16 - para uma nova comunicação dos sentidos

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AUGUSTO DEODATO GUERREIRO

PARA UMA NOVA COMUNICAO DOS SENTIDOS

Contributos da Tecnologizao da Tiflografia para a

Ampliao dos Processos Comunicacionais

AGRADECIMENTOS

Comeo por agradecer, penhoradamente, numreconhecimento especial, ao Professor Doutor Jos A.Bragana de Miranda a pronta disponibilidade demonstradapara a orientao cientfica desta investigao, aexigncia de mtodo e de rigor e os igualmente enormes (eto invulgares) sentimentos demonstrativos de umahumanidade envolvente, sensibilidade, acessibilidade,simpatia e generosidade intelectual no nascimento, nopercurso e na finalizao deste projecto. De resto, estou convicto de que esta investigaonunca teria surgido no meu pensamento - afirmo-o semqualquer rebuo - se eu no tivesse passado pelo Mestradoem Cincias da Comunicao, na Faculdade de CinciasSociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,deslumbradamente assistindo s aulas (conferindo eabsorvendo pontos de vista) e lendo as obras de vriosProfessores desta Faculdade, entre os quais a minhaconscincia me obriga a citar de novo o Professor Jos A.Bragana de Miranda e, por ordem alfabtica, os ProfessoresDoutores Adriano Duarte Rodrigues, Antnio Fidalgo (daUniversidade da Beira Interior), Maria Augusta Babo e TitoCardoso e Cunha. Tambm aqui expresso, vivamente, o meu profundoreconhecimento ao Gabinete de Referncia Cultural (PloInteractivo de Recursos Especiais da Cmara Municipal deLisboa, pelo valiosssimo acervo bibliogrfico de que mesocorri e eventos tcnico-cientficos e culturais que tivea oportunidade de idealizar e concretizar), rea deLeitura Especial da Biblioteca Nacional (na pessoa do seuCoordenador Dr. Filipe Pereira Oliva), pela consistentecolaborao, ao sugerir-me e facultar-me o acesso abibliografia especfica e imprescindvel concretizaodeste estudo. Da mesma forma, registo o meu reconhecimento, pelavasta bibliografia posta minha disposio e/ou pelassugestes bibliogrficas que amavelmente me foram feitas, Biblioteca do Secretariado Nacional para a Reabilitao eIntegrao das Pessoas com Deficincia, AssociationValentin Hay em Paris, Biblioteca do Complexo de EnsinoSuperior Jean Piaget de Almada, Diviso de Bibliotecas eDocumentao da Cmara Municipal de Lisboa, ao Servio deReferncia da Biblioteca Nacional, Biblioteca Sonora daBiblioteca Pblica Municipal do Porto (na pessoa do seuCoordenador Dr. Rui Silva), ao Centro Prof. Albuquerque eCastro - Edies Braille (Dr. Fernando da Silva, Dr. JosAntnio Baptista, Rita Ferreira Borges e AurelianoMoreira), ao Centro de Produo de Material do CentroRegional de Segurana Social de Lisboa e Vale do Tejo (napessoa da sua Coordenadora Dr Helena Cabrita), ao Centrode Recursos do Departamento de Educao Bsica doMinistrio da Educao, ao Royal National Institute for theBlind em Londres, Biblioteca da Universidade do Minho, Biblioteca Joo Paulo II da Universidade CatlicaPortuguesa, Biblioteca da Faculdade de Cincias Sociais eHumanas da Universidade Nova de Lisboa e Biblioteca doDepartamento de Cincias da Comunicao da mesma Faculdade. Tambm quero deixar aqui expresso o mais vivoreconhecimento pela prestimosa e sincera colaborao (napesquisa bibliogrfica, na leitura, na reprografia e noprocessamento informtico de documentos) de grandes amigos(cuja inexcedibilidade no plano da amizade e dasolidariedade nunca poderei esquecer), designadamente osAdolfo de Vasconcelos, Alice Gomes, Conceio Santos,Custdia dos Remdios, Diamantino Santo, Helena SilvaPereira, Joo Vieira, Jos Branco Rodrigues (filho doemrito Tifllogo e Professor Jos Cndido BrancoRodrigues), Jos Pinto, Lus Cerdeira, Lus Nabais, MatildeSoares, Rita Gonalves e Teresa Bispo, sem demrito paraaqueles que, de forma directa ou indirecta, tambmcontriburam para a realizao desta investigao. Infelizmente, no cabe aqui referir as entidades quetenham contribudo com os necessrios recursos materiais efinanceiros por mim requeridos para a elaborao desteestudo, no obstante a inequvoca importncia cientfica doprojecto e as bvias carncias materiais sentidas e emdevido tempo mencionadas. Cabe aqui referir - com mgoa odigo - que tanto a Fundao Calouste Gulbenkian como aPraxis 21 no corresponderam s minhas fundadas esperanasna concesso de bolsas para o efeito. A aquisio deequipamento especfico, nomeadamente informtico,reprografia de informao, consultas bibliogrficas einvestigao on line, e as deslocaes a bibliotecas e acentros de investigao especficos, inclusive noestrangeiro, concretizaram-se a expensas minhas. Finalmente, no sei... por que misteriosa interveno,consegui reunir inimaginveis foras de natureza fsica eintelectual, compatibilizando-as com os mltiploscompromissos e preocupaes de ordem pessoal eprofissional, com vista materializao desta proposta dealargamento do paradigma comunicacional. Essas foras - este o meu ltimo agradecimento, especialmente profundo -devo-as minha muito querida mulher pelas inmeras horaspor ela perdidas em investigao e correces ao texto etambm s horas sem conta de que a privei de mim, o mesmose passando com os meus dois filhos, razo por que dedicoeste livro aos trs amados entes que so a justificao daminha vida, sem cuja compreenso, coragem, solidariedade eamor no me seria possvel concretizar a tarefa que acabeipor levar a cabo.

