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SOBRE A LIBERDADE 1

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SOBRE A LIBERDADE

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Co le ç ã oCLÁSSICOS DO PENSAMENTO POLÍTICO

Volumes já publicados:

4. TRATADO SOBRE A CLEMÊNCIA – SênecaA CONJURAÇÃO DE CATILINA / A GUERRA DE JUGURTA –Salústio7. SOBRE O PODER ECLESIÁSTICO – Egídio Romano8. SOBRE O PODER RÉGIO E PAPAL – João Quidort9. BREVILÓQUIO SOBRE O PRINCIPADO TIRÂNICO – Guilhermede Ockham16. OS DIREITOS DO HOMEM – Thomas Paine19. ESCRITOS POLÍTICOS – San Martin22. SOBRE A LIBERDADE – Stuart Mill24. MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA – K. Marx e F. Engels26. O ABOLICIONISMO – Joaquim Nabuco29. A REVOLUÇÃO RUSSA – Rosa Luxemburg40. O SOCIALISMO HUMANISTA – “Che” Guevara

Próximos lançamentos:

10. DEFENSOR MINOR – Marsílio de PáduaTRATADO SOBRE O REGIMENTO E O GOVERNO DA CIDADEDE FLORENÇA – G. Savonarola12. O PRÍNCIPE – Maquiavel13. DE CIVE – Thomas Hobbes14. DO CONTRATO SOCIAL / SOBRE A ECONOMIA POLÍTICA– J.J. Rousseau15. A TEORIA DO DIREITO / PAZ PERPÉTUA – Immanuel Kant21. SOBRE A CAPACIDADE POLÍTICA DAS CLASSES TRABALHA-DORAS – P.J. Proudhon23. REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA – Georges Sorel25. FACUNDO – Sarmiento31. SOBRE O ESTADO / O ESTADO E A REVOLUÇÃO – Lênin33. AS CATEGORIAS DO POLíTICO – Carl Schmitt35. O CONCEITO DE REVOLUÇÃO PASSIVA – A. Gramsci

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J o h n Stu a r t Mill

SOBRE A LIBERDADE

2ª edição

Tradução e PrefácioAlberto da Rocha Barros

ApresentaçãoCelso Lafer

Petrópolis1991

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© desta tradução, adquirida daCompanhia Editora Nacional, 1988:Editora Vozes Ltda.Rua Frei Luís, 10025689 Petrópolis, RJBrasil

Título origina l inglês:ON LIBERTY

CopidesqueOrlando dos Reis

DiagramaçãoDaniel Sant’Anna

ISBN 8 5 .3 2 6 .0 4 8 6 -2

CIP-Brasil. Cata logação-na-fonteSindica to Naciona l dos Editores de Livros, RJ .

Mill, John Stuart, 1806-1873M589s Sobre a liberdade / John Stuart Mill ; tradução e 2.ed.

prefácio Alberto da Rocha Barros ; apresentação Celso La fer. –2.ed. – Petrópolis, RJ : Vozes, 1991.

(Clássicos do pensamento político ; v. 22)

Traduçào de: On libertyDados biográ ficos do autor.ISBN 85.326.0486-2

1. Liberdade. I. Título. II. Série.

CDD – 323.4490-0728 CDU – 172.3

Este livro foi composto e impresso nas oficinas grá fica s da Editora Vozes Ltda .em março de 1991.

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SUMÁRIO

Apresentação (Celso Lafer), 7

Prefácio da tradução (Alberto da Rocha Barros), 27

Nota biográfica sobre John Stuart Mill, 35

SOBRE A LIBERDADE, 41

I. Introdução, 45II. Da liberdade de pensamento e discussão, 59III. Da individualidade, como um dos elementos do bem-estar, 97IV. Dos limites da autoridade da sociedade sobre o indivíduo, 117V. Aplicações, 137

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Ap r e s e n ta ç ã o

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Liberdade – es sa palavraque o sonho humano alimenta:que não há ninguém que explique,e ninguém que não entenda!(Cecília Meireles – Romance XXIV –do Romanceiro da Inconfidência)

I

S obre a liberdade , de John Stuart Mill, na tradução de Albertoda Rocha Barros1, foi publicado pela Cia . Editora Nacional em

plena Segunda Guerra Mundia l. Era , na ocasião, sem dúvida,uma mensagem de esperança e de civilização – como apontavao tradutor no seu prefácio datado de janeiro de 1942 – nocontexto histórico de uma época em que nazismo e fascismo

1. Alberto Moniz da Rocha Barros, que prefaciou, traduz iu e anotou estaprimeira edição de Sobre a liberdade de Stuart Mill, nasceu em Jaboticaba l, noEstado de São Paulo, em 1909, e fa leceu em 1968. Estudou na Faculdade de Direitode São Paulo e também bacharelou-se em Filosofia pela Faculdade de São Bento,naquela época adida à Universidade de Louva in.

Foi procurador do Departamento do Traba lho e depois integrou a procu-radoria jurídica do Estado de São Paulo. Advogado militante, lecionou Introduçãoà Ciência do Direito na Faculdade de Direito da USP, da qua l foi professorlivre-docente.

Na presidência Jânio Quadros, foi designado, em 1961, pelo então Ministroda Justiça , Oscar Pedroso d’Horta , coordenador da Reforma dos Códigos. Foi, nosanos 60, o idea lizador e um dos fundadores da Associação Paulista dos Professoresdo Ensino Superior, expressão, nas pa lavra s de Fabio Konder Compara to, “daautenticidade democrá tica no meio universitá rio”.

Entre os seus traba lhos publicados destacam-se a sua tese O poder econô-mico do Es tado contemporâneo e s eus reflexo s no Direito , S. Paulo, Ed. Revista dosTribuna is, 1953; numerosos traba lhos jurídicos, como o inovador Uma inves tiga-ção de paternidade , São Paulo, Revista dos Tribuna is, 1949, e o cora joso Em pro lda ciência bras ileira: a cátedra de Mário Schenberg , S. Paulo, 1965; conferência scomo Uma lição de to lerância: o direito , a moral e a po lítica, S. Paulo, 1955, e doislivros póstumos que reúnem estudos dispersos: O que é fas cismo? , Rio de Janeiro,Laemmert, 1969; e Origem e evo lução da leg is lação trabalhis ta, Rio de Janeiro,Laemmert, 1969.

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apresentavam o sobrepujamento da liberdade pelo autoritarismocomo solução política para todo o sempre.

Hoje, com a a firmação genera lizada do va lor da liberdade,qual é o significado da republicação deste livro, pela Vozes, numacoleção dedicada a clássicos do pensamento político? A respostaa esta pergunta coloca , quase que natura lmente, duas questõespreliminares: (I) O que é um autor clássico? e (II) o que faz deSobre a liberdade uma obra que pode ser considerada um clássicodo pensamento político?

No campo da política , a qualificação de um texto comoclássico significa o reconhecimento público de atributos depersistência : nele os leitores encontram não só uma fonte deensinamento sobre o passado mas também pontos de referênciapara o presente. Estes devem ser tomados em consideração, comoadverte Norberto Bobbio, sob pena de as pessoas se deixaremenganar pelas aparências, imaginando que a cada dez anos ahistória recomeça do zero2.

Os atributos de persistência , que nos aconselham a ouviras lições dos clássicos, derivam de três aspectos básicos, paracontinuar com Bobbio que chama continuamente a nossa aten-ção para o que ele denomina de temas recorrentes na história do

O Prof. Goffredo Telles Júnior, que foi seu amigo e colega de magistériona Faculdade de Direito da USP, a lém de companheiro nas a tividades da Associa -ção Paulista de Professores do Ensino Superior, traçou, nos seguintes termos, oseu perfil: “Ele era um extraordinário pensador. Tinha um espírito universa l. Tudoo interessava : a Matemática , a Física , a Astronomia , a Biologia , a Ética , a Política .Era um dos nossos melhores jurista s, um dos nossos advogados mais eficientes.Era um dedicado professor: grande na sa la de aula , e grande nos ba te-papos depátio. Van Acker o tinha como um raro filósofo: “O melhor entre os melhoressa ídos da Faculdade de Filosofia de São Bento” ( filiada à Faculdade de Louva in) .E era a legre, exímio conversador. Fiel amigo, amigo incondiciona l, desses amigosde coração, para qua isquer horas da vida”.

Não fui a luno de Rocha Barros mas conheci-o bem, pois foi amigo e colegade meu pa i na Faculdade de Direito. Assim, tive ocasião de freqüentar a sua ca sana Rua Tupi. Era uma excepciona l figura humana , com interesses intelectua isvariados – inclusive a psicaná lise, sólida e rigorosa cultura jurídica e grandesconhecimentos de teoria política . Tinha a sedução da inteligência , grande simpatiapessoa l, e combinava esta s virtudes da convivência com uma grande bravura naa firmação de suas posições política s, animadas, na época em que o conheci, pelosidea is de uma esquerda de inspiração democrá tica . É com muita honra que mevejo a ssociado ao seu nome nesta nova edição de Sobre a liberdade , e é comafetuosa admiração que dedico à sua memória esta apresentação.

2. Norberto Bobbio, A crise da democracia e a lição dos clá ssicos, Arquivo sdo Minis tério da Jus tiça, nº 170, ano 40, out/ dez 1987, p. 29.

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pensamento político. São eles: (I) o de se poder considerar umautor como um intérprete autêntico de seu tempo e a sua obracomo um acesso privilegiado para a compreensão da épocahistórica em que viveu; (II) manter o autor e a sua obra umaatualidade que instiga a sua constante releitura e reinterpreta-ção; e (III) ter um autor concebido, na sua obra , categorias deque nos va lemos para apreender a rea lidade, embora esta nãoseja mais a mesma que levou à sua inicia l elaboração e aplica-ção3.

Assim, pode-se dizer que A Cidade de Deus , de SantoAgostinho, é uma obra básica para o entendimento da concepçãopolítica medieva l, da mesma maneira que Os Seis Livro s daRepública, de Jean Bodin, são indispensáveis para o estudo daformação dos estados nacionais soberanos na Europa do Renas-cimento. Igua lmente, pode-se mencionar que Rousseau ouNietzsche têm sido continuamente relidos e reinterpretados comresultados muito distintos. Mais a inda, não há dúvida que ateoria das formas de governo de Aristóteles, a autonomia dapolítica de Maquiavel, a dinâmica da luta de classes de Marx ouos tipos de legitimidade do poder de Max Weber são conceitosde uso corrente na análise política .

Em que medida Sobre a liberdade de John Stuart Millpreenche estes requisitos, independentemente da discussão epis-temológica sobre como é possível tornar congruentes e compatí-veis os três critérios apresentados por Bobbio? 4

É esta questão que vou tentar esclarecer, adiantando, desdelogo, que, a meu ver, este livro de Stuart Mill tem as virtudes deum clássico, posto que é (I) a ltamente representativo e esclare-cedor da doutrina libera l do século XIX, especia lmente na suavertente inglesa ; (II) vem suscitando até hoje, pela sua atualida-de, distintas leituras, sendo o seu autor visto, ora como conser-vador, ora como antecipador da convergência progressista delibera lismo e socia lismo; e (III) deu uma contribuição a umasempre difícil teoria modelar da liberdade, que merece serpermanentemente ouvida e meditada.

3. Norberto Bobbio. A teoria do Estado e do poder em Max Weber. Ensaio ses co lhido s , São Paulo, CH. Cardim, s/ d, p. 157-158.

4. Michelangelo Bovero. Antichi e moderni: Norberto Bobbio e la “lez ionedei cla ssici”. Per una teoria generale della po litica 196 Scritti dedicati a NorbertoBobbio , a cura di Luigi Bonanate e Michelangelo Bovero. Firenze, Passigli Edit.,1986, p. 228-229.

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II

O libera lismo é uma doutrina que tem vários patronos.Entre eles avultam Locke, Monstesquieu, Kant, Adam Smith,Humboldt, Benjamin Constant, Tocqueville e John Stuart Mill.Esses autores, se têm afinidades, caracterizam-se também pordiferenças muito apreciáveis. É por isso que se pode dizer que adoutrina libera l é, desde as suas origens, uma doutrina plura lista ,com vários clássicos.5 Contrasta , neste sentido, com o socia lismoque, identificando-se preponderantemente com o pensamento deMarx, dele fez o clássico por excelência , da í advindo uma certapropensão para o misoneísmo intelectual da esquerda.

No âmbito da família libera l, é possível distinguir, como fezLarry Sidentop, a tradição francesa da inglesa . Com efeito, osfranceses – começando com Montesquieu e continuando comGuizot, Benjamin Constant, Tocqueville e Raymond Aron – porserem juristas, historiadores e sociólogos, trataram das condiçõessocia is da ação política e elaboraram uma perspectiva da doutri-na libera l, levando em conta a distinção entre as instituiçõespolíticas e a estrutura socia l. Buscaram, assim, no seu percurso,construir a teoria política libera l com base numa teoria demudança socia l e histórica . Não foi este o caminho dos inglesesque, começando com Locke e continuando com Hume e StuartMill, foram, antes de mais nada, filósofos da mente e edificaramos seus argumentos políticos com base numa teoria do conheci-mento de cunho empírico, no contexto de uma preocupaçãometodológica com regras de rigor e possibilidades de verifica-ção6.

Neste sentido, para sublinhar a vinculação de Stuart Mill àtradição inglesa , importa mencionar que, entre os seus livrosfundamentais que antecedem Sobre a liberdade , que é de 1859,estão o Sis tema da lóg ica e os Princípio s da economia po lítica.

O sistema da lógica dedutiva e indutiva – Exposição dosprincípios da prova e dos métodos de investigação científica é de1843, e foi revisto para a terceira edição de 1851 e para a oitavade 1872, o que indica a continuidade do interesse de Stuart Mill

5. Norberto Bobbio, O futuro da democracia – uma defesa das regras do jogo .Rio de Janeiro, Paz e Terra , 1986, p. 114.

6. Larry Sidentop. Two Libera l Traditions. The Idea o f Freedom – Es say s inHonour o f Isaiah Berlin, ed. by Alan Ryan, Oxford, Oxford University Press, 1979,

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por problemas epistemológicos. Esse livro que buscou, “intera lia”, cuidar da metodologia das ciências morais e tambémcontestar a geometria da política a lmejada por Bentham, tevegrande repercussão no século XIX. Marcou entre nós, no começodo século, a concepção de Pedro Lessa , da Filosofia do Direitocomo metodologia do conhecimento jurídico, e, na década de 60,por conta da preocupação epistemológica , foi o tema da tese dedoutoramento de José Arthur Giannotti.7

Ao Sis tema da lóg ica segue-se, em 1848, Princípio s daeconomia política , que a lcançou igualmente grande eco e éconsiderado, pela sua preocupação analítica com a natureza dariqueza e as leis de produção e distribuição, um livro precursordo que foi depois denominado a teoria pura da economia,assina lada pela ênfase metodológica de sua autonomia em rela-ção à moral e às demais ciências socia is.8

Sobre a liberdade obedece, na sua articulação, à formamentis da tradição inglesa e também ao estilo dedutivo doreformismo utilitarista , dentro do qual foi Stuart Mill criado porseu pai, James Mill, o companheiro de Bentham na luta dasidéias, embora, como já apontado, o Stuart Mill maduro doSis tema da lóg ica que emerge depois de sua “menta l crisis” setenha afastado da ortodoxia utilitarista , por achá-la reducionista ,como explica na sua autobiografia .9

Assim, Sobre a liberdade parte de um princípio gera l,a firmado no capítulo introdutório nos seguintes termos: “ Oobjeto deste ensa io é defender como indicado para orientar deforma absoluta as intervenções da sociedade no individual, umprincípio muito simples, quer para o caso do uso da força fís icasob a forma de penalidades lega is, quer para o da coerção moralda opinião pública . Consiste esse princípio em que a única

7. Cf. John Stuart Mill. Sis tema da lóg ica dedutiva e indutiva ( seleção) , trad.João Marcos Coelho, in Bentham e Stuart Mill, São Paulo, Nova Cultura l, 1989;Pedro Lessa . Estudo s de Philo so fia do Direito (2ª ed.) . Rio de Janeiro, FranciscoAlves, 1916; J . Arthur Giannotti. John Stuart Mill: o ps ico log ismo e a fundamenta-ção da lóg ica, São Paulo, Faculdade de Filosofia , Ciência s e Letra s da USP, Boletimnº 269, 1964; Claudio Cressanti. La libertà e le sue garanzie – il pens iero po lítico diJohn Stuart Mill. Bologna , Il Mulino, 1988, p. 31-36.

8. Joseph A. Schumpeter. History o f Economic Analy s is . Londres, Allen undUnwin, 1954, cap. 5.

9. Authobiography o f J ohn Stuart Mill. New York, Columbia UniversityPress, 1960, cap. V; Isa iah Berlin. Four Es say s on Liberty . Londres, Oxford Univer-sity Press, 1909, p. 173-206.

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fina lidade justificativa da interferência dos homens, individual ecoletivamente, na liberdade de ação de outrem, é a autoproteção.A partir desse princípio, Stuart Mill elaborou outros princípios,deles deduzindo as conseqüências que o levam a a firmar, nocapítulo II, a liberdade de pensamento e de discussão; no capítuloIII, o individualismo como um dos elementos do bem-estar; nocapítulo IV, os limites da autoridade da sociedade sobre oindivíduo, para concluir o livro com alguns exemplos de aplica-ções práticas do seu modo de defender a liberdade.

A marca da abstração perpassa , portanto, Sobre a liberdade .É ela indicativa de uma certa carência concreta de percepção dadinâmica socia l, apesar de Stuart Mill ter sido influenciado pelatradição libera l francesa , pois foi estudioso da obra e amigo deTocqueville, tendo discutido A democracia na América em doisimportantes ensa ios.10

Observa , neste sentido, Sidentop, que Stuart Mill va leu-sedas conclusões de Tocqueville, adaptando, no entanto, os temastocquevilianos a um modo de expor e argumentar que não levavaem conta as premissas sociológicas da tradição francesa . Istomuito provavelmente porque, em contraste com o impacto daRevolução Francesa , na Inglaterra o gradualismo das transfor-mações não ensejou a reflexão, por parte dos libera is, sobre amudança socia l fundamenta l.11

O relativo divórcio que se verifica em Sobre a liberdade entreas questões de teoria política e as de estrutura socia l não impediuque se tornasse o livro de Stuart Mill de maior ressonância emnosso século. Isto, creio, também se prende aos diversos tiposcontrastantes de leitura que a sua obra vem instigando, o que fazdele, para voltar a outro dos critérios de Bobbio, um autor dotadode persistência e, portanto, um clássico do pensamento político.

III

John Stuart Mill tem sido interpretado de distintas manei-ras. Numa recente resenha crítica da bibliografia especia lizada,

10. John Stuart Mill. Essay s on Po litics and Culture (edited w ith an intro-duction by Gertrude Himmelfa rb) . Gloucester, Mass., Peter Smith, 1973, cap. V –Tocqueville on Democracy in America , vol. I e cap. VI. Tocqueville on Democracyin America , vol. II. Cf. Maria Luisa Cica lese. Democrazia in cammino – Il dialogopo litico fra Stuart Mill e Tocqueville . Milano, Franco Angeli, 1988.

11. Larry Sidentop. Two Liberal Traditions , loc. cit., p. 173.

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Walter Cora lluzzo aponta que a lguns autores – como M. Cowlinge S. Letwin – consideram-no um precursor da teoria das elites –ao passo que outros, como é o caso de R. J. Halliday e de C. L.Ten (que polemiza com Cowling), reafirmam o acerto da imagemtradicional de Mill como um grande libera l de vocação democrá-tica .

Da dicotomia elitista x democrático derivam outras ima-gens a lternativas, segundo as quais Stuart Mill, ou é qualificado,de acordo com a leitura tradicional, como defensor do va lor datolerância , ou é visto como adepto do dogmatismo de uma razãoca lcada nas possibilidades de proposições universa is das ciênciasfísicas. Desta interação entre tolerância e dogmatismo surgem,também, na bibliografia sobre Mill, análises que, discutindo arelação entre o princípio da competência e o da participação, orasublinham que ele propõe uma gestão elitista do poder numregime representativo, ora rea lçam a importância que ele dá àeducação da cidadania12.

Neste último sentido, Macpherson registra que Stuart Millva i muito a lém da “democracia protetora” de Bentham e de seupai, James Mill, pois concebe, a través da participação, umademocracia do desenvolvimento voltada para a maximização dasmúltiplas capacidades humanas – ou seja , não apenas as produ-tivas, mas também as morais, estéticas e intelectuais13.

Conforme se verifica , Stuart Mill é um autor vivo nadiscussão intelectual. Vem instigando leituras opostas e contra-ditórias e tem sido encarado por a lguns como democrático,tolerante e libertário e, por outros, como elitista , dogmático econservador.

Num esforço importante de conciliar estas imagens con-trastantes, Gertrude Himmelfarb buscou mostrar que existemdois Stuart Mill. O jovem Stuart Mill dos anos 30, um conserva-dor-elitista que reaparece depois da morte de sua mulher HarrietTaylor em 1858, e o Stuart Mill do So b r e a l ib e r d a d e e dosescritos sobre a paridade dos sexos, profeta da liberdade eteórico, por excelência , do libera lismo democrático.

12. Walter Cora lluzzo. Immagini a lternative di John Stuart Mill teoricopolitico. Teoria po litica. I, 1, 1985, p. 157-173.

13. C. B. Macpherson. Democratic theory – es say s in retrieval. Oxford,Clarendon Press, 1973, p. 174.

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A radica lidade do Stuart Mill libertário, segundo GertrudeHimmelfarb, é explicável por força da influência de HarrietTaylor – socia lista e feminista . À sua memória dedicou ele Sobrea liberdade , a firmando ter sido ela mais do que a inspiradora domelhor dos seus escritos e registrando que a sua aprovaçãoconstituía para ele a melhor das recompensas. Himmelfarb,portanto, explica as percepções contraditórias a respeito de JohnStuart Mill, a firmando a a lternância na sua tra jetória intelectualde duas faces e, como ela é conservadora , sublinha que, noconjunto da obra milliana, a liberdade se vê a justada a outrosva lores, como os da tradição, da prudência e da moderação14.

A tese dos dois Mill foi submetida a inúmeras análisescríticas, todas elas rea lçando a unidade da sua obra15, quecomporta perfeitamente, no meu entender, uma leitura a partirda vertente que nele identifica o antecipador de uma fecundaconvergência do libera lismo e do socia lismo. Bobbio, por exem-plo, aponta que Mill representa a a la radica l do libera lismoeuropeu, que via na democracia o desenvolvimento conseqüentedos princípios libera is e não considerava o libera lismo incompa-tível com o socia lismo. Em poucas pa lavras, tinha a vocação e ota lento do reformador16, como não deixou de apontar Alberto daRocha Barros – que foi um homem de esquerda – no prefácio de1942 a Sobre a liberdade , ora reproduzido nesta edição da Vozes,ao a firmar que Stuart Mill merecia a gratidão “dos elementosprogressistas da humanidade”.

Neste sentido é interessante lembrar que, nos Princípio s daeconomia política , se Stuart Mill a tribui às condições da produçãoa característica de verdades fís icas, nas quais não há espaço paraa opção ou o arbítrio, o mesmo não ocorre, observa ele, no quetange à distribuição da riqueza na qual a vontade humana temo seu papel. Mill defende a liberdade econômica e a propriedadeenquanto o reconhecimento do direito de cada pessoa àquilo queproduziu, mas como afirma o princípio de igualdade dos pontos-de-partida e defende a difusão da riqueza , é crítico do direito àherança. Mill censura , com toda clareza , o consumismo e o

14. Gertrude Himmelfa rb, introd. à John Stuart Mill. Essay s on Po litics andCulture , cit. p. VI-XXIV; e On Liberty and Liberalismo – The case o f J ohn Stuart Mill.N. York, Knopf, 1974, passim.

15. Walter Cora lluzzo, in loc. cit. p. 167-168, J . C. Rees. John Stuart Mill’s“On Liberty ”. Oxford, Clarendon Press, 1985, p. 106-136.

16. Norberto Bobbio. Liberalismo e democracia. São Paulo, Brasiliense,1988, p. 62.

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egoísmo das classes poderosas e privilegiadas e advoga a impor-tância do progresso socia l que, para ele, no entanto, não deveriater como caminho a ampliação da esfera de ação governamenta lpor meio de comandos. Com efeito, embora reconheça – aceitan-do as teses socia listas tradicionais – a existência de inconvenien-te s na compe tiçã o que o merca do ens e ja , a firma que acompetição evita males a inda maiores17.

