14 gt a fragmentação do direito e a tutela dos …€¦ · gustavo david araújo freire ivison...

75
ANAIS CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E SOCIEDADE DO UNILASALLE GT – A FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO E A TUTELA DOS CONSUMIDORES CANOAS, 2015

Upload: haminh

Post on 19-Sep-2018

218 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

ANAIS

CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E

SOCIEDADE DO UNILASALLE

GT – A FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO E A TUTELA DOS CONSUMIDORES

CANOAS, 2015

905

AS RELAÇÕES DE CONSUMO, O DESCASO E A LEGITIMAÇÃO DAS REDES DIGITAIS COMO SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR

Gustavo David Araújo Freire

Ivison Sheldon Lopes Duarte

RESUMO: É notório que o respeito legal ao consumidor não é uma filosofia incorporada por muitas empresas de maneira que direitos sejam tidos como inexistentes e deveres sejam descumpridos. Diante do descaso enfrentado, os consumidores têm adotado práticas emergentes afirmativas capazes de exercer pressão sobre as organizações, a partir do uso das redes digitais, no contexto das Tecnologias da Informação e Comunicação. O presente artigo tem por objetivo discorrer sobre as práticas dos consumidores/usuários ocorrentes nas fanpages da Claro, Oi, Tim e Vivo, operadoras de telefonia fixa, móvel e internet. De natureza quantitativa e sob a abordagem exploratória, a análise do objeto investigado se constitui na forma de um estudo de caso do tipo múltiplo, tendo por base a observação indireta intensiva, consoante o viés da observação não participante. O estudo verifica que o consumo, pensado como algo eminentemente social, correlativo e ativo, na atual conjuntura das Tecnologias da Informação e Comunicação, tem alterado as relações entre as empresas e os consumidores na economia da sociedade em rede, concorrendo para a prática do exercício da cidadania e ratificando a Era dos Direitos. Palavras-chave: Relações de consumo; Código de defesa do consumidor; Tecnologias da informação e comunicação.

1 INTRODUÇÃO - SOCIEDADE DE CONSUMO E DIREITOS DO CONSUMIDOR

Os direitos sociais historicamente surgem no século XIX e XX na esteira

das lutas de classe em resposta à opressão operada pelo capitalismo durante a

revolução industrial. Com o crescente empobrecimento da classe operária, fez-se

necessário exigir do Estado uma atuação positiva, para diminuir o abismo social

criada pelo capitalismo do laisser-faire. Dessa maneira e com um conjunto de

transformações econômicas, sociais e políticas, passa-se do Estado Individualista

para o Estado de Bem-Estar Social.

Tal realidade evolutiva fez emergir grandes facilidades para o consumidor,

906

desde o comércio e o transporte até o ramo das telecomunicações que fez

estreitar a comunicação entre as pessoas. Diante do surgimento da informática,

das telecomunicações e da biotecnologia cogita-se o surgimento de uma Terceira

Revolução Industrial (BARBOSA, 2003). Diferentemente das duas outras

revoluções, as quais estavam intrinsecamente relacionadas, sobretudo, ao

processo de produção centrado na propriedade privada de bens, a informação,

enquanto produto intangível e amparada pelas tecnologias da informação e

comunicação (TICs), é o cerne do desenvolvimento e a mola propulsora das

transformações na contemporaneidade.

De acordo com Dowbor (2002), a transformação social tem acontecido de

maneira tão ampla que gera uma sociedade do conhecimento, tal quais as

sociedades agrárias, fundamentadas no controle da terra, e a sociedade

industrial, estruturada sob o controle dos meios de produção. Trata-se de uma

sociedade em rede que tem como sustentáculo as TICs. Assim, a comunicação

passa a ser percebida como “[...] o eixo central das transformações estruturais

tanto na economia como na política” (DOWBOR, 2002, p. 23).

O desenvolvimento da internet como tecnologia da comunicação, cujo

objetivo era estabelecer uma rede de comunicação com base na troca de pacotes

entre protocolos compatíveis entre si, representa bem esse contexto. Do projeto

embrião da Internet – Resource Sharing Computer Network (Arpanet), em 1969 –

ao seu estado atual de uso, os anos 1990 se transformaram, de vez, na ‘década

da internet’ com o desenvolvimento do aplicativo World Wide Web1 (WWW), ou

simplesmente Web (CARVALHO, 2006). Isso porque o mundo dos negócios se

apropriou da internet – inicialmente se fazia de interesse máximo acadêmico e

militar – com vista no seu objetivo-fim, a geração de lucros. Dessa forma, a

privatização da internet em 1995 e os usos comerciais, inicialmente, exerceram

grande influência sobre o seu formato.

“Atividades econômicas, sociais, políticas, e culturais essenciais por todo o

planeta estão sendo estruturadas pela Internet e em torno dela, como por outras 1 A aplicação www “[...] organizava o teor dos sítios da Internet por informação, e não por

localização, oferecendo aos usuários um sistema fácil de pesquisa para procurar as informações desejadas.” (CASTELLS, 1999, p. 88). Permitindo assim, a difusão da internet na sociedade em geral e uso pelos não-iniciados.

907

redes de computadores.” (CASTELLS, 2003, p. 8). A internet é, conforme Bolaño

e Vieira (2012, p. 5), “[...] um espaço de convergência para a toda a produção

cultural industrializada, para o comércio em geral e também para os indivíduos e

grupos sociais, como grande plataforma de comunicação. De maneira incisiva, o

uso da internet pelas organizações transforma maneira delas se relacionarem em

todas as instâncias2 – seja com os consumidores ou outras empresas, e ainda

outros públicos de interesse. Além de transformar os processos organizacionais

internos – seja nos fluxos operacionais ou de produção e sua relação com os

mercados financeiros.

Na tendência de um modelo de inovação aberta frente à forte

competitividade que vinha se instaurando no cenário mercadológico desde o fim

da década de 1980, muitas organizações passaram a se constituir na internet.

Inicialmente ocorreu como um movimento de elevação da marca do ambiente

offline para o online, cujo objetivo era o estabelecimento da comunicação

institucional e se fazer presente na web. Para Kalakota e Robinson (2002), essa

seria a primeira fase de impacto do e-commerce - isto é, o comércio de

transações comerciais, compras e vendas de produtos e/ou serviços - na internet,

que se deu a partir do uso comercial da web até o ano de 1997. Período esse

marcado pelos sites estáticos.

As transações comerciais de compra e venda através de empresas como a

Amazon e eBay, no meio digital, entre 1997 e 2000, demarcam a segunda fase de

impacto do e-commerce. Um adendo a ser levado em consideração é que, em

2001, 80% das transações feitas na Web foram business-to-business (de negócio

para negócio), caracterizando o surgimento de uma economia não “[...]

ponto.com, mas uma economia interconectada com um sistema nervoso

eletrônico.” (CASTELLS, 2003, p. 57). Dessa maneira, é notório indícios de um

movimento de reorganização dos processos e transações organizacionais no

âmago das empresas e no relacionamento com os compradores e fornecedores

2 As nomenclaturas business-to-consumer (B2C) ebusiness-to-business (B2B) são usadas para

evidenciar o relacionamento entre a organização e o consumidor e a organização e outra organização, respectivamente, na internet. Nessa linha de pensamento sugerir-se-á o uso da expressãobusiness-to-stakeholders (B2S) para identificar o relacionamento entre a organização e os públicos de interesse (Governos, concorrentes, imprensa, sindicatos, entre outros).

908

da cadeia produtiva.

A terceira fase teria sido estabelecida em 2000 e estaria voltada a verificar

como a internet influenciaria na lucratividade. Para além da compreensão de

aumentar a receita bruta, a lucratividade estaria mais voltada para o aumento das

margens totais, levando em consideração as aplicações e os processos de uma

organização na realização de uma transação de negócios – o chamado e-

business. Trata-se de “uma estratégia global de redefinição dos antigos modelos

de negócios, com o auxílio de tecnologia, para maximizar o valor do cliente e os

lucros.” (KALAKOTA; ROBINSON, 2002, p. 24). Um exercício de aprender na

prática qual o modelo de negócio mais adequado ao sistema organizacional,

tendo em vista a impossibilidade de uma “receita” pronta em decorrência das

especificidades de cada negócio.

Ocorre que o desenvolvimento veio com um preço: as tecnologias da

comunicação estreitaram as relações pessoais, o comércio cresceu ao ponto de

não ter como finalidade o bem estar dos consumidores, mas tão somente o lucro,

o que fez surgir a necessidade de normas que protegessem aqueles.

As normas que regulam e protegem os consumidores da relação com os

detentores do capital, os fornecedores, são um marco na adoção de medidas que

preservem a dignidade daqueles. Tais prevêem uma prestação adequada dos

serviços colocados à disposição dos consumidores, protegendo-os dos abusos

postos em prática pelo sistema capitalista e pela livre iniciativa das relações de

consumo.

Hodiernamente, a conectividade por meio da rede mundial de

computadores implicou em uma dinâmica e rapidez maior da relação entre

consumidores e empresas, desenvolvendo uma sociedade baseada em

informação e globalização de meios de produção cultural e econômico. Passa-se

de uma sociedade tradicional de consumo para uma sociedade em rede que

impacta no conteúdo jurídico dessas relações intersubjetivas. O caráter

regulatório e protecionista do ordenamento pátrio de proteção ao consumidor

torna-se insuficiente para as novas formas de interações possíveis entre

consumidores e empresas por meio do uso da internet.

A exposição do consumidor às informações e aos conteúdos massificados

909

e preparados por empresas significa uma maior vulnerabilidade originária desse

ambiente virtual, ao mesmo tempo em que existe a facilidade de acesso a

produtos e serviços de maior qualidade e menor preço, aumentando a

competitividade das empresas o que atrai esses ciberconsumidores a eleger o

meio virtual como a forma mais cômoda e econômica de satisfazer suas

necessidades consumeristas. Ciberconsumidor ou consumidor 2.0 é o termo utilizado em analogia ao uso da Web 2.0 onde este novo consumidor utiliza-se da Internet para construir conteúdo na rede, formando opinião e dialogando com a sociedade ao exigir das empresas uma comunicação bidirecional. Em face disso, o ciberconsumidor já não assiste passivo as imposições do mercado, uma vez que produz informações sobre determinado produto ou serviço e consome esse conteúdo ao analisar os dados disponibilizados no ambiente virtual antes de efetuar uma compra ou transação comercial na Internet. (SANTOS, 2012, p. 3).

O legislador encontra-se diante de uma evolução tecnológica que impõe

modificação da legislação para servir ao desiderato social, porém o processo

legislativo não parece ser célere suficiente para dar a resposta esperada pela

sociedade no tempo em que as relações intersubjetivas se aprimoram, assim, o

consumidor passa a situação de hipossuficiente diante da lacuna legal deixada

pela normatização.

As normas de proteção ao consumidor têm uma intima ligação com a

segunda dimensão dos direitos fundamentais, que prega uma atuação positiva do

Estado, prevalecendo os direitos sociais, culturais e econômicos, em

contraposição aos ideais de estado negativo do liberalismo. O direito do

consumidor se encaixa nos ideais sociais, pois, pauta-se pela prevalência de uma

maior proteção a uma categoria hipossuficiente, os consumidores. Interpretando

essa ideia, podemos visualizar que as normas de proteção ao consumidor

surgiram para propor o nivelamento dos pólos nas relações de consumo,

equilíbrio esse expressamente previsto no art. 4º, III da Lei 8078/90.

O CDC estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem

pública e interesse social, atendendo ao artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição

Federal de 1988: o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.

Um consumidor lesado que ao adquirir um produto/serviço de determinada

910

organização estará respaldado pela Lei supracitada, e contará com o poder

público3 para solução do caso.

Diante do respaldo legal aos consumidores, muitas empresas implantaram

o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) – canal específico para a

constituição de elogios, sugestões, reclamações, críticas, cobranças – como meio

de relacionamento com os clientes, sobretudo, como sendo a primeira instância

para solução de problemas e falhas decorrentes do processo de compra. As

instâncias posteriores relacionam-se às apelações do consumidor aos

instrumentos do poder público.

Segundo Zülzke (1997), os SACs tornam-se setores essenciais para evitar

que as insatisfações e problemas transformem-se em custosas e desgastantes

pendências judiciais em termos de imagem e recursos financeiros. Além, de tentar

restringir os problemas apenas à empresa – conforme os moldes do tradicional

SAC -, evitando a evasão de informações que por ventura venham causar

maiores danos a sua imagem. Uma postura ética de compromisso da organização

para com o consumidor sem a necessidade de intervenção de órgãos

reguladores.

Embora muitas empresas adotem o SAC como meio de comunicação com

o público consumidor, é fato que não o adotam, plenamente, como instância

moderadora de soluções e correções de defeitos e falhas apresentadas no

produto ou serviço. Sendo necessário, em muitos casos, a exemplo das empresas

de telefonia fixa e móvel, o Estado, as agências e os órgãos reguladores

intervirem no funcionamento do atendimento ao consumidor, ordenando como

proceder, em decorrência do elevado número de reclamações.

Apesar do respaldo das leis e dos regulamentos criados, que tratam dos

direitos e das garantias do consumidor, não é raro vermos práticas

desrespeitosas por parte de algumas empresas ferindo a boa-fé do consumidor.

3 O poder público disponibiliza, dentre outros, os seguintes instrumentos de apoio ao consumidor,

conforme o artigo 5º da lei de nº 8.078: assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente; instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério Público; delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de infrações penais de consumo, e; Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de litígios de consumo.

911

Uma postura que fere a imagem institucional e coloca em risco a sobrevivência da

organização num universo mercadológico altamente competitivo.

O caráter protecionista da legislação consumerista encontra barreiras

impostas pela dinâmica de acesso dentro da internet, posto que o princípio

norteador dentro da rede é de liberdade, ausente pressuposto de imposição

jurídica, passando à uma relação pautada na demanda mercadológica.

O ambiente liberal e livre dos conteúdos que trafegam pelo sistema virtual

impõe sua própria regulamentação, atrelada a normas sociais não

necessariamente jurídicas, onde o consumidor e usuário interagem com as

empresas através de sites de compras institucionalizados, mas também através

de perfis em redes sociais, surgindo problemas quanto à responsabilidade das

empresas fornecedoras e das empresas gerenciadoras das redes sociais.

A prática de condutas danosas utilizando da tecnologia como meio de

perpetrar o ato vilipendioso é o novo desafio da legislação que busca manter o

caráter harmônico da sociedade, seja em ambiente virtual ou real. Assim como, a

salvaguarda da liberdade dos usuários e sua privacidade frente ao poderio

tecnológico das grandes empresas de e-commerce. No mundo contemporâneo, as transformações por que passam as relações entre o público e o privado, no consumo cultural cotidiano, apresentam um novo tipo de responsabilidade cívica. Se os governos e a esfera pública não cumprem, em termos ideais, com sua função de prover e proteger os cidadãos, esses buscam, cada vez mais, exercerem seus poderes políticos através da esfera privada, em que está inserido o consumo. (DOMINGUES, 2013, p. 37-38).

Nesse sentido, o descaso enfrentado pelos consumidores tem levado-os a

adotar um novo comportamento na atual conjuntura. As “[...] mudanças

tecnológicas, econômicas, e nas práticas sociais têm gerado novas oportunidades

nas quais os indivíduos têm desempenhado um papel mais ativo do que era

possível na economia industrial do século XX.” (KAUFMAN; ROZA, 2013, p. 36-

37).

Se antes as críticas, as impressões e os sentimentos eram compartilhados

em família, nas rodas de conversas entre amigos ou em conferências e encontros

- numa escala com mais público, hoje, os usos sociais da internet,

especificamente pelos consumidores, têm gerado práticas emergentes afirmativas

capazes de exercer pressão sobre as organizações. É notório um novo ritmo de

912

interação no campo social, estabelecido em virtude, sobretudo, das tecnologias

da informação e comunicação (TICs).

Com a internet, ambientes como os sites de redes sociais (SRSs)

desenvolvidos com vistas a propiciar um espaço predominantemente relacional,

em muitos casos são utilizados pelo público consumidor como forma de

compartilhar sua experiência de compra, seja de ordem positiva ou negativa. E

ainda, constituir elogio, reclamação e/ou insatisfação em relação a um produto,

serviço e/ou processo de uma dada organização. Uma lógica própria da razão de

existência do serviço de atendimento ao consumidor.

2 NOVAS LEGISLAÇÕES PARA NOVOS PARADIGMAS

Com a evolução da sociedade de consumo vieram os riscos de dano, as

relações de massa e a maior circulação de produtos fizeram prevalecer frente à

qualidade dos produtos e serviços, ocasionando danos aos consumidores. Em

decorrência da realidade das relações de consumo, o Estado reagiu elencando os

deveres dos fornecedores em garantir a igualdade de acesso aos bens de

consumo, informação e segurança pautado na dignidade dos cidadãos,

priorizando a prevenção, mas garantindo também o ressarcimento e indenização

em caso de dano.

Diante do novo panorama introduzido pela internet e o comércio eletrônico,

o direito brasileiro supriu as lacunas jurídicas interpretando as relações

econômicas virtuais aplicando o Código Civil, quando pertinente, tratando os

contratos virtuais como contratos tradicionais de direito civil. O meio eletrônico é apenas um novo suporte para a contratação que mantém os princípios do direito privado, notadamente do direito das obrigações. [...] Os conceitos de obrigação, consentimento, objeto de contrato, liberdade de contratar, necessidade de informação clara etc., continuam válidos e de utilidade e uso inegáveis. (SCHERKERKEWITZ, 2014, p. 61).

Pode-se destacar que os princípios norteadores das relações privadas no

direito brasileiro são utilizados quando da interpretação contratual dos acordos

realizados em ambiente virtual, concomitante, nos casos de relações

consumerista, aplicar-se-á o Código de Proteção e Defesa do Consumidor.

913

Ocorre que, mesmo com a aplicação da legislação já existente, esta torna-

se insuficiente para abarcar o universo de novas possibilidades envolvidas nas

interações entre os usuários da internet, mostrando a necessidade de atualização

do sistema jurídico.

Como fruto desse debate que visa a modificação das normas para

regulamentar as relações dos usuários brasileiros no ambiente de internet, foi

promulgado em 23 de abril de 2014 a lei nº 12.965 pelo governo federal,

conhecida como Marco Civil da Internet, buscando traçar parâmetros normativos

fixos de proteção dos usuários, regulamentação das transmissões de dados e

ofertas de serviços virtuais.

A criação de uma nova espécie normativa dentro do ordenamento pátrio

demanda uma modificação sistêmica que deve evitar as contradições entre as

normas, presumindo uma ausência de antinomias, para que a recepção da nova

lei não gere desarmonia sistêmica. Logo, o Marco Civil foi pautado em privilegiar a

liberdade que é característica primordial do ambiente de internet e pedra

fundamental das interações entre particulares, consubstanciado no princípio da

Neutralidade da Rede, significando que as informações que trafegam na rede

devem ser tratadas de forma igualitária, sem obstacularização dos provedores de

acesso. Isso garantiria a acessibilidade dos usuários por impedir que exista

censura de conteúdo pelos provedores de acesso.

Destacam-se ainda os princípios da Liberdade de Expressão e da

Privacidade, este já com assento constitucional, onde sua irradiação para o

ordenamento civil não é novidade do Marco, apenas sua aplicação nos casos de

judicialização das demandas oriundas de fatos ocorridos no ambiente virtual

constituirá inovação legal. Dessa forma, passa-se a ser uma preocupação do

Judiciário a interpretação das relações virtuais como forma de garantir o respeito

aos Direitos Humanos e à Constituição, na medida em que deverá passar a se

preocupar com casos de uso indevido dos ambientes virtuais como chats, e-mails

e redes sociais para a prática de ilícitos civis.

