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ELEMENTOS DE FILOSOFIA MORAL James Rachels Atenção: este livro foi apenas escaneado, não foi corrigido. TRADUÇÃO F. J. AZEVEDO GONÇALVES REVISÃO CIENTÍFICA DESIDÉRIO MURCHO SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA gradiva Título original inglês: The Elements of Moral Philosophy (c) The McGraw-Hill Companies, Inc., 2003 Edição portuguesa: (c) Gradiva - Publicações, L.íta, 2004 Todos os direitos reservados Tradução: F. J. Azevedo Gonçalves Revisão científica: Desidério Murcho Revisão do texto: Soares dos Reis Capa: pintura: Omnia Vanitas, William Dyce (1806-1864) Design gráfico: Armando Lop es Fotocomposição: Gradiva Impressão e acabamento: Tipografia Guerra/Viseu Reservados os direitos para a língua portuguesa por: Gradiva - Publicações, L.'*' Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. -1399-041 Lisboa Telefs. 21 397 40 67/8 - 21 39713 57 - 21 395 34 70 Fax 21 395 34 71 - Email: [email protected] URL: http://www.gradiva.pt 1.a edição: Janeiro de 2004 Depósito legal n.° 203 318/2003 Colecção coordenada por DESIDÉRIO MURCHO E GUILHERME VALENTE com o apoio científico do CENTRO PARA o ENSINO DA FILOSOFIA

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ELEMENTOS DE FILOSOFIA MORAL

James Rachels

Atenção: este livro foi apenas escaneado, não foi corrigido.

TRADUÇÃO

F. J. AZEVEDO GONÇALVES

REVISÃO CIENTÍFICA

DESIDÉRIO MURCHO

SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA

gradiva

Título original inglês: The Elements of Moral Philosophy

(c) The McGraw-Hill Companies, Inc., 2003 Edição portuguesa: (c) Gradiva - Publicações, L.íta,2004

Todos os direitos reservados

Tradução: F. J. Azevedo Gonçalves

Revisão científica: Desidério Murcho

Revisão do texto: Soares dos Reis

Capa: pintura: Omnia Vanitas, William Dyce (1806-1864) Design gráfico: Armando Lopes

Fotocomposição: Gradiva

Impressão e acabamento: Tipografia Guerra/Viseu Reservados os direitos para a língua portuguesapor:

Gradiva - Publicações, L.'*'

Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. -1399-041 Lisboa

Telefs. 21 397 40 67/8 - 21 39713 57 - 21 395 34 70

Fax 21 395 34 71 - Email: [email protected]

URL: http://www.gradiva.pt

1.a edição: Janeiro de 2004 Depósito legal n.° 203 318/2003

Colecção coordenada por DESIDÉRIO MURCHO E GUILHERME VALENTE

com o apoio científico do

CENTRO PARA o ENSINO DA FILOSOFIA

(Sociedade Portuguesa de Filosofia)

gradiva

Editor: Guilherme Valente

índice

Prefácio 9

Sobre a quarta edição (americana) 11

1. O que é a moralidade? 13

1.1 O problema da definição 13

1.2 Primeiro exemplo: a bebé Teresa 14

1.3 Segundo exemplo: Jodie e Mary 19

1.4 Terceiro exemplo: Tracy Latimer 23

1.5 Razão e imparcialidade 27

1.6 A concepção mínima de moralidade 31

2. O desafio do relativismo cultural 33

2.1 Culturas diferentes têm códigos morais diferentes 33

2.2 Relativismo cultural 35

2.3 O argumento das diferenças culturais 37

2.4 As consequências de levar a sério o relativismo cultural 40

2.5 Por que razão há menos diferenças do que parece 43

2.6 Como todas as culturas têm alguns valores em comum. 45

2.7 A avaliação de práticas culturais indesejáveis 47

2.8 O que se pode aprender com o relativismo cultural 51

3 O subjectivismo em ética 55

3.1 A ideia de base do subjectivismo ético 55

3.2 A evolução da teoria 57

3.3 A primeira fase: o subjectivismo simples 58

3.4 A segunda fase: emotivismo 61

3.5 Existirão factos morais? 65

3.6 Haverá provas em ética? 68

3.7 A questão da homossexualidade 71

4. Dependerá a moralidade da religião? 77

4.1 A suposta ligação entre moralidade e religião 77

4.2 A teoria dos mandamentos divinos 80

4.3 A teoria da lei natural 84

4.4 Religião e questões morais particulares 90

5. Egoísmo psicológico 97

5.1 Será o altruísmo possível? 97

5.2 A estratégia de reinterpretação de motivos 99

5.3 Dois argumentos a favor do egoísmo psicológico 103

5.4 Esclarecer algumas confusões 107

5.5 O erro mais grave do egoísmo psicológico 110

6. Egoísmo ético 115

6.1 Teremos o dever de ajudar pessoas que morrem à fome? 115

6.2 Três argumentos a favor do egoísmo ético 119

6.3 Três argumentos contra o egoísmo ético 127

7- A abordagem utilitarista 135

7.1 A revolução na ética 135

7.2 Primeiro exemplo: eutanásia 139

7.3 Segundo exemplo: os animais não-humanos 143

8- O debate sobre o utilitarismo 151

8.1 A versão clássica da teoria 151

8.2 Será a felicidade a única coisa que importa? 153

8.3 As consequências são a única coisa que importa? 155

8.4 Deveremos ter toda a gente igualmente em conta? 160

8.5 A defesa do utilitarismo 162

9. Haverá regras morais absolutas? 171

9.1 Harry Truman e Elizabeth Anscombe 171

9.2 O imperativo categórico 175

9.3 Regras absolutas e o dever de não mentir 178

9.4 Conflitos entre regras 182

9.5 Outro olhar sobre a ideia fundamental de Kant 184

10. Kant e o respeito pelas pessoas 189

10.1 A ideia de dignidade humana 189

10.2 Retribuição e utilidade na teoria da punição 193

10.3 O retributivismo de Kant 196

11. A ideia de contrato social 203

11.1 O argumento de Hobbes 203

11.2 O dilema do prisioneiro 209

11.3 Algumas vantagens da teoria contratualista da moral 214

11.4 O problema da desobediência civil 218

11.5 Dificuldades da teoria 222

12. O feminismo e a ética dos afectos 227

12.1 Pensam os homens e mulheres de maneira diferente sobre a ética? 227

12.2 Implicações para o juízo moral 237

12.3 Implicações para a teoria ética 242

13. A ética das virtudes 245

13.1 A ética das virtudes e a ética da acção correcta 245

13.2 As virtudes 248

13.3 Algumas vantagens da ética das virtudes 261

13.4 O problema da incompletude 263

14. Como seria uma teoria moral satisfatória? 269

14.1 Moralidade sem húbris 269

14.2 Tratar as pessoas como merecem e outros motivos 273

14.3 Utilitarismo de estratégias múltiplas 277

14.4 A comunidade moral 281

14.5 Justiça e equidade 283

14.6 Conclusão 285

Sugestões de leitura 287

Notas sobre fontes 299

índice analítico 307

Prefácio

Sócrates, um dos primeiros e melhores filósofos morais, afirmou que a ética trata de "umassunto de grande importância: saber como devemos viver". Este livro é uma introdução àfilosofia moral, concebida neste sentido lato.

O tema é, naturalmente, demasiado vasto para ser abrangido num pequeno livro, pelo quetem de haver uma maneira de decidir o que incluir e o que deixar de fora. Fui guiado peloseguinte pensamento: Imagine-se alguém que nada sabe a respeito do tema, mas deseja perder uma modesta porção de tempo a aprender. Quais são as primeiras coisas, e as mais importantes, que essa pessoa precisa de aprender? Este livro é a minha resposta a essa pergunta. Não tento abranger todos os temas desta área; nem mesmo tento dizer tudo quanto poderia ser dito sobre os temas tratados. Tento, isso sim, discutir as ideias mais importantes que um principiante deve enfrentar.

Os capítulos foram escritos de modo a poderem ser lidos independentemente uns dos outros - são, com efeito, ensaios díspares sobre tópicos diferentes. Assim, alguém interessado noegoísmo ético pode ir directamente ao sexto capítulo e encontrar aí uma introduçãoindependente a essa teoria. Quando lidos em sequência, no entanto, os capítulos

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contam uma história mais ou menos contínua. O primeiro capítulo apresenta uma "concepção mínima" do que é a moral; os capítulos do meio abrangem as mais importantes teorias gerais da ética (com algumas digressões, quando adequadas); e o capítulo final apresenta a minha própria perspectiva sobre como seria uma teoria moral satisfatória.

O objectivo do livro não é oferecer um relato arrumado e unificado da "verdade" sobre os temas em discussão. Isso seria uma forma pobre de apresentar o tema. A filosofia não é como a física. Na física há um vasto corpo de verdade estabelecida, que nenhum físico competente disputaria e que os principiantes têm de aprender pacientemente a dominar. (Os professores de Física raramente pedem aos alunos para tomarem decisões quanto às leis da termodinâmica.) Há, é claro, desacordos entre os físicos e controvérsias por resolver, mas

estas decorrem geralmente sobre o pano de fundo de um acordo substancial. Na filosofia, pelo contrário, tudo é controverso - ou quase tudo. Filósofos "competentes" discordam até mesmo sobre questões fundamentais. Uma boa introdução não tenta ocultar esse facto algo embaraçoso.

Encontra-se aqui, portanto, uma panorâmica de ideias, teorias e argumentos opostos. As minhas próprias perspectivas influenciam inevitavelmente a apresentação. Não tentei esconder o facto de achar algumas das ideais apresentadas mais apelativas que outras, e é óbvio que um filósofo com uma avaliação diferente poderia apresentar ideias diferentes de outra forma. Mas tentei apresentar as teorias opostas de forma justa, e quando apoiei ou rejeitei uma delas tentei dar alguma razão para a aceitar ou rejeitar. A filosofia, como a própria moralidade, é primeiro que tudo um exercício de racionalidade - as ideias que devem prevalecer são as que tiverem as melhores razões do seu lado. Se este livro for bem sucedido, o leitor ou leitora aprenderá o suficiente para poder começar a avaliar, por si, para que lado pende a balança da razão.

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Sobre a quarta edição (americana)

Os leitores familiarizados com a edição anterior deste livro podem querer saber o que foi alterado. Não há capítulos novos, mas há algumas secções novas; e todos os capítulos foram corrigidos de uma maneira ou outra, pela remoção de coisas menos felizes e pela adição de clarificações. Alguns dos exemplos perderam actualidade, pelo que foram actualizados ou substituídos. No capítulo l, há nova informação sobre o caso Tracy Latimer; há também uma secção nova sobre o caso recente das gémeas siamesas. Em vários outros capítulos acrescentei material ilustrativo. Acrescentei material novo ao capítulo sobre regras morais absolutas. No capítulo 14, há uma secção nova que desenvolve de forma mais completa "como seria uma teoria moral satisfatória".

Howard Pospesel fez muitas sugestões que me ajudaram imenso; é um prazer agradecer-lhe. Um muito obrigado também para Monica Eckman da MacGraw-Hill, uma redactoraadmirável.

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Capítulo 1

O que é a moralidade?

Não estamos a discutir um tema sem importância, mas sim como devemos viver.

SÓCRATES, A República, de Platão (ca. 390 a. C.)

1.1 O problema da definição

A filosofia moral é a tentativa de ganhar uma compreensão sistemática da natureza damoralidade e do que esta requer de nós - ou, nas palavras de Sócrates, de "como devemosviver", e porquê. Seria útil se pudéssemos começar com uma definição simples eincontroversa de moralidade, mas isso é impossível. Há muitas teorias rivais, cada umaexpondo uma concepção diferente do que significa viver moralmente, e qualquer definiçãoque vá além da formulação simples de Sócrates é susceptível de ofender uma ou outradessas teorias.

Isto deve colocar-nos de sobreaviso, mas não temos de ficar paralisados. Neste capítulo voudescrever a "concepção mínima" de moralidade. Como o nome sugere, a concepção mínimaé um núcleo que qualquer teoria moral

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deveria aceitar, pelo menos como ponto de partida. Vamos começar por examinar algumascontrovérsias morais recentes, todas relacionadas com crianças deficientes. Ascaracterísticas da concepção mínima emergirão da nossa consideração destes exemplos.

1.2 Primeiro exemplo: a bebé Teresa

Theresa Ann Campo Pearson, conhecida publicamente como "Bebé Teresa", é uma criançacom anencefalia nascida na Florida em 1992. A anencefalia é uma das mais graves deformidades congénitas. Os bebés anencefálicos são por vezes referidos como "bebés sem cérebro", e isto dá basicamente ideia do problema, mas não é uma imagem inteiramente correcta. Partes importantes do encéfalo - cérebro e cerebelo - estão em falta, bem como o topo do crânio. Estes bebés têm, no entanto, o tronco cerebral e por isso as funções autónomas como a respiração e os batimentos cardíacos são possíveis. Nos EUA, a maior parte dos casos de anencefalia são detectados durante a gravidez e abortados. Dos não abortados, metade nascem mortos. Cerca de trezentos em cada ano nascem vivos e em geral morrem em poucos dias.

A história da bebé Teresa nada teria de notável não fosse o pedido invulgar feito pelos seus pais. Sabendo que a bebé não poderia viver por muito tempo e, mesmo que pudesse sobreviver, nunca iria ter uma vida consciente, os pais da bebé Teresa ofereceram os seus órgãos para transplante. Pensaram que os seus rins, fígado, coração, pulmões e olhos deveriam ir para crianças que pudessem beneficiar deles. Os médicos acharam uma boa ideia. Pelo menos duas mil crianças em cada ano necessitam de transplantes e nunca há órgãos disponíveis suficientes. Mas os órgãos não foram retirados, porque na Florida a lei não permite a remoção de órgãos até o dador estar morto. Quando,

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nove dias depois, a bebé Teresa morreu, era demasiado tarde para as outras crianças - osórgãos não podiam ser transplantados por se terem deteriorado excessivamente.

As histórias dos jornais sobre a bebé Teresa suscitaram uma onda de debates públicos. Teria sido correcto remover os órgãos da criança, causando-lhe dessa forma morte imediata, para ajudar outras crianças? Vários eticistas profissionais - pessoas empregadas por universidades, hospitais, e escolas de direito, cujo trabalho consiste em pensar nestas coisas - foram solicitados pela imprensa para comentar o tema. Surpreendentemente, poucos concordaram com os pais e os médicos. Apelaram, ao invés, para princípios filosóficos consagrados para se oporem à remoção dos órgãos. "Parece simplesmente demasiado horrível usar pessoas como meio para os objectivos de outras pessoas", afirmou um desses peritos. Outro explicou: "É imoral matar para salvar. É imoral matar a pessoa A para salvar a pessoa B." Um terceiro acrescentou: "O que os pais estão realmente a pedir é: matem este bebé moribundo para que os seus órgãos possam ser usados por outra pessoa. Bom, isso é de facto uma proposta horrenda."

Era realmente horrendo? As opiniões dividiram-se. Os eticistas pensavam que sim, enquanto os pais da bebé e os médicos pensavam que não. Mas não estamos apenas interessados no que as pessoas pensam. Queremos conhecer a verdade da questão. Teriam os pais razão ou não, de facto, ao oferecerem os órgãos da bebé para transplante? Se queremos descobrir a verdade temos de perguntar que razões, ou argumentos, podem ser concedidos a cada uma das partes. O que poderá dizer-se para justificar o pedido dos pais ou para justificar a ideia de que o pedido estava errado?

O argumento do benefício. A sugestão dos pais baseava-se na ideia de que, uma vez que Teresa ia morrer em breve, os seus órgãos de nada lhe serviam. As outras crianças, no entanto, poderiam beneficiar deles. Assim, o raciocínio

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parece ter sido o seguinte: Se podemos beneficiar alguém sem fazer mal a outra pessoa, devemos fazê-lo. Transplantar os órgãos beneficia as outras crianças sem prejudicar a bebé Teresa. Logo, devemos transplantar os órgãos.

Será isto correcto? Nem todos os argumentos são sólidos; por isso, não queremos apenas saber que argumentos podem ser aduzidos em defesa de uma dada posição, mas também se esses argumentos são bons. Em geral, um argumento é sólido se as suas premissas são verdadeiras e a conclusão resulta logicamente delas. Neste caso, poderíamos interrogar-nos sobre a proposição segundo a qual Teresa não seria prejudicada. Afinal de contas, ela morreria; isso não é mau para ela? Mas, se reflectirmos, parece claro que nestas circunstâncias trágicas os pais tinham razão - estar viva não lhe servia de nada. Estar vivo só é um benefício quando permite a alguém realizar actividades e ter pensamentos, sentimentos, e relações com outras pessoas- por outras palavras, se permite a alguém t

er uma vida. Na ausência destas condições, a mera existência biológica não tem valor algum. Por isso, mesmo que Teresa pudesse continuar viva por mais alguns dias, isso nada lhe traria de bom. (Podemos imaginar circunstâncias nas quais outras pessoas beneficiariam em mante-la viva, mas isso não é o mesmo que ser ela a beneficiar disso.)

O argumento do benefício fornece, pois, uma poderosa razão para o transplante dos órgãos. Quais são os argumentos do lado contrário?

O argumento de que as pessoas não devem ser usadas como meios. Os eticistas que se opuseram aos transplantes usaram dois argumentos. O primeiro baseava-se na ideia de que é errado usar pessoas como meio para os fins de outras pessoas. Retirar os órgãos de Teresa teria sido usá-la em benefício de outras crianças; portanto, não se deve fazê-lo. Será este um argumento sólido? A ideia de que não devemos "usar" pessoas é obviamente apelativa, mas

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trata-se de uma noção vaga que tem de ser esclarecida. O que significa ao certo? "Usarpessoas" implica geralmente violar a sua autonomia - a capacidade de decidirem por si mesmas como viver as suas próprias vidas, segundo os seus próprios desejos e valores. A autonomia de uma pessoa pode ser violada por meio de manipulação, impostura ou fraude. Por exemplo, posso fingir ser amigo de alguém, quando na verdade estou apenas interessado em conhecer a sua irmã; ou posso mentir a alguém para conseguir um empréstimo; ou posso tentar convencer alguém de que gostará de assistir a um concerto noutra cidade, quando quero apenas que me leve até lá. Em todos estes casos estou a manipular alguém de modo a obter algo para mim próprio. A autonomia é igualmente violada quando as pessoas são forçadas a fazer coisas contra a sua vontade. Isto explica por que razão é errado "usar pessoas"; é errado porque a impostura, a coerção e o engano são errados.

Retirar os órgãos à bebé Teresa não envolveria engano, impostura ou coerção. Será que estaríamos a "usá-la" num outro sentido moralmente significativo? Iríamos, é claro, usar os seus órgãos em benefício de outra pessoa. Mas fazemos isso sempre que realizamos um transplante. Neste caso, no entanto, iríamos fazê-lo sem a sua permissão. Esse facto tornaria o acto errado? Se estivéssemos a fazê-lo "contra" os seus desejos, isso poderia justificar a nossa oposição; seria uma violação da sua autonomia. Mas a bebé Teresa não é um ser autónomo: não tem desejos e é incapaz de tomar quaisquer decisões.

Quando as pessoas são incapazes de tomar decisões, e outros têm que o fazer em seu lug

ar, podem adoptar duas linhas de orientação razoáveis. Primeiro, podemos perguntar-nos: O que serviria melhor os seus interesses? Se aplicarmos este padrão à bebé Teresa, parece não haver objecções a que lhe retiremos os órgãos, pois, como já vimos, seja qual for a nossa decisão, os seus interesses não serão afectados. Ela, de qualquer maneira, morrerá em breve.

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A segunda linha de orientação apela para as preferências da própria pessoa. Poderíamos perguntar: Se pudesse dizer-nos o que quer, que diria ela? Este tipo de pensamento é frequentemente útil quando lidamos com pessoas que sabemos terem preferências mas são incapazes de exprimi-las (por exemplo, um paciente em coma que assinou um testamento). Só que, infelizmente, a bebé Teresa não tem preferências sobre coisa alguma e nunca terá. Não podemos, por isso, obter dela qualquer orientação, nem mesmo na nossa imaginação. A conclusão é que ficamos na contingência de fazer o que consideramos melhor.

O argumento do erro de matar. Os eticistas recorreram igualmente ao princípio de que é errado matar uma pessoa para salvar outra. Retirar os órgãos de Teresa seria matá-la para salvar outros, afirmaram eles; por isso, retirar os órgãos seria errado.

Será este argumento sólido? A proibição de matar é certamente uma das regras morais mais importantes. No entanto, poucas pessoas pensam que matar é sempre errado - a maioria das pessoas pensa que algumas excepções são por vezes justificadas. Á questão é, pois, saber se retirar os órgãos da bebé Teresa deveria ser encarado como uma excepção à regra. Há muitas razões a favor desta ideia, sendo a mais importante que ela morrerá de qualquer maneira, independentemente do que fizermos, ao passo que retirar-lhe os órgãos permitiria pelo menos fazer algum bem a outros bebés. Qualquer pessoa que aceite isto tomará como falsa a primeira premissa do argumento. Em geral é errado matar uma pessoa para salvar outra, mas isso nem sempre é assim.

Mas há outra possibilidade. Talvez a melhor maneira de entender toda a situação fosse encarar desde logo a bebé Teresa como morta. Se isto parece insensato, recorde-se que a "morte cerebral" é hoje amplamente aceite como critério para declarar as pessoas legalmente mortas. Quando

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o critério da morte cerebral foi proposto pela primeira vez, houve resistências baseadas naideia de que alguém pode estar cerebralmente morto mas muita coisa continua a funcionar no seu interior - com assistência mecânica o coração pode continuar a bater, pode-se continuar a respirar, e assim por adiante. Mas a morte cerebral foi por fim acei

te e as pessoas acostumaram-se a encará-la como "verdadeira" morte. Isto foi sensato porque quando o cérebro pára de funcionar deixa de haver esperança de vida consciente.

As anencefalias não satisfazem os requisitos técnicos da morte cerebral tal como é actualmente definida; mas talvez a definição devesse ser reelaborada para as incluir. Afinal de contas, os anencefálicos também não têm perspectivas de vida consciente, pela razão profunda de que não têm cérebro ou cerebelo. Se a definição de morte cerebral fosse reformulada para incluir os anencefálicos, acabaríamos por nos acostumar à ideia de que estes infelizes bebés são nado-mortos e deixaríamos, por isso, de encarar a extracção dos seus órgãos como uma forma de os matar. O argumento baseado na ideia de que matar é errado seria então contestável.

Parece pois, no todo, que o argumento a favor do transplante dos órgãos da bebé Teresa é mais forte do que estes argumentos contra o transplante.

1.3 Segundo exemplo: Jodie e Mary

Em Agosto de 2000, uma jovem de Gozo, uma ilha junto de Malta, descobriu que estava grávida de gémeos siameses. Sabendo que as instalações de saúde de Gozo não estavam equipadas para lidar com as complicações de um tal nascimento, ela e o marido foram para o Hospital St. Mary, em Manchester, Inglaterra, para fazer aí o parto das bebés. As crianças, conhecidas como Mary e Jodie, estavam

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ligadas pelo baixo abdómen. As suas espinhas dorsais encontravam-se fundidas, e partilhavam um coração e um par de pulmões. Jodie, a mais forte, fornecia sangue à sua irmã.

Ninguém sabe quantos pares de gémeos siameses nascem por ano. São raros, embora o nascimento recente de três pares no Oregon tenha suscitado a ideia de que o seu número está a crescer. ("Os Estados Unidos têm um excelente serviço de saúde mas os registos são muito pobres", afirmou um médico.) As causas do fenómeno não são bem conhecidas, mas sabemos com certeza que os gémeos siameses são uma variante de gémeos idênticos. Quando o conjunto de células (o "pré-embrião") se divide, três a oito dias após a fertilização, surgem os gémeos idênticos; quando a divisão se arrasa mais alguns dias, pode ficar incompleta e os gémeos podem ficar ligados.

Alguns pares de gémeos siameses não têm problemas. Chegam à idade adulta e por vezes casam e têm os seus próprios filhos. Mas o panorama apresentava-se algo cinzento para Mary e Jodie. Os médicos afirmaram que, sem intervenção, morreriam dentro de seis meses. A única esperança era uma operação para separá-las. Isto salvaria Jodie, mas Mary morreria de imediato.

Os pais, católicos devotos, não permitiram a operação baseando-se na ideia de que isso anteciparia a morte de Mary. "Pensamos que a natureza deve seguir o seu curso", afirmaram os pais. "Se é a vontade de Deus que as crianças não sobrevivam, assim seja." O hospital, convencido da sua obrigação de fazer os possíveis para salvar pelo menos uma das crianças, solicitou permissão aos tribunais para separar as bebés contra o desejo dos pais. Os tribunais concederam permissão, e a 6 de Novembro a operação foi realizada. Tal como se esperava, Jodie sobreviveu e Mary morreu.

Ao meditar neste caso, devemos separar a questão de quem deveria tomar a decisão da questão de qual deve ser a

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decisão. Podemos pensar, por exemplo, que a decisão devia caber aos pais, caso em que nosoporemos à intromissão dos tribunais. Mas continua em aberto a questão independente de saber qual seria para os pais (ou qualquer outra pessoa) a escolha mais sensata. Vamos concentrar-nos nesta última questão: Nas circunstâncias descritas, seria correcto ou errado separar as gémeas?

O argumento de que devem ser salvas tantas vidas quanto possível. O argumento óbvio a favor da separação das gémeas é que podemos escolher entre salvar um bebé ou deixar ambos morrer. Não é claramente melhor salvar um deles? Este argumento é tão atraente que muitas pessoas concluirão, sem mais, que isto resolve o problema. No auge da controvérsia sobre o caso, quando os jornais estavam cheios de histórias acerca de Jodie e Mary, o Ladies Home Journal encomendou uma sondagem para descobrir o que os americanos pensavam. A sondagem mostrou que 78% aprovava a operação. As pessoas estavam obviamente persuadidas pela ideia de que devemos salvar tantos bebés quanto possível. No entanto, os pais de Jodie e Mary pensavam que há um argumento ainda mais forte do lado contrário.

O argumento da santidade da vida humana. Os pais amavam as duas filhas e pensavam que seria errado sacrificar uma delas para salvar a outra. Naturalmente, não eram os únicos a defender esta perspectiva. A ideia de que toda a vida humana tem valor, independentemente da idade, raça, classe social ou deficiência, está no centro da tradição moral ocidental. É especialmente enfatizada em obras religiosas. Na ética tradicional, a proibição de matar seres humanos inocentes é tida como absoluta. Não importa se o assassinato visa servir um propósito meritório; simplesmente não pode fazer-se. Mary é um ser humano inocente, não podendo por isso ser morta.

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Será este argumento sólido? Por uma razão surpreendente, os juizes que avaliaram o caso em tribunal pensaram que não. Negaram a pertinência do argumento tradicional neste caso. O juiz Robert Walker afirmou que a realização da operação não mataria Mary. Ela seria simplesmente separada da irmã e depois "morreria, não por ser intencionalmente morta, mas porque o seu próprio corpo não pode manter a sua vida". Por outras palavras, a causa da sua morte não seria a operação mas a sua própria debilidade. Os médicos parecem ter favorecido também esta perspectiva. Quando a operação foi finalmente realizada, executaram todos os procedimentos para tentarem manter Mary viva - "concedendo-lhe todas as possibilidades" - mesmo sabendo da inutilidade do esforço.

O argumento do juiz pode parecer um pouco sofístico. Poderíamos pensar, seguramente, que pouco importa dizer que a morte da Mary é causada pela operação ou pela debilidade do seu corpo. De qualquer das maneiras ela vai morrer, e a sua morte acontecerá mais cedo do que se não tivesse sido separada da irmã.

Há, no entanto, uma objecção mais natural ao argumento da santidade da vida que não depende de um argumento tão forçado. Podemos responder que não é sempre errado matar seres humanos inocentes. Em situações raras pode mesmo ser correcto. Em particular se: a) o ser humano inocente não tem futuro por estar condenado a morrer em breve independentemente do que façamos; b) o ser humano inocente não quer continuar a viver, talvez por estar tão-pouco desenvolvido mentalmente que não pode de todo ter desejos; e c) se matar o ser humano inocente permitir salvar a vida de outros, que podem desenvolver-se e ter uma vida boa e plena - nestas circunstâncias, pouco frequentes, pode justificar-se matar um inocente. E claro que muitos moralistas, sobretudo os pensadores religiosos, não se deixarão convencer. No entanto, esta é uma linha de pensamento que muitas pessoas podem achar persuasiva.

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1.4 Terceiro exemplo: Tracy Latimer

Tracy Latimer, uma menina de doze anos vítima de paralisia cerebral, foi morta pelo pai em 1993. Tracy vivia com a família numa quinta de uma pradaria de Saskatchewan, no Canadá. Numa manhã de domingo, enquanto a mulher e os filhos estavam na missa, Robert Latimer pôs Tracy na cabina da sua carrinha de caixa aberta e asfixiou-a com o fumo do esc

ape. Na altura da morte, Tracy pesava menos de dezoito quilos; diz-se que tinha "um nível mental idêntico ao de um bebé de três meses". A senhora Latimer afirmou ter ficado aliviada por encontrar Tracy morta ao chegar a casa, e acrescentou que "não tinha coragem" para o fazer.

O senhor Latimer foi julgado por homicídio, mas o juiz e os jurados não quiseram tratá-lo com demasiada dureza. O júri considerou-o apenas culpado de homicídio de segundo grau e recomendou ao juiz para ignorar a sentença obrigatória de vinte e cinco anos de prisão. O juiz concordou e sentenciou Latimer a um ano de cadeia, seguido de um ano de prisão domiciliária na sua quinta. No entanto, o Supremo Tribunal do Canadá revogou a sentença e ordenou a imposição da sentença obrigatória. Robert Latimer está ainda detido, cumprindo uma pena de vinte e cinco anos.

Questões legais à parte, será que o senhor Latimer fez algo de errado? Este caso envolve muitas das questões que já vimos nos outros casos. Um argumento contra o senhor Latimer é que a vida de Tracy tinha valor moral, não tendo ele por isso o direito de a matar. Em sua defesa pode responder-se que a situação de Tracy era tão catastrófica que ela não tinha quaisquer perspectivas de uma "vida" em qualquer sentido além do puramente biológico. A sua existência estava reduzida a nada mais do que sofrimento sem sentido, pelo que matá-la foi um acto de misericórdia. Considerando estes argumentos, parece que talvez o senhor Latimer tenha agido de forma defensável. Houve, no entanto, outros argumentos avançados pelos seus críticos.

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O argumento contra a discriminação dos deficientes.

Quando Robert Latimer foi sentenciado com tolerância pelo tribunal, muitos deficientes encararam o facto como um insulto. O presidente de Saskatoon Voice of People with Disabilities, que sofre de esclerose múltipla, afirmou: "Ninguém tem o direito de decidir se a minha vida tem um valor inferior a outra. Essa é a grande questão." Tracy foi morta por ser deficiente, afirmou, e isso é inadmissível. As pessoas deficientes deveriam ser tão respeitadas e ter tantos direitos como qualquer outra pessoa.

Que podemos dizer disto? A discriminação contra qualquer grupo de pessoas é, naturalmente, um assunto sério. E inaceitável porque implica tratar algumas pessoas

de forma diferente de outras, quando não há diferenças relevantes entre elas para o justificar. Exemplos correntes envolvem situações como a discriminação no local de trabalho. Suponha-se que se recusa um trabalho a uma pessoa cega simplesmente porque o patrão não gosta da ideia de empregar alguém incapaz de ver. Isto não é diferente de recusar empregar alguém por ser negro ou judeu. Para sublinhar o quanto isto é ofensivo, poderíamos perguntar por que razão essa pessoa é tratada de forma diferente. É menos capaz de fazer o trabalho? É mais estúpida ou menos diligente? Merece menos o emprego? É menos capaz de beneficiar da circunstância de estar empregada? Se não há qualquer boa razão para a excluir, então é simplesmente arbitrário tratá-la desta forma.

Mas há algumas circunstâncias nas quais pode justificar-se tratar os deficientes de forma diferente. Por exemplo, ninguém iria defender seriamente que uma pessoa cega deveria ser empregada como controladora de tráfego aéreo. Uma vez que podemos explicar facilmente por que motivo isto não é desejável, a "discriminação" não é arbitrária e não é uma violação dos direitos da pessoa deficiente.

Devemos pensar na morte de Tracy Latimer como um caso de discriminação de deficientes? O senhor Latimer

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argumentou que a paralisia cerebral de Tracy não era a questão. "As pessoas andam a dizerque isto é uma questão relacionada com deficiência", afirmou, "mas estão enganadas. Isto diz respeito a tortura. Para Tracy, tratava-se de uma questão de mutilação e tortura". Antes da sua morte, Tracy fora submetida a uma importante e delicada intervenção cirúrgica às costas, ancas e pernas, e havia ainda mais cirurgias planeadas. "Tendo em conta a combinação de um tubo para alimentação, varetas nas costas, a perna cortada e bamba e ainda as chagas causadas pela permanência na cama", afirmou o pai, "como podem as pessoas dizer que ela era uma menina feliz"? No julgamento, três dos médicos de Tracy deram o seu testemunho sobre a dificuldade de controlar as suas dores. O senhor Latimer negou, por isso, que ela tenha sido morta por causa da paralisia cerebral; foi morta por causa da dor e por não haver esperança para ela.

O argumento da derrapagem. Isto conduz naturalmente a outro argumento. Quando o Supremo Tribunal do Canadá confirmou a sentença de Robert Latimer, Tracy Walters, directora da Associação Canadense de Centros para Uma Vida Independente, afirmou-se "agradavelmente surpreendida" pela decisão. "Teria sido na verdade uma bola de neve e um abrir de portas a outras pessoas para decidirem quem vive e quem morre", afirmou.

Outros defensores dos deficientes fizeram eco desta ideia. Podemos compreender Robert Latimer, afirmaram alguns, podemos até ser tentados a pensar que Tracy está melhor morta. No entanto, é perigoso pensar desta forma. Se aceitarmos qualquer tipo de morte piedosa, iremos dar a uma "derrapagem" inevitável, e no final toda a vida terá perdido o seu valor. Onde devemos pois traçar a fronteira? Se a vida de Tracy Latimer não merece ser protegida, o que dizer então de outros deficientes? Que dizer dos velhos, doentes e outros membros "inúteis" da sociedade? Neste

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contexto, refere-se frequentemente os nazis, que queriam "purificar a raça", e a implicação é que se não queremos acabar como eles, é melhor não darmos os perigosos primeiros passos.

Tem-se usado "argumento da derrapagem" do mesmo género em relação a todo o tipo de questões. O aborto, a fertilização in vitro (FIV) e, mais recentemente, a clonagem, foram criticados por causa daquilo a que podem conduzir. Uma vez que estes argumentos envolvem especulações sobre o futuro, são manifestamente difíceis de avaliar. Por vezes, é possível verificar, em retrospectiva, que as preocupações eram infundadas. Isto aconteceu com a FIV. Quando, em 1978, nasceu Louise Brown, a primeira "bebé proveta", houve uma série de previsões medonhas sobre o que o futuro poderia reservar para ela, a sua família e a sociedade como um todo. Mas nada de mau aconteceu e a FIV tornou-se um procedimento rotineiro usado para ajudar milhares de casais a ter filhos.

Quando o futuro é desconhecido, pode, no entanto, ser difícil determinar se um argumento deste tipo é sólido. Por outro lado, pessoas razoáveis podem discordar sobre o que poderia acontecer se a morte piedosa fosse aceite em casos como o de Tracy Latimer. Isto dá origem a um tipo de impasse frustrante: os desacordos quanto aos méritos da argumentação podem depender simplesmente das inclinações prévias dos interlocutores - os inclinados a defender o senhor Latimer podem pensar que as previsões são irrealistas, enquanto os predispostos a condená-lo insistem na sensatez das previsões.

Vale a pena notar, no entanto, que este tipo de argumento é atreito a usos abusivos. Se não concordamos com alguma coisa, mas não temos qualquer argumento bom contra ela, podemos sempre fazer uma previsão sobre as suas possíveis consequências; por mais implausível que a previsão seja, ninguém pode provar que esteja errada. Este método pode

ser utilizado para contestar quase tudo. Essa

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é a razão pela qual os argumentos deste tipo devem ser abordados com cuidado.

1.5 Razão e imparcialidade

O que se pode aprender com tudo isto sobre a natureza da moral? Para começar, podemos tomar nota de dois aspectos principais: primeiro, os juízos morais têm de se apoiar em boas razões; segundo, a moral implica a consideração imparcial dos interesses de cada indivíduo.

Raciocínio moral. Os casos da bebé Teresa, Jodie e Mary e Tracy Latimer, bem como muitos outros que serão discutidos neste livro, podem despertar sentimentos fortes. Estes sentimentos são frequentemente sinal de seriedade moral e podem, pois, ser objecto de admiração. Mas podem também ser um obstáculo à descoberta da verdade: quando temos sentimentos fortes relativamente a uma questão, é tentador pressupor que sabemos pura e simplesmente o que a verdade não pode deixar de ser, sem mesmo termos de tomar em consideração os argumentos do lado contrário. Infelizmente, não podemos confiar nos nossos sentimentos, por mais fortes que sejam. Os nossos sentimentos podem ser irracionais: podem não ser mais do que resultados de preconceito, egoísmo ou condicionamento cultural. (Numa dada altura, os sentimentos das pessoas diziam-lhes, por exemplo, que os membros de outras raças eram inferiores e que a escravatura fazia parte do próprio plano divino das coisas.) Além disso, os sentimentos de pessoas diferentes dizem-lhes frequentemente coisas opostas: no caso de Tracy Latimer, o sentimento forte de algumas pessoas é que o seu pai devia ter sido condenado a uma pena longa, enquanto outras têm o sentimento igualmente forte de que ele nunca devia ter sido acusado. Estes sentimentos não podem, no entanto, estar ambos correctos.

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Assim, se queremos descobrir a verdade, temos de tentar deixar que os nossos sentimentos sejam guiados, tanto quanto possível, pelos argumentos que se podem fornecer a favor de cada uma das perspectivas opostas. A moralidade é, antes de mais e acima de tudo, uma questão de aconselhamento racional. Em qualquer circunstância dada, a acção moralmente correcta é aquela a favor da qual existirem melhores razões.

Este não é um aspecto de somenos importância sobre uma pequena gama de perspectivas morais; é um requisito lógico geral que tem de ser aceite por qualquer pessoa,

independentemente do seu posicionamento sobre qualquer questão moral em particular. A ideia fundamental pode enunciar-se de forma simples. Suponha-se que se afirma que alguém devia fazer isto ou aquilo (ou que fazer isto ou aquilo seria errado). Pode-se legitimamente perguntar por que motivo se deve fazê-lo (ou por que razão seria errado fazê-lo), e se não se puder dar qualquer boa razão, pode-se rejeitar o conselho como arbitrário ou infundado.

Neste aspecto, os juízos morais são diferentes das expressões de gosto pessoal. Se alguém afirma "eu gosto de café", não necessita ter uma razão para tal - está meramente a declarar um facto sobre si mesmo, nada mais do que isso. Uma "defesa racional" do facto de gostar ou não de café é algo que não existe, não havendo por isso discussão possível do caso. Desde que uma pessoa esteja a dar conta dos seus gostos de forma precisa, o que diz tem de ser verdade. Além do mais, não há nisso qualquer implicação de que as outras pessoas tenham de ter o mesmo gosto; se todas as outras pessoas do mundo detestarem café, isso não importa. Por outro lado, se alguém afirma que algo é moralmente errado, necessita ter razões para tal, e se as suas razões forem sólidas, as outras pessoas têm de reconhecer a sua força. Pela mesma lógica, se não tiver boas razões para o que diz, está simplesmente a produzir ruídos e não vale a pena dar-lhe atenção.

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Naturalmente, nem todas as razões passíveis de ser apresentadas são boas razões. Há bons emaus argumentos, e muita da perícia do pensamento moral consiste em saber distinguir uns de outros. Mas como podemos reconhecer as diferenças? Como devemos proceder para avaliar argumentos? Os exemplos que analisámos ilustram alguns aspectos pertinentes.

A primeira coisa a fazer é entender com clareza os factos. E frequente isto não ser tão fácil como parece. Uma fonte de problemas relaciona-se com a dificuldade que por vezes existe em estabelecer os "factos" - as questões podem ser tão complexas e difíceis que nem mesmo os especialistas concordam entre si. Outro problema é o preconceito humano. É frequente querer acreditar numa versão dos factos por apoiar os nossos preconceitos. Os que reprovam a acção de Robert Latimer, por exemplo, quererão acreditar nas previsões do argumento da derrapagem; os que o compreendem não vão querer acreditar nessas previsões. É fácil imaginar outros exemplos do mesmo género: pessoas que não querem dar dinheiro para a caridade consideram com frequência que as organizações de caridade são esbanjadoras, mesmo quando não têm grandes provas disso; e as pessoas que não gostam de homossexuais afirmam que a comunidade gay inclui um número desmesurado de pedófilos, apesar das provas em contrário. Mas os factos existem independentemente dos nossos

desejos, e o pensamento moral responsável começa quando tentamos ver as coisas como elas são.

Depois de os factos terem sido estabelecidos tão bem quanto possível, os princípios morais entram em jogo. Nos nossos três exemplos estavam envolvidos um conjunto de princípios: que não devemos "usar" as pessoas; que não devemos matar uma pessoa para salvar outra; que devemos fazer o que beneficie as pessoas afectadas pelas nossas acções; que toda a vidaé sagrada; e que é errado discriminar os deficientes. A maioria dos argumentos morais

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consiste na aplicação de princípios aos factos de casos particulares, e por isso o que importasaber é se os princípios são sólidos e se estão a ser aplicados de forma inteligente.

Seria bom se houvesse uma receita simples para construir bons argumentos e evitar os maus.Infelizmente, não há um método simples. Os argumentos podem falhar de diversas maneiras,como se torna evidente pela diversidade de argumentos sobre os bebés deficientes; edevemos estar sempre atentos à possibilidade de novas complicações e novas formas deerro. Mas isso não é surpreendente. A aplicação mecânica de métodos rotineiros nunca é umsubstituto satisfatório para a inteligência crítica, seja em que área for. O pensamento moralnão é excepção.

O requisito de imparcialidade. Praticamente todas as teorias morais importantes incluem a ideia de imparcialidade. A ideia básica consiste em considerar os interesses de cada indivíduo como igualmente importantes; do ponto de vista moral, não há pessoas privilegiadas. Portanto, cada um de nós tem de reconhecer que o bem-estar dos outros é tão importante como o nosso. Ao mesmo tempo, a exigência de imparcialidade elimina qualquer esquema que trate os membros de determinados grupos como de certa forma inferiores, como os negros, os judeus e outros foram por vezes tratados.

O requisito de imparcialidade está estreitamente ligado à ideia de que os juízos morais têm de ser apoiados em boas razões. Considere-se a posição de um racista branco, por exemplo, que defende ser correcto que os empregos melhores sejam reservados para as pessoas brancas. Ele sente-se bem com uma situação na qual os executivos das principais empresas e os responsáveis do governo, entre outros, são brancos, enquanto os negros ficam restringidos a tarefas sobretudo subalternas; ele apoia ainda as disposições sociais por meio das quais esta situação se perpetua. Podemos agora perguntar pelas razões para isto;

podemos

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perguntar por que motivo se pensa que isto está certo. Haverá alguma coisa nos brancos queos torne mais adequados para os cargos mais bem pagos e mais prestigiados? Serão elesinerentemente mais inteligentes ou mais empreendedores? Será que se importam maisconsigo mesmos e com as suas famílias? Serão capazes de beneficiar mais por terem taiscargos à sua disposição? Em cada um destes casos a resposta parece ser não; e se nãohouver qualquer boa razão para tratar as pessoas de maneira diferente, a discriminação éinaceitavelmente arbitrária.

O requisito de imparcialidade não é, pois, mais do que uma condenação da arbitrariedade notratamento das pessoas. É uma regra que nos proíbe de tratar uma pessoa de forma diferentede outra quando não há uma boa razão para o fazer. Mas se isto explica o que está erradono racismo, explica igualmente por que razão em alguns casos especiais não é racista trataras pessoas de maneira diferente. Suponha-se que um realizador de cinema estava a fazer umfilme sobre a vida de Martin Luther King, Jr. Teria uma razão muito boa para não recrutarTom Cruise para o papel de protagonista. É claro que a escolha deste actor não fariasentido. Por haver uma boa razão para isso, a "discriminação" do realizador não seriaarbitrária, não sendo por isso vulnerável a críticas.

1.6 A concepção mínima de moralidade

A concepção mínima pode agora ser apresentada de forma breve: a moralidade é, pelomenos, o esforço para orientar a nossa conduta pela razão - isto é, para fazer aquilo afavor do qual existem melhores razões - dando simultaneamente a mesma importância aosinteresses de cada indivíduo que será afectado por aquilo que fazemos.

Isto oferece, entre outras coisas, uma imagem do que significa ser um agente moralconsciente. O agente moral

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consciencioso é alguém preocupado imparcialmente com os interesses de quantos sãoafectados por aquilo que ele, ou ela, fazem; alguém que cuidadosamente filtra os factos eexamina as suas implicações; que aceita princípios de conduta somente depois de osexaminar, para ter a certeza de que são sólidos; que está disposto a "dar ouvidos à razão"mesmo quando isso significa ter de rever convicções prévias; alguém que, por fim, estádisposto a agir com base nos resultados da sua deliberação.

É claro que, como seria de esperar, nem todas as teorias éticas aceitam este "mínimo".

Como teremos oportunidade de ver, este retrato do agente moral tem sido posto em causade várias maneiras. No entanto, as teorias que rejeitam a concepção mínima debatem-se comsérias dificuldades. A maioria dos filósofos apercebeu-se disto, e por isso a maior parte dasteorias da moralidade incorpora, de uma forma ou outra, a concepção mínima. Nãodiscordam sobre o mínimo mas sobre como poderemos alargá-lo, ou talvez modificá-lo, demaneira a alcançar uma concepção moral inteiramente satisfatória.

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Capítulo 2

O desafio do relativismo cultural

A moralidade varia em todas as sociedades, e é apenas um termo cómodo para os hábitos que uma sociedadeaprova.

RUTH BENEDICT, Padrões de Cultura (1934)

2.1 Culturas diferentes têm códigos morais diferentes

Dário, um rei da antiga Pérsia, ficou intrigado com a diversidade de culturas que encontrou nas suas viagens. Tinha descoberto, por exemplo, que os calatinos (uma tribo de indianos) tinham o hábito de comer os cadáveres dos pais. Os Gregos, é claro, não faziam isso - cremavam os mortos e encaravam a pira funerária como a forma natural e adequada de dispor dos mortos. Dário pensava que uma maneira sofisticada de entender o mundo tem de incluir uma avaliação deste tipo de diferenças entre culturas. Um dia, para ensinar esta lição, convocou alguns gregos que por acaso estavam na sua corte e perguntou-lhes quanto queriam para comer os cadáveres dos seus pais. Eles ficaram

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chocados, como Dário sabia que ficariam, e responderam que nenhuma quantia os poderia persuadir a fazer tal coisa. Dário chamou então alguns calatinos e, na presença dos gregos, perguntou-lhes quanto queriam para queimar os cadáveres dos seus pais. Os calatinos ficaram horrorizados e disseram a Dário para nem sequer referir uma coisa tão horrível.

Esta história, relatada por Heródoto na sua História, ilustra um tema recorrente na bibliografia das ciências sociais: culturas diferentes têm códigos morais diferentes. O que se pensa ser correcto num grupo pode ser inteiramente odioso para os membros de outro grupo e vice-versa. Devemos comer os corpos dos mortos ou queimá-los? Se fôssemos gregos, uma das respostas pareceria obviamente correcta; mas se fôssemos calatinos

a resposta contrária pareceria igualmente certa.

É fácil dar outros exemplos do mesmo género. Pense-se nos esquimós (entre os quais o grupo mais vasto é o inuíte). São um povo remoto e inacessível. Com uma população de apenas cerca de vinte e cinco mil pessoas, vivem em povoados espalhados sobretudo ao longo da orla da América do Norte e da Gronelândia. Até ao começo do século xx, o mundo exterior pouco sabia a seu respeito. Os exploradores começaram então a trazer consigo histórias estranhas. Os costumes esquimós revelaram-se muito diferentes dos nossos. Os homens tinham com frequência mais de uma mulher, e partilhavam-na com os convidados, concedendo-as para passar a noite em sinal de hospitalidade. Além disso, no seio de uma comunidade um homem dominante podia exigir e obter acesso sexual regular às esposas de outros homens. As mulheres, no entanto, podiam quebrar estes acordos abandonando pura e simplesmente os maridos e ligando-se a novos companheiros - podiam, isto é, desde que os seus antigos maridos decidissem não causar sarilhos. Tudo somado, a prática esquimó era um esquema volátil em quase nada semelhante àquilo a que chamamos casamento.

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Mas não eram apenas os seus casamentos e práticas sexuais que eram diferentes. Os esquimós pareciam igualmente ter menos respeito pela vida humana. O infanticídio, por exemplo, era comum. Knud Rasmussen, um dos mais famosos de entre os primeiros exploradores, relatou o seu encontro com uma mulher que tinha dado à luz vinte crianças mas tinha morto dez delas à nascença. As bebés do sexo feminino, descobriu Rasmussen, eram especialmente susceptíveis de ser aniquiladas, e isto era deixado simplesmente à decisão dos pais, sem que tal acarretasse qualquer estigma social. Também os idosos, quando se tornavam demasiado fracos para ajudar a família, eram deixados ao frio e à neve para morrer. Parecia pois haver, nesta sociedade, muito pouco respeito pela vida.

Para o público em geral estas eram revelações perturbadoras. O nosso próprio modo de vida parece tão natural e correcto que para muitos de nós é difícil conceber outras pessoas a viver de modo tão diverso. E quando ouvimos falar de tais coisas, tendemos imediatamente a categorizar as outras pessoas como "retrógradas" ou "primitivas". Mas para os antropólogos nada havia de particularmente surpreendente nos esquimós. Desde o tempo de Heródoto que os observadores mais perspicazes se acostumaram à ideia de que as concepções de certo e errado diferem de cultura para cultura. Se partimos do princípio de que as nossas ideias éticas serão partilhadas por todos os povos em todos os tempos,

estamos apenas a ser ingénuos.

2.2 Relativismo cultural

Esta observação - "culturas diferentes têm códigos morais diferentes" - pareceu a muitos pensadores ser a chave para compreender a moralidade. A ideia de verdade universal em ética, afirmam, é um mito. Tudo quanto existe são os costumes de sociedades diferentes. Não se pode

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dizer que estes costumes estão "correctos" ou "incorrectos", pois isso implicaria ter um padrão independente de certo e errado pelo qual poderíamos julgá-los. Mas tal padrão não existe; todos os padrões são determinados por uma cultura. O grande pioneiro da sociologia, William Graham Sumner, em 1906, colocou a questão assim:

A maneira "certa" é a maneira que os antepassados utilizavam e nos foi transmitida. A tradição é a sua própria garantia. Não está submetida à verificação pela experiência. A noção do que é certnos hábitos do povo. Não reside além deles, não provém de origem independente, para os pôr à prova. O que estiver nos hábitos populares, seja o que for, está certo. Isto é assim porque são tradicionais, e por isso contêm em si a autoridade dos espíritos ancestrais. Quando abordamos os hábitos populares a nossa análise chega ao fim.

Esta linha de pensamento persuadiu provavelmente mais pessoas a serem cépticas sobre ética que qualquer outra coisa. O relativismo cultural, como tem sido chamado, desafia a nossa crença habitual na objectividade e universalidade da verdade moral. Afirma, com efeito, que não existe verdade universal em ética; existem apenas os vários códigos morais e nada mais. Além disso, o nosso próprio código moral não tem um estatuto especial; é apenas um entre muitos. Como veremos, esta ideia de base é na realidade um conjunto de vários pensamentos diferentes. É importante separar os vários elementos da teoria porque, durante a análise, algumas partes revelam-se correctas enquanto outras parecem estar erradas. Para começar, podemos distinguir as seguintes afirmações, todas elas apresentadas por relativistas culturais:

1. Sociedades diferentes têm códigos morais diferentes;

2. O código moral de uma sociedade determina o que é correcto no seio dessa sociedade, isto é, se o código

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moral de uma sociedade afirma que certa acção é correcta, então essa acção é correcta, pelo menos nessa sociedade;

3. Não há qualquer padrão objectivo que se possa usar para ajuizar um código social como melhor do que outro;

4. O código moral da nossa própria sociedade não tem estatuto especial, é apenas um entre muitos;

5. Não há uma "verdade universal" em ética, isto é, não há verdades morais aceites por todos os povos em todos os tempos;

6. E mera arrogância nossa tentar julgar a conduta de outros povos. Deveríamos adoptar uma atitude de tolerância face às práticas de outras culturas.

Apesar de poder parecer que estas seis proposições fazem naturalmente parte de um todo, são independentes umas das outras, na medida em que algumas podem ser falsas ainda que outras sejam verdadeiras. Nos pontos seguintes vamos tentar identificar o que está correcto no relativismo cultural, mas vamos também denunciar o que está errado.

2.3 O argumento das diferenças culturais

O relativismo cultural é uma teoria sobre a natureza da moralidade. À primeira vista parece bastante plausível. No entanto, como todas as teorias do género, pode ser avaliada mediante análise racional; e quando analisamos o relativismo cultural, descobrimos que não é tão plausível como inicialmente parecia ser.

A primeira coisa que precisamos fazer notar é que no âmago do relativismo cultural está uma certa forma de argumento. A estratégia usada pelos relativistas culturais é

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argumentar a partir de factos sobre as diferenças entre perspectivas culturais a favor de umaconclusão sobre o estatuto da moralidade. Convidam-nos, assim, a aceitar este raciocínio:

1. Os Gregos acreditavam que comer os mortos estava errado, enquanto os Calatinos acreditavam que comer os mortos estava certo;

2. Logo, comer os mortos não é objectivamente certo nem objectivamente errado. É apenas uma questão de opinião que varia de cultura para cultura.

Ou, alternativamente:

1. Os esquimós nada vêem de errado no infanticídio, enquanto os americanos pensam que o infanticídio é imoral;

2. Logo, o infanticídio não é objectivamente certo nem objectivamente errado. É apenas uma questão de opinião, que varia de cultura para cultura.

Estes argumentos são claramente variações de uma ideia fundamental. São ambos casos especiais de um argumento mais geral, que afirma:

1. Culturas diferentes têm códigos morais diferentes;

2. Logo, não há uma "verdade" objectiva na moralidade. Certo e errado são apenas questões de opinião e as opiniões variam de cultura para cultura.

Podemos chamar a isto o argumento das diferenças culturais. Para muitas pessoas é persuasivo. Mas, de um ponto de vista lógico, será sólido?

Não é sólido. O problema é que a conclusão não se segue da premissa - isto é, mesmo que a premissa seja

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verdadeira a conclusão pode continuar a ser falsa. A premissa diz respeito àquilo em que as pessoas acreditam - em algumas sociedades as pessoas acreditam numa coisa; noutras sociedades acreditam noutra. A conclusão, no entanto, diz respeito ao que na verdade se passa. O problema é que este tipo de conclusão não se segue logicamente deste tipo de premissa.

Considere-se de novo o exemplo dos gregos e dos calatinos. Os gregos acreditavam que é errado comer os mortos; os calatinos acreditavam que é correcto. Será que daqui se entende, do simples facto de não estarem de acordo, que não existe verdade objectiva no caso? Não, não se entende; pois poderia acontecer que a prática fosse objectivamente certa (ou errada) e que uma ou outra das posições estivesse simplesmente errada.

Para tornar este aspecto mais claro, considere-se um tema diferente. Em algumas sociedades as pessoas acreditam que a Terra é plana. Noutras sociedades, como a nossa, as pessoas acreditam que a Terra é (aproximadamente) esférica. Segue-se daqui, do mero facto de as pessoas discordarem, que não há "verdade objectiva" em geografia? Claro que não; nunca chegaríamos a tal conclusão porque percebemos que, nas suas crenças sobre o mundo, os membros de algumas sociedades podem simplesmente estar errados. Não há qualquer razão para pensar que se o mundo é redondo, todos têm de saber disso. Da mesma maneira, não há qualquer razão para pensar que se existe uma verdade moral, todos têm de conhecê-la. O erro fundamental no argumento das diferenças culturais é que tenta derivar uma conclusão

substancial sobre um tema partindo do mero facto de as pessoas discordarem a seu respeito.

Trata-se, até agora, de uma simples questão lógica e é importante não a interpretar erradamente. Não estamos a dizer (ainda não, pelo menos) que a conclusão do argumento é falsa. Isso é ainda uma questão em aberto. O objectivo do reparo lógico é apenas fazer notar que a conclusão

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não se segue da premissa. Isto é importante, porque para determinar se a conclusão éverdadeira necessitamos de argumentos para a apoiar. O relativismo cultural propõe este argumento, que infelizmente se revela falacioso. Portanto, não prova nada.

2.4 As consequências de levar a sério o relativismo cultural

Mesmo que o argumento das diferenças culturais seja falso, o relativismo cultural pode ser verdadeiro. Como seria se fosse verdadeiro?

Na passagem citada, William Graham Sumner resume a essência do relativismo cultural. Sumner afirma que não há uma medida de certo e errado, além dos padrões de uma sociedade: "A noção de certo está nos hábitos da população. Não reside além deles, não provém de origem independente, para os pôr à prova. O que estiver nos hábitos populares, seja o que for, está certo." Suponha que tomávamos isto a sério. Quais seriam algumas das consequências?

1. Deixaríamos de poder afirmar que os costumes de outras sociedades são moralmente inferiores aos nossos. Isto, é claro, é um dos principais aspectos sublinhados pelo relativismo cultural. Teríamos de deixar de condenar outras sociedades simplesmente por serem "diferentes". Enquanto nos concentrarmos apenas em certos exemplos, como as práticas funerárias dos gregos e calatinos, isto pode parecer uma atitude sofisticada e esclarecida.

No entanto, seríamos também impedidos de criticar outras práticas menos benignas. Imagine que uma sociedade declarava guerra aos seus vizinhos com o intuito de fazer escravos. Ou suponha que uma sociedade era violentamente anti-semita e os seus líderes se propunham destruir os judeus. O relativismo cultural iria impedir-nos de

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dizer que qualquer destas práticas estava errada. (Nem sequer poderíamos dizer que uma sociedade tolerante em relação aos judeus é melhor que uma sociedade anti-semita, pois

isso implicaria um tipo qualquer de padrão transcultural de comparação.) A incapacidade de condenar estas práticas não parece muito esclarecida; pelo contrário, a escravatura e o anti-semitismo afiguram-se erradas onde quer que ocorram. No entanto, se tomássemos a sério o relativismo cultural teríamos de encarar estas práticas sociais como algo imune à crítica;

2. Poderíamos decidir se as acções são certas ou erradas pela simples consulta dos padrões da nossa sociedade. O relativismo cultural propõe uma maneira simples para determinar o que está certo e o que está errado: tudo o que necessitamos é perguntar se a acção está de acordo com os códigos da nossa sociedade. Suponhamos que em 1975 um residente da África do Sul se perguntava se a política de apartheid do seu país - um sistema rigidamente racista - era moralmente correcta. Tudo o que teria que fazer era perguntar se esta política se conformava com o código moral da sua sociedade. Em caso de resposta afirmativa, não haveria motivos de preocupação, pelo menos do ponto de vista moral.