PREFCIO

De uma Nova Comunicao dos Sentidos

Pede-me Augusto Deodato Guerreiro umas palavras prefaciais aolivro que, agora, o leitor tem entre mos. com alegria que o fao, por admirar o autor, ao qual me ligamlaos de amizade que a convivncia de vrios anos fortaleceu, mastambm porque considero que estamos perante uma obra original enecessria; original pela temtica e os modos de a tratar, resistindobem comparao com o que se faz por esse mundo fora no domnio datiflografia e das linguagens especiais para pessoas com deficincia,nomeadamente a nvel visual; obra necessria, dizemos, pelosresultados a que chegou e pelas propostas que traz a pblico,consubstanciando anos de investigao sobre os contributos das novastecnologias da informao para a deficincia sensorial. Este livro deve muito ao feliz encadeamento de um conjunto decircunstncias, a saber: um autor particularmente apetrechado aonvel do conhecimento prtico e terico da tiflografia, nomeadamenteo Braille, de cuja histria um excelente especialista. A isto tudoacresce ainda o recurso comunicao, que mobiliza para apreender osmodos como a experincia comum se constitui, mas tambm os modos comose excludo ou se integrado na comunidade do humano. Finalmente,a capacidade para investigar o contributo das tecnologias dainformao para a tiflografia e as linguagens especiais. Por motivosbiogrficos, Deodato Guerreiro um utilizador destas tecnologias eum dinamizador da sua aplicao e isso reflecte-se nitidamente emtodo o projecto que anima esta obra. As palavras que se seguem visam explicitar, talvez sumariamente,algumas das linhas orientadoras do livro. Tendo na cegueira o seuimpulso inicial, o livro acaba por versar, de modo mais abrangente,sobre toda a sensorialidade e a maneira como os interfacestecnolgicos nela se inscrevem. Comecemos por referir, em primeiro lugar, que este trabalho seinscreve na necessidade, que se tem vindo a acentuar, dada adominncia das actuais tecnologias da imagem, de reavaliar odispositivo da visibilidade ocidental. Trata-se de um domnio de estudos que tem vindo a incrementar-se, nomeadamente nas reas de lngua inglesa. Basta mencionar, nestecontexto, as conhecidas obras de Martin Jay, de Jonathan Crary, deMarie-Jos Mondzain ou de Jean Baudrillard, entre muitos outros.Deveria ser consensual a tese de que as mquinas da imagem, como afotografia, o cinema, o vdeo e a televiso, no so merosinstrumentos, mas o efeito de uma dispositivo ptico que, tendoorigem nos princpios do ocidente, culminam na nossa modernidade, commaioria de razo quando convergem digitalmente. difcil dizer, mesmo quando interrogados neste quadro maisalto, se a tiflografia, e o instrumentrio que originou, tende ainstabilizar esse dispositivo, caracterizado pela centralidade daviso, ou se, ao invs, so um prolongamento do referido dispositivo.Parece evidente, contudo, que as linguagens especiais, como oBraille, no deixam intocado o referido dispositivo. Embora aspreocupaes do autor sejam basicamente a de suplementar adeficincia sensorial atravs do uso das novas tecnologias, a questoest bem presente em todo o trabalho. O principal contributo de Deodato Guerreiro para o estudo destaquesto est no seu questionamento daquilo que denominamos por menude sentidos ocidental, que se estrutura de acordo com uma hierarquiasubtil e dissimulada: a da centralidade da viso. Dessa posiopreponderante dependem todos os outros sentidos, mormente, os daaudio ou do tacto. Aparentando sustentar-se sobre a percepobiolgica e psicofsica, esse menu provocou uma hipertrofia daviso e das mquinas que lhe esto associadas, mas tambm adominncia da teoria, cuja etimologia remete para o olhar e over. Michel Serres mostrou as consequncias de tal centralidade emLe Parasite ou em Les Cinq Sens, pretendendo reequilibrar de outromodo o referido menu. Alis, bem conhecido que boa parte dasanlises de Michel Foucault sobre a vigilncia assentam na crticaao panoptismo ocidental. Ora, que o panptico, seno a absolutapreponderncia da viso, mesmo onde ela fica despercebida? A colocao da tiflografia neste quadro no deixa de provocar umdesequilbrio de todo este esquema sensorial, que pode e deve serquestionado no momento em que as tecnologias da informao esto aabal-lo, e a retrabalh-lo, profundamente. Por exemplo, oespecialista em som virtual, Christopher Currell, em trabalhosvoltados para a simulao do sentido auditivo mostrou que era precisodecomp-lo em mais de 40 elementos. Como se a simples audioocultasse dezenas de outros sentidos, ligados espacialidade, distncia, s fontes, aos timbres, etc. No fundo a tecnologiacontempornea est a revelar o inconsciente percepcional que ficaraoculto pelo modo como historicamente os sentidos foram construdos.De facto essa construo, apoiando-se na fisicalidade do corpo, acima de tudo simblica. Basta lembrar que enquanto para ns existepraticamente uma palavra para referir a cor Branco, entre osesquims existem algumas dezenas. O nosso branco no v, nem podever e, por isso mesmo, oculta outros tipos de brancos. Estefenmeno tem um alcance muito lato. O desenvolvimento do projecto de Deodato Guerreiro passa, emsegundo lugar, pela explcita inteno de operar um alargamento doparadigma comunicacional. Isso no se deve a inquietaes tericas,mas a imperativos ticos. A experincia vivida do autor e a especificidade do tema foramdecisivas em tal orientao. De facto, a comunicao s tem a ganharcom a incluso da problemtica da cegueira, mas tambm de outrasperturbaes sensoriais, como a surdez ou a mudez. A cegueiradesempenha um papel peculiar quando confrontada com o dispositivoptico caracterstico do ocidente, cujos limites revela. No ser poracaso que a questo da cegueira metfora foi to importante nosfilsofos modernos, como Diderot, Condillac, Leibniz, etc. Nos nossosdias Paul de Man, no seu livro Blindness and Insight, extraiu daconsequncias fundamentais para a crtica da modernidade iluministae maneira como se constitui em toda a nossa cultura uma estranhaeconomia do visvel e do invisvel, que est longe de ter sidoverdadeiramente apreendida nos seus efeitos profundos; por outrolado, as linguagens especiais ou artificiais que se desenvolveramna modernidade e, com maior intensidade no sculo XIX, esto emfase de convergncia com a linguagem digital dos computadores. Aimensa plasticidade do digital permite traduzir os diversossentidos e os diversos media, abalando as distines entre oral eescrito, entre imagem e som, entre audio e tacto. A alterao dasrelaes entre visvel e invisvel e a capacidade de integrar osdiversos sentidos, correspondem a algo de novo. Da que seja bem-vinda a tese de que a excessiva centrao sobrea viso responsvel por um desequilbrio do paradigmacomunicacional, exigindo um alargamento. O comunicacional fundamenta-se numa certa viso da intersubjectividade e numa dominncia dologos; os seus efeitos perversos manifestam-se na srie de oposiesque se desdobra, por exemplo, entre voz e escrita, entrepresena e ausncia, entre informao e comunicao, etc..Da a crtica feroz escrita, nomeadamente a tipogrfica, com que seinaugura a modernidade. tpica neste contexto a posio de McLuhanno seu importante livro sobre a Galxia Gutemberg, que recusa otipogrfico em nome de uma presena mais plena e uma comunidade semresto, baseada na oralidade e no tctil. A dificuldade de McLuhan em aceitar a tipografia deve-se tentativa de inverter o menu de sentidos ocidental, num momento emque este comea a entrar em crise. Que a tipografia seno ainscrio do ptico no seio da prpria linguagem? Se acrescentarmosa isso a contempornea preponderncia das imagens , e a suaarticulao com o texto, como mostrou Johanna Drucker, somos foradosa reconhecer uma evidentssima crise no modelo dominante dacomunicao, logo nos seus incios modernos. A proposta do autor passa pela incluso na comunicao dohptico e, em geral, dos fenmenos ligados ao tacto e quinestesia. H alguma vantagem em tal incluso, que no visadesierarquizar a experincia da viso, nem de lhe contrapor uma outramais inefvel da voz ou do tacto, mas de alargar ocomunicacional, enquanto forma de ampliar a experincia possvel.Trata-se, assim, de ampliar, de alargar e estender a experincia,contra a estrutura que a limita. O que implica encontrar novascorrespondncias entre a experincia dos orto-visuais e a experinciade todos os outros. A falta de correspondncia entre todas asexperincias possveis conduziu a um desprezo profundo pelo corpo;como refere Deodato Guerreiro, que apela a um universomultifacetado, complexo e pluridimensional da experincia. De maneira estimulante novos problemas surgem em catadupa.Estaremos perante um simples extensionamento? Est em causa apenasum suplemento de viso, uma espcie de viso protsica,prolongada por novos instrumentos e interfaces de proveninciatecnolgica? O risco seria o de repetir o mesmo gesto que se critica,fazer com que o tctil e as sensaes hpticas fiquem, agora,dependentes da viso tecnologicamente sustentada. O inaceitvelseria fazer desaparecer uma forma de experincia, que alguns vivem emdesespero, certo, por um iluminismo exacerbado pelos computadores. A ltima questo que queremos abordar tem a ver com astecnologias da informao, cuja anlise ocupa boa parte do livro. Extremamente bem informada sobre a aplicao das tecnologiasactuais tiflologia, tiflografia e s linguagens artificiais, olivro de Deodato Guerreiro insere esta problemtica numa panormicahistrica, minuciosa e pormenorizada, que se l com inegvelinteresse. verdade que o Ocidente procurou desde sempre inventarlinguagens artificiais, e todas o so, pelo simples facto de seremescrita. Alis, Derrida mostrou na sua Grammatologie que no oral jest implcita a escrita. Todavia, as linguagens artificiais como oBraille vieram alterar profundamente, e quase despercebidamente, asbases da cultura ocidental, criando um primeiro espao de comunicaosensorial, cujos efeitos esto a manifestar-se nos nossos dias. Deacordo com o autor, o Braille foi o meio de comunicao vital eprincipal propulsor da sociabilidade, da comunicabilidade, dainteraco e, consequente integrao scio-intelectual dos cidadoscom deficincia. Ao mesmo tempo, o Braille implica uma primeiratraduo do ptico em hptico, que ocorre por meio da escrita, queconstitui uma primeira tecnologia incorporal e bem fundamental.Tocar nesta estrutura acarreta a crise de toda a metafsica ocidentalque, desde o Fedro de Plato, se baseia na procura da autenticidade,contra a escrita, e prxima da voz, o desejo da interioridade, dontimo. O digital est a alterar profundamente toda esta estrutura. No se trata, portanto, de acrescentar o tacto ou a audio,pois as coisas so mais complexas. A tecnologia actual tende a fazercomunicar todos os sentidos, atravs de prteses e interfacesespecficos para cada um deles, articulando-os pela linguagemdigital, que assim aparece como um tradutor generalizado. Em toda a obra pode notar-se uma ntida inclinao para oBraille na sua verso digital, o que se explica pelo perfeito domniodessa linguagem por parte do autor. As anlises de Deodato Guerreirosobre a tecnologizao da tiflografia so assim de um interessefundamental, quer terico, quer prtico. Descreve com vigor apassagem das linguagens artificiais primitivas para o Braille e destepara uma tiflografia generalizada, que j no se centra apenas natranscrio tctil do visual, que o Braille histrico sempre foi. Apassagem do Braille em papel para o Braille digital, electrnico,segue uma tendncia conhecida, da progressiva passagem do analgicopara o digital. Tudo indica, portanto, que o Braille perde muito da suaomnipresena diante do desenvolvimento de tecnologias mais subtis,como as da digitalizao da voz, da imagem e da escrita, dotadas decada vez maior reversibilidade, como algumas das tecnologiasanalisadas comprovam. Caso, por exemplo, da transcrio directa doescrito em voz sinttica e da voz natural em escrita digital. Tal como no paradigma comunicacional, mais do que umalargamento, estava em causa uma certa crise, criadora de novaspossibilidades, tambm no caso da tiflografia generalizada est-se air bem mais longe que a mera aplicao da informtica ao Braille. No fundo a prpria essncia da tecnologia que est aqui emcausa. O que este estudo comprova que a tcnica actual no pode servista como simples instrumento, mas como algo que afecta atotalidade da experincia humana. Trata-se de partir da experincia,e isso obriga a reconhecer, como faz o autor seguindo McLuhan, queos meios de comunicao constituem autnticas prteses e extensesde infinito alcance para o homem. Em suma, as tecnologias, mais doque instrumentos, so configuradores da experincia, podendo reforaro humano, mas podendo tambm p-lo em causa. Deste ponto de vistaelas tm de ser integradas, num complexo que articule as tecnologiase os seus interfaces, como sustenta o autor, com os sentidos e omundo. No se trata de uma questo tcnica, nem de um suplemento dossentidos, mas de usar as possibilidades tcnicas para criar novasformas de experincia, novas formas de vida. Estamos diante de uma obra aliciante, que coloca questes novasem domnios quase arqueolgicos, com um entusiasmo e uma alegria, poronde perpassa vida. Lisboa, 26 de Setembro de 1999 Jos A. Bragana de Miranda