Importante ainda ressaltar que as iniciativas do poder público em monitorar

e promover a tutela do ambiente de internet demandaram ações posteriores como

a criação do Comitê Gestor de Internet no Brasil (CG1.br) através do Portaria

914

Interministerial 147 de 31 de Maio de 1995, com modificação pelo Decreto

Presidencial 4.829 de 03 de Setembro de 2003, com o objetivo de coordenar e

integrar todas as iniciativas relacionadas a serviços de internet no país,

procurando sempre prezar pela qualidade técnica da oferta e disseminação com

inovação dos serviços.

A liberdade ensejada pela ausência de regras no ambiente virtual causam

um fenômeno que coloca em destaque o usuário frente à liberdade de uma

democracia, não regulamentada pelo poder estatal, em espaços criados por

empresas, tais como os sites de redes sociais, e.g. Facebook, Twitter, etc. Esse

modelo de democracia virtual resulta em processos de ativismo, hodiernamente

chamado de ciberativismo, para promover mudanças no mundo real.

Diante desse novo modelo de exercício da cidadania democrática em

ambientes controlados por empresas, temos o exercício da autotutela nas

relações de consumo. Tal fenômeno ocorre por empresas que procuram criar

perfis institucionais em sites de relacionamentos e redes sociais controladas por

outras empresas, assim, temos um ambiente que é regido prioritariamente pelo

acordo de políticas de aceitação/recusa dos parâmetros contratuais extralegais.

O consumidor/usuário que opta por entrar em uma rede social aceita um

contrato de prestação de serviço a título gratuito que possibilitará sua

comunicação com outros usuários e empresas. Nesse modelo de contrato,

conseguimos ver claramente as características de um contrato de adesão

consumerista, onde não existe a possibilidade de debate sobre cláusulas, apenas

opera-se sua aceitação total ou recusa total.

Outra característica importante, é que a sanção e fiscalização é promovida

pela empresa que gerencia o site da rede social, assim se o usuário é atacado por

comentários jocosos, ou sente-se agredido de alguma forma, deverá procurar

denunciar o comentário/conteúdo segundo a política de cada rede social. Ocorre

que, nem todos os perfis cadastrados pertencem a pessoas naturais. Como forma

de se aproximar de seus clientes, muitas empresas criam perfis oficiais nas redes

sociais e disponibilizam equipe técnica para receber reclamações, ao modelo de

Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC).

Em que pese os SACs possuírem legislação própria, Decreto Presidencial

915

n. 6523/2008, tal legislação não pode ser aplicada aos contatos realizados no

ambiente virtual de páginas de redes sociais, posto que a dinâmica é totalmente

diferente das reclamações realizadas via números telefônicos 0800. Então, estar-

se-ia diante de uma nova forma de autotutela relacionado aos ambientes virtuais,

fora do mundo jurídico.

Claramente vislumbra-se que a relação formada pelos

usuários/consumidores que procuram solucionar seus problemas pela via do

ativismo em redes digitais, especificamente nos sítios eletrônicos de redes

sociais, estão inseridos no contexto de uma sociedade em rede, termo utilizado

pela primeira vez por Stein Braten (BRATEN, 1981, P. 115), retomado por Jan

Van Dijk (VAN DIJK, 2012) e difundido por Manuel Castells (CASTELLS, 2010). A Sociedade em Rede, como Van Dijk a vê, pode explicar um novo tipo de sociedade onde as relações sociais são organizadas no âmbito da tecnologias mediáticas que formam uma rede de comunicação em vez de redes tipificadas pelas relações sociais face a face. Essa lógica organizacional diferente dá origem a diferentes capacidaes em rede da sociedade da informação: o conceito de sociedade da informação concentra-se na substancial transformação dos processsos sociais, enquanto o conceito de sociedade em rede examina as formas de organização dos processos sociais. (MOLINARO e SARLET, 2014, p.30).

Pode-se concluir que as interações realizadas em ambientes de redes

sociais nas páginas de empresas não estão dentro dos padrões conhecidos pela

legislação como formas de acesso do consumidor aos fornecedores. Elas

demonstram que, na sociedade em rede, a atualização do sistema normativo não

acompanha as necessidades que são plasmadas nas relações que ocorrem em

sítios eletrônicos, como o retromencionado, deixando o consumidor em uma

situação de desamparo legal, ao alvedrio das normas criadas pelas empresas de

redes sociais, bem como pelas empresas fornecedoras acessadas.

O campo discricionário da internet nessas modalidades de relações,

aproxima-se de um modelo de autotutela, onde a empresa gerenciadora da rede

social cria as normas e as aplica de acordo com sua política de acesso, passando

a também controlar a sanção. Quanto à empresa fornecedora que é alvo da

reclamação, esta passa a controlar os meios de acesso à informação, sua forma

de resposta e os critério de acesso dos consumidores, importando em uma

916

diminuição da liberdade de acesso à informação e ferindo o princípio

consumerista da informação clara.

Logo, como a ideia de princípio esta ligada diretamente a todo o sistema

dogmático, ao se transgredir um princípio que é inspirador da norma e orientador

de sua interpretação, o dano causado é maior, pois se contraria todo um sistema

normativo. Conforme será demonstrado, as relações entre os

consumidores/usuários que buscam resolução de seus problemas através dos

canais de redes sociais, em fanpages de empresas/fornecedoras, não possui

efetividade, e estando fora da normatividade jurídica acaba por tratar o

consumidor com descaso e servindo-se apenas como uma estratégica de

marketing promocional.

3 ESTUDO DE CASO DAS OPERADORAS CLARO, OI, TIM E VIVO

A investigação de natureza quantitativa e qualitativa é construída sob a

abordagem descritiva e explicativa do fenômeno, que, para fins de análise,

configura-se como um estudo empírico, com a finalidade comparativa das

realidades evidenciadas nas fanpages das operadoras Claro, Oi, Tim e Vivo.

O estudo fora constituído pelas documentações indireta – correspondendo

à pesquisa bibliográfica e à pesquisa documental realizada através dos canais

oficiais da empresa e de informações consultadas na web acerca das operadoras,

e direta – sendo caracterizada pela observação indireta intensiva da plataforma,

do tipo ‘não participante’ (LAKATOS; MARCONI, 1991).

A investigação empírica do objeto em questão se dá por meio do estudo de

caso, pois este se “[...] volta para indivíduos, grupos ou situações particulares

para se realizar uma indagação em profundidade que possa ser tomada como

exemplo” (SANTAELLA, 2001, p. 73). O estudo de caso, conforme Merriam

(1998), possui intrinsecamente quatro características essenciais, que são

substanciais para a interpretação do fenômeno, a saber: particularidade,

descrição, heurística e indução.

A escolha das empresas de telefonia fixa, móvel e internet - Claro, Oi, Tim

e Vivo, se deu a partir da verificação de que essas operadoras estão no topo do

917

ranking de reclamações junto aos órgãos de defesa do consumidor e do site

reclame aqui. Neste site, a lista das empresas mais reclamadas apresenta a

seguinte configuração:

Quadro 1 - Empresas mais reclamadas no site Reclame Aqui4

Mais reclamadas nos últimos 30 dias Mais reclamadas nos últimos 12 meses

Posi

ção

4º Claro 7.325

Posi

ção

5º Claro 58.639

5º Oi 6.641 3º Oi 67.551

7º Tim 5.512 7º Tim 48.008

3º Vivo 8.828 2º Vivo 78.836

Fonte: Adaptado do site Reclame Aqui. Disponível em:

<www.reclameaqui.com.br>. Acesso em: 29 mar. 2015.

Com o propósito de verificar pontos de consonância e divergência acerca

do conteúdo produzido pelos consumidores das quatro empresas, optamos por

realizar um estudo de caso múltiplo. Pontuamos, a seguir, o nome das páginas e

seus respectivos endereços.

• Claro Brasil: <https://www.facebook.com/clarobrasil>;

• Oi Oficial: <https://www.facebook.com/OiOficial>;

• Tim Brasil: <https://www.facebook.com/timbrasil>;

• Vivo: <https://www.facebook.com/vivo>.

A observação do fenômeno nas fanpages se concentrou no conteúdo

produzido pelos consumidores ou usuários que foram publicados como

comentário nas postagens emitidas pelas operadoras em sua própria timeline.

Convém mencionar que há outras duas formas de entrar em contato com a

empresa através da fanpage - mas que não foram levadas em consideração, a

saber:

1. Por meio da área conhecida como inbox – apenas quem tem acesso às

conversações é o consumidor ou usuário e empresa, pois o diálogo

4 Recorte das operadoras de telefonia fixa, móvel e internet, Claro, Oi, Tim e Vivo. As reclamações

incidem sobre os seguintes serviços: Claro celular e Tv; Oi móvel, fixo, internet e Tv; Tim Celular; e Vivo celular, fixo, internet e Tv.

918

acontece numa área privada. Fato este que nos impossibilitou de incluir tal

ambiente na delimitação temporal;

2. No espaço intitulado de publicação – a operadora ativa tal recurso de

maneira que o consumidor ou usuário possa entrar em contato com a

empresa. O conteúdo fica visível para todos que acessarem a página. No

entanto, apenas as operadoras Claro, Oi e Tim liberaram tal dispositivo,

sendo inviável a investigação em tal espaço porque a Vivo seria excluída

das análises.

A investigação do fenômeno circunscrito aconteceu entre os meses de

fevereiro e março de 2015, cujos detalhes estão dispostos na tabela a seguir.

Tabela 1 – Tempo de maturação das postagens na Fan Page

Data da

Postage

m

1

5/02

1

6/02

1

7/02

1

8/02

1

9/02

2

0/02

2

1/02

2

2/02

2

3/02

2

4/02

Data

final da

coleta

2

4/02

2

5/02

2

6/02

2

7/02

2

8/02

0

1/03

0

2/03

0

3/03

0

4/03

0

5/03

Fonte: Pesquisador, 2015.

A definição da delimitação temporal – período em que o fenômeno

circunscreve no tempo (GIL, 2002), de dez dias (de 15/02 a 24/02) levou em

consideração dois aspectos:

1. A investigação trata-se de um estudo de caso múltiplo - quatro empresas

que possuem mais de um milhão de fãs, cada, havendo um elevado índice

de postagem dos consumidores ou usuários;

2. Estipulamos o tempo de dez dias, contando a partir da data de publicação

do post, para que a maturação dos fluxos acontecesse. Dessa maneira,

acreditamos ser um prazo razoável para que a empresa se posicionasse

diante dos comentários postados pelos consumidores ou usuários e o

pudéssemos compreender o fenômeno com veemência.

919

O universo da pesquisa constituiu os sujeitos que possuem perfil no site de

rede social Facebook e a amostragem se caracterizou como sendo probabilística.

Convém mencionar que preferimos analisar todo o conteúdo coletado dentro dos

recortes temporal e espacial supracitados (LAKATOS; MARCONI, 1991).

O Gráfico 1, a seguir, demonstra o quantitativo de postagens realizadas

pelas operadoras em suas respectivas fanpages.

Gráfico 1 - Número de postagens realizadas pelas operadoras no recorte da

pesquisa

Fonte: Pesquisador, 2015.

Conforme o Gráfico acima, as quatro empresas não realizaram postagens

diárias regularmente, sendo a operadora Claro a que mais publicou, com uma

média de 0,9 publicações. A Tim apresenta uma média de 0,5 publicações e as

operadoras Oi e Vivo são as que menos postaram, com uma média de 0,3, cada.

O número máximo de publicações/dia foi de duas postagens, sendo proferidas

pelas empresas Claro e Tim.

O tipo de conteúdo dos posts produzido pelas operadoras versam entre:

informações sobre produtos e/ou serviços; divulgação de produtos e/ou serviços;

e, entretenimento ou conteúdo diverso.

O montante de conteúdo postado pelos consumidores ou usuários nas

fanpages das quatro operadoras foi da ordem de 3.813 mensagens, sendo

distribuído da seguinte forma:

Quadro 2 - Quantitativo de postagens dos consumidores ou usuários

Consumidores ou usuários da Quantitativo de %

012

15/…

16/…

17/…

18/…

19/…

20/…

21/…

22/…

23/…

24/…

Quantitativodepostagensdasoperadoras

CLARO

OI

TIM

920

operadora comentários

Claro 1.460 38%

Oi 502 13%

Tim 1.134 30%

Vivo 717 19%

Fonte: Pesquisador, 2015.

O quadro 2 demonstra que as fanpages que recebera mais comentários

são das operadoras Claro e Tim, correspondendo a 38% e 30%, respectivamente.

Isso pode estar associado ao fato das duas operadoras serem as que mais

postaram no período da pesquisa. As fanpages das empresas Vivo e Oi são as

que apresentam as menores taxas, 19% e 13%, respectivamente. Vale salientar

que estas empresas são as que menos publicaram.

Verificamos, para além do quantitativo de comentários, o tipo de conteúdo

proferido pelos consumidores/usuários nas postagens das operadoras.

Gráfico 2 – Tipos de comentários emitidos pelos consumidores/usuários por

operadora

Fonte: Pesquisador, 2015.

De acordo com o Gráfico acima, os comentários dos

consumidores/usuários foram classificados em: informação/dúvida; reclamação;

921

elogio/sugestão; comentários sobre o post; insulto, alerta ou ironia; outros. As

realidades das quatro operadoras são muito parecidas, pois, majoritariamente, os

conteúdos são do tipo reclamação – comumente em relação aos serviços

prestados. No que concerne a este tipo, a página da empresa Claro apresenta o

montante de 57%, a Oi 62%, a Vivo 53% e a Tim 34%. Aparentemente esta última

operadora estaria numa situação muito diferente das outras, no entanto, 24% do

conteúdo postado na sua página são do tipo insulto, alerta ou ironia. Com isso, os

índices somados chegam a 58% do total de comentários.

Acerca dos comentários queixosos, as operadoras estabeleceram um

primeiro contato na seguinte porcentagem: Claro – 11%; Oi – 49%; Tim – 0%;

Vivo – 21%. Diante disso, percebemos que a Tim não interage com os

consumidores/usuários através da sua fanpage. A Claro e a Vivo até dão uma

resposta ao consumidor/usuário, mas bem abaixo do que poderia se esperar de

uma organização que preza pelo consumidor. Já a operadora Oi é a empresa que

mais dá uma primeira resposta aos consumidores/usuários, aproximando-se da

faixa de 50%.

Em se tratando ainda do conteúdo do tipo insulto, alerta ou ironia, as

operadoras Claro, Oi e Vivo encontram-se num patamar parecido, pois

apresentam, respectivamente, os índices de 15%, 17% e 17%. Diante disso,

percebemos que a Tim é a operadora mais insultada pelos consumidores.

A porcentagem de consumidores/usuários que recorrem às páginas das

empresas para tirar dúvidas e/ou solicitar informações é inexpressiva, a saber: 4%

correspondente a Claro, 7% relativo a Oi, 3% condizente a Tim e 6% referente a

Vivo. Ante aos anseios dos consumidores/usuários, a Claro deu uma primeira

resposta a 17% dos que entraram em contato, a Oi atendeu, aparentemente, a

50% das solicitações, a Tim não deu nenhum tipo de resposta e a Vivo deu algum

feedback a 39% dos apelos.

Inexpressiva também é a porcentagem de consumidor/usuário que profere

elogios e dá sugestões às operadoras, pois corresponde a apenas 1% na página

da Claro, 3% na fanpage da Oi, 4% na página da Tim e 2% na Vivo.

Com exceção da Tim (14%), os comentários dos consumidores/usuários

relacionados ao conteúdo das postagens das empresa Claro (4%), Oi (3%) e Vivo

922

(5%) são mínimos. Convém mencionar que a Tim se destacou das outras

operadoras por ter publicado conteúdo que vai além de anúncios publicitários,

postando material sobre tecnologia e assunto de entretenimento.

O tipo de conteúdo intitulado de Outro compreende comentários como:

menção a outros usuários; autopromoção; divulgação de serviços e organizações;

e conteúdos sem cunho lógico com a postagem. Diante disso, a página da Claro

apresentou a porcentagem de 19%, a Oi, 8%, a Tim, 22% e a Vivo, 17%.

A partir da leitura das informações sobre as operadoras nas suas próprias

fanpages e do código de conduta identificamos que a presença da Claro e da Oi

no Facebook é de cunho informativo, isto é, comportamento centrado na emissão

de conteúdo. Já o discurso da Tim e da Vivo nos leva a identificar uma postura do

tipo informativo-interativo, ou seja, além de usar o espaço para publicar conteúdo

as operadoras evidenciam que o ambiente também é de trocas para com o

usuário, podendo este recorrer à empresa através da página. No entanto, a Vivo

assume uma postura contraditória, pois o espaço Publicação está desativado,

impedindo o usuário de entrar em contato através de tal via. Vale salientar que,

dessa forma, a empresa, estrategicamente, isenta-se de dar feedback

publicamente ao usuário.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade de consumo evoluiu para um novo estágio através do avanço

tecnológico capitaneada pela rede mundial de computadores. As transmissões de

informação e a interatividade direcionaram o consumo para uma nova era de

autoregulamentação e pouca interferência estatal. Porém esse novo paradigma

mitigou a proteção do consumidor, relativizando a responsabilidade das empresas

que mantém fanpages em sites de relacionamentos.

As novas formas de sociabilidade modificaram as antigas formas de

relacionamento, engendrando situações diferenciadas para a interação. Uma

lógica que não isentou as relações mercadológicas – as relações entre as

organizações e a sociedade.

923

Observa-se que, mesmo os usuários da internet legitimando a autotutela no

caso de reclamações em espaços virtuais, o poder público ainda não deu a

devida importância para esse canal de atendimento ao consumidor, sendo silente

em sua obrigação de disciplinar normativamente para evitar o mau uso do canal.

Pode-se verificar no presente estudo que as empresas ainda não disponibilizam

uma resposta efetiva aos reclames dos consumidores, tratando suas fanpages

como mais um espaço de anúncio publicitário, ofertas, divulgações de serviços.

Uma postura puramente mercadológica.

Os espaços criados ou utilizados pelas operadoras de telefonia Claro, Oi,

Tim e Vivo nas redes sociais, que seriam para relacionamento com o consumidor,

são subutilizados, demonstrando uma incapacidade de gerenciamento dos

reclames e anseios dos consumidores/usuários. Assim, a promessa de

estabelecer as redes sociais como mais um canal de interação não é cumprido

em sua excelência. Dessa forma, estariam por perder o real valor de uma

sociedade em rede que possibilite a troca de informações, experiências,

solucionando problemas antes que se tornem demandas efetivas em órgãos de

proteção ao consumidor, ou mesmo no judiciário.

Essa cultura de reprodução de modelos tradicionais de atendimento ao

consumidor, onde a empresa ignora o desiderato e as queixas, não se coaduna

mais com as exigências da sociedade contemporânea, passando a ser um

demérito profissional. Os consumidores e usuários fazem uso das redes sociais

nas suas relações com as empresas como, também, uma possibilidade de

atendimento aos seus anseios. Um comportamento que legitima o espaço para tal

uso, cabendo às empresas se adequarem às novas demandas, pois as narrativas

almejam a conquista da individualidade e autogoverno. Compreendo assim, uma

forma de micropoder.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, A. de F.. O mundo globalizado: política, sociedade e economia. São Paulo: Contexto, 2003.