O binômio progresso socia l e mercado soa como a lgoestranho para a tradição marxista que, no seu misoneísmo,contrapõe o socia lismo ao libera lismo, a firmando que o EstadoLibera l, por ser um estado de classes, não pode ser aperfeiçoadoe deve ser destruído. Não é, no entanto, fora de propósito nocontexto histórico inglês, onde não só o movimento operário nãofoi de inspiração marxista , como também existe uma explícitalinha de continuidade entre os socia listas fabianos, inovadoresprogressistas como Bertrand Russell e o reformismo socia l dosutilitaristas, tendo Stuart Mill de permeio.

Na Itá lia , igualmente, o esforço de construir um socia lis-mo-libera l, que teve em Rosselli um primeiro formulador degrande envergadura , como observa Bobbio, surge no ambienteintelectual de um socia lismo não marxista , no qual Stuart Millteve papel relevante.

Com efeito, Stuart Mill não concebia o libera lismo e osocia lismo como sistemas opostos, à luz de uma visão do telosda História . Por força da tradição inglesa , encarava-os numaperspectiva empírica e crítica , vendo no socia lismo menos umadoutrina e mais uma prática política legítima para remover osobstáculos da pobreza sem tolher a liberdade e a competição,dois princípios fundamentais do libera lismo18.

17. Os textos dos Princípio s , nos qua is se apóia este parágra fo, estãoreproduz idos na antologia intitulada Social Reformers – Adam Smith to J ohnDewey , organizada por Dona ld O. Wagner. N. York, MacMillan, 1935, p. 387-411;cf., igua lmente, Claudio Cressanti, op. cit. cap. IV.

18. Norberto Bobbio. Socia lismo Libera le. Il Ponte , XLV, nº 5, set-out 1989,p. 158-167; Claudio Cressanti, op. cit. p. 58, Carlo Rosselli. Socialismo Liberal,introd. de Norberto Bobbio. São Paulo, CH. Cardim, 1988. No seu ensa io, Asa finidades de Norberto Bobbio. Novos Es tudo s CEBRAP nº 24 – julho de 1989, p.14-41, Perry Anderson faz , “inter a lia”, uma aná lise do esforço de combinarlibera lismo e socia lismo, que caracteriza autores como Bertrand Russell, JohnDewey, a lém de Rosselli e o próprio Bobbio, neles incluindo Stuart Mill e buscandoinserir cada proposta no seu contexto histórico. Perry Anderson contesta aviabilidade da tenta tiva de a ssocia r libera lismo e socia lismo que a ssina la o percur-

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Neste sentido, a rela tiva fraqueza da tradição inglesa , quejá mencionei, constitui hoje uma força . Indica um caminho e umaproposta de ação no mundo contemporâneo, pós-1989, no qualo “socia lismo rea l”, baseado no coletivismo, viu-se destroçado,mas no qual a agenda dos problemas colocados pelo socia lismo,nomeadamente nos países subdesenvolvidos, continua pendentede encaminhamento. Penso, assim, que a convergência progres-sista de libera lismo e socia lismo, que Stuart Mill emblematiza ,está na ordem do dia , porque ao representar um empenhoconcomitante na tutela dos va lores de liberdade e de igualdade,não se satisfaz apenas com a conquista de liberdade, mas exigea preocupação constante com as condições igualitárias de suaefetiva rea lização. É neste contexto da atualidade de Stuart Millque convém ler Sobre a liberdade , que passo a analisar na suaestrutura e desdobramento.

IV

As idéias, observa Lord Acton, citado por Gertrude Himmel-farb, por força de sua irradiação e desenvolvimento, têm passadoe futuro próprios em relação aos quais os homens têm antes opapel de padrinhos do que de pais19. No caso da idéia deLiberdade – “essa pa lavra/ que o sonho humano a limenta/ quenão há ninguém que explique,/ e ninguém que não entenda! ” –a colocação parece-me muito apropriada, pois trata-se de umaaspiração, objeto de uma multissecular e diversificada elabora-ção.

No percurso desta elaboração, deve-se a Benjamin Constanta paradigmática distinção entre a liberdade moderna e a liber-dade antiga . Caracterizar-se-ia esta , em função do modelo dademocracia ateniense, como a participação da cidadania nasdecisões coletivas. Definir-se-ia aquela como uma esfera de nãoimpedimento, em que os indivíduos são livres para fazer ou nãofazer tudo aquilo que lhes é facultado pelas leis .

so de Norberto Bobbio. Dele discordo e acho importante destacar, para o leitorbrasileiro, a pertinente e lúcida crítica de José Guilherme Merquior ao ensa io dePerry Anderson que, com o título de “Defensa de Bobbio”, sa iu na Revistamexicana Nexos II (130) out. 1988, p. 31-44. Merquior tem um importantecapítulo sobre Stuart Mill no seu a inda inédito livro A His tória do Liberalismo , mascom publicação nos EUA programada para abril de 1991.

19. Gertrude Himmelfa rb, Introd. a J . S. Mill. On Liberty . Harmonsworth,Middlesex, Penguin Books, 1978, p. 8.

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A liberdade moderna é uma conquista do libera lismo preo-cupado, enquanto corrente doutrinária , com a limitação do podere com o grau de interferência dos outros e do estado na vida daspessoas20.

Stuart Mill, no seu livro, trata basicamente da liberdademoderna, ou seja , como diz no primeiro parágrafo do capítulointrodutório, da natureza e dos limites do poder que a sociedadelegitimamente pode exercer sobre o indivíduo. O seu propósitoé a questão prática “do a justamento apropriado entre a inde-pendência individual e o controle socia l”. Esta questão ele con-sidera relevante discutir, apesar dos progressos trazidos nagestão coletiva pelo fim do poder pessoa l dos soberanos e oaparecimento da soberania popular. Com efeito, para Stuart Milla distribuição do poder ensejado por este processo de democra-tização não seria , por si só, suficiente para impedir a tirania socia lda maioria , que pode ser, também, a ltamente opressora . É paraevitar este tipo de opressão que ele va i argumentar sobre aimportância de um espaço que permita a liberdade de consciên-cia , de expressão, de gosto e de associação. Essas liberdades –cuja tutela jurídica caracterizam os assim chamados direitoshumanos de primeira geração – constituem o campo básico desua preocupação neste livro que é, como observa Noel Annan,“uma profissão de fé articulada nas tonalidades da razão”, comgrande vigor persuasivo e igual integridade intelectual e moral21.

O vigor persuasivo articulado nas tonalidades da razãocaracteriza , de maneira exemplar, o segundo capítulo de Sobrea liberdade , que é uma defesa da liberdade de pensamento e dediscussão. Esta defesa faz ecoar com grande integridade uma dasnotas básicas da doutrina libera l: a da a firmação da importânciado plura lismo intelectual que institucionalmente traduziu-se,através da demarcação entre Estado e não-Estado, na perda, peloEstado Libera l, do poder ideológico, a través do reconhecimento

20. Cf. Benjamin Constant. De la liberté des anciens comparée à celles desmodernes (1819) in Cours de Po litique Cons titutionnelle (éd. de Éduard Labou-laye) , 2ª ed. Paris, Guillaumin, 1872, vol. II, p. 548; Norberto Bobbio. Liberalismoe democracia, cit. cap. 1; Alessandro Passerin d’Entrèves, org. La Libertà Po litica,Milano, Ed. di Comunità , 1974; Isa iah Berlin. Four Es say s on Liberty , cit.; CelsoLafer. Ensaio s sobre a liberdade. São Paulo, Perspectiva , 1980, cap. 1.

21. Noel Annan, Mill in Maurice Cranstan org. Western Political Philo sop-hers . London, The Bodley Head, 1964, p. 109.

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jurídico-constitucional dos direitos individuais da liberdade reli-giosa , de pensamento e de opinião22.

Este reconhecimento, consagrado nas Declarações de Direi-tos que remontam à Revolução Americana e à Francesa , é, parafa lar com Kant, a condição de possibilidade a permitir a ilustra-ção e a maioridade dos homens que deixam de ser súditos epassam a ser cidadãos, quando podem fazer uso público daprópria razão. É interessante, neste sentido, apontar que aliberdade de pensamento e de discussão tem tanto a dimensãoda liberdade moderna – a de não ser molestado pelo Estado epelos Outros por conta das próprias opiniões – quanto a dimen-são da liberdade antiga – a de poder expressar, publicamente,idéias e pontos de vista que dizem respeito à vida individual ecoletiva23.

Stuart Mill, na linha da tradição do libera lismo inglês,assevera preliminarmente a relevância da liberdade de pensa-mento e de opinião para as a tividades da mente, pois a condutaracional – para ele fonte de tudo que é respeitável no homemcomo ser intelectual e moral – pressupõe a corrigibilidade doserros. Estes, para serem retificados, exigem a experiência e adiscussão com os outros dessa experiência , sobretudo em assun-tos como religião, política , relações socia is, ocupações de vida ,que não comportam verdades matemáticas e em relação aosquais o método do entendimento requer o ba lanço, a antecedero juízo que Stuart Mill sabe difícil, entre séries de razões opostas.

Stuart Mill vê, assim, na liberdade de pensamento e dediscussão, a condição para o contínuo estímulo da atividadeintelectual e do progresso humano, chamando a atenção para oquestionamento mesmo de verdades, que se tornam dogmasmortos e não verdades vivas quando não debatidos livremente.Pondera ele que as doutrinas conflitantes têm, cada uma, parteda verdade e que é no embate das idéias que a opinião fa lsa podeser corrigida e a opinião verdadeira pode ser a firmada. Daí osentido da dia lética do diá logo socrático, das disputas intelec-tuais da Idade Média e até do papel, reconhecido pela IgrejaCatólica , do advogado do diabo, nos processos de canonizaçãode santos.

22. Cf. Norberto Bobbio, O futuro da democracia, cit. p. 115.23. Kant. Resposta à pergunta : Que é escla recimento (“Aufklä rung”) in

Immanuel Kant. Texto s Seleto s , 2ª ed. Petrópolis, Vozes, 1985, p. 100-116.

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Politicamente isto se traduz, para Stuart Mill, no va lor porele atribuído ao choque sa lutar entre os partidários da ordem eda estabilidade e os do progresso e da reforma, pois o que deveser preservado e o que deve ser suprimido numa sociedade só semantém nos limites da razão pelo “áspero método de uma lutaentre combatentes a pelejarem sob bandeiras hostis”.

Mill está ciente da tendência ao sectarismo das opiniões ede que o partidarismo apaixonado das idéias nem sempre con-tribui para que o conflito de opiniões tenha um efeito sa lutarsobre a capacidade de julgar os vários lados de uma questão.Entende, no entanto, que a supressão de um ponto de vista ésempre um mal maior que a discussão apaixonada mesmo entrehomens de capacidade estreita . Por isso não estabelece limites àdiscussão mas conclui o capítulo com uma importante reflexãosobre a rea l mora lidade da discussão pública .

A rea l mora lidade da discussão pública – base, diga-se depassagem, para qualquer conhecimento emancipatório – exige,consoante Mill, a lisura da “ca lma para ver e honestidade parainformar o que os antagonistas e suas opiniões rea lmente são,nada exagerando em seu descrédito, e não dando as costas a nadaque deponha, ou se suponha depor, em favor deles”. Este padrãode “fa inerss” foi, a liás, o que caracterizou o percurso de StuartMill e sendo um dos ingredientes que transparece no seu texto,revela a virtude da integridade moral e intelectual apontada porNoel Annan.

A individualidade como um dos elementos do bem-estar éo tema do capítulo subseqüente. Nele Stuart Mill expande estaimportante tese de von Humboldt, em cujo ensa io sobre os limitesque devem circunscrever a ação do estado – um clássico dolibera lismo – colheu a epígrafe de Sobre a liberdade , sustentado-ra , precisamente, do desenvolvimento humano baseado na diver-sidade24.

Para Humboldt, assim como para Stuart Mill, a individua-lidade é um fim e não um meio, uma vez que ambos a firmam queaquilo que caracteriza a natureza humana não é a uniformidade

24. Cf. Guillermo de Humboldt. Escrito s po lítico s . Fondo de Cultura Econó-mica , 1943, p. 94-99; Giole Sola ri. La formazione s to rica e filo so fica dello s tatomoderno . Napoli, Guida , 1974, cap. V.

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mas sim a criatividade do diverso25. Por isso Mill enxerga nasdiferentes experiências de maneiras de viver um bem que aliberdade enseja , chamando a atenção, neste capítulo, para osriscos do conformismo socia lmente imposto por uma opiniãopública majoritária . Aponta ele que a iniciativa de coisas novase originais provém dos indivíduos que devem poder ter a liber-dade de mostrar os caminhos do “a lternativo”.

Preocupa-se, portanto, este capítulo, com os efeitos dauniformização analisados por Tocqueville, antecipando um dostemas críticos da vida nas sociedades contemporâneas de massae registrando – o que parece hoje uma profecia , dado o vigor daCEE, que a força da Europa reside na sua diversidade. Politica-mente, na obra de Mill, o tema da diversidade aparece tambémno livro sobre o Governo representativo , na defesa da repre-sentação proporcional que propicia no Legisla tivo a presença doponto de vista de opiniões minoritárias26.

Este capítulo é, como o anterior, um clássico do repertórioda doutrina libera l. Com efeito, esta tem, como uma de suas notasidentificadoras, como aponta Bobbio, colocar em evidência eva lorizar não aquilo que os homens têm em comum, enquantohomens, mas sim aquilo que têm de diverso e diferente enquantoindivíduos. Neste sentido, para Mill, a liberdade é a possibilidade,que deve estar permanentemente aberta para os indivíduos, denão se verem reduzidos a uma simples parte do todo socia l. Daí,inclusive, a sua defesa da excentricidade e do não conformismo.

A liberdade, enquanto um direito à diversidade, sustentadapor Mill, é compatível com o seu critério de igualdade – que é oda igualdade dos pontos de partida a lmejada pela doutrinalibera l, com fundamento no princípio da capacidade. Contrapõe-se, no entanto, ao igualitarismo, que é o critério que caracterizauma concepção comunista ortodoxa da sociedade. De fato, estaaspira ao nivelamento, pois tem como meta a igualdade dospontos de chegada, uma vez que privilegia a visão dos homenscomo espécie e não como indivíduos e assim vê no critério danecessidade – a firmado por Marx na Crítica ao programa de

25. Cf. Claudio Cressanti. La libertà e le sue garanzie , cit. p. 61 e seguintes;Richard Wollheim. Introduction a John Stuart Mill. Three Es say s (On Liberty,Representa tive Government, The Subjection of Woman). Oxford, Oxford Univer-sity Press, 1975, p. VIII, X, XIV.

26. John Stuart Mill. Representative Government, cap. VII; Richard Wol-lheim, Introduction, p. XX-XXI in Three Es say s , cit.

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Gotha – aquele que enseja a menor diferenciação entre aspessoas27.

O antipaternalismo é uma outra característica identificado-ra da doutrina libera l. Traduz-se na deslegitimação da função deinterveniência do Estado na vida das pessoas, com fundamentona ava liação de que todo indivíduo precisa ser protegido até dosseus próprios impulsos e inclinações. Stuart Mill, como apontaBobbio, da mesma maneira que Locke e Kant, é um antipaterna-lista28 e o seu pressuposto ético é o de que: “Sobre si mesmo,sobre o seu próprio corpo e espírito, o indivíduo é soberano”.

Esta vigorosa convicção antipaternalista permeia os doisúltimos capítulos de Sobre a liberdade e está na ra iz da distinçãomilliana entre a conduta que não afeta outros e a conduta queafeta , de maneira nociva , interesses a lheios. No primeiro caso,deve haver, diz Stuart Mill, perfeita liberdade lega l e socia l; nosegundo caso, a interferência da sociedade, para promover obem-estar gera l, torna-se aberta à discussão, pois a í a jurisdiçãodo todo a lcança o indivíduo.

A distinção proposta por Stuart Mill entre “self-regardingconducts” e “other regarding conducts” não é uma distinçãosimples ou óbvia , como ele mesmo reconhece. Com efeito, qualé o ponto a partir do qual uma conduta pode causar danos aterceiros? É evidente que não é fácil traçar esta fronteira dada ainterdependência existente na vida em sociedade. A distinção deStuart Mill, no entanto, como toda dicotomia, tem um valorheurístico, na medida em que a juda a perceber diferenças. Nocaso, as diferenças que a dicotomia milliana a juda a esclarecernão estão tanto nas condutas, mas nas razões que justificam ouinvalidam a intervenção da sociedade. Em outras pa lavras, aargumentação em favor da intervenção da sociedade na liberda-de dos indivíduos – como se lê nestes dois capítulos – não podeter como base a aversão ou a desaprovação de condutas por forçade posturas paternalistas, mora listas ou de reações fundamenta-listas, mas deve sempre fundamentar-se na prevenção de danosa terceiros29.

27. Norberto Bobbio. Egua lianza ed egua lita rismo, in N. Bobbio et a lii.Egualianza ed Egualitarismo . Roma, Armando Armando Edit., 1978, p. 13-25.

28. Norberto Bobbio. Liberalismo e democracia, cit. p. 66-67.

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Outra nota de reflexão do século XIX, comum, a liás, tantoao libera lismo quanto ao socia lismo e que contrasta com atradição anterior do pensamento filosófico-político, é a ênfase nadiferenciação conceitua l entre o político e o socia l. Dela derivaa visão que o Estado é uma parte da sociedade, e enquanto o seuaparato coercitivo, deve ser mínimo (libera lismo) ou desaparecer(comunismo) para assegurar a qualidade de vida dos indiví-duos30.

Estes dois capítulos fina is de So b r e a l ib e r d a d e estãopermeados por esta visão que Stuart Mill sustenta , apontando osriscos de concentração do poder nas mãos do governo, os malesda gestão burocrática que estiola a cria tividade e as ameaças quea ampliação do domínio do Estado gera para a liberdade. EntendeStuart Mill que a atividade governamenta l deve auxiliar e esti-mular o esforço e o desenvolvimento dos indivíduos e que: “o malcomeça quando, ao invés de excitar a a tividade e a energia dosindivíduos e grupos, o governo troca a sua atividade pela deles;quando ao invés de informar, aconselhar, e, na oportunidade,censurar, ele os faz trabalhar sob grilhões ou lhes determinafiquem de lado e faz o trabalho deles em seu lugar”, pois “o va lorde um Estado, a fina l de contas, é o va lor dos indivíduos que oconstituem” e estes, conclui Stuart Mill, se amesquinharão eterão a sua capacidade menta l restringida se forem instrumentosdóceis nas mãos do Estado. Não há dúvida que esta advertênciamilliana é oportuna em função dos dilemas existentes no rela-cionamento entre Estado e Sociedade, que assina lam o mundocontemporâneo.

Uma observação fina l a inda cabe, como arremate para aapresentação deste livro, no qual Stuart Mill teceu, com sabedo-ria , como procurei indicar, múltiplas vertentes da doutrina libe-ra l. A liberdade – como se lê no já citado poema de CecíliaMeireles – é uma palavra que o sonho humano a limenta . StuartMill mostra que, como não existe uma resposta única à questão

29. Claudio Cressanti. La libertà e le sue garanzie , cit. p. 52-60; John C.Rees. John Stuart Mill’s “On Liberty ”, cit. p. 137-155.

30. Cf. Norberto Bobbio. Estado , governo , so ciedade – Para uma teoria geralda po lítica. Rio de Janeiro, Paz e Terra , 1987, p. 60-62.

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de como se deve viver, o sonho de liberdade requer a possibili-dade de escolhas. É esta defesa do plura lismo e da diversidadeque confere, em última instância , a Sobre a liberdade a persistên-cia de um clássico.

Celso Lafer

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Pr e fá c io d a tr a d u ç ã o

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No momento em que os anglo-saxões proclamam ao mundo quea intenção de sustentar a Liberdade contra as formas despó-

ticas de domínio do próprio povo, e dos povos estrangeiros,praticadas pelos seus inimigos, é o que os conduz na guerra atual,é oportuno conhecer o que o pensamento britânico, por um dosseus mais nobres, mais puros, mais vigorosos, mais cultos repre-sentantes, tem por Liberdade. A América , por diversos modos,colocou-se, toda, ao lado dessa reivindicação de liberdade. Fa laà a lma, pois, de brasileiros, dos americanos do Atlântico Sul, essadefesa entusiástica , solidamente desenvolvida, da liberdade depensamento e discussão, que se oferece aqui aos leitores delíngua portuguesa .

John Stuart Mill, a pa lavra que o leitor va i ouvir, é ummagnífico expoente do espírito inglês. Recordemos grandes tra-ços deste.

O empirismo, cuja ação subterrânea se manifestara , para ofim da Idade Média , no primeiro Bacon – em Rogério, surgiu,poderoso, à flor do solo, com Francisco Bacon. Francisco Baconera a primeira tradução, em linguagem filosófica , do movimentoexperimenta lista que renovou a inteligência humana nestesúltimos séculos. A Inglaterra , de cuja grande época elisabetiana,de expansão materia l a condicionar a florescência de uma cultu-ra , repassada de espírito prático, foi ele uma das mais a ltas e maisfiéis expressões, reconheceu na dele a sua própria voz ampliada.E o pensamento inglês continuou a fluir, sob a inspiraçãovigorosa de Bacon, estreitamente ligado, na mor parte dos seusvultos, à pedra de toque da experiência e da ação, procurando,na filosofia , na ciência , na ética , na especulação socia l-política ,não se deixar prender por miragens do pensamento puro –metafísico-teológico.

Stuart Mill foi um dos núcleos de crista lização desse pen-samento. O grande método dos empiristas era a indução. Stuart

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Mill foi o lógico, por excelência , da indução, a respeito da qualo seu trabalho já teve quem o comparasse ao de Aristóteles nocampo do raciocínio dedutivo. Por outro lado, o espírito positivoe prático dos ingleses, nutridor do empirismo, e pelo empirismonutrido, procurou construir uma ética sem céu nem inferno, emque a poesia e a imaginação cedessem ao raciocínio e à rea lidade.E o movimento utilitarista também teve em Mill um condensador.

Certamente, Mill foi superado por novas correntes, nasquais representou um papel básico a idéia de evolução, nasformas em que a foca lizaram, de um lado, em biologia , odarwinismo, de outro, em filosofia , a dia lética hegeliana, tendo-lhe esta última infundido uma amplitude e uma formulaçãosuperiores. E essa influência repercutiu tanto na lógica como naética , como a inda, de outra parte, na sociologia e na psicologia .Mill, contudo, não perdeu direito a interessar profundamente opensamento contemporâneo, já porque, se, em conjunto, muitose inva lidou o seu sistema, as verdades esparsas, entretanto,continuam numerosas e profícuas, já porque esse utilitarista foium altíssimo espécime humano. Referindo a data da sua morte,dele disse um dos historiadores clássicos da filosofia modernaque nesse dia se extinguira “um dos espíritos mais amplos, maislea is e mais nobres do nosso século, um dos que podemos colocarao lado dos grandes espíritos do passado. A sua vida , ta l comono-la descreve, é uma fonte de ensinamentos para todos os queaspiram um idea l, e os seus escritos derramam uma luz novasobre a lguns dos objetos mais importantes do pensamento hu-mano”. E esse historiador põe o acento sobre “o equilíbrioexcepcional e a universa lidade espantosa que distinguem opensamento de Stuart Mill”. O conhecimento de um ta l espírito,a inda tão próximo de nós, é interessante por si mesmo.

Entretanto, a inda mais que sob os aspectos referidos, StuartMill nos interessa pelo pensamento político, de que este ensa ioé amostra . Se o empirismo inglês, ligando-se por a í a Descartes,reivindicou para os pensadores a liberdade de investigação pes-soa l contra a autoridade dos antigos e da escola , ele veio encon-tra r -s e , na a re na pol ítica , com a ná log os re s u lta dos dodesenvolvimento socia l da Inglaterra . A Inglaterra da “magnacarta”, do “livre-exame” protestante, dos influxos da revoluçãoindustria l, apresentava uma marcha progressiva no caminho dasfranquias públicas. Stuart Mill incorporou no seu pensamento astendências plenamente desenvolvidas, e as que então brotavam,

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da vida socia l inglesa . E, no cadinho do seu ta lento e da suanobreza , elas se viram purificadas de ilogismos e preconceitosafetivos. Esse Stuart Mill plenamente conseqüente é o Stuart Millda Sujeição das mulheres e do ensa io Sobre a liberdade. Esse StuartMill patenteia o vigor intenso que a aspiração de liberdade podeassumir naquela Inglaterra que mais impressiona a a lma dos nãobritânicos: a Inglaterra das a famadas “liberdades inglesas”.

