14468186 reserva de mercado de informatica no brasil 19711992
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ROBINSON NELSON DOS SANTOS
Reserva do mercado de informática: a experiência brasileira de 1971 a 1992
Monografia apresentada como trabalho final
da disciplina EDF5055 – Conhecimento e Mercadoria do Programa de Mestrado em Educação (Ensino de Ciências e Matemática) da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
SÃO PAULO 2008
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Introdução
A política de reserva do mercado brasileiro de informática é, por suas
implicações econômicas, sociais e diplomáticas, um marco singular da história recente
do Brasil. Foi engendrada durante a fase mais dura da ditadura militar, na presidência do
general Emílio Garrastazu Médici (1969-74); legalmente instituída quando o presidente
era o general João Figueiredo (1979-84); desafiada ao longo do mandato de José Sarney
(1985-89); e encerrada pela política liberal de Fernando Collor de Mello (1990-92).
Este trabalho pode ser compreendido como um quadro que apresenta os
principais fatos, atores e articulações da época compreendida entre o primeiro projeto de
construção de um computador nacional, iniciado em 1971, e o gradual desmantelamento,
em fins da década de 1980, da assim chamada Política Nacional de Informática, face a
pelo menos três fatores: 1) as pressões políticas e comerciais exercidas pelos Estados
Unidos; 2) uma complexa conjuntura interna de crise econômica; e 3) os desafios de
conciliar as novas vozes da sociedade civil, que voltavam a ser ouvidas após duas
décadas de repressão do regime militar iniciado em 1964. O saldo dessa aventura, como
veremos, convida à reflexão sobre as formas que um país como o Brasil, com tantos
desafios a vencer, pode se inserir nos processos globais de produção de ciência e
tecnologia – dos quais a educação é, inquestionavelmente, o fator-chave.
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1 - A encomenda da Marinha
A história das iniciativas brasileiras de domínio das tecnologias de informática é
relativamente antiga. Segundo Barbosa (1985), foi no Instituto Tecnológico da
Aeronáutica – ITA, em 1961, o primeiro esforço para a construção de um computador
nacional. O equipamento, batizado de Zezinho, foi construído por quatro alunos de
engenharia e teve basicamente aplicação didática. O Zezinho não resistiu ao tempo: suas
partes e peças foram aproveitadas em novos projetos.
Outra iniciativa ocorreria dez anos depois – e com fins bem mais utilitaristas. Em
1971, um projeto de US$ 2 milhões financiado por uma parceria entre a Marinha, o
BNDE e a Financiadora de Estudos e Projetos – Finep resultou no computador G-10,
elaborado em conjunto pela Universidade de São Paulo, que projetou o hardware, e a
Universidade Católica do Rio de Janeiro, responsável pelo software. É dessa época
também o “Patinho Feio”, computador de 8 bits projetado e construído pela Escola
Politécnica e que a capacitou para a construção do G-10 (Marcolin, 2002).
O interesse da Marinha no projeto era estratégico. Ela queria contar com uma
tecnologia alternativa aos computadores Ferranti que equipavam os navios de guerra
comprados da Inglaterra (Tapia, 1995). Por isso, o grupo responsável pelo projeto do G-
10 propôs o apoio do governo à formação de uma indústria nacional de eletrônica. Isso
acabou sendo efetivado em 1973, com a criação da empresa Eletrônica Digital Brasileira
Ltda. Em 1974, ela se torna uma sociedade anônima, com o nome de Digibrás S/A e
capital formado por diversas empresas estatais, ligadas ao governo federal.
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O governo federal viu também a necessidade de um órgão normativo que, além
de monitorar o projeto da Marinha, fosse capaz de definir uma política para o setor
(Tapia, 1995). Por isso, por meio do decreto 70.370 de 5 de abril de 1972, o presidente
Médici criou a Comissão de Coordenação das Atividades de Processamento Eletrônico –
Capre, subordinada ao Ministério do Planejamento.
Barbosa (1985) aponta que entre as razões iniciais para a criação da Capre
estavam a orientação da administração federal no uso da computação eletrônica, com a
catalogação do parque nacional instalado. Segundo Dytz (1985), que foi secretário-geral
da Secretaria Especial de Informática nos anos 1980, a missão original da Capre era
“racionalizar as compras e otimizar a utilização de computadores dos órgãos da
administração pública e de empresas vinculadas”.
Mas a crise do petróleo de 1973 fez com que essas funções fossem bastante
ampliadas. O desequilíbrio da balança de pagamentos do país, causado pela alta
repentina das importações, levou o governo federal a incluir em 1975, nas atribuições da
Capre, a análise dos pedidos de importação de equipamentos de informática. Dytz
(1985) explica que a medida foi necessária para “impedir importações desnecessárias,
até mesmo do setor privado”.
Em 1976, o decreto 77.118 de 9 de fevereiro de 1976, assinado pelo presidente
Ernesto Geisel, dá novas atribuições à Capre. Ela agora teria de estudar e propor as
diretrizes de uma política nacional de informática. Sua composição foi alterada,
recebendo em seu conselho representantes do CNPq, do Estado-Maior das Forças
Armadas, do Ministério das Comunicações, do Ministério da Educação e Cultura, do
Ministério da Fazenda e do Ministério da Indústria e Comércio.
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Havia ainda uma comissão consultiva, com representantes técnicos das empresas
estatais Serpro, Dataprev, Digibrás, Petrobrás, Cia. Vale do Rio Doce, BNDE, Fundação
IBGE e Telebrás. Tais mudanças deram à Capre uma representatividade significativa, o
que ajudaria a respaldar suas decisões futuras.
Apoiada nessa representatividade – e fundada na visão militar de que o domínio
da tecnologia dos computadores tinha valor estratégico para o país –, a Comissão propôs
a criação de uma indústria brasileira de computadores. A iniciativa ganhou status de
urgência diante do avanço das multinacionais que dominavam o mercado das máquinas
de grande porte – e que já mostravam apetite para mercados menores. Foi nessa época
que a norte-americana IBM lançou no Brasil o sistema /32, de médio porte, um sério
concorrente para os minicomputadores que o Brasil queria desenvolver (Tapia, 1995).
