido ao
conseguir formar e manter unida esta coalizão, durante a maior parte de seu
governo (ibid, p. 244). SIKKINK afirma que as ideias são habitualmente
simbolizadas pelos indivíduos ou grupo de indivíduos que as sustentam e que
Kubistchek, Frondizi e Prebish “são todos eles exemplos centrais de indivíduos
que simbolizaram o desenvolvimentismo e cujas histórias pessoais tornaram-se
interconectadas às histórias das ideias que defendiam” (ibid, p 245).148
Mas por que indivíduos com poder decisório são levados a sustentar novas
ideias? Depois de examinar os conceitos de “falha” e “sucesso” 149, SIKKINK vai
buscar resposta no conceito de “persuasão”, elaborado por HALL (1989), para
explicar porque as ideias desenvolvimentistas foram adotadas não só no Brasil e
na Argentina, como em praticamente toda América Latina:
Talvez mais útil tanto em relação à falha quanto ao sucesso como formas de pensar o que leva as pessoas a adotar novas ideias seja a noção de Peter Hall de persuasão. O que torna uma ideia persuasiva é a maneira pela qual a ideia se relaciona aos problemas econômicos e políticos do momento. [...] O que foi que tornou as ideias desenvolvimentistas persuasivas? Elas diagnosticaram diretamente e vigorosamente a questão que era vista por muitos como o problema econômico central daqueles tempos na América Latina: a necessidade de rápida industrialização. Mas o desenvolvimentismo foi atrativo para os tomadores de decisão porque ele ofereceu um programa de ajuste entre as demandas da economia internacional e de grupos domésticos. Para novos modelos serem adotados, eles precisavam apenas ser persuasivos para um grupo razoavelmente pequeno de tomadores de decisão e intelectuais; para um modelo se consolidar, contudo, ele deve ser persuasivo para um conjunto mais amplo de grupos sociais. Os líderes podem utilizar incentivos materiais e apelos simbólicos para tornar novos modelos mais persuasivos aos olhos do povo em geral. Se o novo modelo se ajusta bem às ideologias existentes, será menos difícil persuadir a sociedade a aceitá-lo. Se o novo modelo está em duro contraste com as ideologias existentes, as pessoas podem ser persuadidas somente se elas perceberem que os modelos antigos sofreram falhas dramáticas, ou que os novos oferecem um sucesso formidável (1991, op. cit., p. 247).150
148 No pensamento econômico brasileiro, vimos que cada uma das correntes revisadas (a do neoliberalismo e as três desenvolvimentistas) valeu-se também de seus líderes intelectuais para efeito de propagação e aceitação de suas ideias. No que se refere às ideias que influenciaram a formulação de políticas públicas de propriedade intelectual entre 1995 e 2010, ocorreu o mesmo. 149 SIKKINK apresenta dúvidas quanto à utilidade dos conceitos de “falha” e “sucesso” para entender por que tomadores de decisão são estimulados a sustentar novas ideias. A autora defende que nem sempre a “falha” implica em rejeição, e o “sucesso” em ampla aceitação. Sobre os conceitos de “falha” e “sucesso” ver também McNamara (1998). Refletimos sobre os conceitos de “sucesso” e “falha” em McNamara, na p. 43. 150 Tradução livre do autor: Perhaps more useful than either failure or success as a way of thinking about what causes people to adopt new ideas is Peter Hall´s notion of persuasiveness. What makes
118
Enfim, SIKKINK confere destaque aos líderes políticos individuais e a sua
capacidade de utilizar incentivos materiais e simbólicos para cativar, a princípio,
pequenos grupos de tomadores de decisão na fase de adoção de novas ideias. É
por intermédio da persuasão151 que elas se tornam atraentes para estes líderes que
se dedicam a institucionalizá-las, comumente com a ajuda de um staff (assessores
e conselheiros técnicos e políticos), em sua fase de implantação. Os recursos
materiais e simbólicos aos quais os líderes recorrem também são fartamente
utilizados na tentativa de convencer os agrupamentos mais amplos da sociedade
sobre a correção e eficácia das novas ideias, com vistas a sua consolidação.152
Além das lideranças políticas, lideranças intelectuais podem ser também