INTRODUO

Tal como h cerca de cinco milhares de anos o homem inventou umanotao grfica da linguagem oral (embora o simples facto de seregistarem mitograficamente acontecimentos e mensagens remonte adatas ainda mais longnquas, desde a arte rupestre da poca glaciar)1para perpetuar os seus feitos, as suas descobertas e invenes, o seupensamento, a sua histria, generalizando-se progressivamente asdiversas formas de notao ou processos comunicacionais de carizartificial (que vieram a designar-se por escrita) a todos os povos domundo e, com as adequadas adaptaes, em especial aos cidados comdiferena, tambm os indivduos cegos sentiram a mesma necessidade decriarem, no mbito da logografia, um sistema de escrita e de leituraque lhes permitisse comunicarem uns com os outros e com as pessoasnormovisuais, bem como acederem informao e cultura, tantoquanto possvel em igualdade de circunstncias e de oportunidades comas pessoas que vem.2 Ao longo da Histria, muitos foram os processos artificiais dalinguagem de que h notcia terem sido colocados ao dispor dos cegospelos normovisuais (e mesmo pelos prprios cegos), uns maisengenhosos,3-4 exequveis e exercitados do que outros, mas, emobedincia a imperativos de natureza essencialmente abrangencial,ergonmica e neurofisiolgica, muito especficos do sentido do tacto,no passaram de tentativas com resultados efmeros e, nalguns casos,traduzidos at em frustraes extremas, por alimentarem de boa-f, certo - falsas esperanas para as pessoas cegas.(Augusto DeodatoGuerreiro, 1998). Noutros casos, pelo contrrio e por incrvel que parea, taisdificuldades impulsionaram o desenvolvimento da comunicabilidadeoral, a fluncia vocabular, a retrica e a capacidade argumentativa(consideremos o caso do erudito cego portugus Jos de Sousa(1680-1744),5 para alm de Baltazar Dias(sculo XVI)6 e Antnio Felicianode Castilho(1800-1875),7 entre outros, que no liam nem escreviampropriamente), a imediaticidade e a sagacidade intelectuais. O saber escrever bem (a arte de bem escrever) nem sempresignifica bem falar (a arte de bem falar em pblico). Quantoscientistas e escritores de renome sistematizam e escrevem genialmentegrandes tratados e que, oralmente, so autnticas nulidades? Quantos- com a sua incapacidade expositiva, umas vezes exacerbada pelaprolixidade e outras vezes mitigada pela ausncia de especificaesde sentido indispensveis clarificao de determinada matria forado senso comum - chegam a confundir o raciocnio e, por consequncia,at a desvirtuar a inteligibilidade e a sedimentao de conhecimentosdo seu auditrio? Porm, mesmo escrevendo-se bem e falando-se compreciso (evitando-se beliscar minimamente a realidade ou a verdadedos factos), a escrita funcionar sempre como um veculo inalienvelde transmisso de factos e do saber,8-9-10-11 com longevidadeimorredoura (se prolongvel tecnicamente) e inaltervel no contedo eforma da mensagem que transporta, enquanto a oralidade (o adgiopopular palavras leva-as o vento verdadeiro) teve sempre umasobrevivncia discursiva autntica curta, fatalmente permevel natural efemeridade e tergiversidade atravs dos tempos, no obstantepor vezes mais persuasiva em determinadas circunstncias. J a fervilhante poltica da clssica Atenas exigia aos cidadoseloquncia para convencerem os seus pares nas assembleias, disciplinato til, mas que tambm suscitou inmeras e violentas paixes (a retrica associada oratria), passando a retrica, ao longo dossculos por conturbadas vicissitudes e chegando a ser banida dosprogramas escolares, mas vindo a surgir em Frana, Itlia e nosEstados Unidos, a partir de 1950, vrios estudos visando a suarenovao, sustentando a pedagogia americana que ela o estudo dospreceitos lingusticos, gramaticais ou estilsticos, destinados noapenas a regulamentar a expresso falada, mas a obter, atravs dela,uma forma agradvel e dotada de poder convincente, capaz de penetrare mover os grupos sociais, isolados ou em conjunto, segundo osmodernos conceitos de massa. Caminha-se, assim, para umaidentificao com a teoria da comunicao oral, escrita e figurativa,alargando-se esta disciplina a uma interpretao da teoria dasfiguras e fundamento do estilo, valorizada pelo estrutural literrioe nova crtica. Nesta trajectria redimensionada, acessvel e muitotil s pessoas cegas, tambm elas tm vindo a conquistar nasociedade, com o exerccio da sua inteligente capacidadeargumentativa e escorreita sagacidade intelectual, um lugar deprogressiva e dignificante cidadania, conforme o que podemos observarao longo da Histria da Tiflologia.12 A palavra oral foi (e estamos cientes de que o ser sempre) oprincipal veculo de comunicao entre as pessoas ouvintes, cegas ounormovisuais, beneficiando ao longo da Histria (umas e outras) dopoder da oralidade, do uso e aproveitamento comunicacionais que delafizerem, da capacidade argumentativa para ganhar ou para perder. evidente que, se faltassem as palavras, cada gerao receberia daprecedente coisas, mas no ideias e encontrar-se-ia fatalmente nacondio penosa de ter sempre que comear tudo do princpio. Oconhecido provrbio que sustenta a superioridade do silncio emrelao palavra o silncio doiro tem na nossa perspectiva umvalor muito relativo e limitado a situaes contingentes de ordemfamiliar ou monstica que, nalguns casos, ainda hoje se respira.Apenas com o silncio, a humanidade teria chegado to s (quemsabe?...) s armas de pedra. Com a palavra, a humanidade atingiu umdesenvolvimento imparvel em todos os domnios do saber e doprogresso. No novidade para ningum que as palavras colocam aonosso alcance uma fcil estratgia de classificao da realidade epermitem domin-la qualitativamente no plano cognoscitivo, tal qualos smbolos numricos possibilitam o seu domnio em termosquantitativos. Daqui a importncia da palavra no processo complexo dasocializao e desenvolvimento da humanidade, desde o bero. Nasprimeiras idades, o processo de aquisio da palavra decorre, comosabemos, de factores biolgicos, ambientes lingusticos estimulantese com respeito pelas diferenas individuais. Para muitos autores, osambientes lingusticos tm influncia muito particular edeterminante, sendo importante neste aspecto essencial uma intensa epermanente relao verbal da famlia com as crianas, na respectivadisposio viva e diversificada de palavras e frases. Durante o seudesenvolvimento, a criana aprende a observar e a actuar de acordocom os membros da sua comunidade lingustica envolvente. Pelapalavra, a criana organiza o caos (visual, audvel, tctilo-quinestsico) sua volta, descobre a surpresa das coisas que arodeiam, constri (num processo evolutivo) a sua cosmoviso deacordo com as modalidades sensoriais que possuir (e que for capaz de,articuladamente, operacionalizar), desenvolvendo as suas competnciasde integrao pessoal e comunitria. Neste universo de grandes afirmaes, as questescomunicacionais ligadas s pessoas com certas deficincias surgem, em determinados casos, problemticas por sua prpria natureza. Estaspessoas, partida, oferecem srios obstculos e profundasdesvantagens para que o percurso do seu desenvolvimento lingusticose processe minimamente equilibrado e coerente. Por fora dos resultados experienciais e culturais, bem como dasconquistas no mbito da informtica e das novas tecnologias dosltimos tempos, quanto importncia fundamental da comunicao nodesenvolvimento pessoal e social, os tcnicos interventores nosdomnios da deficincia e da reabilitao s muito recentementedespertaram para esta vertente principal e to indispensvel na suainterveno e imprescindvel para a prossecuo dos objectivos daequiparao de oportunidades em toda a sociedade humana. Quantorepresenta e quo gratificante para os cidados portadores dedeficincia sentirem que so entendidos e aceites sempre que tentamcomunicar! Quanto mais extenso e aprofundado o acto comunicacionaldestas pessoas, mais extensa e aprofundada se enraza a suaintegrao em todos os domnios da vida social. Quanto aos graves problemas da comunicao no mbito dadeficincia auditiva, h que considerar a importncia da lnguagestual, como lngua materna das pessoas surdas, to fundamental parao desenvolvimento psicolgico e social e para a resoluo dos seusproblemas de comunicao, como fundamental a lngua portuguesa paratodos ns, ouvintes portugueses. As estratgias oralistas privilegiama leitura labial e permitem sem obstculos o ensino-aprendizagem dalngua gestual portuguesa. Muito recentemente (fruto da cooperaoentre o Secretariado Nacional de Reabilitao e a ex-Direco-Geraldo Ensino Bsico e Secundrio) foi construdo o Gesturio, oprimeiro dicionrio de lngua gestual portugus.13 Nesta sequncia,tambm se publicou, em 1994, uma excelente abordagem,14 a primeiradescrio gramatical da lngua gestual portuguesa, como uma indita evaliosa contribuio para a comunidade de surdos de Portugal e para aprpria comunidade cientfica, que certamente prosseguir a suaintensa investigao neste domnio comunicacional. O principal objectivo expresso no livro em referncia demonstrar que a lngua gestual tem o mesmo estatuto lingustico quea lngua verbal e que a lngua gestual portuguesa tem o estatutolingustico das outras lnguas gestuais j estudadas. Com esteestudo, pretende-se simultaneamente equacionar um levantamento dequestes lingusticas, constituindo um ponto de partida paradiscusses de fenmenos gramaticais. Na realidade, o sistema de educao de surdos em Portugal -sustentam os autores do livro -, oficialmente e na prtica,predominantemente oral, urgindo que se faam estudos srios sobre osseus resultados e se apresentem alternativas credveis e bemestruturadas para dar resposta s lacunas encontradas. Importa agora avanar e investir no desenvolvimento degesturios especficos, designadamente para a Filosofia, para asMatemticas, para a Fsica... Tambm constitui grande importncia ofacto de ter sido recentemente inaugurado em Portugal o telefone paraas pessoas surdas, como extraordinrio meio de comunicao, vencendotodas as dificuldades geogrficas para os seus encontros.15 No cruzamento dos problemas da cegueira e da surdez situam-se osproblemas das pessoas surdo-cegas, cuja possibilidade de comunicaose localiza preferencialmente nas palmas das mos, atravs daaplicao da escrita dactilolgica, estando muitos tcnicosinteressados na explorao da mancha grfica da palma da mo, como grafia extraordinariamente importante de comunicao com as pessoassurdo-cegas.16-17 No que respeita ao universo da deficincia mental (mdia,ligeira, profunda e multideficincia) tambm se desenvolvem esforosna comunicao por imagens, dependendo o nmero e o tipo de imagens autilizar das capacidades pessoais de as identificar e as relacionarcom as suas necessidades de vida diria, ou outras, sem o que noter uma funo de comunicao. Tambm aqui se impe a criao de umdicionrio de sinais de comunicao, principalmente para adeficincia mental profunda e multideficncia, embora j esteja a serusada a comunicao atravs de pictogramas e ideogramas (mais prximada mitografia do que da morfemografia), sendo os pictogramasconstitudos por smbolos estilizados que representam o mundo real, eos ideogramas por smbolos estilizados que representam ideias ( osistema Pic, constitudo por 400 smbolos impressos em cartes e emautocolantes). Um outro sistema de comunicao importante o deBliss, um sistema visual grfico constitudo por smbolosacompanhados dos respectivos significados e que representam