924

BOLAÑO, C. R. S.; VIEIRA, E. S. Economia Política da Internet: sites de redes sociais e luta de classes. In: XXXVI CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 36., 2012, Manaus. Anais eletrônicos[...] São Paulo: 2012. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2013/resumos/R8-0126-1.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2015. BRATEN, S.. Roots and collapse of empathy: human nature at its best and at its worst. John Benjamins, Amsterdam, 2013. CARVALHO, M. S. R. M. A trajetória da internet no Brasil: do surgimento das redes de Computadores à instituição dos mecanismos de governança. 2006. 239 f. Dissertação (Mestrado em Ciências de Engenharia de Sistemas e Computação) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. CASTELLS, M.. The rise of the network society. 2a. ed. John. Wiley. Oxford, 2010. ______. A sociedade em rede. 12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. v.2. DOMINGUES, I.. Terrorismo de marca: publicidade, discurso e consumerismo político na rede. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2013. DOWBOR, Ladislau. Economia da Comunicação. In: Revista USP, São Paulo, n. 55, p. 12-25, set./nov. 2002. GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. KALAKOTA, R.; ROBINSON, M. E-business: estratégias para alcançar o sucesso no mundo digital. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2002. KAUFMAN, D.; ROZA, E.. Empresas e consumidores em rede: um estudo das práticas colaborativas no Brasil. São Paulo: Annablume, 2013. LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. de A. Metodologia científica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1991. MERRIAM, S. B. Qualitative research and case study applications in education. San Francisco: Jossey-Bass, 1998. MOLINARO, C. A. e SARLET, I. W.. Breves notas acerca das relações entre sociedade em rede, a internet e o assim chamado estado de vigilância. In: Marco Civil da Internet, org. LEITE, George Salomão e LEMOS, Ronaldo. Editora Atlas, São Paulo. 2014, p. 29-47. SANTAELLA, L.. Comunicação e pesquisa: projetos para mestrado e doutorado. São Paulo: Hacker Editores, 2001.

925

SANTOS, N. de F.. CIBERCONSUMIDOR ATIVISTA: ANÁLISES E PERSPECTIVAS DAS RELAÇÕES DE CONSUMO NO MICROBLOG TWITTER. Publicado em 01 jun. 2012. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/congressodireito/anais/2012/27.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2015. SCHERKERKEWITZ, I. C.. Direito e Internet. Editora Revista dos Tribunais, São Paul, 2014. VAN DIJK, J.. The network society: social aspects of new media. 2a ed. Sage, London, 2012. ZÜLZKE, M. L. Abrindo a empresa para o consumidor. 4. ed. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1997.

926

A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO E A FRAGMENTAÇÃO DO DIREITO NA SOCIEDADE DE CONSUMO

Carla Froener Ferreira,

RESUMO: O objetivo geral é responder o questionamento: como a gestação de substituição é tratada frente ao desejo de ter filhos na sociedade de consumo? O artigo possui como objetivos específicos: analisar o desejo de ter filhos na sociedade de consumo, verificar as técnicas de reprodução assistida com ênfase na gestação de substituição, explorar o turismo reprodutivo e o comércio da gestação substitutiva, estudar a regulamentação do tema no Brasil. A metodologia empregada é a pesquisa bibliográfica. O desejo de ter filhos tem sido explorado na sociedade atual, cenário em que as técnicas de reprodução humana assistida tornaram-se um negócio lucrativo em expansão. A sociedade voltada para o consumo, capaz de explorar todo e qualquer tipo de desejo humano de maneira econômica, considera a criança gerada como um bem a ser comercializado. Nesse contexto, mesmo que proibido em muitos países, emergiu um mercado de fertilização e de maternidade substitutiva. No Brasil, não há legislação dispondo sobre o assunto, sendo que a única regulamentação existente advém da Resolução nº 2.013/2013 do Conselho Federal de Medicina. Tratar-se de uma pesquisa em andamento, de modo que as conclusões estão em construção. PALAVRAS-CHAVE: Sociedade de Consumo; Gestação de Substituição; Turismo Reprodutivo; Fragmentação do Direito; Direito e Sociedade. ABTRACT: The overall goal is to answer the question: how surrogate motherhood is treated front of the desire to have children in the consumer society? The article has the following specific objectives: to analyze the desire to have children in the consumer society, to verify the assisted reproduction techniques with emphasis on surrogate motherhood, to explore the reproductive tourism and trade of surrogate motherhood, to study the subject regulation in Brazil. The methodology used is the bibliographical research. The desire to have children has been explored in the current society, in this scenario, the assisted human reproduction techniques have become a expanding lucrative business. The society is dedicated to consumption, able to explore any kind of human desire in an economic way, considers the child generated as an asset to be sold. In this context, even though banned in many countries, has emerged a fertilization and surrogate motherhood market. In Brazil, there is no legislation providing for the issue, and the only existing regulation comes from Resolution No. 2,013 / 2013 of the Federal Council of Medicine. Refers to an ongoing study, and the findings are under construction.

927

KEYWORDS: Consumer Society; Surrogate Motherhood; Reproductive Tourism; Law Fragmentation; Law and Society.

1 INTRODUÇÃO

A reprodução humana assistida e a gestação de substituição são

procedimentos de grande repercussão nas discussões éticas e jurídicas. Por

envolverem um dos sentimentos mais valiosos, o desejo de ter filhos, tornaram-se

alvo da sociedade voltada ao consumo, capaz de explorar todo e qualquer tipo de

vontade humana de maneira econômica. As novas tecnologias reprodutivas,

aliadas ao fenômeno da globalização, transformaram-se em um negócio lucrativo

e em expansão no mundo inteiro. Mesmo que proibido em muitos países, fez

emergir o comércio de fertilização e de maternidade substitutiva.

Nessa linha, desenvolve-se a presente pesquisa, que possui como tema o

estudo da gestação de substituição inserida em uma sociedade voltada para o

consumo e com um direito fragmentado. A importância do trabalho justifica-se

pela necessidade de discussão sobre o tema, ainda pouco debatido e estudado.

Busca-se explorar o seguinte questionamento: como a gestação de substituição é

tratada frente ao desejo de ter filhos na sociedade de consumo? Além do objetivo

geral que é investigar o problema de pesquisa, o artigo possui como objetivos

específicos: analisar o desejo de ter filhos na sociedade de consumo, verificar as

técnicas de reprodução humana assistida com ênfase na gestação de

substituição, estudar o turismo reprodutivo e o comércio da gestação substitutiva,

explorar a regulamentação da gestação de substituição no Brasil e analisar alguns

casos envolvendo o comércio da gestação de substituição sob os efeitos da atual

sociedade de consumo.

O método científico eleito para a pesquisa é o dedutivo, que procede do

geral para o particular. A ideia é estudar primeiramente a reprodução humana

assistida na sociedade de consumo e o comércio da gestação de substituição,

para depois focar no contexto brasileiro. A pesquisa é de modalidade exploratória,

uma vez que busca proporcionar uma maior familiaridade com o tema. Como

procedimento técnico, foi escolhida a pesquisa bibliográfica, utilizando-se autores

928

que examinam questões como a globalização, o ser humano tratado como um

objeto e a exploração comercial das técnicas de reprodução assistida, em

especial da gestação de substituição.

O desenvolvimento do artigo está estruturado em três partes. No primeiro

capítulo, será feita uma análise do desejo de ter filhos na sociedade de consumo.

O propósito será estabelecer de que maneira o desejo de filiação é influenciado

pelo desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida diante de uma

sociedade voltada ao consumo. No segundo capítulo, será abordado o turismo

reprodutivo e o comércio da gestação de substituição, investigando-se como

prospera o mercado mundial da reprodução, formado por agências e

intermediadores que oferecem aos interessados não apenas clínicas que realizam

o procedimento, mas um conjunto de serviços associados. Por fim, o terceiro

capítulo tratará sobre a regulação da gestação de substituição (ou a sua

ausência) no contexto brasileiro, analisando-se a Resolução nº 2.013/2013 do

Conselho Federal de Medicina.

2 O DESEJO DE TER FILHOS NA SOCIEDADE DE CONSUMO

A reprodução humana é uma exigência comum em todas as sociedades,

sendo, nas palavras de Héritier (2000. p. 103), um desejo e dever de

descendência. Não transmitir a vida seria como romper com uma cadeia e impedir

a si mesmo o status de ancestral. Assim, seja por um dever de manter a linhagem

ou por um desejo de formar família, ao longo dos séculos, a reprodução é vista

como o destino do ser humano. Neste contexto, a infertilidade era vista como um

problema social, frequentemente contornado pelo instituto da adoção.

Os avanços tecnológicos do século XX reconfiguraram as relações entre

(in)fertilidade, medicina e sociedade. Nos anos 80, a infertilidade passou a ser

enfrentada como um problema de saúde, para qual se recorre à ciência médica

em busca de solução (DINIZ, 2002. p. 01). Correa (2003. p. 32) defende a ideia

de que a não satisfação do desejo de ter filhos, considerando toda a tecnologia e

os medicamentos existentes, torna-se quase uma patologia. Dessa forma, a

pessoa que possui um problema de infertilidade e não busca resolvê-lo ou

929

simplesmente decide não ter filhos é vista como fora dos “padrões” da sociedade

atual.

Ocorre que as mudanças sociais e culturais das últimas décadas acabaram

por afetar o perfil reprodutivo da população. A propagação do uso de métodos

contraceptivos aliada à tendência atual de priorizar a realização profissional e a

estabilidade financeira foram fatores que fizeram com que se adiasse, em pelo

menos uma década, a idade em que as mulheres decidem engravidar. Outra

causa que contribui para a gravidez tardia é o aumento do número de divórcios,

tendo em vista ser comum que, com a formação de uma nova união, nasça a

vontade de ter novos filhos (FONSECA; HOSSNE; BARCHIFONTAINE, 2009. p.

236). Pesquisas do Ministério da Saúde sobre a proporção de nascidos por idade

materna apontam que o número de mulheres que engravidaram com idade acima

de 30 anos está aumentando, principalmente se considerar o primeiro filho para

as que possuem mais anos de estudo. Segundo o levantamento, o percentual de

mães na faixa etária de 30 anos cresceu de 22,5% em 2000 para 30,2% em 2012.

Outra constatação interessante é que entre as mulheres com maior nível de

escolaridade (12 anos ou mais de estudos), o nascimento do primeiro filho

acontece após a mãe completar 30 anos (45,1%) (BRASIL, 2014).

Desse modo, fatores sociais e metabólicos, ocasionam um número cada

vez maior de mulheres que gostariam de ter filhos, mas não produzem mais

óvulos em quantidade ou qualidade suficiente para que a gestação ocorra de

forma natural. Por outro lado, também pode surgir o desejo de ter filhos nas

famílias monoparentais e nas uniões homoafetivas, casos em que não há

necessariamente um problema que impeça tais pessoas de procriar, mas sim a

falta de um parceiro do sexo oposto para fornecer o material genético. Nessas

situações, a utilização de óvulos e espermatozóides doados se apresenta como

única opção para alcançar a maternidade ou paternidade tão sonhada

(FONSECA; HOSSNE; BARCHIFONTAINE, 2009. p. 236). A solução para estas

pessoas é buscar a intervenção médica, com as técnicas de “Reprodução

Humana Assistida”, conceito a ser analisado a seguir.

Para que ocorra o processo de reprodução humana são necessárias

células sexuais ou germinativas (gametas) femininas e masculinas, as quais são

930

denominadas, respectivamente, óvulos e espermatozóides. Durante o período

fértil da mulher, uma forma primária do óvulo é liberada do seu órgão de origem

(ovário), seguindo em direção ao útero. No modo natural, a fecundação ocorre

quando um espermatozóide encontra o óvulo sem a intervenção médica, dando

início a uma complexa seqüência de eventos moleculares coordenados (MOORE;

PERSAUD, 2008. p. 32). Quando este procedimento não acontece naturalmente,

seja por um problema feminino, masculino ou pela falta de parceiro do sexo

oposto (homossexuais ou solteiros), torna-se necessário recorrer às técnicas de

reprodução humana assistida. Nesse contexto, ao analisar os meios de

reprodução, Héritier (2000, p. 98) afirma que é possível sofisticar as formas de

família, mas não se poderá inventar novos modos de procriação, pois sempre

será imprescindível a diferença de sexos, ou seja, pode-se excluir o

relacionamento físico, mas não o processo de fusão de gametas do homem e da

mulher.

O marco mundial para a reprodução humana assistida ocorreu em julho de

1978, na Inglaterra, com o nascimento de Louise Brown, conhecida como o

primeiro bebê de proveta. No Brasil, a reprodução assistida tem sua primeira

experiência humana em outubro de 1984, quando nasce Ana Paula Caldeiras, na

cidade de Curitiba, com o emprego da técnica de fertilização in vitro (REDE

FEMINISTA DE SAÚDE, 2003. p. 11). Passados mais de trinta anos da

introdução do procedimento médico revolucionário no Brasil, o tema ainda é

objeto de grandes discussões médicas, éticas e, sobretudo, jurídicas, devido

principalmente à ausência de norma regulamentadora.

A reprodução humana assistida pode ser definida como o “conjunto

heterogêneo de técnicas que auxiliam o processo de reprodução humana no

campo da concepção, no caso da esterilidade feminina e masculina” (REDE

FEMINISTA DE SAÚDE, 2003. p. 14). Assim, seria a intervenção do homem no

processo de procriação natural, com o objetivo de possibilitar que pessoas com

problemas de infertilidade ou esterilidade satisfaçam o desejo de ter filhos

(MALUF, 2010. p. 153). Sobre os objetivos deste procedimento, Tamanini (2004.

p. 88) declara que a reprodução assistida parte do pressuposto de que é

necessário que a ciência ajude a natureza a restabelecer sua capacidade

931

reprodutiva. Hoje, o conceito deve ser interpretado de maneira mais abrangente,

de modo a englobar não apenas casos de saúde, mas também situações de

natureza social, típicas do mundo contemporâneo. Diante dos novos modelos de

família, devem também ter acesso às técnicas de reprodução assistida as

pessoas solteiras e os casais homossexuais para os quais, devido à falta de um

parceiro ou porque são do mesmo sexo, torna-se necessário o uso de meios

artificiais de concepção.

Entre as principais técnicas de reprodução assistida, é possível citar a

Inseminação Artificial, a Fertilização in Vitro e a Injeção Intracitoplasmática de

Espermatozóide. A Inseminação Artificial é o processo no qual o médico introduz

no útero o espermatozóide previamente coletado, fazendo com que o encontro

entre óvulo e espermatozóide ocorra dentro do corpo da mulher. A Fertilização in

Vitro, por sua vez, consiste na técnica segundo a qual os óvulos e os

espermatozóides são coletados e fecundados em um recipiente externo, para

somente depois serem implantados no útero feminino. Já a Injeção

Intracitoplasmática de Espermatozóide é um método semelhante à fertilização in

vitro, pois a fecundação também ocorre em um recipiente fora do corpo da mulher

para após ser implantado no útero, a diferença é que nesta técnica um único

espermatozóide é injetado diretamente no citoplasma de um óvulo maduro, sendo

muito utilizada em caos de homens que produzem poucos espermatozóides

(MOORE; PERSAUD, 2008. p. 36). Dependendo da origem do material genético,

a reprodução poderá ser homóloga ou heteróloga. No primeiro caso, os gametas

utilizados para a fecundação artificial são do casal interessado na procriação,

enquanto que no segundo, devido à impossibilidade de um ou ambos em

fornecerem os seus próprios gametas, estes serão obtidos a partir de doadores.

Uma forma de aplicação das técnicas de reprodução humana assistida é a

“gestação ou maternidade de substituição”, também denominada de “doação

temporário do útero” e conhecida popularmente como “barriga de aluguel5”. Nesse

5 Entende-se incorreto o emprego da denominação “barriga de aluguel” no Brasil, uma vez que o

termo “aluguel” pressupõe uma contraprestação pecuniária e a Resolução nº 2.013/13 do CFM proíbe expressamente a utilização deste procedimento para fins comerciais e auferimento de lucros.

932

procedimento, a mulher que deseja ter um filho, mas não pode realizar o ciclo da

gestação, ou o casal homossexual, beneficiando-se da fertilização in vitro,

transfere o embrião ao útero de uma outra mulher que realizará a gestação

(REDE FEMINISTA DE SAÚDE, 2003. p. 17). Caso a idealizadora do projeto não

consiga fornecer o óvulo ou trate-se de um casal homossexual, o material

genético pode ser de doação. Dessa forma, poderá haver até três mulheres

intituladas mães: a gestante (mãe biológica), a doadora do material genético (mãe

genética) e a autora do projeto de maternidade (mãe socioafetiva ou intencional)

(ARAÚJO; VARGAS; MARTEL, 2014. p. 485).

Um aspecto importante da utilização das técnicas de reprodução humana

assistida e que possui destaque na pesquisa é a sua inserção no sistema

capitalista e na ideia de sociedade de consumo. Nas últimas décadas, a

intervenção médica na reprodução humana tornou-se um negócio em expansão,

no qual participam instituições médicas, como clínicas e hospitais, agenciadores e

intermediários, bem como doadores de material genético e mulheres que gestam

e dão à luz (IKEMOTO, 2009. p. 281-282). De acordo com reportagem do sítio da

revista Time (2014), somente no ano de 2012, o comércio no setor movimentou

cerca de 3,5 bilhões de dólares nos Estados Unidos. Já é possível identificar a

formação de grandes conglomerados empresariais de serviços de fertilidade, que

aliam ao mesmo tempo técnicas médicas e comerciais, como a propaganda, para

conquistar clientes e posições no mercado (IKEMOTO, 2009. p. 280).

Esse mercado da fertilidade é potencializado pela configuração da nossa

sociedade atual, classificada como “de consumo”. A sociedade de consumo é

aquela que predomina a compra e venda de mercadorias produzidas de maneira

massificada como principal atividade econômica. Uma das principais

características dessa sociedade é a “objetificação”, pela qual as relações

humanas deixam de ser focadas nos sujeitos e passam a ser centralizadas nos

objetos (BAUDRILLARD, 2011. p. 13). Segundo Bauman (2008. p. 26), as

mercadorias não exigem reciprocidade, sendo moldadas ao bel-prazer de um

sujeito onipotente, incontestado e desobrigado. Como um sistema econômico

capitalista baseado no consumo necessita de um movimento constante de

mercadorias para gerar riqueza, os sujeitos-consumidores são bombardeados

933

com estímulos para consumirem cada vez mais, o que gera um ciclo efêmero de

aquisição, uso e descarte, que se repete indefinidamente (BAUMAN, 2008. p.

111; p. 128), em busca por uma felicidade ilusória e insaciável (BAUDRILLARD,

2011. p. 21). Todos os valores concretos e naturais viram formas produtivas e

fontes de lucro (BAUDRILLARD, 2011. p. 63). O desejo humano passa a ser

colonizado pela economia, tornado-se sua força motriz. Na sociedade de

consumo não existe a formação de vínculos duradouros, os atritos são resolvidos

de maneira rápida e simples, pelo descarte da mercadoria defeituosa, imperfeita

ou não satisfatória e pela troca por uma nova e aperfeiçoada (BAUMAN, 2008, p.

31). Como resultado desse processo, o próprio sujeito acaba sendo objetificado e

o ser humano transformado em mercadoria.

Se a sociedade de consumo é capaz de explorar qualquer tipo de desejo

humano de maneira econômica, não é diferente no que diz respeito ao desejo de

ter filhos e a procura pelas técnicas reprodutivas. O próprio termo “desejo de ter

filhos” possui um caráter mercantilista, conforme crítica de Correa (2003. p. 32),

ao entender que o verbo “ter”, geralmente relacionado à posse de objetos, indica

uma possível objetificação da criança, similar a aquisição de um item de

consumo.

Em entrevistas realizadas com casais que iniciam o tratamento para a

fertilidade, Tamanini (2003. p. 125-127) verifica que após um longo período de

tentativas de gravidez frustradas há um grande desgaste da relação afetiva e

sexual, que é acentuado pela cobrança familiar. Nesse contexto, enquanto

produto a ser consumido, as novas técnicas de reprodução assistida são

vendidas, propagandeadas e percebidas pelos destinatários como uma solução

mágica não apenas para os problemas causados pela ausência de filhos, mas

também como um mecanismo capaz de restabelecer a relação conjugal. Com

isso, manipula-se, sempre com um viés econômico, as expectativas do paciente-

consumidor, que busca capturar, ingenuamente, um ideal de felicidade

inacessível, processo típico da sociedade de consumo.

