18.a_perversao_comum_viver_juntos_sem_outro

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    A PERVERSO COMUM: VIVER JUNTOS SEM OUTRO

    Cad. Psicanl.-CPRJ, Rio de Janeiro, ano 31, n. 22, p. 221-226, 2009 221

    A perverso comum: viver juntos sem outroLebrun, Jean-Pierre. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008. 355 p.

    William Jos Batista*

    O mundo do perverso um mundo sem outrem.

    (Deleuze, Lgica do sentido, p. 329)

    A perverso comum, de J.-P. Lebrun, com um subttulo eloqente: viverjunto sem outro, parte de uma enomenologia da mutao do lao social des-crita como desarticulao e esacelamento da interao entre o singular e osocial coletivo. Essa mutao az emergir novos regimes de economia psquicae anuncia o aparecimento de novas patologias. O que enseja mudanas clni-cas. A interpretao dos modos como essa mutao aeta as subjetividadescontemporneas se coloca relativamente prtica psicanaltica hoje, ao papelda psicanlise e tarea do psicanalista.

    As mudanas na vida coletiva incidem sobre o psiquismo dos sujeitos sin-gulares e essa incidncia conrma que o sujeito do inconsciente, o sujeito a-lante, um sujeito alado, dividido, assujeitado. Dessa constatao, Lebrun

    d-se a tarea de avaliar a extenso do que alar implica: consentir no vazio, naperda do gozo, na negatividade. Implica silncio, distncia do imediato doreal, desvio das coisas, desapossamento.

    Marcado pelo inconsciente, a identidade do sujeito alante negativa,vem do outro. Assim, a negatividade que constitui a identidade do sujeito. Oprocesso de subjetivao , antes, um processo de objetivao, processo peloqual o sujeito se torna objeto, sendo tambm processo de assujeitamento(Foucault).

    * Filsoo, Psicanalista, Mestre em Filosoa/IFCS-UFRJ, Doutor em Comunicao/ECO-UFRJ,Associado ao Frum/CPRJ.

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    DIMENSES DO SILNCIO

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    Tratando da mutao do lao social, Lebrun levanta alguns pontos em tornoda crise da civilizao ocidental, undada conorme o modelo religioso e manti-da sobre o undamento teolgico. Sobre esse undamento, a autoridade hierr-quica se legitimou pela evidncia do lugar da transcendncia em que se apia. mediante essa crise de undamento que o Ocidente abre as portas para a Moder-nidade, caracterizada pela inveno da cincia e a secularizao. A secularizao representada pela sada da religio teolgica e entrada na religio do mercado.

    Na sociedade secularizada, em que vigora a lei do mercado generalizado,a religio deixa de ser organizadora do lao social. Dispensa a relao com ooutro, protege-se da transcendncia e do lugar da autoridade, que lugar deexceo. Transcendncia o lugar vazio do simblico, da no reciprocidade,da verticalidade que resiste e escapa. O abandono do apoio da transcendnciase baseia no movimento que sai da organizao hierrquica verticalizada paraa atual horizontalidade emancipada da transcendncia: a emergncia do sim-blico destranscendentalizado. dessa horizontalidade generalizada, que ca-racteriza a Modernidade, que se entra na crise da deslegitimao da autoridadedo modelo teolgico undado na promessa da completude ou que deixa suporque a completude seja acessvel.

    O autoengendramento decorrente dessa autonomia avorece a singulari-dade, mas desarticula o coletivo. O democratismo dessa horizontalidade aboleas dierenas e est na base da crise de legitimidade da autoridade, inclusive daautoridade paterna, deslegitimada em sua uno educadora. Surge, assim, ummomento propcio para o aparecimento e a manuteno da criana generali-zada, em um mundo com todas as pretenses de completude.

    Associando a crise do modelo teolgico crise de legitimao e esacela-mento da autoridade, o autor descreve o m do patriarcado ligando-o disso-ciao entre sexo e reproduo e inverso das prevalncias entre as geraes.

    Tendo pontuado as condies de emergncia do sujeito contemporneo, deno-minado neo-sujeito, e o abordado como um sem outrem, Lebrun chega generalizao da perverso comum.