pessoas,objectos, conceitos, ideias, sendo um sistema escrito baseado mais nosignificado do que nos smbolos, um bom meio alternativo decomunicao, porque, com os seus conceitos relacionados e lgicos,ultrapassa as limitaes de outros sistemas. neste contexto que importa inscrever as incidncias doprogresso das novas tecnologias da informao que vieram dar novosrumos ao mundo, neste caso, da reabilitao, designadamente acomputorizao, as ajudas tcnicas e outros meios auxiliares deprocessos comunicacionais, em especial da leitura e da escrita. Cadapessoa com deficincia pode desenvolver ao longo da sua vida, emconsonncia com as suas capacidades, o seu prprio sistema decomunicao constitudo por formas verbais e no verbais, orais e noorais, atravs do som, da escrita, dos grficos, dos movimentoscorporais, de modo varivel e evolutivo.18-19 Para estruturar o seu sistema de comunicao, importa, de formareflexiva e sequencial, desenvolver as suas capacidades residuais dafala, vocalizao, motricidade corporal, percepo. No que concerne ao sistema de comunicao das pessoasdeficientes visuais, cujo contacto com o mundo exterior se estabelecefundamentalmente por intermdio dos sentidos do tacto e do ouvido, doodorato e at do gosto, simultaneamente com o cultivo e exerccio daperceptibilidade dos sistemas sensoriais, foram desenvolvidas ascapacidades tcteis, hoje maximizadas com o contributo informtico-tecnolgico, sendo possvel aceder automaticamente aos textos emcaracteres comuns atravs de terminais braille e/ou de voz sinttica,ou de software especiais para ampliao dos caracteres vulgares deforma a poderem ser lidos por pessoas amblopes. Contudo, a oposio oral-escrito ser sempre polmica, em nossaopinio, no obstante, presentemente, a oralidade, em casosespecialmente justificados, haver ganho tambm uma esperana de vidaincomensurvel, durativizvel pela aco das potencialidades dasnovas tecnologias da informao, as quais vieram revolucionariamentecontribuir para a inovao e ampliao do horizonte dasartificialidades da linguagem e, por consequncia, possibilitar aacessibilidade de todos os cidados, escorreitos ou no (salvo bviasexcepes), ao inexaurvel universo da comunicao e da cultura dasociedade contempornea. Estamos na era da linguagem integrada e da respectiva tecnologizao, encontrando-se as pessoas portadoras dedeficincia (designadamente as deficientes visuais) cada vez maisintegradas no mundo da informao como utilizadoras (mesmo comoprodutoras ou programadoras) deste universo comunicacional. As potencialidades das tecnologias da informao naacessibilidade das pessoas portadoras de deficincia comunicao e cultura , presentemente, um universo rico de inovao, pelo que,tendo em conta a amplitude que temos estado a conferir a estaintroduo, o presente livro deveria ter um mbito mais geral,abrangendo as diversas tipologias da deficincia, mas isso traduzir-se-ia numa investigao de flego e amplitude diferentes eexorbitante dos parmetros intelectuais que ora nos norteiam, razopor que s aprofundaremos, neste domnio cientfico, o processo desociabilidade, de comunicabilidade, de mobilidade, de autonomia e deinteraco das pessoas cegas na sociedade, com fundamental incidnciana perceptibilidade dos sistemas sensoriais alternativos ao da vista,equacionando a interligao sensorial e a percepo hptica, natiflografia e braillologia (matria esta com que trabalhamos e temosvindo a aprofundar desde 1973), numa perspectiva logogrfica ehistrico-cultural, atribuindo especial relevncia s vantagens datecnologizao da tiflografia, como inquestionvel instrumentointelectossocial integrador destes indivduos na cultura actual. Aomesmo tempo, estamos cientes de que o braille e a sua tecnologizaoconstitui, de certo modo, uma nova linguagem que vem acrescentarfunes tcteis a uma linguagem puramente cerebral, intelectual, queera a oralidade, embora a oralidade pressuponha uma certatactilizao, tendo o braille, na escrita moderna, a vantagem deacrescentar uma modalidade sensorial que tem estado quasecompletamente afastada das cincias da comunicao: o sentido dotacto, pelo qual passam todos os outros sentidos (e por eles ainteligncia) e que protagoniza a dor e o prazer e os ingredientesconstitutivos da excelsa beleza (ou da sua saturao) que culmina nointelecto. Nesta acepo, e ao longo de quatro captulos, aprofundaremosquatro grandes itens da vertente tiflo-scio-comunicacional, queinserimos nas cincias da comunicao, (interdependentes einterrelacionados) fundamentais para dar corpo a esta investigao,alicerando-a num argumento slido e inequvoco (tanto quantopossvel) no plano terico e experiencial, baseado na importncia daperceptibilidade dos sistemas sensoriais consubstanciada em suportespsico-scio-intelectuais, cognitivos e culturais, como perspectivarelevante e preconizadora do alargamento do paradigma comunicacional,preenchendo, a nosso ver, uma lacuna na rea das Cincias daComunicao. Desta forma, no primeiro captulo (Questes da Cultura,Linguagem, Escrita e Comunicao no Plano Tiflolgico), constituramo fulcro das nossas atenes a cegueira no contexto da oralidade e daescrita, a cegueira enquanto reveladora das equivocidades dacomunicao, bem como conceitos e preconceitos a propsito de ver eno-ver (atendendo, por vezes tambm, coexistncia de problemase de questes oriundos de outros horizontes histricos que sobrevivemno arquivo cultural20 da humanidade - oral e/ou artificialmente),enunciando j um alargamento da comunicao e da cultura acessveiss pessoas cegas, consubstanciado no fenmeno da cultura em geral,como mbil inexpugnvel da to almejada (e j observvel nalgunscasos) transformao das mentalidades no que se refere compreensoe intercompreenso despreconceituada (em termos experienciais eculturais) das inequvocas e demonstradas potencialidades e capacidades das pessoas cegas, em muito equiparadas (por vezes emperfeita analogia) com as das pessoas normovisuais. No segundo captulo (Percepo dos Sistemas Sensoriais numaDimenso Tiflo-Scio-Comunicacional), trataremos, com a profundidadepossvel, a percepo dos sistemas sensoriais numa dimenso tiflo-scio-comunicacional, passando por algumas reflexes em torno doconceito fenomenolgico de percepo (conquanto de forma muitopreliminar, visto que uma abordagem fenomenolgica numa acepo maisprofunda transcenderia o nosso objecto de investigao), para, emseguida, nos concentrarmos na questo do sentido dos obstculos outacto dos sistemas sensoriais alternativos ao da vista, incidindo emaspectos do sentir e do perceber, bem como na perceptibilidade destessistemas sensoriais como garante de uma interaco scio-intelectualdas pessoas cegas, tendo naturalmente presente que a perceptibilidadesensorial no apenas, a nosso ver, um conjunto de elementosprimrios e independentes da inteligncia, mas sobretudo o resultadoda actividade psico-sensrio-intelectual. No terceiro captulo (A Questo da Tiflografia num ContextoComunicacional e Histrico-Cultural), numa sucesso de passoshistrico-culturais para a constituio de um sistema de leitura e deescrita ajustado ao sentido do tacto, como veculo de cultura emanalogia com os sistemas de leitura e de escrita para as pessoasnormovisuais, concentrar-nos-emos aprofundadamente na gnese e naevoluo signogrfica da tiflografia num contexto comunicacional ehistrico-cultural, no menosprezando outras iniciativastiflogrficas (ainda que goradas) como alternativa ao SistemaBraille, critrios de produo e de publicao em braille, materiaisbraillogrficos e servios de produo e de utilizao em Portugal,referindo tambm as publicaes em srie portuguesas (em braille, emudio e em suporte electrnico), umas que pereceram nascena,outras menos efmeras e outras que ainda sobrevivem. Finalmente, no quarto captulo (As Vantagens da Tecnologizaoda Tiflografia e da Acessibilidade da Informao s Pessoas Cegas),desenvolveremos a importncia das novas tecnologias, aprofundandoevolues do braille braillo-informtica e da informao analgica digital (ou informao estruturada), do equipamento informticoespecfico de leitura e de escrita cada vez mais ajustado snecessidades especiais, dando relevo s perspectivas actuais daacessibilidade da informao, no plano informtico-tecnolgico, o quefaculta s pessoas privadas da sensibilidade visual, um futuro demaior e independente acessibilidade informao e cultura, de umamaior e eficiente autonomia e interaco, de uma mais amplacomunicabilidade e sociabilidade, de uma mais profcua actividadescio-intelectual e scio-profissional, satisfazendo naturaisexigncias pessoais e sociais.21 Sobre a questo da originalidade da presente investigao, cabeaqui anotar claramente que o seu contedo no apenas resultante dasingularidade do sujeito que somos - a consequncia e o resultadoimediatos de uma (s vezes) dolorosa experincia humana que aquiprocura encontrar a sua formulao -, mas tambm da confluncia deinmeras leituras e de aulas que nos estimularam e que tm sidosempre decisivas no avano da nossa formao na matria emreferncia. Logrmos, no entanto, escrever este livro, sempreanimados pelas permanentes preocupao e honestidade intelectual emconferir-lhe qualidade e idoneidade, profundidade, rigor e (perdoe-se-nos alguma imodstia) ineditismo, convico esta reforada pelo factode termos conseguido fazer, pela primeira vez na histria datiflologia portuguesa, um levantamento bibliogrfico exaustivo sobre o assunto (o qual estudmos a fundo), muito disperso designadamentepor publicaes em braille, em formato udio e em caracteres comuns,como se pode observar ao longo deste livro e na bibliografia geral.Simultaneamente, tambm recorremos a fontes de referncia orais naBlgica, no Brasil, em Espanha, nos Estados Unidos, em Frana, emPortugal Continental e Regio Autnoma da Madeira. Em nossa opinio, um erro solipsista e sem fundamentodeontolgico ou tico-intelectual supor que a influncia e aoriginalidade constituem uma dicotomia. As influncias so, j porsi, resultantes de uma receptividade pessoal em relao a tal ou talobra e no indiscriminadamente a qualquer autor. No temos receio dasinfluncias, nem sequer de sofr-las, visto que estamos cientes deque esse tipo de apreenso intelectual se deve a uma falsa noo deoriginalidade que no tem em conta a sua relao com a confluncia detodas as leituras que fizemos, em relao s quais no podemos deixarde ser sensveis e sempre devedores. Nesta acepo, na profundainvestigao efectuada (no obstante ainda longe da sua concluso),podemo-nos permitir cometer uma ou outra incorporao, como o faziamos Clssicos e, como por exemplo, Lus de Cames logo no primeiroverso de Os Lusadas, As armas e os bares assinalados, inspiradopor Virglio, Armas virunque cano... (Hendadis). O grande interesse que sempre temos nutrido por esta relevanterea da tiflologia, os Professores que tivemos e as leituras que nosaconselharam, bem como outras que por nossa iniciativa efectumos,exerceram sobre ns uma atraco e um fascnio irresistveis, toirresistveis como o desejo de imitar aqueles professores e osdemais autores e de integrar o que de novo trouxeram nossareflexo. Verificamos, porm, que esta fascinao que certos autoresexerceram sobre ns e o decorrente desejo de os imitar no setraduzem objectivamente numa tese destituda de originalidade e decunho pessoal. Entre as contribuies intelectuais que tentmosseguir (identificadamente) e o presente livro subsiste uma diferenaessencial, sendo