A defesa que Mill faz da liberdade leva às mais amplasconclusões. Sem dúvida, a lgumas observações críticas se podemfazer ao texto que a í está adiante. As teses de Mill são antespreceitos de higiene para a vida socia l em perfeita saúde queterapêutica para crises patológicas. Mas entendamo-nos sobreisso.

Stuart Mill parece reconhecer – é a lição da história – que,em certos estágios da evolução socia l, a autoridade predomina,de certo modo necessário, sobre a liberdade. São, porém, estágiostransitórios em que uma das duas: ou a autoridade sente que avelha crista lização está a pique de se romper, e ela se reforça parao impedir; ou a autoridade serve de veículo à nova crista lizaçãoque surgiu, e se reforça contra o retrocesso. No primeiro caso,ela se volta para o passado, no segundo, ela auxilia o futuro. Ali,ela se situa antes de um grande avanço, a que obsta ; aqui, ela sesitua depois desse avanço, que solidifica . Esses avanços não sãoquotidianos: são pontos crucia is da história humana, por longotempo preparados, de a lcance secular. Os sofistas inimigos daliberdade os vêem por toda a parte. Mas eles são raros, e o instintode civilização, vamos dizer assim, sabe reconhecê-los.

Eles são raros e, sobretudo, os autoritarismos conseqüentessão transitórios. Transitórios, quando passadistas, porque o pro-gresso, em regra , acaba por fazer triunfantes seus direitos.Transitórios, quando a serviço do futuro, porque, como Cristo,eles não vêm, então, negar a velha lei – a lei da liberdade, masantes criar as condições da sua rea lização melhor, da sua rea li-zação mais perfeita . A organização cada vez mais racional dosnegócios humanos – esperamo-lo nesta a ltura da civilização – irásuprimindo, cada vez mais, os recursos coercitivos de progresso,permitindo aos períodos normais de ampla liberdade uma exten-são cada vez maior.

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Nas crises patológicas da história humana, a liberdade poderestringir-se, como se restringe a do doente, antes, ao tempo edepois à operação. Na saúde, porém, a liberdade – eis o que secolhe da sugestiva demonstração de Stuart Mill – é imprescindí-vel como condição primária da razoabilidade, da perfectividade,da humanidade da vida socia l.

Essa guerra atual, inevitável por fatores que, há muito, avinham engendrando, como engendraram a de 1914, foi preci-pitada por nações em que a autoridade sobrepujou a liberdadepara o reforçamento ou a revivescência do passado. E o pior: emque o sobrepujamento da liberdade foi teorizado como perma-nente e definitivo, e o autoritarismo apresentado como soluçãopara todo o sempre. A autoridade hipertrofiada transbordou dasfronteiras e fez a sua aparição, sob a forma de guerra agressiva ,em todos os países vizinhos das grandes potências autoritárias,acabando por inflamar todo o globo. A guerra , sem dúvida, nãoé um privilégio do autoritarismo, que, se lhe é uma causainstrumenta l, não lhe é, entretanto, a causa profunda. Mas ele afacilita , a apressa , e a torna mais impudica . E, assim, o problemada liberdade se acentuou com esta guerra . Vê-se, pois, quãooportuno é conhecer o pensamento inglês, o melhor pensamentoinglês, sobre a liberdade!

Com todos os seus defeitos, que são lembrados no ensa iode Stuart Mill, a s liberdades inglesas, possibilitadas por fatorespeculiares à época, protegeram, efetivamente, concretamente, aeclosão de a lgumas das doutrinas mais verdadeiras e mais com-batidas dos tempos modernos. A gratidão por isso dos elementosprogressistas da humanidade não decrescerá com os anos, aocontrário. Se não poderão esquecer, na passagem dos tempos, oamparo dessas liberdades aos progressos do pensamento socia lno século XIX, eles recordarão, dos dias que correm, o va lorsimbólico da hospita lidade concedida ao renovador e propulsorda ciência psicológica no século XX, ao proscrito de Hitler,Sigismundo Freud.

A Inglaterra está longe de ser a Civitas Dei. Mas, “cidadehumana”, não serão só a sua riqueza e a sua força , e todos osconseqüentes egoísticos da riqueza e da força , nem será só o seuImpério, construído como se constroem todos os impérios, que a

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lembrarão no futuro. Mas também a sua liberdade: a que estevesempre na base do seu pensamento filosófico e científico – do deBacon no século XVII, do de Darwin no século XIX – e a que,muitas vezes, inspirou a sua prática política , para com os nacio-nais e para com os estrangeiros, permitindo vida e ação adoutrinas e doutrinadores que os tempos vão erigindo em pedrasangulares da civilização que evolve. Essa Inglaterra da liberdade,que jamais existiu sozinha, mas sempre teve ante si, na constantepresença dos contrários, uma Inglaterra de privilégios, é queaparece neste livro. Stuart Mill e o seu ensa io a representamdignamente!

Janeiro de 1942

Alberto da Rocha Barros

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J o h n Stu a r t Mil l

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J OHN STUART MILL, que Hara ld Hoffding declara ter sido,“cerca de 1840 e 1850, o maior pensador filosófico do século”,

nasceu em Londres a 20 de maio de 1806, primeiro filho de JamesMill. Este era o psicólogo da escola de Bentham, historiador daÍndia , pensador político de grande influência entre os whigs ,economista discípulo de Ricardo e precursor de Marx. James Milltomou pessoa lmente o encargo da educação de John, submeten-do-o a um regime de trabalho intensíssimo e excepcionalmenteprecoce a que só uma criança de extraordinários dotes poderiaresistir.

Aos três anos, John aprendeu o a lfabeto grego e longaslistas de vocábulos dessa língua, e aos oito já lera , nela , as Fábulasde Esopo, a Anábas is de Xenofonte, Heródoto inteiro, e a indaLuciano, Diógenes Laércio, Isócrates e seis diá logos de Platão. Namesma idade de oito anos, já havia rea lizado também extensasleituras de história em inglês, e iniciou o la tim, Euclides, á lgebra ,e o ensino dos seus irmãos mais novos. Aos dez anos, Platão eDemóstenes se lhe tinham tornado muito fáceis. Aos doze, entroupela lógica escolástica , e leu, no original como de hábito, ostratados lógicos de Aristóteles. Aos treze, chegou o momento daeconomia política , e pôs-se a estudar com o pai Adam Smith eRicardo. Todos esses estudos, a liás, tinham a estreita e severacolaboração paterna, sendo as leituras sempre acompanhadas dediscussões dos temas com James, o qual pôs todo o seu cuidadoeducativo em evitar que o filho recebesse o ensino passivamente.Conseguiu, assim, prepará-lo para jamais aceitar uma opiniãopor autoridade.

Dos 14 aos 15 anos, na França, ao lado da língua, dageografia e dos costumes desta , Stuart Mill entregou-se à quími-ca , à botânica e a problemas de a lta matemática , seguindo-se-lhes, aos 15 anos, o Direito Romano, pois se pensava em fazê-loadvogado. Mas em 1823, com 17 anos, entrou, como amanuense,

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na Casa da Índia , onde deveria ficar a té 1858, subindo dosvencimentos anuais de 30 libras aos de 2.000 libras, e deamanuense ao mais a lto cargo. No ano anterior, quando contava16 anos, fez uma visita a Cambridge, cujos estudantes se impres-sionaram vivamente com o seu contacto pessoa l, apesar de teremo de Macaulay e Austin.

Por essa época, aprofundara estudos de Bentham, para le-lamente a leituras de psicólogos ingleses e de Condillac e Helve-tius, e fundara com amigos uma sociedade que, de um vocábulotirado dos Annals o f the Parish de Galt, denominou “utilitarista”.Escrevia em várias revistas controladas por amigos de Benthamou de seu pai. Na Westmins ter Review, órgão dos radica is, publi-cou os seus primeiros grandes artigos, propugnando pela liber-dade de imprensa e pela extensão do direito de voto.

Em 1826, uma crise íntima violenta se abateu sobre ele,condicionada certamente pelo regime educativo extenuante aque estivera submetido. Abandonou-o o gosto de viver, a vidaperdeu o sentido aos seus olhos. Dessa crise emergiu em grandeparte pela mão da poesia , terreno de que vivera a fastado, pois oregime educativo paterno desprezava a emoção. As poesias deShelley e, sobretudo, as de Wordsworth restituíram-lhe o ânimo.Pareceu-lhe, então, necessário não foca lizar a consciência sobreo problema da própria felicidade: “Só são felizes os que fixam oolhar sobre outra coisa que não a própria felicidade. Pergunta-tea ti mesmo se és feliz, e deixarás de sê-lo! ”

Nos desvios de rumo daí surgidos – os bethamistas otomaram por um apóstata – os historiadores franceses, Guizot,Michelet, Tocqueville, os escritos de Comte e da escola deSaint-Simon, os de Carlyle foram outros influxos determinantes.Na verdade, ele não abandonou o utilitarismo, mas orientou-separa um utilitarismo mais amplo, mais compreensivo, que osutilitaristas ortodoxos não reconheciam mais como a doutrina.

Até 1834, publicou grande número de artigos em revistas,muitos dos quais foram impressos nas Dis sertations and Discus-s ions , publicadas em 1859. De 1834 em diante, dedicou-se ao seuSy s tem of Logic, que veio a público em 1843. A influênciaprofunda dessa obra fundamenta l prolongou-se por todo o séculoXIX e a inda chega a nós.

Em 1844, apareceram os seus Essay s on some unsettledques tions in Political Economy . Mas a sua obra capita l de econo-mia foram os Principles o f Political Economy , publicados em 1848.

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Nesse livro, a questão socia l assume para Mill predominânciasobre a questão política . E, desde então, duas tendências ocupamo seu espírito – o individualismo e o socia lismo, e, nos esforçospor conciliá-las, acabou no recurso de aguardar o futuro.

Em 1851, Mill casa-se com Mrs. Taylor, pouco antes enviu-vada, a que o unia , desde 1831, uma profunda afeição, a té omomento platônica . A ela Mill a tribui uma vigorosa influênciana sua obra , excluída a parte de lógica e de teoria econômica. Osseus biógrafos estão de acordo em que ela foi uma mulher deta lento, mas Mill não se limita a isso e a proclama uma genia li-dade. Muito do influxo que Mill a tribui ao mérito intelectual dela ,deverá ter sua causa antes procurada dentro de Mill mesmo, naação estimulante que a feliz expansão amorosa exerceu sobre ele.

Foi com a colaboração de Mrs. Taylor, segundo atesta , queescreveu o artigo sobre a emancipação das mulheres, de que olivro Subjection o f Women, publicado em 1867, é um desenvolvi-mento. E também o ensa io On Liberty , que, publicado após amorte dela , é dedicado, de uma forma tocante, à sua memória .

A sua veneração por Mrs. Taylor contribuiu para o robus-tecimento do seu feminismo. Mill esteve ao lado de várias damaseminentes ao se fundar a primeira sociedade pelo voto feminino,que veio a se desenvolver na União Nacional das SociedadesPró-Voto Feminino. E foi o primeiro a apresentar ao Parlamentouma petição nesse sentido.

Em 1858, no ano em que morreu a esposa e em que escreveuo ensa io sobre a liberdade, foi dissolvida a Companhia das ÍndiasOrienta is e, conseqüentemente, fechada a Casa da Índia , de queele era , então, o dirigente. Tendo recusado um posto no novoconselho diretor dos negócios da Índia , foi aposentado com umapensão anual de 1.500 libras. De então a 1865, viveu principa l-mente em Avinhão. São dessa época as obras sobre o Repre-s entative Government em que advogou a representação dasminorias (1860), o Utilitarianism (1861), e a Examination o f SirWilliam Hamilton’s Philo sophy (1865). Na crise americana de1862, sustentou, ao lado de Huxley e outros, a causa do Nortecontra a simpatia gera l inglesa que era pelo Sul.

Em 1865, foi eleito para a Câmara dos Comuns por Wes-tminster. De Mill deputado escreveu Gladstone: “Por essa época,eu tinha o costume de chamá-lo em conversa o santo do racio-nalismo... Ele era inteiramente inacessível, inabordável a todosos estímulos e a todos os motivos que, de ordinário, influenciam

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os parlamentares por intermédio do seu egoísmo. A sua maneirade se exprimir e de agir fazia , a esse respeito, o efeito de umsermão. De outro lado, era bem um filósofo, mas de modonenhum um homem extravagante. Aliava , a meu ver, o sensovigoroso e o tato prático do homem de Estado com a a ltaindependência do pensador solitário. Para se eleger, não fezcabala pessoa lmente, não admitiu cabos eleitora is, e negou-se acomprometer-se com interesses loca is. Na renovação da legisla-tura , perdeu a cadeira , não por essa conduta que não lhe obstaraa primeira eleição, mas pelo seu ataque aos processos de umgovernador colonia l, e pelas suas opiniões religiosas que viuexploradas contra si. Aliás, a sua imensa tolerância era comu-mente respondida pelo ódio mais implacável e, ao morrer o“santo do racionalismo”, um órgão eclesiástico declarou: “A suamorte não é uma perda para ninguém, pois era um grandeincrédulo, apesar de toda a sua a fabilidade, e um personagemmuito perigoso. Quanto mais cedo as “luzes do pensamento”como ele forem para onde ele agora está , tanto melhor”.

Cessada a sua curta atividade parlamentar, retirou-se paraa sua casa de Avinhão, onde viria a morrer, e que estava semprelitera lmente entulhada de livros e jornais. Lia , escrevia , jardina-va , fazia investigações botânicas, colaborando freqüentementecom notas no Phy to logis t. Nesse período, o piano, que tocava combrilho, foi um dos recursos da sua ventura de espírito superior.Aí completou, de 1868 a 1873, a sua Autobiografia , e os Essay son Relig ion, publicados postumamente.

Ao saber que o fim se aproximava, observou serenamente:“minha obra está feita”.

Deixou de existir a 8 de maio de 1873.

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SOBRE A LIBERDADE

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De d ic a tó r ia

À querida e deplorada memória daquela que foi a inspiradora ,e em parte a autora , do melhor nos meus escritos – a amiga e

esposa em cujo elevado senso da verdade e do direito encontravao meu mais forte incitamento, e cuja aprovação era a minhaprincipa l recompensa – eu dedico este volume. Como tudo quetenho escrito durante muitos anos, ele pertence tanto a elaquanto a mim. Mas a obra , como está , não recebeu suficiente-mente a inestimável vantagem da sua revisão, reservadas queforam a lgumas das partes mais importantes para um novo examemais cuidadoso, que já agora nunca poderão sofrer. Fosse eu a lgocapaz de interpretar para o mundo a metade dos grandes pensa-mentos e dos nobres sentimentos que estão sepultados no seutúmulo, e eu seria o veículo de benefícios maiores do que os quepodem provir, em qualquer tempo, do que eu consiga escreversem a a juda e sem a assistência da sua quase incomparávelsabedoria .

O grandioso e capital princípio para o qual todos o s argumen-to s desenvolvidos nes tas páginas diretamente convergem é aimportância abso luta e es s encial do desenvolvimento humanona sua riquís s ima divers idade.

Wilhelm Von Humboldt

(Esfera e deveres do governo)

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CAPÍTULO I

In tr o d u ç ã o

O a ssunto deste ensa io não é a chamada liberdade do querer,tão infortunadamente oposta à doutrina mal denominada “da

necessidade filosófica”; e sim a liberdade civil ou socia l: anatureza e os limites do poder que a sociedade legitimamenteexerça sobre o indivíduo. Uma questão raramente exposta , equase nunca discutida , em tese, mas que influencia profunda-mente as controvérsias políticas da época, pela sua presençalatente, e na qual ta lvez se reconheça a questão vita l do futuro.Está tão longe de ser nova que, num certo sentido, tem divididoa humanidade desde quase as mais remotas idades. Mas noestágio de progresso em que as porções mais civilizadas daespécie entraram agora , ela se apresenta sob novas condições, erequer um tratamento diferente e mais profundo.

A luta entre a Liberdade e a Autoridade é a mais nítidacaracterística das partes da história com que mais cedo nosfamiliarizamos, particularmente da história da Grécia , de Romae da Inglaterra . Nos velhos tempos, porém, esse debate se travouentre os súditos, ou a lgumas classes de súditos, e o governo.Liberdade significava a proteção contra a tirania dos governantespolíticos. Os governantes eram concebidos (exceto em a lguns dosgovernos populares da Grécia) como numa posição necessaria-mente antagônica ao povo por eles governado. Consistiam ounuma única pessoa que governava, ou numa tribo ou castagovernante, os quais derivavam a sua autoridade da herança ouda conquista , jamais a exerceram de acordo com a vontade dosgovernados, e cuja supremacia os homens não se aventuravam –

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ta lvez nem o desejassem – contestar, fossem quais fossem asprecauções tomadas contra o seu exercício opressivo. O poderdeles era encarado como necessário, mas também como a ltamen-te perigoso – como uma arma que tentariam usar não menoscontra os seus súditos que contra os inimigos externos. Paraimpedir que os membros mais fracos da comunidade fossempilhados por inumeráveis abutres, fazia-se mister existisse umanimal de presa mais forte que os encarregados da guarda dosprimeiros. Como, porém, o rei dos abutres não seria menosinclinado a prear no rebanho que a lguma das harpias menores,era indispensável manter-se numa perpétua atitude de defesacontra o seu bico e as suas garras. A fina lidade, pois, dos patriotasconsistia em pôr limites ao poder que ao governante se tolerariaexercesse sobre a comunidade. E essa limitação era o que enten-diam por liberdade. Foi tentada de duas maneiras. Primeiro, pelaobtenção do reconhecimento de certas imunidades, conhecidaspor liberdades ou direitos políticos, cuja infração pelo governan-te se considerava quebra do dever, tendo-se por justificada,então, uma resistência específica ou uma rebelião gera l. Umsegundo expediente, gera lmente posterior, consistia no estabe-lecimento de freios constitucionais, pelos quais o consentimentoda comunidade, ou de a lgum corpo que se supunha representaros interesses da mesma, se tornava uma condição necessária paraa lguns dos mais importantes atos do poder dominante. Aoprimeiro desses modos de limitação, o poder dominante foi, namaioria dos países da Europa, mais ou menos compelido a sesubmeter. O mesmo não aconteceu com o segundo. E consegui-lo– ou, quando já atingido em certo grau, consegui-lo mais com-pletamente – converteu-se, por toda a parte, no objetivo dos queamavam a liberdade. Enquanto os homens se contentassem emcombater um inimigo por meio de outro, e em ser governadospor um senhor, com a condição de se verem garantidos mais oumenos eficazmente contra a sua opressão, não levariam asaspirações a lém desse ponto.

Um tempo chegou, contudo, no progresso dos negócioshumanos, em que os homens cessaram de julgar uma necessida-de da natureza que seus governantes fossem um poder inde-pendente, de interesses opostos a e les . Pareceu-lhes muitomelhor que os vários magistrados do Estado fossem mandatáriosou delegados seus, revocáveis ao seu a lvedrio. Só dessa forma,parecia , poderiam ter uma completa segurança de que os poderesgovernamentais não seriam objeto de abusos em sua desvanta-

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gem. Paulatinamente, essa nova aspiração de governantes eleti-vos e temporários se tornou a matéria proeminente dos esforçosdo partido popular, onde este existisse, e inva lidou, numa consi-derável extensão, os passos preliminares para limitar o poder dosgovernantes. Como prosseguisse a luta por fazer o poder dirigen-te emanar da escolha periódica dos governados, a lgumas pessoascomeçaram a pensar que se havia dado uma importância exces-siva à limitação do poder em si. Is so (podia parecer) constituíaum recurso contra governantes cujos interesses eram habitual-mente opostos aos do povo. O que se fazia , agora , necessário eraque os governantes se identificassem com o povo, era que ointeresse e a vontade deles fossem o interesse e a vontade danação. A nação não carecia de se proteger contra a própriavontade. Não havia receio da tirania dela sobre si mesma. Fossemos governantes efetivamente responsáveis perante ela , pronta-mente removíveis por ela , e a nação poderia aceder em confiar-lhes um poder de que ela própria ditaria o uso a ser feito. O poderera o próprio poder da nação, concentrado, e numa formaconveniente ao seu exercício. Esse modo de pensar, ou melhorta lvez – de sentir, tornou-se comum na última geração dolibera lismo europeu, na seção continenta l do qual a inda aparen-temente predomina. Aqueles que admitem a lgum limite ao queum governo legítimo faça ( já a governos ilegítimos não é extraor-dinário pleitear limites pois se quer mais que isso – que nãoexistam) constituem brilhantes exceções entre os pensadorespolíticos continenta is. Um tom análogo de sentimento poderia ,nessa época, dominar no nosso próprio país, se as circunstânciasque, por um tempo, o encora jaram, houvessem continuado ina l-teradas.

Mas, em matéria de teorias políticas e filosóficas, como emmatéria de pessoas, o sucesso revela defeitos e fraquezas que oinsucesso poderia ter ocultado à observação. O conceito de queo povo não precisa limitar seu poder sobre si mesmo podiaparecer axiomático quando o governo popular não passava deum sonho, ou de a lgo que se lia ter existido em a lgum períodoremoto do passado. Nem era ta l noção necessariamente pertur-bada por aberrações temporárias como as da Revolução France-sa , as piores das quais foram obra de a lguns usurpadores, e que,em todo caso, diziam respeito, não à ação permanente de insti-tuições populares, mas a uma erupção súbita e convulsiva contrao despotismo monárquico e aristocrático. A tempo, contudo, umarepública democrática chegou a ocupar uma grande porção da

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superfície do globo, e se fez sentir como um dos mais poderososmembros da comunidade das nações. E o governo eletivo eresponsável tornou-se sujeito às observações e críticas que acom-panham qualquer grande fato existente. Percebia-se agora quefrases ta is como s e lf-government e “o poder do povo sobre sipróprio” não exprimiam o verdadeiro estado de coisas. O “povo”que exerce o poder não é sempre o mesmo povo sobre quem opoder é exercido, e o fa lado s e lf-government não é o governo decada qual por si mesmo, mas o de cada qual por todo o resto.Ademais, a vontade do povo significa praticamente a vontade damais numerosa e ativa parte do povo – a maioria , ou aqueles quelogram êxito em se fazerem aceitar como a maioria . O povo,conseqüentemente, pode desejar oprimir uma parte de si mesmo,e precauções são tão necessárias contra isso quanto contraqualquer outro abuso de poder. A limitação, pois, do poder dogoverno sobre os indivíduos nada perde da sua importânciaquando os detentores do poder são regularmente responsáveisperante a comunidade – isto é, perante o partido mais forte noseio desta . Tal visão das coisas, que se recomenda tanto àinteligência dos pensadores como à inclinação daquelas impor-tantes classes da sociedade européia a cujos interesses, rea is ousupostos, a democracia tem sido desfavorável, não tem tidodificuldade em se estabelecer. E, nas especulações políticas, a“tirania do maior número” se inclui, hoje, gera lmente, entre osmales contra os quais a sociedade se deve resguardar.

Como outras tiranias, a tirania do maior número foi, aprincípio, e a inda é vulgarmente, encarada com terror, principa l-mente quando opera por intermédio dos atos das autoridadespúblicas. Mas pessoas refletidas perceberam que, no caso de sera própria sociedade o tirano – a sociedade coletivamente ante osindivíduos separados que a compõem – seus processos de tiranianão se restringem aos atos praticáveis pelas mãos de seusfuncionários políticos. A sociedade pode executar e executa ospróprios mandatos; e, se ela expede mandatos errôneos ao invésde certos, ou mandatos relativos a coisas nas quais não deveintrometer-se, pratica uma tirania socia l mais terrível que muitasformas de opressão política , desde que, embora não apoiadaordinariamente nas mesmas penalidades extremas que estasúltimas, deixa , entretanto, menos meios de fuga que elas, pene-trando muito mais profundamente nas particularidades da vida ,e escravizando a própria a lma. A proteção, portanto, contra atirania do magistrado não basta . Importa a inda o amparo contra

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a tirania da opinião e do sentimento dominantes: contra atendência da sociedade para impor, por outros meios a lém daspenalidades civis, a s próprias idéias e práticas como regras deconduta , àqueles que delas divergem, para refrear e, se possível,prevenir a formação de qualquer individualidade em desarmoniacom os seus rumos, e compelir todos os caracteres a se plasmaremsobre o modelo dela própria . Há um limite à legítima interferên-cia da opinião coletiva com a independência individual. E acharesse limite, e mantê-lo contra as usurpações, é indispensáveltanto a uma boa condição dos negócios humanos como à prote-ção contra o despotismo político.