Esta implicação do relativismo cultural é perturbadora porque poucos de nós pensam que o código moral da nossa sociedade é perfeito - não é difícil pensar em várias maneiras de a aperfeiçoar. No entanto, o relativismo cultural não se limita a impedir-nos de criticar os códigos de outras sociedades; não nos permite igualmente criticar a nossa. Afinal de contas, se certo e errado são relativos à cultura, isto tem de ser verdade tanto relativamente à nossa própria cultura como relativamente às outras;

3. A ideia de progresso moral é posta em dúvida. Pensamos habitualmente que pelo menos algumas das mudanças sociais são melhorias. (Apesar de, naturalmente, outras mudanças poderem piorar as coisas.) Ao longo da maior

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parte da história ocidental o lugar das mulheres na sociedade esteve severamente circunscrita. Não podiam ter bens; não podiam votar; e estavam em geral sob o controlo quase absoluto dos seus maridos. Recentemente, muitas destas coisas mudaram, e a maioria das pessoas pensa que isto é um progresso.

Mas se o relativismo cultural estiver correcto, poderemos legitimamente pensar que é um progresso? Progresso significa substituir uma maneira de fazer as coisas por uma maneira melhor. Mas qual o padrão pelo qual avaliamos estas novas maneiras como melhores? Se as velhas maneiras estavam de acordo com os padrões culturais do seu tempo, então o relativismo cultural diria que é um erro julgá-las pelos padrões de uma época diferente. A sociedade do século xvm era diferente da que temos agora. Afirmar que fizemos prog

ressos implica o juízo de que a sociedade de hoje é melhor, e isso é justamente o tipo de juízo transcultural que, segundo o relativismo cultural, é impossível.

A nossa concepção de reforma social terá igualmente de ser reconsiderada. Reformadores como Martin Luther King, Jr. tentaram mudar as suas sociedades para melhor. Obedecendo aos constrangimentos impostos pelo relativismo cultural há uma maneira de poder fazer isto. Se uma sociedade não está a viver de acordo com os seus ideais, pode considerar-se que o reformador está a agir bem; os ideais da sociedade são os padrões pelos quais julgamos o mérito das suas propostas. Mas ninguém pode contestar os ideais em si, pois esses ideais são por definição correctos. Portanto, segundo o relativismo cultural, a ideia de reforma social só faz sentido desta maneira limitada.

Estas três consequências do relativismo cultural levaram muitos pensadores a rejeitá-lo frontalmente como implausível. Faz realmente sentido, afirmam, condenar certas práticas, como a escravatura, onde quer que ocorram. Faz sentido pensar que a nossa própriasociedade fezalgum progresso cultural, embora deva admitir-se, simultaneamente, que é ainda imperfeita enecessita de reformas. Uma vez que o relativismo cultural supõe, prossegue o argumento,que estes juízos não fazem sentido, não pode estar correcto.

2.5 Por que razão há menos diferenças do que parece

O ímpeto original do relativismo cultural resulta da observação de que as culturas diferem de forma dramática nas suas perspectivas do que é certo e errado. Mas até que ponto diferem realmente? É verdade que há diferenças. No entanto, é fácil sobrevalorizar a dimensão dessas diferenças. Quando examinamos o que parece uma diferença drástica, descobrimos com frequência que as culturas não diferem tanto quanto parece.

Imagine-se uma cultura na qual as pessoas acreditam ser errado comer vacas. Pode até ser uma cultura pobre, na qual não há comida suficiente; mesmo assim, as vacas são intocáveis. Tal sociedade pareceria ter valores muito diferentes dos nossos. Mas será que tem? Ainda não perguntámos a razão pela qual estas pessoas se recusam a comer vacas. Suponha-se que é por acreditarem que depois da morte as almas dos seres humanos habitam os corpos dos animais, especialmente das vacas, podendo uma vaca ser a alma da avó de alguém. Vamos continuar a dizer que os valores deles são diferentes dos nossos? Não; a diferença está noutro lado. A diferença reside nos nossos sistemas de crenças, e não nos nossos valores. Concordamos que não devemos comer a nossa avó; limitamo-nos a discordar sobre se a vaca é (ou poderia ser) a nossa avó.

O que se pretende mostrar é que os costumes de uma sociedade são o produto de muitos factores interligados. Os valores sociais são apenas um deles. Outras questões,

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como as crenças religiosas e factuais dos seus membros, bem como as circunstâncias físicasnas quais têm de viver, são igualmente importantes. Não podemos, portanto, concluir que há um desacordo quanto aos valores, só porque os costumes diferem. Pode, pois, haver menos desacordo quanto aos valores do que parece.

Pensemos mais uma vez nos esquimós, que frequentemente matam crianças perfeitamente normais, especialmente raparigas. Não aprovamos tais coisas; na nossa sociedade um pai que tivesse morto uma criança seria preso. Parece, pois, haver uma grande diferença nos valores das nossas duas culturas. Mas imaginemos que perguntamos a razão pela qual os esquimós fazem isso. A explicação não é eles terem menos afecto pelos seus filhos ou menos respeito pela vida humana. Uma família esquimó protegerá sempre os seus filhos se as condições o permitirem. Mas eles vivem num meio extremamente duro, onde a comida escasseia. Um postulado fundamental do pensamento esquimó é: "A vida é dura e a margem de manobra pequena." Uma família pode querer alimentar os filhos mas não poder fazê-lo.

Como em muitas outras culturas "primitivas", as mães esquimó alimentam os seus filhos durante um período de tempo muito mais longo do que as mães da nossa cultura. A criança é alimentada ao peito da mãe durante quatro anos, por vezes mais. Por isso, mesmo nas melhores épocas, há limites para o número de filhos que uma mãe pode manter. Além disso, os esquimós são um povo nómada - impossibilitados de se dedicarem à agricultura, têm de viajar em busca de comida. As crianças têm de ser transportadas ao colo, e uma mãe só pode levar um bebé na sua parca enquanto viaja ou realiza as tarefas diárias. Os outros membros da família ajudam como podem.

Os bebés do sexo feminino são mais prontamente rejeitados porque, primeiro, nesta sociedade os homens são os principais fornecedores de comida - são eles os caçadores, de acordo com a divisão tradicional do trabalho - e

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torna-se obviamente importante manter um número suficiente de fornecedores de comida.

Mas há igualmente uma segunda razão importante. Uma vez que a taxa de mortalidade dos caçadores é elevada, o número de homens adultos que morrem prematuramente ultrapassa em muito o das mulheres que morrem cedo. Assim, se os bebés masculinos e femininos sobrevivessem em números iguais, a população feminina adulta ultrapassaria em muito a população masculina. Examinando as estatísticas, um autor concluiu que "se não fosse o infanticídio de crianças do sexo feminino [...] haveria, nos grupos de esquimós, aproximadamente uma vez e meia mais mulheres do que homens produtores de comida".

Portanto, entre os esquimós, o infanticídio não é sinal de uma atitude fundamentalmente diferente perante as crianças. É, pelo contrário, um reconhecimento de que por vezes são necessárias medidas drásticas para assegurar a sobrevivência da família. Apesar disso, matar a criança não é a primeira opção. A adopção é comum; os casais sem filhos ficam especialmente felizes por encarregar-se dos "excedentes" dos casais mais férteis. Matar é apenas o último recurso. Sublinho isto para mostrar que os dados em bruto dos antropólogos podem induzir em erro; podem fazer as diferenças entre culturas parecer maiores do que são. Os valores dos esquimós não são de modo algum diferentes dos nossos. Acontece apenas que a vida os obriga a escolhas que nós não temos de fazer.

2.6 Como todas as culturas têm alguns valores em comum

Não deveria surpreender que, apesar das aparências, os esquimós protejam as suas crianças. Como poderia ser de outra maneira? Como poderia sobreviver um grupo que não valorizasse as suas crianças? É fácil de ver que, de

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facto, todos os grupos culturais têm de proteger as suas crianças. Os bebés são indefesos e não podem sobreviver se não forem acarinhados durante anos. Portanto, se um grupo não cuidasse das suas crianças, elas não sobreviveriam e ninguém tomaria o lugar dos membros mais velhos do grupo. Passado algum tempo, o grupo extinguir-se-ia. Isto significa que qualquer grupo cultural que continue a existir tem de cuidar das suas crianças. As crianças que não são acarinhadas têm de ser a excepção e não a regra.

Um raciocínio semelhante mostra que há outros valores que têm de ser mais ou menos universais. Imagine-se o que seria de uma sociedade que não valorizasse a verdade. Quando uma pessoa falasse com outra, não poderia partir-se do princípio de que estaria a dizer a verdade, pois poderia facilmente estar a mentir. Nessa sociedade não haveria qualquer motivo para dar atenção ao que os outros dizem. (Pergunto que horas são e alguém responde "quatro horas". Mas não posso presumir que a pessoa está a dizer a verdade; poderia facilmente ter dito a primeira coisa que lhe tivesse passado pela cabeça.

Não tenho, pois, qualquer razão para dar atenção à sua resposta. De facto, não faz qualquer sentido ter-lhe sequer perguntado.) A comunicação seria então extremamente difícil, se não mesmo impossível. E uma vez que as sociedades complexas não podem existir sem comunicação entre os seus membros, a vida em sociedade tornar-se-ia impossível. Daqui se conclui que em qualquer sociedade complexa tem de haver uma presunção em favor da boa-fé. Pode, naturalmente, haver excepções a esta regra: pode haver situações nas quais se considere permissível mentir. No entanto, estas serão excepções a uma regra que está em vigor na sociedade.

Eis mais um exemplo do mesmo género: Poderia existir uma sociedade na qual não houvesse a proibição do homicídio? Como seria? Suponhamos que as pessoas eram livres de matar outras pessoas, e ninguém pensava haver

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algo de mal nisso. Numa tal "sociedade" ninguém poderia sentir-se seguro. Todos teriam de estar permanentemente em guarda. Aqueles que quisessem sobreviver teriam de evitar outras pessoas tanto quanto possível. Isto acabaria por levar os indivíduos a tentarem tornar-se tão auto-suficientes quanto possível - afinal de contas, a associação com outros seria perigosa. A sociedade a uma escala mais lata ruiria. As pessoas poderiam, naturalmente, unir-se em grupos mais pequenos com outras em que pudessem confiar. Mas repare-se no significado disto: estariam a formar sociedades mais pequenas nas quais seria de facto aceite uma regra contra o homicídio. A proibição do assassínio é, pois, uma característica de todas as sociedades.

Há aqui urna conclusão teórica geral, a saber, há algumas regras morais que todas as sociedades têm em comum, pois essas regras são necessárias para a sociedade poder existir. As regras contra a mentira e o homicídio são dois exemplos disso, pois, de facto, encontramos estas regras instituídas em todas as culturas viáveis. As culturas podem diferir relativamente aos que encaram como excepções legítimas às regras, mas esta discordância existe contra um acordo de fundo nas questões fundamentais. Logo, é um erro sobrestimar as diferenças entre culturas. Nem todas as regras morais podem variar de sociedade para sociedade.

2.7 A avaliação de práticas culturais indesejáveis

Em 1966, uma rapariga de dezassete anos chamada Fauziya Kassindja chegou ao Aeroporto Internacional de Newark e pediu asilo. Tinha fugido do seu país natal, o Togo, pequena nação do oeste africano, para escapar ao que ali as pessoas chamam "excisão". A excisão é uma intervenção desfiguradora por vezes chamada "circuncisão feminina", embora tenha poucas semelhanças com essa prática

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judaica. É mais frequentemente referida, pelo menos nos jornais de países ocidentais, como "mutilação genital feminina".

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a prática está disseminada por vinte e seis países africanos, sendo em cada ano objecto de "excisão" dois milhões de raparigas. Nalguns casos a excisão é parte de um elaborado ritual tribal, realizado em pequenas aldeias tradicionais, e as raparigas anseiam submeter-se a ele porque isso assinala a sua aceitação no mundo adulto. Noutros casos, a prática é realizada por famílias citadinas em jovens que lhe resistem desesperadamente.

Fauziya Kassindja era a mais jovem de cinco filhas de uma família muçulmana devota. O seu pai, proprietário de uma bem sucedida empresa de camionagem, opunha-se à excisão, e tinha a capacidade de se opor à tradição por causa da sua riqueza. As suas primeiras quatro filhas casaram sem ser mutiladas. Mas quando Fauziya tinha dezasseis anos, ele morreu subitamente. Fauziya ficou então sob tutela do avô, que ajustou para ela um casamento e se preparava para a submeter à excisão. Fauziya ficou aterrorizada e a mãe e a irmã mais velha ajudaram-na a fugir. A mãe, tendo ficado sem recursos, teve de pedir desculpas formais e submeter-se à autoridade do patriarca que ofendeu.

Entretanto, na América, Fauziya foi detida durante dois anos enquanto as autoridades decidiam o que fazer. Por fim foi-lhe concedido asilo, mas não sem antes se tornar o centro de uma controvérsia sobre a forma como devemos encarar as práticas culturais de outros povos. Uma série de artigos no New York Times favoreceu a ideia de que a excisão é uma prática bárbara merecedora de condenação. Outros observadores mostraram-se relutantes em ser tão peremptórios - vive e deixa viver, afirmaram; afinal de contas, é provável a nossa cultura parecer igualmente estranha para eles.

Vamos supor que estamos inclinados a afirmar que a excisão é má. Estaríamos nós apenas a impor os padrões da nossa própria cultura? Se o relativismo cultural estiver

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correcto, isso é tudo quanto podemos fazer, pois não há um padrão culturalmente neutro aque possamos apelar. Mas, será isto verdade?

Haverá um padrão culturalmente neutro de certo e errado? Há naturalmente muito que dizer contra a excisão. É dolorosa e tem como resultado a perda permanente do prazer sexual. Os

seus efeitos, a curto prazo, incluem hemorragias, tétano e septicemia. Por vezes, a mulher morre. Os efeitos de longo prazo incluem infecção crónica, cicatrizes que dificultam a marcha e dores contínuas.

Qual é, pois, o motivo pelo qual se tornou uma prática social tão alargada? Não é fácil responder. A excisão não tem benefícios sociais aparentes. Ao contrário do infanticídio entre os esquimós, não é necessária à sobrevivência do grupo. Nem é uma questão religiosa. A excisão é praticada por grupos de várias religiões, entre elas o islamismo e o cristianismo, nenhuma das quais a recomenda.

Apesar disso, aduzem-se em sua defesa uma série de razões. As mulheres incapazes de prazer sexual são supostamente menos propensas à promiscuidade; assim, haverá menos gravidezes indesejadas em mulheres solteiras. Acresce que as esposas, para quem o sexo é apenas um dever, têm menor probabilidade de ser infiéis aos maridos; e uma vez que não irão pensar em sexo, estarão mais atentas às necessidades dos maridos e filhos. Pensa-se, por outro lado, que os maridos apreciam mais o sexo com mulheres que foram objecto de excisão. (A falta de prazer sexual das mulheres é considerada irrelevante.) Os homens não querem mulheres que não foram objecto de excisão por serem impuras e imaturas. E, acima de tudo, é uma prática realizada desde tempos imemoriais, e não podemos alterar os costumes antigos.

Seria fácil, e talvez um pouco arrogante, ridicularizar estes argumentos. Mas podemos fazer notar uma característica importante de toda esta linha de raciocínio: tenta justificar a excisão mostrando que é benéfica - homens,

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mulheres e respectivas famílias são alegadamente beneficiados quando as mulheres são objecto de excisão. Poderíamos, pois, abordar este raciocínio, e a excisão em si, perguntando até que ponto isto é verdade: será a excisão, no todo, benéfica ou prejudicial?

Na verdade, este é um padrão que pode razoavelmente ser usado para pensar sobre qualquer tipo de prática social: podemos perguntar se a prática promove ou é um obstáculo ao bem-estar das pessoas cujas vidas são por ela afectadas. E, como corolário, podemos perguntar se há um conjunto alternativo de práticas sociais com melhores resultados na promoção do seu bem-estar. Se assim for, podemos concluir que a prática em vigor é deficiente.

Mas isto parece justamente o tipo de padrão moral independente que o relativismo cultural afirma não poder existir. E um padrão único que pode ser invocado para ajuizar as práticas

de qualquer cultura, em qualquer época, nomeadamente a nossa. É claro que as pessoas não irão, em geral, encarar este princípio como algo "trazido do exterior" para os julgar, porque, como as regras contra a mentira e o homicídio, o bem-estar dos seus membros é um valor inerente a todas as culturas viáveis.

Por que razão, apesar de tudo isto, pessoas prudentes podem ter relutância, mesmo assim, em criticar outras culturas. Apesar de se sentirem pessoalmente horrorizadas com a excisão, muitas pessoas ponderadas têm relutância em afirmar que está errada, pelo menos por três razões. Primeiro, há um nervosismo compreensível quanto a "interferir nos hábitos culturais das outras pessoas". Os europeus e os seus descendentes culturais da América têm uma história pouco honrosa de destruição de culturas nativas em nome do cristianismo e do iluminismo. Horrorizadas com estes factos, algumas pessoas recusam fazer quaisquer juízos negativos sobre outras culturas, especialmente culturas semelhantes àquelas que foramprejudicadas

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no passado. Devemos notar, no entanto, que há uma diferença entre a) considerar umaprática cultural deficiente; e b) pensar que deveríamos anunciar o facto, dirigir uma campanha, aplicar pressão diplomática ou enviar o exército. No primeiro caso, tentamos apenas ver o mundo com clareza, do ponto de vista moral. O segundo caso é completamente diferente. Por vezes poderá ser correcto "fazer qualquer coisa", mas outras não.

As pessoas sentem também, de forma bastante correcta, que devem ser tolerantes face a outras culturas. A tolerância é, sem dúvida, uma virtude - uma pessoa tolerante está disposta a viver em cooperação pacífica com quem encara as coisas de forma diferente. Mas nada na natureza da tolerância exige que consideremos todas as crenças, todas as religiões e todas as práticas sociais igualmente admiráveis. Pelo contrário, se não considerássemos algumas melhores do que outras, não haveria nada para tolerar.

Por último, as pessoas podem sentir-se relutantes em ajuizar por que não querem mostrar desprezo pela sociedade criticada. Mas, uma vez mais, trata-se de um erro: condenar uma prática em particular não é dizer que uma cultura é no seu todo desprezível ou inferior a qualquer outra cultura, incluindo a nossa. Pode mesmo ter aspectos admiráveis. Na verdade, podemos considerar que isto é verdade no que respeita à maioria das sociedades humanas - são misturas de boas e más práticas. Acontece apenas que a excisão é uma das más.

2.8 O que se pode aprender com o relativismo cultural

Afirmei no início que iríamos identificar tanto o que está certo como o que está errado no relativismo cultural. Mas até agora fiquei-me pelos seus erros: afirmei que repousa sobre um argumento inválido, que as suas

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consequências o tornam à partida implausível, e ainda que a dimensão do desacordo moral é bemmenor do que o relativismo cultural pressupõe. Tudo isto constitui, na verdade, uma completa rejeição da teoria. No entanto, continua a ser uma ideia muito sedutora, e o leitor pode sentir que tudo isto é um pouco injusto. A teoria deve ter alguma coisa a seu favor, pois a não ser assim porque razão se tornaria tão influente? Penso, na verdade, que há alguma coisa correcta no relativismo cultural, e quero agora passar a dizer o que é. Há duas lições que devemos aprender com a teoria, ainda que acabemos por rejeitá-la.

Primeiro, o relativismo cultural alerta-nos, de maneira correcta, para os perigos de pressupor que todas as nossas preferências estão fundadas numa espécie de padrão racional absoluto. Não estão. Muitas das nossas práticas (mas não todas) são particularidades exclusivas da nossa sociedade, e é fácil perder de vista esse facto. Ao recordar-nos isso, a teoria presta um bom serviço.

As práticas funerárias são um caso exemplar. Os calatinos eram, segundo Heródoto, "homens que comiam os seus pais" - uma ideia chocante, pelo menos para nós. Mas comer a carne dos mortos podia ser encarado como um sinal de respeito. Podia ser tomado como um acto simbólico que declara: queremos que o espírito desta pessoa permaneça em nós. Talvez fosse esta a ideia dos calatinos. Numa tal maneira de pensar, enterrar os mortos poderia ser encarado como um acto de rejeição, e queimar o cadáver como um sinal claro de desprezo. Se isto é difícil de imaginar, então talvez precisemos de alargar a nossa imaginação. É claro que podemos sentir uma repugnância visceral perante a ideia de comer carne humana, quaisquer que sejam as circunstâncias. Mas, e depois? Esta repugnância pode ser apenas, como dizem os relativistas, uma questão de hábito na nossa sociedade.

Há muitas outras matérias sobre as quais tendemos a pensar em termos de objectivamente certo ou errado e que

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mais não são do que convenções sociais. Poderíamos fazer uma lista muito longa. Devem as

mulheres cobrir os seios? A exposição pública dos seios é escandalosa na nossa sociedade,enquanto noutras passa despercebida. Objectivamente falando, não é correcta nemincorrecta - não há uma razão objectiva para considerar nenhum dos costumes melhor. Orelativismo cultural começa com a preciosa observação de que muitas das nossas práticassão apenas isto; produtos culturais. Mas depois engana-se, ao inferir do facto de algumaspráticas serem assim que todas têm de ser assim.

A segunda lição relaciona-se com a necessidade de manter o espírito aberto. No processo decrescimento, cada um de nós adquiriu algumas convicções fortes: aprendemos a aceitaralguns tipos de conduta e a rejeitar outros. Podemos, ocasionalmente, ver essas convicçõespostas à prova. Por exemplo, podem ter-nos ensinado que a homossexualidade é imoral, epodemos sentir-nos muito desconfortáveis junto de pessoas gay e encará-las como estranhase "diferentes". Então alguém sugere que isto pode ser um mero preconceito; que ahomossexualidade não tem nada de mal; que os homossexuais são apenas pessoas como asoutras que, sem o terem escolhido, se sentem atraídas por pessoas do mesmo sexo. Mas, portermos convicções tão fortes sobre o assunto, pode ser difícil tomar isto a sério. Mesmodepois de ouvir os argumentos, podemos manter o sentimento inabalável de que oshomossexuais são, de alguma forma, um grupo repugnante.

O relativismo cultural, ao sublinhar que as nossas perspectivas morais podem reflectirpreconceitos da nossa sociedade, fornece um antídoto para este tipo de dogmatismo.Quando conta a história dos Gregos e Calatinos, Heródoto acrescenta:

Se se propusesse, fosse a quem fosse, que escolhesse de entre todas as tradições culturais asmelhores, cada um, depois de reflectir maduramente, escolheria a sua, convencido que está de que atradição em que nasceu é de longe a melhor.

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Perceber isto pode levar-nos a uma maior abertura de espírito. Podemos compreender queos nossos sentimentos não são necessariamente percepções da verdade - podem não sermais do que o resultado do condicionamento cultural. Assim, quando ouvimos alguémsugerir que um aspecto do nosso código social não é realmente o melhor, e damos por nós aresistir a esta sugestão, podemos parar e recordar isto. Podemos ficar então mais abertos àdescoberta da verdade, seja ela qual for.

Podemos, pois, compreender a atracção do relativismo cultural, apesar de a teoria ter sériasinsuficiências. É uma teoria atraente porque se baseia na observação pertinente de quemuitas das práticas e atitudes por nós consideradas tão naturais são na verdade apenasprodutos culturais. Além disso, manter este pensamento firmemente em vista é importante sequisermos evitar a arrogância e manter o espírito aberto. Isto são aspectos importantes, que

não devem ser tomados de forma ligeira. Mas podemos aceitar estes aspectos sem aceitartoda a teoria.

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Capítulo 3

O subjectivismo em ética

Imagine-se qualquer acção reconhecidamente viciosa: homicídio voluntário, por exemplo. Examinemo-lasob todas as perspectivas, e vejamos se conseguimos encontrar esse facto ou realidade que chamamos vício.[...] Nunca conseguimos descobri-lo até voltarmos a reflexão para nós mesmos e descobrirmos umsentimento de reprovação, que nasce em nós, perante essa acção. Eis uma questão de facto; mas é objecto dosentimento e não da razão.

DAVID HUME, Tratado da Natureza Humana (1740)

3.1 A ideia de base do subjectivismo ético

Em 2001 realizou-se uma eleição municipal em Nova Iorque, e quando chegou o momento do desfile anual do Orgulho Gay todos os candidatos democratas e republicanos compareceram para desfilar. "Não há um único candidato que se possa descrever como mau nas questões que nos dizem respeito", afirmou Matt Foreman, director executivo do Empire State Pride Agenda, uma organização de defesa dos direitos dos homossexuais. Acrescentou ainda

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que, "noutras partes do país, as posições aqui defendidas seriam extremamente impopularesnas urnas, se não mesmo fatais". O Partido Republicano Nacional parece concordar; pressionado pelos conservadores religiosos fez da oposição aos direitos dos homossexuais uma parte do seu posicionamento a nível nacional.

O que pensam realmente as pessoas de outras partes do país? O instituto de sondagens Gallup Poli tem perguntado aos americanos desde 1982: "Pensa que a homossexualidade deveria ser considerada um estilo de vida alternativo aceitável?" Nesse ano, 34% respondeu afirmativamente. O número tem vindo, no entanto, a aumentar, e em 2000 uma maioria - 52% - afirmou pensar que a homossexualidade deveria ser considerada aceitável. Isto significa, é claro, que quase outros tantos pensam de forma diferente. As pessoas de ambos os lados têm convicções fortes. O reverendo Jerry Falwell falou em nome de muitos quando

afirmou numa entrevista para a televisão: "A homossexualidade é imoral. Os chamados 'direitos dos homossexuais' não são de modo algum direitos, porque a imoralidade não é correcta." Falwell é baptista. A perspectiva católica é mais elaborada, mas admite também que o sexo gay não é permissível. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, gays e lésbicas "não escolhem a sua condição homossexual" e "devem ser aceites com respeito, compaixão e sensibilidade. Qualquer sinal de discriminação injusta a seu respeito deve ser evitado". Não obstante, "os actos homossexuais são intrinsecamente doentios" e "não podem ser aprovados em circunstância alguma". Portanto, para ter vidas virtuosas, as pessoas homossexuais devem ser castas.

Que atitude devemos tomar? Poderíamos dizer que a homossexualidade é imoral, ou então que nada tem de mal. Mas há uma terceira alternativa. Poderíamos dizer algo como isto:

As pessoas têm opiniões diferentes, mas no que concerne à moral não há "factos", e ninguém está "certo". As pessoas simplesmente sentem de forma diferente, e é tudo.

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Este é o pensamento de base por detrás do subjectivismo ético. O subjectivismo ético é a ideia segundo a qual as nossas opiniões morais se baseiam nos nossos sentimentos e nada mais. Nesta perspectiva, o "objectivamente" certo ou errado é coisa que não existe.

E um facto que algumas pessoas são homossexuais e outras heterossexuais; mas não é um facto que uma coisa seja boa e outra má. Por isso, quando alguém como Falwell afirma que a homossexualidade está errada, não está a afirmar um facto sobre a homossexualidade. Está apenas, isso sim, a afirmar algo sobre os seus sentimentos face a ela.

O subjectivismo ético não é, naturalmente, apenas uma ideia sobre a avaliação da homossexualidade. Aplica-se a todas as questões morais. Para dar um exemplo diferente, é um facto que os nazis exterminaram milhões de pessoas inocentes; mas, segundo o subjectivismo ético, não é um facto que o que fizeram foi mau. Quando dizemos que as suas acções foram más estamos apenas a dizer que temos sentimentos negativos em relação a elas. O mesmo se aplica a qualquer outro juízo moral.

3.2 A evolução da teoria

O desenvolvimento de uma teoria filosófica percorre frequentemente vários estádios. De início a ideia será apresentada de uma forma crua e simples, e muitas pessoas achá-la-ão atraente por uma razão ou outra. Mas a ideia é então submetida a uma análise crítica e descobre-se que tem defeitos. Apresentam-se argumentos contra ela. Nessa altura, algumas pessoas podem ficar tão impressionadas com as objecções que abandonam totalmente a ideia, concluindo que não pode estar correcta. Outras, no entanto, podem continuar a confiar na ideia de base e tentarão, por isso, aprimorá-la, dando-lhe uma formulação melhorada

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que não seja vulnerável às objecções. Durante algum tempo poderá parecer que se salvou ateoria. Mas podem então encontrar-se novos argumentos que lançam dúvidas sobre a nova versão da teoria. Uma vez mais, as novas objecções podem levar algumas pessoas a abandonar a ideia, enquanto outras mantêm a f é e tentam salvar a teoria formulando ainda outra versão nova e "melhorada". O processo de revisão e crítica começará então de novo.

A teoria do subjectivismo ético desenvolveu-se justamente desta maneira. Começou como uma ideia simples - nas palavras de David Hume, a ideia de que a moralidade é uma questão de sentimento e não de facto. Mas à medida que se apresentavam objecções à teoria, e que os seus defensores tentavam responder-lhes, a teoria evoluiu para algo muito mais sofisticado.

3.3 A primeira fase: o subjectivismo simples

A versão mais simples da teoria, que expõe a ideia principal mas não tenta aprimorá-la por aí além, é esta: Quando uma pessoa afirma que algo é moralmente bom ou mau isso significa que ele ou ela aprovam, ou desaprovam, essa coisa, e nada mais que isso. Por outras palavras:

X é moralmente aceitável X está correcto X é bom Deve-se fazer X

Eu (o interlocutor) aprovo X

E pela mesma ordem de ideias:

X é moralmente inaceitável

X está errado

X é mau

Não se deve fazer X

Eu (o interlocutor) desaprovo X

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Podemos chamar subjectivismo simples a esta versão da teoria. Exprime a ideia básica dosubjectivismo ético numa forma elementar e simples, e muitas pessoas acharam-na atraente. No entanto, o subjectivismo simples está aberto a várias objecções, porque tem implicações contrárias ao que sabemos (ou pelo menos contrárias ao que pensamos saber) sobre a natureza da avaliação moral. Eis duas das mais proeminentes objecções.

O subjectivismo simples não dá conta da nossa falibilidade. Ninguém é infalível.

Estamos por vezes errados nas nossas avaliações e quando o descobrimos podemos querer corrigir os nossos juízos. Mas, se o subjectivismo simples estivesse correcto, isso seria impossível, porque o subjectivismo simples pressupõe que somos infalíveis.

Considere-se outra vez Falwell, que considera a homossexualidade imoral. Segundo o subjectivismo simples, Falwell está simplesmente a afirmar que desaprova a homossexualidade. É claro que há a possibilidade de não estar a falar sinceramente - é possível que ele não desaprove realmente a homossexualidade, mas esteja simplesmente a responder às expectativas da sua audiência conservadora. No entanto, se supusermos que está a falar sinceramente - se supusermos que Falwell desaprova mesmo a homossexualidade -, segue-se então que o que ele diz é verdade. Enquanto estiver honestamente a representar os seus sentimentos não pode estar enganado.

Mas isto contradiz o facto elementar de nenhum de nós ser infalível. Por vezes estamos errados. Portanto, o subjectivismo simples não pode estar correcto.

O subjectivismo simples não dá conta do desacordo.

O segundo argumento contra o subjectivismo simples baseia-se na ideia de que esta teoria não pode explicar a existência de desacordo moral. Matt Foreman não pensa que a homossexualidade seja imoral. Perante isto, parece que

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ele e Falwell discordam. Mas repare-se o que o subjectivismo simples sugere quanto a esta situação.

Segundo o subjectivismo simples, quando Foreman afirma que a homossexualidade não é imoral está simplesmente a declarar a sua atitude - está a dizer que ele, Foreman, não desaprova a homossexualidade. Falwell discordaria disso? Não, Falwell estaria de acordo que Foreman não desaprova a homossexualidade. Simultaneamente, quando Falwell afirma que a homossexualidade é imoral, está apenas a dizer que ele, Falwell, a desaprova. Como poderia alguém discordar disso? Assim, segundo o subjectivismo simples, não há desacordo entre eles; cada um deveria admitir a verdade do que o outro está a dizer. No entanto, parece evidente que algo não está certo aqui, pois Falwell e Foreman discordam realmente sobre a questão de saber se a homossexualidade é imoral ou não.

Há uma espécie de frustração eterna implícita no subjectivismo simples: Falwell e Foreman estão em profundo desacordo; no entanto, não podem sequer apresentar as suas posições de forma a debater o tema em conjunto. Foreman pode tentar negar o que Falwell afirma, mas,

segundo o subjectivismo simples, apenas consegue mudar de assunto.

O argumento pode ser resumido assim: Quando uma pessoa afirma "X é moralmente aceitável" e alguém diz "X é moralmente inaceitável", estão em desacordo. No entanto, se o subjectivismo simples estivesse correcto não haveria desacordo entre eles. Logo, o subjectivismo simples não pode estar correcto.

Estes argumentos, e outros semelhantes, mostram que o subjectivismo simples é uma teoria falhada. Não pode ser sustentada, pelo menos de uma forma tão rígida. Perante tais argumentos, alguns pensadores preferiram rejeitar o subjectivismo ético no seu todo. Outros, no entanto, esforçaram-se por produzir uma versão melhorada da teoria que não fosse vulnerável a tais objecções.

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3.4 A segunda fase: emotivismo

A versão melhorada é uma teoria que se tornou conhecida como "emotivismo". Desenvolvida principalmente pelo filósofo americano Charles L. Stevenson (1908-1979), o emotivismo tornou-se uma das teorias éticas mais influentes do século xx. É muito mais subtil e sofisticada do que o subjectivismo simples.

O emotivismo começa com a observação de que a linguagem é usada de várias maneiras. Um dos seus usos principais é a afirmação de factos, ou pelo menos a afirmação do que pensamos serem factos. Podemos, assim, dizer:

"Abraham Lincoln foi presidente dos Estados Unidos." "Tenho um .encontro às quatro horas." "A gasolina custa 0,970 cêntimos por litro." "Shakespeare é o autor de Hamlet."

Em cada caso estamos a dizer algo que é verdadeiro ou falso, e o propósito da elocução é, normalmente, comunicar informação ao ouvinte.

No entanto, há outros propósitos para os quais a linguagem pode ser usada. Suponha-se que digo: "Fecha a porta!" Esta elocução não é verdadeira nem falsa. Não é uma afirmação de tipo algum; é uma ordem, o que é algo diferente. O seu propósito não é transmitir informação; o seu propósito é, antes, levar alguém a fazer qualquer coisa. Não estou a tentar alterar as crenças de alguém; estou a tentar influenciar-lhe a conduta.

Considere-se elocuções como as seguintes, que não são nem afirmações de factos nem ordens:

"Um viva por Abraham Lincoln!"

"Ai de mim!"

"Quem me dera que a gasolina não fosse tão cara!"

"Que se dane o Hamlet."

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Estes são tipos comuns de frases que entendemos com bastante facilidade. Mas nenhuma delas é "verdadeira" ou "falsa". (Não faz sentido dizer : "É verdade que um viva por Abraham Lincoln" ou "É falso que ai de mim"). Estas frases não são, recorde-se, usadas para afirmar factos. São usadas, isso sim, para exprimir as atitudes do interlocutor.

É preciso notar claramente a diferença entre relatar uma atitude e exprimir essa mesma atitude. Se alguém disser "Gosto de Abraham Lincoln", está a comunicar o facto de ter uma atitude positiva em relação a Lincoln. Isto é uma afirmação de facto, que é verdadeira ou falsa. Por outro lado, se alguém gritar: "Um viva por Lincoln!", não está a declarar qualquer tipo de facto, nem mesmo um facto sobre as suas atitudes. Está a exprimir uma atitude, mas não a relatar que a tem.

Com estes reparos em vista, voltemos agora a atenção para a linguagem moral. Segundo o emotivismo, a linguagem moral não é uma linguagem de afirmação de factos; não é normalmente usada para transmitir informação. O seu propósito é diferente. É usada, primeiro, como um meio de influenciar o comportamento das pessoas. Se alguém diz "Não deves fazer isso", essa pessoa está a tentar impedir outra de o fazer. A elocução é, pois, mais parecida a uma ordem do que a uma afirmação de facto; é como se a pessoa tivesse dito: "Não faças isso!" Em segundo lugar, a linguagem moral é usada para exprimir (e não para relatar) a atitude de alguém. Afirmar: "Lincoln era um homem bom", não é o mesmo que afirmar "Eu gosto de Lincoln", mas é como dizer "Um viva por Lincoln!"

A diferença entre o emotivismo e o subjectivismo simples deve agora ser óbvia. O subjectivismo simples interpretava as afirmações éticas como afirmações de facto de um tipo especial - nomeadamente, como relatos da atitude do interlocutor. Segundo o subjectivismo simples, quando Falwell afirma "A homossexualidade é imoral", isto significao mesmo que "Eu (Falwell) desaprovo a homossexualidade"

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- uma afirmação de facto sobre a atitude de Falwell. O emotivismo, por seu lado,nega que esta elocução declare qualquer facto, mesmo um facto sobre o próprio interlocutor. Em vez disso, o emotivismo interpreta a elocução de Falwell como equivalente a algo como "A homossexualidade - que horror!", ou "Não se envolva em actos homossexuais!", ou ainda "Quem me dera não existisse homossexualidade ".

Isto pode parecer uma distinção picuinhas e trivial com a qual não vale a pena preocuparmo-

nos. Mas do ponto de vista teórico trata-se, na realidade, de uma diferença importante. Uma forma de verificar isso é considerar novamente os argumentos contra o subjectivismo simples. Embora esses argumentos fossem muito embaraçosos para o subjectivismo simples não afectam em nada o emotivismo.

1. O primeiro argumento era que se o subjectivismo simples está correcto, então somos todos infalíveis no que respeita aos juízos morais; mas nós não somos, por certo, infalíveis; portanto, o subjectivismo simples não pode estar correcto.

Este argumento só é eficaz porque o subjectivismo simples interpreta os juízos morais como afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas. "Infalível" significa que os juízos de alguém são sempre verdadeiros; e o subjectivismo simples atribui aos juízos morais um significado que será sempre verdadeiro desde que o interlocutor seja sincero. É por isso que, nessa teoria, as pessoas acabam por ser infalíveis. O emotivismo, por outro lado, não interpreta os juízos morais como afirmações verdadeiras ou falsas; e por isso o mesmo argumento não funciona contra ele. Uma vez que as ordens e as expressões de atitudes não são verdadeiras nem falsas as pessoas não podem ser "infalíveis" em relação a elas;

2. O segundo argumento tinha que ver com o desacordo moral. Se o subjectivismo simples estiver correcto, então quando uma pessoa afirma "X é moralmente aceitável" e

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outra pessoa afirma "X é moralmente inaceitável" não estão realmente a discordar. Estão, na verdade, a falar de coisas inteiramente diferentes - cada uma está a fazer uma afirmação sobre a sua atitude, com a qual a outra poderá prontamente concordar. Mas, prossegue o argumento, as pessoas que dizem estas coisas estão realmente em desacordo, e por isso o subjectivismo simples não pode estar correcto.

O emotivismo sublinha que há mais de uma maneira pela qual as pessoas podem discordar. Compare-se estes dois tipos de desacordo:

Primeiro: Uma pessoa pensa que Lee Harvey Oswald agiu sozinho no assassinato de John Kennedy, e outra pensa que houve conspiração. Isto é um desacordo sobre os factos - uma pessoa pensa ser verdadeiro algo que outra pensa ser falso.

Segundo: Uma pessoa defende legislação para controlo de armas de fogo e outra opõe-se a isso. Neste caso não são as crenças das pessoas que estão em conflito mas sim os seus desejos - uma quer que aconteça algo que a outra não quer. (Ambas podem estar de acordo sobre todo

s os factos que rodeiam a controvérsia sobre o controlo de armas de fogo e mesmo assim tomar posições diferentes quanto ao que querem ver realizado.)

No primeiro tipo de desacordo, acreditamos em coisas diferentes, não podendo ambas ser verdadeiras. No segundo, queremos coisas diferentes, não podendo ambas realizar-se. Stevenson chama desacordo de atitude ao último tipo de desacordo, e distingue-o do desacordo sobre atitudes. Duas pessoas podem concordar em todos os juízos que fazem sobre atitudes: concordam que uma se opõe ao controlo de armas, e que a outra é a favor. Mas mesmo assim não estão de acordo nas suas atitudes. Os desacordos morais, afirma Stevenson, têm esta forma: são desacordos de atitude. O subjectivismo simples não podia explicar o

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desacordo moral porque este desaparecia, uma vez que interpretava os juízos morais comoafirmações sobre atitudes.

O subjectivismo simples era uma tentativa de captar a ideia de base do subjectivismo ético e exprimi-la de uma forma aceitável. Meteu-se em sarilhos porque presumiu que os juízos morais são declarações sobre atitudes. O emotivismo era melhor porque se libertou da pressuposição problemática e a substituiu por uma perspectiva mais sofisticada do funcionamento da linguagem moral. Mas, como veremos de seguida, o emotivismo teve também as suas dificuldades. Um dos seus principais problemas era não poder dar conta do lugar da razão na ética.

3.5 Existirão factos morais?

Um juízo moral - ou qualquer outro tipo de juízo de valor- tem de ser apoiado em boas razões. Se alguém disser que uma determinada acção seria errada, pode-se perguntar por que razão seria errada e, se não houver uma resposta satisfatória, pode-se rejeitar esse conselho por ser infundado. Neste aspecto, os juízos morais são diferentes de meras expressões de preferência pessoal. Se alguém diz "eu gosto de café", não necessita ter uma razão para isso; poderá estar a declarar o seu gosto pessoal e nada mais. Mas os juízos morais requerem o apoio de razões, sendo, na ausência dessas razões, meramente arbitrários.

Qualquer teoria adequada da natureza da avaliação moral deveria, portanto, ser capaz de dar conta das relações entre os juízos morais e as razões que os sustentam. Foi justamente neste aspecto que o emotivismo fracassou.

Quais eram os pressupostos do emotivismo quanto a razões? Recorde-se que para o emotivismo um juízo moral é como uma ordem - é basicamente um meio verbal de tentar influenciar as atitudes e conduta de uma pessoa.

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A concepção das razões que naturalmente acompanha esta ideia de base é que as razões são quaisquer considerações que tenham o efeito desejado, que influenciem as atitudes e comportamentos da forma desejada. Mas repare-se no que isto significa. Suponha-se que estou a tentar convencer alguém de que Goldbloom é um homem mau (estou a tentar influenciar a atitude dessa pessoa face a ele) e essa pessoa resiste. Sabendo que essa pessoa é um fanático, digo "O Goldbloom, como sabe, é judeu". Isso muda tudo; a atitude da pessoa muda, e concorda que Goldbloom é um patife. Poderia então parecer que, para o emotivismo, o facto de Goldbloom ser judeu é, pelo menos nalguns contextos, uma razão a favor do juízo de que é um homem mau. De facto, Stevenson defende justamente esta perspectiva. Na sua obra clássica Ethics and Language (1944), afirma: "Qualquer afirmação sobre qualquer facto que qualquer interlocutor considere susceptível de alterar atitudes pode ser aduzida como uma razão a favor ou contra um juízo ético."

Era óbvio que algo tinha corrido mal. Não pode ser verdade que qualquer facto possa contar como razão a favor de qualquer juízo. Primeiro de tudo, o facto tem de ser relevante para o juízo, e a influência psicológica não traz necessariamente consigo relevância. (O facto de alguém ser judeu não é relevante no momento de avaliar a sua maldade, independentemente das associações psicológicas no espírito de quem quer que seja.) Há uma lição pequena e outra grande a retirar daqui. A pequena é que uma determinada teoria, o emotivismo, parece estar errada e, com ela, toda a concepção do subjectivismo ético fica em causa. A grande está relacionada com a importância da razão na ética.

Hume sublinhava que se examinarmos as acções malévolas - "homicídio voluntário, por exemplo" - não encontramos "matéria de facto" que corresponda à maldade. Excluindo as nossas atitudes, o universo não contém tais factos. Esta tomada de consciência tem frequentemente sido entendida como motivo de desespero, porque as pessoas

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presumem que isto deve significar que os valores não têm estatuto "objectivo". Mas porquerazão deveria a observação de Hume surpreender-nos? Os valores não são o tipo de coisas que possam existir como existem as estrelas e os planetas. (Concebido desta maneira, qual seria o aspecto de um "valor"?) Um erro fundamental no qual incorrem muitas pessoas

quando pensam sobre este assunto é partir do princípio de que há apenas duas possibilidades:

1. Há factos morais da mesma maneira que há factos sobre estrelas e planetas; ou

2. Os nossos valores não são mais que a expressão dos nossos sentimentos subjectivos.

Isto é um erro porque descura uma terceira possibilidade crucial. As pessoas não têm apenas sentimentos, têm também razão, e isso faz uma grande diferença. Pode pois ser que

3. As verdades morais são verdades da razão; isto é, um juízo moral é verdadeiro se for sustentado por razões melhores que os juízos alternativos.

Assim, se quisermos entender a natureza da ética, devemos atentar nas razões. Uma verdade em ética é uma conclusão apoiada por razões: a resposta correcta a uma questão moral é simplesmente a resposta que tem do seu lado o peso da razão. Tais verdades são objectivas no sentido em que são verdadeiras independentemente do que possamos querer ou pensar. Não podemos tornar algo bom ou mau pelo simples desejo de que seja assim, porque não podemos simplesmente querer que o peso da razão esteja a favor ou contra algo. Isto explica igualmente a nossa falibilidade: podemos enganar-nos sobre o que é bom ou mau porque podemos estar enganados sobre o que a razão recomenda. A razão diz o que diz, alheia às nossas opiniões e desejos.

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3.6 Haverá provas em ética?

Se o subjectivismo ético não é verdadeiro, porque razão se sentem algumas pessoas atraídas por ele? Uma das razões tem que ver com o facto de a ciência fornecer o nosso paradigma de objectividade, e quando comparamos a ética à ciência, à ética parecem faltar as características que tornam a ciência tão irresistível. Por exemplo, a inexistência de provas em ética parece uma grande deficiência. Podemos provar que o mundo é redondo, que não existe o maior número primo e que os dinossauros viveram antes dos seres humanos. Mas poderemos provar que o aborto é certo ou

errado?

A ideia geral de que os juízos morais não se podem provar é apelativa. Qualquer pessoa que já tenha debatido um tema como o aborto sabe como pode ser frustrante tentar "provar" que o seu ponto de vista é correcto. No entanto, se examinarmos esta ideia mais de perto,

revela-se dúbia.

Suponha-se que examinamos um assunto muito mais simples que o aborto. Um aluno considera injusto um determinado teste aplicado por um professor. Trata-se, claramente, de um juízo moral - a justiça é um valor moral essencial. Este juízo pode ser provado? O estudante poderia referir que o teste abrangia em pormenor assuntos sem importância, ignorando outros que o professor tinha considerado importantes. O teste incluía ainda perguntas sobre alguns assuntos que não tinham sido tratados nem nas aulas teóricas nem nas práticas. Além disso, o teste era tão longo que nem os melhores alunos podiam terminá-lo no tempo permitido (e foi cotado partindo do princípio de que deveria ser feito até ao fim).

Suponha-se que tudo isto é verdade. E suponha-se ainda que o professor, quando lhe são pedidas explicações, não tem argumentos para se defender. Na verdade, o professor, que é muito inexperiente, parece confuso com toda

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a situação e não parece ter uma ideia clara do que estava a fazer. Assim sendo, não terá o aluno provado que o teste foi injusto? Que mais poderíamos desejar a título de prova? É fácil imaginar outros exemplos para estabelecer a mesma coisa:

Jones é um homem mau. Tem o hábito de mentir; manipula as pessoas; engana-as quando pensa poder fazê-lo sem ser descoberto; é cruel para os outros; e assim por diante;

O Dr. Smith ê irresponsável. Baseia os seus diagnósticos em avaliações superficiais; bebe antes de executar cirurgias delicadas; recusa ouvir os conselhos de outros médicos; e assim por diante;

Uma determinada vendedora de automóveis é desonesta. Esconde os defeitos dos automóveis; aproveita-se de pessoas sem recursos pressionando-as a pagar preços exorbitantes por automóveis que sabe terem problemas; coloca anúncios publicitários enganadores em qualquer jornal que aceite publicá-los; e assim por diante.

O processo de apresentar razões pode ainda ser levado um passo mais adiante. Se uma das nossas razões para afirmar que Jones é um homem mau é ele mentir habitualmente, podemos prosseguir e explicar por que motivo mentir é mau. Mentir é mau, primeiro, porque prejudica as pessoas. Se alguém dá uma falsa informação a outra pessoa e essa pessoa confiar nela, as coisas podem correr mal de diversas maneiras. Segundo, mentir é mau por ser uma violação da confiança. Confiar noutra pessoa significa ficarmos vulneráveis e desprotegidos. Quando se confia em alguém, acredita-se simplesmente no que essa pessoa

diz, sem tomar precauções; e quando essa pessoa mente, aproveita-se da nossa confiança. É por isso que ser enganado constitui uma ofensa tão íntima e pessoal. Por fim, a regra exigindo que não se minta é necessária para a sociedade poder existir - se não pudéssemos partir do princípio de que as outras pessoas dirão a verdade, a comunicação

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tornar-se-ia impossível e, se a comunicação fosse impossível, a sociedade seria impossível.

Portanto, podemos apoiar os nossos juízos em boas razões, e podemos oferecer explicações do porquê de essas razões terem importância. Se podemos fazer tudo isto, e ainda mostrar que nada de semelhante pode ser feito pelo lado contrário, que mais "provas" poderia alguém desejar? É absurdo afirmar, perante tudo isto, que os juízos éticos não podem ser mais que "meras opiniões".

No entanto, a impressão de que os juízos morais são "insusceptíveis de prova" é extraordinariamente persistente. Por que motivo acreditam as pessoas nisto? Podem mencionar-se três pontos.

Primeiro, quando se exige provas as pessoas têm muitas vezes em mente um padrão inadequado. Estão a pensar em observações e experiências científicas; e se não há observações e experiências similares em ética, concluem que não há provas. Mas em ética o pensamento racional consiste em fornecer razões, analisar argumentos, estabelecer e justificar princípios, e outras coisas que tais. O facto de o raciocínio ético ser diferente do raciocínio científico não o torna deficiente.

Segundo, quando pensamos em "provar a correcção das nossas opiniões éticas", tendemos a pensar automaticamente nas questões mais difíceis. A questão do aborto, por exemplo, é muito complicada e difícil. Se pensarmos apenas em questões como esta, torna-se fácil acreditar que as "provas" em ética são impossíveis. Mas poderia dizer-se o mesmo das ciências. Há matérias complicadas sobre as quais os físicos não conseguem chegar a acordo; se nos concentrássemos apenas nelas poderíamos concluir que não há provas em física. Mas, é claro, há muitos assuntos mais simples sobre os quais todos os físicos competentes estão de acordo. De modo semelhante, em ética há muitos assuntos mais simples sobre os quais todas as pessoas razoáveis estão de acordo.

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Por fim, é fácil misturar duas coisas que são na realidade muito diferentes:

1. Provar a correcção de uma ideia;

2. Persuadir alguém a aceitar as nossas provas.

Podemos ter um argumento exemplar que alguém recusa aceitar. Mas isso não significa que tenha de estar alguma coisa errada com o argumento ou que a "prova" seja, de alguma forma, inatingível. Pode apenas significar que alguém está a ser teimoso. Quando isto acontece não deveria surpreender-nos. Em ética é de esperar que as pessoas por vezes recusem dar ouvidos à razão. Afinal de contas, a ética pode exigir a realização de coisas que não queremos fazer, sendo, pois, muito previsível que tentemos evitar ouvir as suas exigências.

3.7 A questão da homossexualidade

Para concluir podemos voltar ao debate sobre a homossexualidade. Se atendermos às razões relevantes, o que descobrimos? O facto mais pertinente é que os homossexuais seguem o único tipo de vida que lhes dá oportunidade de ser felizes. O sexo é um impulso particularmente forte - não é difícil perceber porquê - e poucas pessoas são capazes de conceber uma vida feliz sem a satisfação das suas necessidades sexuais. Não devemos, no entanto, centrar-nos apenas no sexo. Mais de um escritor gay afirmou já que a homossexualidade não se centra em saber com quem se tem sexo; mas sim em saber quem se ama. Um vida boa, para gays e lésbicas, assim como para qualquer outra pessoa, pode significar viver com alguém que se ama, com tudo o que isso envolve. Além disso, as pessoas não escolhem a sua orientação sexual; tanto homossexuais como heterossexuais descobrem ser o que são sem

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terem tido qualquer voto na matéria. Assim, afirmar que as pessoas não deveriam exprimir a suahomossexualidade é, com frequência, condená-las a uma vida de infelicidade. Se pudesse demonstrar-se que gays e lésbicas representam um tipo qualquer de ameaça para o resto da sociedade, isso seria um poderoso argumento a favor do lado contrário. Na verdade, as pessoas que partilham a perspectiva de Falwell têm defendido com frequência esta ideia. Mas, quando examinadas de forma desapaixonada, essas ideias têm sempre revelado não ter base factual. Além da natureza das suas relações sexuais, não há qualquer diferença, entre homossexuais e heterossexuais de índole moral ou na participação na sociedade. A ideia de que os homossexuais são de alguma forma perniciosos, revela-se um mito muito semelhante à ideia de que os negros são preguiçosos ou os judeus avarentos.

Õ processo contra a homossexualidade reduz-se, assim, à afirmação habitual de que é "contrária à natureza", ou à afirmação frequentemente avançada por conservadores religiosos de que é uma ameaça dos "valores da família". Quanto ao primeiro argumento, é difícil saber o que faz

er dele, porque a noção de "contrário à natureza" é muito vaga. O que significa exactamente? Existem pelo menos três significados possíveis.

Primeiro, "contrário à natureza" pode ser tomado como uma noção estatística. Neste sentido, uma qualidade humana não é natural se não é partilhada pela maior parte das pessoas. A homossexualidade seria contrária à natureza neste sentido, mas o mesmo poderia dizer-se de ser canhoto. Isto não constitui, claramente, um motivo para a considerar má. Pelo contrário, as qualidades raras são frequentemente boas;

Segundo, o significado de "contrário à natureza" poderia ser ligado à ideia da finalidade de uma coisa. As várias partes do nosso corpo parecem servir finalidades particulares. A finalidade dos olhos é ver, e a finalidade do cora-

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cão é bombear sangue. De modo idêntico, a finalidade dos nossos órgãos genitais é a procriaçãoo sexo serve para fazer meninos. Poderia então defender-se que o sexo homossexual é contrário à natureza porque é uma actividade sexual separada da sua finalidade natural.

Isto parece exprimir o que muitas pessoas pensam quando contestam a homossexualidade por ser contrária à natureza. No entanto, se o sexo homossexual fosse condenado por esta razão, um sem-número de outras práticas sexuais seria igualmente condenado: a masturbação, o sexo oral e até mesmo o sexo praticado por mulheres após a menopausa. Estas práticas seriam tão "contrárias à natureza" (e, presumivelmente, tão más) como o sexo homossexual. Mas não há qualquer razão para aceitar estas conclusões, porque toda esta linha de raciocínio é incorrecta. Baseia-se no pressuposto de que é errado usar partes do nosso corpo para algo mais do que as suas finalidades naturais, e isto é certamente falso. A "finalidade" dos olhos é ver; será, portanto, errado usar os olhos para namoriscar ou fazer um sinal? Da mesma maneira, a "finalidade" dos dedos pode ser agarrar e mexer; será por isso errado estalar os dedos para acompanhar a música? Seria fácil dar outros exemplos. A ideia de que é errado usar as coisas para outras finalidades que não as "naturais" não pode ser defendida convenientemente, logo esta versão do argumento falha;

Terceiro, uma vez que a expressão contrário à natureza soa a algo sinistro, poderia ser entendida simplesmente como termo de avaliação. Talvez signifique algo como "contrário àquilo que uma pessoa deveria ser". Mas se é isso que "contrário à natureza" significa, então, dizer que algo é errado

porque é contrário à natureza seria fazer uma afirmação frívola. Seria como dizer que isto ou aquilo é errado porque é errado. Este tipo de observação não fornece, naturalmente, qualquer razão para condenar coisa alguma.

A ideia de que a homossexualidade é contrária à natureza, e de que tem algo de errado, é irresistível para

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muitas pessoas. No entanto, tudo indica que não é um argumento sólido. Se não pudermosencontrar uma explicação melhor para "contrário à natureza" toda esta linha de raciocínio terá de ser rejeitada.

Mas, e quanto à afirmação, frequentemente defendida por fundamentalistas religiosos, de que a homossexualidade é contrária aos "valores da família"? Falwell, entre outros, afirma com frequência que a sua condenação da homossexualidade faz parte do seu apoio "à família", assim como a sua condenação do divórcio, do aborto, da pornografia e do adultério. Mas como se opõe ao certo a homossexualidade aos valores familiares? A luta pelos direitos dos homossexuais acarreta uma série de propostas destinadas a facilitar a homossexuais e lésbicas, a constituição de famílias - há reivindicações para o reconhecimento social de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, para o direito à adopção de crianças, e outras mais. Os activistas homossexuais acham irónico que os proponentes dos valores da família queiram negar-lhes precisamente esses direitos.

Há outro argumento, especificamente religioso, que tem de ser mencionado, a saber, que a homossexualidade é condenada na Bíblia. No Levítico 18:22 lê-se: "Não podes deitar-te com homem como com mulher; é uma abominação." Alguns comentadores afirmaram que, ao contrário das aparências, a Bíblia não é assim tão severa para a homossexualidade; e explicam como cada passagem relevante (ao que parece existem nove) deve ser entendida. Mas suponhamos que a Bíblia ensina realmente que a homossexualidade é uma abominação. O que podemos inferir daí? Os livros sagrados ocupam, naturalmente, um lugar venerado na vida religiosa, mas há dois problemas em confiar no texto literal para orientação. Um dos problemas é prático e o outro é teórico.

O problema prático é que os textos sagrados, especialmente os mais antigos, dão-nos muito mais do que pedimos. Poucas pessoas terão realmente lido o Levítico, mas,

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os que o fizeram, verificaram que além de proibir a homossexualidade, fornece instruçõespormenorizadas para tratar a lepra, requisitos detalhados sobre sacrifícios pelo fogo e

procedimentos complexos para lidar com mulheres menstruadas. Há um númerosurpreendente de regras sobre as filhas de sacerdotes, inclusivamente a anotação de que se afilha de um sacerdote "se prostituir" deverá ser queimada viva (21:9). O Levítico proíbe aingestão de gorduras (7:23), proíbe uma mulher de ir à missa até 42 dias depois de dar à luz(12:4-5) e proíbe ainda ver o nosso tio despido. Esta última circunstância é, por acaso,igualmente chamada uma abominação (18:14, 26). Diz também que a barba deve ter umaforma quadrada (19:27) e que devemos comprar escravos em Estados vizinhos (25:44). Hámuito mais, mas isto basta para ilustrar a ideia.

O problema é que não podemos concluir que a homossexualidade é uma abominaçãosimplesmente porque isso é dito no Levítico, a menos que estejamos igualmente dispostos aconcluir que as outras instruções são exigências morais; alguém que tentasse viver segundotodas estas regras no século xxi ficaria maluco. Poderíamos, é claro, conceder que as regrassobre a menstruação, e as outras, eram características de uma cultura antiga, e não sãoobrigatórias para nós hoje em dia. Isso seria sensato. Mas se dissermos isso, a porta ficaaberta para dizer o mesmo sobre as regras contra a homossexualidade.