an idea persuasive is the way the idea relates to the economic and political problems of the day. Success and failure are interpreted in terms of what are perceived as the most pressing problems facing a country at a particular time. What was it that made developmentalist ideas persuasive? They addressed directly and forcefully the issue that was seen by many as the central economic problem of that time in Latin America: the need for rapid industrialization. But developmentalism was appealing to policy makers because it offered a compromise program between the demands of the international economy and the demands of domestic groups. For new models to be adopted, they need only be persuasive to a fairly small group of policy makers and intellectuals; for a model to be consolidated, however, it must be persuasive for a broad range of societal groups. Leaders can use material incentives and symbolic appeals to try to make mew models more persuasive to the public. If the new model fits well with existing ideologies, it will be less difficult to persuade society to accept it. If the new model is in stark contrast to existing ideologies, the people may be persuaded only if they perceive that old models have suffered dramatic failure, or if the new offers stunning success. 151 Ver também KELMAN (1990, p. 40) que, ao analisar os aumentos dos gastos do Governo Norte-Americano nos anos 60 e a contenção de gastos nos anos 80, atribui ao poder de persuasão das ideias a explicação para a mudança nas políticas. Para KELMAN, poder de persuasão das ideias é um recurso político subestimado. 152 Para SIKKINK, os gestos materiais e simbólicos de Juscelino Kubistchek foram fundamentais para a adoção, a implantação e a consolidação das ideias desenvolvimentistas no Brasil. Ao comparar Kubistchek e Frondizi, afirma que “Kubistchek foi um político talentoso e um manipulador magistral de símbolos políticos” (ibid, p. 251). Já FRONDIZI “falhou em atingir níveis similares de legitimidade” na Argentina (ibid, p. 251). SIKKINK alega que Kubistchek foi um intérprete poderoso e persuasivo das ideias desenvolvimentistas. Interpretou-as de forma ampla, tentando incluir cada vez mais grupos sob o guarda-chuva desenvolvimentista (ibid, p. 254). Mas Kubistchek não só foi um grande intérprete das ideias desenvolvimentistas, como também soube levá-las adiante por meio de gestos simbólicos de grande envergadura. Destaca-se, entre estes gestos, a construção de Brasília. Kubistchek apresentou o desenvolvimentismo ao brasileiro comum “como algo moderno, novo e dramático. [...] A construção da nova capital simbolizou a integração territorial nacional do Brasil e seu movimento em direção ao futuro. A construção de Brasília e a pompa organizada que marcou sua inauguração também pode ser vista como um esforço de Kubistchek em interpretar o desenvolvimentismo em substância e forma” (ibid, p. 254). Veremos como Fernando Henrique Cardoso e Lula, com diferentes estilos, também se utilizaram fartamente de uma diversidade de gestos com vistas a angariar apoio mais amplo para suas ideias sobre qual deveria ser o padrão de inserção do Brasil na economia internacional e, logicamente também, no regime de propriedade intelectual do Acordo TRIPS. Diferentes matrizes ideacionais econômicas influenciaram os gestos dos dois Chefes de Estado, com repercussões na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual.
119
fundamentais no processo de afirmação de novas ideias.153 Líderes políticos
muitas vezes se unem a líderes intelectuais, ou apenas se valem de suas ideias, em
busca de uma base ideacional de justificativa para as suas políticas.
Enfim, líderes desempenham importante papel político na mobilização de
recursos materiais e simbólicos para a adoção de novas ideias na fase de
formulação (adoção) de políticas públicas.154 Os esforços posteriores dos líderes e
de seus principais assessores e conselheiros no sentido de institucionalizá-las
(implantação) e de angariar apoio de grupos sociais representativos e mais amplos
(consolidação) depende, essencialmente, do sucesso dos líderes naquele primeiro
momento em que é preciso mostrar, de forma persuasiva, que as novas ideias se
amoldam melhor aos problemas existentes na sociedade, do que as até então
predominantes.155
De forma a convencer as pessoas de suas ideias, o que se espera é que os
líderes políticos e intelectuais se aproximem delas e encontrem formas e
instrumentos para explicar a sua posição, solicitar apoio e ganhar aceitação
(HEIFETZ & SINDER, 1990, p. 180). Já quando se pretende implantar novas
ideias e institucionalizá-las, os líderes políticos ganham um pouco mais de
proeminência do que os intelectuais. Os líderes políticos devem ser capazes de
transmitir visões e posições firmes e interagir de modo efetivo ao exercer seu
poder e sua autoridade156 de forma a gerar um alinhamento organizacional e
político capaz de realizar as suas intenções (ibid, p. 181).