Ainda em relação à questão econômica, na opinião de Diniz (2002. p. 02),

para os profissionais atuantes no campo da medicina reprodutiva, as técnicas

conceptivas têm como principal objetivo a produção de bebês, quando deveriam

934

ser vistas como um conjunto de ferramentas capazes de sanar a ausência

indesejada de filhos. A pesquisa sobre as causas da infertilidade ou da baixa

fecundidade seria pouco incentivada, já que o atual modelo de produção e

desenvolvimento econômico estimula a lógica do mercado capitalista e, portanto,

o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida, uma vez que são muito

lucrativas (CARLOS; SCHIOCCHET, 2006. p. 250).

3 O TURISMO REPRODUTIVO E O COMÉRCIO DA GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO

O crescente incentivo pela experiência da gestação somado ao invasivo

mercado do consumo leva muitas pessoas a uma busca sem medida de esforços

para atingir a tão sonhada filiação. Em muitos casos, quando as técnicas de

reprodução assistida não são suficientes para gerar um filho, seja por deficiência

de material genético do casal ou por impossibilidade da mulher realizar o ciclo da

gestação, acaba restando apenas a opção da doação temporária do útero. Nesse

cenário, além da contratação de clínicas médicas especializadas em fertilização,

alguns países permitem a opção de contratar uma doadora temporária de útero

profissional. Estas, são mulheres que se dispõe a gestar crianças para outras

pessoas mediante remuneração e classificam-se em dois tipos: aquelas que

apenas alugam seu corpo, sem formar vínculo genético com o futuro bebê,

denominadas gestantes de substituição gestacional; e aquelas que, além de

gestar a criança, também vendem os seus óvulos, havendo relação genética entre

elas, chamadas gestantes de substituição tradicional (RAGONÉ, 1998. p. 120).

Como em outras áreas de exploração econômica, a globalização criou um

fluxo transnacional de oferta de técnicas de fertilização e maternidade de

substituição, na qual é possível contratar o serviço em qualquer parte do mundo,

inclusive por meio do comércio eletrônico. O frequente deslocamento a outros

países em busca destes serviços dá-se por motivos diversos, sendo os principais:

menor custo no procedimento médico; oferta de tecnologia mais desenvolvida;

existência de um sistema jurídico permissivo garantindo um amplo acesso; maior

oferta de óvulos, espermas e úteros (IKEMOTO, 2009. p. 278). Ragoné (1998. p.

935

127) ainda aponta outro motivo relevante para a forte tendência de os casais

procurarem mães de substituição em outros países: acredita-se que a diferença

de raça e cultura acaba por afastar ainda mais as partes envolvidas no acordo,

dando um sentimento de maior segurança no cumprimento do contrato.

Dessa forma, a modalidade extrema do comércio global de fertilização e

maternidade de substituição tem sido conhecida como “turismo da fertilidade” ou

“turismo reprodutivo”. Este comércio consiste no desenvolvimento de um mercado

mundial de agências e intermediadores que oferecem aos interessados não

apenas clínicas que realizam o procedimento, mas um conjunto de serviços

associados, como documento de visto e passaporte, translado, reserva de

passagens aéreas e hotéis, bem como doadores de material genético ou

mulheres dispostas a alugar seu útero para gestar filhos a outros mediante

remuneração (IKEMOTO, 2009. p. 291).

Os países diferem em relação ao tratamento jurídico dado à

comercialização da gestação de substituição. Países como França, Holanda,

Alemanha e Espanha proíbem qualquer modalidade. Canadá, Reino Unido,

Tailândia e Bélgica, por sua vez, permitem apenas quando não há pagamento à

gestante. Já legislações que adotam um amplo comércio de maternidade

substitutiva podem ser encontradas na Índia, principal destino do turismo

reprodutivo. Existem ainda países nos quais a legislação varia de acordo com a

unidade territorial, como é o caso dos EUA e Austrália (THE TELEGRAPH, 2014).

O aumento da exploração comercial da gestação de substituição, muitas vezes de

natureza transnacional, aliada à ausência geral de regulamentação tem gerado,

nos últimos anos, uma série de casos problemáticos.

No ano de 2014, foi noticiado o caso do “Bebê Gammy”. O casal

australiano David e Wendy Farnell não podia ter filhos, e como no estado em que

vivem, Western Australia, o contrato de barriga de aluguel é proibido, eles

optaram por viajar à Tailândia, país cuja fiscalização é deficitária. Por meio de

uma agência, contrataram Pattharamon Janbua, de 21 anos, para gestar um filho

com material genético de ambos. A tailandesa que passava por dificuldades

financeiras aceitou o contrato por cerca de R$ 30.000,00. A mãe de substituição

deu à luz a um casal de gêmeos bivitelinos, sendo que o menino nasceu com

936

síndrome de down e um grave problema cardíaco. O caso tornou-se uma

polêmica mundial quando os pais biológicos levaram para a Austrália apenas a

menina saudável, abandonando Gammy, o bebê doente, que acabou ficando aos

cuidados da gestante de substituição. Após seis meses sem contato com o casal

australiano ou com a agência que intermediou a negociação e sem saber como

enfrentar o problema, a tailandesa procurou a imprensa. Em entrevista ao

programa Sixty Minutes Australia (2014), apesar de diversos registros, David

negou o abandono, porém confirmou que não entrava em contato com a mãe

substituta há meses e que esperava ganhar uma indenização da agência que

intermediou o contrato, pois era de sua responsabilidade verificar, por meio de

exames, que um dos fetos tinha problemas de saúde, de modo a realizar um

aborto em tempo hábil6.

No mesmo ano, também na Tailândia, foi noticiada a intrigante história de

Mitsutoki Shigeta, cidadão japonês que contratou serviços de fertilização para

gerar, pelo menos, 16 bebês no país. Shigeta tornou-se suspeito de tráfico de

pessoas após a descoberta da casa onde residia com 9 de seus filhos e algumas

babás. Mulheres jovens de regiões pobres da Tailândia eram contratadas para

maternidade de substituição, porém as razões para a criação desta “fábrica de

bebês” permanecem obscuras. Ao ser interpelada pela polícia, uma das clínicas

respondeu que Shigeta gostaria de ter uma família grande, tendo declarado que

desejava gerar cerca de 10 a 15 bebês por ano, até sua morte. Uma das mães de

substituição declarou aos investigadores que não era informado às contratadas se

os óvulos utilizados seriam delas próprias ou doados, o que as deixavam na

dúvida quanto à maternidade genética dos bebês. Informou, ainda, que seu único

contato com o japonês teria sido na assinatura do contrato de gestação. Shigeta

conseguiu fugir de Bangkok antes de ser preso e tem afirmado, por meio de seu

advogado, que lutará pela guarda das crianças (THE JAPAN TIMES, 2014).

4 A REGULAÇÃO DA GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO NO BRASIL 6 Na Tailândia o aborto é ilegal, principalmente pela forte influência da religião budista. Alguns

estados da Austrália, entre eles o do casal Farnell, permitem o aborto até a 20ª semana de gestação.

937

Apesar de um intenso debate legislativo no final dos anos 90 (DINIZ, 2000),

o Brasil ainda não possui uma legislação que verse sobre a gestação de

substituição e o uso de técnicas de reprodução humana assistida em geral. A

única regulamentação existente advém de resoluções do Conselho Federal de

Medicina, as quais apresentam um conjunto de normas éticas de conduta

dirigidas à classe médica. Assim, ao mesmo tempo em que as novas tecnologias

reprodutivas conduzem a fecundações antes impossíveis ou pouco prováveis,

abrem uma grande discussão a respeito da sua regulamentação. Na medida em

que o Poder Legislativo não consegue atingir um consenso e elaborar leis que a

regrem, resta à sociedade respaldar-se apenas nas normas éticas formuladas por

um conselho profissional. A primeira Resolução do Conselho Federal de Medicina

a tratar sobre o tema foi a de nº 1.358 de 1992. Esta, por sua vez, foi revogada

pela Resolução nº 1.957, publicada em 2010. Atualmente, vigora a Resolução nº

2.013 de 2013.

O Conselho Federal de Medicina estabelece, na Resolução nº 2.013/13,

que a doação temporária do útero pode ser utilizada “desde que exista um

problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora do material

genético” (VII). Um ponto importante ficou por conta da inclusão dos

relacionamentos homoafetivos como destinatários da maternidade de substituição

e demais técnicas de reprodução humana assistida (VII). Araújo, Vargas e Martel

(2014. p. 488) entendem que esta atitude permite o exercício livre e igualitário dos

direitos reprodutivos. Contudo, o regulamento estabelece expressamente que o

uso de tais técnicas deve “respeitar o direito da objeção da consciência do

médico”.

A Resolução impõe uma série de restrições à reprodução humana

assistida, no qual se inclui a prática da maternidade de substituição. É possível

interpretar o documento no sentido de permitir a doação de gametas ou embriões

quando um dos autores do projeto parental está impossibilitado de fornecer seu

próprio material genético, seja por um problema médico ou por se tratar de um

casal homoafetivo. Nessa modalidade de doação, deverá ser preservado o

anonimato no vínculo entre doadores e receptores (IV, 2). Além disso, há um

938

limite de idade entre os doadores: 35 anos para mulheres e 50 anos para homens

(IV, 3). A Resolução declara que as doadoras temporárias de útero (as mães

substitutas que gestaram a criança), deverão pertencer à família de um dos

autores do projeto parental, salvo autorização expressa do Conselho Regional de

Medicina, exigindo-se a consanguinidade de até quarto grau7 (VI, 1), respeitado o

limite de 50 anos de idade (VII, 2). É digno de nota o fato de que a norma anterior

(Resolução nº 1.957/2010) exigia que o útero pertencesse à pessoa com

parentesco de até segundo grau (VII, 1).

O documento em vigor dispõe que a doação de gametas, embriões e

úteros não poderá ter caráter lucrativo ou comercial (IV, 1; VII, 2), caracterizando-

se pela finalidade única de ajudar terceiros. É importante esclarecer que tal

dispositivo não exclui a exploração econômica do serviço médico de reprodução

humana assistida. O mandamento é dirigido exclusivamente aos doadores, que

estão proibidos de receberem dinheiro por terem participado do processo. Outra

restrição imposta pela Resolução e destinada às instituições médicas refere-se à

proibição da seleção de sexo ou características biológicas do futuro filho, exceto

quando servir para evitar doenças (I, 4).

A Resolução também estabelece a obrigação destas organizações de

manterem no prontuário dos pacientes registros sobre as gestações de

substituição com o objetivo de diminuir a possibilidade de futuros conflitos.

Primeiramente, é preciso a existência de um “termo de consentimento informado”

assinado por todas as partes envolvidas no procedimento médico (VII, 3). O

documento deverá compreender o conjunto de informações de caráter biológico,

jurídico, ético e econômico que envolverá a técnica empregada (I, 3; II, 1).

Também são obrigatórios esclarecimentos sobre os aspectos biopsicossociais do

ciclo gravídico-puerperal, os riscos inerentes à maternidade e a impossibilidade

de interrupção da gravidez, salvo em casos previstos em lei ou autorizados

judicialmente. Assim, trata-se de requisito indispensável para a realização de

qualquer procedimento, devendo o médico fornecer todas as informações

necessárias em linguagem clara e de fácil compreensão. Ademais, o profissional

7 Primeiro grau – mãe; Segundo grau – irmã e avó; Terceiro grau – tia; Quarto grau – prima.

939

deve estar apto a reconhecer se a usuária da técnica está expressando um

consentimento livre e consciente ou se a decisão é fruto de um estado emocional,

numa situação de vulnerabilidade (CARLOS; SCHIOCCHET, 2006. p. 254). No

prontuário ainda constará um relatório médico com o perfil psicológico da doadora

temporária do útero, atestando sua adequação clínica e emocional, assim como a

garantia de tratamento e acompanhamento médico à mãe que realizará a

gestação de substituição até a fase do puerpério.

Um aspecto importante da gravidez de substituição diz respeito à

elaboração e assinatura de um contrato entre os autores do projeto parental e a

doadora temporária de útero, estabelecendo a questão da filiação. Tal exigência

funda-se no fato de que, pelo procedimento tradicional, na Declaração de Nascido

Vivo emitida pelos hospitais após o parto, constará o recém-nascido como filho da

parturiente, neste caso a mulher que cedeu temporariamente o útero, e só após

um longo processo judicial poderá ser registrado pelos autores do projeto

parental. Ao se estudar a gestação de substituição muito se pensa sobre conflitos

positivos, ou seja, a possibilidade de a doadora temporária do útero não entregar

o bebê após o parto. Todavia, também são possíveis conflitos negativos, advindos

de situações como a morte de um dos autores do projeto parental, o divórcio, a

multiplicidade de fetos ou a presença de deficiência ou problemas de saúde na

criança, que causam o arrependimento e o eventual abandono do bebê

(ARAÚJO; VARGAS; MARTEL, 2014. p. 494), sendo esta mais uma justificativa à

relevância de um contrato e dos esclarecimentos prévios.

A partir desta breve análise, é possível verificar que o órgão de fiscalização

médica do Brasil autoriza a maternidade de substituição seguindo alguns

parâmetros. O principal deles, e que difere a situação brasileira de outros países,

é a proibição da venda da maternidade de substituição pela receptora, situação

também extensiva ao material genético. No entanto, por mais que a intenção do

Conselho Federal de Medicina seja claramente impedir a formação de um

comércio nesta área, não se pode ser ingênuo ao ponto de acreditar em um

completo altruísmo em uma sociedade contemporânea marcada pelo capitalismo

e individualismo. De acordo com Fonseca, Hossne e Barchifontaine (2009, p.

238), torna-se difícil vislumbrar que mulheres doadoras se submeterão a

940

tratamentos médicos custosos, com injeções de hormônios periódicas,

procedimentos cirúrgicos, riscos e efeitos colaterais, com a única intenção de

ajudar casais desconhecidos a gerarem um filho.

A evolução do capitalismo e a consolidação da sociedade de consumo no

contexto brasileiro conduzirá, certamente, à expansão do oferecimento deste tipo

de serviço por clínicas médicas. De outro lado, a fragilidade regulatória do cenário

nacional na área pode significar uma série de problemas sociojurídicos. Sob o

ponto de vista legal, apesar da aplicação dos aspectos gerais da legislação civil e

consumerista nas relações entre autores do projeto parental, empresas do ramo

da medicina e doadores, a regulação desta dinâmica triangular ainda permanece

obscura, principalmente quando surgem conflitos com particularidades específicas

da área.

Não apenas a existência de um mercado paralelo que envolve o

pagamento de mães substitutas e material genético causa preocupação, mas a

própria exploração comercial do serviço pelas clínicas médicas, permitida no

Brasil e autorizada pela Resolução. Neste contexto, Carlos e Schiocchet (2006. p.

255) argumentam que a mercantilização da procriação não pode ser defendida,

pois não é ético que a vida, ou peças biológicas que a geram, tenha status de

mercadoria. De acordo com as autoras (2006. p. 258), a forte lógica do mercado,

as construções ilusórias do filho programado e da cura para a infertilidade e o

esquecimento do baixo índice de sucesso dos procedimentos de fertilização,

aliados ao fato de os serviços serem oferecidos “quase que exclusivamente por

clínicas privadas, sem regulamentação legal e fiscalização governamental”

culminam em uma dinâmica de instrumentalização das mulheres e de seus

corpos.

Inseridas na discussão sobre a necessidade de uma legislação brasileira

voltada à regulamentação do comércio da maternidade de substituição, Tamanini

(2004. p. 76) e Buglione (2002. p.73) enfrentam com tom crítico a regulamentação

do tema por um código de conduta profissional de natureza privada e de ausente

suporte jurídico, uma vez que o poder de determinar os procedimentos e

estabelecer comportamentos éticos sobre o tema está reservado à classe médica.

Esta normatização não estatal, fenômeno também conhecido como fragmentação

941

do direito, pode representar a porta de entrada para uma regulação mais próxima

da sociedade, tendo em vista que foi elaborada por profissionais que detêm

profundo conhecimento do tema, todavia, também pode ser vulnerável a

cooptação de um determinado setor, no caso o médico, já que não enfrentou o

crivo democrático do processo legislativo. Um exemplo sobre este problema diz

respeito ao tratamento dado aos casais homossexuais. Apesar de sua inserção

ser uma novidade na norma, o documento demonstra preconceito ao atribuir à

concepção moral particular e à discricionariedade do médico o oferecimento do

serviço, ficando clara a incompletude da norma estabelecida unilateralmente por

um determinado segmento da sociedade.

O Brasil enfrentou recentemente um caso sobre o assunto, que envolveu

uma das maiores clínicas de reprodução humana do país e indicou o perigo da

ausência de regulação. Em 2009, Roger Abdelmassih, renomado médico

brasileiro atuante na área, foi acusado de abusar sexualmente de suas pacientes

(TERRA, 2009). Se já não bastasse as graves acusações, as investigações

apontaram para a existência da prática de uma série de procedimentos

irregulares, utilizados para garantir o sucesso do tratamento e o alto retorno

financeiro da clínica. Uma das técnicas relatadas envolveu o uso de óvulos e

material genético de terceiros, incluindo a mistura de DNA, sem qualquer

consentimento dos autores do projeto parental, em confronto à ética médica

(ÉPOCA, 2010). Recentemente, foi noticiada a condenação em primeiro grau do

médico em ação judicial movida por dois irmãos, nascidos da reprodução humana

assistida, que descobriram não ter relação genética com o suposto pai, que

participou do tratamento juntamente com a mãe (FOLHA DE SÃO PAULO, 2014).

5 CONCLUSÕES

Conforme se percebe pelo desenvolvimento do presente artigo, as técnicas

de reprodução humana assistida como um todo e, em especial, a gestação de

substituição, necessitam urgentemente de regulação pelo direito brasileiro. O

desejo de ter filhos nunca foi tão explorado quanto na sociedade atual, em que as

técnicas de reprodução humana assistida não são mais vistas apenas como um

942

tratamento de saúde reprodutiva, mas, para além disso, tornaram-se um negócio

lucrativo em expansão. A sociedade voltada para o consumo, capaz de explorar

todo e qualquer tipo de desejo humano de maneira econômica, somada ao

fenômeno da globalização, passou a ver o bebê e a sua gestação como um bem

a ser comercializado. Propagou-se, assim, um mercado direcionado ao público

que deseja ter um filho, mas, por razões biológicas ou sociais, não consegue

atingir este sonho e opta pela gestação de substituição, buscando uma mãe

disposta a doar temporariamente o seu útero.

No Brasil, assim como em outros países do mundo, não há legislação

específica sobre as técnicas de reprodução humana assistida e gestação de

substituição. Em um claro exemplo de fragmentação do direito, onde as normas

são produzidas por meio não estatal, a única regulação existente é a Resolução

nº 2.013/2013 criada pelo Conselho Federal de Medicina. Nesta, encontra-se os

princípios gerais que cercam a reprodução humana assistida, destinatários,

limites de faixa etária e consanguinidade, bem como direitos e obrigações das

partes envolvidas (pacientes, médicos e clínicas). É inadmissível que após mais

de trinta anos da primeira experiência brasileira de sucesso no uso destas

técnicas e do crescente registro de casos, o Estado não tenha se debruçado

sobre o tema com o fim de regulamentá-lo.

Os casos Bebê Gammy, Fábrica de Bebês e Roger Abdelmassih

(apresentados no final dos capítulos 2 e 3) possuem características em comum:

os três são resultados dos impactos negativos da fragmentação e

desregulamentação do comércio da maternidade de substituição e da reprodução

assistida em geral inseridos em um ambiente de sociedade do consumo. Gammy,

o bebê com síndrome de down, foi tratado como mercadoria pelos autores do

projeto parental, que o rejeitaram tal qual se faz com um produto com defeito,

buscando reparação à agência supostamente “culpada” pelo “inconveniente”. Aqui

se percebe claramente o intuito comercial do contrato de barriga de aluguel: o

casal australiano pagou pelos “produtos” (bebês gêmeos) que desejava adquirir e,

ao recebê-los, um era “defeituoso” (bebê com síndrome de down), por isso levou

para casa apenas o produto “satisfatório” (bebê saudável).

