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  • VIVIAN LEGNAME BARBOUR

    Escola de Formao 2008

    STF E DESOBEDINCIA CIVIL: UM OLHAR SOBRE A ATUAO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA LUTA PELA

    TERRA

    Monografia apresentada Sociedade Brasileira de Direito Pblico, como exigncia para a concluso do curso da Escola de Formao do ano de 2008. Orientadora: Flvia Scabin

    So Paulo 2008

  • 2

    ndice

    Introduo ................................................................................ 3

    Metodologia ............................................................................... 4

    Embasamento terico e jurdico de desobedincia civil ........... 11

    Anlise da ADI 2.213-MC/DF ................................................... 22

    1. Contextualizao da demanda .......................................................... 22 1.1 Jurisprudncia anterior ADI 2.213-MC/DF ........................... 31

    2. Anlise dos votos e suas respectivas construes argumentativas ......... 35 2.1 Imunidades do art. 185, CF/88 ............................................ 35 2.2 Imunidade em razo de esbulho possessrio ......................... 40 2.3 Corte de recursos a atores de ocupaes rurais ..................... 54 2.4 Direito de reteno/resciso do contrato pelo Poder Pblico .... 60

    Concluso ................................................................................ 62

    Bibliografia .............................................................................. 65

    Stios eletrnicos ..................................................................... 67

    Anexos .................................................................................... 68

  • 3

    Introduo

    Parto da argumentao que fundamenta a petio inicial da presente

    ADI, impetrada pelo Partido dos Trabalhadores PT e pela Confederao

    Nacional dos Trabalhadores na Agricultura- Contag, quando estes defendem

    que as ocupaes de terras nas suas variadas formas, no se constituem em

    esbulho, ao contrrio, tm se revelado em instrumento legtimo de luta e

    meio eficaz, para que o prprio governo possa agilizar o processo de

    reforma agrria (grifos meus).

    O objetivo desse estudo ser, ento, averiguar de que maneira o

    Supremo Tribunal Federal concorda ou no com esse argumento que, para os

    requerentes, justifica a legitimidade das ocupaes de terra por movimentos

    sociais frente a uma suposta inrcia do Estado. Sero levados em conta dados

    referentes consecuo da reforma agrria no Brasil, assim como o contexto

    social e poltico poca da demanda, alm de embasamento terico do

    conceito de desobedincia civil, que de certa forma pode complementar a

    fundamentao dada na petio inicial. A partir deste material, sero

    analisados os argumentos dos ministros do Supremo a fim de extrair um

    possvel posicionamento frente ao tema, ressalvando que de modo algum as

    concluses aqui tiradas sero absolutas, por se tratar de um estudo de caso e

    por analisar um julgamento ocorrido no ano de 2002.

  • 4

    Metodologia

    A presente proposta de pesquisa surgiu do interesse de analisar a

    atuao de movimentos sociais, cada vez mais presentes na cena poltica

    brasileira com suas demandas especficas, representando uma alternativa ao

    movimento sindicalista que, aps participao poltica intensa at a dcada de

    1970 e meados da dcada de 80, passou a sofrer um contnuo esfriamento,

    por conta das novas formas de relao de trabalho que foram se instaurando

    na economia globalizada em que estamos inseridos hoje 1. Acreditando que

    atuar politicamente e exigir concretizao de direitos por meio de movimento

    social algo extremamente legtimo em nosso Estado Democrtico de Direito,

    com seus princpios basilares, interessou-me estudar de que maneira o

    Supremo Tribunal Federal avaliava esta atuao, tendo como premissa que seu

    posicionamento de extrema importncia no cenrio jurdico nacional.

    Como me referi aos princpios basilares do Estado Democrtico de

    Direito, cabe aqui ressaltar que ao longo de todo o trabalho busquei

    concaten-los com a teoria da desobedincia civil, tema de longa data,

    primeiramente explorado em livro pelo autor norte-americano Henry David

    Thoreau 2. Com um aprofundado estudo deste tema, a idia do trabalho seria

    analisar o posicionamento do STF frente atuao dos movimentos sociais

    tendo em vista que esta poderia ser contemplada pela construo terica da

    desobedincia civil.

    Importa dizer que o interesse em estudar o tema da Desobedincia Civil

    surgiu a partir das aulas de Introduo ao Estudo do Direito, ministradas no

    primeiro ano da Graduao em Direito, e de aulas de Sociologia e Sociologia

    1. A passagem do modelo fordista de produo para o modelo toyotista, marcado pela flexibilizao das relaes de trabalho e forte inovao tecnolgica, faz com que as empresas realizem um corte cada vez maior dos postos convencionais de trabalho, gerando um desemprego estrutural. Este contexto culminou nas crises sindicais, onde a luta pela multiplicao dos direitos dos trabalhadores incide em aumento de custos para as empresas, que facilmente demitem seus empregados visto o fenmeno do desemprego estrutural, que possibilita piores condies de trabalho. 2. THOREAU, Henry David, Civil Disobedience, 1849. Neste livro, o autor debate sua causa no campo da conscincia individual e do compromisso moral da conscincia em relao lei. Nessa primeira construo terica da desobedincia civil, a conscincia apoltica, no estando primordialmente interessada no mundo onde o erro cometido ou nas conseqncias que este ter no decorrer futuro.

  • 5

    Jurdica. Ao tratar do tema da desobedincia civil refiro-me ao direito de

    desobedecer a normas com o intuito de exigir determinado comportamento do

    Estado; o que primeira vista configuraria uma ilicitude, mas que

    posteriormente se tornaria justificvel visto os fins a que se prope, quais

    sejam, mostrar a insatisfao do povo, ou de um coletivo poltico em

    especfico, frente atuao estatal, que pode se dar tanto por meio de

    medidas legislativas quanto de medidas administrativas. Neste sentido, haveria

    ainda um instrumento de participao poltica no explicitamente previsto na

    Constituio Federal, mas que decorreria de seus princpios e regime adotados.

    Para melhor esclarecer o leitor a respeito de como seria possvel

    construir uma relao entre desobedincia civil e atuao destes movimentos,

    achei necessrio redigir um captulo para tratar especificamente desta

    construo terica. Deste modo, esta parte do trabalho se atm a subsdios

    para que seu leitor tambm pudesse analisar esta relao, a fim de concordar

    ou no com a minha hiptese, qual seja, de que a ao poltica dos

    movimentos sociais se enquadra no conceito de desobedincia civil, sendo,

    portanto, legtima.

    Partindo desta premissa, meu objetivo ser avaliar de que maneira o

    Supremo Tribunal Federal avalia essa atuao, se de fato ele tambm faz essa

    relao supracitada, ou se este considera a ao dos movimentos sociais

    legtima baseado em outra fundamentao, ou se, ao contrrio, ela de todo

    ilcita e deslegitimada. Cabe dizer que a maioria dos processos que chegam ao

    STF no tocante reforma agrria diz respeito a aes impetradas pelos donos

    de terra, quando esta passara por uma ocupao, contra decreto presidencial

    de desapropriao, por meio de mandados de segurana. Por conta disso, o

    Tribunal raramente entra na questo do mrito da atuao dos movimentos

    sociais, atendo-se questo procedimental da vistoria que precede a

    expropriao. Inclusive isso se apresentou como um primeiro obstculo para o

    presente trabalho, pois se fazia muito difcil extrair uma possvel posio do

    Supremo com material deveras insuficiente.

    Acredito que o tema deste trabalho se mostra bastante atual, quando

    temos no Brasil uma crescente linha de juristas e polticos que entende que o

  • 6

    Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra MST deva ser criminalizado,

    por conta de seu mtodo de atuao, que se d por meio de ocupaes de

    imveis rurais e prdios pblicos, como instrumento de presso ao Governo

    para a realizao da reforma agrria.

    Essa tentativa de criminalizar o Movimento se iniciou em 20 de setembro

    de 2007, quando o ento Subcomandante Geral da Brigada Militar do Rio

    Grande do Sul encaminhou relatrio 3 ao comandante geral da BM, onde emitia

    parecer sugerindo que fossem tomadas todas as medidas possveis para que as

    trs colunas do MST que rumavam ao Municpio de Coqueiros do Sul fossem

    impedidas de se encontrar. Este relatrio fora remetido ao Ministrio Pblico

    Estadual do RS e ao Ministrio Pblico Federal, e em funo deste que o MPE

    ingressou com uma Ao Civil Pblica impedindo estas colunas do MST de

    entrarem nos quatro municpios da comarca de Carazinho no RS.

    A criminalizao da atuao do Movimento se mostra evidente quando,

    em notcia publicada no site do Ministrio Pblico Estadual do RS 4, l-se que:

    De acordo com a ao civil pblica do Ministrio Pblico, os

    elementos de convico colhidos e apresentados ao Poder Judicirio

    demonstram, com certeza e segurana, a utilizao perniciosa e

    anti-social dos acampamentos Jandir e Serraria, verdadeiras

    bases operacionais destinadas prtica de crimes e ilcitos civis

    causadores de enormes prejuzos no apenas aos proprietrios

    da Fazenda Coqueiros, mas a toda sociedade. (grifos meus)

    Ainda, na Ao Civil Pblica ajuizada 5, aps demasiada e extensa

    anlise sobre a movimentao do MST na Fazenda Coqueiros, supracitada,

    tomando como base o relatrio da Brigada Militar, numa inicial de 144 pginas

    ao todo, diz o MPE:

    3. Relatrio n 1124-100-PM2-2007, Brigada Militar do Rio Grande do Sul 4. www.mp.rs.gov.br/imprensa/noticias/id14468.htm, acessado em 22 de outubro de 2008. 5. Petio inicial da Ao Civil Pblica ingressada pelo Ministrio Pblico Estadual do Rio Grande do Sul, in www.mp.rs.gov.br/areas/imprensa/anexos_noticias/inicialacampamentos.pdf, acessado em 22 de outubro de 2008.

  • 7

    Os constantes e reiterados ataques do MST Fazenda Coqueiros

    afetam toda a coletividade e colocam em cheque os fundamentos do

    Estado Democrtico de Direito, exigindo um esforo coordenado

    de todos os Poderes e instituies estatais para que, com o

    emprego de todas as possibilidades jurdicas amparadas pela

    legislao vigente, impeam o enfraquecimento da organizao social

    adotada pela sociedade brasileira a partir da Constituio Federal.

    (grifos meus)

    Percebe-se, portanto, o quo delicada a situao. Faz-se, ento,

    imprescindvel conhecer qual o posicionamento do Guardio Constitucional

    frente a esta questo, j que este representa a ltima instncia judicial do Pas

    e serve de referncia para todo o Poder Judicirio.