Seja como for, nada pode ser moralmente certo ou errado apenas porque uma autoridadeassim o afirma. Se os preceitos num texto sagrado não são arbitrários, tem de haver umarazão que os explique - devemos poder perguntar por que razão a Bíblia condena ahomossexualidade e ter uma resposta. Essa resposta daria então a verdadeira explicação domotivo pelo qual é errada. Este é o problema "teórico" de que falei: na lógica dopensamento moral, a referência ao texto é abandonada e a razão por detrás da afirmação (sehouver alguma) toma o seu lugar.

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Mas o que está em causa não é a homossexualidade. O que está em causa é a natureza dopensamento moral. O pensamento e a conduta morais consistem em pesar razões e serguiado por elas. Mas ser guiado pela razão é muito diferente de seguir os sentimentos.Quando sentimos algo intensamente, podemos ser tentados a ignorar a razão e seguir ossentimentos. Mas ao fazer isso, estaremos a fazer uma escolha completamente fora doâmbito do pensamento moral. É por isso que, ao centrar-se em atitudes e sentimentos, osubjectivismo ético parece seguir na direcção errada.

76xxxCapítulo 4

Dependerá a moralidade da religião

O bem consiste em fazer sempre o que Deus quer em qualquer momento.

EMJL BRUNNER, The Divine Imperatme (1947)

Eu respeito as divindades. Mas não me baseio nelas.

MUSASHI MIYAMOTO, no Templo Ichijoji

(CA. 1608)

4.1 A suposta ligação entre moralidade e religião

Em 1984 o governador Mário Cuomo, de Nova Iorque, anunciou que iria nomear um painelespecial para o aconselhar em questões éticas. O governador sublinhou que, "gostemos ounão, estamos cada vez mais envolvidos em questões de vida ou de morte". Como exemplos,mencionou o aborto, o problema das crianças deficientes, o direito à morte e a reproduçãoassistida. O propósito do painel seria fornecer ao governador "assistência especializada"

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para pensar sobre as dimensões morais destas e doutras matérias.

Mas quem, exactamente, deveria ocupar um lugar num tal painel? A resposta diz-nos muitosobre quem, nos EUA, é considerado a voz da moralidade. A resposta é: representantes dareligião organizada. Segundo o New York Times, o "Mr. Cuomo afirmou, durante uma visitaao St. Francis College, em Brooklyn, que tinha convidado católicos romanos, protestantes elíderes judaicos para integrar o grupo".

Poucas pessoas, pelo menos nos Estados Unidos, ficariam surpreendidas. Entre asdemocracias ocidentais, os EUA são um país invulgarmente religioso. Nove em dezamericanos afirmam acreditar num Deus pessoal; na Dinamarca e Suécia os números sãoapenas de um em cinco. Não é invulgar os padres e sacerdotes serem tratados como peritosem moralidade. A maioria dos hospitais, por exemplo, tem comités de ética, e estes comitésincluem normalmente três tipos de membros: profissionais de saúde para aconselhar sobrematérias técnicas, advogados para tratar dos problemas legais e representantes religiosospara lidar com as questões morais. Quando os jornais querem comentários sobre asdimensões éticas de um caso, dirigem-se ao clero, e o clero tem todo o prazer em dar umaresposta. Presume-se que padres e sacerdotes são conselheiros sábios que darão conselhosmorais sensatos quando for necessário.

Porque motivo são os clérigos olhados desta forma? A razão não é terem provado sermelhores ou mais sábios que as outras pessoas - enquanto grupo, não parecem ser nemmelhores nem piores do que as outras pessoas. Há uma razão mais profunda para seremencarados como se tivessem um conhecimento moral especial. No pensamento popular

, amoralidade e a religião são inseparáveis: as pessoas pensam habitualmente que a moralidadesó pode ser compreendida no contexto da religião. Por isso, uma

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DEPENDERÁ A MORALIDADE DA RELIGIÃO'

vez que os sacerdotes são porta-vozes da religião, presume-se que têm de ser também porta-vozes da moral.

Não é difícil ver por que motivo as pessoas pensam assim. Quando visto de uma perspectiva não-religiosa, o universo parece um lugar frio e sem sentido, destituído de valor ou objectivo. No seu ensaio "A Free Man's Worship", escrito em 1902, Bertrand Russell exprimiu o que chamou a visão "científica" do mundo:

Que o Homem é o produto de causas desconhecedoras do fim que estavam a atingir; que a sua origem, crescimento, esperanças e medos, os seus amores e crenças, são o mero resultado da disposição acidental de átomos; que nenhum fogo, nenhum heroísmo, nenhuma intensidade de pensamento ou sentimento podem preservar uma vida individual para lá da sepultura; que todos os esforços de todas as idades, toda a devoção, toda a inspiração, todo o brilho solar do génio humano, estão condenados à extinção na vasta morte do sistema solar, e que todo o templo das conquistas humanas terá inevitavelmente de ser enterrado sob os destroços de um universo em ruínas - todas estas coisas, se não são indisputáveis, estão, ainda assim, tão próximas da certeza, que nenhuma filosofia que as rejeite pode esperar perdurar. Somente apoiada nestas verdades, só nas sólidas fundações do desespero inflexível, pode a habitação da alma ser doravante construída de forma segura.

De uma perspectiva religiosa, no entanto, as coisas têm uma aparência muito diferente. O judaísmo e o cristianismo ensinam que o mundo foi criado por um Deus de amor e todo-poderoso para nos conceder uma morada. Por outro lado, fomos criados à sua imagem, para ser seus filhos. O mundo não é, assim, destituído de sentido e propósito. É, isso sim, o palco no qual os planos e objectivos de Deus são concretizados. O que poderia, pois, ser mais natural do que pensar que a "moralidade" é uma parte da perspectiva religiosa do mundo, enquanto o mundo do ateu não tem qualquer lugar para os valores?

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4.2 A teoria dos mandamentos divinos

Nas principais tradições teístas, incluindo o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, Deus é concebido como um legislador que estabeleceu regras para nós obedecermos. Ele não nos obriga a obedecer-lhes. Fomos criados como seres livres, podendo por isso escolher aceitar ou rejeitar os seus mandamentos. Mas se quisermos viver como devemos viver, temos de seguir as leis divinas. Esta concepção foi elaborada por alguns teólogos e transformada numa teoria sobre a natureza do bem e do mal conhecida como teoria dos mandamentos divinos. Esta teoria afirma, essencialmente, que "moralmente certo" significa "ordenado por Deus" e "moralmente errado" significa "proibido por Deus".

Esta teoria tem várias características atraentes. Soluciona de imediato o velho problema sobre a objectividade da ética. A ética deixa de ser uma questão de sentimento pessoal ou uso social. Saber se algo é certo ou errado torna-se perfeitamente objectivo: é correcto se Deus o ordena, e errado se deus o proíbe. Além disso, a teoria dos mandamentos divinos sugere uma resposta para a questão perene de saber por que razão vale a pena preocuparmo-nos com a moralidade. Porque não esquecer a "ética" e preocuparmo-nos apenas connosco mesmos? Se a imoralidade é a violação dos mandamentos de Deus, há uma resposta fácil para isso: no dia do juízo final teremos de prestar contas.

A teoria enfrenta, no entanto, problemas sérios. Naturalmente, os ateus não a aceitam, porque não acreditam na existência de Deus. Mas mesmo para os crentes há dificuldades. O problema principal foi primeiro detectado por Platão, o filósofo grego que viveu 400 anos antes do nascimento de Jesus.

Os escritos de Platão tinham a forma de diálogos, normalmente entre Sócrates e um ou mais interlocutores. Num desses diálogos, o Eutifron, há uma discussão sobre se "correcto" poderá ser definido como "aquilo que os deuses

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ordenam". Sócrates mostra-se céptico e pergunta: "Um comportamento é correcto porqueos deuses o ordenam, ou os deuses ordenam-no porque é correcto?" Esta é uma das perguntas mais famosas da história da filosofia. O filósofo britânico Antony Flew sugere que "um bom teste da aptidão de uma pessoa para a filosofia é averiguar se consegue compreender a sua força e significado".

O seu significado é que se aceitarmos a concepção teológica de correcto e errado, somos apanhados num dilema. A pergunta de Sócrates exige que clarifiquemos o que queremos

dizer. Há duas coisas que podemos querer dizer, e ambas desembocam em problemas.

1. Primeiro, poderíamos querer dizer que a conduta correcta é correcta porque Deus a ordena. Por exemplo, segundo o Livro do Êxodo 20:16, Deus ordena que digamos a verdade. Aceitando esta opção, a razão pela qual devemos dizer a verdade é simplesmente Deus tê-lo ordenado. Para lá do mandamento divino, dizer a verdade não é bom nem mau. É a ordem de Deus que torna a veridicidade correcta.

Mas isto dá origem a problemas, pois retrata as ordens divinas como arbitrárias. Isso significa que Deus poderia com a mesma facilidade ter-nos dado mandamentos diferentes. Poderia ter-nos ordenado para sermos mentirosos, e nesse caso mentir, em vez de dizer a verdade, seria correcto. (Poderíamos ser tentados a responder: "Mas Deus nunca nos mandaria mentir." Mas, porque não? Se ele apoiasse de facto a mentira, Deus não estaria a ordenar-nos a realização do mal, pois os seus mandamentos tornariam a mentira correcta.) Recordemos que, segundo esta perspectiva, a honestidade não era correcta antes de Deus a ordenar. Portanto, ele poderia não ter mais razões para a ordenar do que para ordenar o seu contrário; por isso, do ponto de vista moral, o seu mandamento é arbitrário.

Outro problema é que, nesta perspectiva, a doutrina da bondade de Deus perde o sentido. É importante para os crentes Deus não ser apenas todo-poderoso e omnisciente,

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mas também bom; mas, se aceitarmos a ideia de que bom e mau se definem por referência àvontade de Deus, esta noção perde o sentido. O que poderia querer dizer a afirmação de que os mandamentos de Deus são bons? Se "X é bom" significa "X é ordenado por Deus", então, "os mandamentos de Deus são bons" significaria apenas "os mandamentos de Deus são ordenados por Deus", um truísmo vazio. Em 1686, Leibniz observou no seu Discurso de Metafísica:

Assim, ao afirmar-se que as coisas não são boas por regra alguma de bondade, mas unicamente pela vontade de Deus, destrói-se, parece-me, sem se dar conta, todo o amor de Deus e toda a sua glória. Pois porquê louvá-lo pelo que fez, se seria igualmente de louvar se tivesse feito precisamente o contrário?

Assim, se escolhermos a primeira das duas opções de Sócrates, ficamos aparentemente com consequências que até as pessoas mais religiosas considerariam inaceitáveis.

2. Há uma maneira de evitar estas consequências perturbadoras. Podemos seguir a segu

nda das opções de Sócrates. Não precisamos afirmar que a conduta correcta o é por ser ordenada por Deus. Podemos afirmar, ao invés, que Deus nos ordena que façamos certas coisas porque são correctas. Deus, que é infinitamente sábio, apercebe-se de que é preferível a veridicidade ao logro, e por isso ordena-nos que sejamos verazes; vê que matar é errado, e por isso ordena que não matemos; e assim por diante para todas as regras morais.

Se aceitarmos esta opção, evitamos as consequências incómodas que arruinaram a primeira alternativa. Os mandamentos de Deus não são arbitrários; são o resultado do seu sábio discernimento do que é melhor. A doutrina da bondade de Deus fica preservada: afirmar que os seus mandamentos são bons significa que ele ordena apenas o que, em perfeita sabedoria, verifica ser o melhor.

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Infelizmente, esta segunda opção conduz, no entanto, a um problema diferente, igualmente perturbador. Ao seguir esta opção, abandonámos a concepção teológica de correcto e errado - quando dizemos que Deus ordena que sejamos verazes porque a veridicidade é correcta, estamos a reconhecer um padrão de bem e mal moral que é independente da vontade de Deus. A rectidão existe prévia e independentemente dos mandamentos de Deus, e é a razão mesma dos mandamentos. Assim, se queremos saber por que devemos ser verazes, a resposta "Porque Deus no-lo ordena" não é esclarecedora, pois podemos ainda perguntar "Mas porque razão Deus o ordena?" e a resposta a essa questão fornecerá a razão pela qual a veridicidade é uma coisa boa.

Tudo isto pode ser resumido no argumento seguinte:

1. Suponhamos que Deus ordena a realização do bem moral. Então ou a) as acções correctas são correctas porque ele as ordena ou b) ele ordena-as porque são correctas;

2. Se seguirmos a opção a, os mandamentos de Deus são, do ponto de vista moral, arbitrários; além disso, a doutrina da bondade de Deus perde todo o sentido;

3. Se seguirmos a opção b, teremos então reconhecido um padrão de bem e mal moral independente da vontade de Deus. Teremos, com efeito, abandonado a concepção teológica de bem e mal moral;

4. Logo, temos de encarar os mandamentos de Deus como arbitrários e abandonar a doutrina da bondade de Deus, ou admitir que há um padrão de bem e mal moral independente da sua vontade e abandonar a concepção teológica de bem e mal moral;

5. Do ponto de vista religioso, é inaceitável encarar os mandamentos de Deus como arbitrários ou abandonar a doutrina da bondade de Deus;

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6. Logo, mesmo do ponto de vista religioso, tem de se aceitar um padrão de bem e malmoral independente da vontade de Deus.

Muitas pessoas religiosas pensam que têm de aceitar uma concepção teológica de bem e malmoral porque seria ímpio não o fazer. Sentem, de alguma forma, que, se acreditam em Deus, devem afirmar que o bem e o mal moral se definem relativamente à sua vontade. Mas este argumento sugere outra coisa: sugere que, pelo contrário, a própria teoria dos mandamentos divinos conduz a resultados ímpios, pelo que uma pessoa devota não a deveria aceitar. De facto, alguns dos maiores teólogos, como São Tomás de Aquino (1225-1274), rejeitaram a teoria justamente por esta razão. Pensadores como S. Tomás ligam a moralidade e a religião de maneira diferente.

4.3 A teoria da lei natural

Na história do pensamento cristão, a teoria ética dominante não é a teoria dos mandamentos divinos. Essa honra cabe à teoria da lei natural. Esta teoria tem três partes principais.

1. A teoria da lei natural apoia-se numa certa concepção do mundo. Nesta concepção, o mundo é uma ordem racional com valores e fins inerentes à sua própria natureza. Esta concepção teve origem nos Gregos, cujo modo de entender o mundo dominou o pensamento Ocidental durante mais de 1700 anos. A característica central desta concepção era a ideia de que tudo na natureza tem uma finalidade.

Aristóteles incorporou esta ideia no seu sistema de pensamento por volta do ano 350 a. C. quando afirmou que, para compreender o que quer que seja, se devem fazer quatro perguntas: O que é? De que é feito? Como chegouà existência? E para que serve? (As respostas poderiam ser: Isto é uma faca, é feita de metal,foi fabricada por um artesão e é usada para cortar.) Aristóteles pressupôs que a última pergunta - para que serve? - podia ser sensatamente colocada a propósito do que quer que fosse. "A natureza", afirmou, "pertence à classe de causas que agem para um fim".

Parece óbvio que artefactos como facas têm finalidades porque os artesãos têm em mente uma finalidade quando os fazem. Mas o que dizer dos objectos naturais que não foram fabricados? Aristóteles pensava que também eles têm finalidades. Um dos seus exemplos era que temos dentes de maneira a podermos mastigar. Exemplos biológicos como este são bastante persuasivos; cada parte dos nossos corpos parece, intuitivamente, ter uma finalidade especial - os olhos são para ver, o coração para bombear o sangue, e assim por diante. Mas a asserção de Aristóteles não dizia apenas respeito aos seres orgânicos. Em sua

opinião tudo tem uma finalidade. Aristóteles pensava, para dar um tipo diferente de exemplo, que a chuva cai para as plantas poderem crescer. Embora possa parecer estranho para um leitor moderno, Aristóteles dizia isto muito a sério. Considerou outras alternativas, como por exemplo a chuva cair "por necessidade" e isso ajudar as plantas apenas por "coincidência", e rejeitou-as.

O mundo é, portanto, um sistema ordenado e racional, ocupando cada coisa o seu lugar próprio e servindo a sua finalidade especial. Há uma hierarquia clara: a chuva existe em função das plantas, as plantas existem em função dos animais e os animais existem - é claro - em função das pessoas, cujo bem-estar é o objectivo de toda esta organização.

Temos de pensar, em primeiro lugar, que as plantas existem para benefício dos animais, segundo, que todos os outros animais existem para benefício do Homem, os animais

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domesticos pelo uso que deles pode fazer bem como pela comida que fornecem; e quanto aos animaisselvagens, na sua maioria, embora não na totalidade, podem ser usados para alimentação ou ser úteis de outras formas; pode-se fabricar roupas e instrumentos a partir deles. Se, pois, estamos certos ao pensar que a Natureza nada faz sem um fim em vista, sem um objectivo, tem de ser verdade que a Natureza fez todas as coisas especificamente para benefício do Homem.

Isto parece extraordinariamente antropocêntrico. Aristóteles pode ser perdoado, no entanto, se tivermos em consideração que, virtualmente, todos os pensadores importantes da nossa história tiveram em mente ideias idênticas. Os seres humanos são uma espécie notavelmente vaidosa.

Os pensadores cristãos posteriores acharam esta visão do mundo perfeitamente conveniente. Só faltava uma coisa: Deus era necessário para completar o quadro. (Aristóteles tinha negado que Deus fosse parte necessária do quadro. Para ele, a visão do mundo que delineámos não era religiosa; era simplesmente uma descrição de como as coisas são.) Os pensadores cristãos disseram, pois, que a chuva cai para ajudar as plantas porque isso é o que o Criador quis, e os animais são para uso humano porque foi para isso que Deus os criou. Os valores e as finalidades eram, pois, concebidos como parte fundamental da natureza das coisas, porque se pensava que o mundo tinha sido criado de acordo com um plano divino.

2. Um corolário desta forma de pensar é que "as leis da natureza" não se limitam a descrever o modo como as coisas são, especificam ainda como as coisas devem ser. As coisas são como devem ser quando servem as suas finalidades naturais. Quando não o fazem, ou não podem fazê-lo, é porque as coisas correram mal. Os olhos que não podem ver são defeituosos e a seca é um mal natural; o mal de ambas é explicado por referência à lei natural. Mas há igualmente implicações para a conduta humana. As regras morais

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são agora encaradas como se derivassem de leis da natureza. Diz-se que alguns tipos de comportamento são "naturais", enquanto outros são "contrários à natureza"; e actos "contrários à natureza" são tidos como moralmente errados.

Considere-se, por exemplo, o dever de beneficência. Temos a obrigação moral de ter consideração pelo bem-estar do próximo assim como do nosso. Porquê? Segundo a teoria da lei natural, a beneficência é algo natural em nós, tendo em conta o tipo de criaturas que somos. Somos por natureza criaturas sociais que querem e necessitam da companhia de outras pessoas. Faz igualmente parte da nossa constituição natural ter consideração pelos outros. Quem não tem consideração pelos outros - quem realmente não se importa, em absoluto - é visto como alguém com perturbações; na terminologia da psicologia moderna, é visto como um sociopata. Uma personalidade malévola é defeituosa, tal como os olhos são defeituosos se não puderem ver. E, pode ainda acrescentar-se, isto é verdade porque fomos criados por Deus com uma natureza especificamente "humana", como parte de seu plano global para o mundo.

A aceitação da beneficência é relativamente incontroversa. A teoria da lei natural tem também sido usada, no entanto, para apoiar perspectivas morais mais controversas. Os pensadores religiosos têm tradicionalmente condenado práticas sexuais "desviantes", e a justificação teórica para a sua oposição tem-se baseado muito frequentemente na teoria da lei natural. Se tudo tem uma finalidade, qual é a finalidade do sexo? A resposta óbvia é a procriação. A actividade sexual não relacionada com fazer meninos, pode por isso ser encarada como "contrária à natureza", e práticas como a masturbação e o sexo oral - para não falar da homossexualidade - podem ser condenadas por esta razão. Esta maneira de pensar sobre o sexo data pelo menos de S. Agostinho, no século iv, e surge explicitamente

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nas obras de São Tomás de Aquino. (Para uma discussão crítica deste argumento sobre o sexo, ver a secção 3.7 deste livro.) A teologia moral da Igreja católica baseia-se na

teoria da lei natural. Esta linha de pensamento está por detrás de toda a sua ética sexual.

À excepção da Igreja católica, a teoria da lei natural tem poucos defensores hoje em dia. É geralmente rejeitada por duas razões. Primeiro, parece envolver uma confusão entre "ser" e "dever ser". No século xvm David Hume sublinhou que o que é e o que deve ser são noções diferentes do ponto de vista lógico, e nenhuma conclusão sobre uma se segue da outra. Podemos dizer que as pessoas estão naturalmente dispostas a ser beneméritas, mas disso não se conclui que devem ser beneméritas. De modo semelhante, acontece que o sexo produz de facto bebés, mas daí não se conclui que o sexo deva ou não deva ser praticado exclusivamente para esse propósito. Os factos são uma coisa; os valores outra. A teoria da lei natural parece fundi-los.

Segundo, a teoria da lei natural passou de moda (embora isso evidentemente não prove que é falsa) porque a perspectiva do mundo na qual se baseia não está em conformidade com a ciência moderna. O mundo tal como descrito por Galileu, Newton e Darwin não tem lugar para "factos" sobre o certo e o errado. As suas explicações dos fenómenos naturais não fazem qualquer referência a valores ou finalidades. O que acontece acontece apenas, acidentalmente, em consequência de leis de causa e efeito. Se a chuva beneficia as plantas, é apenas porque as plantas evoluíram pelas leis da selecção natural num clima chuvoso.

A ciência moderna dá-nos, pois, uma imagem do mundo como um reino de factos, onde as únicas "leis naturais" são as leis da física, química e biologia, funcionando cegamente e sem finalidade. Os valores, sejam eles o que forem, não são parte da ordem natural. Quanto à ideia de que "a natureza fez todas as coisas especificamente em

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benefício do Homem", isso é apenas vaidade humana. Desde que aceitemos a visão do mundo da ciência moderna, seremos, pois, cépticos quanto à teoria da lei natural. Não é por acaso que a teoria não é um produto do pensamento moderno mas da Idade Média.

3. A terceira parte da teoria trata da questão do conhecimento moral. Como podemos determinar o que está correcto e errado? A teoria dos mandamentos divinos afirma que devemos consultar os mandamentos de Deus. A teoria da lei natural dá uma resposta diferente. As "leis naturais" que especificam o que devemos fazer são leis da razão, que somos capazes de entender porque Deus, o autor da ordem natural, nos fez seres racionais com o poder de entender essa ordem. Portanto, a teoria da lei natural sanciona a ideia

familiar de que o melhor é seguir a linha de conduta com as melhores razões do seu lado. Para usar a terminologia tradicional, os juízos morais são "ditames da razão". São Tomás de Aquino, o maior dos teóricos da lei natural, escreveu na sua obra-prima Suma Teológica que, "desacreditar os ditames da razão equivale a condenar os mandamentos de Deus".

Isto significa que o crente não tem acesso privilegiado à verdade moral. O crente e o não crente estão na mesma posição. Deus concedeu a ambos os mesmos poderes de raciocínio; e, por isso, crente e não crente podem de modo igual ouvir a razão e seguir as suas directivas. Como agentes morais, funcionam da mesma maneira, apesar de a falta de fé dos não crentes os impedir de perceber que Deus é o autor da ordem racional da qual participam e que os seus juízos morais exprimem.

Num sentido importante, isto torna a moralidade independente da religião. A crença religiosa não afecta o cálculo do que é melhor, e os resultados da investigação moral são religiosamente "neutros". Desta forma, mesmo podendo discordar acerca da religião, os crentes e os não crentes habitam o mesmo universo moral.

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4.4 Religião e questões morais particulares

Algumas pessoas religiosas poderão achar a discussão anterior insatisfatória. Parecer-lhes-á demasiado abstracta para ter alguma importância para as suas vidas morais. Para eles, a relação entre moralidade e religião é uma questão prática e imediata que se centra em problemas morais particulares. Não interessa se o bem e mal morais são "definidos" em termos da vontade divina ou se as leis morais são leis da natureza: sejam quais forem os méritos destas teorias, continuam a existir os ensinamentos morais da religião sobre questões particulares. Os ensinamentos das Escrituras e da Igreja são encarados como autoridades, determinando as posições morais que temos de assumir. Para referir apenas um exemplo, muitos cristãos pensam não ter alternativa senão opor-se ao aborto porque é condenado pela Igreja e (presumem eles) pelas Escrituras.

Existirão, de facto, posições claramente religiosas, sobre as grandes questões morais, que os crentes sejam obrigados a aceitar? A ser assim, serão essas posições diferentes das perspectivas que outras pessoas podem alcançar pela simples tentativa de raciocinar para descobrir o melhor caminho a seguir? A retórica do púlpito sugere que a resposta a ambas as questões é "sim". Mas há várias razões para pensar de outra forma.

Em primeiro lugar, é frequentemente difícil descobrir uma orientação moral específica nas

Escrituras. Os nossos problemas não são os mesmos que os judeus e primeiros cristãos enfrentaram há muitos séculos; não é por isso surpreendente que as Escrituras possam nada dizer sobre questões morais que a nós nos parecem prioritárias. A Bíblia contém uma série de preceitos gerais, como a ordem de amar o nosso próximo e tratar os outros como gostaríamos de ser tratados, que podem ser considerados relevantes para várias questões. Mas, apesar de valiosos, esses preceitos não dão respostas precisas sobre qual deve ser

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exactamente a nossa posição sobre os direitos dos trabalhadores, a extinção das espécies, o financiamento da investigação médica, etc.

Outro problema é que em muitos casos as Escrituras e a tradição da Igreja são ambíguas. As autoridades discordam, deixando o crente na posição embaraçosa de ter de escolher o elemento da tradição a aceitar e a autoridade na qual acreditar. Lido de forma simples, o Novo Testamento, por exemplo, condena a riqueza, e há uma longa tradição de abnegação e dádiva caridosa que confirma este ensinamento. Mas há igualmente uma figura obscura do Antigo Testamento, chamada Jabes, que pediu a Deus para "expandir as minhas propriedades" (I Crónicas 4:10), e Deus concedeu-Ihe o pedido. Um livro recente instando os cristãos a adoptar Jabes como modelo tornou-se um campeão de vendas.

Assim, quando as pessoas afirmam que as suas convicções morais derivam dos seus compromissos religiosos estão frequentemente enganadas. Na realidade, o que acontece é algo de muito diferente. Elas estão primeiro a tomar decisões sobre questões morais e só depois a interpretar as Escrituras, ou a tradição da Igreja, de modo a apoiarem a conclusão moral a que já chegaram. É claro que isto não acontece sempre, mas parece justo afirmar que acontece com muita frequência. Â questão das riquezas é um exemplo disso; o aborto é outro.

No debate sobre o aborto, as questões religiosas nunca estão longe do centro da discussão. Os conservadores religiosos defendem que o feto é um ser humano desde o momento da concepção, e por isso afirmam que matá-lo é na realidade uma forma de homicídio. Não pensam que deva ser a mãe a escolher se quer fazer um aborto, porque isso seria como dizer que ela é livre de cometer um homicídio.

A premissa fundamental do argumento conservador é de que o feto é um ser humano desde o momento da concepção. O ovo fertilizado não é apenas um ser humano potencial mas um ser humano de facto, com direito pleno

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à vida. Os liberais, é claro, negam isto - afirmam que, pelo menos durante as primeirassemanas de gravidez, o embrião é menos que um ser humano completo.

O debate sobre a humanidade do feto é muito complicado, mas aqui interessa-nos apenas uma pequena parte do problema. Os cristãos conservadores afirmam por vezes que, independentemente da forma como o pensamento secular encara o feto, a perspectiva cristã é que o feto é um ser humano desde o seu início. Mas será esta perspectiva obrigatória para os cristãos? Que provas podem ser fornecidas para demonstrar isto? Para responder a isto, podemos apelar para as Escrituras ou para a tradição da Igreja.

As Escrituras. É difícil derivar uma proibição do aborto das Escrituras cristãs ou judaicas. A Bíblia não fala claramente do assunto. Há certas passagens, no entanto, que são frequentemente citadas pelos conservadores porque parecem sugerir que os fetos têm um estatuto humano pleno. Uma das passagens mais frequentemente citadas é do primeiro capítulo do Livro de Jeremias, no qual Deus afirma: "Antes de te formar no seio já te conhecia, e antes de nasceres consagrei-te." Estas palavras são apresentadas como se fossem a confirmação da posição conservadora por parte de Deus: são tomadas como significando que o não-nascido, à semelhança do já nascido, são "consagrados" a Deus. No seu contexto, no entanto, estas palavras significam obviamente algo muito diferente. Suponhamos que é lida toda a passagem na qual ocorrem essas palavras:

Foi-me dirigida a palavra do Senhor nestes termos: "Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei, e te constitui profeta entre as nações." E eu respondi: "Ah! Senhor Javé, não sou um orador, porque sou ainda muito novo!" Mas o Senhor replicou: "Não digas: sou ainda muito novo - porquanto irás aonde Eu te enviar, e dirás o que Eu te ordenar. Não os temas, porque estarei contigo para te livrar", palavra do Senhor.

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Nem o aborto nem a santidade da vida, ou qualquer outra coisa do género, está a ser discutida nesta passagem. Em vez disso, Jeremias está a afirmar a sua autoridade corno profeta. Ele diz, com efeito: "Deus autorizou-me a falar em seu nome; apesar de eu ter resistido, ordenou-me que falasse." Mas Jeremias coloca a questão de forma mais poética; afirma que Deus pretendeu que ele fosse profeta mesmo antes de ele, Jeremias, ter nascido.

Isto acontece com frequência quando as Escrituras são citadas em relação a algumas

questões morais controversas. Algumas palavras são destacadas de uma passagem relacionada com algo completamente diverso da questão em presença, e essas palavras são então interpretadas de uma forma que apoia uma posição moral da nossa preferência. Quando isto acontece é correcto dizer que uma pessoa está a "seguir os ensinamentos morais da Bíblia"? Ou será mais correcto dizer que essa pessoa está a procurar nas Escrituras apoio moral para o ponto de vista que pensa de antemão estar correcto, projectando então a conclusão desejada nas Escrituras? Se isto for verdade, trata-se de uma atitude particularmente ímpia - uma atitude que parte do princípio de que o próprio Deus tem de partilhar as nossas opiniões morais. No caso da passagem de Jeremias, é difícil ver como um leitor imparcial poderia pensar que as palavras têm alguma coisa que ver com o aborto, mesmo por implicação.

A passagem das Escrituras que se aproxima mais de um juízo específico sobre o estatuto moral dos fetos ocorre no capítulo 21 do Êxodo. Este capítulo faz parte de uma descrição detalhada da lei dos antigos israelitas. Aqui diz-se que a pena para punir o homicídio é a morte; mas diz-se igualmente, no entanto, que se for causado um aborto a uma mulher grávida a pena é apenas uma multa, a ser paga ao seu marido. O assassinato não era uma categoria que incluísse fetos. A Lei de Israel encarava aparentemente os fetos como menos que um ser humano pleno.

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A tradição da Igreja. Mesmo havendo uma base tão pequena nas Escrituras para o justificar, a postura contemporânea da Igreja é fortemente contrária ao aborto. Quem frequenta habitualmente a igreja pode ouvir clérigos, padres e bispos a denunciar o aborto nos termos mais contundentes. Não admira, pois, que muitas pessoas sintam que o seu compromisso religioso as obriga a oporem-se ao aborto.

Mas vale a pena notar que a Igreja nem sempre teve esta posição. De facto, a ideia de que o feto é um ser humano "desde o momento da concepção" é uma ideia relativamente nova, mesmo na Igreja católica. São Tomás de Aquino defendia que um embrião não tem alma até várias semanas depois do início da gravidez. São Tomás aceitava o ponto de vista de Aristóteles de que a alma é a "forma substancial" do ser humano. Não precisamos entrar nesta noção algo técnica a não ser para sublinhar que uma das suas implicações é que não podemos ter uma alma humana até o nosso corpo ter uma forma reconhecidamente humana. S. Tomás sabia que um embrião humano não tem uma forma humana "desde o momento da concepção", e derivou daí a conclusão indicada. O ponto de vista de São Tomás sobre o assunto foi oficialmente aceite péla Igreja no Concílio de Viena, em 1312, e até hoje nunca foi oficialmente repudiado.

No entanto, no século xvn, uma perspectiva curiosa do desenvolvimento do feto acabaria por ser aceite, e isto teve consequências inesperadas para o modo como a Igreja encara o aborto. Observando óvulos fertilizados pelos microscópios primitivos, alguns cientistas pensaram ter visto pessoas pequeninas, perfeitamente formadas. Chamaram "homúnculos" a estas pessoas pequenas, e isso consolidou a ideia de que desde o início o embrião humano é uma criatura inteiramente formada que apenas necessita crescer até estar pronta para o nascimento.

Se o embrião tem uma forma humana desde o momento da concepção, segue-se daí, segundo a filosofia de

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Aristeles e S. Tomás, que pode ter uma alma humana desde o momento da concepção. A Igrejatirou esta conclusão e abraçou o ponto de vista conservador sobre o aborto. O"homúnculo", diz-se, é claramente um ser humano, e por isso é errado matá-lo.

No entanto, à medida que o nosso entendimento da biologia progrediu, os cientistascomeçaram a perceber que esta ideia do desenvolvimento do feto estava errada. Não háqualquer homúnculo; isso era um erro. Sabemos hoje que o pensamento original de S.Tomás estava correcto - os embriões começam por ser um aglomerado de células; a"forma humana" chega mais tarde. Mas quando o erro biológico foi corrigido, o ponto devista moral da Igreja não voltou atrás. Tendo adoptado a teoria de que o feto é um serhumano "desde o momento da concepção", a Igreja não a abandonou e agarrou-se à suavisão conservadora do aborto. Não obstante o Concílio de Viena, manteve essa posição atéhoje.

Uma vez que tradicionalmente a Igreja não encarava o aborto uma questão moral séria, a leiOcidental (desenvolvida sob influência da Igreja) não tratou tradicionalmente o aborto comoum crime. À luz da lei inglesa, o aborto era tolerado mesmo quando executado numagravidez avançada. Nos Estados Unidos, não houve leis proibindo-o até bem adentro doséculo xix. Assim, quando o Supremo Tribunal dos EUA declarou a proibição absoluta doaborto inconstitucional, em 1973, não estava a inverter uma longa tradição de opiniõeslegais e morais. Estava apenas a restaurar uma situação legal que tinha existido até muitorecentemente.

A intenção de passar em revista esta história não é insinuar que a posição contemporânea daIgreja está errada. Apesar de quanto foi dito aqui, a sua posição pode estar correcta. Queroapenas sublinhar um aspecto fundamental da relação entre a autoridade religiosa e os juízosmorais. A tradição da Igreja, bem como as Escrituras, é reinterpretada

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por cada geração para apoiar os seus pontos de vista morais. O aborto é apenas umexemplo disso. Poderíamos igualmente ter usado como exemplo as mudanças nasperspectivas morais e religiosas sobre a escravatura, o estatuto das mulheres ou a pena demorte. Em cada caso, as convicções morais das pessoas não são tanto derivadas da suareligião como sobrepostas a ela.

Os vários argumentos deste capítulo apontam para uma conclusão comum. Não se devedefinir o correcto e errado em termos da vontade de Deus; a moralidade é uma questão derazão e consciência, e não de fé religiosa; e, em qualquer dos casos, as consideraçõesreligiosas não fornecem soluções definitivas para os problemas morais específicos com osquais nos defrontamos. Numa palavra, moralidade e religião são diferentes. Uma vez queesta conclusão é contrária ao senso comum, pode parecer anti-religiosa a alguns leitores.Deve, por isso, sublinhar-se que esta conclusão não foi alcançada por meio doquestionamento da validade da religião. Os argumentos considerados não presumem que ocristianismo ou qualquer outro sistema teológico sejam falsos; estes argumentos mostramapenas que, mesmo que esses sistemas sejam verdadeiros, a moralidade continua a ser umaquestão independente.

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Capítulo 5

Egoísmo psicológico

Mas a época do cavalheirismo passou. A dos sofistas, economistas e calculadores triunfou.

EDMUND BURKE, Reflections on the Revolution in France (1790)

5.1 Será o altruísmo possível?

Raoul Wallenberg, um homem de negócios sueco que poderia ter permanecido na segurança de sua casa, passou os últimos dias da Segunda Guerra Mundial em Budapeste. Wallenberg ofereceu-se para integrar a missão diplomática sueca nessa cidade depois de ouvir relatos sobre Hitler e a sua "solução final para o problema judaico". Uma vez aí, pressionou com sucesso o governo húngaro no sentido de parar as deportações para campos de concentração. Quando o governo húngaro foi substituído por um regime fantoche nazi e as deportações recomeçaram, Wallenberg emitiu "passes de protecção suecos" para milhares de judeus, insistindo que todos mantinham ligações com a Suécia e estavam sob a protecção do seu governo. Ajudou várias

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pessoas a encontrar refúgio. Sempre que eram reunidos grupos para execução, Wallenberg

interpunha-se entre eles e os nazis afirmando aos alemães que teriam de o matar primeiro. Na parte final da Guerra, quando reinava o caos e os outros diplomatas fugiram, Wallenberg permaneceu. Foi-lhe atribuída responsabilidade no salvamento de cerca de doze mil pessoas. Quando a Guerra terminou, desapareceu, e durante muito tempo ninguém soube o que lhe tinha acontecido. Pensa-se hoje que tenha sido morto, não pelos alemães, mas pelas forças de ocupação soviéticas. A história de Wallenberg é mais dramática do que a maioria, mas não é, de modo algum, única. O governo israelita documentou seis mil casos de gentios que protegeram judeus durante o Holocausto, e existem sem dúvida milhares de outros.

A moralidade requer que sejamos altruístas. Até que ponto devemos ser altruístas é uma questão de difícil resposta. (Várias teorias morais foram criticadas ou por exigirem demasiado ou por pedirem pouco.) Talvez não tenhamos de ser tão heróicos como Raoul Wallenberg, mas espera-se, ainda assim, que estejamos atentos às necessidades dos outros pelo menos até certo ponto.

E as pessoas ajudam-se, de facto, entre si, de formas mais ou menos significativas. Fazem favores umas às outras. Constróem abrigos para os deserdados. Fazem voluntariado em hospitais. Doam órgãos e oferecem sangue. Mães sacrificam-se pelos filhos. Bombeiros arriscam a vida para salvar pessoas. Freiras passam as suas vidas a trabalhar entre os pobres. A lista poderia continuar sem parar. Muitas pessoas oferecem dinheiro para apoiar causas nobres, quando podiam guardá-lo para si. Peter Singer conta que, certo dia,

recebi o boletim informativo da Australian Conservation Foundation, o principal grupo australiano de defesa do meio ambiente. Incluía um artigo da autoria do coordenador

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financeiro da fundação, no qual relatava urna viagem para agradecer a um doador que regularmenteenviava donativos de mil ou mais dólares. Quando chegou ao endereço em questão pensou ter-se enganado, pois estava frente a uma casa suburbana muito modesta. Mas não havia qualquer engano: David Allsop, empregado do departamento estatal de obras públicas, doa cinquenta por cento dos seus rendimentos para causas ambientais.

Estas são histórias notáveis, mas deveremos aceitá-las pelo que parecem? Serão de facto estas pessoas tão altruístas como parecem? Neste capítulo vamos examinar alguns argumentos que defendem que ninguém é jamais verdadeiramente altruísta. Isto pode parecer absurdo tendo em conta os exemplos que acabámos de enumerar. Contudo, há uma teoria da natureza humana, em tempos muito corrente entre filósofos, psicólogos e economistas, e ainda defendida por muitas pessoas comuns, que afirma que não somoscapazes de ser altruístas. Segundo esta teoria, conhecida como egoísmo psicológico, todasas acções humanas são motivadas pelo egoísmo. Podemos acreditar que somos nobres e

abnegados, mas isso é apenas uma ilusão. Na verdade importamo-nos apenas connosco mesmos.

Poderá o egoísmo psicológico ser verdadeiro? Porque razão tantas pessoas têm aceitado esta ideia perante tantas provas em contrário?

5.2 A estratégia de reinterpretação de motivos

Todos sabemos que por vezes as pessoas parecem agir com altruísmo; mas talvez as explicações "altruísticas" do comportamento sejam demasiado superficiais - pode parecer que as pessoas são altruístas, mas se olharmos mais profundamente, poderemos descobrir que algo mais está a acontecer. Geralmente não é difícil descobrir que o com-

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portamento "altruísta" está na verdade ligado a um tipo qualquer de benefício para quem age.

Segundo alguns dos amigos de Raoul Wallenberg, antes de ir para a Hungria ele estava deprimido e infeliz, sentindo que a sua vida não tinha grande importância. Por isso, encetou a realização de acções que o transformassem numa figura heróica. A sua procura de uma vida mais significativa foi espectacularmente bem sucedida - aqui estamos nós, mais de meio século após a sua morte, falando a seu respeito. A Madre Teresa, a freira que passou a vida a trabalhar entre os pobres de Calcutá, é frequentemente citada como o exemplo perfeito de altruísmo - mas é claro que a Madre Teresa acreditava que seria bem recompensada no Céu. (Na verdade não teve de esperar muito pela sua recompensa; recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1979.) Quanto a David Allsop, que oferece cinquenta por cento dos seus rendimentos para apoiar causas ambientais, Singer salienta que "o próprio David trabalhara anteriormente como activista, e afirma sentir-se profundamente satisfeito por poder agora fornecer o apoio financeiro para outros continuarem o trabalho".

Assim, o comportamento "altruísta" está na realidade ligado a coisas como o desejo de ter uma vida mais significativa, o desejo de reconhecimento público, sentimentos de satisfação pessoal e a esperança de uma recompensa divina. Por cada acto de aparente altruísmo podemos encontrar uma maneira de justificá-lo e substituí-lo por uma explicação em termos de motivos mais egocêntricos. Esta técnica de reinterpretar motivos é genérica e pode ser repetida vezes e vezes sem conta.

Thomas Hobbes (1588-1679) pensava que o egoísmo psicológico estava provavelmente correcto, mas não se deu por satisfeito com uma abordagem tão fragmentária. Não é teoricamente elegante lidar com cada exemplo separadamente, ocupando-nos primeiro de

Raoul Wallenberg, depois da Madre Teresa, depois de David Allsop e assim por

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diante. Se o egoísmo psicológico é verdadeiro, deveríamos poder fornecer uma explicaçãomais abrangente dos motivos humanos, que confirmasse a teoria de uma vez por todas. Foi isso mesmo que Hobbes tentou fazer. O seu método consistiu em catalogar os tipos gerais de motivos, concentrando-se especialmente nos "altruístas", e mostrando como todos podiam ser compreendidos em termos egoístas. Uma vez completado este projecto, teria eliminado sistematicamente o altruísmo do nosso entendimento da natureza humana. Eis dois exemplos de Hobbes em acção.1. Caridade. Este é o motivo mais geral que atribuímos às pessoas quando pensamos que agem em função da sua preocupação pelos outros. O Oxford English Dictionary dedica quase quatro colunas à "caridade". É definida quer como "o amor cristão pelo nosso semelhante" quer como a "benevolência para com o próximo". Mas, se esse amor ao próximo na realidade não existe, o comportamento caritativo tem de ser entendido de uma forma radicalmente diferente. No seu ensaio "Da Natureza Humana", Hobbes descreve-o assim:

Não pode haver maior argumento para um homem, provando o seu próprio poder, do que saber-se capaz não apenas de realizar os seus desejos, como ainda de ajudar outros homens nos seus: e é nisso mesmo que consiste a concepção do que se chama caridade.

A caridade é, assim, o prazer de cada um na demonstração dos seus próprios poderes. Um homem caridoso está a provar a si mesmo, e ao mundo, que possui mais recursos que os outros: não é só capaz de cuidar de si mesmo, tem ainda o suficiente para ajudar quantos não têm a mesma capacidade que ele. Por outras palavras, está apenas a exibir a sua superioridade.

Hobbes sabia, naturalmente, que um homem caridoso pode não pensar estar a fazer isso. Mas nós não somos os

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melhores juizes das nossas próprias motivações. É perfeitamente natural que interpretemos as nossas acções de um modo lisonjeiro para nós (um egoísta psicológico não esperaria outra coisa), e é lisonjeiro pensar que somos "altruístas". A perspectiva de Hobbes visa fornecer a explicação real do porquê das nossas acções, e não a adulação superficial na qual desejamos naturalmente acreditar;

2. Piedade. O que é ter piedade dos outros? Poderíamos pensar que é compadecermo-nos d

eles, sentirmo-nos infelizes com os seus infortúnios. E, agindo em função deste pesar, poderíamos tentar ajudá-los. Hobbes pensa que tudo isto está muito bem, até onde pode estar, mas não vai suficientemente fundo. A razão pela qual nos sentimos incomodados com os infortúnios dos outros é pensarmos que a mesma coisa nos podia acontecer a nós. A "piedade", afirma, "consiste em imaginar ou fantasiar as nossas próprias calamidades futuras, partindo da consciência das calamidades de ou trem".

Do ponto de vista teórico, esta explicação da piedade revela-se mais poderosa do que parece à primeira vista. Pode explicar com muita clareza alguns aspectos peculiares do fenómeno. Pode explicar, por exemplo, por que sentimos maior piedade quando uma pessoa boa sofre do que quando sofre uma pessoa má. Na descrição de Hobbes, a piedade requer um sentido de identificação com a pessoa que sofre - sinto piedade de alguém quando me imagino no seu lugar. Mas uma vez que cada um de nós pensa ser uma boa pessoa, não nos identificamos com os que pensamos serem maus. Por conseguinte, não nos apiedámos dos malévolos da mesma forma que nos apiedámos dos bons. Os nossos sentimentos de piedade variam em função directa da virtude da pessoa que sofre porque o nosso sentido de identificação varia da mesma forma.

A estratégia de reinterpretar motivos é um método de raciocínio persuasivo; fez muitas pessoas ter a sensação de que o egoísmo psicológico pode estar certo. Apela sobre-

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tudo a um certo cinismo em nós, a uma suspeita de que as pessoas não são tão nobres como parecem. Mas não é um método de raciocínio decisivo, pois não pode provar que o egoísmo psicológico estcorrecto. O problema é que mostra apenas que é possível interpretar os motivos de forma egoísta; nada faz para mostrar que os motivos egoístas são mais profundos ou verdadeiros do que as explicações altruísticas que pretendem substituir. No máximo, a estratégia mostra que o egoísmo psicológico é possível. Necessitamos ainda de argumentos para provar que é verdadeiro.

5.3 Dois argumentos a favor do egoísmo psicológico

Há dois argumentos gerais que foram adiantados com frequência em defesa do egoísmo psicológico. São argumentos "gerais" na medida em que cada um tenta estabelecer de um só golpe que todas as acções, e não apenas uma classe limitada de acções, são motivadas pelo egoísmo. Como poderemos ver, nenhum dos argumentos resiste muito bem ao escrutínio.

O argumento de que fazemos sempre o que mais desejamos fazer. Se descrevemos as

acções de uma pessoa como egoístas e as de outra como não egoístas estamos a descurar o facto crucial de que em ambos os casos, partindo do princípio de que a acção é realizada de forma voluntária, a pessoa está apenas a fazer o que mais deseja fazer. Se Raoul Wallenberg escolheu partir para Budapeste, e ninguém o coagiu, isso apenas mostra que ele preferia ir do que permanecer na Suécia - e porque haveria de ser elogiado pela sua "generosidade" quando se limitou a fazer o que mais desejava? A sua acção foi ditada pelos seus próprios desejos, o seu sentido do que queria fazer. Assim, não agiu altruistamente. E, uma vez que se pode dizer o mesmo de

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qualquer alegado acto altruísta, podemos concluir que o egoísmo psicológico tem de ser verdadeiro.

Este argumento tem duas falhas principais. Primeiro, baseia-se na ideia de que as pessoas nunca fazem voluntariamente senão o que desejam fazer. Mas isto é redondamente falso. Por vezes fazemos coisas que não queremos fazer, porque são um meio necessário para um fim que queremos atingir, por exemplo, não queremos ir ao dentista, mas vamos na mesma para evitar dor de dentes. Este tipo de caso pode, não obstante, ser encarado como consistente com o espírito do argumento, porque os fins (como evitar dor de dentes) são desejados.

Mas há igualmente coisas que fazemos, não porque o desejamos, e nem mesmo porque são meios para um fim que queremos atingir, mas porque sentimos que devemos fazê-las. Por exemplo, alguém pode fazer uma coisa porque prometeu fazê-la, e sente-se, por isso, obrigado, mesmo não desejando fazê-la. Tem sido por vezes sugerido que em tais casos realizamos a acção porque, afinal de contas, queremos manter as nossas promessas. Não obstante, isso não é verdade. Se prometi fazer algo mas não o quero fazer, então é pura e simplesmente falso dizer que quero manter a minha promessa. Em tais casos sentimos um conflito precisamente porque não queremos fazer o que nos sentimos obrigados a fazer.

Se os nossos desejos e o nosso sentido de obrigação estivessem sempre em harmonia, este seria um mundo feliz. É uma experiência demasiado comum sentirmo-nos puxados em direcções diferentes pelo desejo e pela obrigação. Tanto quanto sabemos, Wallenberg pode ter tido essa experiência: talvez quisesse ficar na Suécia, mas sentiu que tinha de ir para Budapeste. Seja como for, do facto de ter ido não se segue que desejasse ir.

O argumento tem ainda uma segunda falha. Suponha-se que admitíamos, em benefício da argumentação, que agimos sempre segundo os nossos mais fortes desejos.

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Mesmo dando isto por adquirido não se seguiria que Wallenberg agiu de forma egoísta ou em benefício próprio. Pois se desejava ajudar outras pessoas, mesmo com riscos para si, isso é precisamente o que o torna não egoísta. Que outra coisa poderia ser a generosidade a não ser ajudar os outros, mesmo com alguns custos para si mesmo? Outra forma de pôr a questão é afirmar que o objecto de um desejo determina se este é ou não egoísta. O mero facto de alguém agir segundo os seus desejos não significa que esteja a agir de forma egoísta; tudo depende do que essa pessoa deseja. Se apenas se preocupa com o seu bem-estar e não pensa nos outros, então é um egoísta; mas se também deseja ver os outros felizes, e age segundo esse desejo, então não é egoísta.

Por conseguinte, este argumento falha de quase todas as formas possíveis: as premissas não são verdadeiras, e mesmo que fossem, a conclusão não se seguiria delas.

O argumento de que fazemos o que nos faz sentir bem.

O segundo argumento geral em defesa do egoísmo psicológico apela para o facto de quase todas as acções ditas altruístas produzirem um sentido de auto-satisfação na pessoa que as realiza. Agir "altruistamente" faz as pessoas sentirem-se bem consigo mesmas, e isso é o seu verdadeiro objectivo.

Segundo um jornal do século xix, este argumento foi em tempos defendido por Abraham Lincoln. O Monitor, de Springfield, Illinois, noticiou que

Lincoln afirmou certa vez a um companheiro de viagem num coche antigo que todos os homens eram instados pelo egoísmo a fazer o bem. O companheiro de viagem contestava esta posição quando estavam a atravessar uma ponte sobre uma zona pantanosa. Ao atravessar a ponte, olhavam para uma velha porca selvagem que fazia na margem ruídos horríveis porque as suas crias tinham entrado no lodaçal e estavam em risco de se afogar. Quando a velha carruagem come-

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çou a subir a colina, Lincoln gritou: "Cocheiro, poderia parar um momento?" Lincoln saltou da carruagem, correu de volta ao pântano, retirou os porquinhos da água enlameada e colocou-os de novo na margem. Quando regressou, o seu companheiro afirmou: "Então Abe, onde fica

o egoísmo neste pequeno episódio?" "Pela sua saúde, Ed, aquilo foi a própria essência do egoísmo. Não teria tido paz de espírito durante o resto do dia se tivesse deixado aquela velha porca em sofrimento por causa dos porquinhos. Fi-lo para obter paz de espírito, percebe?"

Lincoln era um grande homem, mas, nesta ocasião pelo menos, não foi um grande filósofo. O seu argumento é vulnerável ao mesmo tipo de objecções do anterior. Porque razão devemos pensar, apenas porque alguém obtém satisfação do auxílio aos outros, que isso faz dele um egoísta? Não é a pessoa altruísta precisamente a que de facto tem satisfação no auxílio aos outros, enquanto o egoísta não tem? Se Lincoln conseguiu "paz de espírito" depois de salvar os porquinhos, isso mostrará que é egoísta ou, pelo contrário, que é compassivo e dotado de bom coração? (Se uma pessoa fosse verdadeiramente egoísta, porque haveria de incomodar-se com o sofrimento dos outros, ainda para mais tratando-se de porcos?) Por analogia, pode considerar-se puro sofisma afirmar que alguém é egoísta apenas porque deriva satisfação do auxílio aos outros. Se dissermos isto rapidamente, enquanto pensamos noutra coisa, talvez pareça correcto; mas se falarmos pausadamente e estivermos atentos ao que dizemos, parece francamente tonto.

Suponhamos, além disso, que perguntamos por que razão uma pessoa obtém satisfação ao auxiliar os outros. Porque será que nos sentimos bem ao doar dinheiro para apoiar um abrigo para pessoas sem lar, quando podíamos gastar esse dinheiro connosco mesmos? A resposta tem de ser, pelo menos em parte, que somos o tipo de pessoa que se importa com o que acontece aos outros. Se não nos importamos com isso, doar o dinheiro parecerá um desperdício e não

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uma fonte de satisfação. Vai fazer-nos sentir parvos e não santos.

Há uma lição geral a retirar deste caso, relacionada com a natureza do desejo e seus objectos. Desejamos todo o género de coisas - dinheiro, um carro novo, jogar xadrez, casar e assim por diante - e uma vez que desejamos essas coisas, podemos obter satisfação ao consegui-las. Mas o objecto do nosso desejo não é a satisfação - não é isso que procuramos. O que procuramos é simplesmente o dinheiro, o carro, o xadrez ou o casamento. Acontece o mesmo com o auxílio aos outros. Temos primeiro de querer ajudá-los antes de podermos obter satisfação com isso. Os bons sentimentos são um derivado; não são o que buscamos. Por isso, ter esses sentimentos não é uma marca de egoísmo.

5.4 Esclarecer algumas confusões

Um dos mais poderosos motivos na elaboração de uma teoria é o desejo de simplicidade. Quando estamos empenhados em explicar uma coisa, gostaríamos de descobrir uma explicação tão simples quanto possível. Isto é certamente verdade nas ciências - quanto mais simples é uma teoria científica, tanto maior é o seu poder de atracção. Considerem-se fenómenos tão diversos como os movimentos planetários, as marés e a forma como caem os objectos quando largados de um ponto elevado. Estes fenómenos parecem ser, à partida, muito diferentes; e pareceria serem necessários princípios diferentes para os explicar. Quem podia pensar que poderiam ser todos explicados por um único princípio? No entanto é isso mesmo que faz a teoria da gravidade. A capacidade da teoria para unir fenómenos diversos sob um mesmo princípio explicativo é uma das suas grandes virtudes. Cria ordem a partir do caos.

Da mesma forma, quando pensamos sobre a conduta humana, gostaríamos de descobrir um princípio para

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explicar tudo. Queremos uma fórmula única e simples, se conseguirmos descobrir uma, capazde unir os diversos fenómenos do comportamento humano, da mesma forma que as fórmulas simples na física unem fenómenos aparentemente diferentes. Sendo óbvio que a preocupação connosco próprios é um factor de importância esmagadora na motivação, pode considerar-se natural ponderar a possibilidade de toda a motivação poder ser explicada nesses termos. E assim se explica a persistência da ideia do egoísmo psicológico.

Mas a ideia fundamental subjacente ao egoísmo psicológico não pode sequer ser expressa sem confusões; e uma vez esclarecidas estas confusões a teoria deixa de parecer plausível.

Primeiro, as pessoas tendem a confundir egoísmo com interesse próprio. Quando pensamos nisso, vemos que não são de modo algum a mesma coisa. Se vou ao médico quando me sinto mal, estou a agir em função do meu interesse próprio, mas ninguém pensaria chamar-me "egoísta" por causa disso. De modo semelhante, lavar os dentes, trabalhar afincadamente no meu emprego e obedecer à lei, são tudo acções realizadas no meu interesse próprio, mas nenhum destes exemplos ilustra uma conduta egoísta. O comportamento egoísta é o comportamento que ignora os interesses dos outros em circunstâncias nas quais não deviam ser ignorados. Assim, comer uma refeição normal em circunstâncias normais não é egoísta (apesar de ser, sem dúvida, do nosso interesse próprio); mas seríamos egoístas se

acumulássemos comida enquanto outros passavam fome.

Uma segunda confusão mistura o comportamento em função do interesse próprio com a procura de prazer. Fazemos muitas coisas porque gostamos de as fazer, mas isso não significa que estejamos a agir em função do interesse próprio. Um homem que continua a fumar cigarros mesmo depois de ter conhecimento da relação entre o fumo e o cancro não está certamente a agir segundo o seu interesse

próprio, nem mesmo pelos seus próprios padrões - o interesse próprio ditaria que parasse de fumar- e não está também a agir de forma altruísta. Ele fuma, sem dúvida, pelo prazer de fumar, mas isso apenas mostra que a procura indisciplinada do prazer e a defesa do interesse próprio são coisas diferentes. Reflectindo nisto, Joseph Butler, o principal crítico do egoísmo no século xvni, afirmou: "O que há a lamentar não é que os homens, no mundo de hoje, se ocupem demasiado do seu próprio bem ou interesses, pois não se ocupam o suficiente."

Tomados em conjunto, os dois últimos parágrafos mostram que a) é falso que todas as acções sejam egoístas e b) é falso que todas as acções sejam realizadas em função do interesse próprio. Quando lavamos os dentes, pelo menos em circunstâncias normais, não estamos a agir de forma egoísta; por conseguinte, nem todas as acções são egoístas. E quando fumamos cigarros não estamos a agir no nosso próprio interesse; portanto, nem todas as acções são realizadas por interesse próprio. Vale a pena notar que estes dois aspectos não dependem de exemplos de altruísmo; mesmo não existindo comportamentos altruístas, o egoísmo psicológico continuaria a ser falso.

Uma terceira confusão consiste na suposição comum, mas falsa, de que a preocupação pelo nosso próprio bem-estar é incompatível com uma genuína preocupação pelos outros. Sendo óbvio que todas as pessoas (ou quase todas) desejam o seu próprio bem-estar, poderia pensar-se que ninguém pode estar realmente preocupado com o bem-estar dos outros. Mas isto é uma dicotomia falsa. Não há qualquer inconsistência em desejar que todos, incluindo nós mesmos e os outros, sejam felizes. Na verdade, os nossos interesses podem por vezes entrar em conflito com os interesses de outras pessoas, e podemos então ter de fazer escolhas difíceis. Mas mesmo nestes casos optamos por vezes pelos interesses dos outros, especialmente quando os outros são nossos amigos ou familiares. É importante notar,

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no entanto, que a vida nem sempre é assim. Podemos por vezes ajudar os outros com custos mínimos, ou mesmo nenhuns, para nós próprios. Nessas circunstâncias nem mesmo o mais forte interesse próprio nos impede necessariamente de agir generosamente.

Uma vez esclarecidas estas confusões, parecem existir poucas razões para considerar o egoísmo psicológico uma teoria plausível. Pelo contrário, parece francamente implausível. Se observarmos com espírito aberto o comportamento das pessoas, verificamos que é motivado em grande parte pelo, interesse próprio, mas não de forma alguma no seu todo. Pode realmente existir uma fórmula simples, ainda por descobrir, que explique o comportamento humano na sua totalidade, mas o egoísmo psicológico não é essa fórmula.