943

A lógica da sociedade do consumo e o sistema capitalista atrelado a este

modelo necessitam do consumo em excesso. Entretanto, o que dizer do japonês

Shigeta que desejava ter cerca de 10 a 15 bebês por ano utilizando-se da

gestação de substituição? Certamente não é um caso típico do livre exercício da

autonomia da vontade. No mesmo sentido, o possível uso de material genético de

outrem em procedimentos de fertilização sem a autorização dos autores do

projeto parental, como ocorreu no caso do médico Abdelmassih, não só contraria

a ética médica, mas as máximas da boa-fé objetiva que impõe uma relação de

transparência entre as partes contratantes.

Uma melhor regulação entre os direitos e deveres de todas as partes

envolvidas, o papel do contrato assinado pelos doadores a título gratuito, as

estratégias de fiscalização deste serviço médico em expansão e extremamente

lucrativo e as possíveis sanções para o descumprimento da norma permanecem

no vácuo do contexto brasileiro, clamando pela necessidade de maior atenção à

matéria.

REFERÊNCIAS ARAÚJO, N.; VARGAS, D. T.; MARTEL, L. C. V. Gestação de substituição: regramento no direito brasileiro e seus aspectos de direito internacional privado. In: BAPTISTA, L. O.; RAMINA, L.; FRIEDRICH, T. S. (Org.) Direito Internacional Contemporâneo. Curitiba: Juruá Editora, p. 481-510, 2014. BAUDRILLARD, J. A Sociedade de Consumo. Portugal: Edições 70, 2011. BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. BRASIL Mais brasileiras esperam chegar aos 30 para ter primeiro filho. 2014. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/saude/2014/10/mais-brasileiras-esperam-chegar-aos-30-para-ter-primeiro-filho>. Acesso em: 15 jan. 2015. BUGLIONE, S. As Tecnologias Reprodutivas em um Direito em Movimento. In: DINIZ, D.; BUGLIONE, S. (Org.) Quem Pode ter Acesso às Tecnologias Reprodutivas? Brasília: Letras Livres, 2002. CARLOS, P. P.; SCHIOCCHET, T. Novas tecnologias reprodutivas e direito: mulheres brasileiras entre benefícios e vulnerabilidades. Novos Estudos Jurídicos (UNIVALI), v. 11, p. 249-263, 2006.

944

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.358. Brasília, 1992. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1992/1358_1992.htm>Acesso em: 15 dez 2014. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.957. Brasília, 2010. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1957_2010.htm> Acesso em: 15 dez 2014. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.013. Brasília, 2013. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2013/2013_2013.pdf> Acesso em: 15 dez 2014. CORREA, M. Medicina Reprodutiva e Desejo de Filhos. In: GROSSI, M.; PORTO, R.; TAMANINI, M. (Org.) Novas tecnologias reprodutivas conceptivas: questões e desafios. Brasília: Letras Livres, p. 31-38, 2003. DINIZ, D. O impacto das Tecnologias Conceptivas nas relações parentais. Série Anis 24, Letras Livres, Brasília, p. 1-5, abril, 2002. ÉPOCA. Doutor Horror. 2010. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI233387-15228,00-DOUTOR+HORROR +TRECHO .html>. Acesso em: 20 fev. 2015. FOLHA DE SÃO PAULO. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/08/1504144-roger-abdelmassih-e-condenado-a-pagar-r-500-mil-por-troca-de-semen.shtml>. Acesso em: 20 fev. 2015. FONSECA, L. L.; HOSSNE, W. S.; BARCHIFONTAINE, C. P. Doação compartilhada de óvulos: opinião de pacientes em tratamento para infertilidade. Revista Bioethikos, São Paulo, v. 3, n. 2, p. 235-240, 2009. HÉRITIER, F. A coxa de Júpiter - Reflexões sobre os novos modos de procriação. Estudos Feministas, Florianópolis, ano 8, 1º semestre, p. 98-114, 2000. IKEMOTO, L. "Reprodutive Tourism: Equality Concerns in the Global Market for Fertility Services". In: UC Davis Legal Studies Research Paper Serie, n. 189. 2009. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1462477>. Acesso em: 20 fev 2015. MOORE, K. L. PERSAUD, T.V.N. Embriologia Clínica. Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2008.

945

RAGONÉ, H. Incontestable Motivations. In : FRANKLIN, S.; RAGONÉ, H. (Org.) Reproducing Reproduction: kinship, power, and technological innovation. Pennsylvania, Pennsylvania Press, 1998. REDE FEMINISTA DE SAÚDE. Dossiê reprodução humana assistida. Belo Horizonte: Rede Saúde, 2003. SIXTY MINUTES AUSTRALIA. The Australian parents of baby Gammy speak on 60 Minutes. 2014. Disponível em: <http://sixtyminutes.ninemsn.com.au/stories/8887943/the-australian-parents-of-baby-gammy-to-speak-on-60-minutes>. Acesso em 20 fev. 2015. TAMANINI, M. Do Sexo Cronometrado ao Casal Infértil. In: GROSSI, M.; PORTO, R.; TAMANINI, M.. (Org.) Novas tecnologias reprodutivas conceptivas: questões e desafios. Brasília: Letras Livres, p. 123-136, 2003. TERRA. A Outra Face do Médico das Estrelas. 2009. Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoe-temp/edicoes/2045/imprime123221.htm>. Acesso em 20 fev. 2015. THE JAPAN TIMES. Story of Mitsutoki Shigeta’s first Thai surrogate offers clues into mystery of 16 babies. 2014. Disponível em: <http://www.japantimes.co.jp/news/2014/09/02/national/surrogate-offers-clues-into-japanese-with-16-babies/#.VSnWAtzF8zh>. Acesso em: 10 fev. 2015. THE TELEGRAPH. Legal Situation of Surrogacy Explained. 2014. Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/asia/thailand/11006524/Legal-situation-of-surrogacy-explained.html>. Acesso em: 10 fev. 2015. TIME. How High-Tech Baby Making Fuels the Infertility Market Boom. 2014. Disponível em: <http://time.com/money/2955345/high-tech-baby-making-is-fueling-a-market-boom/#money/2955345/high-tech-baby-making-is-fueling-a-market-boom/>. Acesso em: 10 fev. 2015.

946

NANOTECNOLOGIAS E O DIREITO DO CONSUMIDOR: COMO EQUACIONAR OS RISCOS E AS INFORMAÇÕES.

Raquel von Hohendorff,

Wilson Engelmann,

Paulo Junior Trindade dos Santos,

RESUMO: As nanotecnologias são um novo e revolucionário conjunto de tecnologias, que trabalham na bilionésima parte do metro, elaborando produtos novos, com características físico-químicas desconhecidas, submetendo o consumidor a riscos incalculáveis. Estes produtos são lançados no mercado todos os dias e apenas uma pequena parcela dos consumidores possui algum tipo de informação. A sociedade tem o direito fundamental de saber a composição dos produtos do mercado, e este é um pré-requisito para o exercício do direito de escolher o que consumir. Será utilizado o método de abordagem fenomenológico-hermenêutico e como métodos de procedimento o histórico e o comparativo, além da pesquisa bibliográfica e legislativa e textos normativos de diversos organismos internacionais. Como apenas a lei não mais dará conta de produzir as respostas necessárias, incita-se, a partir do pluralismo jurídico, a ideia do diálogo entre as fontes do Direito, aproximando as respostas jurídicas dos demais Sistemas Sociais, buscando alternativas para o delineamento do jurídico de modo mais flexível e adaptável à realidade nanotecnológica. A valorização das diferentes fontes do Direito provocará uma mudança estrutural, renovando a sintonia do Direito com a realidade social e o diálogo entre as fontes do Direito, sem mais a hierarquia obrigatória da lei, permitirá um maior cuidado com a responsabilidade atual e futura dos riscos, ainda pouco conhecidos, oriundos das nanotecnologias. PALAVRAS CHAVE: nanotecnologia, consumidor, direito à informação, diálogo entre as fontes.

1 INTRODUÇÃO

Muito se fala sobre as nanotecnologias. No entanto, cabe perguntar: o que

são as nanotecnologias e quem será atingido pela sua emergência? O termo

“nano” representa uma medida e equivale à bilionésima parte de um metro, isto é,

ao se dividir um metro por um bilhão de vezes, chegamos ao nanômetro. Esta

medida também poderá ser representada pela notação científica de 10-9.

947

Embora neste momento, os benefícios da nanotecnologia dominam o

nosso pensamento, o potencial desta tecnologia para resultados indesejáveis na

saúde humana e no meio ambiente não deve ser menosprezado. Como as

nanopartículas são muito pequenas, medindo menos de um centésimo de

bilionésimo de metro, são regidos por leis físicas muito diferentes daquelas com

as quais a ciência está acostumada. Existem probabilidades de que as

nanopartículas apresentem grau de toxicidade maior do que as partículas em

tamanhos normais, podendo assim ocasionar riscos à saúde e segurança de

pesquisadores, trabalhadores e consumidores.

Os produtos com nanotecnologia já estão no mercado, sendo amplamente

consumidos, sem que existam maiores informações acerca de seus riscos. A

sociedade tornou-se um laboratório sem nenhum responsável pelos resultados do

experimento, no qual os consumidores não possuem o direito de informação

preservado e assim acabando por não poder exercer o direito de opção do que

consumir.

Desta forma, o artigo tem como pretensão demonstrar que somente a lei,

de origem unicamente Estatal, não poderá produzir as respostas necessárias à

realidade nanotecnológica atualmente vivida. Assim, a alternativa passa pelo

pluralismo jurídico, através do diálogo entre as fontes do Direito, que permitirá a

aproximação desta ciência com os diferentes sistemas sociais.

As diferentes fontes do Direito, originárias de diferentes esferas estatais e

não estatais, nacionais e internacionais, deverão ser conjugadas, sendo aplicadas

de forma simultânea e coordenada, filtradas por um filtro dos controles de

constitucionalidade e convencionalidade de modo a adequar a ciência do Direito

às inovações advindas das nanotecnologias. Desta forma, o desafio das

nanotecnologias para o Direito está lançado e será necessário que os

transformadores do Direito elaborarem novas opções de respostas, utilizando as

diferentes fontes jurídicas.

O método de abordagem a ser utilizado será o fenomenológico-

hermenêutico; como métodos de procedimento se utilizarão o histórico e o

comparativo e as técnicas de pesquisa serão bibliográfica e legislativa e textos

normativos de diversos organismos internacionais. Quanto ao método cabe

948

salientar que o mesmo permite que o pesquisador esteja diretamente implicado,

relacionado com o objeto de estudo, sofrendo inclusive as consequências de seus

resultados. Assim, trata-se de uma investigação não alheia ao pesquisador, eis

que ele está no mundo onde a pesquisa é desenvolvida.

2 APRESENTANDO AS NANOTECNOLOGIAS E SEUS RISCOS

Nano” é um prefixo que significa anão. Por isso, a junção desta palavra

com “tecnologias” corresponde ao conjunto de possibilidades tecnológicas, assim,

a expressão deve ser utilizada no plural, representando as condições de

manipular elementos na escala nanométrica, que equivale à bilionésima parte de

um metro. As tecnologias em ultra-pequena escala com toda uma imensa gama

de benefícios já estão no mercado, sendo amplamente consumidas.

Os mais diferentes setores econômicos utilizam nanotecnologias (variadas

produções tecnológicas na escala nanométrica, representando uma alternativa de

manipular átomos e moléculas na bilionésima parte do metro). Como exemplo

podem ser citados protetores solares, calçados, telefones celulares, tecidos,

cosméticos, automóveis, medicamentos produtos para agricultura, medicamentos

veterinários, produtos para tratamento de água, materiais para a construção civil,

plásticos e polímeros, produtos para uso nas indústrias aeroespacial, naval e

automotora, siderurgia, entre outros. Este rol não está fechado, uma vez que as

nanotecnologias estão em processo de desenvolvimento. Assim, deixam de ser

apenas promessas futurísticas e incorporam-se na rotina diária da sociedade

deste início do século XXI, exigindo, portanto, a atenção por parte do Direito.

Eric Drexler (1986), primeiro PhD em nanotecnologia do mundo pelo

Massachusetts Institute of Technology (MIT) afirmou se tratar de “[é] uma nova

tecnologia [que] irá lidar com átomos e moléculas individualmente com controle e

precisão; chamada tecnologia molecular. Isso irá mudar nosso mundo de muitas

formas que nós nem podemos imaginar”. Tal tecnologia se nominou

nanotecnologia, sendo que nano no grego significa anão e um nanômetro

equivale a um milionésimo de milímetro, medida tão pequena que são

949

necessários cerca de 400.000 átomos amontoados para atingir a espessura de

um fio de cabelo.

Desde então, muitas pesquisas foram desenvolvidas e se tem aceitado que

as nanotecnologias trabalham com partículas, materiais e produtos que estão

entre 1 e 100 nanômetros aproximadamente, de modo que, “hoje,

nanotecnologia, no uso amplo do termo, refere-se a tecnologias em que produtos

apresentam uma dimensão (in)significante, isto é, menos de 1/10 de mícron, cem

nanômetros ou cem bilionésimos de metro” (DREXLER, 2009, p. 42).

O termo “nanotecnologia” tem despertado controvérsias acerca das

medidas que devem ser consideradas para a categorização de um produto ou

processo que esteja sendo trabalhado na nano escala. Portanto, deve-se partir de

uma padronização e assim, adota-se aqui a definição desenvolvida pela ISO TC

229 (INTERNATIONAL, 2005), onde se verificam duas características

fundamentais: a) produtos ou processos que estejam tipicamente, mas não

exclusivamente, abaixo de 100nm (cem nanômetros); b) nesta escala, as

propriedades físico-químicas devem ser diferentes dos produtos ou processos

que estejam em escalas maiores.

As nanotecnologias são hoje um dos principais focos das atividades de

pesquisa, desenvolvimento e inovação em todos os países industrializados. Os

nanomateriais são utilizados nas mais diversas áreas de atuação humana,

podendo-se destacar as seguintes áreas: cerâmica e revestimentos, plásticos,

agropecuária, cosméticos, siderurgia, cimento e concreto, microeletrônica, e, na

área da saúde, possuem aplicação tanto na odontologia quanto na farmácia

(especialmente em relação à distribuição de medicamentos dentro do organismo),

bem como em inúmeros aparelhos que auxiliam o diagnóstico médico (AGÊNCIA,

2011, p. 11).

As nanotecnologias têm produzido novos materiais e os riscos para a

saúde humana e ambiental ainda não estão suficientemente avaliados. As

reações físico-químicas dos materiais nesta escala apresentam diferenças, pois

pode ter maior condutividade elétrica e um incremento na interação com o meio

ambiente ou o corpo humano. Em suma: quanto menor a superfície, maior a

quantidade de átomos nela encontrados. Com isso, se poderão fabricar produtos

950

mais leves e resistentes, com menor quantidade de materiais e maiores

potencialidades de uso, mas ao mesmo tempo se ampliam as possibilidades de

riscos, justamente em função do comportamento das partículas e de sua

capacidade de ultrapassar barreiras corporais.

O contexto exige uma efetiva preocupação com a gestão dos riscos que

poderão ser gerados pelas nanotecnologias. A ausência de certeza científica

quanto à ocorrência de efeitos negativos impõe uma abordagem precaucional, a

qual representa a espinha dorsal desta forma de gerenciamento do novo e do

desconhecido. A gestão do risco é parte integrante de um programa maior que

inicia pela saúde e segurança ocupacional. Sabe-se que as exposições potenciais

a nanomateriais podem ser controlados em laboratórios de pesquisa através de

um sistema flexível e um programa de gestão adaptativa risco. No entanto, os

riscos não acabam neste nível, eles também poderão ocorrer no processo

produtivo da indústria, na sua comercialização e durante todo o ciclo de vida do

produto que contenha alguma nanopartícula (ENGELMANN, 2015, p. 358).

Embora neste momento, os benefícios da nanotecnologia dominam o

nosso pensamento, o potencial desta tecnologia para resultados indesejáveis na

saúde humana e no meio ambiente não deve ser menosprezado. Como as

nanopartículas são muito pequenas, medindo menos de um centésimo de

bilionésimo de metro, são regidos por leis físicas muito diferentes daquelas com

as quais a ciência está acostumada. Existem probabilidades de que as

nanopartículas apresentem grau de toxicidade maior do que as partículas em

tamanhos normais, podendo assim ocasionar riscos à saúde e segurança de

pesquisadores, trabalhadores e consumidores.

Os avanços tecnológicos existentes na sociedade contemporânea detêm

um reflexo paradoxal; ao mesmo tempo em que acrescem qualidade de vida às

pessoas, estes são capazes de gerar riscos de potenciais altamente nocivos à

saúde e ao meio ambiente. Para que as instâncias de comunicação (Direito,

Economia e Política) possam reagir aos ruídos produzidos por uma nova forma

social pós-industrial (produtora de riscos e indeterminações científicas), estas

devem construir condições estruturais para tomadas de decisão em um contexto

de risco (CARVALHO, 2006, p. 13).

951

Sociedade de risco constitui um termo desenvolvido por Ulrich Beck,

segundo o qual a produção social da riqueza é acompanhada por uma produção

social de risco, ou, uma das consequências da evolução e desenvolvimento da

sociedade é a sua sujeição a riscos (BESSA, 2010, p. 561). A sociedade de risco

é ainda a sociedade industrial com o acréscimo de ciência e tecnologia

avançadas. A constituição desta Sociedade de Risco gera a produção e

distribuição de novas espécies de riscos (BECK, 1992, p.34-38), ou seja, são

riscos invisíveis, imprevisíveis com os quais os instrumentos de controle falham e

são incapazes de prevê-los (LEITE; AYALA, 2004, p.11-12). A sociedade de risco

caracterizada por Beck recebe, a partir das nanotecnologias, um ingrediente

inusitado: a produção de efeitos – negativos e positivos – em escala invisível e

com as propriedades físico-químicas modificadas, um potencial de risco muito

maior.

Os riscos inerentes à Sociedade de Risco (forma pós-industrial da

Sociedade), entre os quais os ambientais, têm como características a

invisibilidade, a globalidade e a transtemporalidade. Quanto à invisibilidade, é

porque fogem à percepção dos sentidos humanos e também há ausência de

conhecimento cientifico seguro acerca de suas possíveis dimensões. Quanto a

estes riscos, uma vez que o conhecimento científico vigente não é suficiente para

determinar a sua previsibilidade, surge a necessidade de formação de critérios

específicos para a tomada de decisões em contextos de incerteza científica.(

(LEITE; AYALA, 2004, p.88). Em relação à transtemporalidade cabe ressaltar a

questão dos riscos retardados, que se desenvolvem lentamente, ao longo de

décadas ou séculos, que levam gerações a se materializar, mas que assumem, a

certa altura, dimensões catastróficas em virtude da extensão e da irreversibilidade

(ARAGÃO, 2008, p.21). No caso das nanotecnologias, como os riscos são

desconhecidos em sua maior parte e como os produtos seguem sendo lançados

no mercado, os riscos talvez sejam perceptíveis somente com o passar dos anos.

Vale dizer, há mais perguntas do que respostas (BUBZY, 2010, p. 530) Os

impactos nocivos e riscos potenciais à saúde humana e animal, ao meio ambiente

e até em relação ao comportamento humano são ainda pouco conhecidos

(AGÊNCIA, 2010, p. 40). Para a avaliação desses aspectos, deverão ser

952

aperfeiçoados e desenvolvidos testes que busquem identificar: “(i) suas

propriedades físico-químicas; (ii) seu potencial de degradação e de acumulação

no meio ambiente; (iii) sua toxicidade ambiental: e (iv) sua toxicidade com relação

aos mamíferos”(AGÊNCIA, 2010, p. 41).