    A emergncia do neo-sujeito est associada ao desabamento da transcen-dncia e crise do regime paterno, da sua uno e seu papel. O neo-sujeitolivra-se do patriarcado, evita o pai e toda hierarquia. Resulta uma horizontali-dade generalizada, sem negatividade, e sem limite ao gozo. A uniormidadegeral se impe, assim, mediante a economia globalizada, integrao cultural

    e padronizao do pensamento.Para azer uma enomenologia do neo-sujeito, Lebrun distingue o psi-

    quismo do neurtico clssico, organizado pelo recalque, do psiquismo do neo-

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    sujeito, organizado pelo desmentido e inscrito no regime da evitao dasubjetivao. Lebrun caracteriza o neo-sujeito como: vida inspida, em que algica da sensao prevalece sobre a do pensamento, e em que o sentimento de

    vazio interior produz necessidade intensa de sensaes. Sem distncia e aasta-mento em relao ao que lhe acontece, este sujeito no se v agir, no refete,mantm relao de imediatismo com o mundo. No leva em conta a dimensoda negatividade do objeto e se agarra prevalncia da imagem que o protegeda palavra. Pela postura de aderncia ao objeto, evita a subjetivao.

    A descrio de um sujeito mais ou menos com as mesmas caractersticasdo neo-sujeito aparece no Anti-dipo de Deleuze/Guattari (1966): o sujeitoesquizo. A partir das idias de mquina desejante, de que o sujeito produzi-do, de que a economia libidinal no menos objetiva do que a economiapoltica, de que a poltica no menos subjetiva do que a libidinal, e de que aalta arrumada e organizada na produo social, Deleuze dene o esquizocomo um sujeito estranho, sem identidade xa, errante sobre um corpo semrgos, sempre ao lado das mquinas desejantes, denido pela parte que tomado produto, recolhendo em toda parte o prmio de um devir ou de uma meta-morose. Ou seja, nos contornos, sempre descentrado.

    A psicanlise, por sua vez, identica o homem como ser de linguagem ede ala. O sujeito sujeito do inconsciente. O inconsciente no apenas indi-

    vidual, tambm social. Em uno disso, o sujeito dividido, barrado, nunca pleno. Assim, a identidade do sujeito, sujeitada ao signicante do Outro, negativa; sua construo impe perda e subtrao de gozo.

    O processo de humanizao, ou a construo da subjetividade, se az noconronto com o outro, com a negatividade. E se dene como processo de pas-sagem de economia da precedncia do gozo para a economia da inscrio dodesejo, que a relao com a alta, com a perda, com a castrao.

    O sujeito est sempre conrontado com a alteridade do outro. O que souvem do outro, o outro me az ser o que eu sou (Sartre). Subjetivao se realizapela via do outro. Perverso toca precisamente o domnio da relao com ooutro. E se dene como recusa da castrao, negao do limite ao gozo e daimpossibilidade do gozo total. O perverso nega a alteridade do outro e a instru-mentaliza, rejeita toda negatividade e deslegitima a autoridade que o limita.

    Para refetir sobre a perverso, Lebrun opera com os conceitos de nega-o, recalque, denegao, renegao/desmentido. Pela denegao, o sujeito

    anuncia, sob orma negativa, o seu desejo recalcado e se deende dele negandoque seja seu. Rejeita a emergncia de uma pulso e a reconhece exatamente porexprimi-la negativamente. Renegao a recusa de reconhecer a realidade de

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    uma percepo que perturba o sujeito, mediante o que ele a rejeita. O recalque o processo pelo qual os signicantes correlatos a uma pulso inaceitvel sorelegados ao inconsciente.

    Lebrun recolhe, em dierentes autores, expresses diversas que propemuma traduo do conceito de Verleugnung: desveu (desaprovao), dni (de-negao), dmenti (desmentido), rpudiation (repdio). Acrescenta ainda aproposta de Lacan: louche rus (recusa suspeita).

    Verleugnungdesigna um mecanismo psquico que torna possvel recusare aceitar uma pulso. Essa convivncia dos opostos cria um mundo incon-sistente em que os contrrios no se opem. O neo-sujeito pratica a renega-o e evita a subjetivao, o que lhe permite aniquilar a alteridade do outro.A economia perversa engaja sujeitos num lao social em que unciona a re-negao da alta. A subjetividade do perverso est organizada a partir darenegao assumida. Do lado do perverso h uma estrutura, do lado do neo-sujeito evitao da subjetivao. No perverso age a renegao, no neurticoage o recalque.