2 - O Estado, regulador do mercado
A estratégia da Capre para o setor era simples e podia ser resumida em três
medidas: 1) o controle da importação, necessário para proteger a nascente indústria
nacional de computadores; 2) a criação de uma empresa estatal de computadores, a
Cobra – Computadores Brasileiros, que deveria servir de modelo para o setor; 3) a
adoção de um sistema de proteção que reservasse o mercado de micro e
minicomputadores e seus periféricos para empresas nacionais selecionadas, com
tecnologia brasileira. E, como lembra Tapia (1995), sem mencionar o termo “reserva de
mercado” – pois já se sabia, à época, que isso poderia trazer prejuízos à imagem do país.
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Para dar início ao projeto de forma acelerada, a Capre elaborou um plano
progressivo de nacionalização e permitiu que empresas privadas nacionais costurassem
acordos com grupos estrangeiros para ter acesso a tecnologia. A Cobra, que foi criada
com participação e tecnologia da inglesa Ferranti, apontaria o caminho à indústria
nascente – um modelo dirigido pelo Estado e que, segundo Barbosa (1985), já havia sido
trilhado por diversos governos europeus, como França, Inglaterra e Alemanha.
Mas a Capre foi além. A Comissão também definiu os critérios que permitiriam
quais empresas nacionais estariam aptas a fabricar bens de informática no Brasil. A lista
de critérios levava em conta: 1) a tecnologia local; 2) o uso de componentes fabricados
no país; 3) o grau de participação do mercado pela empresa (visto como uma forma de
combater monopólios); 4) a origem do capital, que deveria ser brasileira; 5) a balança de
comércio exterior, que deveria ser favorável ao Brasil.
Baseada nesses critérios, a Capre elegeu quatro empresas que, junto com a
Cobra, seriam consideradas a “linha de frente da indústria nacional de computadores”: a
Edisa, com tecnologia Fujitsu;, a Labo, com tecnologia Nixdorf; a Sisco, com tecnologia
Data General; e a Sid, com tecnologia Logabax (Barbosa, 1985). Os critérios de seleção
foram seguidos de forma bastante estrita entre os anos de 1976 e 1977 e acabaram
excluindo as multinacionais do emergente mercado brasileiro de minicomputadores.
Barbosa lembra que, nessa época, as grandes do setor, como IBM e Burroughs (atual
Unisys), exerciam forte pressão para trazer seus sistemas de menor porte. E afirma que,
na prática, essa decisão representou um “divisor de águas na história da indústria de
informática no Brasil”: foi o início, de fato, da reserva de mercado da informática.
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O fato de a política ter sido conduzida por governos militares não foi garantia de
um processo tranqüilo. Na primeira chamada às indústrias privadas realizada pela Capre,
apenas duas empresas, a estatal Cobra e a multinacional IBM, apresentaram projetos de
fabricação de minicomputador. Baseada nos critérios que ela mesmo estabeleceu, a
Capre aprovou o da Cobra e indeferiu o da IBM (Tapia, 1995). Numa segunda chamada,
foram apresentados 16 projetos, e Sharp/Sid, Edisa e Labo foram as vencedoras. Para a
IBM, a Capre, numa atitude que se repetiria outras vezes, não disse que sim, nem não –
simplesmente adiou indefinidamente a decisão sobre seus sistemas de médio porte.
3 - O engajamento dos técnicos e a criação da SEI
A indústria nascente de informática formou no seu entorno um grupo entusiasta e
politicamente engajado, formado por técnicos e cientistas, que por muitos anos serviria
de conselheiro para assuntos relacionados à política do setor. Sabemos por Tapia (1995)
que, entre 1974 e 1978, “a bandeira da autonomia tecnológica” seduzia cada vez mais
essa categoria, até que em 1978 um grupo ligado ao partido MDB, de oposição ao
governo, fundou a APPD – Associação dos Profissionais de Processamento de Dados.
Parte do quadro da APPD era de pessoas vindas de universidades, como ITA e PUC;
estatais, como a Embratel, Serpro e Cobra; e até de multinacionais, como IBM e
Burroughs. Conforme detalha Tapia (1995), essas pessoas costuraram alianças de
conveniência com os militares nacionalistas e seriam ouvidas com freqüência pelos
centros de decisão dentro do governo.
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Em certa medida, esses setores tiveram influência na decisão do presidente João
Figueiredo de substituir a Capre pela Secretaria Especial de Informática – SEI, conforme
decreto 84.067 de 8 de outubro de 1979. Subordinada ao Conselho de Segurança
Nacional – sinal de que sua atuação teria um tom bastante centralizador –, a SEI tinha
como secretário um civil nomeado pelo próprio presidente da República e, para
assessorá-lo, uma Comissão composta por dez representantes do governo e até quatro
representantes do setor privado, nomeados pelo secretário-geral do Conselho de
Segurança Nacional.
Tal como a Capre, a SEI ganhou diversas atribuições. Era preciso elaborar e
executar um Plano Nacional de Informática; manifestar-se sobre contratos de
transferência de tecnologias e pedidos de patentes; estabelecer critérios de similaridade
de produtos e fazer um cadastro das empresas do setor, acompanhando seus produtos,
controle acionário e tecnologia. Dytz (1985) ressalta que a intenção maior da SEI era “o
desenvolvimento científico e tecnológico do setor (...) [e] perseguir a capacitação
nacional do desenvolvimento e produção de equipamentos, de software e de serviços de
informática, até seus insumos, como a microeletrônica”. É da época da SEI, por
exemplo, a criação do Centro Tecnológico para Informática – CTI, em Campinas (SP).
A SEI passou então a ser responsável por todo o programa nacional de
informática, e também tinha o poder de autorizar a importação de peças e equipamentos
– a fórmula nacional que permitia realizar a reserva do mercado no setor, sem explicitá-
la. É digno de nota que o governo optou por deixar de fora o setor das telecomunicações,
cujas políticas continuaram a ser conduzidas pelo Ministério das Comunicações. Em
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outros países, como Alemanha, França e Japão, as telecomunicações eram parte
integrante dos seus respectivos programas de informática (Barbosa, 1985).
Cumprindo uma de suas atribuições – a de implantar uma política de informática
–, a SEI publicou farta normatização ao longo dos anos 1980. Essas regras, conhecidas
como Atos Normativos, marcariam um controle cada vez mais rígido sobre a informática
brasileira: era preciso, por exemplo, que as empresas registrassem a industrialização no
país de diversos tipos de máquinas eletrônicas; para fabricá-los, era preciso também
atender a condições prévias, como ter como donos cidadãos brasileiros residentes no
Brasil e usar tecnologia comprovadamente desenvolvida no país; as licitações públicas
de equipamentos de informática deveriam dar prioridade a alternativas nacionais de bens
e serviços de informática; entre outras.