Mas, apesar da improbabilidade de se contestar, em tese,essa proposição, a questão prática de onde colocar esse limite –como fazer o a justamento apropriado entre a independênciaindividual e o controle socia l, é matéria na qual quase nada estáfeito. Tudo o que faz a existência va liosa a a lguém está nadependência da força das restrições à atividade a lheia . Algumasregras de conduta , pois, devem ser impostas, pela lei em primeiraplana, e depois pela opinião quanto a muitas coisas inadequadasà regulamentação lega l. Quais devam ser essas regras é o prin-cipa l problema nos negócios humanos. Mas, se excetuamosalguns poucos casos de maior evidência , é um dos que menosprogresso apresentam no encaminhamento de sua solução. Nãohá duas épocas, e dificilmente haverá dois pa íses, que o tenhamresolvido de maneira igual – a solução de uma época ou paísespanta outra época ou país. E o povo de uma época dada ou deum dado país não suspeita da existência de nenhuma dificuldadeno assunto, como se se tratasse de matéria sobre a qual oshomens sempre tivessem estado de acordo. As regras em uso noseu meio parecem-lhe evidentes e justificáveis por si mesma. Essailusão quase universa l é um dos exemplos da influência mágicado costume, o qual não é somente, como diz o provérbio, umasegunda natureza , mas a inda é continuamente tomado pelaprimeira natureza . O efeito do costume, de evitar qualquerdúvida sobre as regras de conduta que os homens impõem àatividade a lheia , é o mais completo possível por constituir assun-to no qual, gera lmente, não se considera necessário apresentarrazões, quer aos outros, quer a si mesmo. O povo está acostumadoa crer – e foi encora jado nessa crença por a lguns aspirantes àqualidade de filósofos – que seus sentimentos em assuntos dessanatureza va lem mais que razões, e que é dispensável dar razões.O princípio prático que os conduz às opiniões sobre a regulamen-

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tação da conduta humana é o sentimento existente na a lma decada pessoa , de que todos seriam solicitados a agir como ela , ede que aqueles com quem ela simpatiza prefeririam, ao agirem,ta is opiniões. Ninguém, na verdade, reconhece no íntimo que oseu critério de julgamento é a sua preferência . Entretanto, umaopinião em matéria de conduta que não se a licerça em razões,só pode ser tida como uma preferência pessoa l. E se as razões,porventura dadas, constituem um mero apelo à preferênciaanáloga sentida por outras pessoas, trata-se a inda tão-somentede preferência de muitos ao invés de preferência de um só. Paraum homem comum, todavia , sua própria preferência , assimfundamentada, é não apenas uma razão cabalmente satisfa tória ,mas a inda a única que, em regra , ele admite para quaisquer desuas noções de moralidade, gosto e decoro, que não estejamexpressamente consignadas no seu credo religioso. E constitui,ademais, seu principa l guia na interpretação deste. Nessa con-formidade, as opiniões dos homens sobre o louvável e o reprová-vel são a fetadas por todas as múltiplas causas que influenciamos seus desejos relativos à conduta a lheia , causas tão numerosascomo as que determinam quaisquer outros desejos seus. Algumasvezes a sua razão – em outros tempos os seus preconceitos, ousuperstições, muitas vezes seus a fetos socia is, não poucas vezesos anti-socia is, a inveja ou o ciúme, a arrogância ou o orgulho,porém mais comumente os desejos ou temores egoístas, os seuslegítimos ou ilegítimos interesses próprios. Onde haja uma classedominante, uma grande parte da moralidade nacional emana dosseus interesses de classe e dos seus sentimentos de superioridadede classe. As relações de moralidade entre espartanos e ilotas,plantadores e negros, príncipes e súditos, nobres e vilões, homense mulheres, foram, na sua maior parte, criação desses sentimen-tos e interesses de classe. E os sentimentos assim gerados reagemsobre os sentimentos morais da classe dominante nas suasrelações internas. Quando, de outro lado, uma classe formalmen-te dominante perde a ascendência , ou quando essa ascendênciaé impopular, os sentimentos morais que preva lecem trazem umcunho de impaciente aversão à superioridade. Outro grandeprincípio determinante das regras de conduta , positiva ou nega-tiva , imposto pela lei ou pela opinião, é o servilismo dos homenspara com as supostas preferências ou aversões dos seus senhorestemporais ou dos seus deuses. Esse servilismo, a inda que essen-cia lmente egoísta , não é hipocrisia . Dá origem a sentimentosperfeitamente genuínos de ódio. Levou à fogueira mágicos eheréticos. Em meio a tantas influências menos importantes, os

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interesses gera is e óbvios da sociedade representaram um papel– e um grande papel – na direção dos sentimentos morais. Menos,todavia , sob um aspecto racional, e por sua própria conta , do quesob a forma de simpatias ou antipatias que deles brotam. Esimpatias ou antipatias, que pouco ou nada têm a ver com ta isinteresses, se fizeram sentir com igual força no estabelecimentode regras morais.

As preferências e aversões da sociedade, ou de a lgumapoderosa parte dela , constituem, assim, a principa l determinantedas normas estatuídas para observância gera l, sob as penalidadesda lei ou da opinião. E aqueles que se adiantaram, nos seuspensamentos e sentimentos, sobre a sociedade, em regra não seergueram contra essa condição das coisas em princípio, por maisque se tenham posto em conflito com ela em a lgumas das suasminúcias. Preocuparam-se mais em indagar que coisas a socie-dade devia estimar ou aborrecer do que em inquirir se aspreferências ou aversões dela deviam constituir lei para osindivíduos. Preferiram tentar a transformação dos sentimentoshumanos quanto às particularidades nas quais eles própriosagiam como heréticos a fazer causa comum, em defesa daliberdade, com os heréticos em gera l. O único caso em que o maisa lto ba luarte foi conquistado desde o princípio, e mantido comsolidez, não apenas por um ou outro indivíduo aqui e a li, foi oda crença religiosa . Caso instrutivo sob muitos aspectos, dosquais não é o menos importante o de oferecer um admirávelexemplo da fa libilidade do chamado senso moral. Pois o odiumtheologicum , num devoto sincero, é um dos mais inequívocoscasos de sentimento moral. Os que primeiro quebraram o jugoda que se dizia Igreja Universa l inclinavam-se, em regra , tãopouco a permitir divergências de opinião religiosa como aquelamesma Igreja . Quando, entretanto, o ardor do conflito arrefeceu,sem vitória decisiva para qualquer das partes, e cada igreja ouseita se achou reduzida a limitar suas esperanças à posse doterreno já por ela ocupado, as minorias, verificando que nãotinham probabilidade de passar a maiorias, se viram na necessi-dade de pleitear permissão para divergir, junto àqueles que nãotinham podido converter. Dessa maneira , foi quase tão-somentenesse campo de luta que os direitos do indivíduo contra asociedade se assentaram em largas bases de princípio, e que apretensão desta de exercer autoridade sobre os dissidentes se viuabertamente discutida . Os grandes escritores, a que o mundodeve o que possui de liberdade religiosa , a firmaram, as mais das

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vezes, a liberdade de consciência como um direito ina lienável, enegaram terminantemente que um ser humano devesse prestarcontas aos outros de sua crença religiosa . Todavia , é tão natura lna humanidade a intolerância no que quer que rea lmente apreocupe, que a liberdade religiosa tem sido, por toda a parte,dificilmente rea lizada na prática , exceto onde a indiferençareligiosa , que detesta ter sua paz perturbada por disputas teoló-gicas, lançou o seu peso no prato da ba lança. No espírito de quasetodas as pessoas religiosas, mesmo nos países mais tolerantes, odever da tolerância é admitido com tácitas reservas. Uma pessoapode suportar divergências em assuntos de governo da Igreja ,mas não de dogma; outra pode tolerar qualquer um, desde quenão se trate de papista ou unitário; uma terceira admitirá os quecreiam numa verdade revelada; a lguns poucos estendem suabenevolência a lém, mas param na crença em um Deus e numavida futura . Onde quer que o sentimento da maioria seja a indagenuíno e intenso, verifica-se que pouco renunciou da pretensãoa ser obedecido.

Na Inglaterra , por circunstâncias peculiares à nossa histó-ria política , enquanto o jugo da opinião ta lvez seja mais pesado,o da lei é mais leve do que em muitos outros países da Europa.E há considerável hostilidade à interferência direta do poderlegisla tivo ou executivo na conduta privada. Não tanto emvirtude de uma justa preocupação pela independência individual,quanto por força do hábito, a inda subsistente, de encarar ogoverno como representante de um interesse oposto ao público.A maioria a inda não aprendeu a sentir o poder governamenta lcomo o seu próprio poder, ou as opiniões governamentais comoas suas próprias opiniões. Quando assim se der, a liberdadeindividual se verá provavelmente tão exposta às incursões dogoverno como hoje a inda se vê às da opinião pública . Porenquanto, porém, há uma considerável soma de sentimentopronto a se mobilizar contra toda tentativa da lei de controlar osindivíduos naquilo em que até aqui não estavam acostumados aser controlados por ela . E isso quase sem distinguir se se trata deassunto pertinente à legítima esfera do controle da lei, ou não,de modo que o sentimento, a ltamente sa lutar em gera l, tem tantofundamento, nos casos próprios de sua aplicação, quanto émuitas vezes desviado destes. Não existe, de fato, um princípioaceito pelo qual a propriedade ou impropriedade da interferênciagovernamenta l seja habitua lmente julgada. O povo decide porpreferências pessoais. Alguns há que, vendo um bem a se fazer

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ou um mal a se corrigir, instigariam, espontaneamente, o gover-no a empreender a tarefa ; enquanto outros quase preferemarrostar qualquer soma de perigo socia l a acrescentar mais umaàs esferas de interesses socia is sujeitas ao controle governamen-ta l. E os homens se colocam, nos caos concretos, dum ou doutrolado, conforme essa direção gera l dos seus sentimentos, ousegundo o grau de interesse que sentem pela coisa particular quese propõe seja feita pelo governo, ou de acordo com a crença poreles nutrida de que o governo a fará , ou não, da forma por elespreferida . Mas muito raramente na conformidade de uma opi-nião solidamente aceita , rela tiva ao que constitui o objeto ade-qua do da a tivida de governamenta l. E pa rece-me que , nopresente, em virtude dessa fa lta de uma regra ou princípio, umlado erra tanto quanto o outro. A interferência do governo é, comfreqüência aproximadamente igual, impropriamente invocada eimpropriamente condenada.

O objeto deste Ensaio é defender como indicado paraorientar de forma absoluta as intervenções da sociedade noindividual, um princípio muito simples, quer para o caso do usoda força fís ica sob a forma de penalidades lega is, quer para o dacoerção moral da opinião pública . Consiste esse princípio em quea única fina lidade justificativa da interferência dos homens,individual e coletivamente, na liberdade de ação de outrem, é aautoproteção. O único propósito com o qual se legitima o exer-cício do poder sobre a lgum membro de uma comunidade civili-zada contra a sua vontade é impedir dano a outrem. O própriobem do indivíduo, seja materia l seja moral, não constitui justifi-cação suficiente. O indivíduo não pode legitimamente ser com-pelido a fazer ou deixar de fazer a lguma coisa , porque ta l sejamelhor para ele, porque ta l o faça mais feliz, porque na opiniãodos outros ta l seja sábio ou reto. Essas são boas razões para oadmoestar, para com ele discutir, para o persuadir, para oaconselhar, mas não para o coagir, ou para lhe infligir um malcaso a ja de outra forma. Para justificar a coação ou a penalidade,faz-se mister que a conduta de que se quer desviá-lo tenha emmira causar dano a outrem. A única parte da conduta por quealguém responde perante a sociedade é a que concerne aosoutros. Na parte que diz respeito unicamente a ele próprio, a suaindependência é, de direito, absoluta . Sobre si mesmo, sobre oseu próprio corpo e espírito, o indivíduo é soberano.

Talvez seja quase desnecessário dizer que essa doutrinapretende aplicar-se somente aos seres humanos de faculdades

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maduras. Não nos referimos a crianças ou a jovens abaixo daidade fixada pela lei para a emancipação masculina ou feminina.Aqueles cuja condição requer a inda a assistência a lheia devemser protegidos contra as suas próprias ações da mesma forma quecontra as injúrias a lheias. Pelo mesmo motivo, podemos deixarfora de consideração aqueles estados socia is a trasados nos quaiso próprio grupo pode ser tido como a inda na minoridade. Sãotão grandes as dificuldades que cedo surgem na via do progressoespontâneo, que raramente se tem a possibilidade de escolher osmeios para superá-las. E um governante animado do espírito deaperfeiçoamento é justificado de usar quaisquer expedientes paraatingir um fim ta lvez de outra maneira inatingível. O despotismoé um modo legítimo de governo quando se lida com bárbaros,uma vez que se vise o aperfeiçoamento destes, e os meios sejustifiquem pela sua eficiência atual na obtenção desse resultado.O princípio da liberdade não tem aplicação a qualquer estado decoisas anterior ao tempo em que a humanidade se tornou capazde se nutrir da discussão livre e igual. Até ta l momento só lhecabe a obediência cega a um Akbar ou um Carlos Magno, se tevea fortuna de o encontrar. Desde o instante, todavia , em que oshomens atingiram a capacidade de se orientarem para o próprioaperfeiçoamento pela convicção ou pela persuasão (instante jáhá bastante tempo a lcançado em todas as nações com queprecisamos preocupar-nos aqui), a coação, quer na forma direta ,quer na de castigos ou penalidades por rebeldia , passou a serinadmissível como método de consecução do próprio bem indi-vidual, sendo justificável apenas quando tem em mira a seguran-ça a lheia .

Convém firme eu que renuncio a qualquer vantagem advin-da para a minha argumentação da idéia de direito abstrato, comoalgo independente da utilidade. Eu encaro a utilidade como aúltima instância em todas as questões éticas, mas a utilidade noseu mais largo sentido, a utilidade baseada nos interesses per-manentes do homem como ser progressivo. Esses interesses,sustento, autorizam a sujeição da espontaneidade individual aocontrole exterior somente quanto àquelas ações de cada um queconcernem ao interesse a lheio. Se a lguém pratica um ato lesivoa outrem, é esse, prima facie , um caso para puni-lo, pela lei ou,onde penalidades lega is não sejam seguramente aplicáveis, pelareprovação gera l. Existem também muitos atos positivos embenefício a lheio que o indivíduo pode legitimamente ser compe-lido a praticar – ta is como depor num tribunal, suportar a sua

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parte razoável na defesa comum, ou em qualquer outro trabalhocoletivo necessário ao interesse da sociedade cuja proteção goza ;e executar certos atos de beneficência individual, ta is comosalvar a vida de um semelhante, ou intervir para proteger oindefeso contra o abuso – coisas essas que, sempre que o deverde um homem seja patentemente fazê-las, pode ele legitimamen-te ser responsabilizado perante a sociedade por não fazer. Umapessoa pode causar dano a outra , não apenas pelas suas ações,mas a inda pela sua inação, e em ambos os casos é justo respondapara com a outra pela injúria . O segundo caso, é verdade, requerum exercício muito mais cauteloso da coação que o primeiro.Responsabilizar a lguém por lesar outrem, é a regra ; responsabi-lizá-lo por não impedir a lesão é, comparativamente fa lando, aexceção. Há, contudo, muitos casos de clareza e gravidadesuficientes para justificar essa exceção. Em tudo que diz respeitoàs relações externas do indivíduo, este é, de jure , responsável paracom aqueles cujos interesses são inquietados, e, se necessário,perante a sociedade na qualidade de protetora destes. Existemfreqüentemente boas razões para não o chamar à responsabili-dade. Mas elas devem originar-se das conveniências específicasdo caso: ou porque o caso é daqueles em que o indivíduo deixadoà sua própria discrição age melhor do que controlado de a lgumamaneira pelo poder da sociedade; ou porque a tentativa deexercício do controle produziria danos maiores que os que sedeseja prevenir. Quando razões ta is impedem a responsabiliza-ção, a consciência do próprio autor deveria substituir-se aojulgamento ausente e amparar os interesses a lheios desprovidosde proteção externa, sentenciando o mais rigidamente possívelpor isso mesmo que o caso não tolera a responsabilidade ante ojulgamento dos semelhantes.

Há, porém, uma esfera de ação na qual a sociedade, en-quanto distinta do indivíduo, se a lgum interesse tem, tem-nounicamente indireto – e é a que compreende toda essa parte davida e da conduta de uma pessoa que afeta apenas a ela , ou, setambém aos outros, somente com o livre, voluntário e esclarecidoconsentimento desses outros. Quando digo – “apenas a ela”,quero dizer – diretamente e em primeira instância , pois o quequer que seja que afete uma pessoa, pode afetar os outros atravésdela . E a objeção que se pode fundar nessa contingência seráapreciada depois. Tal esfera é a esfera adequada da liberdadehumana. Ela abrange, primeiro, o domínio íntimo da consciên-cia , exigindo liberdade de consciência no mais compreensivo

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sentido, liberdade de pensar e de sentir, liberdade absoluta deopinião e de sentimento sobre quaisquer assuntos, práticos, ouespeculativos, científicos, morais ou teológicos. A liberdade deexprimir e publicar opiniões pode parecer que ca i sob umprincípio diferente, uma vez que pertence àquela parte da con-duta individual que concerne às outras pessoas. Mas, sendoquase de tanta importância como a própria liberdade de pensa-mento, e repousando, em grande parte sobre as mesmas razões,é praticamente inseparável dela . Em segundo lugar, o princípiorequer a liberdade de gostos e de ocupações; de dispor o planode nossa vida para seguirmos nosso próprio caráter; de agir comopreferirmos, sujeitos às conseqüências que possam resultar; semimpedimento da parte dos nossos semelhantes enquanto o quefazemos não os prejudica , a inda que considerem a nossa condutalouca, perversa ou errada. Em terceiro lugar, dessa liberdade decada indivíduo segue-se a liberdade, dentro dos mesmos limites,de associação entre os indivíduos, liberdade de se unirem paraqualquer propósito que não envolva dano, suposto que as pessoasassociadas sejam emancipadas, e não tenham sido constrangidasnem iludidas.

Nenhuma sociedade é livre, qualquer que seja a sua formade governo, se nela não se respeitam, em gera l, essas liberdades.E nenhuma sociedade é completamente livre se nela essas liber-dades não forem absolutas e sem reservas. A única liberdade quemerece o nome, é a de procurar o próprio bem pelo métodopróprio, enquanto não tentamos desapossar os outros do que éseu, ou impedir seus esforços para obtê-lo. Cada qual é o guardiãoconveniente da própria saúde, quer corpora l, quer menta l eespiritua l. Os homens têm mais a ganhar suportando que osoutros vivam como bem lhes parece do que os obrigando a vivercomo bem parece ao resto.

Embora essa doutrina não seja nova, e para a lgumas pes-soas tenha o ar de um axioma, não existe doutrina mais direta-mente oposta à tendência gera l da opinião e da prática correntes.A sociedade expendeu amplamente tanto esforço na tentativa(conforme aos seus pontos de vista) de compelir o povo a seadaptar às suas noções de excelência pessoa l quanto às deexcelência socia l. As repúblicas antigas julgaram-se autorizadasa praticar, e os antigos filósofos apoiaram, a regulamentação detodos os aspectos da conduta privada pela autoridade pública ,com o fundamento de que o Estado tem profundo interesse emtoda a disciplina corpórea e menta l de cada um dos seus cidadã-

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os. Esse modo de pensar se podia admitir em pequenas repúblicasrodeadas de inimigos poderosos, em perigo constante de severem subvertidas por um ataque externo ou uma comoçãointestina . Ademais, para elas, um curto interva lo de relaxamentode energia e de autocomando podia ser tão facilmente fata l quenão lhes era possível esperar pelos sa lutares efeitos permanentesda liberdade. No mundo moderno, o maior tamanho das comu-nidades políticas e, acima de tudo, a separação entre autoridadeespiritua l e a tempora l (que colocou a direção das consciênciasem mãos diferentes das que controlam os negócios mundanos),muito obstaram uma interferência da lei nas particularidades davida privada. Os mecanismos da repressão moral têm sido,porém, manejados contra a divergência da opinião dominantenas matérias pessoais com mais tenacidade que nas matériassocia is. Tanto mais que a religião, o mais poderoso dos elementosformadores do sentimento moral, tem sido, quase sempre, gover-nada ou pela ambição de uma hierarquia que procura controlartodos os aspectos da conduta humana, ou pelo espírito puritano.E a lguns dos reformadores modernos que se colocaram em maisforte oposição às religiões do passado não ficaram atrás dasigrejas ou seitas na a firmativa do direito de dominação espiritua l.Particularmente, Comte, cujo sistema socia l, como o desenvolveuno seu Sy s tème de po litique pos itive , visa estabelecer (a inda quepreferindo os meios morais aos lega is) um despotismo da socie-dade sobre o indivíduo que ultrapassa qualquer coisa sonhadano idea l político do mais rígido puritano entre os filósofosantigos.

Além dos dogmas peculiares e pensadores isolados, existea inda, no mundo, em gera l, uma inclinação crescente a estenderindevidamente os poderes socia is sobre o indivíduo, e pela forçada opinião e pela força da lei. E, como a tendência de todas astransformações que se estão operando no mundo é forta lecer asociedade e diminuir o poder do indivíduo, essa usurpação nãoé dos perigos que propendam espontaneamente a desaparecer, esim a crescer formidavelmente cada vez mais. A disposição doshomens, quer governantes, quer concidadãos, para impor as suaspróprias opiniões ou inclinações, como regras de conduta , aosoutros, é tão energicamente sustentada por a lguns dos melhorese também dos piores sentimentos encontradiços na naturezahumana, que quase nunca se contém a si mesma, a não ser porfa lta de poder. E, como este não está declinando, e sim ascen-dendo, a menos que uma forte barreira de convicções morais se

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levante contra o mal, o que devemos aguardar, nas presentescircunstâncias do mundo, é vê-lo crescer.

Convém à argumentação que, ao invés de entrarmos deuma vez, na tese gera l, nos confinemos, no primeiro momento,a um aspecto isolado, no qual o princípio por nós posto éreconhecido, se não inteiramente, pelo menos até certo ponto,pelas opiniões correntes. Esse aspecto é a liberdade de pensa-mento, da qual são inseparáveis as liberdades cognatas, de fa lare escrever. Embora essas liberdades, numa porção considerável,façam parte da moralidade política de todos os países queprofessam tolerância religiosa e instituições livres, os fundamen-tos, tanto o filosófico como o prático, sobre que elas repousam,ta lvez não sejam familiares ao espírito gera l, nem apreciados pormuita gente, mesmo líderes da opinião, na medida em que sepodia esperar. Tais fundamentos, quando entendidos com juste-za , são aplicáveis muito a lém de uma única divisão do assunto,e uma completa consideração dessa parte do problema constitui-rá a melhor introdução ao resto. Espero, pois, que aqueles paraquem nada do que vou dizer será novo me perdoem se meaventuro em mais uma discussão, num assunto tantas vezesdiscutido nos últimos três séculos.

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CAPÍTULO II

Da lib e r d a d e d e p e n s a m e n to ed is c u s s ã o

É de se esperar tenha chegado o tempo em que não se faznecessária defesa a lguma da “liberdade de imprensa” como

uma das garantias contra os governos tirânicos e corruptos.Podemos supor seja dispensável qualquer argumento contra apermissão de uma legisla tura ou um executivo, de interesses nãoidentificados com os do povo, prescrever opiniões a este edeterminar que doutrinas ou que argumentos lhe será concedidoouvir. Ademais, esse aspecto do problema foi objeto de tantas etão triunfantes demonstrações da parte dos escritores preceden-tes, que aqui não carece insistir-se nele. Embora a lei inglesasobre a imprensa seja tão servil hoje em dia como o era no tempodos Tudors, é pequeno o perigo de ser ela a tua lmente utilizadacontra a discussão política , sa lvo no momento de a lgum pânicotransitório, quando o medo da insurreição leva ministros e juízesà perda do decoro1. E, fa lando de maneira gera l, não é de se

1. Esta s pa lavra s apenas tinham sido escrita s quando, como para lhes darum enfá tico desmentido, surgiu o governo dos processos contra a imprensa de1858. Essa mal apreciada interferência na liberdade de discussão pública não meinduz iu, todavia , a modifica r uma única pa lavra no texto, nem, de forma a lguma,aba lou a minha convicção de que, excetuados momentos de pânico, a era doscastigos e pena lidades por discussões política s passou no nosso pa ís. Porque, em1º lugar, não se persistiu nos processos, e, em 2º, eles jamais foram, para fa la r compropriedade, processos políticos. A ofensa a rgüida não era a de a tacar a s institui-ções, ou os a tos ou a s pessoas dos governantes, mas a de pôr em circulação o quese julgava uma doutrina imora l, a de legitimidade do tiranicídio.