essa diferena que precisamente nos leva a admitirque o nosso contributo na investigao e formulao destaproblemtica comunicacional possui a autonomia e a originalidade queconsideramos imprescindveis numa investigao desta natureza e que,de modo algum, foi prejudicada pela influncia que sobre a mesmaexerceram aulas, seminrios, congressos e um sem-nmero de leiturasde artigos (dispersos por publicaes em srie) e monografias, nosformatos braille, udio, caracteres comuns e em suporte informtico,bem como os j inmeros eventos tcnico-cientficos e culturais querealizmos, designadamente, no mbito da Cmara Municipal de Lisboa,como poderemos observar ao longo deste livro. Pelo contrrio, ainfluncia foi decisiva para a descoberta da voz original doinvestigador que procura o seu caminho ou que, tendo-o j encontrado,aspira sistematizao desta vertente comunicacional alternativa(preenchendo uma lacuna - inadmissvel neste fim de sculo - nohorizonte das Cincias da Comunicao) e a novos rumos da suaobjectivizao para que a identidade e o saber se renovem, seintensifiquem e se ampliem. Vestimos esta problematicidade, queremoscompartilh-la para, com essa partilha, desmistificarmos concepesdesconexas e sem fundamentao experiencial e terica, dando corpoiniludvel e inquestionvel a este to esquecido (ou negligenciado)domnio tiflo-scio-comunicacional e tiflo-interactivo. Como acima usmos, pela primeira vez, o vocbulo tiflologia,conceito que iremos utilizar nesta investigao e cuja terminologiacarece, a nosso ver para j, de um esclarecimento preliminar,(encontrando-se uma explicitao mais aprofundada no ponto quatro doprimeiro captulo e na introduo ao quarto captulo) podemos,adiantar que, como se pode comprovar pela consulta de algunsdicionrios, a formao do vocbulo tiflologia corresponde aglutinao dos vocbulos gregos typhlos (cego) e logos(razo,conhecimento). O conceito, no caso dos dicionrios que oregistam, apresenta-se, naturalmente, com um contedo em evoluo,como poderemos observar nos pontos supra-referidos. Partindo de uma acepo estritamente confinada instruo, comoacontece, por exemplo, no Pequeno Dicionrio Brasileiro da LnguaPortuguesa, de H. de Lima e G. Barroso, que o descreve como tratadosobre a instruo dos cegos, regista, mais tarde, um aditamentoatravs do qual passa a incorporar tambm a formao profissional,como nos mais recentes dicionrios acadmicos da Porto Editora, eaparece-nos hoje muito mais abrangente, envolvendo inmerasvertentes, como pode verificar-se em Electronic Dictionary andThesaurus, de Collins, que nos d a seguinte definio: typhlology- the branch of science concerned with blindness and the care of theblind.. A tiflologia (conforme o tambm expresso na introduo ao quartocaptulo) ainda no se nos apresenta propriamente como uma cincia,mas como uma posio plurifacetada, traduzida numa actividademultidisciplinar, em que convergem disciplinas do mbito de diversascincias (designadamente oftalmologia e outras especialidades dacincia mdica, psicologia, pedagogia, sociologia, engenharia,arquitectura, aco social, direito),22 com o objectivo de secompreender integralmente o dficit funcional motivado peladeficincia visual em todas as suas implicaes intrnsecas eextrnsecas ao deficiente e procurar, na medida do possvel, reduzirou eliminar essas implicaes,23 preocupao que j tornou possveisum razovel leque de conquistas nos mais diversos domnios, conformeo aprofundado na introduo ao quarto captulo. Precisando, de forma mais sinttica e conclusiva o nosso objectode investigao, diremos que , na realidade, pela comunicao e pelacultura que o ser humano se realiza plenamente como pessoa econtribui para o bem da comunidade e de toda a sociedade humana,sendo consequentemente pela socializao da comunicao e da cultura(no seu sentido mais amplo) que a famlia, a escola, a sociedadehumana encontram a sua significao e legitimam o seu sentido.24-25-26-27 Cientes de que alguns autores defendem, com inquestionvel rigorcientfico, o problema da linguagem tendo por detrs a ideia dateoria da viso, muito embora reconhecendo essa incontestabilidade,procuraremos justificar neste estudo (acentuamo-lo de novo sempretendermos ser repetitivos, mas porque o sentimos e experienciamos)um alargamento do paradigma da comunicao, uma vez que, a nosso ver,a comunicao algo de um pouco mais complexo, interagindo em nsalguns dos seus elementos de forma quase inconsciente, pelo quepropomos um modelo alargado a partir de conceitos redimensionantesque apresentamos - o da viso, o da perceptibilidade dos sentidos (noque se integram a ateno e a sensibilidade aumentadas) e o datecnologizao da tiflografia -, radicados nos restantes sentidospara suplementarem a viso, dando-nos hoje as novas tecnologias nos um suplemento da viso, como uma viso mais completa das coisas,criando, sobretudo para as pessoas cegas, uma viso em alternativae desinibida de metaforicidades. Thomas Khun sustenta, no que serefere a mudanas de paradigma, que, embora o mundo no mude com umamudana de paradigma, contudo, depois dela, o cientista passar atrabalhar num mundo diferente.28 Desde a mais remota antiguidade que se entende que cada pessoa um universo inexaurvel de descoberta. cujo paradigma mais recente eproblematizante foi (em nossa opinio) Michel Foucault(1926-1984)29que muito investiu na arqueologia do pensamento. O tacto dos nossossentidos, a maravilhosa faculdade que a percepo dos sentidos30-31-32-33 e que todos possumos tem sido profunda e injustamente subjugadapela hipervalorizao do sentido da vista. Vamos acord-la, libert-la, reabilit-la e conferir-lhe o poder a que ela tem direito, poderque ela sempre teve, mas que nunca lhe foi reconhecido. Temos agora afeliz oportunidade de o demonstrar e apercebermo-nos de quoimportante e imprescindvel ela para todos ns, sobretudo comofenmeno tiflo-scio-comunicacional e tiflo-interactivo. Karl Popper diz-nos que toda a soluo dada a um problemalevanta novos problemas; principalmente quando o problema original profundo e a soluo apresentada corajosa..34 Cada smbolo resultava da simples combinao de doze pontos(dois no mnimo e doze no mximo), colocados em duas filas verticaise paralelas, contendo cada uma no mximo seis pontos. Por exemplo: o sinal que se encontrasse no cruzamento da quintalinha e da terceira coluna seria representado por cinco pontos nafila vertical esquerda e por trs pontos na fila vertical direita,correspondendo ao smbolo N. O sinal que estivesse na ltimaposio na sexta linha indicar-se-ia por seis pontos na fila verticalesquerda e por seis pontos na fila vertical direita, correspondendoao som IEU, e assim sucessivamente. Este sistema sonogrfico formadopor pontos em relevo justapostos veio a possibilitar s pessoas cegasa leitura tctil incomparavelmente mais rpida do que pelos processosanteriores, permitindo-lhes ainda escrever com mais facilidade.Barbier inventou mesmo um autntico arqutipo da actual rguaBraille, instrumento atravs do qual, com o auxlio de um estilete (aque hoje chamamos puno), era possvel gravarem-se no papel todos ossmbolos do seu sistema, o que podemos atestar porque tivemos aoportunidade de (em Maro de 1997) observar todo esse material noMuseu Louis Braille localizado na Associao Valentin Hay.Barbier de la Serre sustentava que, com estes trinta e seis sinais,poderiam as pessoas cegas dar conta dos seus negcios, consignar nopapel as suas ideias, recolher as dos outros, ler a sua prpriaescrita, sem que se seja obrigado a ensinar-lhes a forma das letras,o uso da pena e as regras da ortografia, nem as dificuldades desoletrar.Interessando-se pela tiflografia, ao que consta desde 1819, teriaapresentado este seu sistema Academia das Cincias, que muito ofelicitou, Universidade de Paris, onde encontrou um frioacolhimento, e Institution Royale des Jeunes Aveugles, onde, apartir de 1821, o seu mtodo foi muito experimentado at 1826 pelosalunos da escola, com grande interesse e por todos considerado comoum elevado e sem igual benefcio em seu favor at ento, tendo sidotambm utilizado, diz-nos Albuquerque e Castro(1936), como sistema deabreviaturas tiflogrficas at 1882.Imprimiu-se um livro para ensinar as pessoas cegas a ler este sistemacriptogrfico (o que tambm pudemos observar no Museu Louis Braillena data atrs referida) e, curiosamente, com base no aludidoarqutipo por ele concebido, chegou a confeccionar pautas e rguas demesa e, at, de algibeira para produzir este sistema sonogrfico(talvez mais morfemogrfico) que veio a funcionar como meiotiflogrfico.Contudo, este sistema tiflogrfico era apenas fontico e, por issomesmo, no satisfazia as necessidades de alunos e de professores.Tinha, certo, a indita e j prodigiosa vantagem de poder serutilizado pelos indivduos cegos, mas as circunstncias impunhamadequ-lo s exigncias da ortografia. Simultaneamente, no obstante,era difcil aos indivduos cegos ler este sistema com a flunciadesejvel (embora com mais rapidez do que os sistemas anteriores), emvirtude do excessivo nmero de pontos e da necessria grandeza dossmbolos por eles formados.Este processo de escrever, devido quantidade de pontos que eranecessrio combinar para se formar um sinal fontico, tambm erademasiado lento. Mas o que certo que Barbier tinha,efectivamente, efectuado uma descoberta, sem igual significado eimportncia anteriores: descobriu que o ponto em relevo, e no otrao, era o elemento adequado polpa do dedo, adequado percepotctil no processo de leitura.Barbier achava (e com razo) que era difcil s pessoas cegastraarem letras que os seus dedos pudessem identificar fluentemente.E, nesta perspectiva, teve a feliz inspirao de que o dedo, aocontrrio dos olhos, analisa melhor os pontos do que as linhas. Porm(e erradamente), acreditava que este seu processo fontico seria osuficiente, como meio de comunicao, para os indivduos cegospoderem ler e escrever, sendo-lhes intil a ortografia. Mas o que noresistimos a sustentar que (com profunda e entusistica gratido),Barbier havia descoberto a base da grande revoluo tiflogrfica, aqual eclodiu retumbantemente: o ponto, o elemento tangvel que maisse ajusta modalidade perceptiva do tacto, estava finalmenteencontrado. Louis Braille tinha a primeira pedra lanada para poderbasear-se e erigir o seu fabuloso, imponente, inexpugnvel einsubstituvel monumento tiflogrfico e tiflolgico universal, que o alfabeto Braille.O nome de Barbier de la Serre, por muito estranho que parea, foicaindo no esquecimento. Sabia-se que o seu corpo se encontrava nocemitrio de Pre-la-Chaise, de Paris, mas ignorava-se o local exactoonde jazia. S muito mais tarde, um seu admirador e membro daAssociation Valentin Hay conseguiu descobrir o seu tmulo e,imediatamente, esta Associao tomou a iniciativa de o reedificar, deforma a poder-se, condignamente, comemorar a personalidade do homemque to elevados prstimos legou (por acaso) educao das pessoascegas.A propsito, J. de Albuquerque e Castro(1959) refere que: Sem CarlosBarbier, no teria talvez existido para Lus Braille a imortalidade.Mas, sem ele, o sistema de escrita em relevo, inventado por Barbier,no teria talvez ultrapassado o seu autor, porque nenhum outro, senoLus Braille, saberia transform-lo e fazer dele o modelo de lgica,de simplicidade e de polivalncia que todos conhecemos..E escreve ainda: Glria a Carlos Barbier! Mas glria maior ainda aLus Braille!.