Uma demonstração da severidade que norteava a ação da SEI naquela época foi a
troca de comando promovida em setembro de 1982, quando o coronel Joubert de
Oliveira Brízida substituiu Octávio Gennari Netto. Pelo decreto que criou a SEI, o titular
do cargo deveria ser um civil. Mas uma alteração, feita pelo decreto 87.583 (de
20/09/82), permitiu a nomeação de um membro do Conselho de Segurança Nacional,
que poderia ser um militar. Entre as especulações da troca de comando estavam “o
descontentamento de setores das Forças Armadas, que cobravam de Gennari Netto uma
posição mais firme na defesa dos interesses nacionais” (Bits, 1982).
Ao mesmo tempo em que impunha maior energia à SEI, o Brasil via sua
possibilidade de investimentos se deteriorar, diante do estrangulamento causado pela
crise econômica do início dos anos 1980. Citando Barbosa (1985), em 1980 o secretário
nacional de informática Octávio Gennari Neto declarou que o governo precisaria investir
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cerca de 200 milhões de dólares no setor: “Não é para fazer nada relevante, mas para
impedir apenas que a defasagem tecnológica aumente”. Até 1985 esses investimentos
ainda não tinham sido feitos, do que Barbosa concluiu que “não há como esperar, ao
menos para os próximos anos, que ocorra realmente desenvolvimento de tecnologia
nacional na área de informática”.
Barbosa destaca, com base no panorama de 1985, que os beneficiados com a
política de informática acabaram sendo, fundamentalmente, os grupos econômicos aos
quais as principais indústrias estavam ligadas na década de 1980. Como exemplos, cita a
Labo-Unibanco, a Edisa-Banco Iochpe, a SID-Brasdesco e a Sisco-Grupo Maksoud. O
autor justifica: “Para uma economia em recessão, como a do Brasil, a indústria de
informática, ao oferecer a possibilidade de aumento das taxas de lucratividade para as
empresas que atuam nesse mercado, desperta também o interesse do capital bancário”.
Críticas que, de certa forma, ecoavam a opinião dos opositores da reserva, como o
senador Roberto Campos, que apontava: “o que temos é uma reserva de mercado não
para os produtores nacionais, mas para certos produtores nacionais (...) escolhidos pela
tecnocracia (...) que substitui a decisão que normalmente caberia ao mercado” (Campos,
1985). Voltando a Barbosa (1985), constatamos que, àquela época, “as indústrias locais
que haviam prometido desenvolver tecnologia própria dentro de um prazo de cinco anos
não cumpriram a promessa, o que beneficia ainda mais os grupos econômicos”.
Não que não houvesse resultados. Na Feira de Utilidades Domésticas de 1980,
em São Paulo, a empresa Dismac lançou o D-8000, o primeiro microcomputador
nacional, com processador Z-80 de 2 MHz, 32 Kbytes de memória e gravador cassete
embutido, para armazenamento de programas (Campos, 1981). Um ano depois, em
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janeiro de 1982, o D-8000 era vendido por 390 mil cruzeiros nas prateleiras do Mappin,
uma grande loja de departamentos de São Paulo. Em 1981, na 1.a Feira Internacional de
Informática, dois outros micros chegariam ao mercado: o NE-Z80 (Cr$ 60 mil),
elaborado pela equipe técnica da revista Nova Eletrônica e comercializado pela
Prológica, e os TK-80 (Cr$ 70 mil) e TK-82 (Cr$ 80 mil), da Microdigital Eletrônica.
Inspirados em modelo da inglesa Sinclair Research, ambos usavam processador Z-80 e
tinham memórias com capacidade de 1 ou 2 Kbytes (Noronha, 1982).
Também em 1981, a SEI aprofundava sua política desenvolvimentista autóctone
ao escolher, para fabricação de componentes de microeletrônica, as empresas Itaú, SID e
Docas de Santos.
4 – As pressões contra a reserva
Apesar dos lançamentos antecipados da Dismac e da Microdigital, foi só em
janeiro de 1982 que a SEI, por meio de Ato Normativo 16/81, convocou empresas
brasileiras a apresentar projetos para a fabricação de “microcomputadores de uso
pessoal, de uso doméstico e para entretenimento” (Bits, 1983). O projeto era marcado
pela verticalização: tinha de ser acompanhado por detalhes do planejamento da
produção, incluindo a seleção e o desenvolvimento de fornecedores locais de periféricos,
além de comprovar a disponibilidade de software para as aplicações previstas.
No fim desse mesmo ano, a SEI convocou novas empresas interessadas em
participar de um mercado, em teoria, bem mais saboroso: a fabricação de “supermínis”.
Foi a fórmula encontrada para capacitar a industria nacional a produzir equipamentos de
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maior porte, já que a primeira geração de minicomputadores nacionais caminhava para a
obsolescência. Ao mesmo tempo, a atuação das empresas brasileiras restringiria a
penetração da IBM nesse mercado. Mas foi justamente o poder de fogo da IBM nesse
segmento que desencorajou a indústria nacional a embarcar nos interesses do governo –
e note-se que a IBM chegou a oferecer o licenciamento de sua tecnologia a parceiros
locais. A SEI também procurou incentivar a exportação de bens de informática
produzidos no Brasil, inicialmente para a América Latina e posteriormente para a África
e o Oriente Médio. Em 1982, segundo dados oficiais, o setor, embora tenha faturado
US$ 1,8 bilhão, exportou meros US$ 200 milhões (Bits, 1985).