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temer, em países constitucionais, que o governo, quer seja ple-namente responsável ante o povo, quer não, tente controlar comfreqüência a expressão do pensamento, sa lvo se, assim fazendo,ele age como órgão da intolerância gera l do público. Suponha-mos, pois, que o governo esteja em inteira harmonia com o povoe nunca pense em exercer qualquer poder coercitivo senão deacordo com o que lhe parece a voz deste. Eu nego, porém, odireito do povo de exercer essa coerção, por si mesmo ou peloseu governo. Tal poder é ilegítimo em si. O melhor governo nãotem a ele título superior ao do pior. É tão nocivo, ou a inda maisnocivo, quando exercido de acordo com a opinião pública , do queem oposição a ela . Se todos os homens menos um fossem de certaopinião, e um único da opinião contrária , a humanidade não teriamais direito a impor silêncio a esse um do que ele a fazer ca lara humanidade, se tivesse esse poder. Fosse uma opinião um bempessoal sem va lor exceto para o dono; se ser impedido no gozodesse bem constituísse simplesmente uma injúria privada, fariadiferença que o dano fosse infligido a poucos ou a muitos. Maso mal específico de impedir a expressão de uma opinião está emque se rouba o gênero humano; a posteridade tanto quanto asgerações presentes; aqueles que dissentem da opinião a inda maisque os que a sustentam. Se a opinião é certa , aquele foi privadoda oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errônea, perdeuo que constitui um bem de quase tanto va lor – a percepção maisclara e a impressão mais viva da verdade, produzidas pela suacolisão com o erro.

É necessário considerar separadamente essas duas hipóte-ses, a cada uma das quais corresponde um ramo distinto da

Se os a rgumentos deste capítulo va lem a lguma coisa , deve existir a maisampla liberdade de professa r e discutir, como matéria de convicção ética , qua lquerdoutrina , a inda que considerada imora l. Seria , pois, irrelevante e deslocadoexaminar aqui se a doutrina do tiranicídio merece esse qua lifica tivo. Eu mecontentarei com dizer que o a ssunto foi, em todos os tempos, uma das mais aberta squestões de mora l; que o a to de um cidadão particula r abater um criminoso que,pondo-se acima da lei, se colocou fora do a lcance da punição ou do controle lega l,tem sido julgado por nações inteira s, e por a lguns dos melhores e mais sábioshomens, não um crime, mas um ato de elevada virtude; e que, certo ou errado, elenão é da natureza do a ssa ssínio, mas da da guerra civil. Assim sendo, sustento quea instigação ao tiranicídio pode, num caso específico, ser objeto de pena , mas sóse um ato franco a seguir, e se se possa estabelecer uma conexão, ao menosprovável, entre o a to e a instigação. Ainda a í, não será um governo estrangeiro,mas o próprio governo visado, o único que pode, no exercício da sua autodefesa ,punir legitimamente os a taques dirigidos contra a sua existência .

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argumentação. Nunca podemos estar seguros de que a opiniãoque procuramos sufocar seja fa lsa ; e, se estivéssemos seguros,sufocá-la seria a inda um mal.

Primeiramente, a opinião que se tenta suprimir por meioda autoridade ta lvez seja verdadeira . Os que desejam suprimi-lanegam, sem dúvida, a sua verdade, mas eles não são infa líveis.Não têm autoridade para decidir a questão por toda a humani-dade, nem para excluir os outros das instâncias do julgamento.Negar ouvido a uma opinião porque se esteja certo de que é fa lsa ,é presumir que a própria certeza seja o mesmo que certezaabso luta. Impor silêncio a uma discussão é sempre arrogar-seinfa libilidade. Pode-se deixar que a condenação dessa atituderepouse sobre esse argumento vulgar, não o pior por ser vulgar.

Infelizmente para o bom senso do gênero humano, o fatoda sua fa libilidade está longe de ter no juízo prático dos homenso peso que sempre se lhe concede em teoria . Pois que, emboracada um sa iba bem, no seu íntimo, que é fa lível, poucos achamnecessário tomar quaisquer precauções contra a própria fa libili-dade, ou admitir que a lguma opinião de que estejam certos possaser um exemplar do erro a que se reconhecem expostos. Ospríncipes absolutos, ou outras pessoas acostumadas a uma defe-rência sem limites, sentem, em regra , essa completa confiançaem suas opiniões, em quase todos os assuntos. Pessoas melhorcolocadas para verem a matéria , pessoas que a lgumas vezes têmas suas opiniões discutidas, mas que não estão inteiramentedesabituadas a se verem atribuir razão quando se acham no erro,confiam da mesma forma ilimitada naquelas de suas opiniõesque são partilhadas por todos ao seu redor, ou por todos a quehabitualmente prestam deferência . Isso porque um homem des-cansa , em regra , com tácita confiança, na proporção da fa ltadesta no próprio juízo isolado, na infa libilidade do “mundo” emgera l. E o mundo, para cada indivíduo, significa aquela parte domundo com a qual tem mantido contacto – o seu partido, a suaigreja , a sua seita , a sua classe socia l. Quase se pode chamar,analogicamente, de libera l ou de espírito largo àquele para quemo mundo significa a lgo tão compreensivo como o seu país ou asua época. E a sua fé na autoridade coletiva não se abala , emabsoluto, por vir a saber que outras épocas, pa íses, seitas, classese partidos pensaram, e a inda hoje pensam, precisamente, ocontrário. Ele lança sobre o seu mundo a responsabilidade pelajusteza de suas opiniões ante os outros mundos divergentes. Ejamais o perturba que um mero acidente tenha decidido qual

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desses numerosos mundos seja o objeto da sua confiança. Comonão o perturba que as mesmas causas que o fizeram anglicanoem Londres, o poderiam ter feito budista ou confucionista emPequim. Contudo, isso é tão evidente por si mesmo quanto é certoque as épocas não são mais infa líveis que os indivíduos – cadaépoca tendo adotado muitas opiniões que as épocas seguintesconsideraram não só fa lsas como a inda absurdas; e que muitasopiniões, agora gera is, serão rejeitadas no futuro, como muitas,outrora gera is, o foram no presente.

A esse argumento ta lvez se objetasse o que se segue.Quando se proíbe a propagação de um erro, não se arroga maiorinfa libilidade do que em qualquer outro ato da autoridadepública praticado sob o seu exclusivo critério e responsabilidade.O discernimento é dado aos homens para que o usem. Porquepossa ser usado erroneamente, deve-se dizer-lhes que não o usemem absoluto? Quando, pois, eles proíbem o que considerampernicioso, não pretendem que sejam isentos de erro, mas apenascumprem o dever, que lhes incumbe, de agir segundo suacriteriosa convicção. Se nunca agíssemos segundo nossas convic-ções porque podem ser erradas, deixaríamos os nossos interessesdescurados e não executaríamos nenhuma das nossas obrigaçõ-es. Uma objeção aplicável à conduta em gera l pode não ser vá lidaem a lgum caso específico. Os governos e os indivíduos devemformar as opiniões mais verdadeiras possíveis, formá-las cuida-dosamente, e jamais as impor a outrem sem que estejam inteira-mente seguros da sua justeza . Mas, quando se tem essa segurança(dirão os que nos contradizem), não é consciencioso, e simcovarde, recuar da ação conforme às próprias convicções, bemcomo tolerar a divulgação irrestrita de doutrinas que honesta-mente se julgam perigosas à felicidade humana nesta ou noutravida, baseando-se em que se perseguiram, em épocas menossábias, pessoas que professavam opiniões hoje tidas por verda-deiras. Tomemos cuidado, dir-se-á , em não cometer o mesmoerro; mas governos e nações têm cometido erros em outras coisasque não se nega serem objetos adequados do exercício daautoridade: têm lançado maus impostos e feito guerras injustas.Devemos, por isso, não lançar impostos nem ante qualquerprovocação fazer guerras? Homens e governos devem agir segun-do o melhor da sua capacidade. Não existe certeza absoluta , masexiste segurança suficiente para os propósitos da vida humana.Podemos e devemos presumir a verdade da nossa opinião, paraorientarmos a nossa conduta . Cabe a mesma presunção quando

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proibimos os maus de perverter a sociedade pela propagação deopiniões que encaramos como fa lsas e perniciosas.

A isso respondo que não se trata da mesma presunção, masde outra muito mais ampla . Existe a maior diferença entrepresumir a verdade de uma opinião que não foi refutada, apesarde existirem todas as oportunidades para a contestar, e presumira sua verdade com o propósito de não permitir a sua refutação.A completa liberdade de contestar e refutar a nossa opinião é oque verdadeiramente nos justifica de presumir a sua verdadepara os propósitos práticos, e só nesses termos pode o homem,com as faculdades que tem, possuir uma segurança racional deestar certo.

Quando consideramos quer a história da opinião, quer aconduta ordinária da vida humana, ao que se deve atribuir nãoserem uma e outra piores do que são? Não será , sem dúvida, àforça inerente ao entendimento humano. Pois que, em qualquermatéria não evidente por si, noventa e nove pessoas em cem serevelam tota lmente incapazes de julgá-la . E mesmo a capacidadeda centésima pessoa é apenas comparativa . A maioria dos ho-mens eminentes de cada geração passada esposaram muitasopiniões hoje reconhecidas errôneas, e fizeram e aprovaraminúmeras coisas que hoje ninguém justificará . Como então pre-ponderam entre os homens, em gera l, opiniões racionais e umaconduta racional? Se rea lmente existe essa preponderância – edeve existir a menos que os negócios humanos estejam, e sempretenham estado, numa condição desesperada – isso é devido auma qualidade do espírito humano, fonte de tudo que é respei-tável no homem, como ser intelectual e como ser moral – a saber,a corrigibilidade dos seus erros. Ele é capaz de retificar os seusenganos pela discussão e pela experiência . Não pela experiênciaapenas. Deve haver discussão, para mostrar como se há deinterpretar a experiência . As opiniões e práticas erradas sesubmetem gradualmente ao fato e ao argumento, mas fatos eargumentos, para produzirem a lgum efeito no espírito, devemser trazidos diante dele. Muito poucos fatos são eloqüentes porsi dispensando comentários que lhes revelem o significado.Nessas condições, dependendo toda a força e todo o va lor doentendimento humano dessa propriedade de poder ele, se se achano erro, a tingir o certo, só se lhe pode dispensar confiançaquando os meios de consecução da certeza são mantidos em mãocom constância . Como consegue a lguém que o seu juízo mereçarea lmente confiança? Conservando o espírito aberto às críticas

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de suas opiniões e da sua conduta , a tendendo a tudo quanto setenha dito em contrário, aproveitando essa crítica na medida dasua justeza , e reconhecendo ante si mesmo, e ocasionalmenteante outros, a fa lácia do que era fa lacioso. E sentindo que o únicomeio de um ser humano aproximar-se do conhecimento comple-to de um assunto é ouvir o que sobre ele digam representantesde cada variedade de opinião, e considerar todas as formas porque cada classe de espíritos o possa encarar. Jamais qualquerhomem sábio adquiriu a sua sabedoria por outro método que nãoesse, nem está na natureza do intelecto humano chegar à sabe-doria de outra maneira . O hábito firme de corrigir e completar aprópria opinião pelo confronto com a dos outros, muito aocontrário de causar dúvida e hesitação no levá-la à prática ,constitui o único fundamento estável de uma justa confiançanela . Porque, conhecendo tudo que se possa dizer, ao menosobviamente, do ponto de vista oposto, e tendo tomado posiçãocontra todos os adversários com a consciência de ter procuradoobjeções e dificuldades, ao invés de as evitar, e de não terinterceptado nenhuma luz que de qualquer quadrante pudesseser lançada sobre o assunto, um homem se acha no direito deconsiderar o seu juízo melhor que o de qualquer pessoa oumultidão que não tenha procedido da mesma forma.

Não é demais pleitear que essa coleção promíscua de a lgunsindivíduos sábios e muitos tolos, chamada o público, se devasubmeter àquilo que os mais sábios dentre os homens, os maisautorizados a confiar no próprio entendimento, acham necessá-rio para garantir essa confiança. A mais intolerante das igrejas,a Igreja Católica Romana, a inda na canonização de um santo,permite, e ouve pacientemente, um “advogado do diabo”. Parece,assim, que os homens mais santos não podem ser admitidos ahonras póstumas sem que se conheça e pese tudo quanto o diabopossa dizer contra eles. Se não se tivesse franqueado o debatemesmo sobre a filosofia newtoniana, a humanidade não poderiater a completa certeza da sua verdade que hoje tem. As crençasem que mais confiamos não repousam numa espécie de sa lva-guarda, e sim num convite constante a todo o mundo paraprovar-lhes a improcedência . Se não é aceito o desafio, ou se émas a crença admitida triunfa , a inda assim nos achamos bemlonge da certeza . Fizemos, contudo, o melhor que o estado atualda razão humana permite. Não negligenciamos nada que pudes-se dar à verdade a possibilidade de nos atingir. Se a liça semantém aberta , podemos esperar que, se houver uma melhor

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verdade, a encontraremos quando a mente humana for capaz dea receber. E, entrementes, podemos fiar-nos em que a lcançamosa aproximação da verdade possível em nossos dias. Essa é a somade certeza que um ser fa lível pode conseguir, e essa é a única viapara chegar a ela .

É estranho que os homens admitissem a va lidade dosargumentos a favor da livre discussão, mas objetassem que elessão “levados ao extremo” não vendo que, se as razões não sãoboas num caso extremo, não são boas em caso nenhum. Estra-nho, a inda, imaginassem que não se arrogam infa libilidadequando reconhecem que deve haver livre discussão sobre todosos assuntos que s e pres tem a dúvidas , mas não sobre a lgumprincípio ou doutrina especia l que seja suficientemente certa , istoé, a respeito da qual eles es tejam certo s de que é certa . Chamarde certa a lguma proposição enquanto haja a lguém que, se fossepermitido, a negaria , mas a quem ta l não se permite, é presumirque nós, e os que conosco concordam, somos juízes da certeza ,e juízes que dispensam a audiência da outra parte.

Na época presente – que tem sido qualificada de “destituídade fé, mas aterrorizada ante o ceticismo” – na qual o povo sesente seguro, não tanto de que suas opiniões são verdadeiras,quanto de que sem elas não saberia o que fazer, reclama-se oamparo de uma opinião contra o ataque público menos por suaverdade, do que pela sua importância socia l. Alega-se que certascrenças são tão úteis, para não dizer indispensáveis, ao bem-es-tar, que os governos devem sustentá-las da mesma forma queprotegem outros interesses socia is. Afirma-se que é ta l essanecessidade, que isso se acha tão diretamente na linha do seudever, que não se faz mister a infa libilidade para justificar osgovernos de agirem, e mesmo obrigá-los a fazerem-no, segundoa sua opinião, confirmada pela opinião gera l, e que eles têmmesmo a obrigação de assim proceder. Argúi-se, também, comfreqüência , e mais a inda se pensa , que ninguém, sa lvo homensmalignos, desejaria enfraquecer crenças sa lutares. E julga-se quenão pode haver mal nas restrições a homens nocivos, e naproibição do que somente estes quereriam praticar. Esses argu-mentos tornam a justificação das restrições em debate, não umaquestão da verdade das doutrinas, mas da sua utilidade, e têm apretensão de esquivar a responsabilidade de supor um juizinfa lível de opiniões. Aqueles, porém, que se satisfazem com isso,não percebem que a presunção de infa libilidade apenas sedeslocou de um ponto para outro. A utilidade de uma opinião é

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ela própria matéria de opinião: tão disputável, tão aberta adebate, exigindo tanto debate, como a própria opinião. Fa lta umjuiz infa lível de opiniões para decidir se a opinião é nociva damesma forma que para decidir se é fa lsa , a menos que a opiniãocondenada tenha ampla oportunidade de se defender. E não ébastante dizer que se concederá aos heréticos defender a utilida-de ou a inocência da sua opinião, embora se vejam proibidos dedefender-lhe a verdade. A verdade de uma opinião faz parte dasua utilidade. Se quiséssemos saber se crença numa assertiva é,ou não, desejável, seria possível excluir a consideração de ser ela ,ou não, verdadeira? Na opinião, não dos maus, mas dos melho-res, não ter crenças contrárias à verdade pode ser rea lmente útil;e podeis impedir a ta is homens essa defesa quando se vêeminculpados de negar a lguma doutrina, de cuja utilidade se lhesfa la , mas que crêem fa lsa? Os que estão do lado das doutrinasaceitas jamais deixam de tirar toda a vantagem possível dessadefesa . Não os encontrareis manejando o argumento da utilidadecomo se esta pudesse ser completamente abstra ída da verdade.Ao contrário, é sobretudo porque a sua doutrina é a “verdade”,que reputam tão indispensável o conhecimento dela ou a crençanela . Não pode haver discussão lea l da questão da utilidade, seapenas se permite o emprego de tão vita l argumento a uma daspartes. E, de fato, quando a lei ou o sentimento público interdi-zem a disputa sobre a verdade de uma opinião, mostram preci-samente a mesma intolerância para com a negativa da suautilidade. O mais que elas concedem é que a opinião não seja detão absoluta necessidade, sendo sempre necessária , ou que seatenue a positiva culpa que há em rejeitá-la .

A fim de ilustrar mais amplamente o mal que existe em nãodarmos ouvido a opiniões por as ter a nossa apreciação conde-nado, convirá limitar o debate a um caso concreto. E eu escolho,de preferência , os casos menos favoráveis a mim, nos quais oargumento contra a liberdade de opinião é havido pelo maisforte, fundado que é, ao mesmo tempo, na verdade e na utilidade.Suponhamos que se impugna a crença em Deus ou numa condi-ção futura , ou a lgumas das doutrinas de moralidade gera lmenteaceitas. Travar a bata lha em ta l terreno dá grande vantagem aoadversário deslea l, visto que ele poderá seguramente dizer (emuitos que não querem ser deslea is pensá-lo-ão) – são essas asdoutrinas que não considera is suficientemente certas para que alei as tome sob a sua proteção? É a crença em Deus uma dasopiniões de que estar convicto reputa is arrogar-se infa libilidade?

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Deve-se permitir-me observar que não é sentir-se seguro de umadoutrina (seja isso o que for) o que chamo arrogar-se infa libili-dade. É a ousadia de decidir a questão pelos outro s , sem lhesconceder ouçam o que possa ser dito em contrário. E eu denuncioe reprovo essa pretensão, mesmo em favor das minhas maissolenes convicções. Ainda que a persuasão absoluta de a lguémseja não só da fa lsidade, mas também da nocividade, e não só danocividade, mas também (admitindo expressões que condenointeiramente) da imoralidade e da impiedade de uma opinião;se em virtude dessa vista pessoa l, mesmo que apoiada na apre-ciação pública do seu país ou da sua época, esse a lguém impedea opinião de fazer ouvir a sua defesa , ele se arroga infa libilidade.E, muito longe de ser essa assunção de infa libilidade menosimpugnável ou menos perigosa porque se chame a opinião deimoral ou ímpia , precisamente a í é que é ela fa ta l. São essas,exatamente, as ocasiões em que uma geração comete aquelesterríveis erros que provocam o espanto e o horror da posteridade.Entre eles deparamos os memoráveis exemplos históricos em queo braço da lei foi empregado para extirpar os melhores homense as mais nobres doutrinas – com deplorável sucesso pelo quediz respeito aos homens, embora, quanto às doutrinas, a lgumasdelas tenham sobrevivido para ser invocadas (como um escárnio)em defesa de uma conduta análoga para com os antagonistasdelas ou da sua interpretação aceita .

Não será demais recordar à humanidade que houve, umavez, um homem chamado Sócrates entre quem e as autoridadeslega is, e mais a opinião pública do seu tempo, se verificou umacolisão memorável. Nascido numa época e num país ricos emindivíduos superiores, esse homem nos tem sido apresentadopelos que melhor o conheceram, e à sua época, como o homemmais virtuoso desta . E nós o sabemos o chefe e o protótipo detodos os subseqüentes professores de virtude e a fonte igualmen-te da sublime inspiração de Platão e do judicioso utilitarismo deAristóteles, “i maës tri di co lor che sanno”, as duas nascentes daética e de toda a restante filosofia . Esse mestre reconhecido detodos os pensadores que se lhe seguiram – esse homem cuja fama,a inda vicejante mais de dois mil anos passados, quase que excedea de todos os demais nomes que fazem ilustre a sua cidade nata l,foi condenado à morte pelos seus concidadãos, como desfechode um processo judicia l, sob a acusação de impiedade e imora li-dade. Impiedade consiste em repudiar os deuses reconhecidospelo Estado; na verdade, o seu acusador sustentou (veja a

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Apologia) que ele não acreditava em deus nenhum. Imoralidade,visto ser, por suas doutrinas e ensinamentos, um “corruptor dajuventude”. Há todo o fundamento para crer que dessas acusa-ções o tribunal honestamente o reconheceu culpado. E o homemque provavelmente de todos os seus contemporâneos mais me-recera da humanidade, o tribunal o condenou a ser morto comoum criminoso.

Um único exemplo mais de iniqüidade judicia l pode sermencionado após o da condenação de Sócrates sem constituirum anticlímax – o acontecimento que teve lugar no Calvário hápouco mais de mil e oitocentos anos. O homem que deixou namemória dos que presenciaram a sua vida e ouviram as suaspalavras uma ta l impressão de grandeza moral que os dezoitoséculos subseqüentes o cultuaram como o Onipotente em pessoa,foi ignominiosamente executado, como o quê? Como blasfema-dor. Os homens que lhe fizeram isso não se enganaram mera-mente sobre o seu benfeitor: a inda o tomaram pelo contrárioexato do que era , e o trataram como aquele prodígio de iniqüi-dade que hoje se vê precisamente neles pelo tratamento quederam à sua vítima. Os sentimentos com que a humanidadeencara no presente esses sucessos, principa lmente o segundo, atornam extremamente injusta na sua apreciação dos infelizesagentes dessas duas execuções. Segundo parece, não eram elesmaus homens – não eram piores do que os homens são comu-mente, ao contrário: homens que possuíam, numa ampla , oumais que ampla medida, os sentimentos religiosos, morais epatrióticos do seu tempo e do seu povo – a verdadeira espécie dehomens que, em todos os tempos, no nosso inclusive, contamtoda a probabilidade de passar a través da vida livres de censurae cercados de respeito. O sumo sacerdote que rasgou as vestesquando se pronunciaram as pa lavras que, segundo todas as idéiasdo seu país, constituíam a mais negra culpa, foi, com toda aprobabilidade, tão sincero no seu horror e indignação quanto ocomum dos homens respeitáveis e piedosos o são hoje nossentimentos morais e religiosos que professam. E a maioria dosque hoje tremem ante a sua conduta , se houvessem vivido no seutempo e nascido judeus, teriam agido precisamente como ele. Oscristãos ortodoxos que são tentados a pensar que os matadoresa pedradas dos primeiros mártires devem ter sido homens pioresdo que eles, devem recordar-se de que um dos perseguidores eraSão Paulo.