5.5 O erro mais grave do egoísmo psicológico

A discussão anterior pode parecer implacavelmente negativa. Se o egoísmo psicológico é tão obviamente confuso, pode-se perguntar, e se não há argumentos plausíveis em sua defesa, porque razão tantas pessoas inteligentes se sentiram atraídas por essa ideia? É uma boa pergunta. Parte da resposta está na necessidade quase irresistível de simplicidade teórica. Outra parte reside na atracção pelo que parece uma atitude obstinada e deflacionista face às pretensões humanas. Mas há uma razão mais profunda: o egoísmo psicológico tem sido aceite por muitas pessoas porque o consideram irrefutável. E, num certo sentido, têm razão. Mas noutro sentido a imunidade da teoria à refutação é o seu defeito mais profundo.

Para explicar isto, permita-se-me que conte uma história (verdadeira) que pode parecer muito afastada do nosso tema. Há alguns anos, os membros de um grupo de investigadores liderados pelo Dr. David Rosenham, professor de Psicologia e Direito na Universidade de Stanford,

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conseguiram introduzir-se em vários hospitais psiquiátricos fazendo-se passar por doentes. Osfuncionários dos hospitais ignoravam que eles eram especialistas; pensavam que os investigadores eram doentes como os outros.

Os investigadores eram perfeitamente normais, seja qual for o significado do termo, mas a sua simples presença nos hospitais criou o pressuposto de que estavam mentalmente perturbados. Apesar de se comportarem com normalidade - nada fizeram para se fingir doentes - descobriram rapidamente que tudo quanto faziam era interpretado pelos médicos como sinal do problema mental que tinham inscrito nos formulários de admissão. Quando um deles era apanhado a tomar notas, eram anotadas nos seus relatórios as seguintes observações: "O paciente envolve-se num comportamento de escrita." Durante uma entrevista, um "paciente" confessou que apesar de ter maior proximidade com a mãe quando era criança se ligou mais ao pai à medida que cresceu - uma mudança perfeitamente normal. Mas isto foi interpretado como prova de "relações instáveis na infância". Mesmo os seus protestos e declarações de normalidade foram voltados contra eles. Um dos verdadeiros pacientes alertou-os: "Nunca digam a um médico que estão bem.

Ele não vai acreditar. Isso chama-se 'fuga para a saúde'. Digam-lhe que continuam doentes, mas sentem-se muito melhor. Isso chama-se perspicácia."

Do pessoal dos hospitais, ninguém deu pelo logro. Os verdadeiros pacientes, no entanto, perceberam tudo. Um deles disse a um investigador: "Você não é louco. Está a investigar o hospital." E de facto estava.

Porque razão os médicos não perceberam? A experiência revelou algo sobre o poder de um pressuposto dominante: uma vez aceite uma hipótese, tudo pode ser interpretado para a apoiar. Quando a ideia de que os pacientes falsos tinham perturbações mentais foi admitida como pressuposto dominante, os seus comportamentos não importa-

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vam. Fizessem o que fizessem, isso seria interpretado de modo a adaptar-se ao pressuposto. Mas o "sucesso" desta técnica não provou que a hipótese estivesse correcta. Era sinal, isso sim, de que algo correu mal.

A hipótese de que os pacientes falsos sofriam de perturbações mentais era defeituosa porque era insusceptível de ser testada. Se uma hipótese pretende dizer algo de factual sobre o mundo, então tem de haver condições imagináveis que possam verificá-la e outras que possam refutá-la. Caso contrário, não tem qualquer sentido. Se a hipótese for que todos os cisnes são brancos, por exemplo, podemos olhar para os cisnes para ver se há verdes, azuis ou de qualquer outra cor. Mesmo que não encontremos cisnes verdes ou azuis, sabemos como seria encontrar algum. A nossa conclusão deve basear-se nos resultados destas observações. (De facto, há cisnes pretos, pelo que a hipótese é falsa.) Suponha-se ainda que alguém afirma: "O Shaquille O'Neal não consegue entrar no meu Volkswagen." Sabemos o que isto significa, pois podemos imaginar as circunstâncias que tornariam a afirmação verdadeira e as que a tornariam falsa. Para testar a afirmação, levamos o carro até ao Sr. O'Neal, convidamo-lo a entrar, e vemos o que acontece. Se for de uma maneira, a afirmação é verdadeira; se for de outra, é falsa.

Deveria ter sido possível aos médicos examinar os pacientes falsos, olhar os resultados, e afirmar: "Esperem lá, nada há de errado com estas pessoas." (Recorde-se que os pacientes falsos agiram com normalidade; nada fizeram para fingir qualquer tipo de sintomas psiquiátricos.) Mas os médicos não estavam a agir dessa forma. Para eles, nada podia ser admitido contra a hipótese de que os "pacientes" estavam doentes.

O egoísmo psicológico comete o mesmo erro. Uma vez admitido o pressuposto dominante de que todo o comportamento visa o interesse próprio, pode-se interpretar tudo quanto ocorre para se adequar a esse pressuposto. Mas

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qual é o problema? Se não há qualquer padrão imaginável de comportamento ou motivação que possa contradizer a teoria - se nem mesmo podemos imaginar o que seria um acto não egoísta-, então a teoria é vazia.

Há, naturalmente, uma forma de contornar este problema, tanto para os médicos como para o egoísmo psicológico. Os médicos poderiam ter estabelecido uma forma razoável de distinguir entre pessoas mentalmente saudáveis e pessoas com doenças mentais; podiam, depois, ter observado os pacientes falsos para ver a que categoria pertenciam. De modo análogo, alguém tentado a acreditar na veracidade do egoísmo psicológico poderia estabelecer uma forma razoável de distinguir o comportamento motivado pelo interesse próprio do comportamento que ignora o interesse próprio e depois observar como as pessoas agem de facto para ver as categorias às quais se adequam. É claro que alguém que fizesse isto veria que as motivações das pessoas são das mais diversas. As pessoas agem por avidez, fúria, luxúria, amor e ódio. Fazem certas coisas porque estão assustadas, ciumentas, curiosas, felizes, preocupadas e inspiradas. Por vezes são egoístas e por vezes generosas. Por vezes são mesmo heróicas, como Raoul Wallenberg. Perante tudo isto, não se pode manter o pensamento de que há apenas um motivo. Se o egoísmo psicológico for defendido de forma susceptível de ser testada, os resultados do teste serão que a teoria é falsa.

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Capítulo 6

Egoísmo ético

Alcançar a sua própria felicidade é o objectivo moral mais elevado do ser humano.

AYN RAND, The Virtue of Selfishness (1961)

6.1 Teremos o dever de ajudar pessoas que morrem à fome?

Todos os anos milhões de pessoas morrem por subalimentação e problemas de saúde com ela relacionados. Um padrão comum entre as crianças de países pobres é a morte por desidratação causada por diarreias com origem na subnutrição. O director executivo do Fundo das Nações Unidas de Apoio às Crianças (UNICEF) estima que cerca de quinze mil crianças morram desta forma todos os dias. Isso equivale a 5 475 000 crianças por ano. Se

adicionarmos as que morrem de outras causas evitáveis, o número ultrapassa os dez milhões. Mesmo que esta estimativa seja demasiado alta, o número das que morrem é chocante.

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Para quem vive em países abastados, isto coloca um problema grave. Gastamos dinheiro connosco mesmos, não apenas nas necessidades da vida mas em luxos sem conta - em bons automóveis, roupas elegantes, aparelhagens, desportos, filmes, e assim por diante. No nosso país, mesmo pessoas com rendimentos modestos beneficiam de tais coisas. O problema é que podíamos abdicar dos nossos luxos e, em vez disso, doar o dinheiro para o combate à fome. O facto de não o fazermos revela que encaramos os nossos luxos como mais importantes do que as suas vidas.

Porque razão permitimos que morram pessoas à fome quando poderíamos salvá-las? Poucos de nós pensam de facto que os nossos luxos sejam assim tão importantes. A maioria de nós, se interrogados directamente, ficaria provavelmente um pouco embaraçada, e diria que provavelmente devíamos fazer mais para ajudar. A explicação para o facto de não o fazermos é que, pelo menos em parte, raramente pensamos no problema. Vivendo as nossas vidas confortáveis, estamos afastados do problema. As pessoas com fome estão a morrer a alguma distância de nós; não as vemos, e podemos mesmo evitar pensar nelas. Quando acontece pensarmos nelas, é apenas de forma abstracta, como estatísticas. Infelizmente para os que têm fome, as estatísticas não têm muito poder para nos comover.

Reagimos de forma diferente quando há uma "crise", quando uma grande massa de pessoas num dado local passa fome, como na Etiópia em 1984, ou na Somália em 1992. Nessa altura, é notícia de primeira página e os esforços de auxílio são mobilizados. Mas quando os necessitados estão dispersos, a situação não parece tão urgente. As 5 475 000 crianças têm a infelicidade de não estarem todas juntas em Chicago, por exemplo.

Mas, deixando de lado a questão sobre o motivo de nos comportarmos assim, qual é o nosso dever? O que devemos fazer? Podemos pensar nisto como a perspectiva de "senso comum" sobre a questão: a moralidade supõe que

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equilibremos os nossos próprios interesses com os interesses dos outros. E compreensível, naturalmente,

que olhemos pelos nossos próprios interesses, e ninguém pode ser acusado por atender às suas necessidades básicas. Mas ao mesmo tempo as necessidades dos outros também são importantes, e quando podemos ajudar os outros - especialmente quando isso não representa grande sacrifício para nós mesmos - devemos fazê-lo. Assim, se tivermos dez euros a mais, e se doá-los a uma agência de combate à fome puder ajudar a salvar uma criança, então a moralidade de senso comum diria que devemos dar o dinheiro.

Esta maneira de pensar implica um pressuposto geral sobre os nossos deveres morais: parte-se do princípio de que temos deveres morais para com as outras pessoas, e não apenas deveres que nós mesmos criamos, fazendo uma promessa ou contraindo uma dívida, por exemplo. Temos deveres "naturais" para com os outros simplesmente porque são pessoas que podem ser auxiliadas ou prejudicadas pelo que nós fazemos. Se uma dada acção favorecesse (ou prejudicasse) outras pessoas, isso seria uma razão para devermos (ou não devermos) realizar essa acção. O pressuposto de senso comum é que, do ponto de vista moral, os interesses das outras pessoas contam por si.

Mas o que para uma pessoa é senso comum é para outra uma ingénua banalidade. Alguns pensadores defenderam que não temos, de facto, quaisquer deveres "naturais" para com as outras pessoas. O egoísmo ético é a ideia de que cada pessoa tem a obrigação exclusiva de lutar pelos seus interesses. E diferente do egoísmo psicológico, uma teoria da natureza humana dedicada ao estudo de como as pessoas realmente se comportam. O egoísmo psicológico afirma que as pessoas de facto lutam pelos seus próprios interesses. O egoísmo ético, pelo contrário, é uma teoria normativa - isto é, uma teoria sobre como devemos comportar-nos. Independentemente de como nos comportamos, o egoísmo ético afirma que o nosso único dever é fazer o melhor para nós mesmos.

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É uma teoria que levanta desafios. Contradiz algumas das nossas crenças morais mais profundas -convicções que, em qualquer caso, a maior parte das pessoas tem - e não é fácil de refutar. Vamos examinar os argumentos mais importantes a favor e contra esta teoria. Se verificarmos que é verdadeira, terá naturalmente a maior importância. Mas mesmo que se revele falsa, há ainda assim muito que aprender com a sua análise, pois podemos alcançar uma melhor compreensão das razões pelas quais temos de facto obrigações para com os outros.

Mas antes de nos debruçarmos sobre os argumentos, devemos ser um pouco mais claros

sobre o que esta teoria diz ou não diz ao certo. Em primeiro lugar, o egoísmo ético não diz que devemos defender os nossos próprios interesses bem como os interesses dos outros. Isso seria uma perspectiva vulgar, de senso comum. O egoísmo ético é o ponto de vista segundo o qual o nosso único dever é promover os nossos próprios interesses. Para o egoísmo ético há apenas um princípio fundamental de conduta, o princípio do interesse próprio, e este princípio resume todos os nossos deveres e obrigações naturais.

No entanto, o egoísmo ético não diz que devemos evitar acções que ajudam os outros. Pode acontecer em várias circunstâncias que os seus interesses coincidam com os interesses dos outros, pelo que ao ajudar-se a si mesmo estaria, desejando-o ou não, a ajudá-los. Ou pode dar-se o caso de que o auxílio aos outros seja um meio eficaz para obtermos alguma vantagem para nós mesmos. O egoísmo ético não proíbe tais acções; na verdade, pode mesmo recomendá-las. A teoria insiste apenas que em tais casos o benefício para os outros não é o que torna a acção correcta. O que a torna correcta é, pelo contrário, o facto de ser realizada em proveito próprio.

Por fim, o egoísmo ético não pressupõe que ao lutarmos pelos nossos próprios interesses tenhamos sempre de fazer o que queremos, ou aquilo que nos dá maior prazer a curto

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prazo. Alguém pode querer beber em excesso, fumar cigarros, consumir drogas oudesperdiçar os melhores anos da sua vida nas corridas de automóveis. O egoísmo éticotorceria o nariz a tudo isto, independentemente do prazer momentâneo que possa trazer. O egoísmo ético afirma que uma pessoa deve fazer o que é de facto em seu próprio interesse a longo prazo. Sanciona o egoísmo, mas não sanciona a parvoíce.

6.2 Três argumentos a favor do egoísmo ético

Que argumentos podem ser apresentados para apoiar esta doutrina? A teoria é, infelizmente, mais vezes afirmada do que defendida - muitos dos seus defensores pensam que a sua verdade é evidente por si, não sendo necessários argumentos. Quando é defendida, três linhas de raciocínio são usadas com mais frequência.

O argumento de que o altruísmo se autoderrota. O primeiro argumento tem diversas variantes, cada uma delas sugerindo a mesma ideia geral:

- Cada um de nós está intimamente familiarizado com as suas próprias necessidades e desejos. Além disso, cada um de nós está na melhor posição para procurar efectivamente a realização desses desejos e necessidades. Acresce que só conhecemos os desejos e necessidades das outras pessoas de forma imperfeita, e não estamos bem colocados para as satisfazer. Logo, é razoável pensar que se nos propuséssemos ser "os guardiões dos nossos irmãos", iríamos com frequência confundir tudo e acabar por fazer mais mal do que bem;

- Acresce que a política de "cuidar dos outros" é uma intromissão ofensiva na privacidade das outras pes-

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soas; é essencialmente uma política baseada em metermo-nos na vida alheia;

- Tornar as outras pessoas o objecto da nossa "caridade" é degradante para elas; priva-as da sua dignidade e amor-próprio. A oferta de caridade diz, com efeito, que elas não são competentes para tratar de si mesmas; e a afirmação é auto-realizável. As pessoas deixam de ter confiança em si mesmas e tornam-se passivamente dependentes dos outros. Essa é a razão pela qual os beneficiários da "caridade" se mostram com tanta frequência ressentidos e não gratos.

Assim sendo, considera-se que a política de "cuidar dos outros" se autoderrota. Se queremos fazer o que é melhor para as pessoas, não devemos adoptar as chamadas políticas altruísticas de comportamento. Pelo contrário, se cada pessoa cuidar dos seus próprios interesses é mais provável que todos fiquem melhor. Como afirma Robert G. Olson no seu livro The Morality of Self-Interest (1965), "O indivíduo tem mais probabilidades de contribuir para o melhoramento social lutando racionalmente pelos seus próprios interesses de longo prazo". Ou, nas palavras de Alexander Pope,

E assim Deus e a Natureza formaram o quadro geral Ordenando que o amor de si e da sociedade seja igual.

E possível contestar este argumento num sem-número de aspectos. É claro que ninguém apoia a inépcia, a intromissão, ou que as pessoas sejam privadas do seu amor-próprio. Mas será isso que fazemos quando alimentamos crianças com fome? Uma criança esfomeada na Somália será realmente prejudicada quando nos "intrometemos" na "sua vida" ao fornecer-lhe alimentos? Parece pouco provável. Mas podemos deixar de lado este aspecto, pois,

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considerada enquanto argumento a favor do egoísmo ético, esta linha de pensamento tem umdefeito ainda mais grave.

O problema é que não é, de todo, um argumento a favor do egoísmo ético. O argumentoconclui que devemos adoptar determinadas políticas de comportamento; e à superfície

parecem políticas egoístas. No entanto, a razão pela qual se diz que devemos adoptar estaspolíticas é decididamente não egoísta. Diz-se que devemos adoptar essas políticas porquefazê-lo promoverá "o aperfeiçoamento da sociedade" - mas segundo o egoísmo ético issoé algo que não nos deve preocupar. Expresso de forma completa, com todas as cartas namesa, o argumento afirma o seguinte:

1) Devemos fazer o que melhor promover os interesses de todos;

2) A melhor forma de promover os interesses de todos é cada um de nós adoptar a políticade cuidar exclusivamente dos seus próprios interesses;

3) Logo, cada um de nós deve adoptar a política de cuidar exclusivamente dos seus própriosinteresses.

Se aceitamos este raciocínio, então não somos egoístas éticos. Mesmo que acabemos pornos comportar como egoístas, o nosso princípio fundamental é de beneficência - estamos afazer o que pensamos poder auxiliar todos, e não apenas o que pensamos nos irá beneficiar anós. Em vez de egoístas, acabamos por nos revelar altruístas com uma perspectiva peculiardo que de facto promove o bem-estar geral.

O argumento de Ayn Rand. Ayn Rand não é muito lida por filósofos, em grande parteporque as ideias principais associadas ao seu nome - que o capitalismo é um sistemaeconómico moralmente superior, e que a moralidade requer respeito absoluto pelos direitosdos indivíduos - são

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desenvolvidas de forma mais rigorosa por outros autores. Não obstante, foi uma figuracarismática que atraiu admiradores fiéis durante a sua vida e, hoje, duas décadas após a sua morte, a indústria Ayn Rand continua a fortalecer-se. Entre os autores do século xx, a ideia do egoísmo ético está provavelmente mais estreitamente associada a Ayn Rand que a qualquer outra pessoa.

Ayn Rand encarava a ética do "altruísmo" como uma ideia completamente destrutiva quer na sociedade como um todo, quer nas vidas dos indivíduos a ela devotados. O altruísmo conduz, na sua maneira de pensar, a uma negação do valor do indivíduo. Diz a uma pessoa: A tua vida é apenas algo que'pode ser sacrificado. "Se um ser humano aceita a ética do altruísmo", escreve ela, "a sua primeira preocupação não é como viver a sua vida, mas como sacrificá-la". Os que promovem a ética do altruísmo são mais que desprezíveis - são parasitas que, em vez de se esforçarem para erguer e manter as suas vidas, sugam a

queles que o fazem. Escreve ela:

Parasitas, vadios, saqueadores, bestas e rufiões não têm qualquer valor para um ser humano - nem pode [um ser humano] ganhar coisa alguma com o facto de viver numa sociedade adaptada às necessidades, exigências e protecção deles, uma sociedade que o trata a si como animal sacrificial e o penaliza pelas suas virtudes de forma a recompensá-/os pelos seus vícios, ou seja: uma sociedade baseada na ética do altruísmo.

Quando diz "sacrificar a sua própria vida" Rand não quer dizer algo tão dramático como morrer. A vida de uma pessoa é feita, em parte, de projectos empreendidos e de bens ganhos e criados. Assim, exigir a uma pessoa que abandone os seus projectos ou desista dos seus bens é um esforço para "sacrificar a sua vida".

Rand também insinua que há uma base metafísica para a ética egoísta. É a única ética que, de alguma forma, toma

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a sério a realidade da pessoa individual. Rand lamenta "até que ponto o altruísmo corrói a capacidade de os homens compreenderem [...] o valor de uma vida individual; isso revela um espírito do qual foi varrido a realidade de um ser humano".

Que fazer, então, das crianças com fome? Poderia argumentar-se que o próprio egoísmo ético "revela um espírito do qual foi varrido a realidade de um ser humano" - neste caso, o ser humano que está a morrer de fome. Mas Rand cita de forma aprovadora a resposta dada por um dos seus seguidores: "Quando, certa vez, Barbara Brandon foi questionada por um estudante sobre o que irá acontecer aos pobres, ela respondeu: 'Se você quer ajudá-los, não será impedido'."

Todas estas afirmações são, penso, parte de um só argumento que pode ser resumido desta forma:

1) Uma pessoa só tem uma vida para viver. Se valorizamos o indivíduo - isto é, se o indivíduo tem valor moral- então devemos concordar que a sua vida tem uma importância suprema. Afinal de contas, é só isso que temos e só isso que somos;

2) A ética do altruísmo encara a vida do indivíduo como algo que devemos estar prontos a sacrificar para o bem dos outros. Logo, a ética do altruísmo não toma a sério o valor do indivíduo humano;

3) O egoísmo ético, que permite a cada pessoa encarar a sua vida como tendo um valor fundamental, leva a sério o indivíduo humano - é, na realidade, a única filosofia que o

faz;

4) Logo, o egoísmo ético é a filosofia que devemos aceitar.

Um problema deste argumento, como o leitor poderá já ter notado, é pressupor que temos apenas duas opções: ou aceitamos a "ética do altruísmo" ou aceitamos o egoísmo

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ético. Faz-se então a escolha parecer óbvia ao retratar "a ética do altruísmo" como uma doutrina demente que apenas um idiota poderia aceitar - diz-se que a "ética do altruísmo" é a perspectiva segundo a qual os nossos próprios interesses não têm qualquer valor, pelo que devemos estar prontos a sacrificar-nos totalmente sempre que qualquer pessoa o peça. Se esta fosse a' alternativa, qualquer outra perspectiva, mesmo o egoísmo ético, pareceria boa por comparação.

Mas isso dificilmente pode considerar-se uma boa representação das escolhas. Aquilo a que chamámos a perspectiva de senso comum situa-se entre os dois extremos. Afirma que os nossos próprios interesses e os interesses dos outros são ambos importantes e devem ser sopesados. Por vezes, quando apoiamos os diferentes interesses, verificamos que devemos agir em função dos interesses dos outros; outras vezes, verificamos que devemos cuidar de nós mesmos. Portanto, mesmo rejeitando a visão extrema da "ética do altruísmo", daí não se entende que devemos aceitar a outra visão extrema do egoísmo ético, pois há um meio-termo disponível.

O egoísmo ético enquanto compatível com a moralidade de senso comum. A terceira linha de argumentação faz uma abordagem de tipo diferente. O egoísmo ético é habitualmente apresentado como uma filosofia moral revisionista, isto é, uma filosofia segundo a qual as nossas ideias morais de senso comum estão erradas e precisam ser alteradas. É possível, no entanto, interpretar o egoísmo ético de uma forma muito menos radical, como uma teoria que aceita a moralidade de senso comum e fornece uma explicação surpreendente dos seus fundamentos.

A interpretação menos radical afirma o seguinte: A moralidade comum consiste em obedecer a certas regras. Devemos evitar fazer mal aos outros, dizer a verdade, cumprir as nossas promessas, e assim por diante. À primeira vista, estes deveres parecem ter pouco em comum - são apenas

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um conjunto de regras separadas. No entanto, do ponto de vista teórico, podemos perguntar se não haverá uma unidade subjacente à mistura de diferentes deveres. Talvez exista um pequeno número de princípios fundamentais para explicar o resto, assim como na física há princípios básicos que unificam e explicam fenómenos diversificados. Do ponto de vista teórico, quanto mais pequeno o número de princípios básicos melhor. O ideal seria um princípio fundamental, a partir do qual derivasse tudo o resto. O egoísmo ético seria, então, a teoria segundo a qual todos estes deveres são em última instância derivados de um princípio fundamental de interesse próprio.

Entendido desta forma, o egoísmo ético não é uma doutrina assim tão radical. Não põe em causa a moralidade de senso comum; apenas tenta explicá-la e sistematizá-la. E consegue ser surpreendentemente bem sucedido. Pode fornecer explicações plausíveis dos deveres mencionados e mais ainda:

- O dever de não fazer mal aos outros: Se nos habituamos a fazer coisas prejudiciais aos outros, as pessoas não sentirão relutância em fazer coisas que nos prejudiquem. Seremos evitados e desprezados; os outros não quererão ser nossos amigos nem nos farão favores quando precisarmos. Se as nossas ofensas aos outros forem muito sérias, podemos até acabar na cadeia. Assim, evitar magoar os outros é algo que nos beneficia a nós mesmos;

- O dever de não mentir: Se mentirmos aos outros, sofreremos todos os efeitos* nefastos de uma má reputação. As pessoas vão desconfiar de nós e evitarem manter contactos connosco. Vamos precisar com frequência que as pessoas sejam sinceras connosco, mas dificilmente poderemos esperar que se sintam obrigadas a ser sinceras connosco se nós não fomos sinceros com elas. Assim, temos vantagens em não mentir;

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- O dever de cumprir as promessas: É no nosso próprio interesse entrar em acordos mutuamente benéficos com outras pessoas. Para beneficiar desses acordos, precisamos poder confiar em que elas vão cumprir a sua parte do contrato, precisamos de poder confiar que vão cumprir as promessas que nos fizeram. Mas dificilmente poderemos esperar que os outros cumpram as suas promessas para connosco se nós não mantemos as nossas para com eles. Logo, do ponto de vista do interesse próprio, devemos cumprir as nossas promessas.

Prosseguindo esta linha de raciocínio, Thomas Hobbes sugeriu que o princípio do egoísmo

ético conduz a nada mais nada menos que a Regra de Ouro: Devemos "ajudar os outros" porque se o fizermos será mais provável que eles "nos ajudem a nós".

Será que este argumento consegue estabelecer o egoísmo ético como uma teoria moral viável? Trata-se, na minha opinião pelo menos, da melhor tentativa para o fazer. Mas há dois problemas sérios com o argumento. Em primeiro lugar, não prova tudo o que precisa de provar. Na melhor das hipóteses, mostra apenas que na maior parte das vezes é benéfico para nós evitar fazer mal aos outros. Não mostra que isso é sempre vantajoso para nós. E não poderia fazê-lo, pois, apesar de poder ser usualmente vantajoso evitar fazer mal aos outros, por vezes não o é. Por vezes podemos tirar benefícios de tratar mal outra pessoa. Nesse caso, a obrigação de não fazer mal à outra pessoa não poderia ser deduzida dos princípios do egoísmo ético. Assim, parece que nem todas as nossas obrigações morais podem ser explicadas em termos de serem deriváveis do interesse próprio.

Mas, pondo de lado esse aspecto, há um problema ainda mais fundamental. Suponhamos que é verdade, por exemplo, que doar dinheiro para o combate à fome nos

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pode, de alguma forma, beneficiar. Não se segue daí que esta seja a única razão, ou mesmo a razão fundamental, pela qual fazer isso é bom. A razão fundamental poderia ser, por exemplo, ajudar as pessoas com fome. O facto de que fazer isso é também no nosso próprio interesse poderia ser apenas uma consideração secundária e menos importante. Assim, apesar de o egoísmo ético afirmar que o interesse próprio é a única razão pela qual devemos ajudar os outros, nada no argumento agora descrito apoia realmente isso.

6.3 Três argumentos contra o egoísmo ético

A filosofia moral está assombrada pelo egoísmo ético. Não é uma doutrina popular; os filósofos mais importantes rejeitaram-na frontalmente. Mas nunca esteve longe dos seus pensamentos. Apesar de nenhum pensador importante a ter defendido, quase todos sentiram a necessidade de explicar por que razão a rejeitavam, como se a possibilidade de essa doutrina poder estar correcta fosse uma presença constante, ameaçando asfixiar as outras ideias. À medida que eram debatidos os méritos das várias "refutações", os filósofos voltaram a ela uma e outra vez.

Curiosamente, os filósofos não prestaram muita atenção ao que poderíamos pensar que é o argumento mais óbvio contra o egoísmo ético, a saber, que iria justificar acções perversas - desde que, é claro, essas acções beneficiem a pessoa que as pratica. Eis alguns exemplos, tirados de vários jornais: Para aumentar os seus lucros, um farmacêutico aviou receitas para pacientes de cancro usando medicamentos diluídos. Um enfermeiro violou duas pacien

tes enquanto estavam inconscientes. Um paramédico deu a dois pacientes de urgências injecções com água esterilizada em vez de morfina, de modo a poder vender a morfina. Um bebé ingeriu ácido dado pelos pais que assim queriam forjar motivos para um processo criminal, alegando que a papa

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do bebé estava contaminada. Uma menina de treze anos foi raptada por um vizinho, algemada e mantida num abrigo subterrâneo durante 181 dias, durante os quais foi submetida a abusos sexuais.

Suponhamos que, ao fazer estas coisas, alguém podia de facto obter algum benefício para si mesmo. Isso implica, naturalmente, evitar ser apanhado. Mas, podendo escapar às malhas da lei, não teria o egoísmo ético de afirmar que tais acções são permissíveis? Isto parece suficiente, só por si, para desacreditar a doutrina. Penso que é uma acusação válida; contudo, poderia dizer-se que há uma petição de princípio neste argumento contra o egoísmo ético, porque ao afirmar que estas acções são malévolas, estamos a apelar para uma concepção não egoísta de maldade. Podemos, pois, perguntar se não haverá qualquer outro problema com o egoísmo ético, face ao qual não se incorra em petição de princípio.

Assim, alguns filósofos tentaram mostrar que há problemas lógicos mais profundos com o egoísmo ético. Os argumentos que se seguem são típicos das refutações que eles propuseram.

O argumento de que o egoísmo ético não pode resolver conflitos de interesse. No seu livro The Moral Point of View (1958), Kurt Baier defende que o egoísmo ético não pode estar correcto porque não pode oferecer soluções para conflitos de interesses. Só precisamos de regras morais, afirma, porque os nossos interesses por vezes entram em conflito - se nunca se opusessem, então não haveria problemas a resolver e por isso não haveria necessidade do tipo de orientação que a moralidade oferece. Mas o egoísmo ético não ajuda a resolver conflitos de interesses; apenas os exacerba. Baier defende esta ideia por meio de um exemplo curioso:

Suponhamos que B e K são candidatos à presidência num certo país e suponhamos que serve os interesses de cada candidato ser eleito, mas apenas um pode consegui-lo. Serviria

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então os interesses de B e seria contra os interesses de K se B fosse eleito, e vice-versa, e portanto serviria os interesses de B mas seria contra os interesses de K se K fosse derrotado, e vice-versa. Mas

disto seguir-se-ia que B deveria derrotar K, que é errado B não o fazer, que B não "fez o seu dever" até derrotar K; e vice-versa. De modo análogo, K, sabendo que a sua própria derrota serve os interesses de B e, por isso, prevendo as tentativas de B para a assegurar, deve envidar esforços para malograr os intentos de B. Seria errado para si não o fazer. "Não teria cumprido o seu dever" até ter a certeza de ter vencido B [...]

Isto é obviamente absurdo. Pois a moralidade é concebida justamente para se aplicar a tais casos, isto é, nos casos em que há conflito de interesses. Mas se o ponto de vista da moralidade fosse o do interesse próprio, então nunca poderia haver soluções morais para conflitos de interesses.

Será que este argumento prova que o egoísmo ético é inaceitável? Prova, se a concepção de moralidade para a qual faz apelo for aceite. O argumento dá por adquirido que uma moralidade adequada deve fornecer soluções para conflitos de interesses de tal modo que todos possam viver juntos de forma harmoniosa. O conflito entre B e K, por exemplo, deveria ser resolvido de tal modo que nunca mais estivessem em desavença um com o outro.(Nunca mais teriam o dever de fazer algo que o outro tem o dever de impedir.) O egoísmoético não faz isso, e se pensamos que uma teoria ética devia fazê-lo, então o egoísmo éticonão nos parecerá aceitável.

Mas um defensor do egoísmo ético poderia responder que não aceita esta concepção demoralidade. Para ele, a vida é essencialmente uma longa série de conflitos na qual cadapessoa luta para triunfar; e o princípio que ele aceita - o princípio do egoísmo ético - concede a cada pessoa o direito de fazer o seu melhor para vencer. Nesta perspectiva, o moralista não é como um juiz no tribunal, a resolver disputas. É, ao invés, como o árbitro do boxe, que insta cada um dos lutadores a darem o seu melhor. Por isso, o

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conflito entre B e K será "solucionado" não pela aplicação de um princípio ético mas pela vitória de um deles na luta. O egoísta não fica embaraçado com este facto. Pelo contrário, pensa que é apenas uma perspectiva realista da natureza das coisas.

O argumento de que o egoísmo ético é inconsistente no plano lógico. Alguns filósofos, entre eles Baier, dirigiram ao egoísmo ético uma acusação ainda mais grave. Argumentaram que conduz a contradições lógicas. Se isto é verdade, então o egoísmo ético é de facto uma teoria errada, pois nenhuma teoria pode ser verdadeira se for autocontr aditória.

Considere-se de novo B e K. Tal como Baier explica a dificuldade de B e K, é do interesse de B matar K, e é obviamente no interesse de K evitá-lo. Mas, afirma Baier,

se K impedir B de o liquidar, o seu acto tem de ser classificado simultaneamente como errado e não errado - errado porque impede B de fazer o que deve fazer, o seu dever, sendo errado B não o fazer; e não errado porque é o que K deve fazer, o seu dever, sendo errado K não o fazer. Mas um mesmo acto não pode ser (logicamente) ao mesmo tempo errado e não errado no plano moral.

Vejamos: será que este argumento prova que o egoísmo ético é inaceitável? À primeira vista parece persuasivo. No entanto, é um argumento complicado, pelo que precisamos de o delinear identificando cada passo individualmente. Ficaremos depois numa posição mais vantajosa para o avaliar. Explicitado de forma completa, tem o aspecto seguinte:

1) Suponha-se que o dever de cada pessoa é fazer o que melhor defende os seus interesses;

2) Liquidar K, é o melhor para os interesses de B;

3) Impedir B de o liquidar, é o melhor para os interesses de K;

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4) Logo, o dever de B é liquidar K, e o dever de K é impedir B de o fazer;

5) É errado impedir^alguém de cumprir o seu dever;

6) Logo, é errado para K impedir B de o liquidar;

7) Logo, é simultaneamente errado e não errado para K impedir B de o liquidar;

8) Mas nenhum acto pode ser ao mesmo tempo errado e não errado; isso é uma autocontradição;

9) Logo, o pressuposto do qual partimos -que é o dever de cada pessoa fazer o que melhor defende os seus interesses - não pode ser verdadeiro.

Quando se exprime o argumento desta maneira podemos ver o seu defeito oculto. A contradição lógica - segundo a qual é ao mesmo tempo errado e não errado para K impedir B de o liquidar - não se segue pura e simplesmente dos princípios do egoísmo ético.Segue-se desses princípios juntamente com a premissa adicional expressa no ponto 5, a saber, que "é errado impedir alguém de cumprir o seu dever". Não somos, pois, obrigados pela lógica do argumento a rejeitar o egoísmo ético. Podíamos, pelo contrário, rejeitar simplesmente esta premissa adicional, e a contradição seria evitada. Isso seria certamente o que o egoísta ético faria, pois ele nunca iria dizer, sem restrições, que é sempre errado impedir alguém de cumprir o seu dever. Ele diria, ao invés, que saber se devemos impedir alguém de cumprir o seu dever depende inteiramente de saber se daí advém alguma vantagem para nós. Pensemos ou não que esta é uma perspectiva correcta, ela é, pelo menos, uma perspectiva consistente, e portanto esta tentativa de condenar o egoíst

a por autocontradição fracassa.

O argumento de que o egoísmo ético é inaceitavelmente arbitrário. Chegamos finalmente ao argumento que me parece chegar mais perto de uma refutação imediata completa doegoísmo ético. É também o argumento mais

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interessante, porque permite vislumbrar o motivo pelo qual os interesses das outras pessoasdevem ter importância para nós. Mas, antes de apresentar este argumento, precisamosatentar brevemente num aspecto geral dos valores morais. Assim, ponhamos de lado o egoísmo ético por um momento para reflectir neste assunto com ele relacionado.

Há toda uma família de perspectivas morais que têm em comum o seguinte: Todas implicam dividir as pessoas em grupos e em afirmar que os interesses de alguns grupos têm mais importância do que os de outros. Õ racismo é o exemplo mais óbvio; o racismo divide as pessoas em grupos segundo a raça e concede mais importância aos interesses de uma raça do que aos outros. O resultado prático é que os membros de uma raça são melhor tratados do que os outros. O anti-semitismo funciona da mesma forma, e o nacionalismo também. As pessoas influenciadas por estas perspectivas pensam, com efeito, que "a minha raça é mais importante", "os que acreditam na minha religião são mais importantes" ou "o meu país é mais importante", e assim por diante.

Podem tais pontos de vista ser defendidos? As pessoas que aceitam estas perspectivas não estão, normalmente, muito interessadas em argumentações - os racistas, por exemplo, raramente tentam apresentar bases racionais para as suas convicções. Mas suponhamos que o faziam. O que poderiam dizer?

Há um princípio geral que barra o caminho a uma tal defesa, a saber: Só podemos justificar o tratamento diferenciado das pessoas se pudermos mostrar que há uma diferença factual entre elas que seja relevante para justificar a diferença de tratamento. Por exemplo, se uma pessoa é aceite numa faculdade de Direito e outra é rejeitada, isto poderia ser justificado sublinhando que a primeira se formou com distinção na escola secundária e teve bons resultados no teste de admissão, enquanto a segunda abandonou a escola e não fez o teste. No entanto, se ambas as

pessoas completaram os estudos secundários com distinção e tiveram bons resultados no exame de admissão - se em todos os aspectos relevantes são igualmente qualificadas -, então é meramente arbitrário admitir uma e não a outra.

Devemos, pois, perguntar o seguinte: Pode um racista apontar uma diferença entre, digamos, brancos e negros, que possa justificar tratá-los de maneira diferente? Os racistas

tentaram por vezes fazer isso descrevendo os negros como estúpidos, falhos de ambição, e outras coisas que tais. Se isso fosse verdade, poderia justificar-se tratá-los de forma diferente, pelo menos em algumas circunstâncias. (Este é o propósito de fundo dos estereótipos racistas, oferecer as "diferenças relevantes" necessárias para justificar as diferenças de tratamento.) Mas naturalmente isso não é verdade, e de facto não há tais diferenças genéricas entre as raças. Portanto, o racismo é uma doutrina arbitrária, pois advoga o tratamento diferenciado das pessoas apesar de não existirem entre elas diferenças que o justifique.

O egoísmo ético é uma teoria moral do mesmo género. Advoga que cada pessoa divida o mundo em duas categorias de pessoas - nós e todos os outros - e que encare os interesses dos do primeiro grupo como mais importantes do que os interesses dos do segundo grupo. Mas, pode cada um de nós perguntar, qual é afinal a diferença entre mim e todos os outros que justifica colocar-me a mim mesmo nesta categoria especial? Serei mais inteligente? Gozarei mais a minha vida? Serão as minhas realizações mais notáveis? Tereinecessidades e capacidades assim tão diferentes das necessidades e capacidades dos outros?Em resumo, o que me torna tão especial? Ao não fornecer uma resposta, o egoísmo éticorevela-se uma doutrina arbitrária, no mesmo sentido em que o racismo é arbitrário. Além deexplicar a razão pela qual o egoísmo ético é inaceitável, isto lança também alguma luz sobrea questão de saber por que devemos importar-nos com os outros.

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Devemos importar-nos com os interesses das outras pessoas pela mesma razão que nos importamos com os nossos; pois os seus desejos e necessidades são comparáveis aos nossos. Consideremos, uma última vez, as crianças a morrer à fome que poderíamos alimentar desistindo de alguns dos nossos luxos. Porque razão deveríamos preocupar-nos com elas? Preocupamo-nos connosco mesmos, é claro - se estivéssemos a morrer à fome faríamos quase tudo para obter comida. Mas qual é a diferença entre nós e eles? A fome afecta-os menos? Serão de alguma forma menos merecedores do que nós? Se não conseguimos descobrir qualquer diferença relevante entre nós e eles, devemos então admitir que se as nossas necessidades devem ser satisfeitas, então também as suas o devem ser. É esta tomada de consciência, de que estamos em plano de igualdade uns com os outros, que constitui a razão mais profunda pela qual a nossa moralidade deve incluir algum reconhecimento das necessidades dos outros, e a razão pela qual, portanto, o egoísmo ético fracassa enquanto teoria moral.

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7

A abordagem utilitarista

Tendo em conta a nossa perspectiva actual, é surpreendente que a ética cristã tenha aceitado ao longo dos séculos, quase de forma unânime, a doutrina sentenciosa de que "o fim não justifica os meios". Temos de perguntar, agora, "se o fim não justifica os meios, o que os justifica?" A resposta é, obviamente, "Nada!".

JOSEPH FLETCHER, Moral Responsibility (1967)

7.1 A revolução na ética

Os filósofos gostam de pensar que as suas ideias podem mudar o mundo. Geralmente, trata-se de uma vã esperança: escrevem livros que são lidos por pensadores como eles, enquanto o resto da humanidade prossegue a sua vida, indiferente. Algumas vezes, uma teoria filosófica pode, no entanto, alterar a forma como as pessoas pensam. O utilitarismo, uma teoria proposta por David Hume (1711-1776) mas cuja formulação definitiva coube a Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), é um desses casos.

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A ABORDAGEM UTILITARISTA

Os finais dos séculos xvm e xix produziram uma surpreendente série de mudanças e tumultos sociais. O moderno Estado-nação começou a emergir na sequência da Revolução Francesa e da derrocada do Império napoleónico; as revoluções de 1848 mostraram a persistência do poder das novas ideias de "liberdade, igualdade e fraternidade"; na América, foi criado um país novo com um tipo novo de Constituição, e a sua guerra civil sangrenta acabaria por pôr fim, finalmente, à escravatura na civilização ocidental; entretanto, a Revolução Industrial dava origem a uma completa reestruturação da sociedade.

Não é de surpreender que no meio de toda esta mudança as pessoas pudessem começar a pensar de forma diferente sobre a ética. As velhas maneiras de pensar eram colocadas em causa, abrindo-se ao debate. Contra este pano de fundo, a argumentação de Bentham para uma nova concepção de moralidade teve uma poderosa influência. A moralidade, defendia Bentham, não é uma questão de agradar a Deus, nem uma questão de fidelidade a regras abstractas. A moralidade é apenas um esforço para trazer a este mundo tanta felicidade quanto possível.

Bentham defendia que há um princípio moral essencial, a saber, "o princípio da utilidade". Este princípio requer que, sempre que temos a possibilidade de escolher entre acções ou

políticas sociais alternativas, escolhamos aquela que, no seu todo, tem melhores consequências para todos os envolvidos. Ou, como ele disse no livro Princípios da Moral e da Legislação, publicado no ano da Revolução Fran-

cesa:

Pelo princípio de utilidade designa-se aquele princípio pelo qual todas as acções se aprovam ou desaprovam em função da tendência que pareçam ter para aumentar ou diminuir a felicidade de quem tem os seus interesses em causa; ou, o que é a mesma coisa dita por outras palavras, para promover ou opor-se à felicidade.

Bentham era líder de um grupo de filósofos radicais cujo objectivo era reformar as leis e as instituições de Inglaterra segundo as linhas utilitaristas. Um dos seus seguidores era James Mill, o distinto filósofo, historiador e economista escocês. O filho de James Mill, John Stuart Mill, viria a tornar-se o principal defensor da teoria moral utilitarista na geração seguinte, pelo que o movimento benthamista não perdeu força alguma mesmo depois da morte do seu fundador.

Bentham teve a felicidade de ter estes discípulos. A arguição de John Stuart Mill era, no mínimo, ainda mais elegante e persuasiva que a do mestre. No seu pequeno livro Utilitarismo (1861), Mill apresenta a ideia principal da teoria da seguinte maneira. Primeiro, imaginamos a possibilidade de um determinado estado de coisas que gostaríamos de ver concretizado - um estado de coisas no qual todas as pessoas sejam tão felizes e abastadas quanto possível:

De acordo com o princípio da maior felicidade [...] o fim último, relativamente ao qual e em função do qual todas as outras coisas são desejáveis (quer consideremos o nosso próprio bem quer o bem de outras pessoas), é uma existência tanto quanto possível isenta de dor, e tão rica quanto possível de prazeres.

A regra fundamental da moralidade pode, pois, ser enunciada de forma simples. É agir de modo a realizar este estado de coisas, na medida em que seja possível:

Sendo este, segundo a opinião utilitarista, o fim da acção humana, é também necessariamente o padrão da moralidade, que pode por isso ser definido, como as regras e preceitos da conduta humana, pela observância dos quais uma existência como a descrita pode ser, na máxima extensão possível, garantida a toda a Humanidade, e não apenas a ela, mas, tanto quanto a natureza das coisas o permite, a todas as criaturas sencientes.

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Ao decidir o que fazer, devemos, pois, perguntar qual o curso de acção que irá promover a maior felicidade para todos os que serão afectados pelos nossos actos. A moralidade exige que façamos o que é melhor desse ponto de vista.

À primeira vista, isto pode não parecer uma ideia particularmente radical; de facto, pode parecer um truísmo suave. Quem poderia contestar a proposição de que devemos opor-nos ao sofrimento e promover a felicidade? No entanto, Bentham e Mill estavam, à sua maneira, a liderar uma revolução tão radical quanto qualquer uma das duas outras grandes revoluções intelectuais do século xix, as de Marx e Darwin. Para entender o radicalismo do princípio de utilidade temos de considerar o que deixa de fora da sua representação da moralidade: são abandonadas quaisquer referências a Deus ou a regras morais abstractas "estabelecidas nos céus". A moralidade deixa de ser entendida como fidelidade a um tipo de código legado pela divindade ou a um conjunto de regras inflexíveis. O objectivo declarado da moralidade é a felicidade dos seres deste mundo, e nada mais; e é-nos permitido - ou mesmo exigido - fazer o que for necessário para promover essa felicidade. Isso era, naquele tempo, uma ideia revolucionária.

Além de filósofos, como referi, os utilitaristas eram reformadores sociais. Pretendiam que a sua doutrina não tivesse apenas efeitos no pensamento mas também na prática. Para ilustrar isto, vamos examinar brevemente as implicações da sua filosofia em duas questões práticas bastante diferentes: a eutanásia e o tratamento de animais não-humanos. Estas matérias não esgotam, de forma alguma, as aplicações práticas do utilitarismo; nem são necessariamente as questões que os utilitaristas considerariam mais urgentes. Mas dão, de facto, uma boa indicação do tipo de abordagem característica do utilita-

rismo.

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A ABORDAGEM UTILITARISTA

7.2 Primeiro exemplo: eutanásia

Matthew Donnelly era um físico que trabalhou com raios X durante trinta anos. Talvez

devido à exposição excessiva à radiação, contraiu cancro e perdeu parte da sua maxila, o lábio superior, o nariz, a mão esquerda e ainda dois dedos da mão direita. Além disso, ficou cego. Os médicos do Sr. Donnelly disseram-lhe que tinha cerca de um ano de vida, mas ele decidiu que não queria continuar a viver em tal estado. Sentia dores permanentes. Um cronista afirmou que "nos piores momentos, deitado na cama, de dentes cerrados, viam-se gotas de suor a correr-lhe pela fronte". Sabendo que ia morrer de qualquer das maneiras, e desejando escapar à sua desgraça, Donnelly pediu aos seus três irmãos para o matarem. Dois recusaram, mas o último não. O irmão mais novo, Harold Donnelly, de 36 anos, levou para o hospital uma pistola de calibre 30 e matou Matthew.

Isto é, infelizmente, uma história verdadeira, e levanta naturalmente a questão de saber se Harold Donnely fez mal. Por um lado, podemos pensar que foi motivado por sentimentos nobres; amava o irmão e apenas desejava libertá-lo do sofrimento. Além disso, Matthew pedira para morrer. Tudo isto clama por um juízo indulgente. No entanto, segundo a tradição moral dominante da nossa sociedade, o que Harold Donnelly fez é inaceitável.

A tradição moral dominante da nossa sociedade é, naturalmente, a tradição cristã. O cristianismo defende que a vida humana é uma dádiva de Deus, pelo que só Deus pode decidir quando acabará. A Igreja antiga proibia todo o tipo de homicídio, pois acreditava que os ensinamentos de Jesus neste assunto não permitiam excepções à regra. Mais tarde, foram admitidas algumas excepções, sobretudo para permitir a pena capital e o acto de matar em situação de guerra. Mas outros tipos de morte, nomeadamente o suicídio e a eutanásia, continuaram proibidos. Para resumir a doutrina da Igreja, os teólogos formularam uma

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regra afirmando que o homicídio intencional de pessoas inocentes é sempre errado. Esta concepção moldou, mais do que qualquer outra ideia, por si só, as atitudes ocidentais acerca da moralidade e do acto de matar. É por isso que nos sentimos tão relutantes em desculpar Harold Donnely, mesmo que ele possa ter agido movido por sentimentos nobres. Ele matou intencionalmente uma pessoa inocente; logo, segundo a nossa tradição moral, o que fez está errado.

O utilitarismo faz uma abordagem muito diferente. Levar-nos-ia a perguntar: tendo em conta as alternativas ao dispor de Harold Donnelly, qual delas teria as melhores consequências globais? Qual acção produziria o maior equilíbrio entre felicidade e infelicidade para

todos os envolvidos? A pessoa mais atingida seria, é claro, o próprio Matthew Donnely. Se Harold não o matar, continuará a viver, talvez durante mais um ano, cego, mutilado e em dor permanente. Quanta infelicidade implica isso? É difícil dizer ao certo; mas o testemunho do próprio Matthew Donnelly é que se sentia tão infeliz nestas condições que preferia a morte. Matá-lo ofereceria uma fuga a esse sofrimento. Logo, os utilitaristas concluem que a eutanásia pode, num caso como este, ser moralmente correcta.

Apesar de este tipo de argumento ser muito diferente daquilo que encontramos na tradição cristã - como disse antes, não depende de concepções teológicas e não dá lugar a "regras" inflexíveis -, os utilitaristas clássicos não pensavam estar a advogar uma filosofia ateia ou anti-religiosa. Bentham afirma que a religião iria aprovar, e não condenar, o ponto de vista utilitarista se os seus apoiantes levassem a sério a sua ideia de Deus como criador benevolente. Escreve Bentham:

Os ditames da religião coincidiriam, em todos os casos, com os da utilidade, se o Ser, que é objecto da religião, fosse universalmente concebido como tão benevolente que é, supos-

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A ABORDAGEM UTILITARISTA

tamente, sábio e poderoso [...] Mas entre os devotos da religião (entre os quais a multifacetada fraternidade dos cristãos é apenas uma pequena parte) parece haver poucos (não direi quão poucos) verdadeiros crentes na sua benevolência. Chamam-lhe benevolente em palavras, mas não querem com isso dizer que o seja na realidade.

A moralidade da morte misericordiosa pode ser um exemplo relevante. Bentham poderia perguntar como pode um Deus benevolente proibir a morte de Matthew Donnelly. Se alguém dissesse que Deus é bondoso mas exige que o Sr. Donnelly sofra durante mais um ano antes de morrer, isto seria dizer exactamente o que Bentham afirmou com a frase "Chamam-lhe benevolente em palavras, mas não querem com isso dizer que o seja na realidade".

No entanto, a maioria das pessoas religiosas não concordam com Bentham, e a nossa tradição moral, bem como a nossa tradição legal, evoluíram sob influência do cristianismo. A eutanásia é ilegal em todos os países ocidentais com excepção da Holanda. Nos Estados Unidos é simplesmente considerada homicídio, e Harold Donnelly foi por isso devidamente preso e acusado. (Não sei o que aconteceu em tribunal, apesar de ser comum em tais casos o arguido ser considerado culpado de um crime menor e condenado a uma pena mais leve.) O que diria o utilitarismo sobre isto? Se, na perspectiva utilitarista, a eutanásia é

moralmente aceitável, deveria também tornar-se legal?

Esta questão está ligada a outra, mais geral, sobre qual deveria ser a finalidade da lei. Bentham estudou Direito, e concebia o princípio de utilidade como um guia para as pessoas comuns e os legisladores tomarem decisões morais. A finalidade da lei é a mesma da moralidade: deve promover o bem-estar de todos os cidadãos. Bentham considerava óbvio que se a lei deve servir este propósito, não deve restringir a liberdade dos cidadãos mais do que o

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necessário. Em particular, nenhum tipo de actividade deve ser proibido, a menos que, ao realizá-lo, uma pessoa prejudique os outros. Bentham opunha-se, por exemplo, a leis regulando a conduta sexual "consentida entre adultos", porque esta conduta não prejudica terceiros, e porque tais leis diminuem a felicidade em vez de a aumentar. Mas foi Mill querft deu a este princípio a sua expressão mais eloquente, quando escreveu no seu ensaio Sobre a Liberdade (1859):

O único fim para a realização do qual a humanidade está autorizada, individual e colectivamente, a interferir com a liberdade de acção de qualquer um dos seus membros, é a autodefesa. O único propósito para a realização do qual o poder deve ser devidamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é prevenir que seja feito mal a outros. O seu próprio bem, físico ou mofai, não é garantia suficiente [...] Sobre si mesmo, sobre o seu corpo e espírito, o indivíduo é soberano.

Desta forma, para os utilitaristas clássicos, as leis proibindo a eutanásia não são apenas contrárias ao bem-estar geral, são igualmente restrições injustificáveis sobre o direito das pessoas de controlar as suas próprias vidas. Quando Harold Donnelly matou o seu irmão, estava a ajudá-lo a pôr termo à sua vida de uma maneira que ele tinha escolhido. Não foi feito mal algum a ninguém mais, e por isso não dizia respeito a mais ninguém. A maioria dos americanos parece concordar com este ponto de vista, pelo menos quando é para eles uma questão prática. Num estudo realizado em 2000 pelos National Institutes of Health, 60% dos doentes terminais considerou que a eutanásia, ou o suicídio assistido, deveria estar disponível quando solicitada. Em coerência com a sua filosofia, diz-se que o próprio

Bentham solicitou a eutanásia nos seus últimos dias, embora não saibamos se o pedido foi satisfeito.

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A ABORDAGEM UTILITARISTA

7.3 Segundo exemplo: os animais não-humanos

O tratamento dos seres não-humanos não tem sido tradicionalmente encarado como uma questão moral de grande importância. A tradição cristã afirma que só o ser humano é feito à imagem de Deus e que os meros animais nem mesmo têm alma. Assim, a ordem natural das coisas permite aos seres humanos usar os animais para qualquer propósito que entendam. São Tomás de Aquino resumiu a perspectiva tradicional quando escreveu o seguinte:

Desta forma se refuta o erro daqueles que afirmaram ser pecaminoso para o Homem matar animais irracionais: pois, pela providência divina, eles são destinados na ordem natural das coisas para o uso do Homem. Assim, não é errado para o Homem fazer uso deles, quer matando-os quer de qualquer outra forma.

Mas não será errado ser cruel para os animais? Tomás de Aquino aceita que é, mas afirma que a razão disso tem que ver com o bem-estar do ser humano, e não com o bem-estar dos animais em si:

Se alguma passagem das Sagradas Escrituras parece proibir-nos a crueldade para com os animais irracionais, por exemplo, matar um pássaro com as suas crias, isto é assim ou para afastar os pensamentos do Homem da crueldade para com outros homens, por receio de que sendo cruel para os animais uma pessoa se torne cruel para os seres humanos; ou porque o mal feito a um animal conduz a danos temporais no Homem, para quem faz a acção ou para outro.

As pessoas e os animais estão, portanto, em categorias morais separadas. Estritamente falando, os animais não têm qualquer posição moral própria. Temos liberdade para os tratar de qualquer maneira que nos pareça vantajosa.

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Quando é formulada de forma tão crua, a doutrina tradicional pode deixar-nos um pouco inquietos: parece bastante extrema na sua falta de consideração pelos animais, muitos dos quais são, afinal, criaturas sensíveis e inteligentes. No entanto, basta apenas um pouco de reflexão para verificar até que ponto a nossa conduta é efectivamente guiada por esta doutrina. Comemos animais; usamo-los como objecto de experiências nos laboratórios;

usamos as suas peles em roupas e as suas cabeças como adornos de parede; fazemos deles objecto de divertimento em jardins zoológicos e em touradas; e há, além disso, um desporto muito popular que consiste em seguir-lhes a pista e matá-los apenas por divertimento.

Se nos sentimos incomodados com a "justificação" teológica destas práticas, os filósofos ocidentais ofereceram-nos grande abundância de justificações seculares. Diz-se várias coisas: que os animais não são racionais, que carecem da capacidade de falar, ou, simplesmente, que não são humanos - e todas estas afirmações são consideradas razões pelas quais os seus interesses estão fora da esfera de consideração moral.

Os utilitaristas, no entanto, não aceitariam nada disto. Na sua perspectiva, o que importa não é se um indivíduo tem uma alma, é racional, ou qualquer outra coisa. O que importa é saber se é capaz de ter experiência da felicidade e da infelicidade, do prazer e da dor. Se um indivíduo pode sofrer, então temos o dever de tomar isso em conta quando decidimos o que fazer, mesmo que o indivíduo em questão não seja humano. De facto, Bentham defende que saber se o indivíduo é humano ou não-humano é tão irrelevante como saber se é negro ou branco. Escreve Bentham:

Poderá chegar o dia em que o resto da criação animal adquira esses direitos que nunca deveriam ter-lhes sido sonegados pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano seja

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A ABORDAGEM UTILITARISTA

abandonado sem remédio ao capricho de quem o faça sofrer. Poderá chegar o dia no qual seja reconhecido que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser sensível à mesma sorte. Que outra coisa deveria traçar a fronteira? Será, talvez, a faculdade racional, ou a capacidade discursiva? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais, e bem mais sociáveis, do que um bebé com um dia, uma semana ou mesmo um mês. Mas suponhamos que não era assim; de que serviria? A questão não é saber se podem usar a razão ou se podem falar mas antes se podem sofrer.

Uma vez que tanto os seres humanos como os não-humanos podem sofrer, temos iguais razões para não maltratar qualquer deles. Se um ser humano é torturado, porque razão é isso errado? Porque ele sofre. Por analogia, se um ser não-humano é torturado, também sofre, e por isso é igualmente errado e pela mesma razão. Para Bentham e Mill, esta linha de raciocínio era decisiva. Humanos e não-humanos têm igual direito à consideração moral.

No entanto, esta perspectiva pode parecer tão extrema, na direcção oposta, como a perspectiva tradicional que não concede aos animais qualquer lugar independente no plano da moralidade. Devem os animais ser de facto encarados como iguais aos seres hum

anos? Em alguns aspectos, Bentham e Mill pensavam que sim, mas tiveram o cuidado de sublinhar que isso não significa que animais e humanos tenham de ser sempre tratados da mesma maneira. Há diferenças factuais entre eles que com frequência justificam diferenças de tratamento. Por exemplo, uma vez que os seres humanos têm capacidades intelectuais que faltam aos animais, são capazes de sentir prazer em coisas que os seres não-humanos são incapazes de fruir - os seres humanos podem fazer matemática, apreciar literatura, e assim por diante. De modo análogo, as suas capacidades supe-

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riores podem torná-los capazes de frustrações e desapontamentos de que os outros animais não podem ter experiência. Por isso, o nosso dever de promover a felicidade implica o dever de promover esses prazeres especiais para eles, bem como de prevenir qualquer tipo de infelicidade à qual são vulneráveis. Ao mesmo tempo, no entanto, na medida em que o bem-estar dos outros animais é afectado pela nossa conduta, temos o dever moral estrito de tomar isso em conta, contando o seu sofrimento de modo igual ao de um sofrimento semelhante de que um ser humano tenha experiência.