As pressões externas não cessavam, mas eram rebatidas com um entusiasmo
nacionalista cada vez mais intenso – e, em tempos de abertura democrática, o fórum
dessa discussão passou a ser o Congresso Nacional. Em junho de 1983, o Senado
abrigou um simpósio de informática que refletiu o apoio de praticamente todos os
partidos e associações de informática à política da SEI. Nesse evento, o secretário de
informática Joubert Brízida sustentou que seria melhor não haver projeto de lei
explicitando a reserva, pois isso poderia gerar “problemas para o comércio exterior do
país” (Bits, 1983). O clima, no entanto, era de explicitação da reserva. Como exemplo,
vale citar a posição oficial do governo do Estado de São Paulo. Em junho de 1984, o
governo de oposição de Franco Montoro posicionou-se publicamente a favor da reserva
de mercado, classificando-a “não como ação xenófoba, mas sim um ato de soberania”. À
imprensa, o governo estadual declarou que “o Brasil (...), contando com um amplo
mercado interno, deve reserva-lo em favor das empresas nacionais que gerem tecnologia
e aumentem o nível de atividades” (Bits, 1984).
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O setor se articulava. Nessa época, além da APPD, a aliança em torno da política
de reserva de mercado incluía uma associação de empresários, a Abicomp – Associação
Brasileira da Indústria de Computadores e Periféricos, e segmentos da SBC – Sociedade
Brasileira da Computação. Ao mesmo tempo, a política de transição democrática para
um governo civil (que começou com a lei da anistia, em 1979, e que seria completada
em 1985) abriu espaço para que mais grupos, contra e a favor da reserva, ganhassem
voz. Tapia (1995) lista no grupo contrário à reserva de mercado a Fiesp, o Ministério das
Comunicações, a Suframa – Superintendência da Zona Franca de Manaus e os jornais
“O Estado de S.Paulo”, “O Globo” e “Jornal do Brasil”. E a questão nem parecia ter
chegado às camadas mais populares. Em julho de 1983, uma pesquisa feita na cidade de
São Paulo pela agência de publicidade Alcântara Machado Perscinotto apontava que
praticamente ninguém sabia que o Brasil produzia computadores, só 0,5% tinha
computador em casa e 57% dos entrevistados não tinha interesse em ter um.
Em termos de política externa, o agravamento da crise econômica de 1981-82
nos Estados Unidos fez com que o governo daquele país passasse a ver o Brasil como
potencial consumidor de seus produtos de tecnologia, e a reserva brasileira de mercado
entrou para a agenda política daquele país. Em 1982, na visita do presidente Ronald
Reagan ao Brasil, os americanos já insistiam na criação de um fórum para a discussão da
política nacional de informática. O Departamento do Comércio norte-americano chegou
a divulgar um documento onde afirmava que a política oficial brasileira incorporava
“uma tendência contrária às multinacionais e a toda forma de investimento estrangeiro”
e que a SEI aplicava um “conceito restrito de empresa nacional” (Tapia, 1995). Os
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americanos, aproveitando-se da economia frágil da época e da crescente contestação do
governo militar, buscavam concessões do governo brasileiro, sustenta Tapia.
5 – A Lei de Informática
À época, o presidente da Abicomp, Edson Fregni, alertou para o surgimento de
uma classe de “empresários piratas”, que simplesmente copiavam tecnologia obtida no
exterior, exigindo da SEI uma “atitude firme e vigilante” – policiamento que a SEI, por
falta de pessoal e estrutura, nunca foi capaz de fazer (Tapia, 1995). Mas a pressão surtiu
efeito: Fregni, que ajudou a montar o “Patinho Feio” da Poli/USP e era dono da Scopus
Tecnologia (Peixoto, 2002), obteve da SEI o Ato Normativo 27 da SEI, que impunha
barreiras contra a pirataria e exigia do fabricante do microcomputador o
desenvolvimento, também, do sistema operacional.
A questão da pirataria – e das estimativas das perdas financeiras que ela traria –
seria retomada várias vezes. Um exemplo: em junho de 1985, a empresa de software
norte-americana Lotus enviou um representante ao Brasil. Em conferências à imprensa,
o executivo Stephen Khan manifestou preocupação com a pirataria de software. Citando
números dos EUA, Khan disse que, de 1981 a 1984, as produtoras de software deixaram
de ganhar US$ 1,3 bilhão por causa do mercado pirata (Bits, 1985).
Os argumentos não chegavam a sensibilizar o comando da política nacional de
informática. Em 1985, o secretário-executivo da SEI, coronel Edison Dytz, diria em que
“o Brasil possui hoje a única indústria endógena, do Ocidente não industrializado, que
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movimenta considerável montante de recursos”, com “60% do mercado das empresas
brasileiras suprido com produtos desenvolvidos no país” (Dytz, 1985).
Independentemente da posição do governo, teve início a onda de litígios
comerciais na área de informática. O primeiro deles terminou a favor da empresa
brasileira. Em 1982, a inglesa Sinclair processou a empresa Microdigital, acusando-a de
cópia do circuito elétrico, do teclado e do software básico do microcomputador ZX-81,
que serviu de base para a produção do TK-82, da Microdigital. A apreensão e análise,
pela Justiça brasileira, de um exemplar do TK-82 resultou em um laudo que comprovava
a cópia. No entanto, uma nova perícia, feita a pedido da Microdigital, concluiu que o
software básico era parte da máquina e que já havia teclados semelhantes de diferentes
fabricantes antes que a Microdigital os fabricasse. O detalhe curioso veio da análise da
memória ROM, que armazenava o sistema básico: a conclusão da perícia foi que as
combinações da memória ROM são finitas e que seu conteúdo não é idêntico ao do da
Sinclair. A Sinclair teve que pagar os custos do processo e os honorários dos peritos
(Bits, 1985).
A abertura política deixou claro, para alguns, que a sobrevivência da informática
brasileira dependeria da desmilitarização do setor, e o Congresso Nacional seria o
instrumento adequado para legitimar essa política. Em 1984, diversos projetos de lei
tentaram regulamentar a política de informática, com versões que ora reforçavam, ora
extinguiam a reserva – e o próprio governo Figueiredo submeteu a sua versão. Em meio
à discussão sobre os projetos, a Abicomp lançou na USP, em São Paulo, o Movimento
Brasil de Informática - MBI (curiosamente, IBM ao contrário), com um manifesto
intitulado “Em defesa da tecnologia nacional”.