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Acrescentamos mais um exemplo, o mais sugestivo detodos, se o caráter impressionante de um erro se mede pelasabedoria e pela virtude do que nele incorre. Se, em a lgumaépoca, a lguém, investido do poder, teve motivos para se julgar omelhor e o mais esclarecido dos homens do seu tempo, esse foio imperador Marco Aurélio. Monarca absoluto de todo o mundocivilizado, conservou através da vida não apenas a mais imacu-lada justiça , como também – o que era menos de se esperar dasua formação estóica – o mais terno coração. As poucas fa ltasque se lhe atribuíram foram todas do lado da indulgência . E osseus escritos, a mais elevada produção ética do espírito antigo,pouco se percebe que difiram, se a lgo diferem, dos mais caracte-rísticos ensinamentos de Cristo. Esse homem, melhor cristão,quase no sentido dogmático corrente, que quase todos os sobe-ranos ostensivamente cristãos que reinaram depois, perseguiu ocristianismo. Situado acima dos maiores ta lentos da humanida-de, dotado de uma inteligência aberta , livre de peias, e de umcaráter que o levou a incorporar, por si, nos seus escritos moraiso idea l cristão, não viu que o cristianismo, preconizando osdeveres de que ele, Marco Aurélio, era tão profundamente pene-trado, teria de ser um bem e não um mal para o mundo. Asociedade existente, ele a sabia numa condição deplorável. Masviu, ou pensou que via , que, ta l como se apresentava , ela seconservava unida e era preservada de se tornar pior pela crençae a veneração das divindades aceitas. Como governante, elejulgou seu dever não deixar se desfizesse a sociedade em pedaços.E não viu como, se se rompessem os vínculos existentes, sepoderiam formar outros que restaurassem a unidade. A novareligião visava abertamente a dissolução desses laços. Parecia ,pois, que seu dever, a menos que consistisse em adotar essareligião, seria abatê-la . Considerando, então, que a Marco Aurélioa teologia cristã não aparentou ser verdadeira ou de origemdivina; considerando quão pouco crível lhe era essa estranhahistória de um Deus crucificado, e que ele não podia prever queum sistema a licerçado inteiramente sobre bases que lhe pare-ciam tão inacreditáveis, fosse esse fa tor de renovação que, depoisde todos os golpes, provou, de fato, ser; os filósofos e governantesmais ilustres e mais estimáveis, sob a inspiração de um solenesenso do dever, tiveram por lícita a perseguição de Marco Aurélioao cristianismo. Para o meu espírito, a í está um dos mais trágicosfatos de toda a história . É um pensamento amargo o de quãodiferente poderia ter sido o cristianismo no mundo, se a fé cristãhouvesse sido adotada como a religião do império sob os auspí-

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cios de Marco Aurélio em lugar de Constantino. Seria , porém,injusto para com ele, e também fa lso, dizer que não aproveitas-sem a Marco Aurélio, para legitimar a sua perseguição aocristianismo, todas as escusas que se podem apresentar hoje paraa punição da propaganda anticristã . Nenhum cristão acreditamais firmemente que o ateísmo é fa lso e tende à dissolução socia l,do que Marco Aurélio acreditava na fa lsidade e no caráterdissolvente do cristianismo – ele que, de todos os homens entãovivos, podia ser julgado o mais capaz de apreciá-lo. Quem querque seja que aprove a existência de penas para a expressãopública de opiniões, a menos que se superestime supondo-semais sábio e melhor do que Marco Aurélio – mais profundamenteversado na sabedoria do seu tempo, mais acima deste, pelainteligência , do que ele o foi em relação à sua época, maisfervoroso na investigação da verdade ou mais sincero na devoçãoa ela quando encontrada – que se abstenha dessa presunção deinfa libilidade – da infa libilidade própria e da da multidão – emque o grande Antonino incorreu com tão infeliz resultado.

Cientes da impossibilidade de defender o uso de penasrepressivas de opiniões irreligiosas por qualquer argumento quenão justifique. Marco Antonino, os inimigos da liberdade religio-sa , quando seriamente acuados, aceitam ocasionalmente a justi-ficação de Marco Aurélio, e dizem, com o dr. Jonhson, que osperseguidores do cristianismo estavam no seu direito; que aperseguição é uma prova por que a verdade deve passar, e porque sempre passa com êxito, revelando-se as penalidades lega is,a fina l, impotentes contra a verdade, embora, às vezes, benefica-mente eficazes contra erros perniciosos. Essa forma de argumen-ta r e m prol da intole râ ncia re lig ios a é s ufic ientementeinteressante para não ser passada em silêncio.

Uma teoria que sustenta poder a verdade ser justificada-mente perseguida porque ta lvez a perseguição não cause danoalgum, não pode ser acusada de hostilidade intencional, à recep-ção de verdades novas. Não nos é possível, porém, aplaudir agenerosidade da sua conduta para com aqueles a que somosreconhecidos por ta is verdades. Revelar ao mundo a lguma coisade seu profundo interesse que antes ignorava; provar-lhe que seenganava em a lgum ponto vita l, de interesse temporal ou espi-ritua l, eis o mais importante serviço que um ser humano podeprestar aos seus semelhantes. E, em a lguns casos, como nos dosprimitivos cristãos e dos reformadores, os que acompanham o dr.Johnson julgam esse serviço a dádiva mais preciosa que se pode

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fazer aos homens. Que os autores desse esplêndido benefíciodevam ser recompensados com o martírio, que o seu prêmio devaser o tratamento destinado aos mais vis criminosos, não constitui,segundo essa teoria , um erro deplorável e um infortúnio, pelosquais a humanidade deveria cingir o cilício e cobrir-se de cinzas.E sim o estado de coisas normal e justo. Aquele que expõe umaverdade nova deveria , segundo essa doutrina, permanecer, comoo proponente de uma nova lei que – de acordo com a legislaçãoda Lócrida , – deverá ter uma corda no pescoço a ser imediata-mente puxada se a assembléia pública , ouvidas as suas razões,não adotasse, a li mesmo, a proposta . Os que defendem esse modode tratar os benfeitores não podem ser tidos por gente que dêmuito va lor ao benefício. E eu creio que essa vista do assunto é,em regra , própria daqueles que acham terem sido as verdadesnovas desejáveis antigamente, mas que delas já tivemos o bas-tante.

Na rea lidade, porém, o dito de que a verdade sempre triunfada perseguição é uma dessas divertidas fa lsidades que unsrepetem após outros, a té que se tornem lugares comuns, as quais,entretanto, toda a experiência refuta . A história está repleta dederrotas da verdade pela perseguição. Ela pode ser, se nãosuprimida para sempre, ao menos repelida por séculos. Para fa larapenas de opiniões religiosas: a Reforma manifestou-se antes deLutero ao menos vinte vezes, e outras tantas foi abatido. Arnoldode Brescia foi abatido. Fra Dolcino foi abatido. Savonarola foiabatido. Os a lbigenses foram abatidos. Os va ldenses foram aba-tidos. Os lo llards foram abatidos. Os hussitas foram abatidos.Ainda depois da era de Lutero, onde quer que se teimou naperseguição, ela logrou êxito. Na Espanha, na Itá lia , na Flandres,no império da Áustria , o protestantismo foi extirpado, e o maisprovável é que o tivesse sido também na Inglaterra , se a ra inhaMaria tivesse vivido, ou a ra inha Isabel morrido. A perseguiçãofoi sempre bem sucedida, sa lvo quando os hereges constituíamum partido forte demais para a perseguição ter eficácia . Nenhu-ma pessoa razoável duvidará de que o cristianismo poderia tersido extirpado do Império Romano. Ele se estendeu e se tornoupreponderante porque as perseguições foram apenas ocasionais,por períodos curtos, separados por longos interva los de propa-ganda quase não perturbada. É vão sentimenta lismo acreditarque a verdade, apenas como verdade, tenha a lgum poder ineren-te, negado ao erro, de preva lecer contra o cárcere e o pelourinho.Não é maior o zelo dos homens pela verdade do que o que com

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freqüência sentem pelo erro, e uma aplicação suficiente depenalidades lega is, mesmo de socia is, conseguirá , em regra ,para lisar a propagação de ambos. A vantagem rea l da verdadeconsiste em que uma opinião verdadeira pode extinguir-se umavez, duas vezes, muitas vezes, mas, no curso das idades, surgem,em regra , pessoas que a tornam a descobrir, a té que coincida umdesses reaparecimentos com uma época na qual, por circunstân-cias favoráveis, escapa ela à perseguição, de forma a assumir umtal vulto que triunfa das posteriores tentativas de suprimi-la .

Dir-se-á que nós hoje não condenamos à morte os introdu-tores de opiniões novas; não somos como os nossos avós quematavam os profetas: nós até lhes construímos sepulcros. De fatonós não executamos mais os hereges, e a soma de punição penalque o sentimento moderno toleraria mesmo contra as opiniõesmais mal vistas não daria para as extirpar. Não nos gabemos,contudo, de que já estejamos livres dessa mácula da perseguiçãolega l. Penas por opiniões, ao menos pelo fato de as exprimir,a inda existem em lei, e exemplos da sua imposição, a inda nestestempos, mostram que não é inacreditável possam, um dia , serrevividas em toda a sua força . No ano de 1857, no juri de verãodo condado de Cornwall, um homem sem sorte2, que diziam deconduta irrepreensível em todas as relações da vida , foi senten-ciado a 21 meses de prisão por ter proferido, e escrito numportão, pa lavras ofensivas ao cristianismo.

No espaço de 30 dias, que incluem esse fa to, duas outraspessoas, em Old Bailey, em ocasiões diversas3, se viram rejeitadascomo jurados, e uma delas grosseiramente insultada pelo juiz epor um conselheiro, porque haviam honestamente declarado quenão nutriam crença teológica . E a um terceiro, um estrangeiro4,pelo mesmo motivo, se denegou justiça contra um ladrão. Recu-saram reparar-lhe o dano por força da doutrina lega l de queninguém pode ser admitido a depor em juízo sem professarcrença num Deus (qualquer deus serve) e numa condição futura .O que equiva le a declarar ta is pessoas fora da lei excluídas daproteção dos tribunais, sendo possível assa ltá-las impunemente

2. Thomas Pooley, júri de Bodmin, 31 de julho de 1857. Em dezembro,recebeu o indulto da Coroa .

3. George Jacob Holyoake, 17 de agosto de 1857; Edward Truelove, julhode 1857.

4. Barão de Gleichen, Corte de Polícia da rua Marlborough, 4 de agosto de1857.

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se só elas, e pessoas de opiniões análogas, estiverem presentes,e devendo, a inda, ficar impune o assa lto e roubo contra qualqueroutra pessoa se a prova do fato depender do testemunho de ta lgente. A presunção em que isso se funda é a de que carece deva lor o juramento de quem não crê numa condição futura ,a firmativa indicadora de muita ignorância de história nos que afazem, desde que é historicamente verdadeiro terem sido infiéisde outras épocas, em grande proporção, homens de integridadee honra eminentes. E não a defenderia ninguém que tivesse amenor idéia de quantas pessoas das de maior prestígio no mundo,quer pelo ta lento quer pela virtude, são conhecidas, ao menos naintimidade, como incrédulas. Ademais, essa norma é suicida ederrui seus próprios a licerces. Sob o pretexto de que ateus devemser mentirosos, ela aceita o testemunho de todos os ateus queestejam prontos a mentir, rejeita apenas o dos que a frontam adesonra de confessar publicamente um credo odiado de prefe-rência a a firmar uma fa lsidade. Uma norma assim absurda porsi mesma, absurda na medida em que visa o objetivo que se lheatribui, só pode ser mantida em vigor, na verdade, como umadivisa de ódio, relíquia da perseguição – perseguição também,com a peculiaridade de que a condição para sofrer é estarclaramente provado não a merecer. Essa norma, e a teoria queimplica , são pouco menos insultuosas aos crentes que aos infiéis.Se aquele que não crê numa condição futura necessariamentefa lta à verdade, segue-se que apenas o medo do inferno impedeos que crêem de mentir, se impede. Não faremos aos autores einspiradores de ta l norma a injúria de supor que ta l concepçãopor eles formada da virtude cristã seja modelada pela suaconsciência .

Trata-se, na rea lidade, de farrapos e restos de perseguição,e pode-se pensar não sejam tanto uma expressão do desejo deperseguir, quanto um exemplo da debilidade muito freqüente noespírito dos ingleses, que os faz sentir um prazer absurdo naasserção de um mau princípio que eles já não são bastante mauspara desejarem efetivamente levar à prática . Infelizmente, toda-via , o estado do espírito público não é de molde a assegurarcontinuem suspensas, como aconteceu pelo espaço de umageração, as piores formas de perseguição lega l. Na época presen-te, tanto agitam a quieta superfície da rotina as tentativas deintroduzir novos benefícios como as de ressuscitar velhos males.O que se gaba hoje como a revivescência da religião, é também,em espíritos estreitos e incultos, sempre, a revivescência da

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carolice. E onde existe nos sentimentos populares o vigoroso econstante fermento de intolerância que sempre houve nas classesmédias deste país, faz-se necessário muito pouco para provocara perseguição ativa daqueles que o povo nunca deixou de julgarobjetos adequados de perseguição5. Porque é isto – são asopiniões que os homens entretêm e os sentimentos que nutrema respeito dos que negam as crenças consideradas importantes,que torna este país uma terra sem liberdade menta l. O principa ldano das penalidades lega is é que, como o passado nos mostrou,elas forta lecem o estigma socia l. É esse estigma que é de rea leficiência , e de tanta eficiência que professar opiniões socia lmen-te estigmatizadas é na Inglaterra muito menos comum do queem outros países confessar opiniões com risco de punição lega l.A opinião pública é, nessa matéria , tão eficaz como a lei, quantoàqueles que não possuam condições pecuniárias para os tornarindependentes da boa vontade a lheia . Tanto va le aprisionara lguém como privá-lo dos meios de ganhar o seu pão. Os quetêm o pão assegurado, e não desejam favores dos homens nopoder, ou de grupos socia is, ou do público, nada têm a temer daconfissão franca de quaisquer opiniões senão que deles penseme fa lem mal; e para suportar isso não se requer um padrão muitoheróico. Não há motivo para qualquer apelo “ad misericordiam”

5. Ao par de uma ostentação genera lizada dos piores lados do nosso cará ternaciona l, verificou-se, quando da insurreição dos cipa ios, uma la rga difusão daspa ixões da intolerância de que se pode tira r um amplo ensinamento. Os delíriosde fanáticos e charla tães de cima de púlpitos podem ser indignos de nota . Mas oschefes do partido evangélico anuncia ram, como princípios seus, para o governode hindus e maometanos, os de que escola nenhuma na qua l não se ensinasse aBíblia fosse sustentada pelo dinheiro público e, como conseqüência necessá ria ,emprego público a lgum fosse dado a quem não professa sse, rea l ou supostamente,o cristianismo. Rela ta -se que um subsecretá rio de Estado, em discurso endereçadoaos seus eleitores, a 12 de novembro de 1857, disse: “A tolerância da sua fé” (a féde 100 milhões de súditos britânicos) , “a tolerância da superstição por eleschamada religião, por parte do governo britânico, produz iria o efeito de reta rdaro predomínio do nome britânico e de impedir a sa luta r extensão do cristianismo.A tolerância foi a grande pedra angular das liberdades religiosa s neste pa ís; masnão deixemos que abusem dessa preciosa pa lavra tolerância . Como este pa ís acompreendeu, ela significava a completa liberdade de culto para todos, mas entrecris tão s com as mesmas bases de culto . Significava tolerância a todas a s seita s edenominações de cris tão s que acreditavam na mediação”. Desejo a ssina la r o fa tode que um homem julgado digno de ocupar a lto posto no governo deste pa ís, porocasião de um ministério libera l, defende a doutrina de que os descrentes nadivindade de Cristo estão fora do campo da tolerância . Quem, depois dessa tiradaimbecil, pode abandonar-se à ilusão de que a s perseguições religiosa s passa rampara nunca mais volta r?

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em favor de ta is pessoas. Entretanto, embora não façamos hojetanto mal aos que pensam diferentemente de nós como eraantigamente o nosso costume, a nós mesmos ta lvez a inda faça-mos o mesmo mal. Sócrates foi morto, mas a filosofia socráticaergueu-se como o sol no céu, espa lhando a sua luz por todo ofirmamento intelectual. Os cristãos foram lançados aos leões,mas a Igreja Cristã cresceu como árvore ampla e majestosa ,ultrapassando as outras mais velhas, porém menos vigorosas, eocultando-as com a sua sombra. A nossa intolerância meramentesocia l não mata ninguém, não desarra iga opiniões, mas induzgente a disfarçá-las ou a abster-se de esforços ativos por asdifundir. No nosso meio, as opiniões heréticas não apresentamganhos perceptíveis, ou mesmo perdem terreno em cada décadaou geração. Nunca espalham o fogo ao longe e ao largo, masficam a lavrar sob as cinzas, nos círculos estreitos de pessoasestudiosas e pensantes nos quais se originaram, sem jamaischegarem a iluminar os negócios humanos gera is com qualquerluz, verdadeira ou ilusória . E, assim, apenas prolongam umestado de coisas, que para a lguns espíritos é muito satisfa tório,visto que, sem o desagradável processo de aprisionar ou multar,consegue manter livres de perturbações exteriores todas asopiniões dominantes, enquanto não interdiz de forma absolutao exercício da razão por parte dos dissidentes a fligidos damoléstia de pensar. Um plano conveniente para haver paz nomundo intelectual, e para conservar todas as coisas bem direiti-nho como estão. Mas o preço pago por essa espécie de pacificaçãodas inteligências é o sacrifício completo, no espírito humano, dacoragem moral. Um estado de coisas em que os intelectos maisativos e investigadores julgam conveniente guardar para si osprincípios e fundamentos gera is das suas convicções, e procuramadaptar as suas conclusões o quanto possam, naquilo que ende-reçam ao público, a premissas que intimamente repelem, nãopode produzir os caracteres abertos e intrépidos, e as inteligên-cias lógicas e sólidas, que adornaram antigamente o mundopensante. A espécie de homens com que se pode contar nesseregime é a dos puros conformistas com o lugar comum, ou a deoportunistas para com a verdade, cujos argumentos, em todas asmatérias importantes, visam o público, não sendo os que elesconvenceram. Aqueles que escapam a essa a lternativa procedem,ainda assim, a uma limitação do seu pensamento e do seuinteresse, restringindo-os a coisas de que se possa fa lar sem serpreciso aventurar-se na região dos princípios – isto é, a pequenosassuntos, de natureza prática , que, se os espíritos se forta leces-

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sem e ampliassem, viriam por si mesmo à justa solução, mas que,até lá , jamais serão efetivamente regulados. Enquanto isso, o queforta leceria e ampliaria os espíritos humanos, a especulação livree audaz, é abandonada.

Aqueles, a cujos olhos essa atitude reticente dos heréticosnão é um mal, deveriam meter em conta , em primeira plana, que,em conseqüência disso, não há nenhuma discussão lea l e com-pleta de opiniões heréticas, e que, dentre elas, as que nãopoderiam resistir a uma ta l discussão, não desaparecem apesarde terem sua divulgação proibida. Não são os espíritos heréticosque mais se corrompem pela ação do anátema lançado a todainvestigação que não finde por conclusões ortodoxas. O maiordano, sofrem-no os que não são heréticos, aos quais se embaraçatodo o desenvolvimento menta l, e cuja razão se acovarda de medoda heresia . Quem pode ca lcular o que se perde com a multidãode inteligências, a coexistirem com caracteres tímidos, que nãose aventuram a incorporar-se em nenhuma corrente arrojada,vigorosa e independente, de opinião, com o temor de que ela osleve a a lguma coisa que possa ser tachada de irreligiosa ouimoral? Entre essas pessoas podemos entrever, ocasionalmente,um ou outro homem de profunda consciência ou de entendimen-to sutil e refinado, que gasta a vida a sofisticar com um intelectoa que não pode impor silêncio, que esgota os recursos daingenuidade tentanto conciliar as sugestões da consciência e darazão com a ortodoxia , o que já no fim ta lvez não tenha maisêxito em rea lizar. Ninguém será grande pensador sem reconhe-cer que o seu primeiro dever como ta l é seguir o seu intelecto aquaisquer conclusões a que ele conduza. A verdade ganha maiscom os erros de a lguém que, com o devido estudo e preparo,pensa por si, do que com as opiniões verdadeiras daqueles queas professam apenas porque não suportam a atividade do seupróprio pensamento. Não que a liberdade de opinião seja reque-rida , unicamente, ou principa lmente, para formar grandes pen-sadores. Ao contrário, ela é tão, ou a inda mais indispensável parahabilitar os homens medianos a atingirem a a ltura menta l de quesejam capazes. Tem havido, e pode voltar a haver, grandespensadores isolados, numa atmosfera de escravidão menta l ge-nera lizada. Mas nunca houve, e jamais haverá , numa ta l a tmos-fera , um povo intelectualmente ativo. Onde um povo se hajaaproximado transitoriamente desse caráter, fê-lo por ter abando-nado, a lgum tempo, o pavor da especulação heterodoxa. Ondehaja uma convenção tácita de que não se deve discutir princípios,

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onde se tenha por fechada a discussão das questões mais impor-tantes que podem ocupar a humanidade, não é de esperar seencontre esse elevado nível médio de atividade menta l quetornou tão notáveis a lguns períodos da história . Sempre que acontrovérsia evitou os assuntos suficientemente importantespara excitar entusiasmo, o espírito popular permaneceu estag-nado, e não se verificou o impulso que eleva mesmo pessoas damais vulgar inteligência a a lgo da dignidade de seres pensantes.Tivemos um exemplo disso nas condições da Europa logo após aReforma. Outro, a inda que limitado ao continente e a uma classemais culta , no movimento especulativo da última metade doséculo XVIII. E um terceiro, que durou a inda menos tempo, nafermentação intelectual da Alemanha, no período de Goethe e deFichte. Esses períodos diferiram grandemente nas opiniões par-ticulares que desenvolveram. Mas foram semelhantes em que nostrês se quebrou o jugo da autoridade. Em cada um deles, umvelho despotismo menta l havia sido derribado, e nenhum novotomara o seu lugar. O impulso dado nesses três períodos fez daEuropa o que é hoje. Cada aperfeiçoamento concreto verificadoou no espírito humano ou nas instituições pode ser remontadoa um ou outro deles. Por a lgum tempo, houve aparências dequase esgotamento dos três impulsos. Na verdade, não podemosesperar nenhum ímpeto novo vigoroso enquanto não afirmamos,outra vez, a nossa liberdade menta l.

Passemos, agora , à segunda parte do argumento, abando-nando a suposição da fa lsidade de a lguma das opiniões aceitas.Presumamo-las verdadeiras. E investiguemos o mérito da manei-ra própria para sustentá-las quando não se averigúa livre eabertamente a sua verdade. Embora o portador de uma opiniãovigorosa não admita de boa vontade a possibilidade de ser fa lsa ,deve ele mover-se pela ponderação de que, por mais verdadeiraque seja , se não for ampla , freqüente e intrepidamente discutida ,será sustentada como um dogma morto, não como verdade viva .

Há uma classe de pessoas (felizmente um pouco menosnumerosas que antes) que se satisfazem com a aquiescênciafirme de a lguém ao que elas têm por verdadeiro, mesmo que essea lguém não conheça, de forma a lguma, os fundamentos daopinião, nem possa defendê-la com tenacidade contra as maissuperficia is objeções. Essas pessoas, se podem obter o ensino dosseus credos pela autoridade, vêm natura lmente a pensar quenenhum bem, antes a lgum mal, provirá da permissão de discu-ti-lo. Quando a sua influência preva lece, torna-se quase impos-

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sível repelir sábia e refletidamente a opinião aceita , emboraainda se possa repeli-la precipitada e ignorantemente. Pois cortara discussão inteiramente é raras vezes possível, e quando ela ,porventura , logra introduzir-se, as crenças não fundadas emconvicções são susceptíveis de abalo ante a mais ligeira sombrade argumento. Presumir, contudo, reconhecendo-se essa possi-bilidade, que a opinião verdadeira habita o espírito, como pre-conce ito poré m, is to é , como opiniã o inde pe nde nte deargumento, e à prova de argumento, não constitui a maneira pelaqual a verdade deve ser apreendida por ser racional. Isso não éconhecer a verdade. A verdade assim possuída é apenas umasuperstição a mais, acidenta lmente ligada a pa lavras que enun-ciam uma verdade.