153 Em relação à política externa do Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o Presidente logrou desempenhar os dois papéis, utilizando-se fartamente do exercício da diplomacia presidencial. Já no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, há um maior compartilhamento de tarefas, sem significar, contudo, que não tenha sido reservado ao Presidente um papel bastante proeminente, especialmente no que tange à sua “história de vida”, a alguns atributos de sua personalidade e ao carisma. 154 Em interessante estudo de natureza normativa sobre as organizações internacionais, FINNEMORE E SIKKINK (2000, pp. 256-257) igualmente reconhecem que as normas (a princípio, definidas como regras comportamentais) dependem de seus líderes (entrepreneurs) na sua fase de emergência. Líderes são decisivos segundo as autoras porque chamam atenção para determinadas questões ou mesmo “criam” questões por meio de uma linguagem que as nomeiam, dramatizam e interpretam. Líderes criam molduras cognitivas (cognitive frames) que são essenciais para suas estratégias políticas. Uma vez bem sucedidas, elas ressoam junto aos entendimentos públicos mais amplos e são adotadas como novas formas de falar sobre diferentes temas e de compreendê-los. 155 Entendemos que, de forma abrupta e confusa, o Governo Fernando Collor de Mello (1990-1992) deu início a um processo de adoção pouco consistente de ideias neoliberais no âmbito das políticas públicas. Foi somente no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), que tais ideias de fato se afirmaram de forma sistemática e organizada. 156 O que diferencia a liderança da mera autoridade é que aquela é exigida em determinadas situações em que não se sabe o que se deve fazer. A liderança envolve a capacidade de mobilizar
120
No entanto, como vimos, por mais relevantes que sejam os esforços dos
líderes para a adoção de novas ideias, sua sustentabilidade ao longo do tempo
depende de que encontrem abrigos institucionais adequados (SIKKINK, op. cit.,
p. 248). Por mais que líderes possam ser importantes para que, no começo, as
ideias se infiltrem nas instituições, uma vez que aquelas se encerram nestas157,
seus “indivíduos fundadores” tendem a não ser mais importantes para que as
ideias mantenham vigor (ibid, p. 250).
Como explicar o processo por meio do qual as instituições são capazes de
assimilar e encerar novas ideias, em detrimento das até então predominantes? Em
estudo sobre “mudanças paradigmáticas” ocorridas na CEPAL durante os anos 80
e 90, SIKKINK afirma que a organização passou por transformações profundas
“em suas ideias sobre o desenvolvimento, transformações que, se por um lado
paralelizaram, por outro não foram meras reproduções do movimento mais amplo
em toda a América Latina em direção das políticas econômicas neoliberais”
(1997, op. cit., p. 228). A proposta da autora é apresentar uma abordagem que
enfatiza o processo de aprendizado experimentado pela CEPAL dentro de
constrangimentos institucionais e materiais; abordagem que entende como mais
útil para compreender as mudanças ocorridas nas ideias desenvolvimentistas da
organização (ibid, p. 228).
SIKKINK afirma que, desde a divulgação do famoso manifesto de Raúl
Prebish, em 1950, que lançou as bases do pensamento estruturalista latino-
americano, até a publicação de seus primeiros documentos e estudos no início dos
anos 90158, a CEPAL passou por mudanças claras em termos da proposta de
modelo econômico e de prescrições políticas (ibid, p. 232). Os documentos e
estudos dos anos 90 revelariam um vocabulário completamente diferente do
recursos de um grupo para realizar um trabalho. Quando uma situação requer solução, mas é rotineira, e é necessária apenas expertise para resolvê-la, somente a autoridade é suficiente. A liderança é uma função distinta da autoridade e prescinde de posicionamentos. Ela pode ser exercida por várias pessoas com variados graus de autoridade (ibid, p. 194). A liderança não é, pois, uma posição, mas uma atividade (ibid, p. 194) e pode ser exercida de diversas posições, entre as mais elevadas e as mais subalternas, dentro de uma escala hierárquica (ibid, p. 193). 157 Lembramos os comentários à MILNER & KEOHANE (1996) na nota 42, que demonstram que, por vezes, instituições podem ser resistentes a mudanças. 158 Vale lembrar que o artigo da autora é de 1997, momento em que a adoção de políticas neoliberais era aplicada pela maioria dos governos latino-americanos. Interessante notar que o método empregado por SIKKINK para contrastar o manifesto de Prebish, de 1950, com os documentos divulgados pela CEPAL no início dos anos 90, é o da “análise conteúdo”, mesmo que empregamos neste trabalho, como será explicado no capítulo metodológico (cap. 3). A autora explicita seu método de pesquisa na nota explicativa 7 (ibid, p. 251).