    A idia inicial para pesquisar a jurisprudncia do STF sobre o assunto era

    a de usar como palavra-chave o termo MST, visto que o Movimento representa

    o maior ator poltico nacional na luta pela reforma agrria, sendo, ainda, um

    dos maiores movimentos sociais da Amrica Latina. Por ser figura emblemtica

    no cenrio nacional, acreditei que seria fcil encontrar no STF decises que

    discutissem o mrito de sua atuao.

    Assim, elaborei uma possvel estrutura de monografia que pudesse dar

    conta de analisar o posicionamento do Supremo com relao atuao do

    MST, tendo como hiptese que esta poderia se enquadrar no conceito de

    desobedincia civil. Segue essa estrutura:

    Parte A Teoria

    1. Embasamento terico de desobedincia civil / direito de

    cidadania, a partir dos autores lidos

    2. Embasamento jurdico de desobedincia civil, a partir da teoria

    de Maria Garcia CF, artigo 5, 2

    3. Histrico do MST e sua atuao. Por que escolher esse

    Movimento como emblemtico

    Parte B Anlise de Acrdos

  • 8

    1. A atuao do MST se enquadra no conceito de desobedincia

    civil estudado?

    2. Em que medida o STF considera legtima a atuao deste

    Movimento na luta pela concretizao da Reforma Agrria?

    Destarte, utilizando a ferramenta Pesquisa de Jurisprudncia no stio

    do STF, procurei acrdos a partir da expresso MST. Da resultou 14

    Mandados de Segurana, todos eles impetrados por donos de terra contra o

    Presidente da Repblica. Passei ento a ler todos eles.

    Foi frustrante perceber que, em nenhum deles, o Guardio

    Constitucional entrava na questo do mrito da atuao desse movimento

    social, atendo-se a questes processuais de desapropriao de terra. Pude

    perceber ento que a presente monografia estaria muito comprometida se

    seguisse por esse caminho metodolgico.

    Pensei ento que se a pesquisa fosse mais abrangente haveria mais

    chances de encontrar algo pertinente ao tema. Utilizei ento o termo

    movimento adj 6 social, que resultou em dois acrdos, um deles era um

    mandado de segurana que j havia aparecido em pesquisas anteriores e outro

    era a ADI-MC 2213. Esta, especificamente, me chamou muita ateno logo que

    li sua ementa. Trata-se de uma Ao Direta de Inconstitucionalidade impetrada

    pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pela Confederao Nacional dos

    Trabalhadores na Agricultura (CONTAG).

    A dificuldade encontrada no comeo da pesquisa, em encontrar acrdos

    que tratassem do mrito das ocupaes de terra, sanou-se com essa ADI

    encontrada, visto que, ao analisar a constitucionalidade da Medida Provisria

    2.027-38 de 2000, criada no Governo Fernando Henrique Cardoso, sendo

    reeditada ainda algumas vezes neste mesmo perodo, resultando na MP 2.183-

    56/01, sem no entanto alterar os dispositivos dela atacados, o Supremo fazia

    de fato uma anlise do mtodo de atuao dos movimentos sociais no contexto

    da reforma agrria.

    6. Busca palavras aproximadas, na mesma ordem colocada na expresso de busca, explicao da ferramenta in www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/pesquisarjurisprudencia.asp

  • 9

    Pretende-se fazer ento uma anlise qualitativa desta Ao Direta de

    Inconstitucionalidade, visto que o presente trabalho transformou-se em um

    estudo de caso. Assim, procurarei debruar-me sobre os argumentos dos

    ministros, dialogando com a fundamentao trazida na petio inicial pelos

    impetrantes, que levanta quatro inconstitucionalidades no dispositivo atacado,

    quais sejam:

    I. criao de novo tipo de propriedade insuscetvel de

    desapropriao, alm daquelas previstas no Artigo 185

    da Constituio Federal;

    II. negao de vigncia ao artigo 184 da Carta em hiptese

    no recepcionada pelo artigo 185 desta;

    III. frustrao do devido processo legal na medida em que a

    pena automaticamente aplicvel queles que

    realizarem ocupaes de terra ou de certa forma

    colaborarem com o feito; e

    IV. violao do ato jurdico perfeito, a partir de inovao

    unilateral da relao contratual.

    importante ressaltar, ainda, que a leitura dessa ADI me levar

    leitura de precedentes nela citados, fazendo necessrio, tambm, o estudo do

    contexto em que a Medida Provisria fora editada, a fim de melhor

    compreender a argumentao tanto dos impetrantes quanto do Presidente da

    Repblica. Do mesmo modo, no possvel afirmar que a partir desta anlise

    terei um posicionamento seguro do STF com relao ao tema, visto que se

    trata de um caso apenas, e que fora julgado em 2002. De toda sorte,

    procurarei evidenciar um indicativo de como a Corte Constitucional d

    tratamento ao tema.

    Este trabalho, portanto, no se restringir somente anlise da ADI-MC

    2.213 em si, por acreditar que ela surgiu dentro de um contexto especfico,

    marcado por uma correlao de foras entre os atores polticos que integram a

    questo da reforma agrria. Destarte, primeiro farei uma digresso sobre o

    tema da desobedincia civil, passando a analisar o contexto que antecedeu a

  • 10

    Ao, para ento analisar os argumentos presentes na petio inicial e nos

    votos dos ministros, relacionando-os, a fim de extrair a posio do Supremo

    Tribunal Federal frente atuao dos movimentos sociais que lutam pela

    reforma agrria, ressalvadas as limitaes supracitadas.

  • 11

    Embasamento terico e jurdico de desobedincia civil

    Desobedincia civil, assunto to polmico e por muitos visto como

    subversivo e contra a ordem e a legalidade, materializa-se quando, para um

    grupo significativo de cidados, os canais normais e/ou institucionais para

    transformao j no funcionam, de modo que suas demandas no sero

    devidamente ouvidas e levadas em conta pelo governo. Ento, o ato de

    desobedecer seria o de no se submeter, transgredir, infringir essa

    institucionalidade, a fim de no se sujeitar vontade da autoridade, no

    cedendo s suas decises. A desobedincia civil, ainda, pode ser utilizada tanto

    para promover mudanas, quando o aparato estatal insiste em incorrer por

    caminhos diversos dos princpios que compem este Estado, ou pode ser

    utilizada para preservar ou restaurar um status quo que atende s demandas

    de interesse daqueles que se utilizam do direito de desobedecer.

    Aps vinte e um anos de Ditadura Militar, o Brasil vive hoje num Estado

    Democrtico de Direito, que pressupe, de um lado, um Estado baseado na

    legalidade e, de outro, na Democracia. Concatenando estes dois pilares, tem-

    se que Todo poder emana do povo, nos dizeres do pargrafo nico do artigo

    primeiro da Constituio Federal de 1988, de tal sorte que este soberano

    para eleger seus representantes e exigir deles, a qualquer tempo, e das mais

    variadas formas previstas pela Carta, uma atuao coerente com os direitos e

    princpios constitucionais e com o interesse do povo. A ascenso dos novos

    movimentos sociais, estes que reivindicavam pautas especficas como o

    movimento feminista e o movimento por reforma agrria trouxe uma nova

    perspectiva de concretizao de direitos como antes no se tinha visto. O

    resultado deste processo uma Carta Federal que contm um rol extenso de

    direitos individuais e coletivos, fundamentais e polticos. Ainda, a introduo de

    direitos difusos particularmente importante quando considerada a presso

    que j comeava a existir em favor de direitos dos ndios, das crianas, entre

    outros, assim como o movimento feminista supracitado.

  • 12

    Como j mencionado, h momentos em que estas formas de

    contestao previstas na Constituio, aqueles mecanismos institucionais,

    sero de todo ineficientes para de fato atingir o Estado e exigir dele uma

    postura diversa da que se encontra. Assim, a desobedincia civil tem um

    carter claramente contestador das estruturas vigentes, por isso a prima facie

    seria algo inadmissvel e reprovvel, porque fora da legalidade e da

    institucionalidade. Justamente, este ato est englobado pelo chamado Direito

    de Resistncia.

    Este Direito foi introduzido como princpio em algumas constituies

    modernas, a fim de positiv-lo como tentativa de que essas constituies no

    fossem apenas letra morta, sem influncia na transformao da sociedade.

    Importa dizer, no entanto, que assim como todos os outros direitos, o direito

    de resistncia tambm est sujeito a limites e restries, assim como est a

    desobedincia civil, recorrente deste. Faz-se necessrio analisar de onde vem a

    obrigatoriedade de obedincia a uma autoridade superior para ento

    compreendermos como surge o direito de desobedec-la.

    A idia de Estado enquanto pacto social surge com os contratualistas,

    que viam neste pacto um acordo bilateral de vontades, encontrando-se ambas

    as partes sujeitas a direitos e obrigaes. Esta relao bilateral aparece com o

    intuito de preservar ao mximo a liberdade originria daquele povo que

    voluntariamente se submeteu autoridade do Estado. A existncia dos direitos

    naturais do indivduo em seu estado de natureza que vai proteg-lo no Estado

    e na sociedade contra os abusos do poder. Assim, para Locke, importante

    terico contratualista e guiado pelo pensamento liberal, estes direitos naturais,

    longe de constiturem o objeto de renncia total pelo contrato original, varridos

    pela soberania do estado de sociedade, subsistem para fundar a liberdade. Nos

    seus dizeres, em seu Ensaio sobre o Governo Civil:

    Sempre que os legisladores tentam tirar e destruir a propriedade

    do povo, ou reduzi-lo escravido sob poder arbitrrio, entra em estado

  • 13

    de guerra com ele, que fica assim absolvido de qualquer obedincia a

    mais (...)

    (LOCKE, 1690 Ensaio sobre o Governo Civil)

    A originalidade de Locke, em relao aos contratualistas Rousseau e

    Hobbes, para o autor Machado Pauprio, est na afirmao de que os direitos

    individuais so fortificados e garantidos uma vez que se forma a sociedade e

    desaparece a condio anterior de anarquia.

    Ainda, podemos citar a construo terica de Hobbes

    Uma cidade, portanto, assim como a definimos, uma pessoa

    cuja vontade, pelo pacto de muitos homens, h de ser recebida como

    sendo a vontade de todos eles; de modo que ela possa utilizar todo o

    poder e as faculdades de cada pessoa particular, para a preservao de

    paz e defesa comum.

    (HOBBES, 1992: p. 103 e ss Do Cidado)

    Como a cidade, denominao utilizada por Hobbes, existe de modo a

    preservar a paz e defesa comum, ou seja, como ela existe de modo a proteger

    um interesse comum, caso seus governantes extrapolem suas funes de

    tutores daquela liberdade originria dos governados, tentando oprimi-los, eles

    podem resistir a esta pretenso e escolher um novo governo. Surge ento,

    desta construo, a faculdade dos cidados de assim proceder, garantindo-lhes

    a disposio de um instrumento extralegal para afirmarem seus pleitos, visto

    que representantes da vontade da maioria. Cabe aqui ressaltar, no entanto,

    que, para alguns intrpretes do autor, a dissoluo do pacto com o Leviat e

    volta ao estado de natureza pode no necessariamente se constituir em direito

    de resistncia.