As questões-chaves na área de nanomateriais incluem a falta de dados

sobre os impactos na saúde, o potencial de toxicidade ambiental e uma

incapacidade de continuar a monitorar quaisquer efeitos adversos. A falta de

tecnologias e protocolos para monitoramento ambiental e sanitário, detecção e

remediação é ainda muito grande e deve ser considerada, apesar de alguns

esforços que estão sendo feitos para resolver o problema. No entanto, existe

também uma falta coordenada de informações a disposição do público sobre os

produtos com nanotecnologia, incluindo onde estão sendo produzidos e usados,

bem como sobre os riscos potenciais que podem existir (SENJEN, 2013).

Existe uma necessidade premente de se avaliar os riscos que existem

atrelados à manipulação, ao desenvolvimento e à aplicação de novas

nanotecnologias. Mais de duas décadas atrás, estudos toxicológicos indicaram

que seria prudente examinar e abordar as preocupações ambientais e de saúde

humana antes da adoção generalizada da nanotecnologia. Com a exceção de

algumas aplicações médicas da nanotecnologia, os governos, as empresas e até

mesmo as universidades ignoraram este conselho. Como resultado, os governos

permitiram que centenas, talvez mais de mil, produtos de consumo com materiais

nanoengenheirados incorporados, fossem comercializados sem qualquer

avaliação de segurança pré-mercado (SUPAN, 2013).

Os instrumentos fundamentais para uma eficiente organização dos

processos de gestão de risco nas sociedades contemporâneas são a

participação, o desenvolvimento do significado jurídico da precaução e

principalmente, a proteção do direito à informação ambiental de qualidade

(AYALA, 20011, p.25).

953

3 CONSUMIDOR NANOTECNOLÓGICO E O DIREITO À INFORMAÇÃO

Os gastos direcionados pela National Nanotechnology Initiative (NNI), dos

Estados Unidos, para o desenvolvimento de produtos a partir da escala

nanométrica são muito superiores do que os gastos com testes de segurança

(BEHAR; FUGERE; PASSOFF, 2013): em 2011, foram gastos 1,847 bilhões de

dólares com o desenvolvimento de produtos, contra 88 milhões de dólares para

testes de segurança (saúde e segurança ambiental); já em 2012, foram gastos

1,690 bilhões de dólares com o desenvolvimento de produtos, contra 102,7

milhões de dólares para a realização de testes de segurança; para o ano de 2013,

foram propostos os seguintes valores: 1,760 bilhões de dólares para o

desenvolvimento de produtos e 105,4 milhões de dólares para testes de

segurança. Estes números mostram a ampla valorização dos aspectos positivos

(as possibilidades) prospectadas para as nanotecnologias, que acabam

obnubilando os estudos sobre riscos que a manipulação em nano escala poderão

gerar (os aspectos negativos).

Todos acabam sendo consumidores de “nano produtos”. No entanto, uma

pequena parcela destes “todos” sabe alguma coisa sobre as nanotecnologias.

Portanto, aí se desenha um importante espaço para o alinhamento dos contornos

do chamado “direito à informação”. (ENGELMANN, HOHENDORFF, 2014).

A sociedade tem o direito fundamental de saber a composição dos

produtos do mercado, e este é um pré-requisito para o exercício do direito de

escolher o que consumir. Torna-se necessária a discussão acerca do princípio da

informação, corolário do dever de informação que cabe ao produtor, visando à

proteção do consumidor de produtos nanotecnológicos.

O avanço das nanotecnologias, num conjunto crescente de aplicações,

começa a integrar o cotidiano da sociedade brasileira e mundial. Por outro lado,

as pesquisas e os produtos que advirão desta intervenção humana nas forças

naturais exigirão a divulgação das informações ao mercado produtor e

consumidor, pois há, inclusive, previsão constitucional deste direito fundamental,

qual seja, o “direito à informação”, como um direito subjetivo que nasce com o

dever subjetivo do empresário: o “dever de informar”.

954

O direito à informação trata de um direito coletivo da informação ou do

direito da coletividade à informação; o direito de informar, como aspecto da

liberdade de manifestação do pensamento, revela-se um direito individual, mas já

contaminado de sentido coletivo, em virtude das transformação de meios de

comunicação, de sorte que a caracterização mais moderna do direito de

comunicação, que especialmente se concretiza pelos meios de comunicação

social ou de massa. Ao lado do direito individual corrobore-se o direito coletivo

(SILVA, 2005, p. 259). Encontra-se disposto no artigo 5º, incisos IV, XVI e XXXIII

cumulado com os artigos 220 a 224, sendo que “declaram que é assegurado a

todos o acesso à informação. É o interesse geral contraposto ao interesse

individual da manifestação de opinião, ideias e pensamento, veiculador pelos

meios de comunicação social. Daí por que a liberdade de informação deixará de

ser mera função individual para tornar-se função social”. (SILVA, 2005, p. 260).

A sociedade tem o direito fundamental de saber a composição dos

produtos que estão à venda no mercado. É um pré-requisito para o exercício de

outro direito, ou seja, o direito de escolher, de optar. O Código de Defesa do

Consumidor (CDC), por meio do seu art. 318, estabelece uma série de requisitos

que deverão ser observados quando os produtos são colocados em

comercialização. Este dispositivo legal carrega no seu seio uma efetiva

caracterização de elementos necessários para se conhecer o produto comprado.

No entanto, não basta somente isso. A informação deverá vir acompanhada de

educação. É insuficiente colocar uma série de informações no rótulo ou na

propaganda do produto. Será necessário educar o consumidor para ler e

interpretar, conhecer e compreender o seu conteúdo (ENGELMANN, CHERUTTI,

2013). O pleno exercício do direito à informação, que é do consumidor, depende

de um aspecto preliminar: a prática do dever de informação, que é do fabricante e

do comerciante. Assim, se tem uma reciprocidade e complementariedade entre

direito e dever, os quais assumem importância peculiar no caso das

nanotecnologias.

8 “A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidades, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores”.

955

No caso do citado art. 31, do CDC, há uma referência expressa à

obrigação de se informar os riscos que o produto possa gerar em relação à saúde

e segurança dos consumidores. Constata-se uma falha na comunicação entre os

Sistemas do Direito, da Economia e da Ciência. Esta última deverá buscar

subsídios para que o Sistema do Direito possa decidir, observando as diretrizes

oriundas do Sistema Econômico. Há uma marcada incerteza em todos os

Sistemas Sociais que são chamados a operar com as nanotecnologias. No caso

do Sistema do Direito esta situação vem caracterizada pela inadequação da

formulação legislativa consumerista relacionada ao direito à informação. Os

produtos contendo nanopartículas estão chegando ao mercado, mas os

consumidores não estão recebendo as informações adequadas, a fim de poderem

exercer democraticamente o exercício de comprar ou não (ENGELMANN,

HOHENDORFF, 2014).

A concretização do direito à informação auxilia na construção de um

ambiente de participação democrática dos cidadãos. A concretização dessa figura

constitucional (possuidora de alta carga democrática) parece ser o modelo capaz

de garantir um poder cidadão, objeto das alienações e descumprimento, por parte

do Poder Público (BONAVIDES, 2001, p. 25).

O “direito de saber” como a estrutura central do “direito à informação”, que

é destinado à sociedade, e do “dever de informação”, dirigido ao pesquisador e

empresário, deverá ser perspectivado desde o trabalho com a matéria-prima, ou

seja, a produção material em estado bruto, onde se terá a exposição direta do

trabalhador, além da emissões industriais. Este conjunto já atinge a população

humana e o meio ambiente. Os produtos manufaturados vão ao mercado

consumidor, onde eles são adquiridos, com a exposição dos consumidores, isto é,

toda a sociedade. A terceira etapa é aquela onde os produtos serão descartados,

incluindo as embalagens, que irão aos grandes espaços de depósito do lixo e

incineração, onde teremos nova exposição dos trabalhadores e,

concomitantemente, a população humana e o meio ambiente. Neste pequeno e

singelo exemplo de ciclo de vida de um produto com nanopartícula mostra as

diversas formas de exposição, onde se exigirá o conhecimento do que se está

manipulando e quais os riscos. (ENGELMANN, 2015, p. 359-360)

956

Assim, “a informação, ao passar conhecimentos, vai ensejar da parte do

informado a criação de novos saberes, através do estudo, da comparação ou da

reflexão.”(MACHADO,2006. p. 27.) O cerne do “direito de saber” é justamente

este conhecimento mínimo sobre os progressos científicos que são gerados nos

laboratórios e, muitas vezes, fomentados pelo próprio Estado, por meio de seus

órgãos de fomento (CAPES, CNPq, FINEP, FAPERGS, entre outros). Em cada

momento do ciclo de vida dos nano produtos deverá ser gerado uma espécie de

conhecimento que seja adequado e compreensível pelos sujeitos envolvidos

(ENGELMANN, 2015, p. 360)

Resta a questão: Qual a alternativa para dar conta desta situação? O

direito à informação não é exercido e o dever de informação tampouco é

estimulado. Um “cuidado” anexo à abordagem precaucional é a informação e o

fomento à participação pública sobre as decisões que envolvam as

nanotecnologias. Não há uma resposta pronta para esta nova realidade que nos

deparamos, mas é fundamental que se dê o primeiro passo e não se esquecer:

“[...] para fazer evoluir a cultura científica importa que o público seja bem

informado e participe, com conhecimento de causa, em debates. Promover a

cultura científica faz parte de uma boa higiene democrática. É indispensável para

permitir ao público compreender a orientar o progresso.” O “direito de saber”, ou o

“direito de ser informado”, integra o planejamento da sociedade inscrito na

essência do Estado Democrático de Direito. (ENGELMANN, 2015, p. 363).

O exercício do direito à informação pelos seus titulares, provocará a

necessária prática do dever de informação.

Portanto, verifica-se a necessidade da utilização do princípio da informação

para proporcionar ao consumidor a autonomia de escolha dos produtos,

cientificando-os dos riscos que possam ser produzidos pelo consumo destes. É

importante a efetiva aplicação do princípio da informação de modo que a

sociedade possa compreender a dimensão que assume a defesa do consumidor

frente aos possíveis riscos dos produtos nanotecnológicos.

A figura do consumidor final, que ingere alimentos com nanoagroquímicos,

por exemplo, sem conhecimento disto e muito menos dos riscos a que está

exposto traz à lembrança vários outros produtos lançados e consumidos antes do

957

conhecimento de seus prejudiciais efeitos à saúde, como o amianto. Há a

comparação com os transgênicos, pois existe a possibilidade de uma enorme

rejeição por parte dos consumidores, quando souberem dos possíveis riscos,

ressaltando que a tolerância aos riscos quando se trata de drogas e tratamentos

médicos tende a ser muito maior do que em relação aos alimentos. A

possibilidade de não tolerância por parte do consumidor em relação aos alimentos

com produtos nanoagroquímicos é muito grande e real, trazendo à tona também a

questão da responsabilidade do produtor. (HOHENDORFF, ENGELMANN, 2014).

Se o fabricante respeitar todos os ingredientes que se encontram no artigo

31, do CDC, pode-se concluir que as nanotecnologias chegarão ao mercado

consumidor, permitindo-se uma escolha adequada, dentro de um nível humana e

ambientalmente tolerável, a partir de uma relação de responsabilidade

prospectiva entre os pesquisadores, fabricantes e consumidores e uma adequada

gestão dos riscos presentes e futuros. É preciso que as informações decorrentes

do estudo dos riscos tenham ampla divulgação e estejam disponíveis para a

sociedade consumidora, ou seja, para que os atores envolvidos diretamente nas

decisões sobre a limitação ou não do uso das nanotecnologias e a sociedade civil

tenham melhores condições frente aos desafios surgidos com esta nova

tecnologia.

Desta forma, cabe ao Direito, como ciência, possibilitar a criação de

instrumentos jurídicos com objetivo de efetivar medidas de gerenciamento

preventivo do risco, baseado nos princípios da prevenção, da precaução, da

responsabilização, da informação e da sustentabilidade, objetivando sempre o

cuidado com o ser humano e o meio ambiente.

4 O PAPEL DO DIÁLOGO ENTRE AS FONTES DO DIREITO FRENTE AO DESAFIO NANOTECNOLÓGICO E O DIREITO DO CONSUMIDOR

O contexto assim observado se mostra desafiador para o Direito, pois terá

que lidar com os danos futuros, a partir de decisões que deverão ser tomadas no

presente. Vale dizer, o Direito se vê confrontado com uma situação de incerteza e

complexidade, que precisará ser respondida criativamente e por meio de

958

ferramentas diferentes daquelas tradicionalmente fornecidas pelo positivismo

jurídico, especialmente aquele de viés legalista.

Por isso, ao invés daquelas características do positivismo jurídico, busca-

se ampliar a efetividade, a adequação das respostas às perguntas formuladas

pelas novas e nanotecnologias (ENGELMANN, 2013, p. 260). Tais mudanças

profundas no Sistema do Direito se fazem urgentes e necessárias, a fim de

possibilitar o seu diálogo com os demais Sistemas, especialmente o Sistema da

Ciência, com o foco no equacionamento dos eventuais riscos que poderão vir

junto com o aprofundamento da Revolução Nanotecnológica.

Será necessário emitir respostas regulatórias para as incertezas das

nanotecnologias (PORTER et al, 2012). É fundamental equacionar o rápido

avanço no desenvolvimento de produtos à base da nano escala com o incremento

de testes cientificamente aceitáveis e confiáveis sobre os efeitos que as

nanopartículas causam ao ser humano e ao meio ambiente.

O pluralismo de fontes passa a ser uma das alternativas frente à

necessidade de evolução do Direito, para que este possa tratar dos desafios

surgidos com o advento das novas tecnologias, entre elas, as nanotecnologias. A

lei demonstra ser incapaz de prever todos os casos concretos, no entanto, as

situações não previstas seguem exigindo posições e soluções do jurídico. Um dos

desafios é aprender a pluralidade das fontes, vencendo o reducionismo

codificador (FACHIN, 2008, p.4). É necessário que os transformadores do Direito

desfaçam a ideia geral de que a lei pode (deve) resolver qualquer problema, pois

é exatamente essa crença que tem dificultado a evolução do Direito. Afirma-se em

geral, que a lei encerra todo o Direito, mas a concepção dogmática da lei,

imaginada como uma regra universal, editada para o futuro e para sempre, pode

ser inexata (CRUET, 1908, p. 17). A consideração da lei como principal fonte do

Direito precisa ser revista, especialmente porque a lei sempre olha para o

passado, um tempo incompatível com as novas tecnologias. (ENGELMANN,

2011, p. 351).

Tudo leva a crer na fundamentalidade de uma “governança antecipatória”,

com o aproveitamento de experiências externas, o desenvolvimento de pesquisas

inter ou transdisciplinares, considerando o futuro no presente e não simplesmente

959

jogando as questões centrais para o futuro, como algo que ainda esteja por vir.

Dentro deste cenário, os fios de condução deverão ser “[...] os esforços de

avaliação de tecnologia para considerar as implicações de longo prazo das novas

tecnologias para o conceito de governança antecipatória, que inclui um papel

mais substantivo para os atores não-governamentais”. (MICHELSON, 2013, p.

464).

Mas destaca-se que isso não significa o abandono do Estado e do seu

papel regulatório. No entanto, neste momento, dada a premência da remodelação

das suas estruturas normatizadoras, o Estado não estará em condições de

desempenhar este papel.

Assim, o Direito e a produção do jurídico deverão ser guiados pelo diálogo

entre as fontes do Direito, revelando-se novamente o papel deste capítulo da

Teoria Geral do Direito, mediante a harmonização entre os diversos atores

envolvidos, sem a proeminência de um em relação ao outro.

As nanotecnologias passam a exigir um efetivo diálogo entre as fontes do

Direito, sem uma hierarquia, mas com canais de comunicação, onde as fontes

(nacionais/internacionais, de origem estatal ou não, leis, tratados, costumes,

princípios, resoluções, normas técnicas e instruções normativas de agências

reguladoras estatais, normas sobre a saúde e segurança do trabalhador da OIT,

normas e princípios Ambientais) estarão lado a lado, buscando soluções para a

adequada resolução do caso concreto, mas sempre sendo filtradas no arcabouço

normativo-principiológico-axiológico contido na Constituição Federal e pelo

controle de Convencionalidade.

O Diálogo entre as fontes utiliza a aplicação simultânea e coordenada das

diferentes fontes legislativas (leis especiais e leis gerais, de origem nacional e

internacional).

Resta demonstrado que são muitos os modos de produção do Direito

(fontes) e que o centro de produção deslocou-se do Estado (antes único produtor)

para vários outros locus da sociedade nacional e internacional, adequando assim

a ciência do Direito às grandes transformações introduzidas pelas novas

tecnologias, que esperam respostas legais às novas situações surgidas.

Importante destacar que entre os locus atuais produtores das fontes do Direito,

960

estão as organizações, principalmente as empresariais, produtoras de diretrizes e

normas técnicas, adequadas às inovações nanotecnológicas (ENGELMANN,

2012, p. 330).

Será o caso concreto, ou seja, a segurança das pessoas e do meio

ambiente, que deverá conduzir a decisão sobre prosseguir ou não nas pesquisas;

continuar ou não a produção de objetos; aumentar ou recuar a comercialização de

produtos que tenham alguma relação com as nanotecnologias. Este é o desafio

do Direito, como umas das Ciências responsáveis pela avaliação e regulação dos

impactos, neste momento histórico. Percebê-lo, aceitá-lo e buscar soluções serão

as alternativas necessárias para a sua sobrevivência como área de

conhecimento. (ENGELMANN, 2013, p. 311).

De alguma forma é possível afirmar que os juristas, em sua maioria, estão

sempre a contemplar um normativo que já não mais corresponde ao presente,

ademais, por vezes, relutam em admitir que as necessidades do presente e as

projeções futuras reclamam por inovação e persistem em “ver o que passou e não

ver ainda o que já existe” (MOLINARO, SARLET, 2015, p. 86).

A falta de certeza e a necessidade do Direito ter de aprender a lidar com

isso e de ser capaz de fornecer as respostas necessárias à nova realidade

também fortalecem o diálogo entre as fontes como alternativa possível. Desta

forma, a produção do Direito não mais estará centralizada e focada no Estado e

no Poder Legislativo, mas sim nas mais diferentes fontes, nacionais e

internacionais, de origem no Estado e em outros atores, para que o Direito

consiga tratar adequadamente as demandas provenientes desta nova revolução

tecnocientífica, não permanecendo estagnado à espera de um marco regulatório

tradicional, fortemente vinculado e embasado na lei, com conceitos fixos e

inadequados à velocidade de transformação e ampliação dos conhecimentos nas

áreas das ciências duras, especialmente em relação às nanotecnologias.

Deste modo, se faz necessária a inovação do Direito, para que não fique à

margem da revolução nanotecnológica que vem acontecendo e possa criar

respostas jurídicas flexíveis (inclusive precaucionais, antecipando-se aos

possíveis riscos) que respeitem tanto o ser humano quanto o meio ambiente, em

consonância com as reais necessidades da sociedade.

961

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A utilização da escala nanométrica impacta os processos de produção não

apenas pelo tamanho das partículas utilizadas, mas também pelas características

físico-químicas que agregam aos produtos. Mas, são estas mesmas propriedades

físico-químicas que acendem um alerta: a saúde humana e ambiental pode estar

sendo colocada em risco. Assim, as nanotecnologias marcam a Sociedade de

Risco, impactando as diversas áreas do conhecimento de modo que a economia,

a política, o Direito, e tantos outros sistemas sofrerão mudanças com as estas

novas tecnologias.