    Em Lgica do sentido (1998), Deleuze comenta, com o ttulo Michel Tou-nier e o mundo sem outrem, a propsito do livro de Michel Tounier, Vendrediou les limbes du Pacifque (Gallimard, 1967) sobre o aprendizado de uma vidasem outro e os eeitos de sua ausncia. As palavras outro e outrem, emboratenham a mesma origem etimolgica latina, da palavra alter, se distinguementre si. Outrem designa o outro concreto, o semelhante, indica uma noo deendereamento, de destinao. Envolve tambm aquele que se inscreveu nopsiquismo do sujeito em razo do encontro realizado com o outro concreto. Ooutro se reere cena e ao lugar da linguagem, e se associa Lei da humaniza-o, aqum e alm da lei, que social e visa a limitao e subtrao do gozo. Notexto de Deleuze, perverso aquele que aniquila o outrem, sendo que a perver-

    so atinge a dissoluo progressiva e irreversvel do outro. No perverso, a es-trutura outrem substituda pela estrutura em que os outros reais desempenhamo papel de corpos-vtimas, de cmplices elementos. E conclui: o mundo doperverso um mundo sem outrem.

    Lebrun postula que a mutao do lao social, na nossa modernidade des-trancendentalizada, submetida lgica do mercado e do gozo total, vem intro-duzindo o desaparecimento do outro. O neo-sujeito, para quem o outrodesaparece, pode ser chamado de um sem outrem.

    O uncionamento psquico do neo-sujeito privilegia a renegao. Marca-do pela rejeio da transcendncia, imunizou-se contra a alteridade. O outroest ausente, o lugar do outro est recusado, desativado. A neurose normal da

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    poca de Freud, articulada ao discurso social do patriarcado, v-se hoje, graas mutao do lao social, atingida pela neurose de aspecto perverso, a perver-so comum.

    Sustentada pela interiorizao do modelo do mercado, a nova organiza-o social se transorma em uma comunidade de renegaes, o que determi-na a estrutura psquica do neo-sujeito. O mercado lhe oerece a mercadoriacomo objeto de consumo destitudo de toda negatividade. Aderindo ao objeto,o neo-sujeito evita o conronto com a perda e com a subtrao do gozo. Cabeao analista, ento, a responsabilidade de inaugurar uma nova clnica que iden-tique a clivagem produzida pelo novo lao social e reintroduza no discurso auno da castrao.

    Crticas:

    Na pgina 125 da edio brasileira, Lebrun arma que Lacan escreve ek-sistncia, para ressaltar a exterioridade do existir humano. de Heidegger oconceito de ex-sistncia. Heidegger enatiza o carter de estado-de-abertura,que a constituio originria do Dasein. A expresso latina ex-sistncia de-signa o movimento de sada, emergncia, modo de aparecer, mostrar-se, virao aberto do mundo. Existncia se representa pelo movimento de projeo,estado-de-lanado para o mundo. Existncia signica ao mesmo tempo pro-

    jeo e projeto.Na pgina 245, Lebrun az aluso a uma passagem de uma das cartas de

    So Paulo aos Corntios, traduzida no livro como: A letra mata, mas o espritocria a vida. No contexto teolgico paulino, a expresso a letra mata no podeser associada armao lacaniana de que o conceito mata a coisa, como Le-brun sugere. Na carta paulina a armao de que a letra mata s se compre-

    ende em oposio ao esprito que vivica. So Paulo az uma crtica aos ariseuse suas leituras e interpretaes undadas apenas na letra da lei. Enatiza, portan-to, que o que salva no o conhecimento da lei e o cumprimento da lei, mas aprtica do esprito da lei. Em dierentes passagens do Evangelho se esclareceque, mediante a salvao trazida por Cristo, no estamos mais sob a letra da leimas na nova aliana da salvao (a graa, na expresso paulina e agostiniana).

    Na pgina 290, Lebrun coloca o conceito sartreano de m- como equi-valente ao desmentido. No so equivalentes. A essncia da m- est na

    liberdade e na conscincia de ser livre. M- seria tentativa de uga da angs-tia da liberdade quando, por exemplo, lano para os outros a responsabilidadepelas minhas escolhas. Pela m- tento ugir da solido da escolha. O desmen-

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    tido s se aproxima da m- enquanto recusa. Mas a recusa da m- deoutro teor: recusa da tomada de conscincia da liberdade e uga da angstia deser livre.

    Na pgina 307, Lebrun distingue outro de outrem. O tradutor mantevea traduo exatamente como Lebrun escreveu: outrem (autri,em rancs) est,no caso dativo, em latim. Acontece que outrem em portugus vem do casoacusativo em latim. A orma rancesa autri, traduzida para o portugus poroutrem, est, no caso dativo, somente em rancs.