    Assim, com os contratualistas que o direito de resistncia atinge sua

    maturao terica. Se a vontade da maioria acorda em submeter-se a uma

    autoridade superior com o intuito de preservar ao mximo aquela liberdade

    originria, do mesmo modo, esses cidados tm o direito de recusar-se a

  • 14

    obedecer ao governo quando este passa a atuar em desacordo com essa

    vontade pblica.

    Assim, o direito de desobedecer vem de uma lgica onde se assume que

    o ordenamento jurdico no pode ser estanque, mas deve ser dinamizado a

    partir das demandas sociais. Este ordenamento no capaz de, sozinho,

    acompanhar todas as mudanas sociais, a fim de adequar-se. Este , na

    realidade, o papel da sociedade enquanto coletivo de cidados. Muito

    pertinente se faz as colocaes de Arendt:

    A lei realmente pode estabilizar e legalizar uma mudana

    j ocorrida, mas a mudana em si sempre resultado de ao

    extra-legal. (grifos meus)

    (ARENDT, 2004: p. 73 Crises da Repblica)

    Imersa neste entendimento, a Constituio se apresentaria, portanto,

    enquanto processo, dado seu carter de mobilidade e sua necessidade de

    acompanhar o desenvolvimento da opinio pblica. Cabe ressaltar que a

    expresso opinio pblica aqui, segundo o terico Estvez Arajo 1, tem um

    carter historicista, numa viso comunitarista, onde se procura valorizar as

    expresses do povo, manifestadas na histria. Neste sentido, desobedecer lei

    constitui-se em exerccio da cidadania. Novamente, nos dizeres de Hannah

    Arendt,

    Cidadania, o direito a ter direitos.

    (ARENDT, 1979 Entre o Passado e o Futuro)

    Para a autora, liberdade, poltica e ao aparecem como idias

    interdependentes, e a cidadania seria justamente a dimenso poltica do ser

    humano, onde esses trs aspectos so indissociveis de uma prtica cidad

    saudvel. Assim, a cidadania se concretiza quando a liberdade torna-se mais e

    1. ARAJO, Jos Antonio Estvez, La Constitucin como Proceso y La Desobediencia Civil. Madrid: Ed. Trotta,1994.

  • 15

    mais participao popular, onde o povo deve participar na formao das

    grandes decises polticas e na concretizao dos direitos.

    Foram estudados alguns autores referentes ao tema da desobedincia

    civil, como Hannah Arendt, importante referncia no tema, e autores ligados

    realidade brasileira. Apesar de inseridos em contextos diversos, cada qual

    relacionando o tema da desobedincia civil a diferentes aspectos, como

    fundamentao constitucional, no caso da autora Maria Garcia, ou como base

    para anlise dos movimentos grevistas dos metalrgicos do ABC na dcada de

    1970, no caso de Nelson Nery Costa, em todos eles, ao longo da construo

    terica do conceito, possvel extrair elementos comuns que conceituam o

    direito desobedincia, enquanto exerccio da cidadania.

    Primeiramente, tem-se o principal requisito para a consecuo da

    desobedincia civil, sem o qual os demais requisitos sequer seriam passveis

    de ser analisados. A utilizao desse direito exige que seja feito por um

    coletivo de cidados. Este ponto muito importante, pois o que diferencia os

    objetores de conscincia dos contestadores civis. Ambos os termos so

    utilizados pela autora Hannah Arendt, e diferenciam a ao individual da ao

    coletiva.

    Para esclarecer o que seria um objetor de conscincia, utilizado o

    exemplo de Henry David Thoureau. Este passou uma noite em uma cadeia

    norte-americana por se recusar a pagar impostos para seu governo, que

    permitia coisas como a escravido. Quando ele debatia a questo, no entanto,

    atentava para a conscincia individual e para o compromisso moral da

    conscincia, no passando pelo campo da moral do cidado em relao lei.

    Assim diz o autor, em seu On the Duty of Civil Disobedience (1849):

    No dever do homem, naturalmente, devotar-se erradicao

    de um erro, mesmo o maior deles; ele ainda pode ter outros interesses

    oportunos em que se empenhar; mas pelo menos seu dever no se

    comprometer com o erro, e no lhe dar apoio na prtica no caso de no

    se importar com estas coisas.

  • 16

    Assim, a conscincia aqui apoltica, pois no interessada no mundo

    onde este erro cometido a partir de uma viso de conseqncias que este

    pode causar. Isso no quer dizer, no entanto, que essa objeo de conscincia

    no pode se tornar politicamente significativa. Isso ocorrer quando certo

    nmero de conscincias coincidir entre si, de modo a fazer parte da opinio

    pblica. Muito pertinente, ento, a colocao de Arendt:

    Estes ltimos [contestadores civis] so na verdade minorias

    organizadas, delimitadas mais pela opinio comum do que por interesses

    comuns, e pela deciso de tomar posio contra a poltica do governo

    mesmo tendo razes para supor que ela apoiada pela maioria; sua

    ao combinada brota de um compromisso que empresta crdito e

    convico sua opinio, no importando como a tenham originalmente

    atingido. Argumentos levantados em prol da conscincia individual ou de

    atos individuais (...) so inadequados quando aplicados desobedincia

    civil (...)

    (ARENDT, 2004: p. 56 Crises da Repblica)

    Interessante observar que ela trata, ainda, da questo da

    minoria/maioria. Este um ponto peculiar da construo da desobedincia

    civil, que decorrente do direito de resistncia. Este, como j foi dito, est

    intimamente ligado construo do contrato social, que prev um acordo da

    maioria do povo, de se submeter a um Estado, a fim de preservar ao mximo a

    liberdade originria de cada cidado. A utilizao do direito de resistir

    dependia, portanto, de que fosse expresso da vontade da maioria. Este direito

    no assegurava aos grupos minoritrios a posio de legtimos aplicadores

    deste mecanismo. Neste particular difere a desobedincia civil.

    O direito de desobedecer tornou-se um direito de cidadania medida

    que no mais se exigia a presena da vontade da maioria para que pudesse

    ser posto em prtica. E essa temtica est bastante ligada questo do

    surgimento dos novos movimentos sociais, j mencionados, por suas

    reivindicaes especficas e que normalmente representam minorias

  • 17

    exatamente por essa especificidade. Esses movimentos primeiramente se

    caracterizam por uma resistncia a uma opresso por parte da sociedade,

    como foi e ainda com relao s mulheres, por exemplo, ou ainda os

    movimentos negros e da diversidade sexual. Ainda, alm dessa resistncia

    opresso, esses movimentos lutam tambm pelo reconhecimento de sua

    identidade.

    Cabe salientar que ainda que a democracia seja regida pela vontade da

    maioria, isso no quer dizer que vivemos em uma ditadura da maioria, assim

    como muitas vezes o era os Estados Unidos da Amrica poca de Thoureau.

    Este pas seguia o argumento da doutrina liberal de que a sociedade poltica,

    para se manter coesa, deveria estabelecer que a maioria tivesse o direito de

    agir e resolver por todos, gerando uma submisso das minorias 2. Podemos

    argumentar que, na realidade, esta necessidade de se manter a sociedade

    coesa poderia refletir um medo de encarar as diferenas dentro desta

    coletividade, que exigiam uma atuao mais plural por parte do Estado. Este

    assunto, porm, apesar de muito interessante, no cabe ser explorado na

    proposta do presente trabalho.

    Outra caracterstica importante do ato de desobedecer que este deve

    ser pblico. Do contrrio, pode ser visto como conspirao. E este ponto

    muito importante porque mostra que os contestadores civis no tm medo ou

    qualquer outro motivo para esconder o ato que praticam, primeira vista

    ilegal. Isso porque o objetivo da desobedincia civil inexoravelmente atentar

    para alguma injustia perpetrada pelo Estado, ou ainda por alguma omisso

    sua, que se mostram manifestamente contrrias aos princpios aos quais este

    aparato estatal est submetido e deve satisfaes. A publicidade do ato

    procura demonstrar a sinceridade democrtica de seus propsitos, como diz

    Nelson Nery Costa.

    O papel desta publicidade importantssimo tambm porque busca

    2. COSTA, Nelson Nery, Teoria e Realidade da Desobedincia Civil. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1990, p. 27.

  • 18

    informar a sociedade sobre questes controvertidas, que costumam ser

    minimizadas pela mdia. Assim, a ao direta desperta a maioria da opinio

    pblica de sua letargia para a realidade dos fatos, ao provocar um momento de

    tenso. E por essa questo tambm que se pode dizer que a desobedincia

    civil est intrinsecamente ligada ilicitude e no institucionalidade, visto que

    os meios normais de contestao tornam-se caminhos esgotados de qualquer

    eficcia que de algum modo possa constranger o Estado a reformular sua

    postura.

    Outro aspecto importante na construo da desobedincia civil a no

    violncia. Ora, contestadores civis desobedecem porque no concordam com a

    atitude violenta do Estado, seja fisicamente, seja na violncia de direitos. No

    podem, deste modo, agir igualmente maneira de atuao que criticam.

    Ainda, o ato de desobedecer no violento evidencia mais ainda a injustia a

    que esto submetidos os contestadores civis, medida que escancara que,

    para conter a ao ilegal mas no violenta, o Estado com seu aparato policial

    de represso, e no os manifestantes, que causa as mortes e as leses

    corporais em maior nmero. So muitos os acontecimentos ao longo da

    histria que comprovam essa afirmao. Basta observar, no caso do Brasil, as

    passeatas pacficas rechaadas pela polcia, ou ainda atos pacficos que tm o

    mesmo fim. A ttulo de exemplo, podemos citar o Movimento Passe Livre, que

    sofreu duras represses policiais em Florianpolis no ano de 2005 por fazer um

    ato pacfico em que estudantes prostravam-se em vias pblicas.

    Justifica-se ento, a, um comportamento violento por parte dos

    contestadores civis, como resposta s aes repressivas da polcia. O uso da

    fora no pode, no entanto, ameaar terceiros no envolvidos, porque gera a

    deslegitimao do movimento. Nelson Nery Costa entende, tambm, que a

    violncia pode apenas se dirigir contra as propriedades, quando isto for

    imprescindvel para o xito do objetivo.

  • 19

    A desobedincia civil no , de modo algum, baseada em atos arbitrrios

    e aleatrios de um determinado nmero de cidados mas, antes de tudo,

    conseqncia primordial do regime que hoje estamos inseridos, qual seja, o

    Estado Democrtico de Direito. A jurista Maria Garcia procura, em seu livro

    entitulado Desobedincia Civil, Direito Fundamental, dar um embasamento

    jurdico no ordenamento brasileiro que legitime este exerccio de cidadania.