121
empregado pelo clássico trabalho de Prebish. Apesar de se observar uma notável
continuidade no que tange à importância conferida à industrialização e ao
progresso técnico, outros termos e temas, dominantes no jargão tradicional da
organização, como “centro”, “periferia”, “deterioração dos termos de troca” e
“modelo de substituição de importações”, não mais aparecem, para dar lugar a
outros, em destaque, como “promoção das exportações”, “competitividade
internacional” e “abertura internacional” (ibid, p. 232).
De forma a promover uma estratégia capaz de conciliar crescimento
econômico com equidade social159, a CEPAL passa a recomendar um movimento
geral em direção à liberalização comercial, às taxas de câmbio competitivas e à
promoção das exportações, enquanto ainda defende um papel central para o
Estado na direção da nova política econômica (ibid, p. 233). Os relatórios dos
anos 90 sublinham que o principal objetivo das economias latino americanas não
deve ser a abertura econômica per se, mas a competitividade, o que exige uma
incorporação sistemática e deliberada de progresso técnico (ibid, p. 233).
Procurando se diferenciar das ideias neoliberais, a CEPAL postula um Estado que
adote uma política industrial, tecnológica e educacional que o permita lidar com o
processo de desenvolvimento e liberalização. Defende que o Estado auxilie a
indústria na assimilação de novas tecnologias e estimule vínculos saudáveis entre
empresas privadas e instituições públicas como, por exemplo, universidades (ibid,
p. 233). 160
SIKKINK considera que, pelo menos à primeira vista, é surpreendente
identificar esta “mudança paradigmática”, por ser a CEPAL uma organização que
durante muito tempo foi intimamente associada ao modelo de substituição de
importações e sinônimo virtual do mesmo (ibid, p. 233). Quando exatamente esta
mudança teria ocorrido?
A resposta mais comum para esta pergunta é a de que todo e qualquer tipo
de mudança paradigmática como a que se verificou na CEPAL e em outras
159 A crítica comum da CEPAL aos resultados das políticas do modelo de substituições de importações e das políticas neoliberais reside na continuidade e agravamento da situação de pobreza no continente latino-americano. 160 Apesar de SIKKINK afirmar que tal receituário está mais próximo do modelo neoliberal do que do modelo de substituição de importações (ibid, p. 233), entendemos que a proposta da CEPAL diferencia-se da ortodoxia neoliberal, que repudia qualquer hipótese de política industrial com dirigismo estatal. Esta concepção cepalina de Estado dos anos 90 nos ajudará a compreender mudanças nas ideias sobre o desenvolvimento, durante o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, com suas repercussões na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual.
122
instituições resulta do fato de que as ideias são impostas pelo poder,
especialmente o poder econômico e militar (ibid, p. 234). Nesta abordagem, as
ideias pouco importam, eis que são vistas como “meros disfarces para o jogo dos
interesses e do poder” (ibid, p. 234). SIKKINK refuta esta forma dominante de
entender a economia política da América Latina161 e também critica a visão pós-
moderna que enxerga o “discurso desenvolvimentista como um aparato de
controle e submissão” imposto pelo Ocidente ao mundo em desenvolvimento
(ibid, p. 234).162
A alternativa apresentada por SIKKINK é a das explicações centradas nas
noções de “aprendizado” e nas instituições. Assim como FINNEMORE (1997), a
autora destaca também a noção de persuasão elaborada por HALL (1989), ao
afirmar que o que define o sucesso ou não de uma determinada ideia é a forma
como ela é interpretada em relação ao que é percebido como os problemas mais
urgentes enfrentados por um país num momento em particular (SIKKINK, 1997,
op. cit., pp. 235-236).
Quanto ao aprendizado, SIKKINK realça que o que caracteriza tais
abordagens é a percepção dos seres humanos como engajados em “raciocinar e
processar novas informações sobre o ambiente numa tentativa de conferir sentido
ao mundo que os cerca” (ibid, p. 235). Dentro da tradição das abordagens
cognitivas, as propostas com base no aprendizado entendem que o comportamento
dos indivíduos não é previsível ex ante, pois depende, entre outras coisas, das suas
crenças subjacentes, da forma como processam informações, assim como de
traços das suas personalidades (CARLSNAES, op. cit., p. 238).