Os utilitaristas contemporâneos têm por vezes resistido a este aspecto da doutrina clássica, e isso não é surpreendente. O nosso "direito" de matar, fazer experiências ou usar os animais de outras formas que queiramos parece à maioria de nós tão óbvio que é difícil acreditar que estamos realmente a comportar-nos tão mal como Bentham e Mill insinuaram. No entanto, alguns utilitaristas contemporâneos avançaram argumentos poderosos para mostrar que Bentham e Mill tinham razão. O filósofo Peter Singer, num livro com o estranho título de Libertação Animal (1975), insistiu, seguindo os princípios estabelecidos por Bentham e Mill, que o nosso tratamento dos animais não-humanos é profundamente incorrecto.

Singer pergunta como podemos justificar experiências como a seguinte:

Na Universidade de Harvard, R. Solomon, L. Kamin, e L. Wynne testaram os efeitos de choques eléctricos no comportamento de cães. Colocaram quarenta cães num dispositivo chamado "shuttlebox" que consiste numa caixa dividida em dois compartimentos, separados por uma barreira. De início, a barreira foi colocada à altura do dorso dos cães. Foram desferidos centenas de choques eléctricos intensos nas patas dos cães através de uma rede no chão. Inicialmente, os cães conseguiam escapar ao choque se aprendessem a saltar a barreira e passar para o outro compa

rtimento. No sentido de "desen-

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A ABORDAGEM UTILITARISTA

corajar" um cão de saltar, os especialistas forçaram o cão a saltar cem vezes para a rede electrificada. Afirmaram que quando o cão saltava dava um "guincho agudo de antecipação que se transformava num ganido quando aterrava na rede electrificada". Por fim, bloquearam a passagem entre os compartimentos com uma placa de vidro e testaram de novo o mesmo cão. O cão "saltava e embatia com a cabeça de encontro ao vidro". Inicialmente, os cães revelaram sintomas tais como "defecar, urinar, ganir e guinchar, tremer, atacar o aparelho" e assim por diante, mas após dez ou doze dias de testes os cães que foram impedidos de escapar aos choques deixaram de resistir. Os especialistas afirmaram-se "impressionados" com este facto, e concluíram que a combinação da barreira de vidro e dos choques nas patas era "muito eficaz" na eliminação dos saltos dos cães.

O argumento utilitarista é bastante simples. Devemos julgar as acções como certas ou erradas conforme causam mais felicidade ou infelicidade. Os cães desta experiência estão obviamente a ser submetidos a um sofrimento terrível. Há algures um ganho compensatório em felicidade que o justifique? Está-se a prevenir uma infelicidade maior, para outros animais ou para os seres humanos? Se não, a experiência não é moralmente aceitável.

Podemos fazer notar que este tipo de argumento não implica que todas as experiências deste género são imorais - sugere que se avalie cada uma individualmente, segundo os seus próprios méritos. A experiência com os cães, por exemplo, era parte de um estudo da "falta de energia adquirida", um tópico considerado muito importante pelos psicólogos. Os psicólogos afirmam que o conhecimento dos mecanismos da falta de energia adquirida trará benefícios de longo prazo para os doentes mentais. O princípio utilitarista não diz, por si só, qual a verdade acerca de experiências em concreto; mas insiste que o mal feito aos animais exige uma justificação. Não podemos simplesmente presumir que tudo é permitido só porque não são humanos.

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Mas criticar tais experiências é muito fácil para a maioria de nós. Uma vez que não nos dedicamos a tais investigações, podemos sentir-nos superiores ou farisaicos. Singer sublinha, no entanto, que ninguém está isento de culpa neste campo. Todos estamos envolvidos em

actos de crueldade tão graves como os perpetrados em qualquer laboratório, porque todos (ou pelo menos a maioria de nós) comemos carne. Os factos sobre a produção de carne são pelo menos tão pungentes como os relativos à experimentação com animais.

A maior parte das pessoas pensa, de forma vaga, que embora o matadouro possa ser um local desagradável, os animais criados para abate são, aparte isso, suficientemente bem tratados. Mas, afirma Singer, nada poderia estar mais longe da verdade. As crias de vitela, por exemplo, passam as suas vidas em celas tão pequenas que não conseguem voltar-se ou mesmo deitar-se de forma confortável - mas do ponto de vista dos produtores isso é bom, porque o exercício enrijece os músculos, reduzindo a "qualidade" da carne; além disso, conceder aos animais um espaço vital adequado teria custos proibitivos. Nestas celas, os vitelos não conseguem realizar acções tão básicas como limpar-se, o que desejam por natureza fazer, porque não há espaço para poderem voltar a cabeça. É evidente que as vitelas sentem falta das mães e, como os bebés humanos, precisam de algo para mamar: pode ver-se que tentam em vão sugar quaisquer arestas nas suas celas. Para manter a sua carne branca e saborosa, são alimentados com uma dieta líquida insuficiente em ferro e forragem. Naturalmente, desenvolvem o desejo ardente destas coisas. O desejo dos vitelos por ferro torna-se tão forte que se puderem voltar-se na cela lambem a sua própria urina, embora normalmente sintam repugnância em fazê-lo. A pequena cela, que impede o animal de se voltar, resolve este "problema". O desejo de forragem é especialmente forte, uma vez que sem ela o animal não consegue formar uma massa de ali-

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A ABORDAGEM UTILITARISTA

mentos para ruminar. Não se pode colocar qualquer palha para os animais dormirem, pois seriam levados a comê-la e isso afectaria a carne. Por isso, para estes animais, o matadouro não é o fim desagradável de uma existência feliz. É uma vida tão terrível que o processo de abate pode na verdade revelar-se uma libertação misericordiosa.

Uma vez mais, e tendo em conta estes factos, o argumento utilitarista é bastante simples. O sistema de produção de carne causa grande sofrimento aos animais. Uma vez que não precisamos de os comer - as refeições vegetarianas são igualmente saborosas e nutritivas- o bem que é feito não compensa, quando colocado na balança, o mal provocado. Logo, é errado. Singer conclui que devemos tornar-nos vegetarianos.

O que é mais revolucionário em tudo isto é simplesmente a ideia de que os interesses dos animais não-humanos contam. Normalmente, partimos do princípio, como ensina a tradição da nossa sociedade, que só os seres humanos são dignos de consideração moral. O

utilitarismo põe em causa esta suposição básica e insiste que a comunidade moral tem de ser alargada para incluir todas as criaturas cujos interesses são afectados pelo que fazemos. Os seres humanos são especiais em muitos aspectos; e uma moralidade adequada tem de reconhecer isso. Mas também é verdade que somos apenas uma espécie entre muitas que habitam este planeta; e a moralidade tem igualmente de reconhecer isso.

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Capítulo 8

O debate sobre o utilitarismo

A doutrina utilitarista consiste nisto: a felicidade é desejável, e a única coisa desejável, enquanto finalidade; todas as outras coisas são desejáveis como meios para esse fim.

JOHN STUART MILL, Utilitarismo (1861)

O Homem não luta para obter a felicidade; só os Ingleses fazem isso.

FRIEDRICH NIETZSCHE, O Crepúsculo dos ídolos (1889)

8.1 A versão clássica da teoria

O utilitarismo clássico, a teoria de Bentham e Mill, pode ser resumido em três proposições: Primeiro, deve-se julgar que as acções são moralmente certas ou erradas somente em função das suas conseqüências. Nada mais importa. Segundo, ao avaliar as consequências, a única coisa que interessa é a quantidade de felicidade ou infeli-

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cidade criada. Tudo o mais é irrelevante. Terceiro, a felicidade de cada pessoa conta da mesma maneira. Como explica Mill,

a felicidade que forma o padrão utilitarista do que é correcto na conduta não é a felicidade do próprio agente, mas a de todos os implicados. Entre a felicidade do agente e a dos outros, o utilitarismo exige que o agente seja tão estritamente imparcial como um espectador desinteressado e benévolo.

Assim, as acções correctas são as que produzem o maior equilíbrio possível de felicidade e infelicidade, sendo a felicidade de cada pessoa contabilizada como igualmente importante.

Esta teoria tem sido imensamente atraente para filósofos, economistas e outros que teorizam sobre o processo de decisão humano. Continua a ser largamente aceite, apesar de ter sido posta em causa por uma série de argumentos aparentemente devastadores. Estes argum

entos antiutilitaristas são tão numerosos e tão persuasivos que muitos chegaram à conclusão de que a teoria tem de ser abandonada. Mas o facto notável é que tantos não a tenham abandonado. Apesar dos argumentos, muitos e muitos pensadores recusam-se abandonar a teoria. De acordo com estes utilitaristas contemporâneos, os argumentos antiutilitaristas provam apenas que a teoria clássica precisa de ser aperfeiçoada; afirmam que a ideia essencial é sólida e deveria ser preservada, mas reformulada de uma forma mais satisfatória.

Vamos examinar de seguida alguns destes argumentos contra o utilitarismo e avaliar se a versão clássica da teoria pode ser revista de forma satisfatória para lhes fazer frente. Estes argumentos têm interesse não apenas para avaliar o utilitarismo mas em si mesmos, pois levantam algumas questões fundamentais de filosofia moral.

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8.2 Será a felicidade a única coisa que importa?

A pergunta "Que coisas são boas?" é diferente da pergunta "Que acções são correctas?", mas o utilitarismo responde à segunda remetendo para a primeira. As acções correctas, afirma o utilitarismo, são as que produzem o maior bem. Mas o que é bem? A resposta utilitarista clássica é "uma coisa e só uma coisa - a felicidade". Como Mill afirmou, "a doutrina utilitarista consiste nisto: a felicidade é desejável, e a única coisa desejável, enquanto finalidade; todas as outras coisas são desejáveis como meios para esse fim".

A ideia de que a felicidade é o bem último (e a infelicidade o mal último) é conhecida como hedonismo. O hedonismo é uma teoria popular e duradoura cuja origem remonta pelo menos à Grécia Antiga. Sempre foi atraente por causa da sua simplicidade bela e porque exprime a noção intuitivamente plausível de que as coisas são boas ou más de acordo com a forma como nos fazem sentir. No entanto, um pouco de reflexão revela sérias falhas nesta teoria. As falhas revelam-se quando examinamos exemplos como os seguintes:

Uma pianista jovem e prometedora magoa as mãos num acidente de automóvel, ficando incapacitada para continuar a tocar. Porque razão é isto mau para ela? O hedonismo diria que é mau porque a torna infeliz. Ela vai sentir-se frustrada e perturbada sempre que pensar no que poderia ter feito, e isso é a sua desgraça. Mas esta maneira de explicar o infortúnio parece ver as coisas ao contrário. Não se pode dizer que, ao sentir-se infeliz, ela transformou uma situação neutra numa situação má. Pelo contrário, a sua infelicidade é uma resposta racional a uma situação que é desafortunada. Ela podia ter tido uma carreira como pianista, e agora já não pode. A tragédia é essa. Não poderíamos eliminar a tragédia levando-a pura e simplesmente a animar-se.

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O leitor pensa que alguém é seu amigo, mas pelas costas essa pessoa ridiculariza-o. Ninguém oinforma, pelo que não chega a saber. É isto um infortúnio para si? Ó hedonismo teria de responder que não, porque não lhe é causada qualquer infelicidade. Mas apesar disso sentimos que há algo errado nisto. O leitor pensa ter um amigo, e está a "ser ridicularizado", apesar de nada saber e não sofrer qualquer infelicidade.

Estes exemplos apresentam a mesma ideia fundamental. Valorizamos por si mesmas todo o tipo de coisas, como a criatividade artística e a amizade. Possui-las dá-nos felicidade, mas apenas por já as considerarmos boas. (Não pensamos que sejam boas por nos fazerem felizes - essa é a maneira como o hedonismo "volta as coisas ao contrário".) Logo, é uma infelicidade perdê-las, independentemente de a sua perda ser ou não acompanhada de infelicidade.

Assim, o hedonismo engana-se quanto à natureza da felicidade. A felicidade não é reconhecida como boa e procurada por si, sendo as outras coisas desejadas apenas como meios para a sua realização. Ao invés, a felicidade é uma resposta que damos à obtenção de coisas que reconhecemos que são boas, independentemente e por direito próprio. Pensamos que a amizade é uma coisa boa, e por isso ter amigos dá-nos felicidade. Isso é muito diferente de primeiro partir em busca da felicidade e depois decidir que ter amigos poderá fazer-nos felizes, procurando depois fazer amigos como um meio para obter esse fim.

É por esta razão que não há muitos hedonistas entre os filósofos contemporâneos. Os partidários do utilitarismo procuraram, pois, uma maneira de formular a sua visão das coisas sem pressupor uma descrição hedonista do bem e do mal morais. Alguns, como o filósofo inglês G. E. Moore (1873-1958), tentaram compilar listas de coisas susceptíveis de ser encaradas como boas em si. Moore sugeriu que há

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três coisas que são de forma óbvia intrinsecamente boas - o prazer, a amizade e a fruição estética - e que as acções correctas são as que aumentam no mundo a quantidade destas coisas. Outros utilitaristas evitaram a questão de saber quantas coisas são boas em si, deixando-a em aberto e afirmando apenas que as acções correctas são as que alcançam melhores resultados, independentemente da forma de medir isso. Outros ainda evitaram a questão de forma

diferente, defendendo apenas que devemos agir de maneira a maximizar a satisfação das preferências das pessoas. Está para lá do âmbito deste livro discutir os méritos ou deméritos destas variantes do utilitarismo. Refiro-as apenas para sublinhar que, apesar de o pressuposto hedonista dos utilitaristas clássicos ter sido largamente rejeitado, os utilitaristas contemporâneos não sentiram dificuldade em prosseguir na mesma via. Fazem-no insistindo que, antes de mais, o hedonismo nunca foi uma parte necessária da teoria.

8.3 As consequências são a única coisa que importa?

Seja como for, a ideia de que as consequências são a única coisa que importa é parte necessária do utilitarismo. A ideia fundamental da teoria é que para determinar se uma acção é correcta, devemos ter em atenção o que acontecerá em resultado de afazermos. Se viesse a verificar-se que qualquer outra coisa é igualmente importante para determinar a correcção, o utilitarismo veria então os seus alicerces arruinados.

Alguns dos argumentos antiutilitaristas mais sérios atacam a teoria justamente neste ponto: insistem que há várias considerações, além da utilidade, que são importantes para determinar o que é ou não é moralmente correcto. Eis três desses argumentos.

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Justiça. Num artigo escrito em 1965 para a revista académica Inquiry, H. J. McCloskey pedia-nos para ponderar o caso seguinte:

Suponhamos que um utilitarista visita uma área na qual há tensões raciais e que, durante a sua visita, um Preto viola uma mulher branca, e que em resultado do crime ocorrem confrontos raciais, com multidões de brancos, com a conivência da Polícia, espancando e matando Pretos, etc. Suponhamos ainda que o nosso utilitarista está no local do crime quando este é cometido, de tal modo que o seu testemunho pode levar à condenação de um Preto qualquer. Se ele sabe que uma detenção rápida porá fim aos confrontos e linchamentos, certamente, como utilitarista, terá de concluir que tem o dever de prestar falso testemunho de maneira a permitir a punição de uma pessoa inocente.

Trata-se, é claro, de um exemplo fictício, apesar de obviamente inspirado na lei de linchamento que prevaleceu em tempos em algumas partes dos Estados Unidos. Seja como for, o argumento é que se alguém estivesse nesta situação, deveria, nos parâmetros utilitaristas, prestar falso testemunho contra uma pessoa inocente. Isto poderia

ter algumas consequências más - um homem inocente poderia ser executado - mas haveria suficientes consequências boas para contrabalançá-las: os confrontos e linchamentos seriam detidos. O melhor resultado seria alcançado por meio da mentira: logo, segundo o utilitarismo, mentir é a coisa a fazer. Mas, prossegue o argumento, seria errado causar a execução de uma pessoa inocente. Logo, o utilitarismo, que pressupõe a correcção de um tal acto, tem de estar errado.

Segundo os críticos do utilitarismo, este argumento ilustra um dos defeitos mais graves da teoria; a saber, que é incompatível com a ideia de justiça. A justiça exige que tratemos as pessoas com equidade, segundo as suas necessidades e méritos individuais. O exemplo de McCloskey mostra que os requisitos de justiça e de utilidade podem

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entrar em conflito. Assim, uma teoria ética segundo a qual a utilidade é tudo o que conta não pode estar correcta.

Direitos. Eis um caso que não é fictício; é extraído dos registos do Nono Círculo do Tribunal de Apelação dos EUA (Distrito Judicial do Sul da Califórnia), 1963, no caso York contra Story:

Em Outubro de 1958, a queixosa [Angelynn York] dirigiu-se ao Departamento de Polícia de Chino para apresentar queixa de um caso de agressão que sofrera. O acusado, Ron Story, agente daquele departamento de Polícia, agindo ao abrigo da sua autoridade, informou a queixosa de que era necessário tirar-lhe fotografias. Story levou então a queixosa para uma sala da esquadra, fechou a porta e ordenou-lhe que se despisse, o que ela fez. Story ordenou então à queixosa para se colocar em várias posições indecentes, e fotografou-a nessas posições. Estas fotografias não foram tiradas com algum propósito legal.

A queixosa protestou contra a necessidade de se despir. Declarou a Story que não havia necessidade de tirar fotografias dela nua, ou nas posições em que foi mandada colocar-se, porque as contusões não seriam visíveis nas fotografias.

No final do mês, Story informou a queixosa de que as fotografias não tinham sido divulgadas e que ele as tinha destruído. Em vez disso, Story fez circular as fotografias entre o pessoal do Departamento de Polícia de Chino. Em Abril de 1960, dois outros agentes daquele departamento de

Polícia, os acusados Louis Moreno e o arguido Henry Grote, agindo ao abrigo da sua autoridade, e usando material fotográfico da Polícia situado na esquadra, fizeram mais reproduções das fotografias tiradas por Story. Moreno e Grote fizeram circular as reproduções entre o pessoal do Departamento de Polícia de Chino.

A Sr.a York moveu um processo contra estes agentes e ganhou. Os seus direitos legais tinham sido claramente violados. Mas o que dizer da moralidade do comportamento dos agentes? O utilitarismo afirma que uma acção é defen-

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sável se produzir um equilíbrio favorável da felicidade sobre a infelicidade. Isto sugere que consideremos a quantidade de infelicidade causada à Sr.a York e a comparemos com a quantidade de prazer proporcionada pelas fotografias ao agente Story e seus cúmplices. É possível que se tenha causado mais felicidade do que infelicidade. Nesse caso, a conclusão utilitarista seria, aparentemente, que as suas acções foram moralmente correctas. Mas isto parece uma maneira perversa de pensar. Porque razão deveria o prazer causado a Story e seus cúmplices importar? Porque deveria sequer ser tido em conta? Não tinham qualquer direito de tratar a Sr.a York daquela maneira, e o facto de se terem divertido ao fazê-lo dificilmente parece uma defesa relevante.

Eis um caso (imaginário) idêntico. Suponhamos que um voyeur espiava secretamente a Sr.a York espreitando pela janela do seu quarto, e secretamente lhe tirava fotografias quando ela estava despida. Suponhamos ainda que fazia isto sem se denunciar e que usava as fotografias apenas para seu prazer pessoal, não as mostrando a mais ninguém. Nestas circunstâncias, parece evidente que a única consequência da sua acção é um aumento da sua própria felicidade. Ninguém mais, nem mesmo a Sr.a York, sofre qualquer infelicidade. Como poderia então o utilitarismo negar que as acções do voyeur são correctas? Mas é óbvio para o senso comum moral que não são correctas. O utilitarismo parece ser, pois, inaceitável.

A moral da história a retirar deste argumento é que o utilitarismo está em conflito com a ideia de que as pessoas têm direitos que não podem ser espezinhados apenas porque alguém antecipa bons resultados. Nestes casos, é o direito da Sr.a York à privacidade que é violado; mas não seria difícil pensar em casos similares nos quais outros direitos estão em causa - o

direito à liberdade religiosa, à livre expressão ou mesmo o próprio direito à vida. Pode acontecer por vezes que bons objectivos sejam servidos por meio da

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violação destes direitos. Mas não pensamos que os nossos direitos devam ser postos de ladocom tanta facilidade. A noção de um direito pessoal não é uma noção utilitarista. Bem pelo contrário: é uma noção que estabelece limites à forma como um indivíduo pode ser tratado, independentemente dos bons objectivos que poderiam ser alcançados.

Razões referentes ao passado. Suponha que prometeu a uma pessoa fazer alguma coisa - por exemplo, encontrar-se com ela uma tarde na Baixa. Mas quando chega a hora, não lhe apetece fazê-lo; precisa trabalhar e preferia ficar em casa. O que deve fazer? Suponha que considera que a utilidade de fazer o seu trabalho ultrapassa ligeiramente a inconveniência causada ao seu amigo. Apelando para o padrão utilitarista, poderia então concluir que é correcto ficar em casa. No entanto, isto não parece nada correcto. O facto de ter feito uma promessa, impõe-lhe uma obrigação à qual não pode escapar facilmente. É claro que se algo muito importante estivesse em jogo - se, por exemplo, a sua mãe tivesse acabado de sofrer um ataque cardíaco e você tivesse de correr para o hospital- teria uma boa justificação para faltar ao seu compromisso. Mas um pequeno ganho em utilidade não pode sobrepor-se à obrigação imposta pelo facto de ter feito uma promessa. Assim, o utilitarismo, que considera as consequências a única coisa importante, parece uma vez mais estar errado.

Há uma importante lição geral a tirar deste argumento. Porque razão é o utilitarismo vulnerável a este tipo de crítica? Porque os únicos tipos de considerações que a teoria defende como relevantes para determinar a correcção das acções são considerações relacionadas com o futuro. Devido à sua preocupação exclusiva com as consequências, o utilitarismo leva-nos a confinar a nossa atenção ao que irá acontecer em resultado das nossas acções. No entanto, pensamos normalmente que as considerações sobre o passado são igualmente importantes. (O facto de termos pro-

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metido encontrar-nos com um amigo é um facto sobre o passado.) Logo, o utilitarismo parece defeituoso porque exclui as considerações relativas ao passado.

Uma vez compreendido este aspecto, vêm facilmente à ideia outros exemplos de considerações relativas ao passado. O facto de alguém não ter cometido um crime é uma boa razão para não ser punido. O facto de alguém lhe ter feito um favor pode ser uma boa razão para agora fazer um favor a essa pessoa. O facto de alguém ter feito algo para magoar uma pessoa pode ser uma boa razão para agora a compensar. Tudo isto são factos relat

ivos ao passado que têm relevância para determinar as nossas obrigações. Mas o utilitarismo torna o passado irrelevante, e parece deficiente justamente por essa razão.

8.4 Deveremos ter toda a gente igualmente em conta?

A última componente da moralidade utilitarista é a ideia de que devemos tratar o bem-estar de cada pessoa como igualmente importante - nas palavras de Mill, devemos ser "tão estritamente imparciais como um espectador desinteressado e benévolo". Isto parece plausível quando se afirma em abstracto, mas tem implicações problemáticas. Um dos problemas é que o requisito de "igual consideração" coloca-nos uma exigência excessiva; outro é que destrói as nossas relações pessoais.

A acusação de que o utilitarismo é demasiado exigente.

Suponha que está a caminho do teatro quando alguém lhe lembra que o dinheiro que se prepara para gastar podia ser usado para providenciar comida a pessoas com fome ou vacinas a crianças do Terceiro Mundo. Certamente que essas pessoas precisam mais de comida e medicamentos do que o leitor precisa de ver uma peça de teatro. Por isso,

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desiste do seu entretenimento e dá o dinheiro para uma organização de caridade. Mas issonão põe fim ao caso. Pelo mesmo tipo de raciocínio, o leitor não pode comprar roupas novas, um carro, computador ou uma máquina fotográfica. Provavelmente deveria mesmo mudar-se para um apartamento mais barato. Afinal de contas, o que é mais importante - ter estes luxos ou as crianças terem algo para comer?

Na verdade, a adesão fiel aos padrões utilitaristas requer que abandone os seus recursos até ter baixado o seu padrão de vida ao nível do das pessoas mais necessitadas que poderia ajudar. Podemos admirar as pessoas que fazem isto, mas não consideramos que estejam apenas a fazer o seu dever. Olhamo-las, ao invés, como pessoas santas, cuja generosidade vai além das exigências do dever. Distinguimos acções impostas moralmente de acções dignas de admiração mas não estritamente exigidas. (Os filósofos chamam a estas acções super-rogatórias.) O utilitarismo parece eliminar esta distinção.

Mas o problema não é apenas o utilitarismo requerer que abandonemos a maior parte dos nossos recursos materiais. Igualmente importante é notar que obedecer aos mandamentos utilitaristas tornaria impossível a continuação das nossas vidas como indivíduos. A vida de cada um de nós implica projectos e actividades que lhe dão carácter e significado; estas coisas são o que torna as nossas vidas dignas de ser vividas. Mas uma ética exigindo a subordinação de tudo à promoção imparcial do bem-estar geral exigiria que

abandonássemos esses projectos e actividades. Suponha o leitor que é um carpinteiro. Não é rico, mas ganha o suficiente para viver uma vida confortável; tem dois filhos que adora; e nos fins-de-semana gosta de actuar com um grupo de teatro amador. Além disso, interessa-se por história e lê muito. Como poderia haver algo de errado nisso? Mas, segundo os padrões utilitaristas, o leitor estaria a viver uma vida moralmente inaceitável. Afinal de

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contas, poderia fazer muito mais pelo bem dos outros se passasse o seu tempo de outras formas.

Relações pessoais. Na prática, ninguém está disposto a tratar todas as pessoas como iguais, pois isso requereria que abandonássemos as nossas relações especiais com amigos 0 família. Todos somos profundamente parciais quanto à família e amigos. Gostamos deles e vamos até onde for preciso para os ajudar. Para nós, não são apenas membros da grande multidão da humanidade - são especiais. Mas tudo isto é inconsistente com a imparcialidade. Quando somos imparciais, a intimidade, o amor e a amizade são lançados janela fora.

O facto de o utilitarismo arruinar as nossas relações pessoais parece a muitos críticos o seu maior erro. Na verdade, o utilitarismo parece neste ponto ter perdido todo o contacto com a realidade. Como seria se não tivéssemos mais em conta o nosso marido ou esposa do que estranhos que nunca vimos antes? A própria ideia é absurda; não só é profundamente contrária às emoções humanas normais, como a instituição do casamento não poderia sequer existir à margem de acordos sobre responsabilidades e obrigações especiais. E como seria tratar os nossos próprios filhos com o mesmo amor concedido a estranhos? Como John Cottingham afirmou, "um pai que deixa o filho arder, porque no edifício em chamas há alguém cuja futura contribuição para o bem-estar geral promete ser maior, não é um herói; é (merecidamente) objecto de desprezo moral, é um leproso moral".

8.5 A defesa do utilitarismo

Em conjunto, os argumentos apresentados constituem um processo de acusação esmagador contra o utilitarismo. A teoria, que inicialmente parecia tão progressista e

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proxima do senso comum, parece agora indefensável: está em conflito com noções moraisfundamentais como a justiça e os direitos individuais, e parece incapaz de dar conta de

razões relativas ao passado na justificação da conduta. Levar-nos-ia a abandonar as nossasvidas normais e a estragar as relações pessoais que significam tudo para nós. Não é, pois, desurpreender que o peso combinado destes argumentos tenha levado muitos filósofos aabandonar a teoria por completo.

Muitos pensadores continuam, no entanto, a considerar que o utilitarismo é, de alguma forma, verdadeiro. Em resposta aos argumentos enunciados, foram avançadas três defesas gerais.

A primeira linha de defesa: argumentos imaginários não contam. A primeira linha de defesa consiste em argumentar que os argumentos antiutilitaristas fazem suposições irrealistas sobre o funcionamento do mundo. Os argumentos sobre direitos, justiça e razões relativas ao passado partilham uma estratégia comum. Descreve-se um caso e depois afirma-se que, do ponto de vista utilitarista, é necessária uma certa acção - prestar falsos testemunhos, violar os direitos de alguém ou faltar a uma promessa. Afirma-se então que estas coisas não são correctas. Logo, conclui-se, a concepção utilitarista da correcção não pode estar certa. Mas esta estratégia só tem sucesso se concordarmos que as acções descritas teriam de facto as melhores consequências. Mas porque razão concordaríamos com isso? No mundo real, prestar falso testemunho não tem boas consequências. Suponha-se, no caso descrito por McCloskey, que o "utilitarista" tentava incriminar o inocente para deter os motins. Provavelmente não teria êxito; a sua mentira poderia ser descoberta, e a situação ficaria então ainda pior do que antes. Mesmo no caso de a mentira ter êxito, o verdadeiro culpado continuaria a monte, livre para cometer outros crimes. Além disso, se o culpado viesse a ser apa-

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nhado, o que é sempre possível, o mentiroso ficaria em grandes sarilhos, e a confiança no sistema judicial seria posta em causa. A moral da história é que, embora possamos pensar que podemos provocar as melhores consequências com um tal comportamento, não podemos de forma alguma estar certos disso. De facto, a experiência mostra o contrário: a utilidade não é servida por meio da incriminação de pessoas inocentes.

O mesmo pode dizer-se dos outros casos citados nos argumentos antiutilitaristas. Violar os direitos das pessoas, faltar às promessas e mentir, têm consequências más. Só na imaginação dos filósofos acontece de outro modo. No mundo real, os voyeurs são apanhados, tal c

omo o agente Story e os seus sequazes foram apanhados; e as suas vítimas sofrem. No mundo real, quando as pessoas mentem, os outros sofrem e as suas reputações são maculadas; e quando as pessoas faltam às suas promessas, e não retribuem os favores, perdem os amigos.

Logo, longe de ser incompatível com a ideia de que não devemos violar os direitos das pessoas, ou mentir, ou faltar às nossas promessas, o utilitarismo explica por que motivo não devemos fazer essas coisas. Além disso, sem a explicação utilitarista, estes deveres permaneceriam misteriosos e ininteligíveis. O que poderia ser mais misterioso do que a noção de acções correctas "em si", separada da noção do bem que produzem? Ou o que poderia ser mais ininteligível do que a ideia de que as pessoas têm "direitos", desligada de quaisquer benefícios derivados do reconhecimento desses direitos? O utilitarismo não é incompatível com o senso comum; pelo contrário, o utilitarismo radica no senso comum.

Esta é, pois, a primeira linha de defesa. Até que ponto é eficaz? Infelizmente contém mais ruído do que substância. Embora se possa defender plausivelmente que a maioria dos actos de falso testemunho e quejandos têm más consequências no mundo real, não se pode razoavelmente

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declarar que todos os actos desse cariz têm más consequências. Certamente poderemos obter, pelo menos ocasionalmente, bons resultados ao fazer coisas que o senso comum condena. Logo, pelo menos em alguns casos da vida real, o utilitarismo entrará em conflito com o senso comum. Além disso, mesmo que os argumentos antiutilitaristas tivessem de basear-se exclusivamente em exemplos fictícios, esses argumentos manteriam, ainda assim, o seu poder; pois mostrar que o utilitarismo tem consequências inaceitáveis em casos hipotéticos é uma forma válida de apontar os seus defeitos teóricos. A primeira linha de defesa é, portanto, fraca.

A segunda linha de defesa: o princípio de utilidade é um guia para escolher regras e não actos individuais. A segunda linha de defesa admite que a versão clássica do utilitarismo é inconsistente com o senso comum e propõe-se salvar a teoria dando-lhe uma nova formulação que esteja em consonância com as nossas avaliações de senso comum. Ao fazer a revisão de uma teoria o truque é identificar precisamente quais das suas características estão a dar problemas e mudar isso, deixando o resto da teoria como estava. O que tem a versão clássica para originar todos os resultados indesejados?

O aspecto problemático do utilitarismo clássico é, segundo foi dito, a sua pressuposição de que cada acção individual deve ser avaliada em relação ao princípio de utilidade. Se numa dada ocasião nos sentirmos tentados a prestar falso testemunho, a teoria clássica da teoria afirma que saber se isso seria errado depende das consequências dessa mentira em particular; de modo análogo, saber se devemos manter uma promessa depende das consequências dessa promessa em particular; e assim sucessivamente, para cada um dos exemplos referidos. Este é o pressuposto que causou todas as complicações; é isto que conduz à conclusão de que podemos fazer todo o tipo de coisas questionáveis se tiverem as melhores consequências.

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Logo, a nova versão do utilitarismo modifica a teoria de maneira a que as acções individuais deixem de ser julgadas pelo princípio de utilidade. Em vez disso, perguntamos primeiro que conjunto de regras é o melhor da perspectiva utilitarista. Que regras preferiríamos ter em vigor na nossa sociedade, de maneira a fazer prosperar as pessoas? Os actos individuais são então considerados correctos ou errados segundo são aceitáveis ou não à luz dessas regras. Chama-se utilitarismo das regras a esta nova versão da teoria, para a distinguir da teoria original, agora comummente chamada utilitarismo dos actos. Richard Brandt foi talvez o mais proeminente defensor do utilitarismo das regras; sugeriu que "moralmente errado" significa que uma acção

seria proibida por qualquer código moral que todas as pessoas racionais tenderiam a apoiar, de preferência a todos os outros ou a nenhum outro, para a sociedade do agente, se tivessem a expectativa de passar a vida nessa sociedade.

O utilitarismo das regras não tem dificuldade em lidar com os argumentos antiutilitaristas. Um utilitarista dos actos, confrontado com a situação descrita por McCloskey, seria tentado a prestar falso testemunho contra o homem inocente, porque as consequências daquele acto em particular seriam boas. Mas o utilitarista das regras não raciocinaria dessa maneira. Perguntaria, primeiro, "que regras gerais de conduta tendem a promover a maior felicidade?" Suponha-se que imaginamos duas sociedades, uma na qual a regra "Não prestar falso testemunho contra inocentes" é fielmente respeitada, e uma na qual esta regra não é seguida. Em qual das sociedades as pessoas têm mais probabilidades de viver melhor? Do ponto de vista da utilidade, a primeira sociedade é preferível. Logo, a regra contra a

incriminação de inocentes deveria ser aceite e, fazendo apelo para esta regra, concluímos que a pessoa do exemplo de McCloskey não deveria testemunhar contra o homem inocente.

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Um raciocínio análogo pode ser usado para estabelecer regras contra a violação dos direitosdas pessoas, o faltar às promessas, a mentira e tudo o resto. Podem igualmente estabelecer-se regras para reger as relações pessoais - requerendo lealdade para com os amigos,preocupação amorosa com os nossos filhos, e assim por diante. Devemos aceitar tais regrasporque segui-las regularmente promove o bem-estar geral. Mas tendo apelado para oprincípio de utilidade para estabelecer as regras, não temos de invocar novamente oprincípio para determinar a correcção de acções particulares. As acções individuaisjustificam-se pelo simples apelo para regras já estabelecidas.

Desta forma, não se pode condenar o utilitarismo das regras por violar o nosso sensocomum moral. Ao transferir a ênfase da justificação dos actos para a justificação das regras,a teoria foi reconciliada de forma notável com os nossos juízos intuitivos.

A terceira linha de defesa: não se pode confiar no "senso comum". Por último, um pequenogrupo de utilitaristas contemporâneos respondeu de forma muito diferente aos argumentosantiutilitaristas. Esses argumentos indicam que a teoria clássica está em conflito com noçõescomuns de justiça, direitos individuais, e assim por diante; e este grupo responde: "E daí?"Em 1961, o filósofo australiano J. J. C. Smart publicou uma monografia intitulada AnOutline of a System of Utilitarian Ethics; reflectindo sobre a sua posição nesse livro, Smartafirmou:

O utilitarismo tem reconhecidamente consequências incompatíveis com a consciência moral comum,mas eu tendia a reagir do seguinte modo: "Tanto pior para a consciência moral comum." Isto é,estava inclinado a rejeitar a metodologia comum que testa os princípios éticos gerais mediante aavaliação de como se enquadram nos nossos sentimentos em questões particulares.

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O nosso senso comum moral não é, afinal de contas, necessariamente fiável. Podeincorporar vários elementos irracionais, nomeadamente preconceitos recebidos dos nossos

pais, religião e cultura em geral. Porque razão devemos simplesmente presumir que osnossos sentimentos estão sempre correctos? E porque motivo devemos rejeitar uma teoriaplausível e racional da ética simplesmente porque entra em conflito com esses sentimentos?Talvez devessem ser os sentimentos, e não a teoria, a ser descartados.

À luz destas considerações, atentemos de novo no exemplo de McCloskey da pessoa tentadaa prestar falso testemunho. McCloskey defende que seria errado fazer condenar um homempor um crime que não cometeu, pois tal seria injusto. Mas atenção: um tal juízo serve muitobem os interesses desse homem, mas que dizer das outras pessoas inocentes que sofrerão seos motins e os linchamentos continuarem? Esperamos por certo nunca ter de enfrentar umasituação como esta. Todas as opções são terríveis. Mas se temos de escolher entre a)assegurar a condenação de uma pessoa inocente, e b) permitir a morte de várias pessoasinocentes, será assim tão-pouco razoável pensar que a primeira opção, apesar de má, épreferível à segunda?

Consideremos também novamente a objecção de que o utilitarismo é demasiado exigentepor requerer que usemos os nossos recursos para alimentar crianças com fome em vez de irao cinema, comprar carros e máquinas fotográficas. Será assim tão-pouco razoável acreditarque prosseguir as nossas vidas de abastança é menos importante que aquelas crianças?

Nesta forma de pensar, o utilitarismo dos actos é uma doutrina perfeitamente defensável enão necessita ser modificada. O utilitarismo das regras é, pelo contrário, uma versãodesnecessariamente enfraquecida da teoria, que concede mais importância às regras do queelas merecem.

Há um problema grave com o utilitarismo das regras, que pode ser esclarecido seperguntarmos se as suas regras têm excepções. Depois de ter sido estabelecido o "códigosocial ideal" do utilitarismo das regras, devem estas regras ser seguidas em todas ascircunstâncias? Haverá inevitavelmente casos nos quais um acto proibido pelo códigomaximizaria no entanto a utilidade, talvez mesmo de forma substancial. O que deverá fazer-se então? Se o utilitarista das regras afirmar que em tais casos podemos violar o código,parecerá que regressou ao utilitarismo dos actos. Por outro lado, se diz que não podemosfazer o acto "proibido", então, como Smart afirmou, a preocupação original do utilitaristacom a promoção do bem-estar foi substituída por uma irracional "adoração das regras". Queutilitarista é este que deixaria o céu desabar por causa de uma regra?

O utilitarismo dos actos não se entrega a essa adoração das regras. É considerada, noentanto, uma teoria radical, que pressupõe que muitos dos nossos sentimentos moraiscomuns estão errados. Neste sentido, faz o que a boa filosofia sempre faz - desafia-nos arepensar questões que tomámos até agora como adquiridas.

Se consultarmos o que Smart chama a nossa "consciência moral comum", parece que muitas

considerações além da utilidade são moralmente importantes. Mas Smart tem razão quandonos alerta para o facto de "o senso comum" não merecer confiança. Essa pode vir a revelar-se a contribuição mais importante do utilitarismo. As deficiências do senso comum moraltornam-se óbvias desde que nos detenhamos um momento a pensar. Muitos brancossentiram em tempos que havia uma diferença importante entre negros e brancos, sendo porisso os interesses dos brancos mais importantes. Confiando no "senso comum" do seutempo, poderiam ter insistido que uma teoria moral adequada deveria contemplar este"facto". Hoje em dia, ninguém digno de ser escutado diria tal coisa, mas quem sabe

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quantos outros preconceitos irracionais fazem ainda parte do nosso senso comum moral? Nofinal do seu estudo clássico sobre as relações raciais intitulado An American Dilemma(1944), o sociólogo sueco Gunnar Myrdal recorda-nos que:

Deve haver ainda um sem-número de erros do mesmo género tque nenhum homem de hoje detecta,por causa do nevoeiro no qual estamos envolvidos pelo nosso tipo de cultura Ocidental. Influênciasculturais estabeleceram pressupostos de partida sobre a mente, o corpo e o universo; colocaram asperguntas que fazemos; determinaram a interpretação que fazemos destes factos; e dirigem a nossareacção a essas interpretações e conclusões.

Poderá dar-se o caso, por exemplo, de as gerações futuras olharem para trás com repulsapela maneira como as pessoas abastadas do século xxi gozavam as suas vidas de confortoenquanto crianças do Terceiro Mundo morriam de doenças facilmente evitáveis? Ou pelamaneira como matávamos e comíamos os animais indefesos? A ser assim, poderiam fazernotar que os filósofos utilitaristas da época eram criticados como simplistas por defenderemuma teoria moral que condenava frontalmente tais coisas.

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Haverá regras morais absolutas?

Não podes fazer mal de que provenha bem.

SÃO PAULO, Carta aos Romanos (circa 50 d. C.)

9.1 Harry Truman e Elizabeth Anscombe

Harry Truman, o 33.° presidente dos Estados Unidos, será sempre recordado como o homem que tomou a decisão de lançar a bomba atómica sobre Hiroshima e Nagasaki. Quando se tornou presidente, em 1945, a seguir à morte de Franklin D. Roosevelt, Truman nada sabia do desenvolvimento da bomba; teve de ser posto ao corrente da situação pe

los conselheiros presidenciais. Os aliados estavam a ganhar a Guerra no Pacífico, disseram-lhe, mas com custos terríveis. Havia planos para uma invasão das ilhas japonesas, que seria ainda mais sangrenta do que a invasão da Normandia. Usar a bomba atómica em uma ou duas cidades japonesas podia, no entanto, conduzir a Guerra a um fim rápido, tornando desnecessária a invasão.

Truman estava a princípio relutante em usar a nova arma. O problema é que cada bomba iria varrer do mapa

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uma cidade inteira - não apenas alvos militares, mas também hospitais, escolas e casas de civis. Mulheres, crianças, velhos e outros não-combatentes seriam eliminados juntamente com os efectivos militares. Apesar de os Aliados terem já bombardeado cidades, Truman sentia que a nova arma tornava a questão dos não-combatentes ainda mais importante. Além disso, havia registos de críticas públicas dos EUA aos ataques a alvos civis. Em 1939, antes de os EUA terem entrado na Guerra, o presidente Roosevelt mandara uma mensagem aos governos de França, Alemanha, Itália, Polónia e Inglaterra, denunciando os bombardeamentos de cidades nos termos mais duros. Chamou-lhes "barbarismo desumano":

Os implacáveis bombardeamentos aéreos de civis [...] que mutilaram e mataram milhares de homens, mulheres e crianças indefesos, destroçaram os corações de todos os homens e mulheres civilizados, e chocaram profundamente a consciência da Humanidade. Se vier a recorrer-se a esta forma de barbarismo desumano durante o período de trágica conflagração com a qual o mundo se vê agora confrontado, centenas de milhar de seres humanos inocentes, que não têm qualquer responsabilidade nas hostilidades ora desencadeadas, e que nem remotamente participam delas, perderão as suas vidas.

Quando decidiu autorizar os bombardeamentos, Truman exprimiu pensamentos semelhantes. Escreveu no seu diário: "Disse ao secretário da Guerra, o Sr. Stimson, para a usar de maneira a que objectivos militares, soldados e marinheiros sejam os alvos e não mulheres e crianças [...] Ele e eu estamos de acordo. O alvo será puramente militar." É difícil saber o que pensar disto, pois Truman sabia que as bombas iriam destruir cidades inteiras. Não obstante, é claro que estava preocupado com a questão dos não-combatentes. E igualmente clara a sua convicção de ter feito a escolha certa. Afirmou a um assistente que, dep

ois de assinar a ordem, "dormiu como um bebé".

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Elizabeth Anscombe, falecida em 2001 aos 81 anos de idade, era uma estudante de vinte anos na Universidade de Oxford quando começou a Segunda Guerra Mundial. Nesse ano, foi uma das autoras de um panfleto controverso defendendo que o Reino Unido não deveria entrar na Guerra porque acabaria por combater recorrendo a meios injustos, como ataques a civis. "A menina Anscombe", como sempre foi conhecida, apesar dos seus cinquenta anos de casamento e dos seus sete filhos, acabaria por se tornar um dos mais notáveis filósofos do século xx, e a maior filósofa da história.

A menina Anscombe era igualmente uma católica devota, e a religião era fulcral na sua vida. As suas perspectivas éticas, sobretudo, reflectiam os ensinamentos tradicionais do catolicismo. Em 1968 congratulou-se com a declaração do Papa Paulo VI banindo a contracepção do seio da Igreja e escreveu um panfleto a explicar a razão pela qual o controlo artificial dos nascimentos é errado. Anos mais tarde, foi detida durante um protesto junto a uma clínica britânica onde eram realizados abortos. Anscombe aceitava igualmente os ensinamentos da Igreja quanto à conduta ética na Guerra, o que acabou por colocá-la em conflito com Truman.

Os caminhos de Harry Truman e Elizabeth Anscombe cruzaram-se quando, em 1956, ele foi agraciado com um doutoramento honoris causa pela Universidade de Oxford. A distinção foi uma forma de agradecer a Truman a ajuda da América durante a Guerra. Os que a propuseram pensaram que não causaria qualquer polémica. Mas Anscombe e dois outros membros da faculdade opuseram-se à atribuição do doutoramento e, apesar de terem perdido, forçaram a realização de uma votação sobre o que noutras circunstâncias teria sido uma aprovação automática. Então, enquanto o doutoramento estava a ser conferido, Anscombe ajoelhou-se fora do salão nobre e rezou.

Anscombe escreveu outro panfleto, desta feita explicando que Truman era um assassino porque tinha ordenado os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki. Natural-

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mente, Truman pensava que os bombardeamentos se justificavam - tinham encurtado a Guerra e salvo vidas. Para Anscombe, isto não bastava. "Pois quando os homens escolhem matar inocentes como um meio para os seus fins", escreveu, "isso é sempre um assas

sínio". Ao argumento de que os bombardeamentos salvaram mais vidas do que ceifaram, retorquiu: "Vamos lá a ver. Se tivéssemos de escolher entre cozer um bebé e deixar que um desastre atingisse um milhar de pessoas - ou um milhão, se um milhar não for bastante - o que faríamos?"

A questão é, segundo Anscombe, que algumas coisas não podem fazer-se, em circunstância alguma. Pouco importa se poderíamos alcançar um bem maior cozendo uma criança; é simplesmente imperativo que isso não se faça. (Tendo em conta o que aconteceu aos bebés em Hiroshima, "cozer um bebé" não é um exemplo assim tão estranho.) Que não podemos matar intencionalmente pessoas inocentes é uma regra inviolável, mas há outras:

Tem sido característica da ética [hebraico-cristã] ensinar que há certas coisas proibidas independentemente das consequências que possam daí advir, nomeadamente as seguintes: escolher matar um inocente com um objectivo qualquer, por mais que seja bom; punir uma pessoa para atingir outra; a traição (significando com isto obter a confiança de alguém numa questão séria por meio de promessas de amizade dedicada e depois trair essa pessoa entregando-a aos seus inimigos); a idolatria; a sodomia; e uma falsa profissão de Fé.

Naturalmente, muitos filósofos não concordam; insistem que qualquer regra pode ser violada se as circunstâncias assim o exigirem. Anscombe, afirma o seguinte desses filósofos:

É digno de nota que nenhum destes filósofos revela qualquer consciência de que existe uma tal ética, que ele está a contraditar: considera-se óbvio, entre eles, que uma proibição como a relativa ao homicídio não se aplica perante algumas

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consequências. Mas é claro que o objectivo da rigidez da proibição é a ideia de que não podemos ser tentados pelo medo ou esperança das consequências.

Anscombe e o marido, Peter Geach, igualmente um distinto filósofo, foram os mais destacados paladinos, no século xx, da doutrina de que as regras morais são absolutas.

9.2 O imperativo categórico

A ideia de que as regras se aplicam sem excepções é difícil de defender. É bastante simples explicar por que razão se deve aceitar excepções a uma regra - podemos simplesmente sublinhar que, em algumas circunstâncias, seguir a regra teria consequências terríveis. Mas como podemos explicar a razão pela qual não se deve fazer excepções à regra em tais circunstâncias? É uma missão intimidante. Uma explicação possível seria afirmar que as regras morais são os mandamentos invioláveis de Deus. Fora isso, que mais pode dizer

-se?

Antes do século xx houve um grande filósofo que acreditava no carácter absoluto das regras morais, e que apresentou um argumento famoso para defender esta perspectiva. Immanuel Kant (1724-1804) foi uma das figuras fecundas do pensamento moderno. Defendeu, por exemplo, que mentir nunca é correcto, sejam quais forem as circunstâncias. Não apelou para considerações teológicas; defendeu, ao invés, que a razão exige que nunca mintamos. Para ver como chegou a esta conclusão notável, começaremos por ver a sua teoria geral da ética.

Kant assinalou que a palavra dever é frequentemente usada em sentido não moral. Por exemplo:

1. Quem quiser tornar-se um jogador de xadrez melhor deve estudar os jogos de Garry Kasparov;

2. Quem quiser ir para a faculdade de Direito deve inscrever-se nos exames de acesso.

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Grande parte da nossa conduta é governada por tais "deves". O padrão é: temos um determinado desejo (ser jogadores de xadrez melhores, ir para a faculdade de Direito); reconhecemos que um certo percurso nos ajudará a obter o que desejamos (estudar os jogos de Kasparov, fazer a inscrição para os exames de acesso); e por isso concluímos que devemos seguir o plano indicado.

Kant chamou a isto "imperativos hipotéticos" porque nos dizem o que fazer desde que tenhamos os desejos relevantes. Uma pessoa que não quisesse melhorar o seu jogo de xadrez não teria qualquer razão para estudar os jogos de Kasparov; alguém que não quisesse ir para a faculdade de Direito não teria qualquer razão para fazer os exames de admissão. Uma vez que a força de obrigatoriedade do "deves" depende de termos ou não o desejo relevante, podemos escapar à sua força renunciando simplesmente ao desejo. Assim, se deixarmos de querer ir para a faculdade de Direito, podemos escapar à obrigação de fazer o exame.

Em contraste, as obrigações morais não dependem de desejos específicos que possamos ter. A forma de uma obrigação moral não é "Se queremos isto ou aquilo, então devemos fazer isto e aquilo". Os requisitos morais são, ao invés, categóricos: têm a forma, "Deves fazer isto e aquilo, sem mais". A regra moral não é, por exemplo, que devemos ajudar as pessoas se nos importamos com elas ou se temos outro objectivo que possamos alcançar ao auxiliá-las. A regra é, pelo contrário, q

ue devemos ser prestáveis para as pessoas independentemente dos nossos desejos e necessidades particulares. É por isso que, ao contrário dos "deves" hipotéticos, não se pode evitar as exigências morais dizendo, simplesmente, "mas isso não me interessa".

Os "deves" hipotéticos são fáceis de entender. Exigem apenas que adoptemos os meios necessários para alcançar os fins que procuramos. Por outro lado, os "deves" categóricos são misteriosos. Como podemos estar obrigados a

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comportar-nos de uma certa maneira independentemente dos fins que queremos atingir? Grande parte da filosofia moral de Kant é uma tentativa de explicar como isso é possível.

Kant defende que, assim como os "deves" hipotéticos são possíveis porque temos desejos, os "deves" categóricos são possíveis porque temos razão. Os "deves" categóricos são obrigatórios para os agentes racionais simplesmente porque são racionais. Como pode isto ser? Porque, afirma Kant, os deves categóricos derivam de um princípio que todos os seres racionais têm de aceitar. Kant chama a este princípio "imperativo categórico". Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Kant exprime o imperativo categórico assim: É uma regra que estabelece o seguinte:

Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que se torne lei universal.

Este princípio resume um procedimento para decidir se um acto é moralmente permissível. Quando estamos a ponderar fazer uma determinada acção, temos de perguntar que regra estaríamos a seguir se realizássemos essa acção. (Esta será a "máxima" do acto.) Depois, temos de perguntar se estaríamos dispostos a que essa regra fosse seguida por todos e em todas as situações. (Isso transformá-la-ia numa "lei universal", no sentido relevante.) A ser assim, a regra pode ser seguida, e o acto é permissível. No entanto, se não queremos que todas as pessoas obedeçam à regra, então não podemos seguir a regra, e o acto é moralmente proibido.

Kant dá vários exemplos para explicar como isto funciona. Suponhamos, diz Kant, que um homem precisa de pedir dinheiro emprestado, e sabe que ninguém lho emprestará a menos que prometa devolvê-lo. Mas ele sabe igualmente que será incapaz de o devolver. Enfrenta, pois,

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este problema: deverá prometer pagar a dívida, sabendo que não pode fazê-lo, de maneira a persuadir alguém a conceder-lhe o empréstimo? Se fizesse isso, a "máxima do acto" (a regra que estaria a seguir) seria: Sempre que precisares de um empréstimo, promete pagá-lo, independentemente de pensares ou não que podes de facto pagá-lo. Vejamos; poderia esta regra tornar-se uma lei universal? É óbvio que não, porque se derrotaria a si mesma. Uma vez transformada em prática universal, ninguém mais acreditaria em tais promessas, e por isso ninguém faria empréstimos. Nas palavras do próprio Kant, "ninguém acreditaria no que lhe fosse prometido, limitando-se a rir perante tal asserção por ser vão fingimento".

Outro dos exemplos de Kant tem que ver com o exercício da caridade. Imaginemos, diz Kant, que alguém recusa auxiliar os necessitados, dizendo para si: "Que tenho eu a ver com isso? Deixemos cada um ser feliz como os céus desejam, ou como cada um consegue por si. Nada tirarei nem invejarei ao próximo; mas não tenho qualquer desejo de contribuir para a sua riqueza ou para o seu auxílio quando disso tenha necessidade." Trata-se, uma vez mais, de uma regra que não podemos querer ver transformada em lei universal. Pois algures, no futuro, esse próprio homem precisará da assistência dos outros, e não quererá que os outros sejam indiferentes ao seu problema.

9.3 Regras absolutas e o dever de não mentir

Ser um agente moral significa, pois, guiar a nossa conduta por "regras universais" - regras morais válidas, sem excepção, em todas as circunstâncias. Kant pensava que a regra contra a mentira era uma destas regras. É claro que esta não era a única regra absoluta que Kant defendia - ele pensava que existiam muitas outras; a moralidade está cheia delas. Mas será útil concentrarmo-nos na regra con-

tra a mentira, por ser um exemplo adequado aos nossos propósitos. Kant dedicou um espaço considerável à discussão desta regra, e é claro que tinha convicções particularmente fortes a seu respeito. Afirmou que mentir é, em quaisquer circunstâncias, "a destruição da nossa dignidade como seres humanos".

Kant forneceu dois argumentos principais a favor desta perspectiva.

1. A sua razão principal para pensar que mentir é sempre errado era que a proibição de mentir se segue directamente do imperativo categórico. Não poderíamos querer que a mentira fosse uma lei universal, pois isso derrotar-se-ia a si mesmo; as pessoas descobririam rapidamente que não podiam confiar no que os outros dissessem, e por isso ninguém acreditaria nas mentiras. Há seguramente algo de importante aqui: para as mentiras

serem bem sucedidas, as pessoas devem em geral acreditar que os outros dizem a verdade; por isso, o sucesso de uma mentira depende da não existência de uma "lei universal" que a legitime.

Há, no entanto, um problema com este argumento, que se tornará claro se explicitarmos a linha de raciocínio de Kant de forma mais completa. Suponhamos que era necessário mentir para salvar a vida de alguém. Devemos fazê-lo? Kant levar-nos-ia a raciocinar da seguinte forma:

1) Devemos fazer apenas aquelas acções que estejam em conformidade com regras que possamos desejar ver adoptadas universalmente;

2) Se mentíssemos, estaríamos a seguir a regra "é permissível mentir";

3) Esta regra não poderia ser adoptada universalmente, porque se derrotaria a si mesma: as pessoas deixariam de acreditar umas nas outras, e então deixaria de valer a pena mentir;

4) Logo, não devemos mentir.

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O problema desta forma de raciocinar foi bem resumido por Elizabeth Anscombe quando escreveu sobre Kant, em 1958, na revista académica Philosophy:

As suas convicções rigoristas no que concerne à mentira eram tão intensas que nunca lhe ocorreu que se pode descrever uma. mentira de forma relevante como seja o que for excepto como apenas uma mentira (por exemplo, como "uma mentira em tais ou tais circunstâncias"). A sua regra sobre máximas "universalizáveis" é inútil sem estipulações quanto ao que deve contar como descrição relevante de uma acção tendo em vista a construção de uma máxima sobre ela.

Neste aspecto, Anscombe era o modelo de integridade intelectual: apesar de concordar com a conclusão de Kant, apontou prontamente o erro no seu raciocínio. A dificuldade surge no ponto 2 do argumento. Que regra exactamente estaríamos a seguir se mentíssemos? O ponto crucial é que há muitas maneiras de formular a regra; algumas podem não ser "universalizáveis" no sentido kantiano, mas outras poderiam sê-lo. Suponha-se que dizíamos que o leitor seguia esta regra R: "É permissível mentir quando fazê-lo salva a vida de uma pessoa." Poderíamos querer que R fosse transformada em "lei universal", e se o fosse R não

se derrotaria a si mesma;

2. Muitos contemporâneos de Kant pensaram que a sua insistência em regras absolutas era estranha, e disseram-no. Um crítico desafiou-o com este exemplo: Imagine-se que alguém está a fugir de um assassino e lhe diz que vai para casa esconder-se. O assassino chega então, fazendo-se passar por inocente, e pergunta para onde foi o primeiro homem. O leitor pensa que se disser a verdade, o assassino descobrirá o homem e matá-lo-á. Suponha-se ainda que o assassino está já a seguir a direcção certa, e o leitor pensa que se ficar simplesmente calado ele encontrará o homem e matá-lo-á. O que deve fazer? Podemos designar isto

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"O Caso da Pergunta do Assassino". Neste caso, a maioria das pessoas consideraria óbvioque devemos mentir. Afinal de contas, poderíamos argumentar, o que é mais importante? Dizer a verdade ou salvar a vida de alguém?

Kant respondeu a isto num ensaio com o título deliciosamente antiquado de "Sobre o Suposto Direito de Mentir por Motivos Altruístas", no qual debate O Caso da Pergunta do Assassino e oferece um segundo argumento em defesa da sua perspectiva sobre a mentira. Escreve Kant:

Depois de responder honestamente à pergunta do assassino sobre o paradeiro da sua pretendida vítima, pode dar-se o caso de ele ter fugido de modo a não se encontrar com o assassino, e dessa forma o homicídio pode não ser cometido. Mas se tivéssemos mentido e dito que ele não estava em casa quando na verdade ele tinha saído sem o sabermos, e se o assassino o tivesse então encontrado quando se ia embora e o tivesse matado, poderíamos ser justamente acusados de ter causado a sua morte. Porque se tivéssemos dito a verdade tal como a conhecíamos, talvez o assassino tivesse sido apanhado pelos vizinhos enquanto revistava a casa e dessa forma o seu acto poderia ter sido evitado. Logo, quem diz uma mentira, por mais bem intencionado que possa estar, tem de prestar contas pelas consequências, por mais imprevisíveis que sejam, e de ser castigado por causa delas [...]

Ser veraz (honesto) em todas as deliberações é, portanto, um decreto sagrado e absolutamente imperioso da razão, que não é limitado por qualquer conveniência.