O desafio da nanotecnologia na atualidade, para o Direito, é como a

sociedade poderá colher os benefícios da produção em nano escala e,

concomitantemente não sofrer os danos associados com a saúde humana e

riscos ambientais que podem advir juntamente com esta tecnologia. Não há hoje,

conhecimento disponível para definir todos os possíveis riscos associados aos

nanomateriais, e assim, se torna necessária e imprescindível a gestão dos riscos

para que as decisões possam objetivar a redução deles.

Neste sentido, o direto do consumidor também sofre impactos,

especialmente no tocante ao direito de informação, que permitirá ao consumidor

poder realmente fazer uma opção de consumo. Ainda, concomitantemente a este

direito surge para o empreendedor o dever de informação.

Frente à necessidade de criar formas de operacionalizar a aplicação do

Direito diante dos riscos das nanotecnologias, obedecendo sempre ao preceito

constitucional de respeito à dignidade da pessoa humana, o diálogo entre as

fontes torna-se uma opção muito palpável.

A possibilidade de uso de diferentes fontes do Direito, sempre as passando

pelo controle de constitucionalidade (através da filtragem no arcabouço

normativo-principiológico-normativo contido na Constituição Federal) e de

convencionalidade, parece ser uma resposta adequada (e possível para este

momento) à questão das nanotecnologias e seus riscos, especialmente pela

possibilidade de usar fontes dos diferentes ramos do direito que se entrelaçam,

cada uma contribuindo com seus conhecimentos específicos. Por este modelo,

962

onde as fontes (nacionais e internacionais) estarão uma ao lado da outra,

podendo conjugar contribuições para a adequada resolução do caso concreto, o

que se pretende é o trabalho conjunto das fontes do Direito, movimentando-se

horizontalmente, com caminho de passagem obrigatório pelo centro, onde estará

a Constituição da República.

Somente assim o Direito poderá produzir respostas às demandas surgidas

em função da nova realidade gerada pelo uso e impactos das nanotecnologias,

conjugando o respeito ao ser humano e ao meio ambiente com a inovação e

ampliação do conhecimento nas áreas das ciências duras. É preciso um Direito

crítico, capaz de fazer leituras da realidade e apto a provocar as mudanças

necessárias nesta realidade, sob pena de restar isolado das outras áreas do

conhecimento, que se utilizarão dos espaços vazios deixados pelo Direito, para

atuarem, inclusive em questões regulatórias.

REFERÊNCIAS:

AGÊNCIA BRASILEIRA DE DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL - ABDI. Nanotecnologias: subsídios para a problemática dos riscos e regulação. Brasília: ABDI, 2011. ________. Estudo prospectivo nanotecnologia. Brasília: ABDI, 2010. ARAGÃO, A. Princípio da precaução: manual de instruções. Revista do Centro de Estudos Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, Coimbra, n. 22, a. XI, 2, 2008. AYALA, P. de A. Transdisciplinaridade e os novos desafios para a proteção jurídica do meio ambiente nas sociedades de risco: entre direito, ciência e participação, Revista de Direito Ambiental, São Paulo, a. 16, n. 61, p. 17-36, jan./mar. 2011. BEHAR, A.; FUGERE, D.; PASSOFF, M. Slipping Through the Cracks: An Issue Brief on Nanomaterials in Food. As You Sow, 2013. Disponível em: <www.asyousow.org/health_safety/nanoissuebrief.shtml> Acesso em 04 mar. 2015. BECK, U. Risk society: towards a new modernity. London: Sage, 1992.

963

BESSA, L. R. I. Meio ambiente do trabalho enquanto direito fundamental, sua eficácia e meios de exigibilidade judicial. Revista LTr, v. 74, n. 5, maio 2010. BONAVIDES, P. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. BUZBY, J. C. Nanotechnology for food applications: more questions than answers. The Journal of Consumer Affairs, v. 44, n. 3, 2010. CARVALHO, D. W. de. Os riscos ecológicos e sua gestão pelo direito. Estudos Jurídicos – UNISINOS, São Leopoldo, v. 39, n. 1, p. 13, jan./jun. 2006. DREXLER, E. Os Nanossistemas. Possibilidades e Limites para o Planeta e para a Sociedade. In: NEUTZLING, I. e ANDRADE, P. F. C. de (Org.). Uma Sociedade Pós-Humana:Possibilidades e limites das nanotecnologias. São Leopoldo: Unisinos, 2009. ENGELMANN, W. O “direito de ser informado” sobre as possibilidades e os riscos relacionados às nanotecnologias: o papel do engajamento público no delineamento de um (novo) direito/dever fundamental. In: MENDES, G. F.; SARLET, I. W.; COELHO, A. Z. P. (Org.). Direito, inovação e Tecnologia. São Paulo: Saraiva, 2015. ENGELMANN, W.; HOHENDORFF, R. V. Perspectivas para o Direito à informação (artigo 31, do CDC) diante da instalação das nanotecnologias no mercado consumidor. In: II Congresso Direito e Sociedade do Unilasalle, 2014. ENGELMANN, W. O direito frente aos desafios trazidos pelas nanotecnologias. In: STRECK, L. L.; ROCHA, L. S.; ENGELMANN, W. (Org.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica, Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda, v. 10, 2013. ENGELMANN, W.; CHERUTTI, G. Da Educação ao Direito à Informação: desafios e possibilidades para estes direitos fundamentais na Era das Nanotecnologias. In: ENGELMANN, W.; SCHIOCCHET, T. (Coords.). Sistemas Jurídicos Contemporâneos e Constitucionalização do Direito: releituras do Princípio da Dignidade Humana. Curitiba: Juruá, 2013. ENGELMANN, W. Os avanços nanotecnológicos e a (necessária) revisão da teoria do fato Jurídico de Pontes de Miranda: compatibilizando “riscos” com o “direito à informação” por meio do alargamento da noção de “suporte fático” In: STRECK, L. L.; MORAIS, J. L. B. de; ROCHA, L. S. (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica, Anuário do Programa de Pós Graduação em Direito da Unisinos: Mestrado e Doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, v. 8, 2011. p. 351.

964

HOHENDORFF, R. V.; ENGELMANN, W.; Nanotecnologias Aplicadas aos Agroquímicos no Brasil: a gestão dos riscos a partir do diálogo entre as fontes do direito. Curitiba: Juruá, 2014. INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION - ISO. ISO / TC229. Disponível em: <http://www.iso.org/iso/standards_development/technical_committees/list_of_iso_technical_committees/iso_technical_committee.htm?commid=381983>. Acesso em: 19 mar. 2015. LEITE, J. R. M.; AYALA, P. A. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. Teoria e Prática. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010. MACHADO, P. A. L. Direito à Informação e Meio Ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006. MICHELSON, E. S. “The Train Has Left the Station”: The Project on Emerging Nanotechnologies and the Shaping of Nanotechnology Policy in the United States, New York, Review of Policy Research, vol. 30, Issue 5, p. 464-487, September 2013. MOLINARO, C. A.; SARLET, I. W. Apontamentos sobre direito, ciência e tecnologia na perspectiva de políticas públicas sobre regulação em ciência e tecnologia. In: MENDES, G. F.; SARLET, I. W.; COELHO, A. Z. P. (Org.). Direito, inovação e Tecnologia. São Paulo: Saraiva, 2015. SILVA, J. A. Direito Constitucional Positivo. 25ª ed.. São Paulo: Editora Malheiros, 2005. SENJEN, R. Nano and biocidal silver: extreme germ killer present a growing threat to public health. Disponível em: <http://nano.foe.org.au/sites/default/files/Nanosilver%20Report%202009.pdf>. Acesso em: 20 mar.2015. SUPAN, S. Nanomaterials in soil. Our Future food chain? Institute for Agricultural and Trade Policy: ATP, 2013. Disponível em: <http://www.iatp.org/files/2013_04_23_Nanotech_SS.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2015.

965

O TRANSPORTE AQUAVIÁRIO NA BAÍA DE GUANABARA E A PRECARIEDADE DA ESCUTA AOS USUÁRIOS-PASSAGEIROS

Edson Alvisi Neves9

Fernanda Pontes Pimentel10

Armando Luiz Gomes Fernandes11

RESUMO: Este estudo visa analisar o transporte aquaviário realizado na Baía de Guanabara e a ausência de canais adequados para a oitiva do consumidor-passageiro. Analisa o conceito de usuário-consumidor e sua potencial vulnerabilidade, bem como a aplicação do Código de Defesa do Consumidor no estabelecimento de ferramentas adequadas para atender ao transportado. A partir da análise dos relatórios da agência reguladora competente a fiscalizar essa atividade, verifica-se a insuficiência dos mecanismos de atenção e escuta ao consumidor-usuário. Assim, identifica-se que as ferramentas de escuta existentes são desenvolvidas de maneira a prejudicar a natureza paritária dos contratos, reforçando-se uma desigualdade fática entre as partes negociantes, embora seja preservada a autonomia da vontade negocial e criando um contexto de vulnerabilidade ao consumidor aderente. PALAVRAS-CHAVE: consumidor-passageiro; transporte aquaviário, ouvidoria.

1 INTRODUÇÃO

O transporte aquaviário na Baía de Guanabara é responsável pelo

deslocamento de expressiva parcela da população trabalhadora do Grande Rio,

especialmente dos municípios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí12, locais

9 Professor titular e Diretor do Curso de Direito da Univerdade Federal Fluminense. Professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Linha de Pesquisa: Acesso à justiça (PPGSD/UFF);

10 Professora e chefe do departamento de direito privado da Universidade Federal Fluminense (SDV/UFF). Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, Linha de pesquisa: Acesso à justiça (PPGSD/UFF);

11 Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro do Grupo de Pesquisa “Empresa, Direito e Sociedade Contemporânea”.

12 Esses três municípios somam 1.754.541 segundo dados do IBGE no ano de 2014. Assim, vislumbra-se o volume de usuários do transporte aquaviário, que somou no mesmo período 29 milhões de passageiros. Disponível em http://cidades.ibge.gov.br/xtras/uf.php?lang=&coduf=33&search=rio-de-janeiro, acesso em 04 de abril de 2015.

966

densamente povoados e grandes fornecedores de mão-de-obra para as

atividades econômicas desenvolvidas na Capital do Estado. Segundo dados da

Concessionária exploradora do serviço de transporte – CCR Barcas, em 2014

foram 29 milhões de usuários, nas seis linhas mantidas pela Companhia13.

Esse serviço é oriundo de uma concessão pública, firmada em 12 de

fevereiro de 1998 entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro e consórcio de

empresas privadas14 que constituiu a Barcas S.A., hoje conduzida pelo Grupo

CCR mediante aquisição do controle acionário da sociedade concessionária.

Como concessão pública, a exploração do transporte aquaviário se

estabelece em relação ao usuário-passageiro como um contrato prestação de

serviços firmado sob as regras protetivas do Código de Defesa do Consumidor e

pela atuação de agências reguladoras da atividade desenvolvida, no caso em

questão, a AGETRANSP – Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos

de Transportes Aquaviários, Ferroviários e Metroviários e de Rodovias do Estado

do Rio de Janeiro, cuja atuação deve promover uma “regulação social”, levando

ao consumidor segurança, transparência e informações adequadas, permitindo-

lhe uma escuta que garanta a efetivação de direitos dos envolvidos, sejam os

consumidores, as empresas reguladas e os representantes políticos (IDEC, 2013,

p. 15).

2 DO FERRY-BOAT AO CATAMARÃ CHINÊS – UMA TRAJETÓRIA DE TROPEÇOS

A ligação aquaviária entre Niterói e a cidade do Rio de Janeiro, à época

denominada Corte, era realizada de forma irregular e por embarcações de

pequeno porte mais voltadas ao transporte de carga para os portos do fundo da

13 “A CCR Barcas, por sua vez, foi responsável pelo transporte de 29 milhões de passageiros nas

seis linhas que opera no Estado do Rio de Janeiro. Esse total representa um decréscimo de 4,2% em relação a 2013, devido a fatores como maior número de dias úteis na comparação com o período anterior (diminuindo o fluxo turístico) e o fechamento de via localizada próximo à Praça XV, que concentrava pontos de ônibus de diversas linhas municipais e intermunicipais com integração às Barcas das linhas Rio-Niterói, em razão das obras na região”. Disponível em http://www.grupoccr.com.br/ri2014/desempenho.html, acesso em 08 de abril de 2015.

14 Disponível em http://www.agetransp.rj.gov.br/agetransp/index.php/aquaviario/barcas-sa/89-contratos, acesso em 08 de abril de 2015.

967

baía. Em 1835, as primeiras linhas regulares entre as duas cidades foram criadas

pela empresa Sociedade de Navegação de Nichteroy que operava três

embarcações com capacidade para 250 pessoas. Os trajetos eram de hora em

hora e tornou o deslocamento entre a Capital do Império e a Capital da Província

Fluminense efetivo. Em 1840, foi criada a Companhia Inhomirim para transporte

de carga e passageiros entre a Corte e os portos da Estrela (atual Magé), das

Caixas (Itaboraí) e Niterói, tendo se fundido com a Sociedade de Navegação de

Nichteroy e criada uma rota até Botafogo (NUNES, 2000:29).

A Companhia Ferry, de propriedade do norte-americano Cliton Von Tuyl,

foi criada através do Decreto 2184 de 5 de junho de 1858, e sua operação efetiva

a partir de 29 de agosto de 1862 causou a falência das duas empresas em

atividade em 1865.

Já a empresa Barcas Fluminense operou entre 1870 e 1878, cujo

proprietário era Carlos Fleiuss, não resistiu a concorrência com Companhia Ferry

e terminou por ser incorporada. Em 1889, a Companhia Ferry se fundiu com a

Empresa de Obras Públicas do Brasil que explorava o serviço de distribuição de

água e serviços de carris (ônibus elétricos) de Niterói. Dessa fusão surgiu a

Companhia Cantareira e Viação Fluminense que com a eliminação da

concorrência apresentou forte desenvolvimento econômico e, a partir de 1903,

expandiu suas viagens à Ilha de Paquetá e para a Ilha do Governador.

A Cantareira, como a empresa era mais conhecida, associada em 1909 à

Leopoldina Railways operou até 1959 quando foi estatizada diante de seus

problemas econômicos. Aconteceram duas mudanças de controle acionário: em

1945 o controle foi adquirido pela Frota Carioca S.A.; em 1953 pela Frota Barreto

S. A., de propriedade do Grupo Carreteiro. A estatização ocorreu após o episódio

conhecido como a “Revolta das Barcas” em 22 de maio 1959. Nesta data, os

usuários insatisfeitos com o péssimo serviço prestado e diante da estação das

barcas de Niterói fechada devido à greve dos marinheiros, invadiram o local e o

destruíram, seguindo depois para a residência da família Carreteiro e a

depredaram. A “Revolta das Barcas” foi o último ato de uma série de

acontecimentos. Em fevereiro do mesmo ano o Grupo Carreteiro ameaçara

968

paralisar a travessia caso não houvesse aumento nas tarifas de embarque ou um

maior subsídio do governo estadual.

Diante do insucesso de seus pleitos, no mês seguinte o Grupo Carreteiro

retirou de circulação diversas embarcações que faziam a travessia e deixou de

pagar os salários dos trabalhadores alegando falta de verba, resultando na greve

do dia 22 de maio que originou a Revolta. Os conflitos na estação as barcas

foram extremamente violentos vez que o local estava protegido por policiais e por

fuzileiros navais. Diante de mais de três mil pessoas depredando o local, os

fuzileiros navais efetuaram diversos disparos de metralhadora deixando como

saldo seis mortos e 125 feridos. Em face do ocorrido, o Governo Federal estatiza

a Companhia Cantareira e o transporte aquaviário passa ser realizado de forma

precária, inclusive com embarcações cedidas pela Marinha (NUNES, 2000).

Em 1967 o Governo Federal criou a STBG – Serviços de Transportes da

Baía de Guanabara, uma sociedade de economia mista com o monopólio do

transporte aquaviário entre o Rio de Janeiro e Niterói. A STBG passou ao controle

do governo estadual em 1971 que a nomeou CONERJ – Companhia de

Navegação do Estado do Rio de Janeiro em 1973.

Em 1998, por meio de licitação pública foi concedida a exploração da

concessão por 25 anos do transporte aquaviário de passageiros a um consórcio

de empresas privadas, cujo controlador era o Grupo JCA de empresas de ônibus,

sendo criada a empresa Barcas S. A. Transportes Marítimos. O contrato firmado

prevê a possibilidade de extensão da concessão por mais 25 anos com término

previsto para fevereiro de 2023. Com projeto da estação do arquiteto Oscar

Niemeyer, em 2004 foi criada a linha seletiva Rio – Charitas com embarcações

menores e mais velozes (PACIFICO, 2010).

Em julho de 2012, o Grupo CCR, empresa paulista detentora de diversas

concessões de rodovias, adquire o controle acionário da companhia que passa a

ser denominada CCR Barcas em atividade até a presente data. Segundo dados

da companhia, em julho de 2012 operava cinco linhas regulares: Rio-Niterói, Rio-

Paquetá, Rio-Ilha do Governador, Angra dos Reis-Ilha Grande e Ilha Grande-

Mangaratiba, além da seletiva Rio-Charitas. A frota se compõe de vinte

embarcações: seis catamarãs seletivos (227 passageiros); cinco catamarãs

969

sociais (1.300); nove barcas tradicionais (2.000) que transportaram em 2011 por

volta de 29 milhões de passageiros em 81 mil viagens15.

Contudo, a insatisfação dos usuários quanto ao serviço se manteve nos

moldes do Século XX, gerando ações ao longo dos anos de 2012 e 2013 contra o

aumento indiscriminado da tarifa e a precariedade das embarcações, a exemplo

da convocação para o “Pulaço”, objeto de Ação de Interdito Proibitório julgado

pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em 31 de Julho de 2012,

onde a ineficiência da prestação do serviço é lembrada pela desembargadora

relatora ao reconhecer que O exercício pacífico do direito de manifestação é não apenas garantido constitucionalmente como deve ser incentivado como forma de exercício dos direitos inerentes à democracia, notadamente quando se voltam contra serviços públicos concedidos e que não vêm sendo prestados de forma a corresponder as expectativas da sociedade16.

Tal descontentamento foi recrudescido ao longo do período da “Copa das

Confederações” e da “Copa do Mundo”, levando à uma mobilização popular por

um maior número de embarcações, celeridade no serviço e redução do valor das

passagens, o que levou novamente a CCR Barcas a propor Ação de Interdito

Proibitório, que também foi julgada improcedente pelo Tribunal de Justiça do Rio

de Janeiro17.

15 Disponível em http://www.grupoccr.com.br/Media/PressRelease_conclusao_barcas_pdf, acesso

em 10 de abril de 2015.

16 Agravo de Instrumento nº 0013583-33.2012.8.19.0000, julgado pela 11ª Câmara Cível do TJ/RJ e teve como relatora a Des. Marilene Melo Alves. Disponível em http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw, acesso em 10 de abril de 2015.

17 “Apelação. Interdito proibitório. Manifestação convocada pela internet contra o aumento do preço da passagem das barcas. Demanda proposta pela prestadora de serviços sob a alegação de que o movimento possui grande potencial de risco à integridade de seus usuários, funcionários, instalações e embarcações. Não comprovação pela autora de que o réu seja organizador do movimento, tampouco que haja nexo causal entre qualquer conduta que ele tenha praticado e o potencial risco de danos narrado na inicial. Direito de manifestação constitucionalmente garantido. Movimento pacífico que não representa ameaça a qualquer direito da autora. Veja-se, que o exercício pacífico do direito de manifestação, garantido constitucionalmente, ao contrário do que pretende a recorrente, deve ser incentivado como prática inerente à democracia, notadamente quando se volta contra serviços públicos concedidos que não vêm sendo prestados de forma a corresponder as expectativas da sociedade. Agravo retido. Manutenção da decisão que rejeitou a impugnação ao valor da causa. RECURSO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO, COM FUNDAMENTO NO ARTIGO 557, CAPUT, DO CPC”. Relator: DES. CLAUDIO DELL ORTO - Julgamento: 31/03/2015 - Decima Oitava Câmara Cível. Disponível em http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw, acesso em 10 de abril de 2015.