161 Egressa, de acordo com a autora, do estruturalismo cepalino e dos seus desdobramentos, como a teoria da dependência. 162 Sugerimos a re-leitura da nota 92. ESCOBAR (um pós-moderno, estudioso de antropologia econômica) demonstra que é possível conciliar o método da história das ideias de SIKKINK com o seu método das formações discursivas. Concordamos, no entanto, com o que SIKKINK quer dizer por entendermos que, não obstante insights interessantes que a abordagem pós-moderna pode oferecer, limitar-se a mesma superficializa a análise, por recair numa ‘lógica de vitimização’ que não leva a lugar algum e que menospreza os aportes que o estudo das ideias, com noções como “aprendizado” e “mudanças de percepções” podem oferecer. Assim como nós, COOPER & PACKARD concordam com SIKKINK: “Somos também céticos sobre o argumento de que o desenvolvimento representa um exemplo de tirania da modernidade, o colonialismo por outros meios, uma vez que a mesma história que demonstra as origens das iniciativas desenvolvimentistas e do constructo do desenvolvimento é também a história sobre como tal conceito foi mobilizado e desviado para outros fins. [...] Denúncias da modernidade [...] não farão com que corporações multinacionais e representantes da Organização Mundial de Saúde (OMS) saiam de cena” (1997, op. cit., p. 30).
123
O que SIKKINK e outros autores como HAAS (1990) oferecem de
interessante é o argumento de que, assim como os indivíduos, instituições também
podem passar por processos de aprendizado.163 A possibilidade de que instituições
aprendam surge nos momentos em que “redefinem seus problemas” 164, como o
Banco Mundial que, na década de 70, abandonou a agenda do crescimento
industrial nos países em desenvolvimento para se concentrar no combate à
pobreza (ibid, p. 3). O aprendizado consiste em que os indivíduos de uma
instituição se sintam induzidos a questionar crenças antigas sobre a propriedade
dos objetivos da ação e a refletir sobre novos, de forma a reavaliar si mesmos
(ibid, p. 24). Na medida em que estes indivíduos mergulham num processo de
aprendizado, é provável que cheguem a um entendimento comum de quais são as
causas dos problemas que enfrentam (ibid, p. 24). Em síntese, “o aprendizado
implica no compartilhamento de significados amplos entre aqueles que aprendem”
(ibid, p. 24).165
SIKKINK (1997, op. cit., pp. 236-250) analisa como este processo de
aprendizado se deu na CEPAL, a partir da segunda metade dos anos 80 e ao longo
da década de 90, para que as ideias de inspiração estruturalista dessem lugar a
novas propostas de políticas econômicas. A forma como a instituição reagiu ao
advento das ideias neoliberais nos anos 80, por intermédio da atuação de suas
lideranças e de uma nova geração funcional de economistas, é o aspecto destacado
163 HAAS reconhece a importância dos indivíduos para a ocorrência de “mudanças paradigmáticas” nas instituições ao afirmar: “meu argumento de que as instituições podem ser arenas para mudanças, ao invés de serem coagidas a modificar, depende claramente da capacidade presumida dos atores de utilizar-se das instituições para lidar com problemas não antes experimentados” (ibid, p. 127). Notamos que HAAS se refere à “capacidade presumida” o que remete a uma concepção dos atores ancorada na presunção do ator racional, diferente de uma abordagem cognitiva. Entendemos que isto não invalida, contudo, seu conceito de aprendizado, pelas instituições. HAAS, inclusive, esclarece não acreditar em uma relação de oposição entre “ideias” e “interesses” (ibid, p. 2). 164 Vale esclarecer que a análise de HAAS focaliza as organizações internacionais, ao passo que as instituições que destacamos como intervenientes na formulação de políticas públicas são exclusivamente instituições estatais (Ministérios e Agências estatais). Nestas, a “redefinição do problema” depende mais da forma como as lideranças, especialmente as do Poder Executivo, recepcionam novas ideias, por acreditarem que respondem melhor aos problemas enfrentados pelo país naquele momento (mecanismo da persuasão). Naquelas, HAAS afirma que os Estados, agindo de acordo com os seus interesses, são os principais arquitetos responsáveis pelas mesmas. Mas admite que interesses “são informados pelos valores que os líderes políticos procuram defender” (ibid, p. 6). E conclui: “os atores levam em suas mentes os valores que moldam as questões contidas em seus briefing papers” (ibid, p. 6). 165 Sobre a noção de “aprendizado”, ver ainda LEVY (1994). De acordo com HUDSON (2002, op. cit., p. 13) e CARLSNAES (2001, op. cit., p. 338), o artigo de LEVY apresenta um panorama amplo e excelente do que consiste o processo de aprendizado social na Teoria das Relações Internacionais.