III.1.3 - Louis Braille

Louis Braille nasceu a 4 de Janeiro de 1809 na aldeia de Coupvray,situada a cerca de quarenta quilmetros a leste de Paris, e faleceu a6 de Janeiro de 1852, em Paris. Era o filho mais novo do casal SimonRen Braille e Monique Baron e tinha mais trs irmos: um rapaz eduas raparigas. O pai era correeiro e o pequeno Louis costumava ir,com frequncia, brincar para a sua oficina, onde, num certo dia (jcom trs anos), ao tentar cortar uma correia com a faca que o paihabitualmente usava (h quem refira a sovela em vez da faca), teriaferido um dos olhos, que infectou, propagando-se a infecorapidamente ao outro olho e acabando a criana por ficarcompletamente cega em pouco tempo.-O pequeno Louis frequentou a escola primria da sua terra natal,adquirindo alguns conhecimentos, conquanto no pudesse ler nemescrever, e, em casa, ocupava-se do arranjo de arreios, actividadeque lhe proporcionara excelente destreza manual.Tendo em conta uma srie de condicionantes prprias da poca, eranatural que o pai tivesse preocupaes e dvidas quanto ao futurodeste filho. E tinha-as na verdade. Mas um belo dia soube daexistncia da escola fundada por Valentin Hay, Institution Royaledes Jeunes Aveugles, em Paris, na qual veio a internar o filho, jcom dez anos, em 15 de Fevereiro de 1819, ano em que Barbier de laSerre se comeara a interessar, afincadamente, pela tiflografia,baseada no seu sistema sonogrfico.A princpio, o pai de Louis Braille teria manifestado algumasreservas quanto ao internamento da criana naquela escola,provavelmente porque se localizava num bairro sujo e insalubre,porque as instalaes eram exguas e a alimentao muito deficiente,porque as crianas (do sexo masculino e feminino) tinham um aspectoplido, doentio, e porque, em suma, se inteirara (ns hojeprocederamos exactamente assim) das pssimas condies em que ascrianas viviam na escola, no obstante as denncias, sem xito,lavradas em relatrios por mdicos que as visitavam muito de longe emlonge.O ensino a ministrado abrangia, na realidade, muitas matrias,embora de forma bastante superficial, e os livros utilizados pelosprofessores e alunos eram, nesta altura ainda, muito volumosos,impressos no relevo linear de Valentin Hay, reproduzindoampliadamente as letras a tinta, para mais facilmente poderem seridentificadas pelo tacto, o que se traduzia, obviamente, numa leituramorosa e cansativa para as crianas cegas e, mesmo, para os prpriosadultos.No que se referia possibilidade das pessoas cegas escreverem, essadificuldade era bem mais acentuada e quase que se podiam contar pelosdedos as que conseguiam escrever com a pena, embora, a partir de1821, se comeasse a abandonar a pena em favor do estilete (hojedenominado puno) com o qual se escrevia por meio de pontos aSonographie Barbier, que veio a ser utilizada na escola e pelaspessoas cegas at 1882, como atrs referimos.Mas reportando-nos a Louis Braille, existem informaes escritas queatestam, fundamentadamente, que era bom aluno, distinguindo-se quernos trabalhos manuais, quer nas matrias de ndole intelectual,revelando grande clareza de ideias e um elevado poder de astransmitir concisamente.Esta enorme capacidade levou-o a somar condio de aluno, asfunes de contramestre (de 1823 a 1827), passando a ensinartrabalhos manuais aos alunos mais novos. Tendo sido bem sucedidoneste exerccio, em Agosto de 1827 foi nomeado monitor, ficando com oencargo de oito classes: gramtica, histria, geografia, aritmtica,lgebra, geometria, violoncelo e piano. A actividade de monitor era-lhe, de facto, extremamente gratificante, embora mal remunerado e comregalias quase imperceptivelmente melhores do que as dos alunos. Comono podia deixar de ser, veio a tornar-se professor, sustentandoPierre Henri que as suas aulas eram muito apreciadas, porque nodivagava em futilidades e expunha, concisa e objectivamente, apenas oque era essencial. Por outro lado, e contrariamente ao que erahabitual na poca, aplicava poucos castigos aos alunos. Escreveudiversos tratados de histria e de aritmtica, dos quais se destaca oPetit Mmento d'Arithmtique l'Usage des Commenants..., ummtodo de musicografia e outro de livros didcticos.-Foi tambm um exmio organista em vrias igrejas de Paris, tendo altima sido a Capela dos Lazaristas, onde encontrou o ambientepropcio s suas meditaes religiosas.Gostava de jogar xadrez, era de resto o nico jogo que o motivava.Era inteligente e sensvel, tinha muitos amigos e muitos procuravam-no e seguiam os seus conselhos. Foi, cerca de um ms antes da suamorte, acometido de uma violenta hemoptise que o levou cama parano mais se levantar, debilidade que vinha a afect-lo desde os 26anos.Foi sepultado na sua terra natal que, em 1882, veio a edificar, emsua memria, um curioso monumento que representa Louis Braille aensinar uma criana a ler o seu alfabeto e, em 1952, na comemoraodo Primeiro Centenrio da sua morte, os seus restos mortais foramtrasladados para o Panteo Nacional, nos Invlidos, em Paris, ficandoapenas as mos em Coupvray.Contudo, o fundamental monumento tiflolgico universal de LouisBraille (para que deste aparente metaforismo no resultem equvocos), na realidade, bem mais vivo e profcuo - o meio de comunicaovital entre as pessoas cegas (o alfabeto braille) e, ao mesmo tempo,o demolidor de barreiras scio-intelectuais, culturais e scio-profissionais que lhes abriu as portas do maravilhoso mundo do saber,o mbil da emancipao scio-intelectual das pessoas cegas de todo omundo.Efectivamente, Louis Braille, apesar de intensificar toda a suaactividade (incluindo a docncia), nunca deixou de investigar, deestudar, de amadurecer ideias para conceber e materializar o sistemaque tomou como designao o seu ltimo apelido (Braille) e que veio acelebriz-lo na Histria dos Homens com maiscula.Escrevia J. de Albuquerque e Castro(1938): O ano passado marcou otermo de notvel perodo na histria da tiflologia: o da inveno,aproveitamento e consagrao da escrita em relevo que os cegos usam.Foi em 1837 que ela recebeu de Luiz Braille a sua forma definitiva;durante um sculo inteiro todos os povos civilizados a adoptaramprogressivamente, sem que nenhuma modificao lhe fosse introduzida,e, finalmente, em 1937, os cegos franceses tomaram a iniciativa deconsagr-la, perpetuando em monumento condigno a memria do seuautor..-Todas as entidades tiflolgicas francesas manifestaram imediatamenteo desejo de colaborar na grandiosa homenagem, de modo que, pode dizer-se, essa iniciativa no pertence a este ou quele indivduo mas atodos os cegos de Frana. Por seu turno - prossegue J. de Albuquerquee Castro -, desde o Chefe de Estado, que aceitou a presidncia dehonra da comisso encarregada de levar a cabo a justssimaconsagrao, at aos administradores locais, todas as autoridades daFrana garantiram com o seu poderosssimo concurso o xito destahomenagem..Mas Louis Braille, adianta o mesmo autor(1938), pelo carcteruniversal da sua obra, no apenas uma glria da Frana ou umbenemrito dos privados de vista, pois a sua escrita utilizadapelos cegos de todo o mundo e, como eles no constituem de modo algumclasse fechada, qual algum possa ter a certeza de nunca vir apertencer, por si ou pelos seus, no hiperblico afirmar queBraille pertence a toda a humanidade e um dos seus maioresbenemritos. Como Galileu, como Pasteur, como Ling, como Dumont, comotantos outros, le trabalhou para o gnero humano. Os cegos, que,antes dle, s difcil e raramente conseguiam compensar pela luz doesprito as trevas em que viviam, viram-se subitamente, graas suamaravilhosa tiflografia, na posse do mais forte, do mais eficazelemento de cultura intelectual e de preparao profissional. Braille o seu emancipador. O seu genial invento foi claro que para sempredissipou a sombra que os envolvia. O ceguinho, transfigurado porle, desapareceu para dar lugar ao homem. Que proveito tirariam oscegos dos princpios morais do Cristianismo ou das doutrinas sociaisda Revoluo Francesa se Braille lhes no desse o meio de compreend-los? Braille o seu redentor, o seu 1789!.

III.2 - Institucionalizao do Braille como InstrumentoIntelectossocial de Tiflografia Universal

III.2.1 - Da Escrita Sonogrfica de Barbier de la Serre EscritaFonogrfica e Alfabtica de Louis Braille