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Em 1984, por decurso de prazo (Ferreira, 1993), o projeto de lei proposto pelo
governo é aprovado. O Congresso Nacional decreta a lei 7.232 (29/10/1984) – a Lei de
Informática –, que estabeleceu os princípios da Política Nacional de Informática e criou
o Conselho Nacional de Informática e Automação – Conin, cujo presidente era o próprio
presidente da República. A missão manifesta da Política Nacional de Informática incluía
agora, entre outros itens, a proibição da criação de situações monopolistas e a
intervenção estatal para assegurar a produção nacional de determinadas classes e
espécies de bens e serviços. Entre os trechos que seriam mais combatidos estavam o
Artigo 12, que definia empresa nacional, e o prazo previsto em lei, de oito anos, para a
duração do controle das importações de bens e serviços de informática, o que levaria a
reserva a até 1992.
6 - O contencioso Brasil - Estados Unidos
Enquanto a formalização da reserva de mercado na informática ainda estava no
nível do debate, os Estados Unidos preferiam exercer pressões diplomáticas. Em
setembro de 1985, no entanto, quase um ano depois de a Lei de Informática ter sido
aprovada, os Estados Unidos decidiram abrir um processo contra o Brasil baseado na Lei
do Comércio, acusando o país de práticas desleais de comércio internacional.(Tapia,
1995:175). A disputa, conhecida pela designação oficial de contencioso, durou até 1988,
com reflexos importantes sobre o destino da política nacional de informática.
O primeiro passo da ação norte-americana consistiu em consultar o Gatt (Acordo
Geral de Tarifas) sobre “a adequação da legislação brasileira”. Os EUA queriam incluir
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nos termos do Gatt software e serviços. Ao mesmo tempo, na data simbólica de 7 de
setembro de 1985, o presidente Ronald Reagan decidiu solicitar ao United States Trade
Representative (USTR) a abertura de um processo de investigação sobre a política
brasileira de informática.
Oficialmente, entre as razões para abertura do processo estavam a aprovação e a
regulamentação da Lei de Informática 7.232/84. Além disso, pesava a posição do Brasil,
contrária à inclusão dos serviços no Gatt; o aumento do déficit americano nas relações
comerciais com o Brasil (Tapia, 1995:178).
Inicialmente, Tapia (1995) lembra que a ameaça americana fez reforçar o
sentimento nacionalista e de defesa da política de informática. No entanto, à medida que
as ameaças de retaliação comercial iam-se tornando mais reais, a coesão inicial daria
lugar a cisões profundas na política interna.
Os argumentos do Brasil foram então apresentados ao USTR pela Abicomp. Em
resumo, a entidade enumerara as seguintes razões: 1) o Brasil tinha direito a defender
sua “indústria infante”; 2) não era objetivo da política de informática concorrer no
mercado interno americano e sim capacitar tecnologicamente o país; 3) a Lei de
Informática tinha sido aprovada pelo Congresso Nacional e representava a vontade do
país. Os norte-americanos, no entanto, receavam que as medidas protecionistas aplicadas
à informática pudessem se alastrar para outros setores, como software, biotecnologia e
química fina. Além disso, temiam a restrição aos investimentos estrangeiros no Brasil.
(Tapia, 1995:179).
A posição brasileira, anunciada em 1986, foi a de aceitar discutir o tema, mas sob
as regras do Gatt e não do Trade Act norte-americano. Tapia (1995) lembra que, na
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primeira reunião, em Caracas, na Venezuela, os representantes americanos disseram
claramente que o que eles queriam discutir era a questão da proteção ao software. Os
EUA queriam que o Brasil adotasse para o software a mesma proteção do copyright –
tema que ainda estava em discussão no Congresso Nacional.
Ao mesmo tempo, setores exportadores brasileiros colocavam-se a favor de uma
flexibilização na lei de Informática, tendo em vista a ameaça de sanções comerciais por
parte dos Estados Unidos. À época, o Departamento de Comércio norte-americano
projetava perdas de US$ 8,1 bilhões entre 1985 e 1992, causadas pela política de
informática e por pirataria de software.
Em maio de 1986, os EUA decidiram rever sua agenda de negociação e,
abandonando o ataque frontal, focaram sua atenção no entendimento das regras
implementadas pela Lei de Informática de 1984. Em um encontro posterior, os EUA
abriram ao Brasil sua lista de reivindicações, entre elas estavam:
1) que a Lei de Informática expirasse em 1992;
2) que a SEI tornasse claras as regras para apelação de suas decisões;
3) que o Brasil descrevesse com minúcias quais produtos estariam incluídos na
reserva de mercado;
4) que o software fosse protegido por copyright;
5) que não houvesse distinção entre empresa nacional e estrangeira.
Diante das novidades trazidas pelas eleições de 1986, quando o Congresso seria
renovado, os Estados Unidos decidiram não promover nenhuma ação retaliadora até
junho de 1987. No entanto, a difícil situação econômica do Brasil não ajudaria à
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consolidação da Política Nacional de Informática, vista como incômoda pelos agentes do
governo responsáveis pelas negociações com os EUA (Tapia, 1995:190).
7 - O processo de flexibilização
O primeiro ponto a ser questionado foi a definição de empresa nacional, tal como
disposta no Artigo 12 da Lei de Informática. Em dezembro de 1986, a Fiesp solicitou ao
governo que flexibilizasse essa definição, de forma a facilitar joint ventures1.
No mês seguinte, em janeiro de 1987, os Estados Unidos divulgaram uma lista de
26 produtos brasileiros que perderiam o benefício de tarifas de importação mais baixas –
isso apesar de terem prometido não retaliar o país.
Em 25 de junho de 1987, a Câmara dos Deputados aprovava a Lei de Software.
No dia 30 do mesmo mês, os Estados Unidos anunciavam que não iriam mais retaliar o
Brasil. A mudança na posição americana deveu-se, segundo Tapia (1995), a concessões
brasileiras, que se deram da seguinte forma:
1) a Lei de Informática não seria estendida após 1992;
2) aceita-se o copyright para proteção de software;
3) permite-se mais associações entre empresas nacionais e estrangeiras da área
de informática, de formas mais flexíveis.
O problema estaria encaminhado, não fosse a decisão da SEI de recusar o
registro do sistema operacional MS-DOS, da Microsoft, sob a alegação de que havia um
similar nacional – o Sisne (Sistema Nacional Equivalente), da Scopus de Edson Fregni.
1 Joint venture: associação não-permanente entre empresas, com fim de lucro.
20
Embora não houvesse indeferido o pedido, na prática a SEI adiava a decisão, dando a
entender que não permitiria seu registro no país.