Pode-se formular este argumento numa forma mais geral: Somos tentados a fazer excepções à regra contra a mentira porque nalguns casos pensamos que as consequências de dizer a

verdade seriam más e as consequências da mentira seriam boas. No entanto, nunca podemos ter a certeza das consequências das nossas acções - não podemos saber que se seguirão bons resultados. Os resultados de uma mentira podem ser inesperadamente maus. Logo, a melhor política é evitar o mal conhecido, a mentira, e arcar com as conse-

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quências. Mesmo que as consequências sejam más, não serão culpa nossa, pois teremos feito o nosso dever.

Pode-se fazer notar que um argumento semelhante se aplicaria à decisão de Truman de lançar bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki. As bombas foram lançadas na esperança de que a Guerra pudesse terminar rapidamente. Más Truman não tinha a certeza de que isso iria acontecer. Os japoneses poderiam ter-se entrincheirado, e a invasão poderia ser mesmo assim necessária. Por isso, Truman estava a apostar centenas de milhar de vidas na mera esperança de que pudessem seguir-se bons resultados.

Os problemas deste argumento são bastante óbvios - tão óbvios, de facto, que é surpreendente um filósofo da estatura de Kant não ter sido sensível a ele. Em primeiro lugar, o argumento depende de uma perspectiva excessivamente pessimista do que podemos saber. Por vezes, podemos estar bastante confiantes sobre as consequências das nossas acções, caso no qual não precisamos hesitar por causa da incerteza. Além disso - e isto é uma questão muito mais interessante, do ponto de vista filosófico -, Kant parece presumir que, apesar de sermos moralmente responsáveis pelas consequências negativas de mentir, não seríamos igualmente responsáveis por quaisquer más consequências de dizer a verdade. Suponha-se que, como resultado de dizer a verdade, o assassino encontrava a sua vítima e a matava. Kant parece presumir que não teríamos qualquer culpa. Mas poderemos escapar à responsabilidade assim tão facilmente? Afinal de contas, ajudámos o assassino. Este argumento não é, pois, muito convincente.

9.4 Conflitos entre regras

A ideia de que as regras morais são absolutas, sem excepção, é implausível à luz de casos como o da Pergunta do Assassino, e os argumentos de Kant em sua defesa são

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insatisfatórios. Mas, além do facto de ser implausível, existirão argumentos convincentes contra a ideia?

O principal argumento contra regras morais absolutas tem que ver com a possibilidade de casos de conflito. Suponha-se que defendemos ser absolutamente errado fazer A em

quaisquer circunstâncias e igualmente errado fazer B em quaisquer circunstâncias. Que dizer então do caso no qual uma pessoa é confrontada com a escolha entre fazer à e fazer B, quando tem que fazer alguma coisa e não há outras alternativas? Este tipo de caso de conflito parece mostrar que é logicamente insustentável defender que as regras morais são absolutas.

Haverá alguma forma de dar resposta a esta objecção? Uma maneira de o fazer seria negar que tais casos ocorram realmente. Peter Geach defendeu justamente esta perspectiva, apelando para a providência divina. Podemos descrever casos fictícios nos quais não há maneira de evitar violar uma das regras absolutas, afirmou, mas Deus não permitirá que tais circunstâncias existam no mundo real. No livro God and the Soul (1969) Geach escreve o seguinte:

"Mas e se as circunstâncias são de tal ordem que a observância de uma lei divina, a lei proibindo a mentira, por exemplo, acarreta a violação de outra proibição divina absoluta?" - Se Deus é racional, não ordena o impossível; se Deus governa todos os acontecimentos por meio da sua providência, pode garantir que não existam circunstâncias nas quais um homem se vê, sem culpa, confrontado com uma escolha entre actos proibidos. É claro que tais circunstâncias (com a cláusula "e não há saída" escrita na sua descrição) são susceptíveis de ser descritas de forma consistente; mas a providência divina pôde assegurar que não ocorrerão de facto. Contrariamente ao que os descrentes dizem com frequência, acreditar na existência de Deus altera de facto as nossas expectativas face ao que poderá acontecer.

Ocorrerão tais casos de facto? Não há dúvida que as regras morais sérias por vezes entramem confronto.

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durante a Segunda Guerra Mundial, os pescadores holandeses transportavam, secretamentenos seus barcos, refugiados judeus para Inglaterra, e os barcos de pesca com refugiados abordo eram por vezes interceptados por barcos patrulha nazis. O capitão nazi perguntava então ao capitão holandês qual o seu destino, quem estava a bordo, e assim por diante. Os pescadores mentiam e obtinham permissão de passagem. Ora, é claro que os pescadores tinham apenas duas alternativas, mentir ou permitir que os seus passageiros (e eles mesmos) fossem apanhados e executados. Não havia terceira alternativa; não podiam, por exemplo, manter o silêncio ou fugir aos nazis.

Suponhamos, agora, se assume as regras, "é errado mentir" e "é errado permitir o homicídio de pessoas inocentes", como absolutas. Os pescadores holandeses teriam que fazer uma destas coisas; logo, uma perspectiva moral que proíbe absolutamente ambas é incoerente. Esta dificuldade pode naturalmente ser evitada se defendermos que pelo menos uma destas regras não é absoluta. Mas é duvidoso que esta saída esteja disponível sempre que haja um conflito. É também difícil compreender, a nível mais elementar, por que razão algumas regras morais sérias deveriam ser absolutas, se outras não o são.

9.5 Outro olhar sobre a ideia fundamental de Kant

No livro A Short History ofEthics (1966), Alasdair Maclntyre sublinha que "para muitos que nunca ouviram falar de filosofia, e muito menos de Kant, a moralidade é aproximadamente o que Kant disse que era" - isto é, um sistema de regras que devemos seguir partindo de um sentido de dever, independentemente da nossa vontade e desejos. Mas, ao mesmo tempo, poucos filósofos contemporâneos defenderiam a ideia central da sua ética, o imperativo categórico, tal como foi

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formulado por Kant. Como vimos, o imperativo categórico está rodeado de problemas sérios e talvez inultrapassáveis. Não obstante, pode ser um erro abandonar o princípio kantiano demasiado depressa. Haverá alguma ideia fundamental subjacente ao imperativo categórico que possamos aceitar, mesmo que não aceitemos a forma particular de Kant a exprimir? Penso que há, e que o poder desta ideia explica, pelo menos em parte, a enorme influência de Kant.

Recorde-se que Kant pensa que o imperativo categórico é vinculativo para os agentes racionais simplesmente porque são racionais - por outras palavras, uma pessoa que não aceitasse este princípio seria culpada não apenas de ser imoral mas igualmente de ser irracional. Esta é uma ideia fascinante: pensar que há restrições não só morais como também racionais ao que uma pessoa de bem pode acreditar e fazer. Mas o que significa isto ao certo? Em que sentido seria irracional rejeitar o imperativo categórico?

A ideia fundamental está relacionada com o pensamento de que um juízo moral tem de se apoiar em boas razões - se é verdade que devemos (ou não devemos) fazer tal ou tal coisa, então tem de existir uma razão pela qual devemos (ou não devemos) fazê-la. Por exemplo, podemos pensar que não devemos atear fogos florestais porque se destruiriam bens alheios e morreriam pessoas. A inovação kantiana consiste em fazer notar que quaisquer considerações que aceitemos como razões num dado caso temos também de aceitar como

razões noutros casos. Se houver outro caso no qual se destruiriam bens alheios e morreriam pessoas, também neste caso temos de aceitar isso como uma razão a favor da nossa acção. De nada serve dizer que aceitamos razões algumas vezes, mas não sempre; ou que as outras pessoas devem respeitá-las e nós não. As razões morais, se são mesmo válidas, são vinculativas para todas as pessoas em todos os momentos. Isto é um requisito de consistência; e Kant tinha razão ao pensar que nenhum ser racional o pode negar.

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Esta é a ideia kantiana - ou, deveria antes dizer-se, uma das ideias kantianas - que se tem revelado tão influente. Tem uma série de implicações importantes. Implica que uma pessoa não pode encarar-se como especial de um ponto de vista moral: não pode pensar de forma consistente que tem permissão para agir de determinadas maneiras proibidas aos outros, ou que os seus interesses são mais importantes do que os interesses das outras pessoas. Como assinalou um comentador, não posso afirmar que é correcto eu beber a sua cerveja e depois queixar-me quando o leitor bebe a minha. A ideia implica, além disso, que há restrições racionais ao que podemos fazer: podemos querer fazer uma coisa - digamos, beber a cerveja de alguém - mas reconhecemos que não podemos consistentemente fazê-lo porque não podemos ao mesmo tempo aceitar a implicação de alguém poder beber a nossa cerveja. Se Kant não foi o primeiro e reconhecer isto, foi o primeiro a transformá-lo na pedra basilar de um sistema moral plenamente desenvolvido. Essa foi a sua grande contribuição.

Mas Kant foi ainda mais longe e afirmou que a consistência requer regras sem excepções. Não é difícil ver como a sua ideia fundamental o impeliu nessa direcção; mas esse passo não era mais necessário, e tem desde então causado problemas à sua teoria. Mesmo no seio de uma estrutura kantiana, as regras não precisam de ser encaradas como absolutas. Tudo o que a ideia fundamental de Kant exige é que quando violarmos uma regra o façamos por uma razão que estivéssemos dispostos a ver aceite por todos numa situação idêntica. No caso da Pergunta do Assassino, isto significa que só podemos violar a regra de proibição da mentira se aceitarmos que qualquer pessoa o faça quando confrontada com a mesma situação. E a maioria de nós concordaria prontamente com isso.

Também Harry Truman teria, sem dúvida, concordado que qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias teria boas razões para lançar a bomba. Assim, mesmo que Truman

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esteja errado, os argumentos de Kant não o demonstram. Poderíamos dizer, ao invés, queTruman errou porque dispunha de outras opções cujas consequências teriam sido melhores- muitas pessoas defenderam, por exemplo, que devia ter negociado o fim da Guerr

a emtermos que os japoneses pudessem aceitar. Mas afirmar que a negociação teria sido melhor,por causa das suas consequências, é muito diferente de dizer que a via escolhida por Trumanviolou uma regra absoluta.

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Capítulo 10

Kant e o respeito pelas pessoas

Há alguém que não admire o Homem? GIOVANI Pico DELLA MIRANDOLA,

Discurso sobre a Dignidade do Homem (1486)

10.1 A ideia de dignidade humana

Kant pensava que os seres humanos ocupam um lugar especial na criação. Naturalmente, não era o único a pensar assim. Trata-se de uma velha ideia: Desde a Antiguidade, os seres humanos consideraram-se essencialmente diferentes de todas as outras criaturas - e não apenas diferentes, mas melhores. De facto, os seres humanos consideram-se tradicionalmente muitíssimo fabulosos. Kant certamente que o fez. Do seu ponto de vista, os seres humanos têm "um valor intrínseco, isto é, dignidade", que lhes dá valor "além de qualquer preço". Os outros animais, pelo contrário, têm apenas valor na medida em que servem os propósitos humanos. Nas suas Lições de Ética (1779), Kant escreveu:

Mas no que diz respeito aos animais, não ternos deveres directos. Os animais [...] existem apenas como meios para um fim. Esse fim é o homem.

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Podemos, portanto, usar os animais como nos aprouver. Não temos sequer um "dever directo" de nos refrear de os torturar. Kant admite que provavelmente é errado torturá-los, mas a razão não é que isso lhes causa sofrimento; a razão é apenas que os seres humanos poderiam sofrer indirectamente em resultado disso, porque "quem é cruel para os 'animais torna-se rude igualmente no tratamento dos homens". Assim, na perspectiva de Kant, os meros animais não têm importância moral. Os seres humanos são, no entanto, uma história completamente diferente. Segundo Kant, os seres humanos nunca podem ser "usados" como meios para um fim. Kant foi mesmo ao ponto de sugerir que esta é a lei crucial da moralidade.

Como vários outros filósofos, Kant pensava que a moralidade pode resumir-se num princípio fundamental, a partir do qual se derivam todos os nossos deveres e obrigações. Chamou a este princípio "imperativo categórico". Na Fundamentação da Metafísica dos

Costumes (1785) exprimiu-o desta forma:

Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei universal.

No entanto, Kant deu igualmente outra formulação do imperativo categórico. Mais adiante, na mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princípio moral essencial afirma o seguinte:

Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca apenas como um meio.

Os estudiosos têm-se perguntado desde então por que razão pensava Kant que estas duas regras são equivalentes. Parecem exprimir concepções morais diferentes. Serão, como Kant pensava aparentemente, duas versões da mesma

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ideia básica, ou são simplesmente ideias diferentes? Não nos vamos deter nesta questão.Vamos, em vez disso, concentrar-nos na crença de Kant de que a moralidade exige que tratemos as pessoas "sempre como um fim e nunca apenas como um meio". O que significa exactamente isto, e que razão há para pensar que é verdade?

Quando Kant afirmou que o valor dos seres humanos "está acima de qualquer preço" não tinha em mente apenas um efeito retórico, mas sim um juízo objectivo sobre o lugar dos seres humanos na ordem das coisas. Há dois factos importantes sobre as pessoas que apoiam, do seu ponto de vista, este juízo.

Primeiro, uma vez que as pessoas têm desejos e objectivos, as outras coisas têm valor para elas em relação aos seus projectos. As meras "coisas" (e isto inclui os animais que não são humanos, considerados por Kant incapazes de desejos e objectivos conscientes) têm valor apenas como meios para fins, sendo os fins humanos que lhes dão valor. Assim, se quisermos tornar-nos melhores jogadores de xadrez, um manual de xadrez terá valor para nós; mas para lá de tais objectivos o livro não tem valor. Ou, se quisermos viajar, um carro terá valor para nós; mas além de tal desejo o carro não tem valor.

Segundo, e ainda mais importante, os seres humanos têm "um valor intrínseco, isto é, dignidade", porque são agentes racionais, ou seja, agentes livres com capacidade para tomar as suas próprias decisões, estabelecer os seus próprios objectivos e guiar a sua conduta pela razão. Uma vez que a lei moral é a lei da razão, os seres racionais são a encarnação da lei moral em si. A única forma de a bondade moral poder existir é as criaturas racionais apreenderem o que devem fazer e, agindo a partir de um sentido de deve

r, fazê-lo. Isto, pensava Kant, é a única coisa com "valor moral". Assim, se não existissem seres racionais a dimensão moral do mundo simplesmente desapareceria.

Não faz sentido, portanto, encarar os seres racionais apenas como um tipo de coisa valiosa entre outras. Eles

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são os seres para quem as meras "coisa" têm valor, e são os seres cujas acções conscientes têm valor moral. Kant conclui, pois, que o seu valor tem de ser absoluto, e não comparável com o valor de qualquer outra coisa.

Se o seu valor está "acima de qualquer preço", segue-se que os seres racionais têm de ser tratados "sempre como um fim e nunca apenas como um meio". Isto significa, a um nível muito superficial, que temos o dever estrito de beneficência relativamente às outras pessoas: temos de lutar para promover o seu bem-estar; temos de respeitar os seus direitos, evitar fazer-lhes mal, e, em geral, "empenhar-nos, tanto quanto possível, em promover a realização dos fins dos outros".

Mas a ideia de Kant tem também uma implicação um tanto ou quanto mais profunda. Os seres de que estamos a falar são racionais, e "tratá-los como fins em si" significa respeitar a sua racionalidade. Assim, nunca podemos manipular as pessoas, ou usá-las, para alcançar os nossos objectivos, por melhores que esses objectivos possam ser. Kant dá o seguinte exemplo, semelhante a outro que utiliza para ilustrar a primeira versão do seu imperativo categórico: Suponha que precisa de dinheiro e quer um empréstimo, mas sabe que não será capaz de devolvê-lo. Em desespero, pondera fazer uma falsa promessa de pagamento de maneira a levar um amigo a emprestar-lhe o dinheiro. Poderá fazer isso? Talvez precise do dinheiro para um propósito meritório - tão bom, na verdade, que poderia convencer-se a si mesmo de que a mentira seria justificada. No entanto, se mentisse ao seu amigo, estaria apenas a manipulá-lo e a usá-lo "como um meio".

Por outro lado, como seria tratar o seu amigo "como um fim"? Suponha que dizia a verdade, que precisava do dinheiro para um certo objectivo mas não seria capaz de devolvê-lo. O seu amigo poderia, então, tomar uma decisão sobre o empréstimo. Poderia exercer os seus próprios poderes racionais, consultar os seus próprios valores e

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desejos, e fazer uma escolha livre e autónoma. Se decidisse de facto emprestar o dinheiro para o objectivo declarado, estaria a escolher fazer seu esse objectivo. Dessa forma, o leitor não estaria a usá-lo como um meio para alcançar o seu objectivo, pois seria agora igualmente o objectivo dele. É isto que Kant queria dizer quando afirmou que "os seres racionais [...] têm sempre de ser estimados simultaneamente como fins, isto é, somente como seres que têm de poder conter em si a finalidade da acção".

A concepção kantiana da dignidade humana não é fácil de entender; é provavelmente a noção mais difícil discutida neste livro. Precisamos de encontrar uma forma de tornar a ideia mais clara. Para isso, analisaremos com algum detalhe uma das suas aplicações mais importantes. Isto pode ser bem melhor do que uma discussão teórica árida. Kant pensava que se tomarmos a sério a ideia da dignidade humana seremos capazes de entender a prática da punição de crimes de uma forma nova e reveladora. O resto deste capítulo será dedicado à análise deste exemplo.

10.2 Retribuição e utilidade na teoria da punição

Jeremy Bentham, o grande teórico utilitarista, afirmou que: "Toda a punição é danosa: toda a punição é em si um mal." Com isto queria dizer que a punição implica sempre tratar mal as pessoas, quer tirando-lhes a liberdade (detenção), os seus pertences (multas) ou mesmo as suas vidas (pena capital). Uma vez que todas estas coisas são males, exigem uma justificação. Como poderá ser correcto tratar assim as pessoas?

A resposta tradicional é que a punição se justifica como forma de "retribuir" ao ofensor o acto malévolo cometido. Os que cometeram crimes, como roubar ou atacar outras pessoas, merecem ser maltratados. É essencialmente uma questão de justiça: Se alguém faz mal a outras pessoas, a

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justiça exige que sofra também algum dano. Como reza o adágio antigo, "Olho por olho, dente por dente".

Esta perspectiva é conhecida como retributivismo. O retributivismo era, segundo Bentham, uma ideia inteiramente insatisfatória, porque advogava a imposição de sofrimento sem qualquer ganho compensatório em felicidade. O retributivismo leva-nos a aumentar, e não a diminuir, a quantidade de sofrimento no mundo. Isto não é uma implicação "oculta" do retributivismo. Kant, que era um retributivista, tinha consciência desta implicação e aceitou-

a abertamente. Na Crítica da Razão Prática (1788), escreveu:

Quando alguém que se compraze em incomodar e vexar as pessoas que gostam da paz recebe por fim uns merecidos açoites, isso é certamente um mal, mas todo& o aprovam e consideram um bem em si, ainda que nada mais resulte daí.

Assim, punir pessoas pode aumentar a quantidade de sofrimento no mundo; mas, segundo Kant, isso não faz mal, pois o acréscimo de sofrimento é suportado pelo criminoso que, afinal de contas, o merece.

O utilitarismo faz uma abordagem completamente diferente. Segundo o utilitarismo, o nosso dever é fazer tudo quanto aumente a quantidade de felicidade no mundo. A punição é, claramente, "um mal" porque torna alguém - a pessoa que é punida - infeliz. Por isso, Bentham afirma que a punição, "a ser admitida, deveria sê-lo na medida em que prometa excluir um mal maior". Por outras palavras, pode justificar-se apenas se vier a ter resultados bons que, sopesados, superem o mal cometido.

Assim, para o utilitarista, a questão é saber se por meio da punição dos criminosos se serve uma finalidade boa, além de lhes causar sofrimento. Os utilitaristas responderam tradicionalmente pela afirmativa. Há duas formas pelas quais a prática de punir os infractores da lei beneficia a sociedade.

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Primeiro, punir os criminosos ajuda a prevenir o crime, ou pelo menos reduz o nível de actividade criminosa numa sociedade. As pessoas que se sentem tentadas a comportar-se mal, podem ser dissuadidas de o fazer se souberem que serão punidas. Naturalmente, a ameaça de punição nem sempre será eficaz. Por vezes as pessoas violarão a lei de qualquer maneira. Mas haverá menos delinquência se existir a ameaça de punição. Imagine como seria se a polícia não estivesse preparada para prender ladrões; teríamos de ser uns românticos incuráveis para não reconhecer que haveria muito mais assaltos. Uma vez que a conduta criminosa causa infelicidade às vítimas, ao prevenir o crime (pela imposição de punições) estamos a prevenir a infelicidade - de facto, estamos sem dúvida a prevenir mais infelicidade do que a que causamos. Assim, havendo um ganho nítido de felicidade, os utilitaristas considerariam a punição justificada.

Segundo, um sistema bem concebido de punição poderia ter um efeito de reabilitação dos malfeitores. Os criminosos são frequentemente pessoas com problemas emocionais, com dificuldade de funcionar bem em sociedade. Têm com frequência uma educação deficiente e são incapazes de manter um emprego. Tendo isto em conta, porque não responder ao crime atacando os problemas que lhe estão na origem? Se alguém viola as leis sociais, é um perigo

para a sociedade e pode, antes de mais, ser detido para se xemover o perigo. Mas enquanto está detido, os seus problemas devem ser tratados mediante terapia psicológica, oportunidades educacionais, ou treino profissional, de acordo com as suas necessidades. Se puder por fim ser devolvido à sociedade como um cidadão produtivo em vez de um criminoso, os beneficiários serão ele próprio e a sociedade.

O resultado lógico desta maneira de pensar é que devemos abandonar a noção de punição e substitui-la pela noção mais humana de tratamento. Karl Menninger, o distinto

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psicólogo, chegou a esta mesma conclusão quando escreveu, em 1959:

Nós, os agentes da sociedade, temos de pôr fim ao jogo de pagar na mesma moeda no qual o malfeitor se envolveu estupidamente e nos envolveu a todos. Nós não somos levados, como ele, a agir de forma impulsiva e selvagem. O conhecimento traz poder, e detendo o poder não há necessidade de manter a vingança temerosa dos antigos sistemas penais. Em seu lugar, devemos colocar um programa terapêutico sereno e digno para, se possível, reabilitar os perturbados, proteger a sociedade durante o período de tratamento e preparar o seu regresso, orientado à cidadania útil, logo que isso se possa fazer.

Estas ideias utilitaristas dominaram a lei anglo-americana no século passado, e hoje a teoria utilitarista da punição constitui a ortodoxia dominante. As prisões, em tempos meros lugares de isolamento, foram reconcebidas (pelo menos em teoria) como centros de reabilitação, incluindo psicólogos, bibliotecas, programas educativos e treino vocacional. A mudança de pensamento foi tão grande que o termo prisão já não é bem aceite; a nomenclatura preferida é instituição correccional, e as pessoas que aí trabalham são funcionários correccionais. Convém notar as implicações da nova terminologia - os detidos não estão lá para ser "punidos" mas sim "corrigidos". Na realidade, as prisões continuam a ser brutais e, com demasiada frequência, os programas de reabilitação têm sido desencorajadoramente mal sucedidos. Não obstante, os programas são, supostamente, reabilitadores. A vitória da ideologia utilitarista foi virtualmente completa.

10.3 O retributivismo de Kant

Como todas as ortodoxias, a teoria utilitarista da punição suscitou opositores. Muita da oposição é de natureza prática; apesar dos esforços, os programas de reabilitação

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não têm funcionado muito bem. Na Califórnia, por exemplo, tem-se feito mais para"reabilitar" criminosos do que em qualquer outro lugar; no entanto, a taxa de reincidência é aí mais elevada do que na maioria dos outros estados norte-americanos. Mas alguma da oposição é também baseada em considerações inteiramente teóricas que recuam pelo menos a Kant.

Kant rejeitou "as contorções de serpente do utilitarismo" porque, afirmou, a teoria é incompatível com a dignidade humana. Em primeiro lugar, leva-nos a calcular como usar as pessoas como meios para um fim, e isto não é permissível. Se prendemos um criminoso de maneira a manter o bem-estar da sociedade, estamos apenas a usá-lo em benefício dos outros. Isto viola a regra fundamental de que "um homem nunca deve ser usado apenas como um meio para servir os fins de outro".

Além disso, o objectivo da "reabilitação", apesar de parecer nobre, não passa na verdade de uma tentativa de transformar as pessoas no que pensamos que devem ser. Como tal, é uma violação dos seus direitos de seres autónomos para decidir por si que género de pessoas querem ser. Temos de facto o direito de responder à sua maldade "retaliando-os" por isso, mas não temos o direito de violar a sua integridade tentando manipular as suas personalidades.

Desta forma Kant distanciou-se das justificações utilitaristas da punição. Defendeu, ao invés, que a punição deve ser governada por dois princípios. Primeiro, as pessoas devem ser punidas simplesmente porque cometeram crimes, e por nenhuma outra razão:

A punição judicial nunca pode ser administrada meramente como um meio para promover outro bem, para o criminoso em si ou para a sociedade, mas tem de ser imposta em todos os casos apenas porque o indivíduo ao qual é infligida cometeu um crime.

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E, segundo, Kant afirma que é importante punir o criminoso de forma proporcional à seriedade do seu crime. Pequenas punições podem bastar para crimes menores, mas as grandes punições são necessárias em resposta a crimes maiores:

Mas qual é a forma e a medida da punição que a justiça pública toma como seu princípio e padrão? É apenas o princípio de igualdade, pelo qual o prato da balança da Justiça é levado a não pender mais para um lado do que para o outro [...] Pode pois dizer-se: "Se difamas outra pessoa, difamas-te a ti mesmo; se atacas outra pessoa, atacas-te a ti mesmo; se matas outra pessoa, matas-te a ti mesmo." Isto é [...] o único princípio que [...] pode definitivamente estabelecer a qualidade e

quantidade de uma pena justa.

Este segundo princípio leva Kant a apoiar inevitavelmente a pena capital; pois em resposta a um homicídio, apenas a morte é uma pena suficientemente severa. Numa passagem célebre, Kant afirma:

Mesmo que uma sociedade civil resolvesse dissolver-se com o consentimento de todos os seus membros -como pode supor-se no caso de um povo habitando uma ilha que resolvesse separar-se e espalhar-se pelo mundo -, o último homicida que estivesse na prisão deveria ser executado antes de a resolução ser levada avante. Isto deve ser feito para que todos compreendam a remuneração dos seus actos, e para que a culpa de sangue não permaneça entre o povo; pois de outra forma todos serão encarados como participantes no homicídio enquanto violação pública da Justiça.

Vale a pena notar que o utilitarismo foi condenado por violar os dois princípios kantianos. Nada há na ideia de base do utilitarismo que estabeleça limites à punição dos culpados, ou que limite a extensão da punição em função do que é merecido. Se o propósito da punição épreservar

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o bem-estar geral, como afirma o utilitarismo, pode por vezes acontecer que o bem-estargeral seja servido mediante a "punição" de alguém que não cometeu um crime, uma pessoainocente. De modo análogo, pode acontecer que o bem-estar geral seja promovido medianteuma punição excessiva - uma punição maior poderá ter um efeito dissuasor maior. Masambas as coisas são, aparentemente, violações da justiça, que o retributivismo nãopermitiria.

Mas os dois princípios de Kant não constituem uma argumentação em favor da punição ouuma justificação da mesma. Apenas descrevem os limites quanto ao que a punição justapode envolver: Só os culpados podem ser punidos, e a ofensa feita a uma pessoa punida temde ser comparável à ofensa que ela infligiu aos outros. Precisamos ainda de um argumentopara mostrar que a prática da punição, concebida desta forma, seria uma coisa moralmenteboa. Notámos já que Kant encara a punição como uma questão de justiça. Kant afirma quese os culpados não forem punidos, não será feita justiça. Isto é um argumento. Mas Kantfornece ainda um argumento adicional, baseado na sua concepção de que as pessoas devemser tratadas como "fins em si". Este argumento adicional é a contribuição específica de Kantpara a teoria do retributivismo.

Ao que tudo indica, é improvável que pudéssemos descrever a punição de um indivíduocomo uma forma de "respeitá-lo enquanto pessoa" ou como "tratá-lo enquanto fim em si".Como poderia o acto de retirar a uma pessoa a sua liberdade, enviando-a para a p

risão, seruma forma de mostrar "respeito" por ela? No entanto, é exactamente isso que Kant sugere.Este filósofo insinua ainda, de forma mais paradoxal, que executar alguém pode também seruma forma de tratá-lo como "um fim". Como pode isto ser assim?

Recordemos que, para Kant, tratar alguém como "um fim em si" significa tratá-lo como umser racional. Temos pois de perguntar o que significa tratar alguém como um ser racional.Um ser racional é alguém capaz de raciocinar

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E, segundo, Kant afirma que é importante punir o criminoso de forma proporcional à seriedade doseu crime. Pequenas punições podem bastar para crimes menores, mas as grandes punições são necessárias em resposta a crimes maiores:

Mas,qual é a forma e a medida da punição que a justiça pública toma como seu princípio e padrão? É apenas o princípio de igualdade, pelo qual o prato da balança da Justiça é levado a não pender mais para um lado do que para o outro [...] Pode pois dizer-se: "Se difamas outra pessoa, difamas-te a ti mesmo; se atacas outra pessoa, atacas-te a ti mesmo; se matas outra pessoa, matas-te a ti mesmo." Isto é [...] o único princípio que [...] pode definitivamente estabelecer a qualidade e quantidade de uma pena justa.

Este segundo princípio leva Kant a apoiar inevitavelmente a pena capital; pois em resposta a um homicídio, apenas a morte é uma pena suficientemente severa. Numa passagem célebre, Kant afirma:

Mesmo que uma sociedade civil resolvesse dissolver-se com o consentimento de todos os seus membros - como pode supor-se no caso de um povo habitando uma ilha que resolvesse separar-se e espalhar-se pelo mundo -, o último homicida que estivesse na prisão deveria ser executado antes de a resolução ser levada avante. Isto deve ser feito para que todos compreendam a remuneração dos seus actos, e para que a culpa de sangue não permaneça entre o povo; pois de outra forma todos serão encarados como participantes no homicídio enquanto violação pública da Justiça.

Vale a pena notar que o utilitarismo foi condenado por violar os dois princípios kantianos. Nada há na ideia de base do utilitarismo que estabeleça limites à punição dos culpados, ou que limite a extensão da punição em função do que é merecido. Se o propósito da punição é preservar

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o bem-estar geral, como afirma o utilitarismo, pode por vezes acontecer que o bem-estar geral seja servido mediante a "punição" de alguém que não cometeu um crime, uma pessoa inocente. De modo análogo, pode acontecer que o bem-estar geral seja promovido mediante uma punição excessiva - uma punição maior poderá ter um efeito dissuasor maior. Mas ambas as coisas são, aparentemente, violações da justiça, que o retributivismo não permitiria. Mas os dois princípios de Kant não constituem uma argumentação em favor da punição ou uma justificação da mesma. Apenas descrevem os limites quanto ao que a punição justa pode envolver: Só os culpados podem ser punidos, e a ofensa feita a uma pessoa punida tem de ser comparável à ofensa que ela infligiu aos outros. Precisamos ainda de um argumento para mostrar que a prática da punição, concebida desta forma, seria uma coisa moralmente boa. Notámos já que Kant encara a punição como uma questão de justiça. Kant afirma que se os culpados não forem punidos, não será feita justiça. Isto é um argumento. Mas Kant fornece ainda um argumento adicional, baseado na sua concepção de que as pessoas devem ser tratadas como "fins em si". Este argumento adicional é a contribuição específica de Kant para a teoria do retributivismo.

Ao que tudo indica, é improvável que pudéssemos descrever a punição de um indivíduo como uma forma de "respeitá-lo enquanto pessoa" ou como "tratá-lo enquanto fim em si". Como poderia o acto de retirar a uma pessoa a sua liberdade, enviando-a para a prisão, ser uma forma de mostrar "respeito" por ela? No entanto, é exactamente isso que Kant sugere. Este filósofo insinua ainda, de forma mais paradoxal, que executar alguém pode também ser uma forma de tratá-lo como "um fim". Como pode isto ser assim? Recordemos que, para Kant, tratar alguém como "um fim em si" significa tratá-lo como um ser racional. Temos pois de perguntar o que significa tratar alguém como um ser racional. Um ser racional é alguém capaz de raciocinar

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sobre a sua conduta e decidir livremente o que fazer, com base na sua própria concepção do que é melhor. Por ter estas capacidades, um ser racional é responsável pelas suas acções.

Precisamos recordar a diferença entre:

1. Tratar alguém como um ser responsável;

2. Tratar alguém como um ser que não é responsável pela sua conduta.

Os meros animais, carentes de razão, não são responsáveis pelas suas acções; tal como não o são as pessoas com doenças mentais e sem controlo sobre si rríesmas. Em tais casos seria absurdo "responsabilizá-las". Não poderíamos com propriedade sentir gratidão ou ressentimento relativamente a elas, pois não são responsáveis por qualquer bem ou mal que

causem. Além disso, não podemos esperar que percebam o porquê de os tratarmos como tratamos, assim como não podemos esperar que percebam as razões do seu próprio comportamento. Não podemos, pois, deixar de manipulá-los, em vez de os tratar como indivíduos autónomos. Quando batemos num cão que urinou no tapete, por exemplo, podemos fazê-lo numa tentativa de evitar que volte a fazê-lo; mas estamos apenas a tentar "treiná-lo". Não poderíamos discutir com ele, mesmo que o desejássemos. O mesmo acontece relativamente aos seres humanos com perturbações mentais.

Por outro lado, os seres racionais são responsáveis pelo seu comportamento e por isso podem prestar contas do que fazem. Podemos sentir gratidão quando se portam bem e ressentimento quando se portam mal. Recompensa e punição - e não "treino" ou outra forma de manipulação - são as expressões naturais desta gratidão ou ressentimento. Por isso, ao punir pessoas estamos a responsabilizá-las pelas suas

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acções de uma forma que não podemos aplicar aos meros animais. Estamos a reagir a elasnão como pessoas "doentes" ou que não têm controlo sobre si, mas como pessoas queescolheram livremente executar os seus actos malévolos.

Além disso, ao lidar com agentes responsáveis podemos adequadamente permitir que a suaconduta determine, pelo menos em parte, a forma como lhes respondemos. Se alguém foiamável connosco, podemos responder retribuindo a amabilidade; e se alguém foidesagradável, podemos também tomar isso em conta ao decidir como lidamos com essapessoa. Porque razão não haveríamos de fazê-lo? Porque razão haveríamos de tratar todasas pessoas da mesma maneira, independentemente da forma como elas escolheramcomportar-se?

Kant dá a este último aspecto uma inflexão peculiar. Na sua opinião, há uma razão lógicamais profunda para pagar às outras pessoas "na mesma moeda". Aqui entra em jogo aprimeira formulação do imperativo categórico. Quando decidimos o que fazer, proclamamosde facto o desejo de ver a nossa conduta erigida em "lei universal". Logo, quando um serracional decide tratar as pessoas de certa maneira, decreta que em seu juízo essa é a formacomo as pessoas devem ser tratadas. Por isso, se em resposta o tratamos da mesma forma,não estamos a fazer mais do que tratá-lo como ele decidiu que as pessoas devem sertratadas. Se ele trata mal os outros, e nós o tratamos mal, estamos a obedecer à sua própriadecisão. (E, é claro, se ele trata bem os outros, e o tratamos bem em troca, estamos tambéma obedecer à escolha que fez.) Estamos a permitir-lhe decidir como deve ser tratado e porisso estamos, num sentido perfeitamente claro, a respeitar o seu juízo, ao permitir que estecontrole a maneira como o tratamos. Por isso, Kant afirma com respeito ao criminoso: "Asua má acção arrasta consigo a punição sobre si."

Associando a punição com a ideia de tratar as pessoas como seres racionais, Kant deu àteoria retributiva uma

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nova densidade. O que em última instância pensamos da teoria dependerá do que pensamossobre as grandes questões identificadas por Kant - quanto ao que pensamos sobre anatureza do crime e dos criminosos. Se os infractores da lei são, como sugere Menninger,"personalidades perturbadas", "forçadas a realizar acções impulsivas e selvagens" sobre asquais não têm controlo, então o modelo terapêutico terá uma maior atracção do que aatitude mais severa de Kant. De facto, o próprio Kant insistiria em que, se os criminosos nãosão agentes responsáveis, não faz sentido indignarmo-nos com o seu comportamento e"puni-los" por causa dele. Mas na medida em que sejam encarados como pessoasresponsáveis, sem desculpas, que simplesmente escolheram violar os direitos dos outros semqualquer motivo racionalmente aceitável, o retributivismo kantiano continuará a ter umgrande poder persuasivo.

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Capítulo 11

A ideia de contrato social

As paixões que inclinam os seres humanos a favor da paz são o medo da morte; o desejo das coisasnecessárias a uma vida confortável; e a esperança de que o seu engenho permita alcançá-las. E a razãosugere cláusulas de paz convenientes, sobre as quais os homens podem ser levados a acordo. Estas cláusulassão o que costuma chamar-se as Leis da Natureza.

THOMAS HOBBES, Leviathan (1651)

11.1 O argumento de Hobbes

Imagine-se que afastamos todas as bases tradicionais da moralidade. Suponha-se, primeiro, que não existe qualquer Deus para emitir mandamentos e recompensar a virtude; e, segundo, que não há "factos morais" integrados na natureza das coisas. Suponha-se ainda que negamos o carácter naturalmente altruísta dos seres humanos e encaramos as pessoas como essencialmente motivadas pela defesa dos seus próprios interesses. Qual é, pois, a origem da

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moralidade? Se não podemos apelar para Deus, aos factos morais ou ao altruísmo natural, restaráalguma coisa sobre a qual a moralidade se possa fundar?

Thomas Hobbes, o mais distinto filósofo britânico do século xvii, tentou mostrar que a moralidade não depende de qualquer dessas coisas. A moralidade deveria ser entendida, ao invés, como a solução de um problema prático que se coloca a seres humanos com interesses próprios. Todos queremos viver tão bem quanto possível; mas ninguém pode prosperar sem uma ordem social pacífica e cooperante. E não podemos ter uma ordem social pacífica e cooperante sem regras. As regras morais são apenas, pois, as regras necessárias para nos permitir obter os benefícios da vida em sociedade. É essa a chave para a compreensão da ética e não Deus, o altruísmo ou os "factos morais".

Hobbes começa por perguntar como seria se não houvesse regras sociais e nenhum mecanismo comummente aceite para as impor. Imaginemos, se quisermos, que não havia governos - nem leis, polícias ou tribunais. Nesta situação, cada um de nós seria livre de fazer o que quisesse. Hobbes chamou a isto estado de natureza. Como seria isto?

Hobbes pensava que seria horrível. No Leviathan escreveu que não haveria

maneira de ser empreendedor, pois o fruto do trabalho seria incerto: e consequentemente a terra não seria cultivada; não haveria navegação nem utilização dos produtos que podem ser transportados por mar; nem edifícios confortáveis; nem instrumentos para auxiliar a deslocação e remoção de coisas que requerem, muita força; nem conhecimento da face da Terra; nem mecanismos para contar o tempo; nem artes; nem letras; nem sociedade; e, o que é o pior, haveria um medo contínuo e o perigo de morte violenta; e a vida do homem seria solitária, pobre, sórdida, brutal e curta.

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Porque razão seriam as coisas tão más? Não é porque as pessoas são más. E, isso sim, porcausa de quatro factos fundamentais relativos às condições da vida humana:

- Primeiro, há o facto da igualdade de necessidades. Cada um de nós precisa das mesmas coisas básicas de modo a sobreviver - comida, vestuário, abrigo. Apesar de podermos diferir em algumas das nossas necessidades (os diabéticos precisam de insulina, os outros não), somos todos essencialmente iguais;

- Segundo, há o facto da escassez. Não vivemos no Paraíso, onde o leite corre em regatos e todas as árvores estão pejadas de frutos suculentos. O mundo é um local duro e inóspito, onde as coisas de que precisamos para sobreviver não existem em quantidade abundante. Temos de trabalhar duramente para as produzir, e mesmo assim muitas vezes não temos o suficiente;

- Se não há suficientes bens essenciais para sobrevivermos, quem os irá providenciar? Uma vez que cada um de nós quer viver, e viver tão bem quanto possível, cada um de nós deseja tanto quanto puder obter. Mas conseguiremos triunfar sobre os outros, que também querem os bens escassos? Hobbes pensa que não, por causa do terceiro facto sobre a nossa condição, o facto da igualdade essencial dos poderes humanos. Ninguém é superior a todos os outros, em força e engenho, de maneira a poder vencê-los indefinidamente. É claro que algumas pessoas são mais espertas e mais fortes do que outras; mas mesmo as mais fortes podem ser derrotadas por outras actuando em conjunto;

- Se não podemos prevalecer por meio da força, que esperança nos resta? Poderemos, por exemplo, confiar na caridade ou boa-vontade das outras pessoas para nos ajudar? Não podemos. O quarto e último facto é o altruísmo limitado. Mesmo que as pessoas não sejam totalmente egoístas, importam-se, apesar

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de tudo, demasiado consigo mesmas; e não podemos simplesmente presumir que sempre queos nossos interesses vitais entram em conflito com os delas, elas se afastarão.

Quando juntamos estes factos, emerge um retrato sinistro. Todos1 precisamos das mesmas coisas básicas, e não as há em quantidade suficiente para sobrevivermos. Logo, seremos colocados numa espécie de competição por elas. Mas nenhum de nós tem capacidade para triunfar sobre a concorrência, e ninguém - ou quase ninguém - estará disposto a abdicar da satisfação das suas necessidades em favor dos outros. O resultado é, nas palavras de Hobbes, um "estado de guerra constante de um contra todos". E trata-se de uma guerra que ninguém pode esperar vencer. Uma pessoa razoável que queira sobreviver, tentará recolher o que precisa e preparar-se para o defender dos atacantes. Mas os outros farão a mesma coisa. São estas as razões pelas quais a vida no estado de natureza seria intolerável.

Hobbes não pensava que tudo isto fosse mera especulação. Sublinhou que isto é o que acontece de facto quando os governos caem, como durante uma insurreição civil. As pessoas começam desesperadamente a armazenar comida, a armar-se e a afastar-se dos seus vizinhos. (O que faria o leitor se amanhã de manhã ao acordar descobrisse que por causa de uma qualquer catástrofe o governo tinha caído, não havendo leis, polícia ou tribunais em funcionamento?) Além disso, entre si, as nações do mundo, sem uma lei internacional actuante, estão numa situação muito parecida à dos indivíduos no "estado de natureza", e estão constantemente a atacar-se, armadas e desconfiadas.

Para as pessoas escaparem ao estado de natureza, é claro que têm de encontrar maneir

as de cooperar entre si. Numa sociedade estável e cooperante, a quantidade de bens essenciais pode aumentar e ser distribuída por quantos tenham

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deles necessidade. Mas são necessárias duas coisas para isto poder acontecer. Primeiro, temde haver garantias de que as pessoas não farão mal umas às outras - as pessoas têm de poder trabalhar juntas sem medo de ataques, roubos ou traições. E, segundo, as pessoas têm de poder confiar umas nas outras quanto ao cumprimento dos seus acordos. Só então pode haver uma divisão do trabalho. Se uma pessoa se dedica à cultura da terra e outra passa o tempo a ajudar os doentes, enquanto uma terceira constrói casas, esperando cada uma partilhar os benefícios criados pelas outras, cada pessoa na cadeia tem de poder confiar que os outros farão o que deles se espera.

Uma vez estabelecidas estas garantias, pode desenvolver-se uma sociedade na qual todos tenham melhores condições de vida do que no estado de natureza. Há então lugar para os "produtos importados por via marítima, edifícios confortáveis, artes, letras", e outras coisas que tais. Mas - e esta é uma das ideias principais de Hobbes - para isto acontecer, tem de se estabelecer um governo, com o seu sistema de leis, polícia e tribunais, de maneira a assegurar que as pessoas poderão viver com um receio mínimo de ataques e que terão de manter os seus compromissos. O governo é uma parte indispensável do sistema.

Para escapar ao estado de natureza as pessoas têm, pois, de concordar no estabelecimento de regras para governar as suas relações, e têm de concordar no estabelecimento de um intermediário - o Estado - com o poder necessário para aplicar estas regras. Segundo Hobbes, tal acordo existe de facto, e torna possível a vida em sociedade. A este acordo, do qual cada cidadão é parte, chama-se contrato social.

Além de explicar os propósitos do Estado, a teoria do contrato social explica a natureza da moralidade. Estão ambos estreitamente ligados: O Estado existe para aplicar as regras mais importantes necessárias para a vida em sociedade, enquanto a moralidade consiste em todo o conjunto de regras que facilita a vida em sociedade.

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Só no contexto do contrato social podemos tornar-nos seres beneficentes, porque o contrato cria as condições sob as quais podemos dar-nos ao luxo de cuidar dos outros. No estado de natureza é cada um por si; aí, seria estúpido alguém adoptar a política de "olhar pelos outros", porque só se poderia fazer isso à custa de colocar permanentemente os seus próprios interesses em risco. Mas em sociedade o altruísmo torna-se possível. Ao libertar-nos do "medo contínuo de uma morte violenta", o contrato social liberta-nos para cuidar dos outros. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o filósofo francês que depois de Hobbes está mais estreitamente identificado com esta teoria, foi ao ponto de afirmar que nos tornamos tipos diferentes de criaturas quando iniciamos relações civilizadas com os outros. Na sua obra mais famosa, O Contrato Social (1762), Rousseau escreveu:

Esta passagem do estado de natureza ao estado civil produz no Homem uma mudança admirável [...] Só então, quando a voz do dever toma o lugar dos impulsos físicos e o direito o lugar do apetite, é que o Homem, até então apenas preocupado consigo mesmo, se vê forçado a agir segundo outros princípios, e a consultar a sua razão antes de dar ouvidos às suas inclinações [...] As suas faculdades são então exercitadas e desenvolvidas, as suas idéias alargam-se, os seus sentimentos enobrecem-se, toda a sua alma se eleva a um ponto tal que se os abusos desta sua nova condição não o degradassem com frequência a um ponto muito inferior ao da condição da qual saiu, seria levado a abençoar continuamente o momento feliz que o retirou dela para sempre e que, de um animal estúpido e sem imaginação, fez um ser inteligente e um Homem.

E o que exige a "voz do dever" deste novo homem? Exige-lhe que coloque de lado as suas "inclinações" privadas e egocêntricas em favor de regras que promovam imparcialmente o bem-estar de todos sem distinção. Mas ele só pode fazer isto porque os outros concordaram fazer a mesma

coisa - esta é a essência do "contrato". Podemos pois resumir a concepção do contrato social da forma seguinte:

A moralidade consiste no conjunto de regras, governando a forma de as pessoas se tratarem entre si, que todas as pessoas racionais acordam aceitar, para benefício mútuo, na condição de os outros seguirem também essas regras.

11.2 O dilema do prisioneiro

O argumento de Hobbes é uma das formas de chegar à teoria do contrato social. Mas há outra linha de pensamento, no entanto, que impressionou também muitos filósofos recentemente. Esta linha de pensamento está ligada com um problema na teoria da de

cisão conhecido como o "dilema do prisioneiro". O dilema do prisioneiro pode ser inicialmente apresentado sob a forma de um quebra-cabeças; talvez o leitor queira ver se consegue resolvê-lo antes de saber a resposta.

Suponha que vive numa sociedade totalitária e um dia, para sua grande surpresa, é detido e acusado de traição. A polícia afirma que tem conspirado contra o governo em conluio com um homem de nome Smith, que foi igualmente detido e está preso noutra cela. O interrogador exige a sua confissão. O leitor protesta a sua inocência; nem sequer conhece Smith. Mas isto de nada serve. Torna-se em breve claro que os seus captores não estão interessados na verdade; por razões que só eles conhecem, querem apenas condenar alguém. E propõem-lhe o acordo seguinte:

- Se Smith não confessar, mas o leitor confessar e testemunhar contra ele, será libertado.Poderá ir em liberdade, enquanto Smith, que não cooperou, ficará preso dez anos;

- Se Smith confessar e o leitor não o fizer, a situação ficará invertida - ele será libertado eo leitor condenado a dez anos;

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- Se ambos confessarem, no entanto, cada um será condenado a cinco anos;

- Mas se nenhum confessar, não haverá provas suficientes para condenar qualquer dos dois.Poderão mantê-los detidos durante um ano, mas depois terão de libertá-los.

Por fim, comunicam-lhe que Smith teve a mesma proposta; mas o leitor não pode comunicarcom ele e não tem maneira de saber o que Smith vai fazer.

O problema é o seguinte: Partindo do princípio que o seu objectivo é passar o menor tempopossível na cadeia, o que deve fazer? Confessar ou não confessar? Para os objectivos desteproblema o leitor deve esquecer ideias como as relativas a manter a sua dignidade, lutarpelos seus direitos e coisas do género. O problema não é sobre isso. Deve também esquecera preocupação de auxiliar Smith. Este problema diz estritamente respeito ao cálculo do queé do seu melhor interesse fazer. A questão é: O que poderá libertá-lo mais rapidamente?Confessar ou não confessar?

Pode parecer à primeira vista que a questão não pode ser respondida a menos que saibamos

o que Smith vai fazer. Mas isso é uma ilusão. O problema tem uma solução perfeitamenteclara: Faça Smith o que fizer, o leitor deve confessar. Isto pode ser demonstrado peloseguinte raciocínio:

1. Ou Smith irá confessar ou não;

2. Suponhamos que Smith confessa. Então, se o leitor confessar será condenado a cincoanos, enquanto se não confessar apanhará dez. Logo, se ele confessar, o leitor ficará melhorse confessar também;

3. Suponhamos, por outro lado, que Smith não confessa. Nesse caso, o leitor fica naseguinte posição: Se confessar será libertado, enquanto se não confessar ficará detido umano. É claro, então, que mesmo que Smith não confesse será melhor para si fazê-lo;

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4. Logo, o leitor deve confessar. Isso vai colocá-lo em liberdade mais cedo,independentemente do que Smith fizer.

Até agora tudo bem. Mas há um problema. Lembre-se que a Smith foi proposto um acordosemelhante. Partindo do princípio que Smith não é estúpido, chegará à conclusão, a partir domesmo raciocínio, de que deve confessar. Assim, o resultado será que ambos vão confessar,e isto significa que ambos serão condenados a penas de cinco anos. Mas se tivessem ambosfeito o contrário, cada um teria saído em liberdade ao fim de apenas um ano. É este oproblema. Por terem procurado racionalmente defender os seus próprios interesses, ambosacabarn em piores circunstâncias do que se tivessem agido de forma diferente. E isto que fazdo dilema do prisioneiro um dilema. É uma situação paradoxal. O leitor e Smith obteriammelhores resultados se fizessem simultaneamente o que não corresponde aos melhoresinteresses individuais de cada um.

Se pudesse comunicar com Smith poderia, naturalmente, chegar a acordo com ele. Poderiaacordar que nenhum dos dois iria confessar; poderiam então obter a sentença de um ano.Por meio da cooperação obteriam melhores resultados do que agindo individualmente. Acooperação não concede a nenhum o resultado óptimo -liberdade imediata - mas permiteobter para os dois um resultado melhor do que cada um poderia alcançar sem cooperação.

Seria fundamental, no entanto, que qualquer acordo entre os dois pudesse ser fiscalizado,porque se Smith renunciasse e confessasse, ao mesmo tempo que o leitor mantinha oacordo, então o leitor acabaria por cumprir a sentença máxima de dez anos enquanto Smithsairia em liberdade. Assim, para que seja racional para o leitor cumprir a sua parte doacordo, terá de ter garantias de que Smith cumpriria a sua parte. (E naturalmente ele teria omesmo receio sobre a sua possível renúncia.) Só um acordo susceptível de ser fiscalizado

poderá oferecer uma saída do dilema, para qualquer dos dois.

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A moralidade como solução para um problema do tipo do dilema do prisioneiro. O dilemado prisioneiro não é apenas um quebra-cabeças inteligente. Apesar de a história que contámos ser fictícia, o padrão que ilustra ocorre freqüentemente na vida real. Situações do tipo do dilema do prisioneiro ocorrem sempre que se verificam duas condições:

1. Tem de ser uma situação na qual os interesses das pessoas são afectados não apenas pelo que elas mesmas fazem mas também pelo que fazem os outros;

2. Tem de ser uma situação na qual, paradoxalmente, todos acabem pior se tentarem individualmente defender os seus próprios interesses do que se fizerem simultaneamente o que não serve os seus interesses individuais.

Este tipo de situação acontece na vida real com mais freqüência do que poderíamos pensar.

Consideremos, por exemplo, a escolha entre duas estratégias de vida. Primeiro, poderíamos defender exclusivamente os nossos próprios interesses - em cada situação poderíamos fazer o que nos beneficiasse, não tendo em conta como os outros poderiam ser afectados por isso. Chamemos a isto "agir de forma egoísta". Em alternativa, poderíamos preocupar-nos com o bem-estar das outras pessoas bem como com o nosso, mantendo o equilíbrio entre ambos, abdicando por vezes dos nossos interesses em benefício de terceiros. Chamemos a esta estratégia "agir com benevolência".

Mas não somos apenas nós quem tem de decidir como viver. As outras pessoas têm também de escolher que política adoptar. Há quatro possibilidades: Primeiro, podemos ser egoístas enquanto as outras pessoas são benevolentes; segundo, os outros podem ser egoístas enquanto

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somos benevolentes; terceiro, podemos ser todos egoístas; e quarto, podemos ser todos benevolentes. Que resultados obteríamos em cada uma destas situações? Apenas do ponto de vista da prossecução do nosso bem-estar, poderíamos avaliar as possibilidades desta forma:

- O leitor estaria melhor na situação em que é egoísta enquanto os outros são benevolentes. Obteria os benefícios da sua generosidade, sem ter de retribuir o favor. (Nesta situação

seria, na terminologia da teoria da decisão, um "borlista".);

- A segunda melhor situação seria aquela em que todos são benevolentes. O leitor deixaria de ter a vantagem de poder ignorar os interesses das outras pessoas, mas pelo menos teria as vantagens que advêm do tratamento respeitoso dos outros. (Esta é a situação da "moralidade comum".);

- Uma situação má, mas não a pior de todas, seria aquela em que todos fossem egoístas. O leitor tentaria proteger os seus próprios interesses, apesar de ter pouco apoio dos outros. (Este é o "estado de natureza" de Hobbes.);

- Por fim, o leitor ficaria pior numa situação na qual fosse benevolente para os outros enquanto os outros são egoístas. Os outros poderiam atraiçoá-lo quando isso lhes fosse vantajoso, mas o leitor não teria liberdade para fazer o mesmo. Seria prejudicado em todas as circunstâncias. (Podemos dizer que nesta situação seria um "papalvo".)

Isto é exactamente o tipo de aparato que dá origem ao dilema do prisioneiro. Baseando-nos nesta avaliação das situações, o leitor deve adoptar a estratégia egoísta:

1. Ou as outras pessoas respeitarão os seus interesses ou não;

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2. Se respeitarem de facto os seus interesses, o leitor ficará melhor não respeitando os deles, pelo menos sempre que isso for vantajoso para si. Esta será a situação óptima - o leitor é um borlista;

3. Se não respeitarem os seus interesses, seria então uma tolice da sua parte respeitar os deles - isso colocá-lo-ia' na pior situação possível. Seria um papalvo;

4. Logo, independentemente do que as outras pessoas fizerem, o leitor fica em melhor situação adoptando a política de cuidar de si próprio. O melhor é ser egoísta.

E chegamos agora ao problema: As outras pessoas podem, é claro, raciocinar da mesma forma, e o resultado será que acabamos por voltar ao estado de natureza de Hobbes. Todos serão egoístas, dispostos a apunhalar todos os outros sempre que virem nisso alguma vantagem para si mesmos. Nesta situação, cada um de nós está obviamente em piores condições do que se houvesse cooperação. Para escapar ao dilema precisamos de outro acordo fiscalizável, desta feita um acordo para obedecer às regras do respeito mútuo em sociedade. Tal como antes, a cooperação não garantiria o melhor resultado (ser egoístas enquanto os outros são benevolentes), mas levaria a um resultado melhor do que o obtido se cada um de nós lutasse de forma independente pelos seus interesses

. Precisamos, nas palavras de David Gauthier, de "negociar a moralidade". Podemos fazê-lo se conseguirmos estabelecer sanções suficientes para garantir que, se respeitarmos os interesses dos outros, eles têm igualmente de respeitar os nossos.

11.3 Algumas vantagens da teoria contratualista da moral

A teoria contratualista da moral é, como vimos, a ideia de que a moralidade consiste num conjunto de regras que

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regem a forma como as pessoas devem tratar-se entre si, regras que todas as pessoas racionais concordam aceitar, para benefício mútuo, na condição de os outros seguirem igualmente as regras.

A força desta teoria deve-se, em grande medida, ao facto de fornecer respostas simples e plausíveis a algumas questões difíceis que sempre deixaram os filósofos perplexos.

1. Que regras morais estamos obrigados a seguir e como se justificam tais regras? A ideia central é que as regras moralmente obrigatórias são as necessárias à vida em sociedade. É óbvio, por exemplo, que não poderíamos viver juntos de forma satisfatória se não aceitássemos regras proibindo o homicídio, a agressão, o roubo, a mentira, a quebra de promessas e outras que tais. Estas regras justificam-se mostrando simplesmente que são necessárias se quisermos cooperar para benefício mútuo. Por outro lado, algumas regras geralmente vistas como morais - como a proibição da prostituição, da sodomia e da promiscuidade sexual - não são obviamente justificáveis desta forma. Em que medida é ameaçada a vida social pelo facto de duas pessoas se envolverem em práticas sexuais privadas? Se esta conduta não nos ameaça de forma alguma, então está para lá do âmbito do contrato social e não nos diz respeito. Essas regras têm, pois, apenas uma força duvidosa sobre nós;

2. Porque motivo é razoável seguir as regras morais? Concordamos seguir as regras morais porque é vantajoso viver numa sociedade na qual as regras são aceites. Naturalmente, pode por vezes ser imediatamente vantajoso violar as regras. No entanto, não é razoável desejar um acordo no qual as pessoas possam violar as regras sempre que lhes seja vantajoso fazê-lo - o objectivo do contrato social é justamente podermos confiar que as pessoas cumprem as regras, excepto, eventualmente, nas emergências mais extremas. Só então poderemos sentir-nos seguros. O nosso próprio cumprimento constante é o preço razoável que pagamos de maneira a assegurar o cumprimento dos outros;

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3. Em que circunstâncias podemos infringir as regras? Esta é uma questão algo mais complicada. A idéia central aqui é a reciprocidade - concordamos obedecer às regras na condição de os outros também obedecerem. Assim, quando alguém viola a condição de reciprocidade, liberta-nos, pelo menos até certo ponto, das nossas obrigações para com ele. Suponhamos que alguém recusa auxiliar-nos, em circunstâncias nas quais podia claramente ajudar. Então, se mais tarde necessitar do nosso auxílio, podemos sentir que não é nosso dever dar-lhe a mão.