Bem, mas... que mrito se deve atribuir a Louis Braille, uma vez queos sinais em relevo ponteado estavam inventados e que o instrumentopara os produzir o estava tambm?...A primeira transformao da Sonographie Barbier, operada por LouisBraille, foi dividir ao meio, no sentido da altura, o rectnguloformado pelos doze pontos (seis em cada fila) - como podemos observarna convergncia da sexta coluna com a sexta linha do Quadro daSonografia Barbier adaptado Escrita dos Cegos atrs apresentado -,concebido por Barbier, ficando cada sinal (a clula braille) a ocuparum rectngulo formado apenas por seis pontos (trs em cada fila,enumerados de 1 a 6, de cima para baixo e da esquerda para a direita,sendo a fila esquerda representada pelos pontos 123 e a filadireita pelos pontos 456) - como podemos observar no quadrosignogrfico e Alfabeto Braille apresentados nas trs pginasseguintes, clarificando a diferena entre a Sonographie Barbier e oalfabeto Braille, bem como as potencialidades signogrficas destesistema.-Isto porque Louis Braille reconhecera, desde logo, que os smboloscom mais de trs pontos em cada fila eram inabrangveis num scontacto pela parte mais sensvel do dedo e, por consequncia, apercepo imediata de um sinal representativo de um determinadocaracter era impossvel. Estava finalmente inventada a dimenso idealdo carcter representado por pontos ajustados percepo tctil.-A este propsito, Pierre Villey(1879-1933) - cego, outra refernciade grande envergadura, professor universitrio, historiador ecrtico, cujos ensaios sobre Montaigne e sobre a psicologia e apedagogia dos cegos no foram ainda alterados - classifica deprodgio do alfabeto Braille o facto de o seu smbolo gentico secompor apenas de seis pontos, que no excedem o campo da tactilidadee no entanto satisfazem todas as necessidades da sua utilizao. Masa Barbier tambm Pierre Villey se refere, equiparando-o a outrosprecursores que, de nenhum modo, se encontram no caminho de LouisBraille.Ns no hesitamos em sustentar que, sem a Sonographie Barbier, noteramos (conforme j o afirmmos) o Braille de hoje. Com LouisBraille, cada sinal passou ento a corresponder a uma s letra, a ums algarismo, a um s sinal de pontuao. Existem informaesescritas de que este primeiro trabalho de Louis Braille fora pensado,aturadamente, e j de algum modo realizado, numas frias quando tinhaapenas dezasseis anos. A partir da multiplicidade das combinaes queseis pontos originam, extraiu uma srie de caracteres metodicamentedispostos e consequentes uns dos outros com uma lgica e umasimplicidade tais, que hoje nos deixam perplexos, sobretudo sepensarmos que o objectivo de Louis Braille foi atingido logo naprimeira edio da sua obra (tinha ele vinte anos de idade), ondeexpe o seu novo mtodo de escrita e de leitura, que permiteescrever, no s palavras e nmeros, mas tambm msica e cantocho.Este sistema era constitudo por noventa e seis sinais que resultavamno s da combinao de pontos, mas tambm da combinao de pontoscom sinais. Rompeu com a concepo fontica, em que os smbolosrepresentavam sons silbicos, e deu ao seu processo fundamentoortogrfico e alfabtico, o que o consagrou na Histria da Humanidadecomo o inventor de um alfabeto inultrapassvel para as pessoas cegas.Bastante influenciado por mtodos de escrita e, fundamentalmente, deleitura anteriores, esta primeira edio ainda era permevel adopo de elementos do relevo linear. Curiosamente, de entre asaplicaes sui generis do prprio braille, uma das quais chegou aassentar numa clula de trs verticais por duas horizontais, em vezde duas verticais por trs horizontais, persistiram nos EstadosUnidos at segunda dcada do sculo XX, tendo o seu abandono e aadopo do braille padro ficado a dever-se aos empenhados esforosde Helen Keller que, tambm para esse fim, conduziu uma das suasmuitas cruzadas..Durante oito anos Braille no deixou de trabalhar no seu sistema e deo aperfeioar. A partir de 1830 os alunos passaram a us-lo paraescrever nas aulas. E essa utilizao ajudou Lus Braille a resolverproblemas de ordem prtica. Para exemplificar vejamos o que se passoucom a pontuao. Em princpio esses sinais eram representados pelos10 primeiros caracteres sublinhados por um trao. Como esse traofosse difcil de fazer, os alunos comearam a deixar de o pr e aescrever esses caracteres na parte inferior do rectngulo. Assimcriaram 10 novos sinais que Lus Braille adoptou definitivamente pararepresentar as pontuaes,- conforme o expresso no quadro daspontuaes e sinais acessrios atrs apresentado.Conquanto o uso deste sistema de Louis Braille j estivessegeneralizado entre os alunos (com indiscutveis vantagensrelativamente a todos os sistemas anteriores), continuavam, porabsurdo que isso parea, a imprimir-se livros em relevo linear.--.Mas em 1837, ano da 2 edio da sua obra, aps oito anos deexperincias e de ajustamentos com a colaborao de muitos dos seuscamaradas, o sistema de Louis Braille apresentou-se quase exactamentecomo hoje o conhecemos (com sessenta e trs sinais, alcanandorapidamente forma definitiva e uma expresso to perfeita que, noobstante as modificaes que outros procuraram introduzir-lhe, presentemente o nico processo tiflogrfico (devidamente elaborado)usado pelas pessoas cegas de todo o mundo.-Louis Braille conseguiu contemplar, na edio do seu notvel sistemaem 1837, representar distintamente quase todos os sinais utilizadosna escrita em caracteres comuns, mas o Sistema Braille s foioficializado em Frana em 1854 (dois anos depois da morte do seuautor),em toda a Europa em 1870, sendo recomendada a sua adopo comosistema internacional para o ensino de alunos cegos, o que s veio aconcretizar-se em 1978 (conforme o refere M de Los Angeles Soler noSeminrio de Iniciao Tiflologia organizado pela ONCE e realizadoem Madrid em 1976), tendo a sua ascenso universalidade sido muitolenta e repleta de tais vicissitudes, que, podemos dizer, a suaassuno triunfante s veio a verificar-se em pleno sculo XX.Mas retomando a 2 edio do Sistema Braille, acresce salientar queLouis Braille fixou o alfabeto, os algarismos, a pontuao e outrossinais ortogrficos, bem como os sinais aritmticos e algbricos (queposteriormente sofreram diversas modificaes), um sistemaestenogrfico (quase totalmente modificado) e um cdigo de notaomusical que constitui, no essencial das suas linhas, a actualmusicografia braille universal. Bom, a este respeito, quanto escrita da msica, nenhuma das formas adoptadas no mundo, at ento,satisfazia as necessidades dos estudantes e profissionais cegos.Coube a Louis Braille solucionar tambm este problema: e foi graasao seu esprito cientfico, sua capacidade analtica e suaperseverana, que descobriu uma forma de representar os sinaismusicogrficos capaz de reproduzir com exactido os textos musicaisescritos a tinta, proporcionando s pessoas cegas, deste modo, apossibilidade de, decidida e confiadamente, enveredarem pelaexplorao da msica, itinerrio que, na poca, lhes sorriairrecusavelmente, transbordante de promessas.A msica, seja como arte (exprimindo sentimentos ou impresses pormeio de sons), seja como cincia, comeou a estar, progressivamenteacessvel e ao inteiro alcance das pessoas cegas.De notar que esta forma de representar os sinais musicogrficos foiimediatamente adoptada, o mesmo no sucedendo com outrasrepresentaes da escrita braille. Um exemplo desta afirmao aexistncia no Museu Lus Braille (na Associao Valentin Hay) de umlivro de hinos, em que o texto musical est escrito em braille e ospoemas em relevo linear, o qual tambm tivemos a oportunidade deobservar.Cabe aqui salientar que tambm encontrmos neste Museu o livroPrcis sur l'Histoire de France Divise par Sicles..., de doisautores que se assinam apenas com as iniciais L. C. e F. P. B., emfrancs, escrito em braille (segundo o mesmo processo manual que foiutilizado para a materializao do Sistema de Louis Braille),original que os franceses atestam (mesmo autores portugueses) tersido o primeiro livro impresso no mundo. Ora, a verdade que setrata (isso sim) do segundo livro (porque o primeiro foi o Sistema deLouis Braille) escrito em braille (tendo sido utilizada a pautabraille para o efeito) e no impresso. O primeiro livro impresso embraille no mundo em portugus (encontrando-se tambm no aludidoMuseu), conforme o expresso no ponto 6.1 deste captulo, consentindoa Frana em meados do sculo XIX, contrariamente ao que tem vindo aser defendido por diversos autores), que no fosse sua a obra amerecer a honra da primeira impresso mundial em braille.

III.2.2 - A Problemtica da Constituio e da Assuno do SistemaBraille como Instrumento Intelectossocial Especfico

Mas retomando ainda a adopo imediata da musicografia braille, numprocedimento bem diferente relativamente ao resto do novo sistema deescrita, facto inslito que, de 1840 a 1850 (durante uma dcada), oalfabeto braille foi banido da Institution Royale des JeunesAveugles, continuando apenas a usar-se na representao da notaomusical. Esta espcie de eclipse do braille deveu-se substituiodo Senhor Pignier pelo Senhor Dufau, o novo director daquelainstituio. S s escondidas os alunos podiam usar o SistemaBraille, situao que, naturalmente, seria bem penosa para LouisBraille, mas que viria a cantar o hino de glria ao seu inventor em1854.---A partir do momento em que as pessoas cegas j podiam corresponder-seentre si, era necessrio inventar-se uma nova forma de se escreveremos caracteres a tinta, que facilmente lhes permitisse corresponderem-se tambm com os normovisuais, sem que estes fossem obrigados aaprender o Sistema Braille. Louis Braille pensava que isso erapossvel, desde que os contornos dos tipos de letra, maiscula ouminscula, dos algarismos, da pontuao, fossem rigorosamentedeterminados, tendo efectuado vrias tentativas, mas sem xito. Efoi um antigo aluno da Institution Royale des Jeunes Aveugles,Franois-Pierre Foucault(1797-1871), quem conseguiu inventar umaparelho que possibilitava s pessoas cegas escreverem para osnormovisuais. Trata-se do rafgrafo, que foi utilizado pelosindivduos cegos durante cerca de trinta anos, que se usou no seuensino, e que constava de uma srie de dez teclas com a extremidadeterminada em agulha, com o qual se gravavam as letras num papelpreviamente estendido sobre uma pea metlica horizontal. Foi aprimeira vez na Histria que se criou um processo mecnico para queos indivduos cegos pudessem escrever para pessoas normovisuais,atravs da rafigrafia, que a arte de traar os caracteres,nomeadamente latinos, com ponteiro ou agulha, tambm como meio paraensinar s pessoas cegas a escrita comum.Mais tarde, um aluno de Louis Braille, Victor Ballu(1829-1907),baseando-se na rafigrafia, criou um processo de escrita mais simples,que permitia escrever a letra de imprensa atravs de pontos,utilizando-se rguas e punes prprios (processo anlogo ao daescrita do braille), que ficou a conhecer-se pela designao Ballu,o apelido do seu inventor. Este sistema de escrita foi imediatamenteadoptado pelas pessoas cegas, como meio de comunicao grfica com aspessoas normovisuais, havendo mesmo quem o utilize, ainda hoje, emvrios pases, incluindo Portugal.

III.3 - Outras Iniciativas Tiflogrficas como Alternativa ao SistemaBraille

Outros processos de escrita tctil foram sucessivamente criados,alguns bem curiosos, quer acompanhando as vicissitudes por que passouo Sistema Braille, no seu processo moroso de expanso, at seuniversalizar, quer mesmo depois da sua assuno como sistema vitalde comunicao para as pessoas cegas. Isto porque havia uns queestavam demasiadamente presos rotina e no lhes era nada fcilaceitar novas frmulas, pois que no podiam admitir que algumdiferente deles fosse o criador de um processo de escrita que, apesarde tudo, eram obrigados a reconhecer como insubstituvel einultrapassvel. Outros tambm pretendiam ser inventores de mtodosde escrita em relevo, no sendo difcil, depois de Barbier e deBraille, com alteraes e adaptaes meramente acidentais, imaginaroutros processos, e no se dispunham a colocar de lado tipos deescrita a que estavam habituados e j integravam a sua estruturamental. De resto, sempre assim , quando algum sacode ideiasestagnadas ou contraria hbitos inveterados, abalando posies que,obstinadamente, no querem perder-se, vaidades no dispostas subordinao, soberbas incompatibilizveis com a humildade. Tivessehavido outra trajectria da tiflografia ponteada e, provavelmente,ningum falaria hoje de Louis Braille. Mas, na realidade, no houveoutra, e Braille triunfou.-Com a evoluo da braillografia, outras iniciativas (umas maisefmeras, outras mais resistentes) foram tomadas, das quais (por asacharmos bastante curiosas) destacamos o alfabeto Moon e o alfabetoMascar.