Se o intelecto e o juízo humanos devem ser cultivados, coisaque pelo menos os protestantes não negam, sobre o que poderiamessas faculdades exercitar-se mais apropriadamente do que sobreaquelas coisas que interessam tanto que se considera necessárioformar opiniões a seu respeito? Se o exercício do entendimentoconsiste mais numa coisa do que noutra , será seguramente emaprender os fundamentos das próprias opiniões. Qualquer coisaque se creia naqueles assuntos em que importa crer retamentedeve ser defendida ao menos contra as objeções vulgares. Masta lvez se diga : “Que se ens inem os fundamentos das opiniões. Daínão se segue que, pelo fato de nunca se ter ouvido discuti-las,elas sejam, necessariamente, apenas papagueadas. Os que apren-dem geometria não se limitam a entregar os teoremas aoscuidados da memória , mas também compreendem e aprendemas demonstrações; e seria absurdo dizer que permaneçam naignorância dos fundamentos das verdades geométricas porquenunca ouviram a lguém negá-las e tentar provar o contrário”.Seguramente. E ta l ensino basta num assunto como a matemá-tica , no qual nada há a ser dito, absolutamente, do lado erradoda questão. A peculiaridade da prova das verdades matemáticasé que toda a argumentação é de um lado só. Não há objeçõesnem respostas a objeções. Em todo assunto, porém, em que épossível diferença de opiniões, a verdade depende de um balançoa ser dado entre duas séries de razões opostas. Mesmo na filosofianatura l, há sempre a lguma outra explicação possível dos mesmosfatos, a lguma teoria geocêntrica em lugar da heliocêntrica ,a lgum flogístico em lugar do oxigênio, e se tem de mostrar porque essoutra teoria não pode ser verdadeira . E, a té que se mostre,e a té que sa ibamos como se mostra , não compreendemos os

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fundamentos da nossa opinião. E, quando nos voltamos paraassuntos infinitamente mais complicados, como religião, políti-ca , relações socia is, ocupações da vida , três quartos dos argu-mentos em prol de cada opinião discutida consistem em destruiraparências favoráveis a a lguma opinião diversa . O segundoorador da Antigüidade deixou registrado que sempre estudava aposição do adversário com a mesma intensidade, se não maior,que a sua própria . O que Cícero praticou como método forenserequer imitação da parte de todos os que estudam qualquerassunto visando chegar à verdade. Quem conhece do caso apenaso seu lado, pouco conhece dele. As suas razões podem ser boas,e é possível que ningúem tenha conseguido refutá-las. Todavia ,se ele é igualmente incapaz de refutar as razões do lado oposto,se pelo menos não as conhece, fa lta-lhe fundamento para preferiruma das duas opiniões. A sua atitude racional seria a suspensãodo juízo. A menos que se resigne a essa atitude, ele ou se deixaguiar pela autoridade, ou adota , como a genera lidade das pes-soas, o lado por que sente maior inclinação. Nem é bastante ouvirdos professores, apresentados como estes os estabelecem, osargumentos dos adversários, acompanhados do que é oferecidocomo refutações. Essa não é a maneira de fazer justiça a essesargumentos, nem a de os trazer ao contacto rea l do espírito. Épreciso poder ouvi-los dos que neles acreditam efetivamente, dosque os defendem com seriedade, dos que por eles fazem o melhorque podem. É preciso conhecê-los na forma mais plausível, e maispersuasiva , sentir toda a força da dificuldade que a verdadeiravista do assunto encontra e tem de vencer. Aquela parte daverdade que enfrenta e remove esse obstáculo jamais seráapreendida de outra maneira . Noventa e nove por cento doschamados homens instruídos se acham nessa condição deficiente– mesmo os que podem argumentar com fluência em favor dassuas opiniões. A sua conclusão pode ser verdadeira , mas poderiaser fa lsa por a lgo que ignoram; nunca se colocaram na posiçãomenta l dos que pensam diferentemente deles, nem jamais con-sideraram o que essas pessoas possam ter a dizer; conseqüente-mente, não conhecem, em nenhum sentido próprio, a doutrinaque professam. Não conhecem aquelas partes da doutrina queexplicam e justificam as restantes; as considerações que mostramser um fato, que à primeira vista colide com outro, conciliávelcom este; ou que, de duas razões aparentemente fortes, uma, enão a outra , deve ser preferida . São estranhos a toda essa parteda verdade que serve de fiel da ba lança e determina a decisão deum espírito bem informado. Nem é ela jamais rea lmente conhe-

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cida senão pelos que atenderam, igualmente e imparcia lmente,aos dois lados, e se esforçaram por examinar à luz mais forte asrazões de ambos. Essa disciplina é tão essencia l a uma efetivacompreensão dos assuntos morais e humanos que, na fa lta decontraditores das verdades importantes, se faz indispensávelimaginá-los, e a tribuir-lhes os mais fortes argumentos que o maishábil advogado do diabo poderia maquinar.

Pode-se supor que um inimigo da livre discussão diga , paradiminuir o vigor dessas considerações, que à humanidade emgera l não é preciso conhecer e compreender tudo que possa serdito contra ou a favor das suas opiniões, por filósofos e teólogos.Que não é necessário aos homens comuns poderem expor todasas adulterações e fa lácias de um antagonista engenhoso. Quebasta haver sempre a lguém capaz de as responder, de modo anão ficar sem refutação nada que possa desencaminhar pessoasnão instruídas. Esses espíritos simples, havendo aprendido osfundamentos óbvios das verdades a eles inculcadas, podemconfiar na autoridade quanto ao resto, e, cientes de que nãopossuem nem conhecimento nem ta lento para resolver em todasas dificuldades apresentáveis, repousar na segurança de que asque se apresentaram foram, ou podem ser, respondidas pelosespecia lmente preparados para a tarefa .

Concedendo a essa vista do assunto o máximo que possaser reivindicado pelos mais facilmente satisfeitos com a soma decompreensão da verdade que deve acompanhar a crença nela –ainda assim absolutamente não se enfraquece o argumento emprol da liberdade de discussão. Porque mesmo essa doutrinareconhece que a humanidade deve ter uma segurança racionalde que todas as objeções foram satisfa toriamente respondidas. Ecomo serão respondidas, se o que deve ser respondido não é dito?Ou como pode a resposta ser tida por satisfa tória , se não se dáaos que objetam a oportunidade de mostrar que ela não satisfaz?Se não o público, ao menos os filósofos e teólogos, a que caberesolver as dificuldades, devem familiarizar-se com elas na suaforma mais embaraçosa . E isso não pode verificar-se sem quesejam livremente levantadas, e sob a luz mais vanta josa quepermitam. A Igreja Católica tem um método próprio para se havercom esse difícil problema. Ela separa completamente aqueles aque tolera receber as suas doutrinas por convicção, dos quedevem aceitá-las em confiança. Nem a uns nem a outros, naverdade, se permite qualquer escolha a respeito do que aceitarão;mas ao clero, enquanto ao menos se pode confiar plenamente

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nele, se admite, e é considerado meritório, que conheça osargumentos oponíveis a fim de os responder, podendo, portanto,ler livros heréticos – o que para os leigos demanda uma licençaespecia l, difícil de obter. Essa doutrina reconhece como benéficoaos mestres o conhecimento da posição do inimigo, mas encontrameios, compatíveis com isso, de negá-lo ao resto do mundo.Concede assim à élite mais cultura menta l, embora não maisliberdade menta l, que à massa . Com esse expediente, ela lograêxito na obtenção da espécie de superioridade menta l que os seuspropósitos exigem, pois que, embora cultura sem liberdadementa l jamais tenha produzido um espírito largo e livre, pode,entretanto, suscitar um advogado de uma causa , inteligente “nisiprius”. Todavia , em países protestantes, se denega esse recurso,visto que os protestantes sustentam, ao menos em teoria , que aresponsabilidade pela escolha de religião deve ser suportadainteiramente pela consciência de cada um, não podendo serlançada sobre os mestres. Ademais, no presente estado do mun-do, não se pode praticamente evitar que as pessoas sem instruçãovenham a conhecer os escritos que a gente culta lê. Se os mestresdevem estar bem a par de tudo que é obrigação sua saber, entãodeve haver liberdade para escrever sobre todas as coisas, e parapublicar sem restrições o que quer que seja .

Se, todavia , a perniciosa operação de suprimir o livredebate, quando as opiniões aceitas são verdadeiras, se restringis-se a deixar os homens na ignorância dos fundamentos das suasopiniões, poder-se-ia pensar que, se isso é um dano intelectual,não o é moral, e não atinge o mérito das opiniões quanto à suainfluência sobre o caráter. O fato, contudo, é que na ausência dedebate, não apenas se esquecem os fundamentos das opiniões,mas a inda, muito freqüentemente, o próprio significado delas.As pa lavras que as exprimem cessam de sugerir idéias, ousugerem só uma pequena parte das que originariamente sedestinavam a comunicar. De uma concepção enérgica e de umacrença viva , sobram apenas umas poucas frases sabidas de cor,ou, se sobra mais, é a casca , o invólucro somente, do significado,que se retém, perdendo-se a essência mais pura . Jamais seráexcessiva a seriedade com que se estude e medite o grandecapítulo que esse fa to ocupa e enche na história humana. Ele éilustrado pela experiência de quase todas as doutrinas éticas ede quase todos os credos religiosos.

Estes e aquelas são repletos de sentido e de vita lidade paraos que lhes deram origem e para os discípulos diretos desses

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fundadores. O seu significado continua sentido com um vigorintacto, e ta lvez atue em consciências a inda mais inspiradas dele,enquanto dura a luta por dar à doutrina ou credo ascendência .Por fim, ou a crença que assim luta preva lece e se torna a opiniãogera l, ou o seu progresso se para lisa : ela guarda o terrenoconquistado, mas cessa de se expandir. Quando qualquer dessesresultados se torna visível, a controvérsia amaina e gradualmentese extingue. A doutrina tomou o seu lugar, se não como opiniãodominante, então como das seitas ou divisões de opinião admi-tidas. Os que a sustentam, gera lmente a herdaram, não a adota-ra m. E a conve rs ã o de uma de s s a s doutr ina s a outra ,constituindo, agora , um fato excepcional, ocupa pequeno lugarnos pensamentos dos que as professam. Ao invés de se conserva-rem, como no princípio, em constante a lerta , seja para se defen-derem contra o mundo, seja para o trazerem a si, acomodaram-se,e nem prestam atenção aos argumentos contra o seu credodeixando-o sem socorro, nem perturbam os dissidentes (se os há)com argumentos favoráveis à opinião combatida. Desse momen-to data , em regra , o declínio do poder vivo da doutrina. Ouvimos,muitas vezes, os mestres de todos os credos lamentarem adificuldade de manter nos espíritos crentes uma compreensãoviva da verdade nominalmente reconhecida, de modo que elapenetre nos sentimentos e adquira um rea l domínio sobre aconduta . Essa lamentação não se verifica enquanto o credocombate pela sua existência . Ainda os mais fracos lutadoressabem e sentem, então, o que é que defendem, e qual a diferençaentre a sua e as outras doutrinas. E nesse período da existênciade cada credo encontram-se não poucas pessoas que tenhamvivido os princípios fundamentais do credo em todas as formasdo pensamento, que os tenham pesado e considerado em todosos seus aspectos importantes, e experimentado o efeito plenosobre o caráter que a crença nessa doutrina deve produzir numespírito perfeitamente imbuído dela . Mas quando ela se torna umcredo hereditário, recebido passivamente, e não ativamente,quando o espírito não é mais compelido, no grau primitivo, aexercitar os seus poderes vita is no trato dos problemas que acrença lhe suscita , tende-se, então, a esquecer tudo dela excetoos formulários, ou a dar-lhe um assentimento néscio e entorpe-cido. Como se aceitá-la em confiança dispensasse a necessidadede vivê-la amplamente na consciência , ou de submetê-la à provada experiência pessoa l. E ela acaba por perder quase toda aligação com a vida interior do ser humano que a adota . Vêem-se,então, os casos, tão freqüentes nesta época que quase formam a

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maioria , nos quais o credo permanece, por assim dizer, exteriorao espírito, incrustando-o e petrificando-o contra todas as outrasinfluências endereçadas às partes mais elevadas da nossa natu-reza , patenteando o seu poder pela intolerância ao aparecimentode qualquer convicção nova e viva , nada fazendo, porém, elepróprio, em favor do espírito e do coração, sa lvo montar sentinelajunto a eles para os manter vazios.

Até que ponto doutrinas intrinsecamente adequadas a pro-duzir a mais profunda impressão no espírito podem permanecerneste como crenças mortas, sem se rea lizarem jamais na imagi-nação, no sentimento ou na razão, exemplifica-se na maneirapela qual a maioria dos crentes apreende as doutrinas do cristia-nismo. Por cristianismo quero significar o que ta l é julgado portodas as igrejas e seitas – as máximas e preceitos contidos noNovo Testamento. Essas máximas e preceitos são tidos porsagrados, e aceitos como leis, por todos os que se declaramcristãos. Entretanto, estará longe de exagero afirmar que nemum único cristão em mil orienta a sua conduta individual poressas leis , ou nela as põe à prova. O padrão por que se guia é ocostume da sua nação, da sua classe ou da sua confissão religiosa .Ele tem, assim, de um lado, uma coleção de máximas éticas quecrê lhe provêm de uma sabedoria infa lível como normas para oseu governo; de outro, uma série de juízos e práticas quotidianas,que coincidem, até certo ponto, com algumas daquelas máximas,menos com outras, se colocam em oposição direta a inda a outras,e são, em conjunto, um compromisso entre o credo cristão e assugestões da vida mundana. Ao primeiro desses padrões prestaa sua homenagem, ao segundo a sua efetiva obediência . Todosos cristãos acreditam que os bem-aventurados são os pobres, oshumildes e os maltratados pelo mundo; que é mais fácil a umcamelo passar pelo fundo de uma agulha que a um rico entrarno reino dos céus; que não devem julgar, para não seremjulgados; que não devem jurar de forma a lguma; que devem amaro seu próximo como a si mesmos; que, se a lguém levar o seumanto, devem dar-lhe o casaco também; que não devem fazerprojetos para o dia seguinte; que, se fossem perfeitos, venderiamtudo quanto possuem, e dá-lo-iam aos pobres. Eles não sãoinsinceros quando afirmam crer nisso tudo. Eles crêem-no daforma por que o povo crê no que sempre ouviu louvar e jamaisdiscutir. Mas, no sentido daquela crença viva que regula aconduta , crêem nessas doutrinas precisamente apenas até oponto em que é usual agir segundo elas. As doutrinas na sua

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integridade são úteis para o ataque aos adversários, e entende-seque elas devem ser apresentadas (quando possível) como razõespara o que se julga louvável dentre o que se faz. Se a lguém,todavia , lhes recordasse que essas máximas requerem um infinitode coisas que jamais sequer pensaram em fazer, não ganhariasenão ver-se classificado entre aqueles caracteres impopularíssi-mos que afetam ser melhores do que os outros. As doutrinas nãotêm influência sobre os crentes vulgares – são impotentes emrelação aos seus espíritos. Do hábito lhes proveio o respeito pelosom das doutrinas, mas nenhum sentimento que se estenda daspalavras às coisas significadas, e force o espírito a integrá-las emsi, adapta essas pessoas às fórmulas. Todas as vezes que a suaconduta está em questão, olham para o sr. A e para o sr. Bprocurando orientar-se sobre o ponto a que devem levar aobediência a Cristo. Entretanto, podemos estar bem certos de quecom os cristãos primitivos a coisa não foi assim, mas de bemdiversa forma. Houvesse sido assim, e o cristianismo nunca seteria a lçado, de uma obscura seita dos desprezados hebreus, àreligião do Império Romano. Quando os seus inimigos diziam –“olhai como esses cristãos se amam uns aos outros” (observaçãoimprópria hoje para qualquer um), os cristãos seguramentesentiam o significado da sua crença com muito mais vida que osseus correligionários de qualquer época posterior. E, provavel-mente, é sobretudo a isso que se deve faça hoje o cristianismotão pequenos progressos na expansão do seu domínio, e estejaa inda, depois de dezoito séculos, quase confinado aos europeuse descendentes de europeus. Ainda com os estritamente religio-sos, que fa lam muito seriamente das suas doutrinas e lhesemprestam mais significado que o povo em gera l, com freqüênciaacontece que a parte assim relativamente ativa no seu espírito éa que procede de Calvino ou de Knox, ou de a lguma pessoa comoessas, de caráter muito mais próximo do deles. Os ditos de Cristoco-existem passivamente com os desses outros no espírito de ta iscrentes, não produzindo quase nenhum efeito a lém do que écausado pela audição de pa lavras tão amáveis e tão meigas. Hámuitas razões, sem dúvida, para que as doutrinas característicasde uma seita retenham mais da sua vita lidade que as comuns atodas as seitas reconhecidas, e para que os mestres se esforcemmais por conservar vivo o sentido delas. Mas uma das razões écertamente que as doutrinas particulares são as mais questiona-das, e se têm de defender mais vezes contra adversários. Mestrese discípulos se põem a dormir no seu posto tão logo não hajainimigo em campo.

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Falando de uma maneira gera l, isso é a inda verdade arespeito de todas as doutrinas tradicionais – das de prudência econhecimento da vida também, tanto quanto das de moral ereligião. Todas as línguas e literaturas estão cheias de observa-ções gera is sobre a vida , sobre o que ela é e sobre como nela seconduzir – observações que todos conhecem, que todos repetem,ou ouvem com aquiescência , que são acolhidas como truísmos,e de que, contudo, a mor parte das pessoas apreendem verdadei-ramente o sentido, pela primeira vez, quando a experiência ,gera lmente de natureza dolorosa , o torna uma rea lidade paraelas. Quantas vezes, ao sofrer uma desgraça ou contrariedadeimprevista , uma pessoa se lembra de a lgum provérbio ou dito,familiar a ela toda a sua vida , cujo significado, se o houvessesentido antes, a lguma vez, como o sente agora , a teria sa lvo daca lamidade. Há para isso, de fato, razões a mais da ausência dediscussão: há muitas verdades cujo pleno significado não podeser vivamente percebido sem que a experiência pessoa l no-lotenha feito presente. Mas muito mais se compreenderia dele, eessa compreensão se imprimiria muito mais profundamente noespírito, se a houvesse precedido o costume de ouvi-lo discutido,pró e contra , por gente que o compreendia . A fata l tendênciahumana para renunciar ao pensamento a respeito do que hámuito não é duvidoso, é a causa da metade dos seus erros. Foifeliz o escritor contemporâneo que se referiu ao “sono profundode uma opinião firmada”.

Mas como? ! – pode-se perguntar – é a ausência de unani-midade uma condição imprescindível do conhecimento verdadei-ro? Faz-se mister que uma parte dos homens persista no erro,para habilitar a lguém a perceber vivamente a verdade? Cessauma crença de ser rea l e vita l tão logo se veja gera lmente aceita ,e jamais se compreende e sente completamente uma proposiçãosem que a lguma dúvida a seu respeito remanesça? Logo que oshomens hajam unanimemente aceito uma verdade, perece eladentro deles? A fina lidade mais a lta e o melhor resultado dainteligência aperfeiçoada, pensou-se até aqui, consiste na uniãocada vez maior da humanidade no reconhecimento de todas asverdades importantes; e só dura o acordo enquanto não a lcança-do o seu objetivo? Perecem os frutos da conquista pelo perfeitoacabamento da vitória?

Não afirmo ta l coisa . À medida que a humanidade seaperfeiçoe, o número das doutrinas não mais discutidas ou postasem dúvida crescerá e o bem-estar humano quase pode ser medido

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pelo número e peso das verdades que atingiram o ponto de nãoser mais contestadas. A cessação de séria controvérsia , numaquestão após outra , é um dos incidentes necessários da consoli-dação da opinião – consolidação tão sa lutar no caso de opiniõesverdadeiras quanto nociva no de errôneas. Mas, a inda que essegradual desaparecimento dos claros na uniformidade da opiniãoseja necessário em ambos os sentidos do termo, isto é, a umtempo inevitável e indispensável, não somos obrigados a concluirdaí que todos os seus efeitos devam ser benéficos. A perda de tãoimportante auxílio à apreensão viva e inteligente da verdade,qual seja o proporcionado pela necessidade de explaná-la aosantagonistas, ou de defendê-la contra eles, embora insuficientepara pesar mais que o benefício do seu universa l reconhecimen-to, não é um prejuízo insignificante. Confesso que gostaria dever, onde não é mais possível ta l vantagem, os condutores doshomens esforçando-se por encontrar um sucedâneo para ela –a lguma invenção que faça as dificuldades do problema tãopresentes à consciência dos homens como seriam se produzidaspela pressão de um campeão antagonista ansioso por os conver-ter.

Mas, ao invés de procurarem invenções com esse propósito,perderam as que anteriormente possuíam. A dia lética socrática ,tão magnificamente exemplificada nos diá logos platônicos, foiuma invenção dessa espécie. Constituía , essencia lmente, umadiscussão negativa das grandes questões da filosofia e da vida ,orientada com consumada perícia , no sentido de convencera lguém, que se limitara a acolher os lugares comuns da opiniãocorrente, de que não compreendia o assunto – não emprestava ,até então, significado definido às doutrinas professadas; a fim deque, tornando-o ciente da sua ignorância , o pudesse pôr nocaminho de uma crença estável, que repousasse numa apreensãoclara tanto do significado das doutrinas como da sua prova. Asdisputas da escola na Idade Média tinham um objetivo a lgosemelhante. Destinavam-se a assegurar que o discípulo com-preendesse a própria opinião e, por correlação necessária , aopinião oposta , podendo demonstrar os fundamentos de uma econfutar os da outra . Essas últimas discussões tinham, na verda-de, o incurável defeito de serem as premissas postas tiradas daautoridade, não da razão; e, como disciplina menta l, eram, atodos os respeitos, inferiores à poderosa dia lética que formou osintelectos dos Socratici viri. Mas o espírito moderno deve muitomais a ambas do que se quer gera lmente admitir, não contando

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os modos atuais de educação nada que supra , em toda a pleni-tude, a fa lta de uma ou de outra . Uma pessoa que deriva toda asua instrução de professores ou de livros, a inda que escape àtentação habitual de se contentar com o simples acúmulo denoções, não é obrigada a ouvir ambos os lados. E assim se estálonge, mesmo entre pensadores, da freqüência no conhecimentodas duas faces de uma questão. E a parte mais fraca do que cadaum diz em defesa de uma opinião sua é a que se pretende réplicaaos adversários. É feitio da época presente depreciar a lógicanegativa – essa que aponta debilidades na teoria ou erros naprática , sem estabelecer verdades positivas. Tal crítica negativaseria , sem dúvida, bastante pobre como resultado definitivo.Como processo, porém, de atingir uma convicção ou um conhe-cimento positivos, dignos do nome, nunca se dirá demais do seuvalor. E, enquanto não nos prepararmos sistematicamente parao seu uso, haverá poucos grandes pensadores, e uma baixa médiagera l de inteligência , em quaisquer ramos especulativos que nãosejam a matemática e a fís ica . Em qualquer outra matéria ,opinião a lguma merece o nome de conhecimento senão namedida em que aquele que a professa tenha atravessado, por si,ou por imposição a lheia , o mesmo processo menta l que lhe seriaexigido numa controvérsia a tiva com antagonistas. Isso, pois,que, ausente, se revela tão indispensável, mas também tão difícil,criar, como é absurdo, mais do que absurdo, repelir quandoespontaneamente se oferece! Se existem pessoas que contestamuma opinião aceita , ou que o farão se a lei ou a opiniãopermitirem, sejamos gratos a elas, tenhamos os nossos espíritosabertos à compreensão do que digam, e rejubilemo-nos por haverquem por nós faça o que de outra forma devemos fazer com muitomaior trabalho, se a lguma estima a limentamos pela certeza epela vita lidade das nossas convicções.

Ainda resta fa lar de uma das principais causas do carátervanta joso da diversidade de opiniões, causa que continuará aatuar até que a humanidade chegue a um estado de adiantamen-to intelectual que, no presente, parece uma inca lculável distân-cia . Consideramos até aqui, apenas, duas possibilidades: que aopinião aceita seja fa lsa e, conseqüentemente, a lguma outraopinião verdadeira ; ou que seja verdadeira a opinião aceita , casoem que um conflito com o erro oposto é essencia l a umaapreensão clara e a um sentimento profundo da sua verdade.Existe, porém, um caso mais comum: ao invés de uma dasdoutrinas em conflito ser verdadeira e a outra fa lsa , partilham as

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duas entre si a verdade, e a opinião não-conformista é necessita-da para completar a verdade de que a doutrina aceita incorporaapenas parte. As opiniões populares, sobre assuntos não eviden-tes aos sentidos, são muitas vezes verdadeiras, mas raras vezes,ou nunca, completamente verdadeiras. São uma parte da verdade– às vezes uma parte maior, às vezes menor, mas sempre exage-rada, adulterada e desligada das verdades pelas quais se deveacompanhar e limitar. As opiniões heréticas, de outro lado, são,gera lmente, a lgumas dessas verdades suprimidas ou negligencia-das, que quebram as cadeias que as prendem, e procuramreconciliar-se com a verdade contida na opinião comum, ouafrontá-la como inimiga apresentando-se, com análogo exclusi-vismo, como a verdade completa . O último caso é, a té aqui, omais freqüente, da mesma forma que no espírito humano ounilatera lismo constituiu sempre a regra , é o multila tera lismo aexceção. Por isso, mesmo nas revoluções de opinião, uma parteda verdade, em regra , deca i, enquanto a outra ascende. Mesmoo progresso que deveria somar uma parte à outra , na maior partedas vezes apenas substitui uma verdade parcia l e incompleta poroutra verdade parcia l e incompleta , consistindo o melhoramentoem que o novo fragmento da verdade é mais necessitado pelaépoca, é mais adaptado às suas exigências, que o que ele desloca .Dado esse caráter parcia l das opiniões dominantes, a inda quandorepousam sobre uma base verdadeira , cada opinião que incorpo-ra a lgo da parte da verdade omitida pela opinião corrente, deveser considerada preciosa , qualquer que seja a quantidade de erroe confusão com que a verdade a í se mescle. Nenhum julgadorprudente dos negócios humanos sentir-se-á obrigado a se indig-nar, porque aqueles que forçam a nossa atenção para verdadesem que devíamos ter reparado de outra maneira , passam por a ltosobre a lgumas das verdades, que enxergamos. Antes pensaráque, na medida da unilatera lidade de uma verdade popular, épreferível conte a verdade impopular defensores também unila-tera is, pois esse é, em regra , o meio mais enérgico e próprio paracompelir a a tenção relutante a se voltar para o fragmento desabedoria que se proclama a sabedoria inteira .