O mesmo aspecto essencial explica por que razão é permissível punir os que violaram a lei criminal. Quem viola a lei é tratado de forma diferente do cidadão comum - ao punir quem viola a lei, tratamo-lo de formas usualmente não permitidas. Como pode justificar-se tal coisa? A resposta tem duas partes. Em primeiro lugar, a intenção do Estado é aplicar as regras primárias indispensáveis à vida em sociedade. Para vivermos juntos sem medo, não pode deixar-se ao critério do indivíduo decidir se vai ou não atacar outras pessoas, roubá-las ou algo semelhante. Ligar sanções à violação destas regras é o único meio viável de impô-las. Segue-se daí que temos de punir. Mas porque razão é permissível punir? Ã resposta é que o criminoso violou a condição fundamental da reciprocidade: Admitimos que as regras da vida social limitem o que podemos fazer apenas na condição de os outros aceitarem as mesmas restrições ao que podem fazer. Logo, ao violar as regras em relação a nós, os criminosos libertam-nos da nossa obrigação perante eles e expõem-se à retaliação.

Por fim, há uma circunstância ainda mais dramática na qual podemos violar as leis morais. Em circunstâncias normais a moralidade exige que sejamos imparciais, isto é, que não atribuamos maior importância aos nossos interesses do que aos interesses dos outros. Mas suponha que enfrenta uma situação na qual tem de escolher entre a sua própria morte e a morte de cinco outras pessoas.

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A imparcialidade exigiria, aparentemente, que escolha a sua própria morte; afinal de contas, eles sãocinco e o leitor apenas um. Estará moralmente obrigado a sacrificar-se?

Os filósofos sentiram-se com freqüência pouco à vontade com este tipo de exemplo; sentiram instintivamente que há, de alguma forma, limites ao que a moralidade pode exigir

de nós. Por isso disseram, tradicionalmente, que tais acções heróicas são super-rogatórias - isto é, são acções acima e para além do exigido pelo dever, admiráveis quando ocorrem, mas não estritamente exigidas. No entanto é difícil explicar o motivo pelo qual tais acções não são estritamente exigidas. Se a moralidade exige decisões imparciais, e uma razão imparcial decreta ser melhor morrer um do que cinco, porque razão não somos obrigados a sacrificar-nos?

A teoria do contrato social tem uma explicação. É racional aceitar o contrato social porque é vantajoso para nós. Desistimos da nossa liberdade incondicional, mas em troca obtemos os benefícios da vida em sociedade. No entanto, se o contrato nos exige então que dêmos a vida, não estamos melhor do que estávamos no estado de natureza; e deixamos de ter qualquer razão para respeitar o contrato. Há, por isso, um limite natural ao auto-sacrifício que se pode esperar de alguém: Não podemos exigir um sacrifício tão profundo que negue o próprio objectivo do contrato. A teoria do contrato social explica assim uma faceta da moralidade que noutras teorias é um mistério;

4. Tem a moralidade uma base objectiva? Existirão "factos" morais? Serão os juízos morais objectivamente verdadeiros? Os filósofos interrogam-se há muito se as nossas opiniões morais representam algo mais do que os nossos sentimentos subjectivos ou os costumes da nossa sociedade. Sentiram que a moralidade tem de ser algo mais do que hábitos e sentimentos, mas é difícil dizer o que seja esse algo. Se há "factos" morais, que tipo de coisas podem ser?

Um dos mais atraentes aspectos da teoria do contrato social reside no facto de afastar tão facilmente estas

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preocupações. Não são necessárias longas explicações. A moralidade não é apenas uma questãode hábito ou sentimento; tem uma base objectiva. Mas a teoria não precisa de postular qualquer tipo especial de "factos" para explicar essa base. A moralidade é o conjunto de regras que quaisquer pessoas racionais aceitariam para benefício mútuo. Podemos determinar que regras são essas por meio da investigação racional e depois determinar se um acto particular é moralmente aceitável verificando se está em conformidade com as regras. Uma vez compreendido isto, as velhas preocupações sobre a "objectividade" da moral desaparecem, pura e simplesmente.

11.4 O problema da desobediência civil

As teorias morais devem ajudar a compreender questões morais particulares. A teoria do contrato social baseia-se numa intuição importante sobre a natureza da sociedade e suas instituições, sendo por isso especialmente adequada para nos ajudar a lidar com questões envolvendo essas instituições. Em resultado do contrato social temos a obrigação de obedecer à lei. Mas teremos por vezes justificação para desafiar a lei? Se sim, quando?

Os exemplos modernos e já clássicos de desobediência civil são, é claro, as acções desenvolvidas no âmbito do Movimento de Independência da índia liderado por Mohandas K. Gandhi e o movimento americano de direitos cívicos liderado por Martin Luther King, Jr. Ambos se caracterizaram pela recusa pública, conscienciosa e não violenta de obediência à lei. Mas os objectivos dos movimentos tinham diferenças importantes. Gandhi e os seus seguidores não reconheciam o direito de os Britânicos governarem a índia; queriam substituir o domínio britânico por um sistema inteiramente diferente. Por outro lado, Luther King e os seus seguidores não questionavam a legitimidade das

instituições fundamentais do governo americano. Opunham-se apenas a leis particulares e políticas sociais que consideravam injustas - tão injustas, de facto, que sentiam não ter qualquer obrigação de lhes obedecer.

Na sua Letterfrom the Birmingham City Jau (1963), Luther King descreveu a frustração e raiva que surgem

quando se vê bandos perversos linchar indiscriminadamente as nossas mães e os nossos pais e afogar os nossos irmãos e irmãs ao sabor dos seus caprichos; quando se vê polícias cheios de ódio a insultar, pontapear, brutalizar e até matar os nossos irmãos e irmãs negros com total impunidade; quando se vê a esmagadora maioria dos nossos vinte milhões de irmãos Pretos asfixiados numa estreita cela de pobreza no meio de uma sociedade de abastança; quando de súbito damos connosco embaraçados para explicar à nossa filha de seis anos a razão pela qual não pode ir ao parque de diversões que acabou de ser publicitado na televisão, e vemos lágrimas rebentar nos seus pequenos olhos quando lhe dizemos que Funtown está vedado a meninos de cor, e começamos a ver as nuvens deprimentes da inferioridade a distorcer a sua pequena personalidade.

O problema não era apenas o facto de a segregação racial, com todo o seu cortejo de males, ser imposta pelos hábitos sociais; era igualmente uma questão legal, uma lei cuja formulação recusava aos negros qualquer voz. Quando instado a confiar nos processos democráticos

normais, Luther King fez primeiro notar que tinha havido várias tentativas de negociação, mas esses esforços tiveram pouco sucesso; quanto à "democracia", a palavra não tinha qualquer sentido para os negros do sul: "Em todo o estado do Alabama todos os tipos de métodos de conluio são usados para impedir os Pretos de se tornarem votantes recenseados e há alguns condados sem um único Preto recenseado para votar, apesar de os Pretos constituírem a maioria da população." Luther King pensava, por isso, que os negros não

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tinham alternativa, tendo de apresentar publicamente o seu caso mediante o desafio às leisinjustas.

Hoje em dia, com Luther King aclamado como um dos gigantes da história americana, e com o movimento dos direitos civis recordado como uma grande cruzada moral, é necessário algum esforço para recordar quão controversa foi a estratégia de desobediência civil. Muitos liberais, embora exprimindo simpatia pelos objectivos do movimento, negaram no entanto que a desobediência à lei fosse um meio legítimo de lutar por esses objectivos. Um artigo publicado em 1965 no New York State Bar Journal exprimiu as preocupações mais comuns. Depois de garantir aos seus leitores que "muito antes do Dr. King ter nascido, eu defendia, e defendo ainda, a causa dos direitos civis para todas as pessoas", Louis Waldman, um eminente advogado de Nova Iorque, afirmou o seguinte:

Os que defendem direitos ao abrigo da Constituição e das leis feitas nos termos por ela estabelecidos têm de obedecer a essa Constituição e a essas leis, se quiserem que a Constituição sobreviva. Não podem escolher a gosto; não podem dizer que vão obedecer às leis que pensam ser justas e rejeitar obedecer às leis que consideram injustas [...]

O país não pode, portanto, aceitar a doutrina do Dr. King de que ele e os seus seguidores vão escolher a gosto, sabendo que é ilegal fazê-lo. Considero pois que tal doutrina não é apenas ilegal, devendo por essa razão ser abandonada; é também imoral, destruidora dos princípios do governo democrático, e um perigo para os próprios direitos civis que o Dr. King visa promover.

Waldman tinha razão num aspecto: Se o sistema legal é essencialmente decente, então desafiar a lei é à partida uma coisa má, porque enfraquece o respeito pelos valores que a lei protege. Para responder a esta objecção, os que advogavam a desobediência civil precisavam de um argumento para mostrar o motivo pelo qual o desafio à lei era justificado. Um

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desses argumentos, usado frequentemente por Luther King, era que os males aos quais se manifestava oposição eram tão graves, tão numerosos e tão resistentes a soluções por meios menos drásticos que a desobediência civil se justificava como um "último recurso". O fim justifica os meios, mesmo que os meios sejam lamentáveis. Isto era, na opinião de muitos moralistas, uma resposta suficiente à objecção levantada por Waldman. Mas temos ao nosso dispor uma resposta mais profunda, sugerida pela teoria do contrato social.

Antes de mais, porque razão temos de obedecer à lei? Segundo a teoria do contrato social, porque cada um de nós participa num acordo complicado por meio do qual ganhamos certos benefícios em troca da aceitação de certos encargos. Os benefícios são a vida em sociedade: escapamos ao estado de natureza e vivemos numa sociedade na qual estamos seguros e usufruímos dos direitos fundamentais ao abrigo da lei. De maneira a obter esses benefícios, concordamos fazer a nossa parte na manutenção das instituições que os tornam possíveis. Isto significa que temos de obedecer à lei, pagar os nossos impostos, e por aí adiante - estes são os fardos que aceitamos em troca.

Mas, e se as coisas estiverem de tal modo organizadas que a um grupo de pessoas da sociedade não são reconhecidos os direitos usufruídos pelos outros? E se, em vez de os proteger, "polícias cheios de ódio insultam, pontapeiam, brutalizam e matam com total impunidade"? E se alguns cidadãos forem "asfixiados numa estreita cela de pobreza" ao ser-lhes negada a oportunidade de adquirir uma educação decente ou empregos decentes? Se a negação destes direitos estiver suficientemente disseminada e for suficientemente sistemática, somos forçados a concluir que os termos do contrato social não estão a ser honrados. Assim, se continuarmos a exigir que o grupo em desvantagem obedeça à lei e respeite as instituições sociais, estamos a exigir que aceite os encargos impostos pela organização social apesar de lhe serem negados os seus benefícios.

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Esta linha de pensamento sugere que, longe de a desobediência civil ser um "último recurso" indesejável para os grupos socialmente mais marginalizados, é, na verdade, o meio mais natural e razoável de exprimir descontentamento. Pois quando aos mais desfavorecidos é

recusada uma parte justa dos benefícios da vida social, eles ficam com efeito libertos do contrato que noutra situação exigiria que apoiassem os acordos que tornam esses benefícios possíveis. Esta é a razão mais profunda que justifica a desobediência civil, e deve reconhecer-se o mérito da teoria do contrato social por ter exposto este argumento de forma tão clara.

11.5 Dificuldades da teoria

A teoria do contrato social é uma de quatro grandes opções na filosofia moral corrente. (As outras são o utilitarismo, o kantismo e a teoria das virtudes.) Não é difícil ver porquê; a teoria explica em boa medida a vida moral de uma forma económica e sensata. O que poderá dizer-se contra a teoria? Apresenta-se de seguida as duas objecções que parecem ter mais peso.

1. A objecção mais comum tem sido que a teoria do contrato social se baseia numa ficção histórica. Pede-se que imaginemos que as pessoas viveram em tempos isoladas umas das outras; que acharam esta situação intolerável; e que por fim se congregaram, acordando seguir as regras sociais de benefício mútuo. Mas isto nunca aconteceu. É apenas uma fantasia. Então, qual é a sua relevância? Na verdade, se as pessoas se tivessem juntado desta forma poderíamos explicar as suas obrigações umas para com as outras como a teoria sugere: seriam obrigadas a obedecer às regras porque teriam feito um contrato nesse sentido. Mas mesmo assim continuaria a haver problemas. Teríamos de enfrentar questões como as seguintes: O acordo foi unânime? Se não foi, que

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acontece às pessoas que não assinaram o contrato - não são obrigadas a agir moralmente? Se ocontrato foi consumado há muito tempo, estaremos obrigados a cumprir os acordos dos nossos antepassados? Se não, como se renova o "contrato" a cada nova geração? E se alguém disser: "Eu não dei o meu assentimento a tal contrato, e não quero fazer parte dele?" Mas na verdade nunca existiu tal contrato, e por isso nenhuma explicação sensata se pode basear nele. Como afirmou com ironia um crítico, o contrato social "não vale o papel em que não foi escrito".

Em resposta, pode dizer-se que há um contrato social implícito ao qual todos estamos ligados. Para ser exacto, nenhum de nós alguma vez assinou um contrato "real" - não há qualquer pedaço de papel assinado. No entanto, há de facto um acordo muito semelhante ao

descrito na teoria do contrato social: Há um conjunto de regras que todos reconhecem como obrigatórias, e todos beneficiamos do facto de estas regras serem seguidas. Cada um de nós aceita os benefícios conferidos por este acordo; e, mais do que isso, esperamos que as outras pessoas continuem a cumprir as regras e encorajamo-las a fazê-lo. Esta é uma descrição de facto do estado de coisas; não é uma ficção. E, prossegue o argumento, ao aceitar os benefícios deste acordo, incorremos na obrigação de fazer a nossa parte para o manter - por outras palavras, para retribuir o que nos foi dado. O contrato é "implícito" porque nos tornamos parte dele não através das nossas palavras mas sim das nossas acções, à medida que participamos nas instituições sociais e aceitamos os benefícios da vida em sociedade.

Desta forma, a história do "contrato social" não precisa de ser entendida como uma descrição de acontecimentos históricos. É, ao invés, um instrumento analítico útil, baseado na idéia de que podemos entender as nossas obrigações morais como se tivessem surgido desta forma. Considere-se a seguinte situação. Suponha o leitor que chega junto de um grupo de pessoas envolvidas num jogo

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complexo. Parece divertido, e por isso junta-se ao grupo. Passado algum tempo, no entanto,começa a violar algumas das regras, porque isso parece ainda mais divertido. Os outros protestam; afirmam que se quer jogar, tem de cumprir as regras. O leitor responde que nunca prometeu cumprir as regras. Eles podem então responder, com razão, que isso é irrelevante. Talvex ninguém tenha explicitamente prometido obedecer; no entanto, ao juntar-se ao jogo, cada pessoa implicitamente aceita seguir as regras que tornam o jogo possível. É como se todos tivessem concordado. A moralidade é assim. O jogo é a vida em sociedade; derivamos dela enormes benefícios, e não queremos abandonar esses benefícios; mas de maneira a jogar o jogo e obter os benefícios, temos de seguir as regras.

Não é claro até que ponto os grandes teóricos do contrato social, como Hobbes e Rousseau, aceitariam esta forma de defender a sua idéia. Mas isso não importa; a resposta parece salvar a teoria do que seria, de outra forma, uma objecção devastadora;

2. Já fizemos notar que as teorias morais deveriam ajudar a lidar com as questões morais práticas. As teorias importantes fazem isso, mas com demasiada freqüência uma teoria que esclarece uma questão torna outra mais confusa. Para cada teoria há questões relativamente às quais as suas asserções parecem exactamente correctas; mas surgem problemas quando,

noutras questões, as implicações da teoria parecem inaceitáveis. Quando referimos o problema da desobediência civil, a teoria do contrato social parecia inteiramente correcta. Mas relativamente a outras questões as suas implicações são mais perturbadoras.

A segunda objecção à teoria do contrato social, que me parece mais forte do que a primeira, tem que ver com as suas implicações para os nossos deveres face a seres incapazes de participar no contrato. Os animais não-humanos, por exemplo, não têm as capacidades necessárias para entrar em qualquer tipo de acordos connosco, implícitos ou explícitos. Parece

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pois impossível que devam ser abrangidos por quaisquer "regras de benefícios mútuos"estipuladas por tal contrato. No entanto, não será moralmente errado torturar um animal,quando não há para isso qualquer boa razão? E não é isto errado devido à dor causada aopróprio animal? Mas a idéia de deveres morais relativamente a seres que não são parte docontrato parece contrária à regra fundamental por detrás da teoria. Assim, a teoria pareceimperfeita.

Hobbes tinha consciência de que, na sua perspectiva, os animais estavam excluídos dasconsiderações morais. Escreveu que "fazer acordos com animais selvagens é impossível".Aparentemente isto não o incomodava. Os animais nunca foram bem tratados pelos sereshumanos, mas na época de Hobbes eram tidos em muito baixa consideração. Descartes eMalebranche, dois contemporâneos de Hobbes, haviam popularizado a idéia de que osanimais não podem sentir dor. Para Descartes isto era assim porque, não tendo almas, oscorpos dos animais eram meras máquinas; para Malebranche era necessário que fosse assimpela razão teológica de que o sofrimento é uma conseqüência do pecado de Adão, e osanimais não descenderem de Adão. Mas independentemente da razão, a sua perspectiva eraque os animais não podem sofrer, pelo que os animais estão para lá do alcance daconsideração moral. Isso permitiu aos cientistas do século xvii fazer experiências comanimais sem se preocuparem com os seus inexistentes "sentimentos". Nicolas Fontaine, umatestemunha ocular, descreveu uma visita a um laboratório no seu livro de memórias,publicado em 1738:

Batiam nos cães com perfeita indiferença, e troçavam daqueles que lamentavam as criaturas como sesentissem dor. Afirmavam que os animais eram relógios; que os ganidos que emitiam quando lhesbatiam eram apenas o ruído de uma pequena mola que tinha sido tocada, mas que o corpo não tinhasensações. Pregavam alguns pobres animais em quadros pelas quatro patas para os dissecar e ver acirculação do sangue, o que era um grande tema de conversa.

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Se temos o dever de não causar dor desnecessária aos animais, é difícil ver como pode essedever ser acomodado no seio da teoria do contrato social. No entanto, como Hobbes,muitas pessoas podem não achar isso assim tão preocupante, pois podem não encarar aquestão dos deveres para com meros animais particularmente urgente. Mas há outradificuldade, do mesmo género, que pode levá-los a hesitar.

Muitos seres humanos têm deficiências mentais tão graves que não podem participar nogénero de acordos considerados pela teoria do contrato social. Podem certamente sofrer, eaté viver vidas humanas simples. Mas não são suficientemente inteligentes para compreenderas consequências das suas acções. Podem nem mesmo saber quando estão a magoar osoutros. Logo, não podemos responsabilizá-los pela sua conduta.

Estes seres humanos colocam à teoria exactamente o mesmo problema que os animais não-humanos. Uma vez que não podem participar nos acordos que, segundo a teoria, dão origemàs obrigações morais, estão para lá do domínio da consideração moral. No entanto,pensamos ter obrigações morais para com eles. E mais ainda, as nossas obrigações para comeles são frequentemente baseadas exactamente nas mesmas razões em que baseamos asnossas obrigações para com os seres humanos normais - a razão primordial pela qual nãodevemos torturar pessoas normais, por exemplo, é o facto de lhes causar dores terríveis; eesta é exactamente a mesma razão pela qual não devemos torturar pessoas com deficiênciasmentais. A teoria do contrato social pode explicar o nosso dever num caso mas não nooutro.

Este problema não diz respeito a um aspecto menor da teoria; vai directo ao seu cerne.Logo, a menos que possamos encontrar alguma forma de remediar esta dificuldade, overedicto tem de ser que a ideia fundamental da teoria é deficiente.

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Capítulo 12

O feminismo e a ética dos afectos

Mas é óbvio que os valores das mulheres diferem com muita frequência dos valores que foram construídospelo outro sexo; isto é naturalmente assim. No entanto, são os valores masculinos que predominam.

VIRGÍNIA WOOLF, Um Quarto que Seja Seu (1929)

12.1 Pensam os homens e mulheres de maneira diferente sobre a ética?

A ideia de que homens e mulheres pensam de forma diferente tem tradicionalmente sidousada para justificar a subjugação de umas pelos outros. Aristóteles afirmou que as mulheres

não são tão racionais como os homens, e por isso são naturalmente governadas pelos homens. Kant concordava, e acrescentou que por essa razão as mulheres "carecem de personalidade civil" e não devem ter voz na

* Usou-se "ética dos afectos" para traduzir a expressão inglesa original ethics of care, que não se refere à ética dos cuidados de saúde. (N. do R.)

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vida pública. Rousseau tentou suavizar a ideia ao sublinhar que homens e mulheres apenas possuem virtudes diversas; mas é claro que no final se verifica que as virtudes dos homens os tornam adequados para a liderança, enquanto as virtudes das mulheres as tornam ideais para a casa e a família.

Tendo, em conta este pano de fundo, não surpreende que o florescente movimento feminista dos anos 1960 e 70 tenha rejeitado em bloco a ideia de diferenças psicológicas entre mulheres e homens. A concepção dos homens como racionais e das mulheres como emocionais foi descartada como mero estereótipo. A natureza, afirmava-se então, não faz qualquer distinção moral ou mental entre ambos os sexos; e quando parece existir tais diferenças é apenas porque as mulheres foram condicionadas por um sistema opressivo a comportar-se de forma "feminina".

No entanto, mais recentemente as pensadoras feministas reconsideraram a questão, e algumas concluíram que as mulheres pensam de facto de maneira diferente dos homens. Mas, acrescentam, as formas femininas de pensar não são inferiores às dos homens; nem essas diferenças justificam subordinar alguém a outrem. Pelo contrário, a forma feminina de pensar contém intuições que têm faltado nas áreas de actividade de dominação masculina. Assim, dando mais atenção à diferente abordagem das mulheres, pode-se fazer progressos em áreas onde há muito não existem. A ética é considerada uma candidata preferencial para este tratamento.

Os estádios de desenvolvimento moral de Kohlberg.

Considere-se o seguinte problema, imaginado pelo psicólogo da educação Lawrence Kohlberg. A mulher de Heinz estava à beira da morte, e a sua única esperança era um medicamento descoberto por um farmacêutico que o vendia a um preço exorbitante. A elaboração do medicamento custava duzentos dólares e o farmacêutico estava a vendê-lo a dois mil. Heinz conseguiu apenas reunir mil dólares.

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Ofereceu essa quantia ao farmacêutico e, quando a sua oferta foi rejeitada, Heinz

prometeupagar o restante mais tarde. Ainda assim o boticário recusou. Em desespero, Heinz pensou roubar o medicamento. Seria errado fazê-lo?

Este problema, conhecido como "Dilema de Heinz", foi um entre vários usados por Kohlberg para estudar o desenvolvimento moral das crianças. Kohlberg entrevistou crianças de várias idades, apresentando-lhes uma série de dilemas e fazendo perguntas concebidas para obter os seus juízos morais e as razões em seu apoio. Após análise das respostas, Kohlberg concluiu que há seis níveis de desenvolvimento moral. As crianças começam por uma concepção egocêntrica de bem moral como tudo quanto permite evitar um castigo, progredindo depois ao longo de seis estádios para uma perspectiva amadurecida de bem moral como conformidade com princípios universais. (Pelo menos os mais afortunados chegam aí. Algumas pessoas ficam encravadas em níveis mais baixos.) Eis os seis estádios:

1. O primeiro é o Estádio da Punição e Obediência, no qual o bem moral é concebido como a obediência à autoridade e o evitar da punição;

2. A criança progride então para o Estádio dos Objectivos Individuais Instrumentais e da Troca - aqui o bem é agir de forma a satisfazer as suas próprias necessidades, permitindo aos outros que façam o mesmo, fazendo "acordos justos" com os outros para garantir a realização dos objectivos desejados;

3. O seguinte é o Estádio das Expectativas Interpessoais, Relações e Conformidade Mútuas. O bem é definido como os deveres e responsabilidades que acompanham os papéis sociais do indivíduo e as suas relações com outras pessoas; uma virtude fundamental é "manter a lealdade e a confiança entre os parceiros";

4. No Estádio do Sistema Social e da Manutenção da Consciência, a ideia de fazer o seu dever em sociedade

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e manter o bem-estar do grupo assume a maior importância. (As exigências das relações pessoais são subordinadas ao respeito pelas regras do grupo social.);

5. No Estádio dos Direitos Prévios e do Contrato Social ou Utilidade, o bem consiste em proteger os direitos, valores e acordos legais essenciais da sociedade. (Nçste estádio e no seguinte as relações pessoais são subordinadas aos princípios universais de justiça.);

6. Por fim, as pessoas moralmente mais amadurecidas alcançam o Estádio dos Princípios Éticos Universais, no qual a plena maturidade se manifesta pela fidelidade de uma pessoa aos princípios abstractos que toda a humanidade deveria seguir.

O dilema de Heinz foi apresentado a um rapaz de onze anos chamado Jake, que cons

iderou óbvio que Heinz deveria roubar o medicamento. Jake explicou:

Para começar, uma vida humana vale mais do que o dinheiro, e se o farmacêutico ganhar apenas mil dólares, continua vivo, mas se Heinz não roubar o medicamento, a sua mulher morre.

(Porque razão a vida humana vale mais que o dinheiro?)

Porque o farmacêutico pode ganhar mil dólares mais tarde, pagos por pessoas ricas com cancro, mas Heinz não pode recuperar a sua mulher.

(E porque não?)

Porque as pessoas são todas diferentes e por isso não seria possível recuperar outra vez a mulher de Heinz.

Mas Amy, também de onze anos, encarou a questão de maneira diferente. Deveria Heinz roubar o medicamento? Em comparação com as declarações directas de Jake, Amy parece hesitante e evasiva:

Bem, eu penso que não. Penso que poderia haver outras maneiras além do roubo, como por exemplo se pudesse pedir o dinheiro ou fazer um empréstimo ou coisa do género, mas

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ele não devia roubar o medicamento - mas a mulher dele também não devia morrer... Se ele roubasse o medicamento, poderia salvar a mulher, mas se roubasse, podia ir para a cadeia, e então a sua mulher podia piorar outra vez, e ele já não podia arranjar mais medicamentos, e isso podia não ser bom. Por isso, eles deviam realmente conversar e descobrir outra maneira de arranjar o dinheiro.

O entrevistador faz mais perguntas a Amy, dando claramente a entender que ela não está a responder - se Heinz não roubar o medicamento, a sua mulher morre. Mas Amy não desarma; recusa aceitar os termos em que o problema é colocado. Em vez disso reelabora o tema como um conflito entre Heinz e o farmacêutico que tem de ser resolvido por meio de mais debates.

No quadro dos estádios de Kohlberg, Jake parece ter um avanço de um ou dois estádios em relação a Amy. A resposta dela é típica de pessoas operando a nível do estádio 3, onde as relações pessoais são da maior importância - Heinz e o boticário têm de resolver as coisas entre eles. Jake, por outro lado, apela para os princípios impessoais - "uma vida humana vale mais que dinheiro". Jake parece estar a funcionar no nível 4 ou 5.

A objecção de Gilligan. Kohlberg começou as suas investigações sobre o desenvolvimento moral nos anos 1950, quando a psicologia era dominada pelo behaviorismo e a imagem

popular da investigação em psicologia era a de ratos a percorrer labirintos. O seu projecto humanista e cognitivamente orientado revelava uma forma diferente de levar por diante as investigações psicológicas. Mas havia um problema com a ideia central de Kohlberg. É legítimo e interessante estudar as diferentes maneiras de as pessoas pensarem em idades diferentes - se as crianças pensam de maneira diferente aos cinco, dez e quinze anos, é por certo importante sabê-lo. Vale igualmente a pena

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identificar as melhores formas de pensar. Mas isso são projectos diferentes. Um deles implicaobservar como as crianças pensam de facto. O outro implica considerar que certas formas de pensamento são melhores ou piores. Tipos diferentes de provas são relevantes para cada investigação, e não há razão para presumir à partida que os resultados vão coincidir. Contrariamente à opinião das pessoas mais velhas, poderia acabar por se verificar que afinal de contas a idade não traz sabedoria.

A teoria de Kohlberg tem sido um alvo privilegiado para as pensadoras feministas, que têm dado a esta crítica uma inflexão especial. Em 1982, Carol Gilligan, professora na Harvard School of Education, tal como Kohlberg, publicou um livro influente intitulado Teoria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher, no qual questiona especificamente o que Kohlberg diz sobre Jake e Amy. As duas crianças pensam de forma diferente, afirma, mas a maneira de Amy pensar não é inferior. Quando confrontada com o Dilema de Heinz, Amy responde de forma tipicamente feminina aos aspectos pessoais da situação, enquanto Jake, pensando de forma tipicamente masculina, vê apenas "um conflito entre a vida e a propriedade que pode ser resolvido por meio de uma dedução lógica".

A resposta de Jake só é considerada de "nível superior" se presumirmos, como faz Kohlberg, que um princípio ético é superior a uma ética que privilegia a intimidade, o afecto e as relações pessoais. Mas porque razão haveríamos de pressupor tal coisa? A maioria dos filósofos morais privilegiaram uma ética de princípios, mas isso apenas porque a maior parte dos filósofos têm sido homens.

A "forma de pensar masculina" - apelar para princípios impessoais -, abstrai dos detalhes que concedem a cada situação o seu sabor especial. As mulheres, afirma Gilligan, acham difícil ignorar esses pormenores. Amy preocupa-se porque "se [Heinz] roubar o medicamento, pode salvar a sua mulher, mas se roubar, pode ter de ir para a prisão, e

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então a sua mulher pode piorar e ele já não pode arranjar mais medicamentos". Jake, que reduz a situação a "uma vida humana vale mais que dinheiro", ignora tudo isso.

Gilligan sugere que a orientação moral primordial das mulheres é cuidar dos outros - "tomar conta" dos outros de uma forma pessoal, não estando preocupadas apenas com a humanidade em geral - e satisfazer as suas necessidades. Isto explica por que razão a resposta de Amy parece, à primeira vista, confusa e incerta. A sensibilidade para as necessidades dos outros leva as mulheres a "escutar vozes além da sua e a incluir nos seus juízos outros pontos de vista". Assim, Amy não podia simplesmente rejeitar o ponto de vista do farmacêutico; podia apenas insistir em mais conversas com ele para tentar de alguma forma conciliá-lo. "A fraqueza moral das mulheres", afirma Gilligan, "manifesta-se numa aparente dispersão e confusão de juízo, é assim inseparável da sua força moral, uma preocupação avassaladora com relações e responsabilidades".

Outras pensadoras feministas pegaram neste tema e desenvolveram-no, transformando-o numa perspectiva característica sobre a natureza da ética. Em 1990 Virgínia Held resumiu a ideia central do feminismo: "Protecção, empatia, sentir com os outros, ser sensível aos sentimentos de cada um", afirmou, "todos estes aspectos podem ser guias melhores para o que a moralidade requer em contextos reais do que as regras abstractas da razão, ou o cálculo racional - ou podem ser, pelo menos, componentes necessários de uma moralidade adequada".

Antes de abordarmos as implicações desta ideia para a ética e para a teoria ética, podemos fazer uma pausa para ponderar quão "feminino" isto realmente é. É verdade que mulheres e homens pensam de forma diferente sobre a ética? E, a ser verdade, o que explica essa diferença?

É verdade que as mulheres e os homens pensam de forma diferente? Desde a publicação do livro de Gilligan tem

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havido muita investigação sobre a "voz das mulheres", mas continua sem se saber ao certose homens e mulheres pensam realmente de forma diversa. Uma coisa parece certa, no

entanto: mesmo que pensem de forma diversa, as diferenças não podem ser muito grandes.Em primeiro lugar, serão mais diferenças da ênfase que de valores fundamentais. Não écomo se,as mulheres fizessem juízos incompreensíveis para os homens, e vice-versa. Oshomens podem entender o valor de relações de afecto, emparia e sensibilidade com bastantefacilidade, ainda que por vezes tenham de ser relembrados; e podem concordar com Amyque a solução mais feliz para o Dilema de Heinz seria os dois homens chegarem a acordo. (Nem mesmo o homem mais réprobo pensa que o roubo seria a melhor coisa que poderia acontecer.) Por seu lado, as mulheres dificilmente discordarão de noções como a de a vida humana ter mais valor que o dinheiro. É claro, pois, que os dois sexos não vivem em universos morais diferentes. Suponha-se que concedemos, no entanto, que há uma diferença de estilo entre pessoas mais inclinadas para pensar em termos de princípios e pessoas mais inclinadas a adoptar uma "perspectiva de afectos". Será o primeiro estilo exclusivamente masculino e o último exclusivamente feminino? Claro que não. Há mulheres devotadas a princípios e homens que se preocupam e são afectuosos. Assim, mesmo que haja estilos diferentes no pensamento moral, não há qualquer estilo exclusivamente masculino ou feminino. Apesar disso, não devemos afastar demasiado apressadamente a noção de que há perspectivas tipicamente masculinas e femininas. Há inúmeras diferenças gerais entre homens e mulheres que não se aplicam a todos os indivíduos. As mulheres são tipicamente mais baixas que os homens, mas isso não significa que todas as mulheres sejam mais baixas que todos os homens.

* Referência ao título original do livro de Gilligan, In a Different Voice, que foi ignorado na edição portuguesa. (N. do R.)

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A diferença no pensamento moral pode ser algo do mesmo género: as mulheres podem tipicamente sentir mais atracção por uma perspectiva de afectos, apesar de nem todas as mulheres serem mais afectuosas do que todos os homens. Para muitas pessoas, entre elas um grande número de escritoras feministas, isto parece plausível. A sua plausibilidade aumentaria, no entanto, se pudéssemos explicar por que razão haverá tal diferença. Porque razão hão-de as mulheres de ser mais afectuosas?

O que poderá explicar tal diferença entre os sexos? Parece haver duas possibilidades. Uma é que as mulheres pensam de forma diferente por causa do papel social ao qual são destinadas. Às mulheres têm sido tradicionalmente atribuídas as responsabilidades domésticas; mesmo que isto não seja mais do que um ultraje sexista, o facto é que as mulheres têm desempenhado este papel. É fácil ver que ser destacada para tais funções e acabar por entendê-las como "o seu lugar" pode ter induzido as mulheres adoptar os valores qu

e acompanham tais responsabilidades. Assim, a ética dos afectos pode ser apenas parte do condicionamento psicológico que as raparigas recebem rotineiramente. (Esta teoria poderia ser posta à prova por meio da observação de raparigas educadas em lares não tradicionais. Continuariam a ser naturalmente afectuosas? E quanto aos rapazes educados de formas não tradicionais?)

A segunda possibilidade é que existe uma espécie de ligação entre ser mulher e ter uma ética dos afectos. Que ligação? Uma vez que a diferença óbvia entre os sexos consiste em as mulheres darem à luz, poderíamos conjecturar que a natureza das mulheres como mães as torna de alguma forma afectuosas. Mesmo meninas como a Amy, que aos onze anos não teve ainda qualquer experiência maternal, poderia estar equipada pela natureza para essa função, tanto física como psicologicamente.

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A teoria da psicologia evolucionista poderia explicar como a natureza faz isto. A psicologia evolucionista, uma teoria controversa desenvolvida na última metade do século xx, interpreta os traços principais da vida psicológica humana como produtos da selecção natural - as pessoas têm hoje as emoções e as tendências comportamentais que permitiram aos seus antepassados sobreviver e reproduzir-se no passado longínquo. Isto pode ter produzido padrões diferentes de comportamento e resposta emocional em homens e mulheres.

Podemos pensar na "luta pela sobrevivência" darwinista como uma competição para reproduzir na geração seguinte tantas cópias quanto possível dos nossos genes. Quaisquer traços que nos permitam fazer isso serão preservados nas gerações seguintes; enquanto os traços que nos colocam em desvantagem na competição tenderão a desaparecer.

Deste ponto de vista, a diferença extraordinariamente importante entre homens e mulheres é que os primeiros podem ser pais de centenas de filhos durante as suas vidas reprodutivas, enquanto as mulheres podem apenas ter um filho em cada nove meses. Isto significa que as estratégias de reprodução óptimas para homens e mulheres serão diferentes. Para os homens, a estratégia óptima será fecundar tantas mulheres quanto possível, investindo em cada criança apenas os recursos estritamente necessários para que sobreviva o máximo número possível. Para as mulheres, a estratégia óptima é investir fortemente em cada criança e escolher como parceiros homens dispostos a ficar por perto e a fazer um investimento semelhante. Isto cria naturalmente uma tensão entre os interesses masculinos e femininos, e isso pode explicar o motivo pelo qual os sexos podem ter desenvolvido atitudes diferentes.

Explica, notoriamente, por que razão os homens são mais promíscuos que as mulheres; mas ao mesmo tempo explica aquilo em que estamos interessados aqui, a saber, por que razão as mulheres se

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sentem mais atraídas do que os homens pelos valores do núcleo familiar.

Este tipo de explicação é frequentemente mal compreendido. Não se trata de defender que as pessoas conscientemente calculam como propagar os seus genes; ninguém faz isso. Nem se trata de defender que as pessoas devem calcular as coisas desta forma; do ponto de vista ético, não devem. O objectivo do argumento é explicar, se pudermos, os fenómenos que observamos.

12.2 Implicações para o juízo moral

Nem todas as filósofas foram afectadamente feministas; nem todas as feministas aderiram à ética dos afectos. Não obstante, esta é a perspectiva ética mais proximamente identificada com a filosofia feminista moderna. Como afirmou Annette Baier, "'Afecto' é a nova palavra da moda".

Uma das maneiras de entender e avaliar uma perspectiva ética é perguntar que diferença acarretaria para os nossos juízos morais e se essa diferença seria uma melhoria face às alternativas. Suponhamos, pois, que adoptamos uma ética dos afectos. Será que isso originaria juízos morais diferentes do que se adoptássemos uma abordagem com base em princípios "masculinos"? Eis três exemplos.

Família e amigos. As teorias tradicionais da obrigação são flagrantemente inadequadas para descrever a vida no meio familiar ou entre amigos. Essas teorias tomam a noção de obrigação como moralmente essencial: fornecem uma descrição do que devemos fazer. Mas, como Annette Baier faz notar, quando tentamos interpretar como um dever "ser um progenitor carinhoso", deparamos de imediato com problemas. Um progenitor carinhoso age por motivos diversos do dever. Se uma pessoa cuidar dos seus filhos por

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sentir ser esse o seu dever, será um desastre. Os seus filhos vão pressenti-lo e perceber que não são amados. Os pais que agem por dever são maus pais.

Além disso, as ideias de igualdade e imparcialidade que perpassam as teorias da obrigação parecem profundamente antagónicas em relação aos valores do amor e da amizade. John

Stuart Mill afirmou que um agente moral tem de ser "tão estritamente imparcial como um espectador desinteressado e benévolo". Mas este não é o ponto de vista de um pai ou de um amigo. Não olhamos a nossa família e amigos como meros membros da grande turba da humanidade. Pensamos neles como seres especiais, e tratamo-los como tal.

A ética dos afectos, por outro lado, é perfeitamente adequada para a descrição de tais relações. A ética dos afectos não toma a "obrigação" como fundamental; nem requer que promovamos de forma imparcial os interesses de todos. Começa, ao invés, com uma concepção da vida moral como uma rede de relações com pessoas específicas, e encara o "viver bem" como o proteger e cuidar dessas pessoas, satisfazendo as suas necessidades e mantendo a confiança nelas.

Estes pontos de vista levam a avaliações diferentes sobre o que podemos fazer. Poderei devotar o meu tempo e recursos a cuidar dos meus amigos e família, mesmo que isto signifique ignorar as necessidades de outras pessoas que também poderia ajudar? De um ponto de vista imparcial, o nosso dever é promover os interesses de todos sem distinção. Mas poucas pessoas aceitam esta perspectiva. A ética dos afectos confirma a primazia que concedemos naturalmente à nossa família e amigos, e parece por isso uma concepção moral mais plausível.

Não surpreende que a ética dos afectos pareça fazer um bom trabalho ao explicar a natureza das nossas relações morais com os amigos e familiares. Afinal de contas, estas relações são a sua inspiração primeira.

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Crianças desfavorecidas. Em cada ano mais de dez milhões de crianças morrem de causas que facilmente poderiam ser prevenidas - doença, subalimentação e água imprópria para beber. Organizações como a UNICEF trabalham para salvar estas crianças, mas nunca têm dinheiro suficiente. Ao contribuir para o seu trabalho, poderíamos evitar pelo menos algumas destas mortes. Com dezassete dólares, por exemplo, a UNICEF pode vacinar uma criança do Terceiro Mundo contra o sarampo, a poliomielite, a difteria, a tosse convulsa, o tétano e a tuberculose.

Uma "ética de princípios" tradicional, como o utilitarismo por exemplo, concluiria daqui que é um dever importante ajudarmos a UNICEF. O raciocínio é simples: quase todos nós temos recursos que desperdiçamos em coisas relativamente triviais - compramos roupas, carpetes e televisores luxuosos. Nada disto é tão importante como as vacinas das crianças. Logo, devemos doar pelo menos alguns dos nossos recursos à UNICEF. É claro que, se tentarmos dar todos os detalhes e responder a todas as objecções, este raciocínio simples pode tornar-se complicado. Mas a sua ideia de base é bastante clara.

Poderíamos pensar que uma ética dos afectos chegaria a uma conclusão semelhante - afinal de contas, não devemos olhar por essas crianças carenciadas? Mas isso falha o alvo. Uma ética dos afectos centra-se em relações pessoais, de pequena escala. Se não houver tal relação, o cuidado afectuoso não tem lugar. Nel Noddings, cujo livro Caring: A Feminine Approach to Ethics and Moral Education é uma das obras mais conhecidas sobre teoria moral feminista, explica que só se pode ter afecto por alguém se a pessoa que é "objecto de afecto" puder interagir com a que é "afectuosa", no mínimo recebendo e agradecendo o afecto dispensado num encontro pessoal. De outra forma não há, na sua perspectiva, qualquer obrigação: "Não somos obrigados ter afecto se não existir a possibilidade de consumação no outro." Por esta razão, Noddings conclui que não

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temos obrigação de ajudar "os necessitados nas regiões remotas da Terra".

Apesar de podermos sentir-nos aliviados por saber que podemos gastar livremente o nosso dinheiro como desejarmos, é difícil evitar a sensação de que algo está errado aqui. Transformar as relações pessoais na totalidade da ética parece tão errado como ignorá-las completamente. Uma abordagem mais sensata da questão poderia ser afirmar que a vida ética inclui as relações pessoais de afecto e uma preocupação benevolente com as pessoas em geral. A obrigação de apoiar a UNICEF poderia então considerar-se parte do último aspecto e não do primeiro. No caso de adoptarmos esta abordagem, interpretaríamos a ética dos afectos como um complemento de teorias tradicionais da obrigação em vez de como um substituto. Annette Baier parece ter isto em mente quando escreve que, por fim, "as pensadoras feministas terão de ligar a sua ética dos afectos com o que tem sido a preocupação teórica dos homens, a saber, a obrigação".

Animais. Teremos obrigações para com os animais não-humanos? Devemos, por exemplo, ser vegetarianos? Um argumento baseado em "princípios racionais" afirma que devemos, porque o negócio de criar e matar animais para alimentação causa-lhes grande sofrimento, e ao tornarmo-nos vegetarianos poderíamos alimentar-nos sem crueldade. Desde que o moderno movimento de direitos dos animais começou, em meados dos anos 1970, este tipo de argumento persuadiu muitas pessoas (provavelmente mais mulheres que homens) a deixarem de comer carne.

Nel Noddings sugere que esta é uma boa questão "para pôr à prova as noções essenciais nas quais se baseia uma ética dos afectos". Que noções essenciais são essas? Primeiro, uma tal ética apela para a intuição e sentimento e não para princípios. Isto conduz a uma conclusão diferente, pois muitas pessoas não sentem que comer carne seja errado

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ou que o sofrimento dos animais de criação seja importante. Noddings sublinha que por sermos humanos as nossas respostas emocionais a outros seres humanos são diferentes das nossas respostas a seres não-humanos.

Um segunda "noção essencial na qual se baseia uma ética dos afectos" é a ideia de uma relação individual entre quem tem afecto e quem é objecto de afecto. Como já fizemos notar, a pessoa objecto de afecto tem de poder participar na relação pelo menos respondendo ao afecto. Noddings pensa que as pessoas têm este tipo de relação com alguns animais, nomeadamente de estimação, e isto pode ser o fundamento de uma obrigação:

Quando alguém tem relações próximas com um determinado grupo de animais, acaba por reconhecer a sua forma característica de comunicar. Os gatos, por exemplo, levantam a cabeça e esticam-se na direcção daquele a quem se dirigem [...] Quando de manhã entro na cozinha e a minha gata me saúda do seu lugar favorito na bancada, percebo o seu pedido. Esse é o lugar em que ela se senta e "fala", procurando, com os seus miados, comunicar o desejo de um prato de leite.

Estabelece-se uma relação, e a atitude de afecto tem de ser invocada. Mas não temos tal relação com a vaca no matadouro e, por isso, conclui Noddings, apesar de podermos desejar viver num mundo no qual os animais não sofressem, não temos qualquer obrigação de fazer algo pelas vacas, nem mesmo evitar comê-las.

Que concluir então? Se usamos esta questão para "testar as noções essenciais nas quais se baseia a ética dos afectos", será que esta ética passa ou reprova o teste? Os argumentos contrários a esta ética são impressionantes. Primeiro, intuições e sentimentos não são guias fidedignos - antigamente, as intuições das pessoas diziam-lhes que a escravatura era aceitável e que a submissão das mulheres fazia parte dos planos divinos. Segundo, o facto

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de o animal estar em posição de responder "pessoalmente" pode ter muito que ver com a satisfação que se obtém em ajudar, mas nada tem que ver com as necessidades do animal ou com o bem que podemos fazer-lhe. (Algo de muito semelhante se pode dizer, é claro, da incapacidade da criança distante para agradecer pessoalmente a vacina que recebeu.) Estes argumentos apelam, é claro, para princípios considerados típicos da forma de pensar masculina. Logo, se a ética dos afectos for tomada como a totalidade da moralidade, tais

argumentos serão ignorados. Por outro lado, se os afectos são apenas uma parte da moralidade, os argumentos de princípio mantêm uma força considerável. Os animais de criação podem entrar na esfera da preocupação moral, não por causa da nossa relação de afecto para com eles, mas por outras razões.

12.3 Implicações para a teoria ética

É fácil ver a influência da experiência dos homens nas teorias éticas por eles criadas. Os homens dominam a vida pública e na política e nos negócios as relações que mantemos com outras pessoas são tipicamente impessoais e contratuais. A relação é com frequência de rivalidade - os outros têm interesses que entram em conflito com os nossos. Por isso negociamos; regateamos e fazemos acordos. Além disso, na vida pública as nossas decisões podem afectar grande quantidade de pessoas que nem sequer conhecemos. Por isso, podemos tentar calcular, de uma forma impessoal, que decisões terão o melhor desenlace para a maioria das pessoas. E o que enfatizam as teorias morais dos homens? Deveres impessoais, contratos, a harmonização de interesses e o cálculo de custos e benefícios.

Não surpreende, pois, que as feministas pensem que a filosofia moral moderna integra uma perspectiva masculina. As preocupações com a vida privada - área

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tradicionalmente dominada pelas mulheres - estão quase totalmente ausentes, e a "voz diferente"de que fala Gilligan está em silêncio. Uma teoria moral que desse conta das preocupaçõesdas mulheres teria um aspecto muito diferente. No mundo de pequena escala do lar, lidamoscom a família e os amigos, com os quais as nossas relações são pessoais e íntimas. Negociare calcular desempenham aí um papel muito menor, enquanto o amor e os cuidadosdominam. Uma vez estabelecido este ponto não há como negar que este aspecto da vida temde ter também um lugar na nossa concepção da moralidade. Este aspecto da vida, noentanto, não é fácil de acomodar no seio das teorias tradicionais. Como já sublinhámos, "serum progenitor carinhoso" não é uma questão de cálculo sobre como devemos comportar-nos. O mesmo poderia dizer-se sobre ser um amigo leal ou um colega de confiança. Sercarinhoso, leal e de confiança é ser um certo tipo de pessoa, e nem como pai nem comoamigo esse tipo de pessoa é alguém que imparcialmente "cumpre o seu dever".

O contraste entre "ser um certo tipo de pessoa" e "fazer o seu dever" está no âmago de umconflito mais lato entre dois tipos de teoria ética. A teoria das virtudes encara uma pessoacom sentido moral como alguém que tem determinados traços de carácter: é amável,generoso, corajoso, justo, prudente e por aí adiante. As teorias da obrigação, por outro lado,enfatizam o dever imparcial: retratam tradicionalmente o agente moral como alguém queescuta a razão, determina a coisa certa a fazer, e fá-la. Um dos principais argument

os a favorda teoria das virtudes é que parece adequada para incluir os valores quer da vida públicaquer da privada. As duas esferas requerem virtudes diferentes. A vida pública requer justiçae beneficência, enquanto as virtudes da vida privada incluem o amor e o afecto.

A ética dos afectos revela-se, portanto, uma parte da ética das virtudes. Muitas filósofasfeministas encaram-na

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desta forma. Apesar de a teoria das virtudes não ser um projecto exclusivamente feminista,está tão estreitamente ligado a ideias feministas que Annette Baier classificou os seusdefensores masculinos como "mulheres honorárias". O veredicto sobre a ética dos afectosdependerá, em última instância, da viabilidade da ética das virtudes.

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Capítulo 13

A ética das virtudes

Os conceitos de obrigação e dever - obrigação moral e dever moral, entenda-se - e do que é moralmente correcto ouerrado, e do sentido moral de "dever", deviam ser abandonados [...] Seria um grande progresso se, em vez de"moralmente errado", falássemos sempre de um género como "falso", "promíscuo", "injusto".

G.E.M. ANSCOMBE, Modern Moral PMosophy (1958)

13.1 A ética das virtudes e a ética da acção correcta

Ao pensar em qualquer assunto, faz muita diferença começar por umas ou por outras questões. Na Ética a Nicómaco, de Aristóteles (cerca de 325 a. C.), as questões centrais dizem respeito ao carácter. Aristóteles começa por perguntar: "Em que consiste o bem para o homem?" E a sua resposta é: "Uma actividade da alma em conformidade com a virtude." Para entender a ética temos, portanto, de entender o que torna alguém uma pessoa virtuosa, e

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Aristóteles, com olho aguçado para os pormenores, dedica muito tempo a discutir virtudesparticulares como a coragem, o autodomínio, a generosidade e a veridicidade. Apesar de

esta forma de pensar sobre a ética estar estreitamente identificada com Aristóteles, não foi exclusiva dele. Sócrates, Platão e muitos outros pensadores antigos abordaram a ética perguntando: "Que traços de carácter tornam alguém uma boa pessoa?" Em resultado disto, "as virtudes" desempenharam um papel central nas suas discussões.

No entanto, com o correr do tempo, esta forma de pensar acabou por ser negligenciada. Com a chegada do cristianismo foi introduzido um novo conjunto de ideias. Os cristãos, como os judeus, eram monoteístas que encaravam Deus como legislador, e para eles a vida moralmente correcta era a obediência aos mandamentos divinos. Os Gregos haviam encarado a razão como fonte da sabedoria prática - a vida virtuosa era, para eles, inseparável da vida racional. Mas Santo Agostinho, pensador cristão do século iv que se tornaria muito influente, desconfiava da razão e ensinava que a bondade moral depende da nossa submissão à vontade de Deus. Logo, quando os filósofos medievais discutiam as virtudes, era no contexto da lei divina. As "virtudes teológicas" da fé, esperança, caridade e, é claro, da obediência, acabaram por ter um papel central.

Após o Renascimento, a filosofia moral começou uma vez mais a ser secularizada, mas os filósofos não regressaram à forma grega de pensar. Em vez disso, a Lei Divina foi substituída pelo seu equivalente secular, algo designado como lei moral. A lei moral, que se dizia brotar da razão humana em vez da vontade divina, era concebida como um sistema de regras especificando as acções correctas. O nosso dever como pessoas morais é, dizia-se, seguir as suas directivas. Assim, os filósofos morais modernos abordavam o seu tema fazendo uma pergunta fundamentalmente diferente da feita pelos Antigos. Em vez de perguntar: "Que traços de carácter tornam uma pessoa boa?", começavam

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por perguntar: "Qual é a coisa certa a fazer?" Isto empurrou-os numa direcção diferente. Acabaram por não desenvolver teorias da virtude mas do bem e obrigação morais:

- Cada pessoa deve fazer o que melhor promove os seus interesses. (Egoísmo ético);

- Devemos fazer o que promove a maior felicidade para o maior número. (Utilitarismo);

- O nosso dever é seguir regras que podemos de forma consistente desejar que sejam leis universais - isto é, regras que estaríamos na disposição de ver seguidas por todas as pessoas em todas as circunstâncias. (Teoria de Kant);

- A coisa certa a fazer é seguir as regras que as pessoas racionais e com interesse próprio acordem estabelecer para benefício mútuo. (Teoria do contrato social.)

E são estas as teorias conhecidas que dominaram a filosofia moral moderna a partir do século xvn.

Devemos regressar à ética das virtudes? No entanto, alguns filósofos apresentaram recentemente uma ideia radical: defenderam que a filosofia moral moderna está falida e que, de maneira a salvar a área, devemos voltar à forma de pensar de Aristóteles.

Esta ideia foi avançada em 1958 quando Elizabeth Anscombe publicou um artigo intitulado "Modern Moral Philosophy" na revista académica Philosophy. Nesse artigo, sugere que a filosofia moral moderna está errada porque se baseia na noção incoerente de uma "lei" sem um legislador. Os próprios conceitos de obrigação, dever e correcção moral, nos quais os filósofos modernos se concentraram, estão inextrincavelmente ligados a esta noção absurda. Logo, defendeu, devemos deixar de pensar sobre a obrigação, dever e correcção moral e regressar à abordagem de Aristóteles. As virtudes devem uma vez mais desempenhar um papel central.

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Na sequência do artigo de Anscombe surgiu um conjunto de livros e ensaios discutindo as virtudes, e a teoria das virtudes tornou-se em breve uma das grandes opções na filosofia moral contemporânea. Não há, no entanto, qualquer corpo constituído de doutrina sobre o qual todos estes autores estejam de acordo. Comparada com teorias como o utilitarismo, a teoria das virtudes encontra-se ainda num estádio relativamente embrionário. Apesar disso, há um conjunto comum de preocupações que motivam esta abordagem. Nos pontos seguintes vamos ver primeiro o aspecto da teoria das virtudes. Depois vamos examinar algumas das razões que têm sido avançadas para pensar que a ética das virtudes é superior a outras formas mais modernas de abordar o assunto. Por fim, vamos avaliar se um "regresso à ética das virtudes" é realmente uma opção viável.

13.2 As virtudes

Uma teoria das virtudes deverá ter várias componentes. Primeiro, deverá haver uma explicação do que é a virtude. Segundo, deverá existir uma lista especificando os traços de carácter que são virtudes. Terceiro, deverá haver uma explicação daquilo em que consistem essas virtudes. Quarto, deverá existir uma explicação da razão pela qual é bom uma pessoa ter essas qualidades. Por fim, a teoria deverá dizer-nos se as virtudes são as mesmas para todas as pessoas ou se diferem de pessoa para pessoa, ou de cultura para cultura.

O que é a virtude? Aristóteles afirmou que a virtude é um traço de carácter manifestado no

agir habitual. O "habitual" é importante. A virtude da honestidade, por exemplo, não é possuída por alguém que diz a verdade apenas ocasionalmente ou quando isso lhe é vantajoso. A pessoa honesta é naturalmente veraz; as suas acções "brotam de um carácter firme e inabalável".

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Isto é um começo, mas não basta. Não distingue as virtudes dos vícios, pois os vícios são também traços de carácter manifestados nas acções habituais. Edmund L. Pincoffs, um filósofo que leccionou na Universidade do Texas, fez uma sugestão que resolve este problema. Pincoffs sugeriu que as virtudes e os vícios são qualidades a que nos referimos para decidir se alguém merece ser procurado ou evitado. "Nós preferimos alguns tipos de pessoas, outros evitamo-los", afirma. "As particularidades na nossa lista [de virtudes e vícios] podem servir como razões para preferir ou evitar."

Procuramos pessoas por razões diferentes, e isto tem implicação nas virtudes relevantes. Quando procuramos um mecânico de automóveis, queremos alguém habilidoso, honesto e consciencioso; ao procurar um professor, queremos alguém com conhecimentos, fluente e paciente. Assim, as virtudes associadas à reparação de automóveis são diferentes das virtudes associadas ao ensino. Mas também avaliamos as pessoas enquanto pessoas, de uma forma mais geral, pelo que temos não apenas o conceito de um bom mecânico ou de um bom professor mas de uma boa pessoa. As virtudes morais são as virtudes das pessoas enquanto tal. Aproveitando a deixa de Pincoffs, podemos, pois, definir uma virtude como um traço de carácter, manifestado nas acções habituais, que é bom uma pessoa possuir. E as virtudes morais são as virtudes que é bom todas as pessoas possuírem.

Quais são as virtudes? Quais são, pois, as virtudes? Quais os traços de carácter que devem ser desenvolvidos pelos seres humanos? Não há uma resposta breve para isto, mas o que se segue é uma lista parcial:

Benevolência

Civilidade

Compaixão

Ser consciencioso

Ser cooperante

Coragem

Equidade

Afabilidade

Generosidade

Honestidade

Ser industrioso

Justiça

Paciência

Prudência

Sensatez

Autodisciplina

Autoconfiança

Tacto

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Cortesia

Ser de confiança

Lealdade Moderação

Ponderação Tolerância

A lista poderia, naturalmente, ser alargada, adicionando-se outros traços de carácter. Mas isto é um ponto de partida razoável.

Em que consistem estas virtudes? Uma coisa é afirmar, de uma forma geral, que devemos ser conscienciosos, compassivos e tolerantes; outra coisa é dizer exactamente em que consistem esses traços de carácter. Cada uma destas virtudes tem as suas próprias características e levanta os seus próprios problemas. Vamos dar uma vista de olhos rápida a quatro deles.

1. Coragem. De acordo com Aristóteles, as virtudes são meios entre extremos: a virtude é "o meio por referência a dois vícios: um de excesso e outro de carência". A coragem é um meio entre os extremos da cobardia e da temeridade - é cobarde fugir de um perigo; mas é temerário arriscar em demasia.

Descreve-se por vezes a coragem como uma virtude militar por ser tão obviamente necessária ao desempenho das funções dos soldados. Os soldados vão para as batalhas; as batalhas estão pejadas de perigos; logo, sem coragem as batalhas perdem-se. Mas os soldados não são os únicos que precisam de coragem. Qualquer pessoa que enfrente o perigo, e em alturas diferentes isso inclui-nos a todos, precisa de coragem. Um estudioso

que passa a sua vida, tímida e segura, a estudar literatura medieval poderá parecer o exacto oposto do soldado. No entanto, mesmo ele pode adoecer e necessitar de coragem para enfrentar uma arriscada operação. Como afirmou Peter Geach:

Coragem é o que todos precisamos no fim da vida, e é constantemente necessária no decurso normal da vida: às

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mulheres grávidas, a todos nós porque os nossos corpos são vulneráveis, aos mineiros e pescadores emetalúrgicos e camionistas.

Enquanto examinamos apenas o "decurso normal da vida", a natureza da coragem não parece levantar problemas. Mas as circunstâncias menos comuns apresentam tipos de casos mais problemáticos. Pensemos num soldado nazi que luta com valentia - enfrenta grandes riscos sem vacilar - mas fá-lo ao serviço de uma causa maléfica. Será corajoso? Geach pensa que, ao contrário das aparências, o soldado nazi não possui realmente a virtude da coragem. "A coragem ao serviço de uma causa indigna", afirma, "não é uma virtude; menos é ainda ao serviço de uma causa maléfica. Na verdade eu prefiro não chamar 'coragem' a este enfrentar não virtuoso do perigo."