Pelo menos cinco fabricantes nacionais preferiam a solução da Microsoft. Cobra
e Scopus, por outro lado, tinham investido tempo e recursos no desenvolvimento de seus
produtos, ambos baseados em padrões internacionais (Cobra SOX, baseado no Unix, e
Scopus Sisne, baseado no MS-DOS). A situação tornou-se mais crítica quando o pedido,
feito pela Itautec, de licenciamento do Unix (que, na época, era de domínio da gigante
americana das telecomunicações AT&T) foi indeferido a pedido do governo norte-
americano, em contrapartida ao fato de o Brasil não ter licenciado o MS-DOS.(Tapia,
1995:193). Diante do impasse criado pela decisão da SEI, a Microsoft adotou como
estratégia apelar para a justiça comum. Acusou a Scopus de “piratear” o MS-DOS,
citando rotinas semelhantes aos dois programas. Quando a Scopus admitiu semelhanças
e mudou as rotinas, a Microsoft voltou à justiça, alegando que os dois programas eram
incompatíveis e que, portanto, o MS-DOS podia ser registrado. (Tapia, 1995:194).
O veto definitivo da SEI ao MS-DOS veio em outubro de 1987, baseado no
conceito de similaridade da Lei de Software – que, àquela altura, ainda não havia sido
aprovada pelo Congresso. Esse vácuo legislativo foi aproveitado pela Microsoft, que
acusou a decisão de “juridicamente inconsistente” em comunicado à imprensa. Ao
mesmo tempo, o governo americano voltou a divulgar que seriam aplicadas sobretaxas a
diversos produtos brasileiros, sem especificar quais.
Como não poderia deixar de ser, a ameaça de retaliação movimentou a indústria
exportadora brasileira, tendo ocorrido pelo menos um encontro entre representantes
diplomáticos dos EUA e diretores da indústria calçadista do Brasil. Meses mais tarde, a
21
Fiesp alertava que as indústrias de suco, de calçados e de aviões poderiam ser atingidas
pelas retaliações. A entidade lembrou ao governo que essas retaliações poderiam
prejudicar ainda mais o pagamento da dívida externa.
As sanções vieram em 13 de novembro de 1987, bem como a proibição de
importação, pelo Brasil, de determinados componentes de computador, por causa de
uma decisão “que proíbe as companhias americanas de participarem do mercado
brasileiro de software” (Tapia, 1995:197). No mesmo mês, a SEI mudava de posição.
Não iria mais exigir dos fabricantes de hardware o desenvolvimento de software básico,
categoria na qual se inclui o sistema operacional. A decisão oficial de liberar o MS-
DOS, contudo, só veio em janeiro de 1988, em uma deliberação do Conin.
Tapia (1995) nos revela que o fim do contencioso se deveu a três principais
concessões feitas pelo Brasil em benefício dos EUA: 1) a liberação do MS-DOS; 2) a
não permissão da fabricação do Mac 512, clone do Apple Macintosh desenvolvido pela
empresa paulista Unitron (que a havia solicitado ainda em 1985); 3) a não imposição de
taxação à importação de software estrangeiro. O contencioso foi encerrado pelos Estados
Unidos oficialmente em 20 de junho de 1988.
8 - A Lei de Software e o desmonte da reserva
Em 1988, o decreto 96.036, de 12 de maio e assinado pelo presidente José
Sarney, regulamentou a lei 7.646 de 18/12/1987, a Lei de Software, sobre a propriedade
intelectual de programas de computador – que, como sugeriram os Estados Unidos, se
basearia na legislação de direito de autor (decreto 5.988 de 14 de dezembro de 1973). O
22
decreto ainda condicionava, no entanto, o registro de softwares à análise de similaridade,
que seria atendida mediante critérios de funcionalidade e compatibilidade, e previa
tratamento diferenciado à empresa nacional. Nesses termos, o cadastramento de
programa estrangeiro só seria concedido se não houvesse programa similar feito por
brasileiros. Caberia à SEI analisar e deferir o cadastramento de programas de
computador, e eventuais recursos deveriam ser julgados pelo Conselho Nacional de
Informática e Automação – Conin.
A lei 7.646 garantia a tutela dos direitos sobre programas de computador por 25
anos, contados a partir de seu lançamento em qualquer país. Mas os direitos da lei só
seriam aplicados a software estrangeiro se o país de origem desse software assegurasse
direitos equivalentes. Além disso, as empresas que comprassem software desenvolvido
por empresa nacional poderiam, nos casos autorizados pela SEI, deduzir o dobro de seu
valor como despesa operacional. E mais: pelo artigo 7, não constituiria ofensa ao direito
de autor de programa de computador a “reprodução de cópia legitimamente adquirida”.
Para muitos, a fragilidade da lei estaria justamente nos trechos em que ela define
equivalência funcional. Pelo texto, dois programas seriam equivalentes se:
I) fossem originais e desenvolvidos separadamente;
II) tivessem, substancialmente, as mesmas características de desempenho,
considerando a aplicação a que se destinavam;
III) operassem em equipamento similar e em ambiente de processamento
similar.
Tapia (1995) conta que, a partir de 1987, as discussões sobre o papel do Estado
na economia, o capital estrangeiro e o modo que o Brasil deveria se inserir na economia
23
global foram ganhando destaque, principalmente por causa dos debates promovidos pela
Assembléia Constituinte – o corpo de deputados federais e senadores que, eleitos em
1985, tomaram posse em 1986 com a missão de reescrever a Constituição brasileira.
Para Tapia, o que houve foi uma “mudança no clima ideológico entre 1988 e 1990”.
Neste período, as classes empresarial e politica teriam reconhecido o alto custo de uma
política industrial protecionista e baseada na substituição de importações.
Esse custo se refletiria, por exemplo, no legado de uma indústria brasileira que,
voltada apenas para o mercado interno, mostrou-se tecnologicamente defasada no
começo da década de 1990. Por outro lado, reconheceu-se a incapacidade de o Estado
formular e aplicar políticas industriais, face à crise econômica que enfrentou nos anos
1980. Nessa fase, o governo federal decidiu mudar o enfoque de sua política industrial,
baseando-a em incentivos ao desenvolvimento e à produção local, sem se importar com
a origem do capital, se nacional ou estrangeiro. Nessa época ocorreu também o que
Tapia chamou de “redefinições das lealdades de mercado”: se, entre as décadas de 1970
e 1980, as empresas multinacionais eram impedidas de participar do mercado, a partir de
1988 ocorreu uma confluência de interesses entre as empresas nacionais, que buscavam
parceiros tecnológicos no Exterior, e as multinacionais, que se adaptaram às regras
locais e aceitaram participar de alianças comeciais, como as joint ventures. Duas
associações simbólicas foram a do Grupo Itaú com a IBM, para a produção dos sistemas
de médio porte AS/400, em 1989; e a da Elebra Informática com a Digital Equipment
Corporation, para a fabricação do minicomputador VAX, também em 1989.