III.3.1 - Alfabeto Moon

O alfabeto Moon foi inventado por William Moon(1818-1894), deBrighton, em 1847. Moon, que mantinha um resduo visual desde ainfncia, acabou por ficar cego aos 21 anos de idade e bem depressadominou todos os outros sistemas de leitura em relevo que, na altura,eram conhecidos. Rapidamente percebeu que eram muito poucos osindivduos cegos que conseguiam usar esses sistemas com eficcia, oque o levou a inventar o seu prprio alfabeto, a que conferiu o seuapelido como denominao: Moon.Este sistema conserva, numa forma simplificada, letras do alfabetolatino, compondo-se com nove caracteres, cujo significado sedetermina pela posio em que so utilizados, conforme o que nosmostra o quadro na pgina seguinte. As letras colocam-se entreparntesis, para facilitar a leitura, e os sinais estenogrficos soreduzidos ao mnimo.-No mesmo ano de 1847, Moon edita o seu primeiro folheto, impresso nasua prpria casa, numa imprensa manual de madeira, e, logo a seguir,comeou a imprimir partes da Bblia, tarefa que o leva a aperfeioaruma matriz em chapa de zinco, onde se fixavam caracteres de arame decobre executados com ferramentas especiais, o que possibilitava atiragem do nmero de exemplares necessrio.A sua imprensa de madeira veio, mais tarde, a ser substituda por umaem ferro e a ar comprimido e, a partir de 1923, o Moon passa a serimpresso por meio de uma composio tipogrfica. Utilizam-se tiposquadrados, cujos caracteres se obtm mediante a posio em que secolocam os tipos, usam-se outros tipos mais estreitos que representamcada um dois caracteres ou apenas um, representa-se o alfabeto com 14tipos e representam-se as pontuaes e sinais estenogrficos com 12tipos.Para termos uma ideia do espao ocupado pela mancha tipogrfica desteprocesso, uma pgina, e do tempo necessrio sua composio, devemosdeixar aqui expresso que numa pgina em Moon, com as dimenses de30,48cm por 25cm, em que os tipos so colocados mo, pode havercerca de novecentas letras e espaos, trabalho que efectuado emmeia hora por um tipgrafo experiente.-D-nos tambm conta F. P. Oliva de que o papel era previamentehumedecido, como precauo para no se rasgar ao ser impresso emrelevo e, depois de impressas as pginas, estas eram levadas a umsecador mecnico de ar quente.Numa notcia publicada em Ponto e Som, tommos conhecimento deque, em 1984, trs jovens estudantes da Sevenoaks School, prxima deLondres, inventaram uma mquina que permite s pessoas cegas e s queconservam resduos visuais ler e escrever, utilizando os smbolosMoon. At esta data, a nica forma de se escrever no Sistema Moon(que consideravelmente mais simples do que o Braille para osindivduos cegos tardios) era usando aquela impresso especial emrelevo. Agora, j h a possibilidade de os indivduos cegos oudeficientes visuais poderem dactilografar em Moon numa mquinaequipada com este tipo de teclado, que se situa entre a mquinaestenogrfica e a mquina de escrever, que porttil e pouco maiscara do que as comumente utilizadas.Este processo de leitura e de escrita recomendado para iniciar osindivduos adultos, que cegam tardiamente, na prtica da leituratctil, visto que a maior parte das pessoas que perdem a vista jpara alm da meia idade se revela incapaz de dominar o braille, cujospontos se lhe afiguram demasiadamente pequenos, embora, nageneralidade, muitos deles, depois de aprenderem o moon, acabem porvir a dominar tambm o braille, que inquestionavelmente um sistemade longe mais elaborado, o alfabeto que mais recursos oferece spessoas cegas.Apesar de a produo no Sistema Moon ser muito mais lenta do que noSistema Braille, h muito menos literatura neste sistema, noobstante se ter vindo a publicar uma gama razoavelmente ampla delivros, que so emprestados gratuitamente pela Biblioteca Nacionalpara Cegos de Inglaterra. Edita-se e distribui-se, tambm semquaisquer encargos, um semanrio que compreende um suplemento sobrefutebol durante a poca, e editam-se quatro revistas mensais,cobrando-se por elas uma pequena assinatura anual. Tambm se imprimemem moon cartas de jogar e outros jogos. A verso autorizada da Bbliaencontra-se integralmente editada, estando ainda a ser publicadasalgumas seces da nova Bblia inglesa. Os livros a adquirir porcompra so solicitados ao Royal National Institute for the Blind(Moon Branch) em Inglaterra, que satisfaz pedidos, fornecendoinclusivamente catlogos impressos a tinta ou em relevo, de qualquerponto do mundo.-William Moon, profundamente religioso, animado por uma f evanglicaque diramos quase ingnua, decidiu fazer, desde muito cedo, do bem-estar das pessoas cegas o objectivo fundamental da sua vida. Comeoupor sobreviver a ensinar as pessoas cegas a ler, mediante um dosprocessos de leitura em relevo na altura existentes. E depressaverificou que a maior parte dos seus alunos era incapaz de decifraros caracteres e memorizar uma srie de sinais estenogrficos, razoque o levou a conceber o seu prprio sistema. Para justificar aeficcia do seu sistema exemplifica no seu dirio que um rapaz, queem vo se tinha esforado ao longo de cinco anos por aprender a leratravs dos outros sistemas, foi capaz, em dez dias, de ler frasesfceis.A sua f evanglica levou-o a trabalhar intensamente para as misses,o que motivou a adaptao do Sistema Moon a outras lnguas, podendoos missionrios utiliz-lo em 1880 em 194 lnguas. De 1847 at 1880,estereotiparam-se em Moon 13.000 matrizes e imprimiram-se cerca de125.000 volumes. Por volta de 1955, as estatsticas indicavam quecerca de 450 lnguas utilizariam o alfabeto moon. Presentemente,encontra-se confinado quase exclusivamente Inglaterra, em termos deutilizao.

III.3.2 - Alfabeto Mascar

Outro sistema de escrita e de leitura veio a ser criado, desta vez emPortugal, por Aniceto Mascar(1842-1906), mdico oftalmologistaespanhol.A ttulo sucintamente biogrfico, Mascar nasceu em Llad (Gerona, naCatalunha) em 1842 e faleceu em Lisboa, em Abril de 1906. Fez osestudos mdicos em Barcelona, especializando-se em oftalmologia.Partiu para a Amrica, alcanando grande xito na sua profisso nosEstados Unidos e em Cuba e, em 1870, veio para Lisboa, aqui fundouuma clnica de oftalmologia, onde, ao que consta, realizou curasprodigiosas, ampliando sempre os seus estudos. Fixou residncia naRua do Alecrim, n 201, morada em que veio a fundar o InstitutoMdico-Pedaggico para Cegos, em 1889, cuja placa ainda hoje l seencontra. E foi neste seu Instituto que Mascar ministrou benficostratamentos aos indivduos cegos, elaborou o seu mtodo de leitura ede escrita para pessoas cegas e normovisuais e se dedicou habilitao de professores para ensinarem o seu mtodo. Em 1898, oInstituto passa a editar tambm uma publicao peridica, designadapor Revista Mascar para Cegos e Videntes, cuja durao,periodicidade e quantidade de nmeros publicados se desconhecem.-O Mtodo de Mascar, para poder ser utilizado por pessoas cegas e porpessoas com vista, gizado com duas componentes: uma componentevisual, que consiste na acomodao das formas das letras maisculasao espao do rectngulo braille (como sabemos, de seis pontos); e acomponente tctil, que constituda por conjuntos de pontos doSistema Braille, conjuntos estes que tm uma relao de tipofigurativo mais ou menos estreita com as letras que representam,conforme podemos observar no quadro da pgina seguinte, no qual estexpressa a diferena entre o alfabeto Braille e o alfabeto Mascar.Preside constituio deste sistema uma poderosssima sugesto deforma conseguida por um conjunto de pontos que definem no essencial ocontorno dos caracteres latinos, umas vezes representando apenas oprincpio e o fim dos caracteres, outras vezes marcando somente asextremidades dos traos ou assinalando nos caracteres pontosconvencionalmente escolhidos. Mascar representava por este processoo alfabeto, os sinais de pontuao, de algarismos, de matemtica e asimbologia musical. Sabe-se que algumas pessoas aprenderam msica emlivros escritos em mascar, mas no h conhecimento at hoje de quetenham chegado aos nossos dias quaisquer textos musicais escritosnesse sistema.-O Sistema Mascar, tambm atravs de pontos registveis nas pautas enas mquinas mecnicas actuais, constitudo por uma maiorquantidade de pontos, numa percentagem que ultrapassa os 22% daquantidade de pontos necessrios no Sistema Braille. F. P. Olivasalienta, no seu artigo em referncia, duas desvantagens do alfabetomascar relativamente ao alfabeto braille: uma maior lentido naescrita dos textos mascar nas pautas, que eram os instrumentos deescrita por meio de pontos mais utilizados, e a reduo da velocidadede leitura, devido ao maior nmero de caracteres constitudos porquatro pontos, e mesmo mais, que dificultam o reconhecimento eidentificao rpidos dos smbolos tcteis.No que respeita bibliografia mascar existente, h apenasconhecimento de umas espcies escritas: uma segunda edio de umnmero, que parece ser o primeiro, da Revista Mascar para Cegos eVidentes, de Janeiro de 1898, e um Recueil de Prires, num volumede 57 pginas, que teria sido escrito em 1891 por Maria da Madre deDeus Pereira Coutinho.Este processo de escrita chegou a merecer favorvel acolhimento emcongressos internacionais, embora no tivesse passado de mais umacuriosa tentativa para possibilitar s pessoas cegas e normovisuais aleitura de textos, podendo aqueles utilizar o tacto e estes os olhos.Isto porque, provavelmente na sequncia das preocupaes de hsculos, pois, como se sabe, os esforos desenvolvidos ao longo detantos anos, para que os indivduos cegos pudessem ter apossibilidade de ler e de escrever, subordinaram-se quase sempre dominante preocupao de se adoptar um sistema utilizvelsimultaneamente por pessoas cegas e normovisuais.O certo que este sistema teve, afinal, tambm uma curta e efmeradurao. O seu autor, por incrvel que parea, quando fazia aapresentao deste seu mtodo num congresso internacional quedecorria em Lisboa, em Abril de 1906, foi acometido mortalmente poruma apoplexia. Com a fulminante morte de Mascar, que era condecoradopelo governo francs com o grau de Oficial da Ordem da InstruoPblica, finou-se tambm o seu Instituto Mdico-Pedaggico paraCegos, que funcionou na sua prpria casa, na Rua do Alecrim, n 201,em Lisboa, desde 1889 at data da sua morte.-

III.4 - A Tiflopedagogia de Branco Rodrigues e o Acesso das Pessoas Cegas ao Ensino Pblico

No contexto tiflopedaggico e, mesmo, tiflossocioprofissional nopodemos deixar de referir um emrito tifllogo, uma personalidadenotabilssima a que os indivduos cegos portugueses muito devem, otenaz, perseverante e generoso Jos Cndido Branco Rodrigues(1861-1926), tambm consagrado na toponmia de Lisboa, existindo uma ruacom o seu nome (Rua Prof. Branco Rodrigues), uma placa evocativa doseu nascimento no n 5 da Rua Luz Soriano e uma inscrio tumular noCemitrio dos Prazeres, atestando que os seus restos mortais ali seencontram depositados.Trata-se de uma figura de primeiro plano na tiflologia portuguesa e,paradoxalmente, ainda no desconhecimento da maioria das pessoascegas, mais ainda, bem entendido, das pessoas com vista.Branco Rodrigues nasceu em Lisboa a 18 de Outubro de 1861, no seio deuma famlia da alta burguesia lisboeta - no 2 andar do n 5 da RuaLuz Soriano, prdio da esquina desta rua com o Largo do Calhariz, emcuja entrada (no lado direito) se encontra a supra-referida placaevocativa em caracteres comuns e em braille descerrada em 18 deOutubro de 1991 pela Cmara Municipal de Lisboa e pela ACAPO (sobproposta desta Associao, tambm como homenagem