    Nem o direito de resistncia, de modo mais abrangente, nem a

    desobedincia civil, especificamente, so previstos na Constituio da

    Repblica Federativa do Brasil. muito rara, alis, a incluso de ambos em

    Cartas positivadas. Podem ser elencados apenas dois exemplos histricos,

    quais sejam, a Lei Fundamental da ento Repblica Federal da Alemanha 3, de

    1949, e a Constituio portuguesa 4 de 1982. Na realidade, essa omisso com

    relao possibilidade de desobedincia e resistncia pode ser justificada pelo

    fato de que nenhum Direito positivo ir autorizar uma revoluo, pressupondo

    que a recusa obedincia tem um trplice aspecto, de oposio s leis

    injustas; de resistncia opresso; e, por ltimo, de revoluo, quando o povo

    a julga necessria. Ainda mais contraditrio pareceria prever o direito de

    resistncia quando se pressupe que, como vivemos em um Estado

    Democrtico, todo poder se funda na vontade unnime do povo, enquanto

    resultado de sucessivas delegaes. Mas este pensamento incoerente pois,

    procurando defender os fundamentos que sustentam esse Estado, acaba

    fazendo estes como refns. Como diz Machado Pauprio:

    O fato, porm, que pouco a pouco, hodiernamente, os

    governantes passaram a proscrever a legitimidade da resistncia e a

    3. Princpios Constitucionais Direito de Resistncia Art. 20 (...) (3) O poder legislativo est vinculado ordem constitucional; os poderes executivo e judicirio obedecem lei e ao direito. (4) No havendo outra alternativa, todos os alemes tm o direito de resistir contra quem tenta subverter essa ordem. 4. Direito de Resistncia Art. 21 Todos tm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela fora qualquer agresso, quando no seja possvel recorrer autoridade pblica

  • 20

    cercar a autoridade que detm, de segurana e proteo contra toda e

    qualquer tentativa de desobedincia, seja qual seja sua fonte ou seu

    objeto

    (PAUPRIO: p. 254 O Direito de Revoluo)

    Mostra-se evidente, assim, que, ainda que vivamos em um Estado que

    tem como premissa a supremacia da vontade popular, necessrio dar

    instrumentos que possam de fato garantir essa efetiva supremacia. No caso da

    nossa Carta de 1988, como foi dito, no h referncia expressa

    desobedincia civil, mas, segundo Maria Garcia, esta pode se encaixar no 2

    do artigo 5 da CF, assim redigido:

    Art 5 (...)

    2 Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem

    outros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, ou dos

    tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte.

    (grifos meus)

    Esse preceito mostra claramente o carter sistemtico da nossa

    Constituio, ou seja, os preceitos constitucionais devem ser interpretados no

    somente segundo o que explicitamente postulam, mas tambm de acordo com

    o que implicitamente encerram. Assim, esse dispositivo aponta para um

    carter material e para uma perspectiva aberta dos direitos

    fundamentais, e dos princpios e do regime aos quais estamos submetidos.

    Ainda, essa norma justifica-se haja visto que a enumerao de alguns

    direitos na Constituio no pode ser vista no sentido de excluir ou

    enfraquecer outros direitos que tem o povo, destacando-se que dele que se

    invoca o poder estatal.

    Assim, a no explicitao da desobedincia civil na nossa Carta Magna

    no exclui sua existncia. E esta tese se fortalece ainda mais quando

    consideramos que, se o poder emana do povo e se dele que se constri o

    poder estatal, nada mais correto afirmar que, como decorrncia deste regime

  • 21

    onde reina a soberania popular, cabe ao povo opor-se s decises do Estado e

    desobedec-las quando estas no mais atendem seus anseios. Neste sentido, a

    desobedincia civil seria decorrente do Estado Democrtico de Direito, onde

    temos o direito e a obrigao, enquanto cidados, de atuar ativa e

    politicamente.

    E por que tratar de desobedincia civil no presente trabalho? Entendo

    ser de extrema pertinncia porque a histria do Brasil mostra que a reforma

    agrria nunca foi eficiente, que o Estado sempre foi refm de uma correlao

    de foras, no atuando energicamente contra o latifndio, sintoma da m

    distribuio de terra que vem desde a poca colonial, perpetrado em nossa

    histria at os dias de hoje. Enquanto isso, a misria e o abismo da

    desigualdade atingem nveis cada vez mais gritantes e os trabalhadores rurais,

    que dependem da terra para sobreviver e garantir um mnimo de subsistncia

    e dignidade, ficam completamente desamparados. Por isso eles se unem para

    agir frente a omisso do Estado. por conta deste contexto que, antes de

    analisar a ADI alvo deste estudo, procurarei fazer uma breve contextualizao

    da demanda, por acreditar que de suma pertinncia analisar o contexto em

    que ocorrem as aes dos grupos organizados de trabalhadores rurais, porque

    justamente essa situao social que ir justificar, ou no, a sua ao poltica

    e a reivindicao da desobedincia civil.

  • 22

    Anlise da ADI 2.213-MC / DF

    1. Contextualizao da demanda

    A Ao Direta de Inconstitucionalidade n 2.213, com pedido de medida

    cautelar, foi impetrada em 24 de maio de 2000, pelo Partido dos Trabalhadores

    - PT e pela Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

    CONTAG. A ao atacou a Medida Provisria 2.183-56/2001, criada pelo ento

    presidente Fernando Henrique Cardoso e que alterou o Estatuto da Terra (Lei

    4.504/64).

    Os requerentes atacaram, especificamente, o artigo 2 da MP, que deu a

    seguinte redao ao novo artigo 95-A da Lei 4.504/64:

    Art. 95-A. Fica institudo o Programa de Arrendamento Rural,

    destinado ao atendimento complementar de acesso terra por parte dos

    trabalhadores rurais qualificados para participar do Programa Nacional

    de Reforma Agrria, na forma estabelecida em regulamento.

    Pargrafo nico. Os imveis que integrarem o Programa de

    Arrendamento Rural no sero objeto de desapropriao para fins de

    reforma agrria enquanto se mantiverem arrendados, desde que

    atendam aos requisitos estabelecidos em regulamento.

    Ainda, questionou-se a constitucionalidade do artigo 2, 6, 8 e 9

    do Estatuto da Terra, com redao dada pelo artigo 4 da mesma medida

    provisria:

    Art. 2 (...)

    6 O imvel rural de domnio pblico ou particular objeto de

    esbulho possessrio ou invaso motivada por conflito agrrio ou

    fundirio de carter coletivo no ser vistoriado, avaliado ou

    desapropriado nos dois anos seguintes sua desocupao, ou no dobro

    desse prazo, em caso de reincidncia; e dever ser apurada a

  • 23

    responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer

    ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas

    vedaes.

    .....................................................................................................

    8 A entidade, a organizao, a pessoa jurdica, o movimento

    ou a sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente,

    auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invaso de

    imveis rurais ou de bens pblicos, ou em conflito agrrio ou fundirio

    de carter coletivo, no receber, a qualquer ttulo, recursos pblicos.

    9 Se, na hiptese do 8, a transferncia ou o repasse dos

    recursos pblicos j tiverem sido autorizados, assistir ao Poder Pblico

    o direito de reteno, bem assim o de resciso do contrato, convnio ou

    instrumento similar.

    A posio poltica tomada pelo Governo FHC, refletida na redao desta

    Medida, resultou de um longo processo em que este, enquanto ator poltico no

    contexto da Reforma Agrria brasileira, ora negou que o pas ainda tivesse o

    agudo problema da concentrao de terras, ora assumiu uma postura de dura

    represso aos movimentos sociais que lutam pelo direito terra, mostrando

    claramente o quo grave a situao da m distribuio agrria no Brasil.

    Essas afirmaes podem ser constatadas a partir de declarao do ento

    Presidente da Repblica, em matria da Revista Isto de 17 de abril de 1996,

    quando questionado da sua preocupao com a marcha nacional que estava

    sendo realizada poca pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -

    MST, numa durao de dois meses, a fim de conseguir uma audincia com a

    Presidncia para tratar da questo da Reforma Agrria, onde l-se:

    A direo nacional do MST tambm quer audincia com o

    presidente FHC. Toda a movimentao obteve repercusso internacional,

    aos ser mostrada pela rede CNN. Questionado por um correspondente

    da emissora no Pas, FHC disse que seu governo est preocupado, mas

    no pelo tamanho da marcha de quarta-feira. O Brasil um pas

  • 24

    urbano e temos mais de 75% da populao nas cidades. Esses

    problemas so localizados., reagiu. (grifos meus).

    De fato, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica,

    no censo demogrfico de 1950 a 2000, a populao rural sofreu uma constante

    queda, ao passo que as zonas urbanas passaram por crescimento populacional

    em todos os anos englobados pela pesquisa, conforme mostra o grfico abaixo 1:

    O grfico mostra que, de 1950 a 2000, a populao urbana sofreu

    crescimento, enquanto que, no mesmo perodo, a partir das dcadas de 1970 e

    1980 as zonas rurais passaram por crescimento negativo. Ainda, em outro

    estudo realizado pelo mesmo Instituto 2, observou-se que a populao rural

    passou de aproximadamente 70%, em 1940, para menos de 20%, em 2000,

    do total da populao brasileira. Mesmo que tenha havido essa queda na

    demografia rural, a reforma agrria se faz igualmente necessria quando se

    1. www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/reforma_agraria/reformaagraria.html 2. Censo demogrfico de 1940/2000, in www.ibge.gov.br/series_estatisticas/exibedados.php

  • 25

    tem ndices to elevados de concentrao de terras, como o caso do Brasil.

    Ou seja, no possvel negligenciar a questo agrria por conta deste

    aumento da populao urbana. Ainda, dizer que a pauta reivindicada pelo

    Movimento refletia um problema localizado mostra uma posio, pode-se dizer,

    otimista, ou ainda ingnua, do ento Presidente da Repblica.

    De acordo com pesquisa realizada pelo autor Bruno Konder Comparato,

    em seu trabalho de mestrado , possvel perceber a existncia de quatro

    fases distintas de tratamento de Fernando Henrique Cardoso para com o

    Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST a partir da anlise de

    seus pronunciamentos que abordam a questo da reforma agrria, nos

    intervalos de tempo a serem especificados.

    Cabe dizer aqui que utilizar o relacionamento do Governo com o MST

    como parmetro para analisar a postura daquele com os movimento sociais na

    luta pela terra se justifica pelo fato de este Movimento ser um dos maiores

    movimentos sociais da Amrica Latina e o maior ator poltico do pas na luta

    pela reforma agrria. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra surgiu

    da reunio de vrios movimentos populares, sendo fundado, oficialmente, em

    janeiro de 1984, na cidade de Cascavel, no Estado do Paran, e fora copiado

    por outros movimentos 4 , comprovando seu sucesso. Atualmente, o MST est

    presente em 23 dos 26 estados da Federao.