Nesse contexto, segundo Tapia (1995), os argumentos de defesa da manutenção
da reserva de mercado só se mantiveram porque eram utilizados pela indústria nacional
24
como instrumento de barganha junto às corporações multinacionais interessadas em
participar do mercado brasileiro.
No último ano de seu mandato, em janeiro de 1989, o presidente Sarney extingue
seis ministérios, entre eles o da Ciência e Tecnologia, ao qual a SEI era subordinado. A
autarquia ficou sob o Ministério do Desenvolvimento Industrial, Ciência e Tecnologia.
A essa altura, a SEI já não tinha tanto poder: ainda em 1988, em maio, o presidente José
Sarney havia assinado decretos que dispensavam a anuência da SEI nas decisões de
implantação de novas fábricas de produtos de informática no Brasil (Ferreira, 1993). A
SEI seria extinta definitivamente pelo decreto 99.618, de 17 de outubro de 1990,
assinado pelo presidente Fernando Collor. Pouco tempo antes, em junho desse mesmo
ano, o Conin havia deliberado sobre a liberação de importações de produtos de
informática, determinando que, se um produto brasileiro custasse mais de 2,8 vezes o
preço de um similar importado, a importação seria permitida automaticamente (Ferreira,
1993). A reserva de mercado foi mantida até 29 de outubro de 1992, prazo reforçado
pela Lei 8.248, de 1991, que revogava diversos artigos da Lei de Informática.
Já a lei 7.646 – a Lei do Software – seria revogada pelo presidente Fernando
Henrique Cardoso, em 1998. A lei 9.609, hoje em vigor, foi sancionada em 19/02/1998.
Ela determina que o registro de proteção à propriedade intelectual de programa de
computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e
conexos vigentes no país, assegura a tutela dos direitos relativos a programas de
computador pelo prazo de 50 anos e acaba com a necessidade de registro.
25
Conclusão
Podemos identificar neste trabalho a segmentação proposta por Tapia (1995), que
percebe três evoluções distintas da condução da política de reserva de mercado de
informática no Brasil. A primeira, que vai de 1971 a meados de 1983, é marcada por
forte intervenção do Estado; na segunda, que compreende o período de 1984 a 1988,
evidencia-se a dissolução das forças que sustentaram a primeira fase; e a terceira, que
vai de 1988 a 1992, é marcada pelo avanço crescente de políticas liberais.
Nota-se que a Universidade, como campo de ciência e difusora de tecnologia, foi
uma das protagonistas da primeira fase, quando participou ativamente do projeto e da
construção do primeiro computador brasileiro, o G-10. É desta época também a criação
do Centro Tecnológico para Informática – CTI, próximo ao campi da Universidade
Estadual de Campinas – Unicamp. Entre suas finalidades estavam “incentivar e orientar
a pesquisa científica em centros universitários” (Dytz, 1985). Mas, apesar do empenho e
da capacitação de desenvolvimento de tecnologia demonstrada pelo setor acadêmico2, a
indústria adotou como modelo a clonagem de computadores disponíveis no Exterior –
um divórcio cujas origens podem, talvez, ter relação com a pressa, manifestada pelas
empresas, por soluções que atendessem ao mercado. Em alguns casos, o que ocorria era
a mera montagem local, como nos diz Barbosa (1985) sobre os supermínis: “Quanto ao
desenvolvimento de tecnologia própria, é improvável que isto venha a ocorrer (...). A
tendência será a de seguir os mesmos passos dos micros e minicomputadoes, ou seja,
que se continue fazendo a montagem dos equipamentos”.
2 Tomamos conhecimento, em Ferreira (1993), que em 1987 a USP desenvolveu o protótipo de um minissupercomputador, o MS-8701, cuja comercialização seria delegada à Itautec, do Grupo Itaú.
26
Em carta aberta escrita na forma de livreto, Setúbal (1985) disseca a apropriação
de uma tecnologia em quatro domínios:
a) tecnologia de projeto;
b) tecnologia de fabricação;
c) tecnologia de mercado;
d) tecnologia de uso.
Sua crítica ao modelo vigente na época foi de que o governo enfatizou o domínio
das tecnologias de fabricação, com a intenção de que as empresas passassem a dominar
as tecnologias de projeto. Mas, já naquela época, notava-se que o domínio das
tecnologias de mercado não havia recebido a atenção necessária. A proposta de Setúbal
consistia em políticas “transparentes” para a admissão de empresas no mercado de
informática (uma crítica à escolha, dirigida pelo governo, de produtos e parceiros) e na
adoção, pelas empresas nacionais de informática, de um sistema de cooperação
tecnológica na área de software básico e de aplicativos, para ampliar mercado e reduzir
custos (a Itautec, empresa do grupo de Setúbal, era favorável à adoção do sistema Unix,
do qual o sistema de código aberto Linux é derivado).
Não foi essa a opção encontrada pela indústria, que, para ganhar tempo e reduzir
a distância entre os equipamentos fabricados aqui e os disponíveis no Exterior, preferiu
clonar equipamentos estrangeiros. Sob determinação do Estado, essa indústria também
teve que custear o desenvolvimento dos softwares necessários para suas próprias
máquinas. Essa demanda – a de reduzir rapidamente o fosso tecnológico entre o Brasil e
os países ricos – foi encampada por vários setores da indústria brasileira, e se acentuou à
medida que os componentes de informática deixaram de ser apenas instrumento de
27
elaboração de folha de pagamento ou cálculos atuariais para penetrar na medicina, na
fabricação de automóveis e nos eletrodomésticos, só para citar alguns campos. A lista
cada vez maior de novas aplicações já sugeria que o Brasil não teria condições de
encontrar todas as respostas em uma indústria infante e endógena, e isso provavelmente
colaborou para arregimentar mais vozes contrárias à reserva. Campos (1985), crítico da
reserva, abordava essa questão de outro modo, questionando por que um país carente de
capitais como o Brasil recusava o capital de risco (representado pelas multinacionais), ao
mesmo tempo em que pedia empréstimos no Exterior.