É fácil perceber a ideia de Geach. Chamar a um soldado nazi "corajoso" parece um elogio do seu desempenho, e nós não desejamos elogiá-lo. Preferíamos que ele se tivesse comportado de outra forma. Mas mesmo assim não parece muito correcto dizer que não é corajoso - afinal de contas, atentemos na maneira como ele se comporta frente ao perigo. Para contornar este problema, talvez devêssemos apenas dizer que o soldado revela duas qualidades de carácter, uma admirável (firmeza ao enfrentar o perigo) e a outra não (a vontade para defender um regime desprezível). O soldado é realmente corajoso, e a coragem é uma coisa admirável; mas uma vez que a sua coragem é exibida ao serviço de uma causa malévola, o seu comportamento é no seu todo perverso;

2. Generosidade. A generosidade é a disponibilidade para gastar os nossos recursos no auxílio aos outros. Aristóteles afirma que, como a coragem, é também um meio entre dois extremos: situa-se algures entre a avareza e a extravagância. A pessoa avara dá muito pouco; a pessoa extravagante dá demasiado. Mas quanto é bastante?

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A resposta dependerá até certo ponto da perspectiva geral da ética que aceitamos. Jesus,

outro importante professor da Antiguidade, afirmou que devemos dar tudo que temos para ajudar os pobres. A posse de riquezas, enquanto os pobres passam fome, era a seu ver inaceitável. Isto foi considerado pelos que o escutavam um ensinamento muito severo, e foi em geral rejeitado. É ainda rejeitado pela generalidade das pessoas hoje em dia, mesmo por quem se considera seu seguidor.

Os utilitaristas modernos são, pelo menos neste aspecto, os descendentes morais de Jesus. Defendem que em todas as circunstâncias é nosso dever fazer o que terá as melhores consequências globais para todos os envolvidos. Isto significa que devemos ser generosos com o nosso dinheiro até se atingir o ponto a partir do qual continuar a dar seria mais prejudicial para nós do que benéfico para os outros.

Porque razão resistem as pessoas a esta ideia? Pode ser, em parte, uma questão de egoísmo; não queremos ficar pobres por dar quanto temos. Mas há também o problema de que a adopção desta política nos impediria de viver vidas normais. Não está em causa apenas dinheiro mas tempo; as nossas vidas consistem em projectos e relações que requerem um considerável investimento de ambos. Um ideal de "generosidade", que exige gastar o nosso dinheiro e tempo como recomendam Jesus e os utilitaristas, implicaria abandonar as nossas vidas de todos os dias e viver de maneira muito diferente.

Uma interpretação razoável das exigências da generosidade poderia ser, portanto, algo como isto: devemos ser generosos com os nossos recursos até ao ponto máximo conciliável com a possibilidade de vivermos as nossas vidas normais de forma minimamente satisfatória. Mesmo esta leitura vai deixar-nos, no entanto, algumas questões embaraçosas. As "vidas normais" de algumas pessoas são bastante extravagantes - pensemos numa pessoa rica cuja vida quotidiana inclui luxos sem os quais se sentiria

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dispojada. A virtude da generosidade não pode existir, ao que parece, no contexto de uma vidademasiado sumptuosa, especialmente quando há outras pessoas cujas necessidades básicas não são satisfeitas. Para tornar isto uma interpretação "razoável" das exigências da generosidade, precisamos de uma concepção da vida quotidiana que não seja em si muito extravagante;

3. Honestidade. A pessoa honesta é, antes de mais, alguém que não mente. Mas basta isso? Há, além da mentira, outras maneiras de enganar as pessoas. Geach relata a história de Santo Atanásio que, "remava num rio quando os seus perseguidores apareceram remando na

direcção contrária: 'Onde está o traidor Atanásio?' 'Não está longe', respondeu o santo bem-humorado, e passou por eles sem levantar suspeitas."

Geach aprova o logro de Atanásio embora pense que teria sido errado dizer uma mentira. Mentir, pensa Geach, é sempre proibido: uma pessoa detentora da virtude da honestidade nem sequer pensará nisso. As pessoas honestas não mentem, e por isso têm de descobrir outras formas de lidar com situações complicadas. Atanásio foi suficientemente esperto para o fazer. Disse a verdade, embora de uma forma enganadora.

Torna-se difícil perceber, claro está, por que razão o logro de Atanásio não é igualmente desonesto. Que princípio não arbitrário aprovaria o acto de enganar pessoas de uma forma e não de outra? Mas, independentemente do que pensemos sobre isto, a questão de fundo é saber se a virtude implica adesão a regras absolutas. Relativamente à honestidade, poderemos distinguir duas perspectivas sobre o assunto:

1. Uma pessoa honesta nunca mente;

2. Uma pessoa honesta nunca mente, excepto nas raras circunstâncias em que existem razões prementes para o fazer.

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Não há uma razão óbvia para aceitar a primeira perspectiva. Pelo contrário, existem razões para favorecer a segunda. Para ver porquê, precisamos de pensar por que razão mentir é à partida uma coisa má. A explicação poderia ser a seguinte:

A nossa capacidade de viver em comunidades depende das nossas capacidades de comunicação. Falamos uns com os outros, lemos os escritos uns dos outros, trocamos informação e opiniões, exprimimos os nossos desejos uns aos outros, fazemos promessas, perguntamos e respondemos a perguntas, e muito mais. Sem estes tipos de intercâmbio, a vida social seria impossível. Mas de maneira a estes intercâmbios serem bem sucedidos, temos de ser capazes de pressupor que há certas regras em vigor: temos de poder confiar que todos falarão com honestidade.

Além disso, quando aceitamos a palavra de alguém, ficamos vulneráveis de uma forma peculiar. Pela aceitação do que dizem e modificando de acordo com isso as nossas crenças, colocamos o nosso bem-estar nas suas mãos. Se falarem com veracidade, tudo está bem. Mas se mentirem, acabamos com falsas crenças; se agirmos segundo essas crenças, acabamos por fazer coisas estúpidas. A culpa é deles. Confiámos neles, e eles não estiveram à altura. Isto explica a razão por que ser enganado é tão particularmente ofensivo. É, no fundo, uma violação da confiança. Explica ainda por que razão as mentiras e as "verdades enganadoras" parecem moralmente indiscerníveis. Ambas podem violar a confiança da mesma maneira.

Contudo, nada disto implica que a honestidade seja o único valor importante ou que tenhamos de lidar honestamente com todos, independentemente de quem sejam e do que pretendam. A autodefesa é igualmente uma questão importante, especialmente face àqueles que nos fariam mal injustamente. Quando isto entra em conflito com a regra proibindo a mentira, é razoável pensar que tenha prioridade. Suponha que Santo Atanásio tinha dito aos seus

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persiguidores "Não o conheço", e em consequência disso eles o procuravam em vão. Poderiameles, mais tarde, queixar-se que Santo Atanásio tinha violado a sua confiança? Parece natural pensar que eles comprometeram qualquer direito que pudessem ter à verdade quando iniciaram uma perseguição injusta.

4. Lealdade para com família e amigos. No início do diálogo de Platão intitulado Eutifron, Sócrates é informado de que Eutifron, que ele encontrou junto à porta do tribunal, veio processar o pai por homicídio. Sócrates mostra-se surpreso e pergunta se será correcto um filho apresentar queixa contra o seu pai. Eutifron não vê qualquer incorrecção: para ele um homicídio é um homicídio. Infelizmente, a questão fica por resolver à medida que a discussão entre os dois se desvia para outros assuntos.

A ideia de que há algo de moralmente especial relativamente à família e amigos é-nos, naturalmente, familiar. Não tratamos a nossa família e amigos como trataríamos estranhos. Estamos ligados a eles por amor e afeição e fazemos por eles coisas que não faríamos por qualquer pessoa. Mas não é apenas uma questão de sermos mais afáveis com as pessoas de que gostamos. A natureza da nossa relação com família e amigos é diferente das nossas relações com outras pessoas, e parte da diferença é que os nossos deveres e responsabilidades são diferentes. Isto parece uma parte essencial daquilo que é a amizade. Como poderia eu ser amigo do leitor e no entanto não o tratar com especial consideração?

Se fosse preciso provar que os seres humanos são essencialmente criaturas sociais, a existência da amizade fornecer-nos-ia tudo o que desejássemos. Como afirmou Aristóteles: "Ninguém escolheria viver sem amigos, mesmo que tivesse todos os outros bens":

Como poderia a prosperidade ser salvaguardada e preservada sem amigos? Quanto maior é, maiores são os riscos que acarreta. Também na pobreza e em todos os outros tipos de

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infortúnio os homens acreditam que o seu único refúgio é os seus amigos. Os amigos ajudam osjovens a evitar o erro e aos mais velhos dão a atenção e auxílio necessários para compensar a perda de capacidade de acção que a doença acarreta.

Os amigos prestam auxílio, é um facto, mas os benefícios da amizade vão muito além da assistência material. Sem amigos, estaríamos psicologicamente perdidos. Os nossos triunfos parecem vazios a menos que tenhamos amigos para os partilhar, e os nossos fracassos tornam-se suportáveis graças à sua compreensão. Até mesmo o nosso amor-próprio depende em grande medida das garantias dos amigos: ao retribuírem o nosso afecto, confirmam o nosso valor como seres humanos.

Se necessitamos de amigos, necessitamos igualmente das qualidades de carácter que nos capacitam para ser amigos. No topo da lista está a lealdade. Os amigos são pessoas com quem se pode contar. Apoiam-se mutuamente mesmo quando as coisas ficam feias, ou mesmo quando, falando objectivamente, o amigo poderia merecer ser abandonado. Fazem concessões entre si; perdoam ofensas e refreiam juízos mais duros. Há limites, naturalmente. Por vezes, um amigo será a única pessoa capaz de nos dizer as verdades mais duras sobre nós mesmos. Mas as críticas são aceitáveis da parte de amigos porque sabemos que a sua repreensão não significa rejeição, e mesmo que nos descomponham em privado não nos embaraçarão à frente de outras pessoas.

Nada disto significa que não tenhamos deveres para com as outras pessoas, mesmo para com os desconhecidos. Mas são deveres diferentes, associados a virtudes diferentes. A beneficência generalizada é uma virtude, e pode exigir muito, mas não exige para com os estranhos o mesmo nível de preocupação que temos com os amigos. A justiça é outra dessas virtudes; requer um tratamento imparcial para todos. Mas, uma vez que os amigos são

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leais, as exigências de justiça aplicam-se de forma mais aleatória entre eles.

E por isso que Sócrates se surpreende ao saber que Eutifron vai processar o pai. A relação que temos com membros da nossa família é ainda mais próxima que a amizade; por isso, apesar de podermos admirar a paixão de Eutifron pela justiça, podemos ainda assim espantar-nos com o facto de ter podido tomar face ao pai a mesma atitude que teria com qualquer outra pessoa que tivesse cometido o mesmo crime. Isto parece estar em contradição com a estima própria de um filho. Este aspecto é ainda reconhecido pela lei dos nossos dias: Nos Estados Unidos, bem como noutros países, uma esposa não pode ser

obrigada a testemunhar em tribunal contra o seu marido, e vice-versa.

Porque razão são importantes as virtudes? Dissemos que as virtudes são características de carácter que é bom as pessoas possuírem. Isto apenas levanta a questão adicional de saber por que razão as virtudes são desejáveis. Porque razão é uma coisa boa que uma pessoa seja corajosa, generosa, honesta ou leal? A resposta, é claro, pode variar dependendo da virtude particular em questão. Assim:

- A coragem é uma coisa boa porque a vida está cheia de perigos e sem coragem não seríamos capazes de lhes fazer frente;

- A generosidade é desejável porque algumas pessoas vivem necessariamente em piores condições que outras e necessitam da nossa ajuda;

- A honestidade é necessária porque sem ela as relações entre as pessoas correriam mal de múltiplas maneiras;

- A lealdade é essencial para a amizade; os amigos apoiam-se mutuamente, mesmo quando se sentem tentados a voltar as costas.

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Olhando para esta lista parece que cada virtude tem valor por uma razão diferente.Aristóteles pensava, no entanto, que é possível dar uma resposta mais geral à nossa questão; nomeadamente, que as virtudes são importantes porque a pessoa virtuosa terá uma vida melhor. A ideia não é que os virtuosos ficarão mais ricos - isso não é obviamente assim, ou pelo menos não é sempre assim. A ideia é que as virtudes são necessárias para orientarmos bem as nossas vidas.

Para ver o que Aristóteles pretende, considere-se o tipo de criaturas que somos e o tipo de vida que levamos. A um nível mais geral, somos seres racionais e sociais que querem e precisam da companhia de outras pessoas. Por isso vivemos em comunidades, entre amigos, família e outros cidadãos. Neste cenário, qualidades como a lealdade, equidade e honestidade são necessárias para interagir harmoniosamente com todas essas outras pessoas. (Imagine-se as dificuldades que uma pessoa teria se manifestasse habitualmente as qualidades opostas na sua vida social.) A um nível mais individual, as nossas vidas podem incluir trabalhar num determinado tipo de emprego e ter determinados interesses. Outras virtudes poderão ser necessárias para fazer bem esse trabalho ou dedicar-se a esses interesses - a perseverança e a diligência podem ser importantes. Uma vez mais, é parte da nossa condição humana comum que por vezes enfrentemos perigos ou tentações, pelo que a

coragem e o autodomínio são necessários. A conclusão é que, apesar das suas diferenças, as virtudes têm todas o mesmo tipo geral de valor: são todas qualidades necessárias para uma vida humana bem sucedida.

As virtudes são iguais para todos? Podemos perguntar, por fim, se é desejável um único conjunto de características de carácter para todas as pessoas. Devemos falar da pessoa moralmente boa, como se todas as pessoas boas viessem de um só molde? Este pressuposto foi frequentemente

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contestado. Friedrich Nietzsche, por exemplo, não pensava que existia apenas um tipo de bondade humana. No seu estilo extravagante, Nietzsche afirma:

Consideremos, por fim, que ingenuidade é ainda afirmar: "O homem deve ser assim e assado!" A realidade exibe uma riqueza surpreendente de tipos, a exuberância de um pródigo jogo e mudança de formas; e qualquer moralista insignificante se atreve a dizer: "Não, o homem deve ser de outro modo." Sabe muito bem como deve ser, este biltre e hipócrita; pinta-se a si na parede e diz: "Ecce homo!"

Há aqui algo de obviamente pertinente. O académico que dedica a sua vida a compreender a literatura medieval e o soldado profissional são tipos muito diferentes de pessoas. Uma mulher vitoriana que nunca mostrava um joelho em público e uma mulher moderna numa praia têm padrões muito diferentes de recato.

Há, pois, um sentido óbvio no seio do qual se pode pensar que as virtudes diferem de pessoa para pessoa. Uma vez que as pessoas têm tipos de vida diferentes, personalidades de géneros diferentes, e ocupam papéis sociais diferentes, as qualidades de carácter que manifestam podem diferir.

É tentador ir ainda mais longe e afirmar que as virtudes diferem de sociedade para sociedade. Afinal de contas, o tipo de vida que é possível para um indivíduo dependerá da sociedade na qual vive. Ã vida de um académico só é possível numa sociedade que tem instituições, como as universidades, que definem e tornam possível a vida de um académico. O mesmo poderia dizer-se de um jogador de futebol, um padre, uma gueixa ou um guerreiro samurai. As sociedades fornecem sistemas de valores, instituições e modos de vida no seio dos quais se moldam as vidas dos indivíduos. As características de carácter necessários para desempenhar estes papéis diferem, e por isso os traços

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necessários para viver de forma bem sucedida diferem também. Assim, as virtudes serão diferentes.Tendo tudo isto em conta, porque razão não afirmamos simplesmente que a consideração de determinadas qualidades como virtudes depende das formas de vida criadas e mantidas por determinadas sociedades?

A isto'poderá contrapor-se a ideia de que há virtudes necessárias a todas as pessoas em todas as épocas. Esta era a concepção de Aristóteles, e provavelmente tinha razão. Aristóteles pensava que, apesar das diferenças, todos temos muito em comum. "Podemos observar", afirmava, "quando viajamos para países distantes, os sentimentos de identificação e filiação que ligam cada ser humano a todos os outros seres humanos." Mesmo nas sociedades mais díspares as pessoas enfrentam os mesmos problemas fundamentais e têm as mesmas necessidades básicas. Assim:

- Todos necessitam de coragem, porque ninguém (nem mesmo o académico) está tão seguro que possa evitar a ocorrência eventual de perigos;

- Em todas as sociedades há bens para gerir e decisões para tomar sobre o que corresponde a quem, e em todas as sociedades há pessoas em piores condições que outras; por isso, a generosidade é sempre um bem precioso;

- Falar com honestidade é sempre uma virtude porque nenhuma sociedade pode existir sem comunicação entre os seus membros;

- Todos precisam de amigos, e para ter amigos temos de saber ser amigos; por isso, todos precisamos de lealdade.

Este tipo de lista poderia prosseguir - e nas mãos de Aristóteles prossegue - indefinidamente.

Em resumo, pode muito bem ser verdade que em diferentes sociedades as virtudes recebam interpretações algo

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diversas, e diferentes tipos de acções sejam contemplados para as satisfazer; e pode ser verdade que algumas pessoas, por viverem determinados tipos de vidas em determinados tipos de circunstâncias, necessitem de virtudes mais do que outras. Mas não pode ser correcto dizer simplesmente que a determinação de um traço particular de carácter como virtude nunca é mais do que uma questão

de convenção social. As virtudes essenciais não são prescritas por convenção social mas por factos fundamentais sobre a nossa condição humana comum.

13.3 Algumas vantagens d

Porque razão alguns filósofos pensam que uma ênfase nas virtudes é superior a outras maneiras de pensar sobre ética? Sugeriu-se uma série de razões. Eis duas das mais importantes.

1. Motivação moral. Primeiro, a ética das virtudes é apelativa porque fornece uma descrição atraente da motivação moral. As outras teorias parecem deficientes neste campo. Considere-se o seguinte:

O leitor está no hospital a recuperar de uma doença prolongada. Está aborrecido e inquieto, e por isso fica encantado quando Smith chega para o visitar. Passa um bom bocado à conversa com ele; a sua visita era justamente o tónico de que precisava. Decorrido algum tempo, diz a Smith como a sua visita lhe foi agradável - ele é mesmo um tipo excelente e um bom amigo, para se dar ao trabalho de atravessar a cidade para vir vê-lo. Mas Smith objecta; confessa que está apenas a cumprir o seu dever. A princípio o leitor pensa que ele está só a ser modesto, mas quanto mais falam, mais claro se torna que ele está a dizer a verdade. Não veio visitá-lo porque quis ou por gostar dele, mas apenas por pensar que tem o dever de "fazer o que está certo", e nessa ocasião decidiu que tinha o dever de o

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visitar - talvez por não saber de alguém com mais necessidade de ser animado ou de alguém maispróximo.

Este exemplo foi sugerido por Michael Stocker num artigo muito influente surgido no Journal of Philosophy em1976. Stocker comenta que certamente o leitor ficaria muito desiludido ao conhecer a motivação de Smith; a sua visita parece agora fria e calculista, e perde todo o valor para si. Pensava que ele era seu amigo, mas verifica agora que isso não é verdade. Stocker afirma o seguinte sobre o comportamento de Smith: "Há certamente alguma coisa que falha aqui - uma falha de mérito ou valor moral."

É claro que nada há de errado com o que Smith fez. O problema é a sua motivação. Valorizamos a amizade, o amor e o respeito, e queremos que as nossas relações com as outras pessoas sejam baseadas em consideração mútua. Agir movido por um sentido abstracto de dever, ou por

um desejo de "fazer o que está certo", não é a mesma coisa. Não desejaríamos viver numa comunidade de pessoas que agissem apenas por tais motivos, nem desejaríamos ser uma dessas pessoas. Logo, prossegue o argumento, as teorias éticas que enfatizam apenas a correcção da acção nunca poderão fornecer uma explicação satisfatória da vida moral. Necessitamos para isso de uma teoria que enfatize as qualidades pessoais como a amizade, o amor e a lealdade - por outras palavras, uma teoria das virtudes;

2 Dúvidas sobre o "ideal" da imparcialidade. Um tema dominante da filosofia moral moderna tem sido a imparcialidade - a ideia de que todas as pessoas são moralmente iguais, e de que ao decidirmos o que fazer devemos tratar os interesses de todos como igualmente importantes. (Das quatro teorias da "acção correcta" enumeradas antes, apenas o egoísmo ético, uma teoria com poucos adeptos, nega isto/.) John Stuart Mill colocou bem a questão ao escrever que o "Utilitarismo exige [que o agente moral] seja tão estritamente imparcial como um espectador benévolo e desinteressado". O livro que está agora a ler trata também

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a imparcialidade como um requisito moral fundamental: no primeiro capítulo, a imparcialidade foi incluída como parte da "concepção mínima" da moralidade.

Pode duvidar-se, no entanto, que a imparcialidade seja realmente uma característica assim tão importante da vida moral. Consideremos as nossas relações com a família e os amigos. Seremos realmente imparciais no que respeita aos seus interesses? E devemos sê-lo? Uma mãe ama os seus filhos e cuida deles de um modo que não alarga a outras crianças. É completamente parcial para com elas. Mas haverá algo de errado nisso? Não é exactamente assim que uma mãe deve ser? Além disso, amamos os nossos amigos e estamos dispostos a fazer por eles coisas que não faríamos por qualquer outra pessoa. Haverá algo de errado nisso? Pelo contrário, parece que o amor por familiares e amigos é uma característica inultrapassável da vida moralmente boa. Qualquer teoria que releve a imparcialidade terá dificuldade em dar conta disto.

Uma teoria moral que enfatize as virtudes pode, no entanto, justificar tudo isto sem dificuldade. Algumas virtudes são parciais e outras não. O amor e a amizade implicam parcialidade para com os entes queridos e os amigos; a beneficência para com as pessoas em geral é também uma virtude, mas é uma virtude de tipo diferente. O que é necessário não é um qualquer tipo geral de imparc

ialidade, mas uma compreensão da natureza destas diferentes virtudes e de como se relacionam entre si.

13.4 O problema da incompletude

Os argumentos precedentes constituem uma defesa impressionante de dois aspectos gerais: primeiro, que uma teoria adequada da ética tem de fornecer uma explicação do carácter moral; e segundo, que os filósofos morais modernos não conseguiram fazer isto. Estes filósofos não

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se limitaram a negligenciar a questão; a sua negligência levou-os por vezes a abraçardoutrinas que distorcem a natureza do carácter moral. Suponha-se que aceitamos estasconclusões. Que faremos a seguir?

Uma forma de prosseguir seria desenvolver uma teoria combinando as melhorescaracterísticas da abordagem da acção correcta com intuições retiradas d- poderíamos tentar aperfeiçoar o utilitarismo, o kantismo e outras teorias como estas,acrescentando-lhes um tratamento melhor do carácter moral. A nossa teoria total incluiriaentão um tratamento das virtudes, que seria proposto apenas como um complemento a uma teoria da acção correcta. Isto parece sensato, e se um tal projecto puder ser levado a bom termo, haveria certamente muito que dizer em sua defesa.

Alguns teóricos das virtudes sugeriram, no entanto, que deveríamos proceder de formadiferente. Defenderam que se deve considerar a ética das virtudes uma alternativa aosoutros tipos de teorias - uma teoria independente da ética, completa em si. Poderíamos chamar-lhe "ética radical das virtudes". Será esta perspectiva viável?

Virtude e conduta. Como vimos, as teorias que enfatizam a acção correcta parecem incompletas porque negligenciam a questão do carácter. A teoria das virtudes remedeia este problema ao transformar a questão do carácter na sua preocupação central. Mas em resultado disso, a teoria das virtudes corre o risco de ficar incompleta no sentido oposto. É frequente que os problemas morais sejam sobre o que devemos fazer. Não é óbvio como devemos decidir o que fazer, segundo a teoria das virtudes. O que pode esta abordagem dizer não sobre a avaliação do carácter, mas da acção?

A resposta depende do espírito com que se apresenta a teoria das virtudes. Se uma teoria das virtudes for apresentada apenas como um complemento a uma teoria da acção

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correcta, então, quando a avaliação da acção está em causa, os recursos da teoria no seu todo serão postos em jogo e será recomendada uma versão das políticas utilitaristas ou kantianas (por exemplo). Por outro lado, se a teoria das virtudes for apresentada como uma teoria independente, com a pretensão de ser completa em si, então têm de se dar passos mais drásticos. Ou a teoria abandona a noção de "acção correcta" no seu todo ou terá de fornecer algum tratamento da noção, derivado da concepção de carácter virtuoso.

Apesar de parecer à primeira vista uma ideia louca, alguns filósofos argumentaram de facto que devemos ver-nos livres de conceitos como "acção moralmente correcta". Anscombe afirma que "seria um grande progresso" se deixássemos de usar por completo tais noções. Poderíamos continuar a avaliar a conduta como melhor ou pior, afirma Anscombe, mas faríamos isso noutros termos. Em vez de dizer que uma acção foi "moralmente errada", deveríamos simplesmente afirmar que não foi "sincera" ou que foi "injusta" - termos derivados do vocabulário da virtude. Na sua perspectiva, não precisamos de dizer nada mais do que isto para explicar por que motivo uma acção deve ser rejeitada.

Mas não é realmente necessário para os teóricos radicais da virtude abandonar noções como "moralmente correcto". Pode-se manter estas ideias dando-se-lhes uma nova interpretação no quadro de referência das virtudes. Isto poderia ser feito da maneira que se segue: Primeiro, poderia dizer-se que as acções devem ser avaliadas como certas ou erradas do modo habitual, por referência às razões que podem ser avançadas a favor ou contra elas. No entanto, as razões referidas serão, todas elas, razões ligadas às virtudes - as razões a favor da realização de uma acção serão que essa acção é honesta, generosa ou justa, e outras semelhantes; enquanto as razões contra a sua realização serão que é desonesta, mesquinha ou injusta, e outras que

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tais. Esta análise poderia ser resumida dizendo que o nosso dever é agir virtuosamente - a "acçãocorrecta" é, por outras palavras, aquilo que uma pessoa virtuosa faria.

O problema da incompletude. Esboçámos agora mesmo a forma como os teóricos radicais da virtude compreendem o que devemos fazer. Será essa compreensão suficiente? O problema principal da teoria é a incompletude.

Para se compreender o problema, considere-se uma virtude típica, como a honestidade. Suponha-se que uma pessoa se sente tentada a mentir, talvez porque mentir concede alguma vantagem numa situação determinada. A razão pela qual essa pessoa não deve mentir, segundo a abordagem da ética radical das virtudes, é porque fazê-lo seria desonesto. Isto parece bastante razoável. Mas o que significa ser honesto? Não é uma pessoa honesta apenas aquela que segue regras como

"não mentir"? É difícil ver em que consiste a honestidade se não é a disposição para seguir tais regras.

Mas não podemos evitar perguntar por que razão tais regras são importantes. Porque razão não deve uma pessoa mentir, especialmente quando há alguma vantagem a ser obtida com a mentira? Precisamos claramente de uma resposta que vá além da simples observação de que fazer isso seria incompatível com a posse de um determinado traço de carácter; precisamos de uma explicação do motivo pelo qual é melhor ter este traço do que o seu oposto. Algumas respostas possíveis poderiam ser que uma política de veridicidade é no todo vantajosa para nós; ou que promove o bem-estar geral; ou que é necessária a pessoas que têm de viver juntas e confiar umas nas outras. Ã primeira explicação assemelha-se de forma suspeita ao egoísmo ético; a segunda é utilitarista; e a terceira fazlembrar formas contratualistas de pensar. Em qualquer dos casos, o simples facto de dar umaexplicação parece levar-nos além dos limites da teoria simples das virtudes.

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Além disso, é difícil ver como uma teoria simples das virtudes poderia lidar com casos de conflitomoral. Suponha que tem de escolher entre A e B, num caso em que seria desonesto mas delicadofazer A, e honesto mas indelicado fazer B. (Um exemplo poderia ser dizer a verdade emcircunstâncias nas quais isso pudesse causar sofrimento a alguém.) A honestidade e a delicadeza sãoambas virtudes, existindo por isso razões a favor e contra para cada alternativa. Mas o leitor tem defazer uma coisa ou outra - tem de dizer a verdade e ser indelicado, ou não dizer a verdade e serdelicado. O que deve então fazer? O conselho de agir virtuosamente não oferece, por si, grandeauxílio. Deixa-o apenas a interrogar-se sobre qual das virtudes terá precedência sobre a outra. Pararesolver conflitos destes parece que precisamos de uma orientação geral qualquer, além da que podeoferecer a teoria radical das virtudes.

Existirá uma virtude que corresponda a toda a razão moralmente boa para fazer algo? Oproblema da incompletude indica, por fim, uma dificuldade teórica mais geral para a abordagemradical da ética das virtudes. Como vimos, segundo esta abordagem, as razões a favor e contra arealização de uma acção têm que estar sempre associadas a uma ou mais virtudes. A ética dasvirtudes radical está, assim, comprometida com a ideia de que por cada boa razão que se possapropor a favor da realização de uma acção, há uma virtude correspondente que consiste nadisposição para aceitar essa razão e agir de acordo com ela. Mas isto não parece verdade

.

Suponha o leitor, por exemplo, que é deputado e tem que decidir como distribuir fundos para ainvestigação médica - não há dinheiro suficiente para tudo, e tem que decidir se deve investir-se eminvestigação sobre a sida ou em algum outro projecto válido. Suponha que nessa circunstância decideser melhor fazer o que beneficiar um maior número de pessoas. Existirá uma virtude que corres-

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ponda à disposição para fazer isso? Se existe, talvez se lhe deva chamar "agir como umutilitarista". Ou, para voltar ao nosso exemplo de conflitos morais, haverá uma virtuderelacionada com todos os princípios que se podem invocar para resolver conflitos entre asoutras virtudes? Se há, talvez seja a "virtude" da sabedoria - o mesmo é dizer, acapacidade de discernir o que é melhor e fazê-lo. Mas isto põe o jogo à mostra. Sepressupomos tais "virtudes" apenas para adaptar todas as decisões morais à estruturaescolhida, teremos salvo a ética radical das virtudes, mas à custa de abandonar a sua ideiacentral.

Conclusão. Parece melhor, por estas razões, encarar a teoria das virtudes como parte deuma teoria geral da ética e não como uma teoria completa em si. A teoria geral incluiria umtratamento de todas as considerações que figuram no processo de decisão prática,juntamente com a sua fundamentação racional. A questão é, pois, saber se tal visão geralpode incluir uma concepção adequada da acção correcta, e uma concepção correspondentedo carácter virtuoso, de maneira a fazer justiça a ambas.

Não vejo razão para isto não ser possível. A nossa teoria geral poderia começar por tomar obem-estar humano - ou o bem-estar de todas as criaturas sencientes - como o valor demaior importância. Poderíamos dizer, do ponto de vista moral, que devemos desejar umasociedade onde todas as pessoas possam ter vidas felizes e aprazíveis. Poderíamos entãoavançar para a apreciação da questão de saber que tipos de acções e políticas sociaiscontribuiriam para este objectivo e que qualidades de carácter são necessárias para criar emanter vidas individuais. Uma investigação sobre a natureza da virtude podia ser conduzidacom proveito a partir da perspectiva que tal visão alargada fornece. Cada uma poderiailuminar a outra, e se cada uma das partes da teoria geral tiver de ser ligeiramente ajustada,aqui e ali, para incluir a outra, tanto melhor para a verdade.

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Como seria uma teoria moral satisfatória?

Algumas pessoas pensam que não pode haver progresso em Ética, uma vez que já tudo foi dito [...] Eu penso o contrário [...] Comparada com as outras ciências, a Ética Não Religiosa é a mais jovem e menos desenvolvida.

DEREK PARFIT, Reasons and Persons (1984)

14.1 Moralidade sem húbris

A filosofia moral tem uma história rica e fascinante. Inúmeros pensadores abordaram o tema a partir de uma imensa diversidade de perspectivas e produziram teorias que, a um tempo, atraem e repugnam o leitor atento. Quase todas as teorias clássicas contêm elementos plausíveis, o que dificilmente surpreende, tendo em conta que foram elaboradas por filósofos de génio indubitável. No entanto, as teorias não são consistentes entre si, e muitas são vulneráveis a objecções paralisantes. Depois de as examinar,

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ficamos sem saber o que pensar. Onde está, em última análise, a verdade? É claro que diferentesfilósofos responderiam a esta pergunta de maneiras diferentes. Alguns poderiam mesmo recusar responder, alegando que não sabemos ainda o suficiente para alcançar a "análise final". (Neste aspecto, a filosofia moral não está muito pior do qualquer outra área de investigação humana - não conhecemos a verdade "final" sobre a maioria das coisas.) Mas sabemos muito, e poderá não ser excessivamente precipitado dizer alguma coisa sobre o que seria uma teoria moral satisfatória.

Uma concepção modesta dos seres humanos. Uma teoria satisfatória seria, antes de mais, sensível aos factos sobre a natureza humana, e seria adequadamente modesta sobre o lugar dos seres humanos no plano geral das coisas. O universo tem cerca de quinze milhares de milhões de anos - esse é o tempo decorrido desde o "big bang" - e a Terra em si foi formada há cerca de 4,5 milhares de milhões de anos. A evolução da vida no planeta foi um processo lento, guiado principalmente pela selecção natural. Os primeiros seres humanos apareceram em data muito recente. A extinção dos grandes dinossauros, há sessenta e cinco milhões de anos (possivelmente em resultado de uma colisão catastrófica de um asteróide na Terra), criou espaço ecológico para a evolução dos poucos mamíferos então existentes, e após outros sessenta e três ou sessenta e quatro milhões de anos uma linha dessa evolução acabou por nos produzir. Em tempo geológico, chegámos apenas ontem.

Mas, mal chegaram, os nossos Antepassados começaram logo a pensar em si mesmos como as coisas mais importantes da criação. Alguns imaginaram mesmo que todo o universo tinha sido feito para seu benefício. Assim, quando começaram a desenvolver teorias sobre o bem e o mal, defenderam que a protecção dos seus próprios interesses tinha uma espécie de valor fundamental e objectivo. O resto

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COMO SERIA UMA TEORIA MORAL SATISFATÓRIA?

da criação, pensavam, existia para ser usado em seu benefício. Hoje sabemos que não é assim. Sabemos agora que existimos por acidente evolutivo, como uma espécie entre muitas, num mundo pequeno e insignificante num pequeno canto do cosmos. Os pormenores desta imagem são revistos todos os anos, à medida que mais coisas são descobertas; mas os traços principais parecem solidamente estabelecidos.

Como dá a razão origem à ética. Hume, que só conhecia uma pequena parte desta história, percebeu, no entanto, que o húbris humana é em boa medida injustificada. "A vida do homem", escreveu, "não tem mais importância para o universo do que a de uma ostra". Mas reconheceu igualmente que as nossas vidas são importantes para nós. Somos criaturas com desejos, necessidades, planos e esperanças; mesmo que "o universo" não dê importância a estas coisas, nós damos.

O húbris humano é em boa medida injustificada, mas não é inteiramente injustificada. Comparados com as outras criaturas, temos capacidades intelectuais impressionantes. Evoluímos como seres racionais. Este facto dá alguma pertinência à nossa opinião exagerada sobre nós mesmos; e acaba por ser igualmente o que permite que tenhamos uma moralidade. Porque somos racionais, conseguimos tomar certos factos como razões para nos comportarmos de uma maneira e não de outra. Conseguimos exprimir essas razões e pensar sobre elas. Tomamos, por isso, o facto de uma acção ajudar a satisfazer os nossos desejos, necessidades, etc. - em resumo, o facto de uma acção promover os nossos interesses - como um motivo a favor da sua realização.

A origem do nosso conceito de "dever" pode encontrar-se nestes factos. Se não conseguíssemos ponderar razões a favor e contra certas acções, uma noção como essa para nada nos serviria. Como os animais mais básicos,

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agiriamos por impulso ou hábito ou, nas palavras de Kant, por "inclinação". Mas a ponderação de

razões introduz um factor novo. Damos connosco impelidos a agir de certas formas em resultado da deliberação, em resultado de termos pensado sobre o nosso comportamento e as suas consequências. Usamos a palavra dever para assinalar este novo elemento da situação: devemos fazer aquilo a favor do qual existem as razões mais sólidas.

Uma vez considerada a moralidade como uma questão de agir com base na razão, emerge outro aspecto importante. Ao raciocinar sobre o que fazer, podemos ser consistentes ou inconsistentes. Uma maneira de ser inconsistente é aceitar um facto como razão num momento, enquanto recusamos aceitar um facto semelhante como razão noutro momento, apesar de não haver diferenças entre os dois momentos que justifiquem distingui-los. (No final do capítulo 9 referi este aspecto como a "ideia fundamental de Kant".) Isto acontece quando uma pessoa coloca injustificadamente os interesses da sua própria raça, ou grupo social, acima dos interesses correspondentes de outras raças e grupos sociais. O racismo significa considerar os interesses dos membros de outras raças como menos importantes do que os interesses dos membros da sua própria raça, apesar de não existir qualquer diferença geral entre as raças que justifique isto. Trata-se de uma afronta à moralidade porque é, antes de mais, uma afronta à razão. Podemos fazer reparos semelhantes a outras doutrinas que dividem a humanidade entre os moralmente favorecidos e os desfavorecidos, como o egoísmo, o sexismo e o nacionalismo. A conclusão é que a razão requer imparcialidade: devemos agir de modo a promover os interesses de todos sem distinção.

Se o egoísmo psicológico fosse verdadeiro, isso significaria que a razão exige mais de nós do que podemos dar. Mas o egoísmo psicológico não é verdadeiro; oferece uma descriçãototalmente falsa da natureza humana e da condi-

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Capítulo 14

COMO SERIA UMA TEORIA MORAL SATISFATÓRIA?

cão humana. Evoluímos como criaturas sociais, vivendo em grupos, desejando a companhiauns dos outros, precisando da cooperação mútua e com capacidade para cuidar do bem-estar dos outros. Há, pois, uma agradável "adequação" teórica entre a) o que a razão exige,nomeadamente a imparcialidade; b) os requisitos da vida social, nomeadamente a adesão aum conjunto de regras que, justamente aplicadas, serviriam os interesses de todos; e c) anossa inclinação natural para cuidar dos outros, pelo menos até certo ponto. Estes trêsaspectos funcionam em conjunto para tornar a moral não apenas possível, mas também, numsentido importante, natural para nós.

14.2 Tratar as pessoas como merecem e outros motivos

A ideia de que devemos "promover os interesses de todos sem distinção", é, quando tomada como uma proscrição do fanatismo, muito apelativa; no entanto, pode objectar-se que tal máxima ignora o facto de as pessoas terem méritos diferentes. Devemos, pelo menos durante parte do tempo, tratar os indivíduos como merecem ser tratados, em vez de lidar com eles como se fossem apenas membros da grande turba da humanidade.

A ideia de que as pessoas devem ser tratadas como merecem está relacionada com a ideia de que são agentes racionais com o poder de escolher - se as pessoas não fossem racionais e não tivessem controlo sobre as suas acções, não seriam responsáveis pela sua conduta e não poderiam ser recompensadas com o bem ou o mal por causa da sua conduta. Os seres racionais são, no entanto, responsáveis pelo que escolhem livremente fazer, e os que escolhem comportar-se decentemente para com os outros merecem ser bem tratados, enquanto os que tratam mal os outros merecem ser maltratados.

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Isto parece muito severo enquanto não ponderamos em alguns exemplos. Suponha que Smith tem sido sempre generosa, ajudou-o sempre que pôde, e agora tem problemas e precisa da sua ajuda. Há agora uma razão especial pela qual ela deve ser ajudada, além da obrigação geral que temos de ser prestáveis para com os outros. Ela não é apenas outro elemento da multidão, mas uma pessoa determinada que, pela sua conduta anterior, ganhou o seu respeito e gratidão. Mas pense agora em alguém com a história oposta. Suponha que Jones é seu vizinho, e recusou sempre auxiliá-lo quando precisou. Certo dia, por exemplo, o seu carro não pegava, e Jones não lhe deu boleia para o trabalho - não tinha qualquer desculpa em especial, apenas não se quis incomodar. Imagine que, depois disso, Jones tem problemas com o carro e tem o descaramento de lhe pedir boleia. Talvez o leitor pense que deve, ainda assim, ajudá-lo, apesar de ele não ter sido prestável. (O leitor poderia pensar que isto o ensinaria a ser generoso.) No entanto, se nos concentrarmos no que ele merece, temos de concluir que merece ser deixado por sua conta. É claro que, se acontecer uma situação na qual tenha de escolher entre ajudar Smith ou Jones, tem boas razões para escolher Smith.

Adaptar o nosso tratamento dos indivíduos para o combinar com a forma como escolheram tratar os outros não é apenas uma questão de recompensar os amigos e manter rancores contra os inimigos. É uma questão de tratar as pessoas como agentes responsáveis, que pelas suas próprias escolhas mostram ser merecedores de respostas particulares, e face aos

quais emoções como a gratidão e o ressentimento são adequadas. Há uma diferença importante entre Smith e Jones; porque razão isso não deveria reflectir-se na forma como lhes retribuímos? Como seria se nós não adaptássemos as nossas respostas às pessoas desta maneira?

Antes de mais, estaríamos a negar às pessoas (incluindo a nós mesmos) a capacidade de merecerem ser bem trata-

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das pelos outros. Isto é uma questão importante. Porque vivemos com outras pessoas, como nos desenvencilhamos na nossa vida não depende apenas do que fazemos mas também do que os outros fazem. Para prosperarmos precisamos obter um bom tratamento por parte dos outros. Um sistema de acordos em que seja reconhecido o merecimento proporciona-nos uma forma de fazer isso. Assim, reconhecer os méritos é uma forma de garantir às pessoas o poder para determinar os seus próprios destinos.

Sem isto, o que faremos? Quais são as alternativas? Poderíamos imaginar um sistema no qual a única forma de uma pessoa assegurar um bom tratamento por parte dos outros seria de alguma forma obrigá-los a isso, ou poderíamos imaginar que o bom tratamento é sempre uma forma de caridade. Mas a prática de reconhecer os méritos é diferente. A prática de reconhecimento dos méritos dá às pessoas controlo sobre a forma como vão ser tratadas pelos outros, dizendo-lhes: Se te portares bem, terás direito a ser bem tratado pelos outros. Terás merecido isso. Sem este controlo, as pessoas ficam impotentes. Respeitar o direito de as pessoas escolherem a sua própria conduta e ajustar então o modo como as tratamos de acordo com as suas escolhas é, em última instância, uma questão de "respeito pelas pessoas" num sentido de certa maneira kantiano.

Outros motivos. Há outros aspectos em que a ideia de "promover de forma igual os interesses de todos" não parece conseguir captar a totalidade da vida moral. (Digo "parece" porque quero voltar mais tarde à questão de saber se o fracasso é aparente ou real.) É certo que as pessoas devem por vezes ser motivadas por uma preocupação imparcial com "os interesses de todos sem distinção". Mas este não é o único motivo moralmente digno de louvor:

- Uma mãe ama e cuida dos seus filhos: não está preocupada em "promover os seus interesses"

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simplesmente por serem pessoas que pode ajudar. A sua atitude para com eles é inteiramente diferente da suaatitude face a outras crianças. Embora possa pensar que deve ajudar outras crianças sempre que

pode, esse sentimento vagamente benevolente não é de modo algum comparável ao amor que tem pelos próprios filhos;

- Uma mulher é leal aos seus amigos: uma vez mais, não está preocupada com os interesses deles apenas como parte de uma preocupação benévola relativamente às pessoas em geral. Eles são seus amigos, e a amizade torna-os especiais.

Como salientámos no capítulo 13, só um completo idiota em questões filosóficas proporia a eliminação do amor, da lealdade e coisas semelhantes do nosso entendimento da vida moral. Se tais motivos fossem eliminados, e em vez disso as pessoas se limitassem a calcular o que seria melhor, todos perderíamos muito com isso. E, em qualquer dos casos, quem desejaria viver num mundo sem amor e amizade?

Há, é claro, muitos outros tipos de motivos de valor que entram em jogo à medida que as pessoas vão vivendo as suas vidas:

- Uma compositora está interessada, acima de tudo, em terminar a sua sinfonia. Luta por esse objectivo, apesar de poder fazer "mais bem" dedicando-se a outra coisa;

- Um professor devota grande esforço à preparação das suas aulas, apesar de um bem total maior poder ser alcançado se dirigisse parte da sua energia para outra coisa.

Embora estes não sejam motivos geralmente considerados "morais", são motivos que, do ponto de vista moral, não

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devemos querer eliminar da vida humana. O desejo de criar, o orgulho de fazer bem o seu trabalho e outros motivos semelhantes contribuem quer para a felicidade pessoal (pensemos na alegria de ter criado algo de belo ou a satisfação de ter feito bem um trabalho), quer para o bem-estar geral (pensemos como estaríamos muito pior sem música nem bons professores). Devemos ter tão pouca vontade de eliminá-los como de eliminar o amor e a amizade.

14.3 Utilitarismo de estratégias múltiplas

Com base em algumas observações sobre a natureza humana e a razão, demos uma justificação esquemática do princípio de que "devemos agir de maneira a promover de forma igual os interesses de todos". Mas notámos depois que isto não pode ser tudo o que há a dizer sobre as nossas obrigações morais porque (pelo menos algumas vezes) devemos tratar as pessoas segundo o que merecem individualmente. E sublinhámos ainda que há outros motivos moralmente importantes que

aparentemente nada têm que ver com a promoção imparcial dos interesses.

É, no entanto, possível pensar que estas diversas preocupações se relacionam entre si. A primeira vista parece que tratar as pessoas segundo o que merecem é muito diferente de procurar promover de igual modo os interesses de todos. Mas quando perguntámos o motivo pelo qual o que as pessoas merecem é importante, a resposta acabou por ser que todos estaríamos muito pior se o reconhecimento do que as pessoas merecem não fizesse parte do nosso plano moral. E quando perguntamos por que razão o amor, a amizade, a criatividade artística e o orgulho na realização do nosso trabalho são importantes, a resposta é que as nossas vidas seriam muito mais pobres sem estas coisas. Isto sugere a existência de um padrão único a operar por detrás da avaliação de todas estas coisas diferentes.

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Talvez se dê então o caso de o padrão moral único ser o bem-estar humano (ou, como afirmou Mill, o bem-estar de "toda a criação senciente" - vou voltar a esta complicação daqui a pouco). O que é importante é que as pessoas sejam tão felizes e tenham tão boas condições de vida quanto possível. E este padrão deve ser utilizado para avaliar variadíssimas coisas, incluindo as acções, políticas, costumes sociais, leis, regras, motivos e traços de carácter. Quando reflectimos sobre regras, motivos e coisas do género, referimo-nos ao padrão de bem-estar. Mas isso não significa que devamos ser sempre motivados por esse padrão no decurso habitual das nossas vidas. As nossas vidas correrão melhor se, em vez disso, amarmos os nossos filhos, desfrutarmos da companhia dos nossos amigos, nos orgulharmos do nosso trabalho, mantivermos as nossas promessas, e assim por diante. Uma ética que valorize "os interesses de todos sem distinção" aceitará esta conclusão.

Isto não é uma ideia nova. Henry Sidgwick, o grande teórico utilitarista da época Vitoriana, defendeu a mesma ideia quando escreveu que:

A doutrina de que a Felicidade Universal é o derradeiro padrão não deve ser entendida como se implicasse que a Benevolência Universal é o único motivo correcto, ou é sempre o melhor, para a acção [...] não é necessário que o fim que dá o critério da correcção moral deva sempre ser o para o qual tendemos conscientemente: e se a experiência mostra que a felicidade geral será atingida de forma mais satisfatória se os homens agirem com frequência com base em outros motivos que não a pura filantropia universal, é óbvio que esses motivos serão razoavelmente preferidos nos princípios Utilitaristas.

Este pensamento de Sidgwick tem sido citado em defesa de uma perspectiva chamada "utilitarismo dos motivos", cuja ideia central é que devemos agir com base na combinação de motivos que melhor promova o bem-estar geral.

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No entanto, a perspectiva mais plausível deste género não se centra exclusivamente nos motivos; nem inteiramente em acções e regras, como fizeram outras formas de utilitarismo. A perspectiva mais plausível poderia chama-se utilitarismo de estratégias múltiplas. O fim derradeiro é o bem-estar geral, mas pode-se defender estratégias diferentes como meio para alcançar esse fim. Por vezes visamo-lo directamente, como quando um deputado decreta uma lei para o bem-estar geral, ou um indivíduo calcula que enviar dinheiro para a UNICEF faria mais facilmente o bem do que outra coisa qualquer. Mas por vezes não pensamos no bem-estar geral de todo em todo; em vez disso, limitamo-nos a cuidar dos nossos filhos, a trabalhar nos nossos empregos, a obedecer à lei e a cumprir as nossas promessas.

A acção correcta como a vida de acordo com o melhor plano. Podemos especificar um pouco mais a ideia por detrás do utilitarismo de estratégias múltiplas.

Suponha-se que tínhamos uma lista inteiramente especificada das virtudes, motivos e métodos de tomada de decisão que permitiriam caracterizar uma pessoa cuja vida é simultaneamente satisfatória para si e contribui positivamente para o bem-estar dos outros. E suponha-se ainda que isto é a lista óptima para essa pessoa; não há qualquer outra combinação de virtudes, motivos e métodos de tomada de decisão que cumprisse melhor a função. Esta lista iria incluir pelo menos o seguinte:

- As virtudes necessárias para fazer a nossa própria vida correr bem;

- Os motivos com base nos quais iremos agir;

- Os compromissos e relações pessoais que teremos para com amigos, família e outros;

- Os papéis sociais que teremos de desempenhar, juntamente com as responsabilidades e exigências que os acompanham;

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- Os deveres e preocupações associados aos projectos que levaremos por diante, como ser um músico, um soldado ou um cangalheiro;

- As regras quotidianas que teremos de cumprir a maior parte do tempo sem mesmo pensar; e

- Uma estratégia, ou grupo de estratégias, sobre quando pensar em abrir excepções às regras, e os fundamentos para abrir excepções.

A lista incluiria ainda uma especificação das relações entre os outros itens da lista - o que tem prioridade sobre o quê, como decidir conflitos, e assim por diante. Poderia ser extremamente difícil elaborar tal lista. Num plano prático, poderia mesmo ser impossível. Mas podemos estar bastante seguros de que incluiria um aval à amizade, honestidade e outras virtudes familiares úteis. Dir-nos-ia para cumprir as nossas promessas, mas nem sempre, e para nos refrearmos de magoar as pessoas, mas nem sempre; e assim por diante. E iria provavelmente dizer para deixarmos de viver com luxo enquanto em cada ano milhões de crianças morrem de doenças que poderiam ser prevenidas.

De qualquer maneira, há uma combinação de virtudes, motivos e métodos de tomada de decisão que é melhor para mim, tendo em conta as minhas circunstâncias, personalidade e talentos - "melhor" no sentido em que irá optimizar as possibilidades de eu ter uma vida boa, optimizando ao mesmo tempo as possibilidades de as outras pessoas terem vidas boas. Chame-se a esta combinação o meu melhor plano. A coisa certa para eu fazer é agir de acordo com o meu melhor plano.

O meu melhor plano pode ter muito em comum com o do leitor. Presumivelmente, ambos incluem regras contra a mentira, o roubo e o assassínio, juntamente com acordos sobre quando fazer excepções a essas regras e os fundamentos, legitimando tais excepções. Incluirão ambos virtudes como a paciência, a gentileza e o autodomínio. Podem ambos

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conter instruções para a educação das crianças, inclusivamente sobre as virtudes a desenvolver nelas. E haverá muito mais que o meu plano terá em comum com o seu.

Mas os nossos melhores planos não precisam de ser idênticos. As pessoas têm personalidades e talentos diferentes. Uma pessoa pode realizar-se como padre enquanto outra nunca poderia viver assim. Desse modo, as vidas das pessoas poderiam incluir tipos diferentes de relações pessoais, e pessoas diferentes poderiam precisar de cultivar virtudes diferentes. As pessoas vivem além disso em circunstâncias diferentes e têm acesso a recursos diversos - algumas são ricas; outras são pobres; algumas são privilegiadas; outras são oprimidas e perseguidas. Por isso, a estratégia óptima para viver poderia ser diferente em cada caso.

Em cada caso, no entanto, a identificação de um plano como o melhor será uma questão de avaliar até que ponto promove de igual modo os interesses de toda a gente. Assim, a teoria geral é utilitarista, apesar de poder frequentemente legitimar que as pessoas ajam com base em motivos que não parecem de modo algum utilitaristas.

14.4 A comunidade moral

Enquanto agentes morais, devemos preocupar-nos com todos aqueles cujo bem-estar possa ser afectado pelo que fazemos. Isto pode parecer uma trivialidade piedosa, mas pode revelar-se na realidade uma doutrina muito dura. No ano que medeia entre o momento em que escrevo e a publicação do livro, cerca de um milhão de crianças morrerá de sarampo. As pessoas dos países abastados poderiam facilmente impedir isto, mas não o farão. As pessoas sentiriam sem dúvida um maior sentido de obrigação caso as crianças a morrer vivessem nos seus próprios bairros e cidades, em vez de serem estrangeiros em países distantes.

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Mas nós estamos a considerar teoricamente que a localização das crianças não importa: todas as pessoas estão incluídas na comunidade de consideração moral. Se os interesses de todas as crianças, onde quer que vivam, fossem tomados a sério, isso faria uma enorme diferença no nosso comportamento.

Se a comunidade moral não se limita a pessoas num local, também não se limita a pessoas numa dada época. Se as pessoas vão ser afectadas pelas nossas acções agora ou num futuro distante, isso não faz diferença. A nossa obrigação é avaliar todos os interesses de forma igual. Uma consequência disto diz respeito às armas de destruição maciça. Com o desenvolvimento de armas nucleares, temos agora a capacidade de alterar o curso da história de uma forma especialmente dramática. Se o bem-estar das gerações vindouras for devidamente tido em consideração, é difícil imaginar quaisquer circunstâncias nas quais o uso em larga escala destas armas se justifique. O ambiente é outra questão na qual os interesses das gerações vindouras têm lugar de destaque: não temos de pensar que o ambiente é importante "em si" para ver que a sua destruição é um horror moral; basta ter em conta o que será das pessoas se as florestas tropicais, as algas marinhas e a camada de ozono forem destruídas.

Há ainda outra via pela qual a nossa concepção de comunidade moral tem de ser expandid

a. Como sublinhámos, os seres humanos são apenas uma das espécies que habita este planeta. Como os seres humanos, os outros animais têm igualmente interesses que são afectados pelo que fazemos. Quando os matamos ou torturamos, eles sofrem, tal como sofrem os seres humanos quando são tratados dessa forma. Bentham e Mill tinham razão em insistir que os interesses dos animais não-humanos têm de contar nas nossas preocupações morais. Como Bentham sublinhou, excluir certas criaturas das considerações morais por causa da sua espécie não tem mais justificação do que excluí-las

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por causa da sua raça, nacionalidade ou sexo. A imparcialidade exige a expansão da comunidade moral não apenas ao longo do espaço e do tempo mas também para lá das fronteiras das espécies.

14.5 Justiça e equidade

O utilitarismo clássico foi criticado por não dar conta dos valores da justiça e equidade. Poderão as complexidades que trouxemos à liça ajudar a resolver este problema?

Uma das críticas tinha que ver com a punição. Podemos imaginar casos em que o bem-estar geral é promovido pelo encarceramento de um inocente. Isto é uma injustiça flagrante, mas, tomando o princípio de utilidade como padrão último, é difícil explicar por que razão é errado. De uma maneira mais geral, como Kant fez notar, a "justificação" utilitarista básica da punição é tal que trata os indivíduos como meros "meios".

Se uma política de tratamento das pessoas como elas merecem se justificar pelos padrões gerais do utilitarismo, isso pode levar a uma perspectiva da punição algo diferente da que os utilitaristas habitualmente defenderam. (De facto, a perspectiva da punição daí resultante será próxima da de Kant.) Ao punir alguém, estamos a tratá-lo de maneira diferente dos outros - a punição implica uma falha da imparcialidade. Mas isto justifica-se, na nossa perspectiva, pelas acções que a pessoa em causa realizou. E uma resposta ao que ela fez. E por isso que não é correcto prender uma pessoa inocente; a pessoa inocente nada fez para merecer ser alvo de um tal tratamento.

A teoria da punição é, no entanto, apenas uma parte do tema da justiça. Levantam-se questões de justiça sempre que uma pessoa é tratada de forma diferente de outra. Suponhamos que um empregador tem de escolher qual de dois trabalhadores vai promover, pois só pode promover

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um deles. A primeira candidata trabalhou arduamente para a empresa, fazendo trabalhoextraordinário quando era necessário, desistindo das suas férias para ajudar, e assim pordiante. O segundo candidato, por outro lado, fez sempre apenas o mínimo que lhe foipedido. (E vamos presumir que não tem uma desculpa; simplesmente escolheu não trabalhararduamente.) Naturalmente, os dois trabalhadores serão tratados de maneira muito diferente:um será promovido; o outro não. Mas isto está correcto, segundo a nossa teoria, porque oprimeiro empregado merece ser posto à frente do outro, tendo em conta as prestaçõesanteriores de cada um. A empregada mereceu a promoção; o empregado não.

No que concerne à equidade, as acções voluntárias de uma pessoa podem justificarafastamentos da política básica de "tratamento igual", mas nada mais pode fazê-lo. Istocontraria uma perspectiva comum sobre este tema. As pessoas pensam com frequência que écorrecto os indivíduos serem premiados pela beleza física, a inteligência superior ou outrosdotes naturais. (Na prática, as pessoas conseguem com frequência melhores empregos e umamais larga fatia dos bens da vida apenas porque nasceram com melhores dons naturais.) Masquando reflectimos, isto não parece correcto. As pessoas não mereceram os seus donsnaturais; possuem-nos apenas em resultado do que John Rawls chamou "a lotaria natural".Suponhamos que a empregada do nosso exemplo era ultrapassada na promoção, apesar doseu esforço, porque o seu colega tinha um talento natural mais útil para exercer o novocargo. Mesmo que o empregador pudesse justificar esta decisão evocando as necessidadesda empresa, a empregada sentiria justificadamente que algo injusto tinha acontecido. Elatrabalhou mais, mas é ele que agora obtém a promoção e os privilégios que a acompanham,por causa de uma coisa que nada fez para merecer. Isso não é justo. Uma sociedade justa,segundo a nossa concepção, seria aquela na qual as pessoas

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pudessem progredir nas suas carreiras por meio de trabalho árduo (tendo todasoportunidade de trabalhar), e não sendo promovidas apenas porque nasceram com sorte.

14.6 Conclusão

Como seria uma teoria moral satisfatória? Apresentei os traços gerais da possibilidade queme parece mais plausível. No entanto, é importante recordar que inúmeros pensadores demérito tentaram criar uma teoria satisfatória, e a história considerou que apenas foram

parcialmente bem sucedidos. Isto sugere que é sensato não ter pretensões demasiadograndiosas para a nossa própria perspectiva, qualquer que ela seja. Mas há uma razão paraestar optimista. Como Derek Parfit observou, a Terra continuará habitável durante mais milmilhões de anos, e a civilização tem agora apenas alguns milhares de anos. Se não nosdestruirmos, a filosofia moral, a par de outros estudos humanos, pode ainda ter um longocaminho pela frente.

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