124
pela autora para explicar a mudança. Apesar de reconhecer que a dimensão do
poder é importante para entender por que a CEPAL passou por um processo de
transformação na proposta de políticas, SIKKINK não se contenta com a
mesma.166 Atribui mais a “mudança paradigmática” pela qual passou a
organização à forma como suas lideranças (economistas, como Fernando
Fajnzylber e autoridades administrativas, como os Secretários Executivos Enrique
Iglesias e Norberto González) perceberam a crise econômica latino-americana dos
anos 80 (com hiperinflação e agravamento da desigualdade social), inspirados
também pelo sucesso inicial de algumas políticas neoliberais (sendo o Chile o
caso mais destacado de baixa inflação e crescimento sustentado entre 1985 e
1991).167 No que tange ao crescimento econômico, o contraste entre o “fracasso
latino-americano” e o sucesso dos países do Sudeste Asiático (com média de
crescimento de 6% ao longo da década de 80), levou os economistas da CEPAL a
uma atitude de autocrítica em relação às propostas anteriores da organização,
convencendo-se de que as explicações principais para tais diferenças se
encontravam mais na política doméstica do que na situação internacional (ibid, p.
245).
Todos esses fatores contribuíram, segundo SIKKINK, para a afirmação de
um “novo pensamento” na CEPAL que priorizou a relação entre crescimento 166 SIKKINK reconhece que mudanças nas políticas econômicas dos países em desenvolvimento envolvem mais coerção externa do que nos países mais desenvolvidos porque as decisões do atores econômicos externos podem ter um efeito mais poderoso em suas economias mais vulneráveis. Instituições como o FMI e o Banco Mundial e outras de natureza financeira utilizaram-se fartamente de requisitos e exigências, como a adoção de políticas neoliberais, para condicionar os seus empréstimos (ibid, p. 237). Mas SIKKINK acredita que atribuir a mudança ideacional numa organização como a CEPAL só a estes fatores equivale a perder uma parte importante da história. Ao contrário de alguns governos da América Latina, a CEPAL não foi “forçada” durante os anos 90 a nenhuma mudança ideacional. Não se encontra endividada, não precisava da aprovação do FMI e também não era dominada pelos bancos americanos ou por lobbies domésticos (ibid, p. 237). Assim, SIKKINK conclui que “olhar para as mudanças ideacionais da CEPAL separa-nos de alguma forma da política da força bruta e dos interesses, e nos leva a inquirir sobre como intelectuais e servidores civis mais insulados mudaram seus pensamentos” (ibid, p. 237). No nosso caso, cremos que os constrangimentos estruturais impostos pelo Regime Internacional de Propriedade Intelectual do Acordo TRIPS aos tomadores de decisão no Brasil são maiores que os constrangimentos internacionais impostos aos funcionários da CEPAL, mas não elimina, em absoluto, a importância da dimensão cognitiva das lideranças individuais para compreender como mudanças ideacionais influem na formulação de políticas. 167 SIKKINK explica que, apesar das ideias econômicas neoliberais terem encontrado resistência inicial, por irem contra o estatismo e o nacionalismo enraizados no discurso político e econômico latino-americano, foram se mostrando persuasivas porque diagnosticavam alguns dos problemas mais urgentes daquele momento: o controle da inflação e a retomada do crescimento (ibid, p. 246). Além disso, o fracasso de alguns “choques heterodoxos”, como o do Plano Cruzado, no Brasil, entre 1986 e 1987, também contribuiu para tornar as ideias ortodoxas neoliberais mais atraentes e persuasivas (ibid, p. 247).
125
econômico e equidade social e se concentrou mais na dimensão das políticas
domésticas do que nos condicionantes externos (ibid, p. 245). A preocupação com
a pobreza e a equidade é o que ainda permitiria identificar na organização um
pensamento distinto da ortodoxia neoliberal, apesar da inegável proximidade com
esta (ibid, p. 248).
Discutidos os aspectos centrais das abordagens de FINNEMORE (1997) e
SIKKINK (1991; 1997) que nos permitiram identificar como instituições e
lideranças podem intervir na forma como ideias sobre o desenvolvimento
influenciam a formulação de políticas, apresentamos em seguida uma breve
síntese do referencial teórico.
2.6 Síntese do Referencial Teórico
A “ideia do desenvolvimento”, as instituições e as lideranças são
categorias essenciais para compreender o processo de formulação de políticas
públicas de propriedade intelectual durante os Governos Fernando Henrique
Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva (1995-2010). Na pesquisa, interessou-nos
averiguar como tais categorias repercutiram em duas políticas públicas em
particular: a política externa e a política industrial.