    Na proposta de Bruno Konder Comparato, a primeira fase vai do incio

    do governo, em 1995, at o massacre de Eldorado de Carajs 5, em abril de

    3. COMPARATO, Bruno Konder, A Ao Politica do MST. So Paulo: Expresso Popular, 2000. 4. Segundo o autor Bruno Konder Comparato, o MST foi copiado por diversos outros movimentos, tais como o MAST (Movimento dos Agricultores Sem Terra), ligado social-democracia sindical, o MLST (Movimento de Libertao dos Sem Terra), ligado a segmentos da esquerda, o MUST (Movimento Unido dos Sem Terra), ligado Fora Sindical, e o MTST (Movimento dos Sem Teto), que reproduz as tticas do MST em reas urbanas. 5. O Massacre de Eldorado dos Carajs consistiu na morte de dezenove sem-terra no Municpio de Eldorado dos Carajs, no sul do Par, decorrente da ao da Polcia Militar, em 17 de abril de 1996. O confronto ocorreu quando 1500 sem-terra que estavam acampados na regio decidiram fazer uma marcha em protesto demora da desapropriao de terras. A Polcia Militar foi encarregada de tir-los do local porque estariam obstruindo a Rodovia PA-150, que liga Belm, capital, ao sul do estado. A ordem para a ao policial partiu do entao Secretrio de

  • 26

    1996, quando o Presidente poca se mostrava favorvel reforma agrria,

    evitando, contudo, se referir a movimentos sociais fortes na luta pela terra,

    como o MST. Na segunda fase, que vai do massacre do Eldorado dos Carajs

    marcha do MST a Braslia, de fevereiro a abril de 1997, FHC reafirma seu

    compromisso com a reforma agrria e procura apaziguar este movimento

    mostrando resultados decorrentes da atuao do seu governo. J na terceira

    fase, que vai da marcha at maio de 2000, Fernando Henrique Cardoso se

    dirige mais explicitamente ao MST, que passa a ser tratado como um

    adversrio. Especificamente nesta fase, o porta-voz da Presidncia poca,

    Georges Lamazire, fez um comunicado, em 19/04/2000, qual seja (...) o

    MST um movimento que est se desviando da legalidade democrtica,

    indicando uma possvel poltica de criminalizao deste Movimento Social. Por

    fim, na quarta e ltima fase, que se iniciou em maio de 2000, com

    manifestaes e ocupaes de prdios pblicos em quase todos os Estados,

    promovidas pelo MST, o governo passou a adotar um tom mais duro para se

    referir ao Movimento, deixando claro que este, no seu ponto de vista, tem

    exagerado nos seus modos de ao poltica.

    Ao longo dessas fases apresentadas por Bruno Konder Comparato,

    possvel verificar um processo de endurecimento no tratamento dado ao MST

    pelo Governo Fernando Henrique. Este passara daquela idia de que a questo

    da reforma agrria no passava de problemas localizados (basta observar a

    matria da Revista Isto de 17/04/1996 supracitada) para uma postura

    defensiva frente os conflitos agrrios, concentrando-se na figura dos

    movimentos sociais, em especial o MST.

    A primeira medida provisria editada pelo Presidente FHC, no tocante

    regulamentao da consecuo da Reforma Agrria, foi a MP 1.577, de 11 de

    junho de 1997, que alterou dispositivos da Lei 8.629/93 (esta dispunha sobre a

    regulamentao das normas constitucionais relativas reforma agrria,

    previstos no Captulo III, Ttulo VII, da Constituio Federal) e acrescentava

    Segurana do Par, que declarou, depois do ocorrido, que autorizara usar a fora necessria, inclusive atirar.

  • 27

    outros na Lei 8.437/92 (esta dispunha sobre a concesso de medidas

    cautelares contra atos do Poder Pblico e ainda outras providncias). Esta MP

    foi reeditada inmeras vezes, dando origem Medida 2.183-56/2001, que

    representa sua redao definitiva e alvo da ADI 2.213.

    Na Exposio de Motivos Interministerial n 002/2000, que levantava

    justificativas para a alterao da Medida Provisria 1.997-37/00, uma das

    medidas que integrou o processo de alterao que culminou com a MP ora

    atacada na ADI 2.213, assim se justificou a indispensabilidade, fundada em

    razes emergenciais, da imediata edio da medida provisria, ora impugnada:

    No sentido de coibir os excessos praticados pelos

    movimentos dos trabalhadores rurais sem terra seja com relao

    invaso de imveis rurais como de bens pblicos acrescentou-se

    ao artigo 2 da referida Lei 8.629, de 1993, os 6 a 9 e o artigo 2-

    A, que, ao mesmo, tempo, probe a realizao de vistoria de imveis

    rurais que venham a ser invadidos, venda a transferncia de recursos

    para entidade, organizao social ou movimento e sociedade de fato que

    direta ou indiretamente concorram para a prtica dos referidos atos

    delituosos. (grifos meus)

    Percebe-se, portanto, a inteno do governo em deslegitimar a atuao

    dos movimentos sociais, que atuam por meio de ocupaes de grandes imveis

    rurais, como meio de presso consecuo da reforma agrria. Nesse sentido,

    FHC foi de encontro a uma poltica de atuao que desde a dcada de 1980 era

    utilizada por movimentos como o MST. A tese do livro A Formao do MST no

    Brasil, inclusive, do autor Bernardo Manano Fernandes, a de que a luta pela

    terra s tem sucesso quando acontece por meio da ocupao de terras, qual

    o governo responde com uma poltica de assentamento de reas de conflito.

    As presses realizadas pelos movimentos sociais podem se justificar

    quando evidenciada a inrcia do ordenamento brasileiro que trata da questo

    agrria. Um grfico construdo pelo Instituto Nacional de Colonizao e

    Reforma Agrria - INCRA, em seu Relatrio de Atividades dos 30 anos entre

  • 28

    1970 e 2000 6, mostra como a quantidade de reas desapropriadas caiu

    vertiginosamente de 1970 at o ano de 1999. Vejamos:

    Cabe questionarmos o por que desta queda, haja visto que o Brasil de

    modo algum est livre de latifndios, ao contrrio, mantm o status quo no

    tocante distribuio de terra. Na realidade, essa situao dialoga com a

    ineficincia de outros campos de atuao do Estado que tambm atuam aqum

    do necessrio para uma verdadeira redistribuio de terras. Analisemos a

    eficcia do Estatuto da Terra, lei publicada em 1964 e que dispunha das

    seguintes premissas:

    I. o uso da terra est condicionado sua funo social;

    II. promoo da justa e adequada distribuio de terra;

    III. obrigatoriedade da explorao racional da terra; e

    IV. possibilidade de recuperao econmica e social das regies. 7

    Ainda com este dispositivo normativo, a concentrao agrria no pas

    6. Relatrio de Atividades INCRA 30 Anos, in www.incra.gov.br/arquivos/0173400476.pdf 7. SANTOS, Margareth Alves, A Aplicao dos Requisitos da Funo Social da Propriedade no mbito da Reforma Agrria pelo Supremo Tribunal Federal. Monografia apresentada Escola de Formao 2006, SBDP, p. 6.

  • 29

    teve uma ligeira piora no ndice Gini 8 nos seus primeiros quinze anos de

    vigncia, e melhora muito singela a partir do ano de 1975, representando um

    resultado insatisfatrio. Em estudo realizado pelo Governo Fernando Henrique,

    numa publicao com o ttulo Reforma Agrria Compromisso de todos,

    colocado o seguinte grfico 9 referente concentrao de terras no Pas, com

    base no ndice supracitado:

    Este grfico foi feito a partir de informaes colhidas tanto do Instituto

    Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE quanto do INCRA. Como possvel

    observar, a concentrao de terra no Brasil gritante, no ficando em nenhum

    momento abaixo do nvel 0,7 no ndice Gini. Sabe-se, a ttulo de comparao,

    que em grande parte da frica a concentrao de terras limitada com relao

    a outros continentes do mundo, como a Amrica Latina 10, apesar de existirem

    algumas excees importantes, como o caso da frica do Sul, onde o

    apartheid e a economia colonial resultaram em uma distribuio de terra

    8. O ndice Gini uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatstico italiano Corrado Gini. Ele consiste em um nmero entre 0 e 1, onde 0 corresponde completa igualdade e 1 corresponde completa desigualdade. 9. www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/REFAGR3.HTM 10. COTULA, Lorenzo; QUAN, Julian; TOULMIN, Camilla, Polticas e Prticas para Assegurar e Melhorar o Acesso Terra. Conferncia Internacional sobre Reforma Agrria e Desenvolvimento Rural, 7 a 10 de maro de 2006.

  • 30

    extremamente injusta segundo as linhas raciais. Este e outros estudos

    mostram que as medidas para distribuir a terra no nosso Pas foram muito

    insuficientes at ento. Assim, preceitos constitucionais, como o da

    erradicao da pobreza e reduo das desigualdades sociais e regionais,

    presente no inciso do III do artigo 3, que trata dos objetivos fundamentais da

    Carta da Repblica, tm sua realizao aqum do necessrio.

    Dada a ineficincia da consecuo da reforma agrria brasileira, de se

    indagar at que ponto os excludos da terra devem ficar refns das polticas

    fundirias do governo, se este no se apresenta eficiente para distribuir a terra

    no Brasil. muito claro que este um problema enraizado na nossa histria,

    sendo utilizado como bandeira por muitos grupos polticos e intelectuais.

    Ainda, ao longo de toda a histria, a consecuo da distribuio da terra ficou

    refm de uma correlao de foras entre as alas mais conservadoras da

    sociedade e as alas que tinham propostas de reformas de base para o Brasil, a

    fim de amenizar sua desigualdade gritante. Cabe aqui lembrar episdio

    importante que foi Joo Goulart, vice de Jnio Quadros, ter assumido a

    Presidncia em 1961, j que neste perodo evidenciou-se claramente esta

    correlao de foras.

    poca, os militares entenderam que Jango seria prejudicial

    segurana nacional, por supostas ligaes com os comunistas. Essa

    desconfiana levou a um acordo onde o Presidente seria apenas chefe de

    Estado, funo decorativa, dentro de um sistema parlamentarista onde o

    primeiro-ministro seria o verdadeiro chefe de governo. Ainda assim, em 13 de

    maro de 1964, o ento chefe de Estado assinou decretos que, alm de

    nacionalizar as refinarias de petrleo, desapropriavam, para fins de reforma

    agrria, propriedades com mais de 100 hectares, numa faixa de 10

    quilmetros ao longo de rodovias e ferrovias federais 11. Este acontecimento

    que culminou com o Golpe de 1964, instaurador da Ditadura Militar.