Não se pode ignorar também o desafio à noção liberal de mercado que
representou a gênese da nascente indústria brasileira de informática. Veio dos governos
militares a decisão de o que produzir – por meio de convocações públicas às empresas e
da necessidade de aprovação governamental para novos projetos – e de quem produzir,
já que os responsáveis pelas empresas tinham de ser previamente aprovados pelos
órgãos do setor. As decisões de como produzir também eram subordinadas à esfera
governamental, já que era preciso descrever a origem e a forma de obtenção dos insumos
necessários, evitando ao máximo a importação de componentes. Como notou Campos
(1985), o modelo da reserva de mercado, tal como concebida pela ditadura militar, foi de
eliminação da concorrência externa e controle acentuado da concorrência interna.
Nesse contexto, merece atenção a experiência da criação de uma empresa pública
para fabricação de computadores, a Cobra Computadores. Resultado de uma política
voltada à autonomia tecnológica em nome da segurança nacional, a empresa queria
dedicar-se originalmente a sistemas de controle de processos industriais, mas acabou se
voltando para o mercado de computadores de uso geral – e foi responsável pelo
28
desenvolvimento do que foi considerado o primeiro computador de projeto totalmente
nacional, o Cobra 530 (Helena, 1984). O controle do Estado, embora majoritário, sempre
foi parcial, e na segunda metade da década de 1970 um grupo de dez bancos brasileiros,
mais as bolsas de valores do Rio de Janeiro e de São Paulo, já eram donos de 39% da
Cobra – foram eles que, como sócios, formaram seu primeiro mercado consumidor. A
empresa ainda existe – no rastro do desmonte da reserva de mercado, ela foi incorporada
pelo Banco do Brasil em 1990 e sobrevive como prestadora de serviços.
O saldo da experiência é alvo de controvérsias. Para alguns, a reserva de mercado
de informática marcou uma época de atraso tecnológico, envolta numa “névoa de
hostilidade a produtos estrangeiros” (Ferreira, 1993). Para outros, a reserva simbolizava
a insurgência dos países pobres contra a dominação tecnológica pelos países ricos – que,
assim, deixariam de se portar como “escravos diante do senhor” (Gomes, 1985). Um
saldo tido como certo foi a criação e a capacitação tecnológica de toda uma categoria
profissional. Mas será que, se fosse conduzida de outra forma, a política nacional de
informática teria alcançado o sucesso pretendido?
A resposta a essa pergunta convida à construção de um quadro amplo, e muitas
das variáveis que o compõem estarão fora do escopo deste trabalho. No entanto, é
possível apontar pelo menos dois pecados originais da política adotada pelo Brasil para o
setor da informática:
1) essa política não cresceu com raízes democráticas;
2) foi concebida para resolver uma questão de caixa do comércio exterior.
Talvez não seja exagero afirmar que, por causa de (1), o Brasil fez más escolhas
quando selecionou os primeiros competidores do mercado sob reserva. Que, por sua vez,
29
fizeram más escolhas quando definiram seus parceiros tecnológicos, sob as diretrizes do
Estado; e quando decidiram competir entre si sem que houvesse cooperação na área de
software, o que resultou numa custosa divisão de esforços para criação de sistemas
operacionais e de aplicativos incompatíveis entre si – e a condução dessa política por um
órgão linha-dura como era a SEI, subordinada ao Conselho de Segurança Nacional, só
fez aumentar essas tensões. O próprio governo não fez a sua parte, pois em plena
vigência da reserva preferia encomendar os dispendiosos computadores de grande porte
da IBM a comprar os minicomputadores produzidos pelas empresas nacionais. Quanto
ao segundo pecado, basta dizer que foi esse o calcanhar-de-Aquiles que, no fim da
década de 1980, ajudou a formar dentro do Brasil uma frente anti-reserva, movimento
que foi notadamente incentivado e explorado pelos setores exportadores e pelo governo
dos Estados Unidos.
Como poderia ter dado certo? Seria preciso, talvez, um grupo visionário que
reconhecesse nichos de mercado nos quais o Brasil tivesse condições financeiras de
investir com recursos próprios. E um governo que se dispusesse a ser o principal
comprador dessa tecnologia, até que essa empresa pudesse andar com as próprias pernas.
Dantas (1988) cita pelo menos três casos – ICL, na Inglaterra; CII, na França; e Siemens
e AEG Telefunken, na Alemanha – em que o governo se tornou ao mesmo tempo sócio
minoritário e principal comprador.
Àquela época, parece que não havia tantos nichos assim, e o “mercado” era o
mercado de computadores para uso comercial. Quando as aplicações começaram a se
proliferar em todos os setores – médico, industrial, comercial, educacional, científico e
30
tantos outros –, o modelo de reserva já mostrava sinais de esgotamento, pois a indústria
infante nacional não poderia mesmo dar conta do recado.
A situação hoje é bem diferente. As empresas do setor, quase todas estrangeiras,
recebem benefícios fiscais simplesmente por manter linhas de montagem no Brasil.
Parece evidente que a eliminação de distinção entre empresa brasileira e estrangeira –
resultado da revogação do artigo 171 da Constituição de 1988 pela Emenda
Constitucional 6/95 – foi a pedra que faltava para enterrar qualquer pretensão de política
efetivamente nacional para o setor.
É por isso que atrai curiosidade a iniciativa do Ceitec – Centro de Excelência em
Tecnologia Eletrônica Avançada, de Porto Alegre (RS). Construído com máquinas
descartadas pela empresa norte-americana Motorola, o laboratório-fábrica estatal é
financiado pelos governos federal, estadual e municipal e marca o retorno da produção
de chips no Brasil, começando por um produto relativamente simples e um mercado
bastante amplo: o transponder3 para rastreamento de gado (A Missão de Nossa Fábrica
de Chips, 2008). É o nascimento de um modelo que pode ser bastante promissor.
3 Um transponder é um dispositivo eletrônico miniaturizado que transmite informações por ondas de rádio, a partir da recepção de um determinado sinal.
31
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