Vimos que ideias iguais sobre o desenvolvimento (que tinham no
estruturalismo cepalino dos anos 50 sua fonte de inspiração) repercutiram de
forma diferenciada na Argentina e no Brasil (apesar dos mesmos
constrangimentos estruturais), em razão do ambiente institucional em que foram
recepcionadas e do perfil dos líderes comprometidos com as mesmas. No caso da
CEPAL e do Banco Mundial, “mudanças paradigmáticas ideacionais” em torno
do desenvolvimento se deram não só por conta de constrangimentos materiais
estruturais (relacionados ao poder e aos interesses), mas também (e
principalmente) em razão da atuação de lideranças políticas e intelectuais
persuadidas por novas ideias (essenciais no momento de adoção de novas
políticas), e também de um processo de aprendizado (importante no momento da
implantação).
O mecanismo de persuasão elaborado por HALL (1989) ajuda-nos a
compreender por que, em determinados momentos da história, algumas ideias
126
sobre o desenvolvimento mostram-se mais atraentes do que outras para tomadores
de decisão. O que importa, para líderes e tomadores de decisão, é se convencerem
de que novas ideias podem representar soluções para os principais problemas
econômicos e políticos do momento.168 No caso da trajetória recente das políticas
públicas de propriedade intelectual no Brasil, a ascensão das ideias neoliberais em
toda a América Latina durante os anos 80 e início dos 90 teve notável influência
sobre a forma como tomadores de decisão do Brasil definiram a inserção do país
no regime internacional de propriedade intelectual do Acordo TRIPS e como
foram formuladas nossas políticas públicas nesta área temática durante o Governo
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
A abordagem de HALL (1989) também é útil ao apresentar uma tipologia
de diferentes mecanismos causais que explicam como ideias econômicas podem
afetar o processo de formulação de políticas públicas. Ativemo-nos a dois destes
mecanismos. O primeiro enfatiza o papel dos economistas no processo decisório
de formulação de políticas (centrado na economia) e é importante para entender
tanto o papel propositivo que os economistas exercem ao oferecer diferentes
“cardápios de receitas econômicas” aos principais tomadores de decisão
(especialmente Chefes de Estado), quanto o seu papel político quando atuam
também como decision makers. O segundo busca explicações nos diferentes
arranjos burocrático-administrativos estatais e a sua maior ou menor
permeabilidade à absorção de novas ideias (centrado no Estado) para explicar
como elas conseguem se encerrar nas instituições ou não. Os dois mecanismos são
válidos para compreender porque no Governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-
2010) as políticas públicas de propriedade intelectual foram mais influenciadas
por ideias desenvolvimentistas do que no Governo Fernando Henrique Cardoso,
apesar de tais ideias estarem longe de poder ser caracterizadas como um corpo
homogêneo.169
No que se refere aos fatores apresentados por HALL (1989) como capazes
de condicionar a aceitação e avaliação de novas ideias econômicas, a natureza do 168 Independentemente das ideias só justificarem as convicções que os tomadores de decisões ou líderes já detêm, ou deles serem convencidos por argumentos econômicos a mudar de posição e defender determinadas medidas. O líder querer se valer de novas ideias , como justificativa para suas posições pessoais, não invalida a caracterização do mecanismo como de persuasão. 169 Com efeito, entre as correntes desenvolvimentistas com influência na formulação de políticas públicas de propriedade intelectual, às duas já examinadas – nacionalistas e não-nacionalistas – podemos agregar a dos “novos desenvolvimentistas”. Avaliamos até que ponto é possível concordar com a existência de um “novo desenvolvimento”.
127
discurso político existente foi o elemento que pesou para compreendermos o
mecanismo de persuasão.170 De fato, a tradição do vetor ideacional
desenvolvimentista na política externa brasileira e no pensamento econômico
nacional (com suas diferentes correntes), ajuda a explicar por que a hegemonia da
matriz neoliberal na concepção de políticas públicas de propriedade intelectual
durante a década de 90 (e em todo o Governo Fernando Henrique Cardoso) pôde
ser gradualmente minada, apesar de não se poder dizer que ainda não exerce
notável influência, devido aos resultados que deixou no que se refere ao
desmanche em definitivo do “Estado Varguista” e ao estabelecimento de um novo
padrão de relações do Estado com a sociedade.