    11. ARRUDA, Jos Jobson de A; PILETTI, Nelson, Toda a Histria. So Paulo: Ed. tica, 6 ed., 1996, p. 321.

  • 31

    1.1 Jurisprudncia do STF anterior ADI 2.213-MC/DF

    Alm do contexto da consecuo da reforma agrria e do tratamento do

    Governo para com os movimentos sociais na luta pela distribuio de terra,

    faz-se necessrio fazer uma contextualizao jurisprudencial do Supremo

    Tribunal Federal, anterior publicao da Medida Provisria 2.183-56/01, que

    impede a desapropriao de imvel que tenha sofrido suposto esbulho

    possessrio resultante do conflito agrrio, at dois anos depois do ocorrido.

    Ainda que na ausncia da medida provisria, o Governo Federal lanou,

    em 6 de junho de 1997, o Decreto n 2.250, cujo artigo 4 tem a seguinte

    redao:

    Art. 4 O imvel rural que venha a ser objeto de esbulho no

    ser vistoriado, para os fins do art. 2 da Lei n 8.629, de 25 de

    fevereiro de 1993, enquanto no cessada a ocupao, observados os

    termos e as condies estabelecidos em portaria do Presidente do

    Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria - INCRA.

    Percebe-se, ento, que o governo j estava aderindo a uma linha de no

    desapropriao em casos de esbulho possessrio em imveis rurais, ainda que

    estes fossem improdutivos. Foi com base nesse dispositivo normativo que, no

    Mandado de Segurana 22.965 12, o procurador-geral da Repblica emitiu

    parecer favorvel aos impetrantes, ao defender que o referido decreto se

    aplicava no caso, no podendo o imvel ser desapropriado, porque desde 3 de

    agosto de 1996 (o acrdo data de 10 de fevereiro de 2000) a rea era

    ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Neste caso

    especfico, o MS foi deferido em parte porque alegavam os impetrantes no

    terem sido notificados da vistoria que seria realizada pelo INCRA, ferindo o

    12. MS 22.965-9/SP por unanimidade, deferido em parte. Relator: Ministro Nri da Silveira Impetrante: Slvio Ianni e cnjuge Impetrado: Presidente da Repblica

  • 32

    2, do artigo 2 da Lei 8.629/93 13. Outrossim, em despacho da medida liminar

    em causa, o Ministro Nri da Silveira, dispondo sobre o pedido de liminar dos

    impetrantes de modo a permitir que estes pudessem reassumir o direito de

    livremente usar e gozar da propriedade justa e legtima que detinham, decidiu

    que:

    No cabe, aqui, no mbito de mandado de segurana preventivo

    contra ato de Chefe do Poder Executivo, conceder liminar ou qualquer

    proviso em ordem ao imediato retorno dos proprietrios posse plena

    de um imvel invadido por terceiros, estranhos presente relao

    processual.

    (MS 22.965-9/SP Rel. Ministro Nri da Silveira)

    Ainda, possvel perceber que a jurisprudncia anterior MP

    considerou, em muitos casos, que a ocupao da terra configurava fora maior 14, justificando a improdutividade do imvel, como se v na ementa do

    Mandado de Segurana 22.328:

    EMENTA: DECRETO QUE DECLAROU DE INTERESSE SOCIAL,

    PARA FISN DE REFORMA AGRRIA, O IMVEL RURAL DENOMINADO

    FAZENDA INGA, NO MUNICPIO DE ALVORADA DO SUL, PARAN.

    Procedncia da alegao de que a ocupao do imvel pelos

    chamados sem-terra em 1991, ano em que os impetrantes se haviam

    investido na sua posse, constituindo fato suficiente para justificar o

    descumprimento do dever de t-lo tornado produtivo e tendo-se

    revelado insuscetvel de ser removido por sua prpria iniciativa,

    configura hiptese de caso fortuito e fora maior previsto no art. 6,

    7, da Lei n 8.629/93, a impedira classificao do imvel como no

    13. Lei 8.629/93 Art. 2 A propriedade rural que no cumprir a funo social prevista no art. 9 passvel de desapropriao, nos termos desta lei, respeitados os dispositivos constitucionais. 2o Para os fins deste artigo, fica a Unio, atravs do rgo federal competente, autorizada a ingressar no imvel de propriedade particular para levantamento de dados e informaes, mediante prvia comunicao escrita ao proprietrio, preposto ou seu representante. 14. MS 22.328/PR, MS 23.323/PR, MS 23.241/PR, MS 23.563/GO, MS 22.666/PR, MS 22.946/SP

  • 33

    produtivo, inviabilizando, por conseqncia, a desapropriao.

    Mandado de segurana deferido.

    (MS 22.328/PR, Rel. Min. Ilmar Galvo)

    A mesma linha jurisprudencial passvel de ser observada na ementa do

    MS 22.666/PR, ocasio em que o Tribunal anulou declarao expropriatria

    que incidira sobre imvel rural cujas atividades foram injustamente

    paralisadas, por efeito de esbulho possessrio praticado, coletivamente, por

    movimento de trabalhadores rurais, nos dizeres do Ministro Celso de Mello, na

    ADI 2.213-MC/DF (fl. 368):

    REFORMA AGRRIA. IMOVEL RURAL. DECRETO QUE O

    DECLAROU DE INTERESSE SOCIA, PARA ESSE FIM. ALEGADA AFRONTA

    AO ART 185, II, DA CONSTITUIO.

    Imvel que cumpriu sua funo social at ser invadido por

    agricultores sem-terra, em meados de 1996, quando teve suas

    atividades paralisadas.

    Situao configuradora da justificativa da fora maior, prevista no

    7 do art. 6 da Lei n 8.629/93, que tem por efeito tornar o imvel

    insuscetvel de desapropriao por interesse social, para fim de reforma

    agrria.

    Mandado de segurana deferido

    (MS 22.666/PR, Rel. Min. Ilmar Galvo)

    Ambos precedentes foram citados no voto do Ministro Celso de Mello,

    relator da ADI em questo, e foram utilizados para fundamentar sua deciso

    de julgar constitucionais os dispositivos atacados no processo, sendo voto

    vencedor no caso. Cabe destacar, no entanto, que existem outros precedentes

    que vo no sentido contrrio dos acima apresentados 15. O Ministro Seplveda

    Pertence, voto vencido no julgamento em anlise, levanta mandados de

    segurana em que o STF no reconheceu efeito imunizatrio propriedade

    15. MS 23.054/PB

  • 34

    improdutiva por conta de turbao passada. Entres estes, h acrdo

    interessante em que colocado que no se justifica a improdutividade de um

    imvel quando a ocupao tenha ocorrido quase dois anos antes do decreto de

    expropriao. Assim se manifesta o Ministro Ilmar Galvo:

    Ora, a visita que desclassificou o imvel, de produtivo para

    improdutivo, foi realizada, como se viu, a 16 de novembro de 1998, ou

    seja, quase dois anos aps a ltima reintegrao do impetrante

    na posse plena do imvel. Conseqentemente, descabida, por

    completo, a alegao de que o grau de eficincia na explorao

    se devera ao dos sem-terra (grifos meus)

    (MS 23.563-2/GO, Rel. Min. Ilmar Galvo)

    Este entendimento vai exatamente de encontro Medida Provisria

    2.183-56/01 que, entre outras coisas, define que no poder ser alvo de

    expropriao o imvel que tenha sido alvo de ocupao, dando-lhe uma

    imunidade de dois anos aps o ocorrido, a fim de (...)permitir, ao longo,

    daquele lapso temporal, que se torne possvel a reorganizao do sistema de

    produo fundiria, alm de viabilizar a prpria recuperao fsica ou material

    (...), nas palavras o Ministro Celso de Mello na ADI 2.213 (fl. 392). Passemos,

    ento, a analisar a argumentao dos ministros frente a esta demanda, a fim

    de destacar suas posies com relao legitimidade, ou no, da atuao dos

    movimentos sociais na luta pela terra.

  • 35

    2.Anlise dos votos e suas respectivas construes

    argumentativas

    A Ao Direta de Inconstitucionalidade com pedido de medida liminar,

    proposta pela Contag e pelo PT, aponta quatro inconstitucionalidades no

    tocante s mudanas provocadas pela Medida Provisria 2.183-56/01. Antes

    de explicitar cada uma delas, os impetrantes indicam quais os dispositivos

    constitucionais maculados 16.

    2.1 Imunidades do art. 185, CF/88

    Primeiramente, aponta que seu artigo 2 cria um novo tipo de

    propriedade insuscetvel de desapropriao 17, alm daqueles previsto no artigo

    185 da Constituio Federal, assim redigido:

    Art. 185. So insuscetveis de desapropriao para fins de

    reforma agrria:

    I a pequena e mdia propriedade rural, assim definida em lei,

    desde que seu proprietrio no possua outra;

    II a propriedade produtiva.

    Pargrafo nico. A lei garantir tratamento especial

    propriedade produtiva e fixar normas para o cumprimento dos

    requisitos relativos a sua funo social

    Segundo os impetrantes, este dispositivo exaure as hipteses de imveis

    insuscetveis de desapropriao, visto que ligado ao escopo da poltica de

    16. Segundo os impetrantes, os preceitos constitucionais maculados pela Medida Provisria so: art. 5, caput e incisos VIII, IX, XVII, XVIII, XIX, XXIII, XXXV, XXXVI, LIII, LIV, LV, LVII, art. 6, art. 184, caput e art. 185. 17. Art. 95-A Fica institudo o Programa de Arrendamento Rural, destinado ao atendimento complementar de acesso terra por parte dos trabalhadores rurais qualificados para participar do Programa Nacional de Reforma Agrria, na forma estabelecida em regulamento. Pargrafo nico. Os imveis que integrarem o Programa de Arrendamento Rural no sero objeto de desapropriao para fins de reforma agrria enquanto se mantiverem arrendados, desde que atendam aos requisitos estabelecidos em regulamento.

  • 36

    reforma agrria, consubstanciada no caput do artigo 184 da CF/88 18.

    Interessante observar que no h constatao expressa na Carta de que o rol

    de imveis elencados nos incisos do artigo 185 taxativo, o que no permitiria

    a criao de novo tipo de imvel que no poderia ser alvo de desapropriao

    para fins de reforma agrria. Impe-se, portanto, fazer uma interpretao

    sistemtica da Constituio Federal, principalmente levando em conta seus

    princpios, essencialmente aqueles que norteiam o Captulo III do Ttulo VII 19

    desta, para se concluir qual o objetivo do dispositivo em questo.