970

Em Março de 2015, a CCR Barcas iniciou a operação de uma nova

embarcação vinda da China denominada “Pão de Açúcar” para a travessia Praça

XV – Araribóia que reduzirá o tempo do percurso dos atuais 22 minutos para 15.

A embarcação é parte de uma encomenda do governo estadual de um total de

nove e entre em operação cercada de polêmicas sobre o custo e sua

inadequação à estrutura física dos atracadouros de Niterói e da Praça XV no

Centro do Rio de Janeiro18.

Diante desse cenário, percebe-se a existência de uma permanente tensão

entre os exploradores do serviço de transporte aquaviário, os usuários e o Poder

Público na atual atividade de fiscalização da atividade desenvolvida.

3 A CONDIÇÃO DE VULNERABILIDADE DO USUÁRIO-CONSUMIDOR NOS

CONTRATOS DE TRANSPORTE DE MASSA

O fenômeno de massificação dos contratos, modelo prevalecente nas

sociedades de consumo, faz com que negócios jurídicos que se configurariam

como atos individuais de vontade sejam transmutados em declarações coletivas,

trazendo incidência de normas específicas para coibir abusos e proteção dos

considerados hipossuficientes. Dessa forma, os contratos de transporte de massa

subtraem de seus usuários o poder de autorregulamentação de seus interesses,

na medida em que se configuram como contratos de adesão, compostos por

cláusulas previamente estabelecidas, caracterizando-se contratos coativos ou

necessários, prejudicando a natureza paritária dos pactos. Assim, estabelece-se

uma desigualdade fática entre as partes negociantes (MARQUES, 2002:743). Assim, prejudicando a natureza paritária dos contratos, estabelece-se uma

desigualdade fática entre as partes negociantes, embora seja preservada a

autonomia da vontade negocial (MARQUES, 2002:743) e se cria um contexto de

vulnerabilidade19 ao consumidor aderente, obrigado a contratar um serviço

18 Disponível em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/03/pezao-inaugura-nova-barca-que-

fara-o-trajeto-niteroi-rio.html, acesso em 10 de abril de 2015. 19 Para Cláudia Lima Marques, a vulnerabilidade é um estado inerente de risco ou um “sinal de

confrontação excessiva de interesses identificado no mercado, é uma situação permanente ou

971

prestado por um único contratante ou ainda, na existência de diversos

contratantes prestadores do serviço, as condições contratuais são idênticas, o

que acaba por tolher a liberdade de escolha.

Esta vulnerabilidade se consolida também pela necessidade de construção

de uma relação de confiança do consumidor-passageiro no sistema de transporte

público como um “sistema perito20”, em um estado de permanente presunção de

boa-fé e idoneidade da prestação de serviços. Nas relações negociais confiar

pressupõe depositar crédito em uma prática ou comportamento a despeito de não

se dominar todas as etapas do processo negocial ou de produção. Há o confiar

quando se acredita em algo a despeito de não se ter todo o conjunto de

informações adequado para a tomada de determinadas decisões ou não ter

outros caminhos para a decisão.

Há a convicção de que a confiança está vinculada a resultados

contingentes, sejam relacionados à ação de indivíduos ou à operação de

determinados sistemas, estabelecendo-se que “toda confiança é num certo

sentido confiança cega”, pois são depositadas uma série de expectativas e

presunções em relação ao outro. O sujeito se condiciona a acreditar em

mecanismos e engrenagens de um sistema abstrato viabilizadores da vida social

moderna, em um “distanciamento tempo-espaço” e das grandes áreas de

segurança da vida cotidiana (GIDDENS 1991:44, 153).

Migrou-se da crença no outro para uma segurança ontológica21 em

condições de modernidade que se constitui através de rotinas preestabelecidas

com a finalidade propiciarem conforto e confiança. Para ARAÚJO, essa confiança provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação. [...] É a noção instrumental que guia e ilumina a aplicação destas normas protetivas e reequilibradoras, à procura do fundamento da igualdade e da justiça equitativa”. A autora aponta ainda para a proteção aos hipervulneráveis, entendida como uma “presunção funcional” em favor daqueles aqueles que, para além da condição técnica ou jurídica de vulnerabilidade ainda possuem algum elemento que os fragiliza, tais como as crianças, idosos ou enfermos mentais, estabelecida como uma situação social fática e objetiva de agravamento da vulnerabilidade da pessoa física consumidora (2014:318, 321-324).

20 Compreendidos como “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje. [...] mas os sistemas nos quais está integrado o conhecimento dos peritos influenciam muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contínua”, pois há uma confiança estabelecida sobre o funcionamento desses sistemas (GIDDENS, 1991:38).

21 Como segurança ontológica pode se identificar a confiança básica constituída em circunstâncias estáveis de autoidentidade e ambiente circundante (GIDDENS, 1991:127).

972

é hoje a “mola impulsora” da vontade contratual e fundada sobre uma expectativa

de contratos que se aperfeiçoem e sejam eficientes (2008, p. 118).

Além dos aspectos gerais que conduzem à vulnerabilidade do consumidor-

passageiro, no caso específico do transporte público no Rio de Janeiro, cabe

destacar a assimetria da linguagem utilizada na redação das normas regulatórias

e dos relatórios divulgados pelas agências reguladoras – no caso a AGETRANSP

- pois há uma elevada carga de tecnicidade que prejudica a sua compreensão

pelo consumidor comum (2013:49). Essa dificuldade de acesso à informação e

compreensão das normas e procedimentos das agências pode ser exemplificada

pela busca do Regimento Interno da AGETRANSP na internet22. Após identificar o

“link” para o acesso ao documento em questão, o consumidor-usuário se depara

com uma cópia digitalizada do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro,

cabendo-lhe decifrar a localização do texto pretendido e ainda, compreender suas

expressões dotadas de tecnicidade, o que viola a transparência e a informação

adequada pertinentes à relação do Consumidor.

O Instituto Defesa do Consumidor – IDEC propõe uma integração entre as

agências e o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, de modo que possam

ser desenvolvidas políticas de prevenção às práticas nefastas às relações

contratuais firmadas e que garantam o exercício adequado das relações de

consumo (IDEC, 2013, p. 43), partindo-se da concepção de que na perspectiva

destas relações, pessoa digna não é apenas a que possui liberdade, mas que é

dotada de igualdade sob o ponto de vista formal e material, o que somente se

alcança a partir da real positivação dos direitos humanos, “com o reconhecimento

das desigualdades estruturais existentes e, a par disso, no desenvolvimento de

uma proteção específica para os vulneráveis, seja do ponto de vista técnico,

informacional, jurídico ou fático” (SCHWARTZ, 2014:16).

4 DA ESCUTA AO USUÁRIO-PASSAGEIRO E O DEVER DE INFORMAÇÃO ADEQUADA.

22 <http://www.agetransp.rj.gov.br/agetransp/index.php/agetransp/regimento-interno>, acesso em 28 de outubro de 2014.

973

A escuta às demandas dos usuários carecem de uma reformulação das

políticas de gestão do serviço, tanto na Ouvidoria quanto na própria relação dos

prestadores de serviço com os seus destinatários. A deficiência de canais

adequados de comunicação se reflete em todas as instâncias dos serviços, como

se pode depreender de relatos do acidente ocorrido em 27 de Novembro de 2014,

quando a embarcação “Vital Brasil” ficou à deriva por aproximadamente quarenta

minutos a partir das sete horas e quarenta e cinco minutos e os passageiros só

foram avisados das causas do problema às oito horas e vinte minutos, gerando

um estado de ansiedade e pânico23 que desencadeou várias ações judiciais24.

Reforçando essa desigualdade no caso do transporte na Baía de

Guanabara e diferentemente de sua competência estabelecida em seu Regimento

Interno, o papel da AGETRANSP25 tem se limitado a ações propositivas, com uma

verdadeira ausência de uma política regulatória que priorize os interesses dos

consumidores e traga uma efetiva prevenção dos conflitos potencialmente

existentes. As ouvidorias, tanto da agência reguladora quanto da CCR Barcas

limitam-se ao registro dos relatos dos consumidores-usuários, que na maior parte

das vezes continuam a se valerem do Poder Judiciário para a “solução” de

conflitos surgidos durante a prestação de serviços de transporte26.

23 Segundo relato do analista de sistemas Vinícius Andrade, 40 anos, os passageiros só foram

avisados da quebra do leme da embarcação mais de 30 minutos após o surgimento do problema e a mudança de rumo da embarcação. Disponível em http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,barca-fica-a-deriva-por-40-minutos-na-aia-de-guanabara,1598833, acesso em 10 de abril de 2015.

24 Neste sentido, cabe consulta a http://www4.tjrj.jus.br/ejud/consultaprocesso nas Apelações Cíveis nº 0177204-77.2010.8.19.000 e 0039042-68.2011.8.19.0001 e nos recursos às Turmas Recursais, a exemplo dos feitos de nº 0082705-67.2011.8.19.0001, 1002594-76.2011.8.19.0002, 0066250-27.2011.8.19.0001 e 0066140-96.2009.8.19.0001, dentre outros.

25RESOLUÇÃO AGETRANSP Nº 16 DE 07 DE JANEIRO DE 2014 - Regimento Interno da AGETRANSP, art. 2º, Parágrafo Único - Sem prejuízo do disposto no art. 4º da Lei nº 4.555, de 06 de junho de 2005, compete à AGETRANSP, no âmbito de suas atribuições e responsabilidades, observadas as disposições legais e pactuais pertinentes: I - Assegurar a prestação de serviços adequados, assim entendidos aqueles que satisfazem as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade nas suas tarifas zelando pelo fiel e rigoroso cumprimento das normas aplicáveis e dos contratos de concessão e termos de permissão dos serviços públicos; II- Garantir a harmonia entre os interesses dos usuários, concessionários e permissionários dos serviços públicos estaduais regulados, [...]XIII - Promover programas de educação e informação aos usuários dos serviços regulados.

26 Neste sentido, cite-se trecho do voto proferido pelo Desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho na Apelação Cível nº 0039042-68.2011.8.19.001 da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, proferido em 21 de Março de 2014: “Com efeito, demonstrou

974

No item I da Cláusula 4ª do Contrato de Concessão de Serviços Públicos

de Transporte Aquaviário de Passageiros, Cargas e Veículos no Estado do Rio de

Janeiro27 admite-se a renovação por mais 25 (vinte e cinco) anos do pacto

firmado desde que o serviço tenha sido prestado adequadamente, possibilitando o pleno atendimento dos usuários e satisfazendo as condições de eficiência, regularidade, continuidade, segurança, atualidade tecnológica, modicidade da tarifa, generalidade e cortesia na sua prestação, durante o prazo de duração do contrato.

A prestação adequada do serviço em relação à oitiva dos usuários fica

minudenciada na Cláusula 10, parágrafo 6º28, onde se que a concessionária

deverá “manter os registros das solicitações e reclamações dos usuários”,

fazendo constar as “providências adotadas para o atendimento e sua

comunicação ao interessado”.

Nesse sentido, não se pretende atribuir à CCR Barcas nem tampouco à

AGETRANSP um papel de núcleo de solução extrajudicial de conflitos ou de

instancias julgadoras, mas sim, de prestar um adequado atendimento ao

consumidor individual em suas demandas para que haja uma “identificação de

problemas sistêmicos”, funcionando inclusive como fonte para elaboração dos

atos regulatórios e o aprimoramento da prestação de serviços. Para além e

especialmente, as agências reguladoras devem aprimorar as atividades

fiscalizatórias e desenvolver uma conduta ativa na proteção ao consumidor, na

medida em que defender é “um ato ativo de efetiva proteção a um sujeito que foi

institucionalmente reconhecido como o elo mais fraco e, portanto, benemérito de

especial e necessária guarida” (SCHWARTZ, 2014, p. 22).

Contudo, a ineficácia dessa escuta salta aos olhos. Na investigação do

papel da agência reguladora da atividade de transporte público no Rio de Janeiro,

a Autora que é consumidora assídua dos serviços oferecidos pela Ré (fls. 22/24), que apresentou reclamação aos sérvios de atendimento ao cliente em relação aos fatos relatados na petição inicial – aí incluídos atrasos frequentes, superlotação, defeito apresentado em embarcação que deixou todos à deriva, entre outros – (fls. 20/21), bem como notícia veiculada na impresa acerca desses fatos, que por sua vez, diante da revelia da Ré, da ausência de produção de prova em sentido contrário (art. 333, II, CPC), e da verossimilhança dos argumentos autorais, devem ser presumidos como verdadeiro (art. 319, CPC)”. Disponível em http://www4.tjrj.jus.br/ejud/consultaprocesso. aspx?N=201300172020&CNJ=0039042-68.2011.8.19.0001.

27 Disponível em http://www.agetransp.rj.gov.br/agetransp/index.php/aquaviario/barcas-sa/89-contratos, acesso em 10 de abril de 2015.

28 Idem.

975

em 29 de Maio de 2013 o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro emitiu

nota e parecer no sentido de que a situação encontrada na CCR Barcas

demonstra um acompanhamento precário do serviço de transporte, vez que em função da inexistência de parâmetros objetivos, índices e/ou indicadores, passa a atuar na maior parte do tempo por demandas decorrentes da baixa qualidade dos serviços (acidentes, reclamações) e não de maneira preventiva com base num exame empírico da qualidade dos serviços, o que seria possível pro meio da verificação sistemática do descompasso entre a atuação do concessionário e os parâmetros objetivos de qualidade estabelecidos para o serviço. Somente assim seria possível demonstrar o nexo causal entre a baixa qualidade do seriço e a atuação do concessionário, uma vez que a percepção do usuário acerca do serviço é algo subjetivo, servindo apenas como alerta de que a prestação de serviços não está satisfatória, mas não servindo, por si só, como prova jurídica para fins de aplicação de penalidades29 (grifou-se).

Importante destacar que no processo em questão, houve adoção de

medidas para sanar uma série irregularidades na atuação da agência reguladora

junto à CCR Barcas30, mas em relação ao acompanhamento do serviço

identificado no “Achado de auditoria nº 04” o TCE/RJ determinou que se

estabelecesse, no prazo de 120 dias, parâmetros objetivos de qualidade, índices e outros elementos que possam aferir a qualidade dos serviços de transporte aquaviário conforme o dispostos no inciso XV do artigo 4º da lei Estadual nº 4555/05 c/c inciso II do artigo 30 do Regimento Interno31 da AGETRANSP.

Tal determinação não resultou em nenhuma ação transformadora dos

modelos de escuta até então praticados, mantendo-se os canais de ouvidoria

apenas como um veículo de desabafo do consumidor insatisfeito, sem gerar

resultados práticos.

29 Achado de auditoria nº 04. “A AGETRANSP não dispõe de parâmetros objetivos, índices ou indicadores que permitam avaliar a qualidade dos serviços”. Processo administrativo nº 108.045-8/13, fls. 270, julgado pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro.

30 A titulo de exemplo, no Achado de Auditoria nº 01, identificou-se a “Baixa eficácia do acompanhamento das receitas operacionais (fls. 248/249v) e ainda, no Achado de Auditoria nº 03, verificou-se que a “A atuação da AGETRANSP não garante a atualidade tecnológica na prestação de serviços (fls. 250/252v), dentre outras irregularidades.

31 Art. 30 - Compete à Auditoria de Controle Interno: II - Analisar e avaliar a execução orçamentária quanto à conformidade, os limites e as destinações estabelecidas na legislação pertinente.

976

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos contratos de massa há uma nítida comunhão entre o interesse público

e o interesse privado para que se efetive a proteção da pessoa humana, abrindo-

se espaço para uma superposição entre os espaços públicos e privados na

previsão normativa atual, no que LORENZETTI (1998:225). aponta como um

movimento de “privatização” do público, através da coexistência crescente entre o

Estado e iniciativa privada, bem como pela diminuição do ius imperium¸ seja pelos

limites impostos pela norma constitucional ou pela assunção do papel de

mediador entre interesses setoriais integrantes da sociedade, em uma

permanente revisão do que é o interesse público.

Esse interesse público deve ser a tônica da atividade das concessionárias

de serviço público e da atuação das agências reguladoras, o que, especialmente

no caso da exploração do transporte aquaviário na Baía de Guanabara, verifica-

se a insuficiência dos mecanismos de atenção e escuta ao consumidor-usuário. É

possível identificar nas ferramentas de escuta existentes um prejuízo à natureza

paritária dos contratos, reforçando-se uma desigualdade fática entre as partes

negociantes, embora seja preservada a autonomia da vontade negocial

(MARQUES, 2002:743) e criando um contexto cada vez maior de vulnerabilidade

ao consumidor aderente.

Assim, identifica-se a necessidade de canais de comunicação das

entidades sob análise com o destinatário final do serviço de maneira que se

estabeleça adequadamente um fluxo de informações e escuta que possibilite

questionamentos e respostas que realmente consagrem o exercício de

consciência cidadã de todos os atores envolvidos nesse processo com vistas a

garantir um convívio equitativo, autônomo e baseado no respeito mútuo.

REFERÊNCIAS

AGETRANSP - Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários e Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro. In: <http://www.agetransp.rj.gov.br>. Acesso em: 28 de outubro de 2014.

977

AMARAL, A. C. C. do. Distinção entre Usuário de Serviço Público e Consumidor. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, no. 6, mai/jun/jul de 2006. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 17 de outubro de 2014. ARAGÃO, A. S. de. Direito dos serviços públicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense/Gen, 2008. ARAÚJO, F.. Uma análise económica dos contratos – a abordagem económica, a responsabilidade e a tutela dos interesses contratuais. In: TIMM, Luciano Benett (org.) Direito & Economia. 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 97-174. AZEVEDO, F. C. de. Defesa do consumidor e regulação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. BENJAMIN, A. H. de V. e. "O conceito jurídico de consumidor". BDJur, Brasília, DF. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/8866>. Acesso em: 14 mar. 2007. CANARIS, C. W.. Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2ª reimpressão da Edição de Julho de 2003, Coimbra: Almedina, 2009. ___________________Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. GIDDENS, A.. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UneSão Paulo, 1991. GOMES, O.. Transformações Gerais do Direito das Obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967. ____________________Contratos. 26ª edição, Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2009. GRUPO CCR, http://www.grupoccr.com.br/ri2014/desempenho.html IDEC - INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Série: Pensando o Direito, nº 21 – Agências Reguladoras e Tutela dos Consumidores. 2ª reimpressão, São Paulo: IDEC, 2013. MARQUES, C. Lima. A pessoa no mercado e a proteção aos vulneráveis no Direito Privado Brasileiro. In: BAUDUS, Cristhian et al. Direito Privado, Constituição e Fronteiras: Encontros da Associação Luso-alemã de Juristas no Brasil. 2ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 287-332.

978

_______________________Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. NUNES, E.. A Revolta das Barcas: populismo, violência e conflito político. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. PACIFICO, A.. A história do transporte aquaviário na baía de Guanabara: Uma análise da relação entre Capital privado e Poder público no planejamento de transportes do Rio de Janeiro. Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/cnpp/pgs/anais/Artigos. Acesso em 05 de abril de 2015. RAMALHO, P. I. S.. Regulação e Agências Reguladoras – governança e Análise de Impacto Regulatório. Brasília: ANVISA, 2009. SCHWARTZ, F.. A defesa do consumidor como princípio de ordem econômica p Pressuposto inarredável para a atuação dos órgãos públicos e imprescindível para o desenvolvimento sustentável do País. In: Revista de Direito do Consumidor, nº 94, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p.15-36. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, http://www.tce.rj.gov.br/web/guest/consulta-a-processos/-/processo/