Apesar das dificuldades de se conceber as ideias como entidades
separáveis dos interesses, como “posses individuais” ou “crenças compartilhadas
por indivíduos”, e de possíveis questionamentos quanto a sua relação causal com
os eventos políticos, entendemos que uma abordagem centrada nas ideias tem
validade por ser capaz de aportar conclusões diferentes daquelas análises
centradas em interesses. Abordagens ideacionais podem não dissuadir partidários
da premissa do ator racional e de visões mais estruturalistas de que seus
postulados essenciais não são válidos, mas certamente lançam provocações que
demonstram sua utilidade enquanto ciência.
Recordemos, por fim, que não negamos à estrutura (o regime internacional
de propriedade intelectual) sua presença enquanto uma variável que limita as
escolhas dos tomadores de decisão brasileiros. Com efeito, após o advento do
Acordo TRIPS, os constrangimentos impostos aos países em desenvolvimento em
termos de autonomia para levar adiante suas políticas industriais aumentaram
enormemente, em comparação ao regime anterior, que vigorou durante mais de
um século (desde a segunda metade do século XIX) e que conferiu aos países de
industrialização tardia, como a Alemanha, um cenário mais favorável de
flexibilidades (hoje negadas), aproveitadas para desenvolver sua indústria
nacional.
170 Quanto às orientações do partido governista, o PT, no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, é apresentado como exemplo de instituição que interferiu limitadamente na formulação da política externa. A presença de Marco Aurélio Garcia no Governo contribuiu para que a América Latina fosse o campo de aplicação mais claro de uma política internacional próxima à desejada pelo PT, apesar de desentendimentos entre a cúpula do partido e o assessor presidencial (LEO, 2010a). No Governo Fernando Henrique Cardoso, sua influência pessoal (diplomacia presidencial) ofuscou a participação do PSDB.
128
Aceitar a existência destes constrangimentos pode implicar em uma atitude
de total passividade diante desta realidade ou, a partir de uma postura pragmática,
mas descontente, questionar-lhe o conteúdo, aproveitar-se de eventuais (ainda que
poucas) flexibilidades e engajar-se na proposta de transformações dentro do
regime internacional em vigor que sejam favoráveis aos países em
desenvolvimento. Esta é a mudança que acreditamos que aconteceu do Governo
Fernando Henrique Cardoso para o Governo Luiz Inácio Lula da Silva, embora
devamos reconhecer que algumas transformações ideacionais relevantes
aconteceram já durante o segundo mandato daquele.
Vjamos agora um fluxograma que resume o referencial teórico descrito.
Vale esclarecer que o referencial apresentado tem caráter puramente instrumental,
ou seja, sua aplicação se atém ao objeto de estudo escolhido e ao recorte empírico
realizado. Não se pretende que seu potencial explicativo seja estendido a outros
objetos, tal como uma estrutura abstrata e universal:
Fonte: elaboração do autor
Dedicamo-nos agora a discutir os aspectos metodológicos da pesquisa.
REFERENCIAL TEÓRICO – FLUXOGRAMA(Regime de Propriedade Intelectual: Poder/Ideias)
IDEIAS(Desenvolvimento)
Persuasão
INSTITUIÇÕES(mais peso na implantação)
(Partido Governista, M inistérios,
Agências Estatais etc.)
LIDERANÇA(mais peso na adoção)
(Chefes de Estado, Assessores, Conselheiros,
Ministros, Economistas, Intelectuais etc.)
FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROPRIEDADE
INTELECTUAL(Política Externa e Política Industrial)
REFERENCIAL TEÓRICO – FLUXOGRAMA(Regime de Propriedade Intelectual: Poder/Ideias)
IDEIAS(Desenvolvimento)
Persuasão
INSTITUIÇÕES(mais peso na implantação)
(Partido Governista, M inistérios,
Agências Estatais etc.)
LIDERANÇA(mais peso na adoção)
(Chefes de Estado, Assessores, Conselheiros,
Ministros, Economistas, Intelectuais etc.)
FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROPRIEDADE
INTELECTUAL(Política Externa e Política Industrial)
REFERENCIAL TEÓRICO – FLUXOGRAMA(Regime de Propriedade Intelectual: Poder/Ideias)
IDEIAS(Desenvolvimento)
Persuasão
INSTITUIÇÕES(mais peso na implantação)
(Partido Governista, M inistérios,
Agências Estatais etc.)
LIDERANÇA(mais peso na adoção)
(Chefes de Estado, Assessores, Conselheiros,
Ministros, Economistas, Intelectuais etc.)
FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROPRIEDADE
INTELECTUAL(Política Externa e Política Industrial)