    O ministro Celso de Mello, relator da ADI 2.213, no que diz respeito a

    esta questo, diz que:

    (...) o rol inscrito no artigo 185 do texto constitucional,

    concebido para proteger, em situaes especficas, o proprietrio rural,

    admite, por isso mesmo, a possibilidade de sua ampliao, sempre que

    a propriedade rural revelar-se fiel funo social que lhe inerente.

    (ADI-MC 2.213 Rel. Min. Celso de Mello)

    O ministro fundamenta, ento, que o rol do artigo 185 no taxativo

    por conta de um suposto objetivo de proteo aos proprietrios rurais,

    implcito nesse dispositivo. Necessrio se faz indagar, no entanto, com base

    em que ele concluiu que seria este o objetivo da norma em questo. Fazendo

    uma anlise dos artigos da Constituio que tratam da questo fundiria e da

    distribuio da terra, possvel observar que esta zela, acima de tudo, pelo

    cumprimento da funo social da propriedade, que engloba os seguintes

    aspectos:

    I. aproveitamento racional e adequado;

    18. Constituio Federal de 1988 Art. 184. Compete Unio desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrria, o imvel rural que no esteja cumprindo sua funo social, mediante prvia e justa indenizao em ttulos da dvida agrria, com clusula de preservao do valor real, resgatveis no prazo de at vinte anos, a partir do segundo ano de sua emisso, e cuja utilizao ser definida em lei. 19. Ttulo VII Da ordem econmica e financeira Captulo III Da poltica agrcola e fundiria e da reforma agrria

  • 37

    II. utilizao adequada dos recursos naturais disponveis e

    preservao do meio ambiente;

    III. observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho;

    IV. explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos

    trabalhadores. 20

    Estas exigncias servem de parmetro para que as terras que no as

    executassem pudessem ser desapropriadas e em seguida distribudas entre os

    trabalhadores rurais sem terra, a fim de garantir uma agricultura de

    subsistncia, essencial para concretizao do princpio da dignidade da pessoa

    humana e compatvel com a proposta constitucional de reduo das

    desigualdades sociais e de busca do pleno emprego, prevista nos artigos 3, III

    e 170, VIII respectivamente. Quando o ministro defende o contrrio, ou seja,

    de que as normas constitucionais referentes questo fundiria tm como

    objetivo proteger o proprietrio, ele subverte toda a lgica de busca por

    distribuio de terra, acabando por mitigar o conceito de funo social da

    propriedade.

    Exigir que toda propriedade deva cumprir sua funo social , na

    realidade, restringir o direito fundamental da propriedade, previsto no

    artigo 5, inciso XXII da CF/88. Isso quer dizer que a Carta optou por no

    apenas proteger a propriedade daqueles que j a tinham, como tambm,

    dentro de uma viso de interesse coletivo, onde inegavelmente a concentrao

    agrria leva grande parcela da populao brasileira misria, garantir que a

    terra fosse racional e satisfatoriamente utilizada (como em seguida prev o

    inciso XXIII do artigo 5 da CF, ao dispor sobre a obrigatoriedade de a

    propriedade atender a funo social), no permitindo fenmenos como o da

    especulao imobiliria, ou, mais simples ainda, o abandono da terra, sem que

    seu proprietrio no sofresse qualquer resposta do Estado.

    20. CF/88, artigo 186.

  • 38

    No seu voto, ainda, o relator utiliza as informaes prestadas pelo ento

    Presidente da Repblica para tentar justificar a no taxatividade do artigo 185

    da Carta, quais sejam:

    Explicitada a impossibilidade de presumir-se a ausncia de

    desempenho da funo social por parte de um imvel rural, restaria

    incontestvel a insuficincia da alegao de que seriam suscetveis de

    desapropriao todos os imveis rurais no includos no rol do art. 185

    da Carta Magna. Nada obstante, analisemos com maior detalhe o que

    estabelece o dispositivo constitucional para evidenciar o absurdo em que

    se funda a impugnao da Requerente. Em verdade, o art. 185 da

    Constituio Federal no exaure as hipteses de realizao da

    funo social de um imvel rural, mas antes apenas indica casos

    especiais em que o constituinte, para alm da clusula geral de

    cumprimento da funo social, afastou peremptria, prvia e

    absolutamente a hiptese de desapropriao. Para concluir (...)

    basta considerar o que consagrou esse Supremo Tribunal Federal em

    outro clarssimo precedente, igualmente da lavra do Ministro Celso de

    Mello:

    A pequena e mdia propriedade rurais, ainda que

    improdutivas, no esto sujeitas ao poder expropriatrio da Unio

    Federal, em tema de reforma agrria, em faze da clusula de

    inexpropriabilidade que deriva do artigo 185, I, da CF. A

    incidncia dessa norma constitucional no depende, para efeito de

    sua aplicabilidade, da cumulativa satisfao dos pressupostos nela

    referidos (dimenso territorial do imvel ou grau adequado de

    produtividade fundiria). Basta que qualquer desses requisitos se

    verifique para que a imunidade objetiva prevista no artigo 185

    atue plenamente, em ordem a pr-excluir a possibilidade jurdica

    de a Unio Federal Valer-se do instrumento extraordinrio da

    desapropriao-sano (grifos meus)

    (MS 21.919-PE, Rel. Min. Celso de Mello)

  • 39

    Faz-se necessrio rebater, no entanto, o primeiro argumento do

    Presidente da Repblica. No pedido dos requerentes no se quer que se

    presuma a ausncia da funo social em todos os imveis no previstos no

    artigo 185 da Constituio Federal. O que se questiona a imunidade dada aos

    imveis participantes do Programa de Arrendamento Rural, baseada na

    presuno de que todos que deste programa participam cumprem,

    conseqentemente, a funo que lhes inerente. Esta postura impede a

    desapropriao de imveis que, ainda que participantes do programa, sejam

    improdutivos.

    No s o Ministro Celso de Mello, relator do caso, defende que o

    dispositivo atacado no cria nova hiptese de propriedade insuscetvel de

    desapropriao, como tambm diz que, na realidade,

    (...) os imveis rurais assim arrendados acham-se claramente

    comprometidos com a destinao social que lhes inerente, viabilizando

    a plena realizao dos requisitos a que alude o artigo 186 da

    Constituio.

    (ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)

    O ministro toma essa posio por dizer que a norma em causa visava a

    dar concreo aos requisitos enumerados no artigo 186, referentes funo

    social da propriedade. de se indagar se papel dele dizer que a poltica

    criada pelo Governo eficiente e, ainda, se Celso de Mello tinha subsdios para

    fazer essa afirmao. Em nenhum momento, porm, ele explicita de que modo

    este Programa de Arrendamento Rural capaz de realizar essa concreo do

    cumprimento da funo social inerente propriedade. Como este argumento

    basilar em sua fundamentao, a fim de decidir pela constitucionalidade do

    dispositivo atacado, fazia-se necessrio mostrar em que medida essa funo

    era contemplada. Dizer simplesmente que a medida presidencial visa ao

    cumprimento dos requisitos do artigo 186 da Carta um argumento

    demasiado poroso, sem qualquer fundamentao que possa sustent-lo de

    fato.

  • 40

    No entanto, o ministro relator acompanhado por todos os outros

    ministros, com exceo do Ministro Presidente Marco Aurlio, que decidiu pela

    inconstitucionalidade do pargrafo nico do art. 95-A. Cabe aqui mostrar, a

    ttulo de comparao, o argumento utilizado pelo Ministro Seplveda Pertence,

    a respeito do por que no se pode desapropriar imvel que esteja includo

    neste Programa:

    ele [pargrafo nico do art. 95-A] se limita a explicitar uma

    excluso lgica: se o Programa Nacional de Assentamento um

    mecanismo da reforma agrria, no teria sentido algum que, no dia

    seguinte ao da destinao de um imvel, por mais improdutivo que

    fosse, a esse programa de reforma agrria, ele pudesse ser

    desapropriado para a reforma agrria.

    (ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)

    2.2 Imunidade em razo de esbulho possessrio

    Depois de analisado o artigo 95-A, nico, os ministros passaram

    anlise da segunda inconstitucionalidade apontada, que de fato a que mais

    interessa no presente trabalho, pois diz respeito especificamente ao suposto

    esbulho possessrio resultante das ocupaes de terra promovidas por

    movimentos sociais, mas que tem relao intrnseca com a discusso que se

    faz ao longo das outras inconstitucionalidades apontadas. Segue a transcrio

    do dispositivo atacado:

    Art 2 (...)

    6 O imvel rural de domnio pblico ou particular objeto de

    esbulho possessrio ou invaso motivada por conflito agrrio ou

    fundirio de carter coletivo no ser vistoriado, avaliado ou

    desapropriado nos dois anos seguintes sua desocupao, ou no dobro

    desse prazo, em caso de reincidncia; e dever ser apurada a

    responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer

  • 41

    ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas

    vedaes.

    Alegaram os requerentes que, em no havendo vistoria dos imveis, por

    conseguinte, no se ultima a desapropriao, negando vigncia ao artigo 184

    da Constituio Federal em hiptese no recepcionada pelo artigo 185 da Carta

    Magna. Ainda, sustentam que criou-se bice que no encontra amparo no

    ordenamento interveno estatal para fazer valer a funo social da

    propriedade rural. Defendem, por ltimo, que as ocupaes de terra nas suas

    variadas formas, no se constituem em esbulho, tendo se revelado em

    instrumento legtimo de luta e meio eficaz, para que o prprio governo possa

    agilizar o processo de reforma agrria.

    Especificamente este ltimo argumento que mais me interessa, pois de

    certa forma est ligado questo da desobedincia civil, onde, frente a inrcia

    do Poder Pblico e o constante desrespeito a direitos fundamentais, faz-se

    necessrio atuar, coletivamente, atravs de meios que a prima facie parecem

    ilcitos, mas que se justificam quando analisados frente a um contexto peculiar

    de incapacidade do Estado de lidar com as demandas sociais.

    De fato, em tese defendida em seu mestrado, o autor Bruno Konder

    Comparato cria um organograma 21 capaz de explicar de que maneira as

    ocupaes de terra se tornaram meio eficaz para que o governo agilizasse o

    processo da reforma agrria. Assim aparenta o organograma das negociaes

    entre o MST e o Governo FHC:

    21. COMPARATO, Bruno Konder, A Ao Poltica do MST. So Paulo: Expresso Popular, 2000, p. 94.

  • 42

    A anlise deste organograma permite perceber que a luta pela reforma

    agrria d origem a duas formas de presso sobre o governo, sempre a partir

    da ocupao da terra ociosa. A primeira delas aquela exercida pelos sem-

    terra acampados, e s se desfaz quando se conquista o assentamento. Surge,

    ento, o segundo tipo de presso, que diz respeito ao acesso dos crditos de

    reforma agrria pelos assentados, a fim de viabilizar a produo at que o

    assentamento adquira autonomia suficiente para ser emancipado.

    A mesma eficcia e legitimidade das ocupaes de terra fora dada pelo

    Superior Tribunal de Justia STJ. No Habeas Corpus 5.574-SP, o colegiado

    decidiu pelo reconhecimento de que as ocupaes movidas por grupo

  • 43

    organizado que reivindica a efetiva implementao da reforma agrria,

    assegurada constitucionalmente, no configura crime contra o Patrimnio, mas

    direito coletivo, expresso da cidadania, conforme nos mostra a ementa:

    EMENTA: HC CONSTITUCIONAL HABEAS CORPUS LIMINAR

    FIANA REFORMA AGRRIA MOVIMENTO SEM TERRA Habeas

    corpus ao constitucionalizada para preservar direito de locomoo

    contra atual, ou iminente ilegalidade, ou abuso de poder (Const., art. 5,

    LXVIII). Admissvel a concesso de liminar. (...) Caso de concesso de

    medida liminar. Movimento popular visando a implantar a reforma

    agrria no caracteriza crime contra o Patrimnio. Configura

    direito coletivo, expresso da cidadania, visando a implantar

    programa constante da Constituio da Repblica. A presso

    popular prpria do Estado de Direito Democrtico. (grifos meus)

    (6 Turma do STJ, 8 de abril de 1997 HC n 5.574/SP 97.0010236-0,

    Rel. Exmo. Sr. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro. 18/08/97.)

    Ainda, a habilidade que as ocupaes tm de pressionar o governo pode

    ser observada a partir de tabela que faz uma relao entre o nmero de

    ocupaes promovidas pelo MST e os assentamentos realizados 22:

    Perodo N de

    ocupaes

    N de

    assentamentos

    N de famlias

    ocupantes

    N de famlias

    assentadas

    1990-1994 421 478 74.247 65.565

    1995-1999 1.855 2.750 256.467 299.323

    22. FERNANDES, Bernardo Manano, A Formao do MST no Brasil. Petrpolis: Ed. Vozes, 1999.

  • 44

    Deste modo, frente a estas diferentes fontes, inegvel o poder que a

    mobilizao realizada por este Movimento tem para alcanar os fins a que se

    prope. Com isso, de se questionar se o governo teria a mesma pr-

    atividade se no houvesse um movimento que o pressionasse pela consecuo

    da reforma agrria.

    Ainda assim, Celso de Mello, relator do caso, posiciona-se pela

    constitucionalidade do dispositivo, alegando que

    (...) as normas em questo buscam neutralizar os excessos a

    que tm dado causa grupos organizados de trabalhadores rurais,

    que transformaram o esbulho possessrio, praticado contra bens

    pblicos ou contra a propriedade privada, em instrumento de ao

    poltica e de presso social nem sempre legtima sobre o Poder

    Pblico, com grave ofensa a postulados e valores essenciais

    resguardados pela ordem constitucional vigente em nosso pas. (grifos

    meus)

    (ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)

    A fim de fazer uma anlise crtica da fundamentao do ministro,

    entendo ser pertinente desconstruir essa argumentao, de modo a detectar

    possveis lacunas ou incoerncias dentro da sua prpria construo

    argumentativa.

    Primeiramente, ao dizer que o suposto esbulho realizado por grupos

    organizados de trabalhadores rurais, o ministro apenas evidencia que de fato

    a questo da terra uma causa comum a determinado setor da sociedade,

    dizendo respeito, mais diretamente, aos trabalhadores rurais sem terra. Isto

    est diretamente ligado construo terica de desobedincia civil de Hannah

    Arendt, quando esta mostra que a causa comum surge quando a conscincia

    individual de cada sujeito coincide com um certo nmero de conscincias, de

    modo a tornar-se parte da opinio pblica. Tem-se, portanto, que:

  • 45

    (...) tal forma de objeo de conscincia pode se tornar

    politicamente significativa quando acontece de coincidir com um certo

    nmero de conscincias, e os objetores de conscincia resolvem ir

    praa do mercado e se fazerem ouvir em pblico. (...) O que foi decidido

    in foro conscientiae tornou-se agora parte da opinio pblica, e apesar

    de que este grupo especial de contestadores civis possa ainda alegar a

    validao inicial suas conscincias eles na verdade j no contam

    mais somente com eles mesmos.

    (ARENDT, 2004: p. 63 Crises da Repblica)

    possvel dizer que este trecho evidencia como pode se dar a

    construo de um movimento social que luta por uma pauta especfica, como

    a questo da distribuio de terra, e de certo modo legitima sua atuao pois

    mostra que as suas reivindicaes no so despropositadas, mas externalizam

    uma demanda da sociedade que o governo no tem sido capaz de dar conta de

    atender.

    Ainda, no mesmo argumento supracitado do Ministro Relator, possvel

    observar que ele, ainda que defenda a ilicitude das ocupaes de terra, as

    enxerga como instrumento de ao poltica e presso social e d margem

    possibilidade desta forma de atuao ser legtima, ao dizer que nem sempre o

    . Ora, se no sempre que as ocupaes so ilegtimas, logo elas devem o

    ser em algum momento ou em algumas situaes.

    Por ltimo, Celso de Mello diz que essas ocupaes constituem em grave

    ofensa a postulados e valores essenciais resguardados constitucionalmente,

    mas ele no indica que postulados e valores seriam esses, alm de esquecer-

    se de que, ainda que haja um conflito entre estes e a atuao dos

    movimentos, faz-se necessrio realizar um sopesamento a fim de observar se

    a busca por determinados direitos, tambm constitucionalmente garantidos,

    no justifica uma restrio a certos princpios constitucionais.

    Apesar de possveis lacunas em seu discurso, o Ministro se posiciona

    claramente contra a prtica de ocupao de terra, levantando precedentes do

  • 46

    STF a fim de embasar sua deciso, dizendo que Esta Suprema Corte no

    hesitou em censurar essa ilcita manifestao de vontade poltica. Os acrdos

    aos quais ele se referiu dizem respeito ao esbulho como causa impeditiva de

    desapropriao e justificadora de improdutividade. Assim sustenta o Ministro:

    Esse entendimento que identifica, no ato de esbulho

    possessrio, causa impeditiva de declarao expropriatria do imvel

    rural, para fins de reforma agrria (MS 23.323/PR, Rel. Min. Nri da

    Silveira, v. g.) acentua que a ocupao ilcita de propriedade

    imobiliria, notadamente nos casos em que esta se faz de modo

    coletivo, alm de impedir, injustamente, que o proprietrio nela

    desenvolva regular atividade de explorao econmica, representa

    motivo legtimo que justifica, ante o carter extraordinrio de tal

    situao, a impossibilidade de o imvel invadido atender os graus

    mnimos de produtividade exigidos pelo ordenamento positivo, para,

    desse modo, realizar a funo social que lhe inerente.

    (ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)

    Alm do mandado de segurana supracitado, so utilizados, tambm

    como precedentes, o MS 22.666/PR e o MS 22.328/PR, cujas ementas foram

    expostas na primeira parte deste trabalho.

    parte da anlise da legitimidade da ao dos movimentos sociais, o

    Ministro ainda discute a impossibilidade de um imvel ocupado submeter-se a

    vistoria a fim de analisar seu grau de produtividade. Assim tambm se

    posiciona o ento Presidente da Repblica Fernando Henrique, ao defender que

    o imvel invadido no se encontra em condies de submeter-se a vistoria

    para configurar o no atingimento dos ndices mnimos de produtividade. De

    fato, essa questo discutvel e, ao meu ver, depende de um estudo emprico

    que possa comprovar se realmente as ocupaes de terra levam

    improdutividade do imvel alvo da ao. O que no se pode fazer presumir

    que, inexoravelmente, toda terra ocupada acaba tornando-se improdutiva,

    como o faz o Ministro Carlos Velloso quando afirma que:

  • 47

    (...) uma propriedade rural, objeto de invaso coletiva, tende a

    perder sua produtividade, observada esta segundo critrios legais. Pelo

    menos, existe uma presuno de que a propriedade invadida

    coletivamente perde a sua produtividade. (grifos meus)

    (ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)

    de questionar de onde vem essa suposta presuno utilizada pelo

    Ministro. Essa afirmao, na verdade, sem qualquer fonte que possa

    comprov-la, facilita o trabalho do ministro quando ele no tem de comprovar

    argumento de tamanho peso para o caso e, porm, de bases muito movedias.

    Ao contrrio, muitos so os casos em que os movimentos ocuparam latifndios

    tornando-os produtivos, quando estes encontravam-se em situao de

    improdutividade. Esta possibilidade inclusive assumida pelos ministros Ilmar

    Galvo, Marco Aurlio e Seplveda Pertence, conforme dilogo entre eles no

    Plenrio:

    O SENHOR MINISTRO MARCO AURLIO (PRESIDENTE)

    Ministro [referindo-se a Ilmar Galvo], a aferio disso [possibilidade de

    destruio do sistema de produo da propriedade ocupada] s

    possvel com a vistoria que o preceito probe, porque, seno,

    acabaramos assumindo a posio de legisladores positivos.

    O SENHOR MINISTRO ILMAR GALVO Parece-me que s

    probe quando uma invaso prolongada.

    O SENHOR MINISTRO SEPLVEDA PERTENCE A invaso

    prolongada pode at ser produtiva.

    O SENHOR MINISTRO MARCO AURLIO (PRESIDENTE)

    Claro, pegar-se um imvel improdutivo e torn-lo produtivo.

    (ADI 2.213-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello)

    Interessante observar, primeiramente, a preocupao do Ministro Marco

    Aurlio de o Supremo tomar posio de legislador positivo, caso dissesse que a

    vistoria no seria permitida, por dois anos, em propriedade ocupada desde que

    a ocupao fosse prolongada, inteno do Ministro Ilmar Galvo. Da surge

  • 48

    dois problemas, quais sejam, o primeiro deles a falta de meno, no

    dispositivo atacado, ao tipo de ocupao que ensejaria imunidade de dois anos

    s propriedades; e segundo deles, a falta de parmetros legais para aferir o

    que seria uma ocupao prolongada.

    Outro ponto interessante neste dilogo diz respeito possibilidade

    efetiva de as ocupaes da terra tornarem-na produtiva. E da surge o principal

    problema com relao norma atacada. Qual foi a base utilizada pelo Governo

    para definir os dois anos como lapso temporal de imunidade s propriedades

    ocupadas? Ainda, como esta imunidade pode ser definida se no h

    comprovao emprica de que as ocupaes levam improdutividade da terra,

    mas apenas uma suposta presuno, como evidencia o Ministro Carlos Velloso?

    A situao ainda se agrava quando considerados que, em caso de reincidncia,

    o tempo de imunidade passa