Assim, no século XVIII, quando quase todas as pessoasinstruídas, e todas as não instruídas que as primeiras conduziam,admiravam perdidamente tudo a que se chama civilização, e asmaravilhas da moderna ciência , literatura e filosofia , e, exage-rando muito o grau de diferença entre o homem moderno e oantigo, a limentavam a crença de que toda essa diferença era em

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seu favor – com que sa lutar abalo explodiram em seu meio osparadoxos de Rousseau! Foram granadas que deslocaram amassa de opinião unilatera l e forçaram os seus elementos a serea justarem em melhor forma e com ingredientes novos. Asopiniões correntes não estavam, em conjunto, mais longe daverdade que as de Rousseau; ao contrário, estavam mais próxi-mas: continham mais verdade positiva e muito menos erro. Nãoobstante, na doutrina de Rousseau repousa , e com ela desceu orio da opinião, considerável soma precisamente daquelas verda-des de que a opinião popular carecia . E essas constituíram odepósito que ficou ao baixarem as águas. A dignidade superiorda vida simples, o efeito de enervamento e desmoralizaçãoproduzido pelas peias e hipocrisias da sociedade artificia l, sãoidéias que jamais se ausentaram inteiramente dos espíritos cul-tivados desde Rousseau. Elas provocarão, com o tempo, asdevidas conseqüências, embora na atualidade demandem defesatão resoluta como outrora , e defesa por atos, pois as pa lavrasesgotaram, no assunto, o seu poder.

Por outro lado, em política , é quase um lugar comum queum partido de ordem ou estabilidade, e um partido de progressoou reforma, são ambos elementos necessários de uma condiçãosadia da vida política , a té que um ou outro tenha ampliado o seupoder menta l o necessário para se tornar um partido ao mesmotempo de ordem e de progresso, sabendo e distinguindo o que épróprio para ser preservado e o que deve ser suprimido. Cada umdesses modos de pensar deriva a sua utilidade das deficiênciasdo outro. Mas é numa grande medida a oposição do outro queconserva cada um dentro dos limites da razão e da sanidade. Amenos que opiniões favoráveis à democracia e à aristocracia , àpropriedade e à igualdade, à cooperação e à competição, àluxúria e à abstinência , à sociabilidade e à individualidade, àliberdade e à disciplina , e todos os outros permanentes antago-nismos da vida prática , sejam exprimidos com igual liberdade, edemonstrados e defendidos com igual ta lento e energia , nãohaverá probabilidade de ambos os elementos obterem o que lheé devido: um prato da ba lança subirá na certa , e o outro descerá .A verdade, nos grandes negócios práticos da vida , é tanto umaquestão de conciliar e combinar contrastes que muito poucos têmo espírito suficientemente largo e imparcia l para levar a efeitoesse a justamento com uma correção aproximada. Torna-se pre-ciso proceder a ele pelo áspero método de uma luta entrecombatentes a pelejarem sobre bandeiras hostis. Em qualquer

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das grandes questões abertas há pouco enumeradas, se uma dasduas opiniões possui melhor título, não meramente a ser tolera-da, mas a inda a ser encora jada e protegida, é a que, no tempo eno lugar dados, se acha eventualmente em minoria . Essa é aopinião que, no minuto, representa os interesses negligenciados,a face do bem-estar humano que se encontra em perigo de obtermenos do que lhe compete. Eu sei que não existe, neste país,nenhuma intolerância de opiniões quanto a muitos desses tópi-cos. Eles foram aduzidos para patentear, por exemplos admitidose variados, o caráter universa l do fato de somente através dadiversidade de opiniões haver, no estado presente do intelectohumano, probabilidade de jogo lícito para todos os aspectos daverdade. Quando se acham pessoas que fazem exceção, a respeitode qualquer assunto, à aparente unanimidade do mundo, ésempre provável, a inda que o mundo esteja certo, que os dissi-dentes tenham algo a dizer digno de ser ouvido, e que a verdadealgo perdesse com o seu silêncio.

Pode-se objetar: “Alguns dos princípios aceitos, especia l-mente nos assuntos mais elevados e vita is, são mais do que meiasverdades. A moralidade cristã , por exemplo, é a verdade completano assunto, e, se a lguém ensinar uma moralidade diversa , estaráinteiramente em erro”. Como este é o mais importante na prática ,de todos os casos, nenhum é mais adequado para pôr à prova amáxima gera l. Antes, porém, de a firmar o que seja ou deixe deser, a moralidade cristã seria desejável fixar-nos sobre o que seentenda pela expressão. Se esta significa a moralidade do NovoTestamento, eu me admiro de que a lguém possa supor, conhe-cendo-a do próprio livro, que tenha sido anunciada como doutri-na completa de moral, ou haja pretendido sê-lo. O Evangelhosempre se refere a uma moralidade preexistente, e restringe osseus preceitos aos pontos particulares em que essa moralidadedeveria ser corrigida , ou ultrapassada por uma mais larga e maiselevada. Além disso, ele se exprime nos termos mais gera is,muitas vezes impossíveis de ser interpretados litera lmente, epossui antes o cunho de poesia ou eloqüência que o caráterpreciso de legislação. Extra ir dele um corpo de doutrina éticanunca foi possível sem lhe acrescentar o Velho Testamento – istoé, um sistema trabalhado rea lmente com esmero, mas a muitosrespeitos bárbaro, e destinado a um povo bárbaro. São Paulo,inimigo franco desse modo judaico de interpretar a doutrinaexcedendo o esquema do seu Mestre, igualmente presume umamoralidade preexistente – a saber, ao dos gregos e romanos. E

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buscou, no seu ensino aos cristãos, acomodar-se sistematicamen-te a esta , ao ponto de aparentemente autorizar a escravidão. Oque se denomina moralidade cristã , e melhor se denominariateológica , não foi a obra de Cristo ou dos Apóstolos, mas é deorigem muito posterior, tendo sido gradualmente construída pelaIgreja Católica dos cinco primeiros séculos, e, embora não impli-citamente adotada pelos modernos e pelos protestantes, tem sidomuito menos modificada por eles do que se podia esperar. Pelamaior parte, com efeito, eles se contentaram em suprimir asadições que se lhe fizeram na Idade Média , cada seita suprindo-ascom adições novas adaptadas ao próprio caráter e tendências.Que a humanidade muito deve a essa moralidade e aos seusprimitivos preconizadores, eu seria o último a negar. Mas nãotenho escrúpulo em dizer que, em muitos pontos importantes, éincompleta e unilatera l, e que, se idéias e sentimentos, nãoacolhidos por ela , houvessem deixado de contribuir para aformação da vida e do caráter europeus, os negócios humanos seencontrariam pior do que se encontram. A chamada moralidadecristã possui todos os caracteres de uma reação: é, em grandeparte, um protesto contra o paganismo. O seu idea l é maisnegativo que positivo, antes passivo que ativo, Inocência maisque Nobreza , Abstinência do Mal antes que enérgica Procura doBem. Nos seus preceitos, como já se disse com felicidade, “tu nãodeves” predomina indevidamente sobre “tu deves”. No seu horrorda sensualidade, ela fez do ascetismo um ídolo, que gradualmen-te se transformou num ídolo de lega lidade. Apresentou a espe-rança do céu e o pavor do inferno como os motivos indicados econvenientes para uma vida virtuosa , com o que desceu muitoabaixo dos melhores dentre os antigos. Esse fundamento comu-nicou à moralidade humana um caráter essencia lmente egoísta ,desligando os sentimentos de cada homem dos interesses dosseus semelhantes, sa lvo na medida em que, para levar estes emconta , se apresenta um estímulo de interesse próprio. É, essen-cia lmente, uma doutrina de obediência passiva : inculca submis-são a todas as autoridades estabelecidas, as quais, na verdade,não devem ser ativamente obedecidas quando ordenam o que areligião proíbe, mas a que não se deve resistir, contra quemmenos a inda se deve rebelar, por qualquer soma de injustiça quenos façam. E, enquanto na moralidade das melhores naçõespagãs, os deveres para com o Estado mantêm ainda um lugardesproporcionado, infringente da justa liberdade do indivíduo,na ética puramente cristã esse grande ramo do dever é escassa-mente tratado e reconhecido. É no Corão, não no Novo Testa-

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mento, que se lê a máxima: “O governante que designa umhomem para uma função quando há nos seus domínios outromais qualificado para ela , peca contra Deus e contra o Estado”.O que de pequeno reconhecimento obtém na moralidade moder-na a idéia de obrigação para com o público, deriva-se de fontesgregas e romanas, não de cristãs. Como também, na moralprivada, o que quer que exista de magnanimidade, de elevaçãode espírito, de dignidade pessoa l, mesmo o senso de honra , éderivado da parte puramente humana, não religiosa , da nossaeducação, e jamais poderia ter surgido de um tipo de ética emque o único va lor cabalmente reconhecido é o da obediência .

Ninguém está mais longe do que eu, de pretender que essesdefeitos sejam necessariamente inerentes à ética cristã qualquerque seja a forma por que ela se possa conceber. Ou que não hajaconciliação possível entre ela e os muitos requisitos de umacompleta doutrina moral a que não satisfaz. Muito menos euinsinuaria isso das doutrinas e dos preceitos propriamente deCristo. Creio que os ditos de Cristo evidenciam, tanto quanto eupossa vê-lo, o que pretendiam ser; que eles não são inconciliáveiscom coisa a lguma requerida por uma moralidade compreensiva ;que é possível juntar-lhes tudo o que é excelente em ética , semmaior violência à sua linguagem que a que lhe têm feito os quetêm tentado deduzir deles um sistema prático qualquer deconduta . Mas é perfeitamente compatível com isso julgar que elescontêm, e pretenderam conter, apenas uma parte da verdade.Muitos dos elementos essencia is da moralidade mais elevadaestão entre as coisas que deixaram de ser a tendidas, e não se tevemesmo a intenção de atender, nas expansões do fundador docristianismo que ficaram registradas. E o sistema ético erigidopela Igreja Cristã , sobre a base daqueles ensinamentos, os põeinteiramente de lado. Sendo assim, parece-me um grande erropersistir na tentativa de encontrar na doutrina cristã aquelanorma completa para a nossa orientação que o seu autor preten-deu sancionar e forta lecer, mas só parcia lmente providenciar.Creio também que essa teoria estreita se está tornando, pratica-mente, um grave mal, prejudicando muito a instrução e treinomorais que tantas pessoas bem intencionadas, já agora , se esfor-çam por promover. Temo muito que, procurando formar oespírito e os sentimentos segundo um tipo exclusivamente reli-gioso, e a fastando os padrões seculares (fa lta-lhes denominaçãomelhor) que até aqui coexistiram com a ética cristã e a comple-taram – recebendo a lgo do espírito desta e a esta infundindo a lgo

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do seu espírito deles – venha a resultar, e já está mesmoresultando, um tipo baixo, abjeto, servil, de caráter, que, subme-tendo-se como possa ao que julga a Suprema Vontade, sejaincapaz de se elevar à concepção da Suprema Bondade ou de sesimpatizar com ela . Creio que uma ética diversa de qualquer quese tire de fontes exclusivamente cristãs deve existir ao lado daética cristã , para produzir a regeneração moral da humanidade.E que o sistema cristão não foge à regra de que, num estadoimperfeito do espírito humano, os interesses da verdade exigemque haja opiniões diversas. Do conhecimento das verdades mo-ra is a lheias ao cristianismo não decorrerá para os homens anecessária ignorância de a lguma das que ele contém. Se ocorrera a lguém o preconceito ou a incompreensão de negar estas emvirtude daquelas, isso será , sem nenhuma dúvida, um mal. Masdesse mal não podemos esperar permanecer sempre isentos, edeve ele ser encarado como o preço de um bem inestimável. Éinevitável e é indispensável o protesto contra a pretensão exclu-sivista de uma parte da verdade, de ser a verdade toda. E, se umimpulso de reação tornar injustos, por seu turno, os que protes-tam, essa unilatera lidade, como a outra , pode ser lamentada, masdeve ser tolerada. Se os cristãos querem ensinar os descrentes aserem justos com o cristianismo, devem ser justos, por sua vez,com a descrença. Não se pode servir à verdade esquivando-se aofato, sabido de qualquer um que possua a mais vulgar familiari-dade com a história literária , de que grande parte dos mais nobrese va liosos ensinamentos morais tem sido obra de homens, nãoignorantes da fé cristã , mas que, depois de a terem conhecido, arejeitaram.

Não pretendo que o mais ilimitado uso da liberdade deenunciar todas as opiniões possíveis poria fim aos males dosectarismo religioso ou filosófico. É certo que toda verdade deque os homens de capacidade estreita fa lam com fervor, éafirmada, inculcada, e, a inda, de muitas formas levada à prática ,como se outra não existisse no mundo, ou, em todo o caso, comose não existisse nenhuma que pudesse limitar ou modificar aprimeira . Reconheço que a tendência de todas as opiniões parase tornarem sectárias, não se sana com a mais livre discussãopossível, antes, freqüentemente, por essa forma aumenta e seexacerba. A verdade que se devia ver e não se viu, é, então,rejeitada do modo mais violento, porque proclamada por adver-sários. Mas não é no partidário apaixonado, e sim no mais ca lmoe desinteressado espectador, que essa colisão de opiniões produz

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o seu sa lutar efeito. Não o violento conflito entre partes daverdade, mas a silenciosa supressão da metade dela , eis o formi-dável perigo. Há sempre esperança quando as pessoas são força-das a ouvir os dois lados. É quando atendem apenas a um, queos erros se endurecem em preconceitos, e a verdade cessa decausar o efeito de verdade por se ter exagerado em fa lsidade. Edesde que há poucos atributos mentais mais raros que a faculda-de discriminatória que pode traduzir-se numa decisão inteligenteentre os dois lados de uma disputa , dos quais apenas um érepresentado por advogado, a verdade só tem probabilidades naproporção em que cada face sua, cada opinião que incorpora umafração sua, não somente acha advogados, mas a inda é tãodefendida quanto necessário para ser escutada.

Reconhecemos, agora , a necessidade para o bem-estarmenta l humano (de que todo o bem-estar humano de outranatureza depende), da liberdade de opinião, e da liberdade deexprimir a opinião. E isso com quatro fundamentos distintos, querecapitularemos brevemente neste passo.

Primeiro, se uma opinião é compelida ao silêncio, é possívelseja ela verdadeira , em virtude de a lgo que podemos vir aconhecer com certeza . Negar isso é presumir a nossa infa libili-dade.

Segundo, mesmo que a opinião a que se impôs silêncio sejaum erro, pode conter, e muito comumente contém, uma parte deverdade. E, uma vez que a opinião gera l ou dominante sobre umassunto é raramente, ou nunca, a verdade inteira , só pela colisãodas opiniões contrárias se faz provável se complete a verdadecom a parte ausente.

Terceiro, a inda que a opinião aceita não seja apenas verda-deira , mas a verdade toda, só não será assimilada como umpreconceito, com pouca compreensão ou pouco sentimento dassuas bases racionais, pela mor parte dos que a adotam, se aceitarser, e efetivamente for, vigorosa e ardentemente contestada.

E não somente isso, mas, em quarto lugar, se ta l não se der,o significado mesmo da doutrina estará em perigo de se perder,de se debilitar, de se privar do seu efeito vita l sobre o caráter ea conduta : o dogma se tornará uma mera profissão formal,ineficaz para o bem, mas a estorvar o terreno e a impedir osurgimento de qualquer convicção efetiva e profunda, vinda darazão ou da experiência pessoa l.

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Antes de abandonar o assunto, é conveniente considerar,um pouco, a assertiva dos que dizem dever permitir-se a livreexpressão de todas as opiniões com a condição de ser a sua formamoderada, e de não se transporem os limites da discussão lea l.Muito se poderia dizer da impossibilidade de fixar onde devamser colocados esses supostos limites; porque, se o critério for aofensa àqueles cujas opiniões são atacadas, me parece que aexperiência testifica se dá a ofensa quando o ataque é eficaz epoderoso; e cada contraditor que os atropela vigorosamente e aque acham difícil responder, se lhes a figura , se sobre o assuntomanifesta qualquer sentimento forte, um adversário imoderado.Mas isso, embora importante consideração de um ponto de vistaprático, submerge numa objeção mais fundamenta l. Não sofredúvida que a maneira de a firmar uma opinião, mesmo umaopinião verdadeira , pode ser muito criticável, e incorrer legiti-mamente em severa censura . As principais ofensas do gênero sãota is, porém, que é, as mais das vezes, impossível determinar umacondenação, a não ser por casual infidelidade a si mesmo. A maisgrave delas é discutir sofisticamente, suprimir fa tos ou argumen-tos, fa lsear os elementos do caso, adulterar a opinião contrária .Mas tudo isso, a inda no mais a lto grau, é feito tão continuamentede boa-fé, por pessoas não consideradas ignorantes e incompe-tentes, e que nem a outros respeitos merecem ser consideradas,ta is que raras vezes se pode, com fundamentos adequados,estigmatizar, em sã consciência , a deturpação como moralmenteculposa . E a inda menos poderia a lei pretender interferir nessaespécie de mau procedimento nas controvérsias. Quanto ao quecomumente se entende por discussão imoderada – a saber, ainvectiva , o sarcasmo, o personalismo, e similares, a denúnciadessas armas seria digna de maior simpatia se a lguma vez setivesse proposto interdizê-la igualmente a ambos os lados. Dese-ja-se, porém, restringir o seu uso somente contra as opiniõesdominantes. Contra as não dominantes, podem não apenas serusadas sem a reprovação gera l, mas a inda trarão ao que as usaro louvor do zelo honesto e da indignação honrada. Entretanto,qualquer prejuízo que resulte do seu uso, é maior quandoempregadas contra os relativamente indefesos; e qualquer van-tagem deslea l que possa decorrer para uma opinião dessa manei-ra de discutir, aproveita quase exclusivamente à s opiniõesaceitas. A pior fa lta desse gênero que se pode cometer numapolêmica é estigmatizar os defensores da opinião contrária comomaus e imorais. Os que sustentam uma opinião impopular estãoparticularmente expostos a ca lúnias dessa espécie, porque, em

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gera l, são poucos e sem influência , e ninguém, a não ser eles, sesente muito interessado em que se lhes faça justiça . Aos queatacam uma opinião dominante, essa arma é, no entanto, pelanatureza do caso, negada; eles não podem usá-la com segurançaprópria , nem, se pudessem, ganhariam senão provocar repug-nância pela causa que defendem. Em regra , as opiniões contrá-rias às comumente admitidas só podem conseguir a tenção poruma linguagem estudadamente moderada, e pelo mais cautelosoevitamento de ofensas desnecessárias. Sempre que deixaram,mesmo num leve grau, de se desviar destas, perderam terreno,enquanto que o vitupério desmesurado da parte da opiniãodominante rea lmente a fasta o povo de professar as opiniõescontrárias e de dar ouvido aos que as professam. No interesse,pois, da verdade e da justiça , é muito mais importante restringireste emprego da linguagem de vitupérios do que o outro. Assim,por exemplo, se se tivesse de escolher, haveria muito maisnecessidade de desencora jar os ataques ofensivos à descrençaque à religião. É, entretanto, óbvio que a lei e a autoridade nãodevem restringir nem uma nem outra . E, à opinião cabe, em cadaespécie concreta , determinar o seu veredicto segundo as circuns-tâncias do caso individual, condenando todo aquele, seja qual foro seu partido no debate, em cujo modo de defesa se manifestefa lta de candura , malignidade, hipocrisia , ou intolerância desentimento. Mas não deve inferir esses vícios do partido tomado,a inda que seja o contrário do nosso. E é obrigação sua prestarhomenagem, sem considerar a opinião defendida, ao que possuica lma para ver e honestidade para informar que os antagonistase suas opiniões rea lmente são, nada exagerando em seu descré-dito, e não dando as costas a nada que deponha, ou se suponhadepor, em favor deles. Essa é a rea l mora lidade da discussãopública . Sou feliz em pensar que, se é muitas vezes violada, há ,contudo, muitos polemistas que a observam cabalmente, e a indaum grande número que conscienciosamente se esforça por fazê-lo.

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CAPÍTULO III

Da in d iv id u a lid a d e , c o m o u m d o se le m e n to s d o b e m -e s ta r

S endo essas as razões que tornam imperativo tenham os ho-mens liberdade de formar opiniões e de exprimi-las sem

reservas; e essas as funestas conseqüências para a naturezaintelectual humana e, a través desta , para a natureza moral, seessa liberdade não for concedida ou, a despeito de proibição,afirmada; examinemos, em seguida, se as mesmas razões nãorequerem a liberdade dos homens para agir segundo as suasopiniões – para levá-las à prática , na sua vida , sem obstáculo,físico ou moral, da parte dos seus semelhantes, enquanto o façampor sua própria conta e risco. Esta última cláusula é, sem dúvida,indispensável. Ninguém pretende que as ações devam ser tãolivres como as opiniões. Pelo contrário, mesmo as opiniõesperdem a sua imunidade quando as circunstâncias em que seexprimem são ta is que a sua expressão constitui um incitamentopositivo a a lgum ato nocivo. A opinião de que os comerciantesde cerea is matam à fome o pobre, ou a de que a propriedadeprivada é um latrocínio, não devem ser molestadas quandosimplesmente veiculadas pela imprensa , mas podem incorrer empena justa quando expostas ora lmente, ou afixadas sob a formade cartaz, em meio a uma turba excitada, reunida diante da casade um comerciante de cerea is. Atos de qualquer espécie que, semcausa justificável, produzem dano a outrem, podem ser refreadospelos sentimentos desfavoráveis e, quando necessário, pela inter-ferência ativa da coletividade, e, nos casos mais importantes,exigem mesmo ta l. A liberdade do indivíduo deve ser, assim, em

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grande parte, limitada – ele não deve tornar-se prejudicia l aosoutros. Mas, se se abstém de molestar os outros no que lhesconcerne, e meramente age segundo a própria inclinação ejulgamento, em assuntos que dizem respeito a ele próprio, asmesmas razões que demonstram dever a opinião ser livre, pro-vam também que se lhe deve permitir, sem o importunar, leve àprática as suas opiniões à própria custa . Que os homens não sãoinfa líveis; que as suas verdades, pela mor parte, são meiasverdades; que a unidade de opinião, a não ser quando resulta dese compararem, da forma mais ampla e livre, opiniões opostas,não é desejável, nem a diversidade constitui mal, e sim um bem,até que a humanidade seja muito mais capaz do que no presente,de reconhecer todos os aspectos da verdade; eis princípiosaplicáveis aos modos de ação dos homens não menos que às suasopiniões. Assim como é útil, enquanto a humanidade seja imper-feita , que haja diferentes opiniões, assim também o é que hajadiferentes experiências de maneiras de vida , que se dêem largaslivremente, sa lvo a injúria a outrem, às variedades de caráter, eque o mérito dos diversos modos de vida seja praticamenteprovado, quando a lguém se julgue em condições de experimen-tá-los. É desejável, em suma, que, nas coisas que não digamrespeito primariamente aos outros, a individualidade se possaafirmar. Onde a norma de conduta não é o próprio caráter, masas tradições e costumes a lheios, fa lta um dos principais ingre-dientes da felicidade humana, e, de modo completo, o principa lingrediente do progresso individual e socia l.

Na defesa desse princípio, a maior dificuldade que seencontra não reside na apreciação dos meios adequados a umfim reconhecido, mas na indiferença gera l ao próprio fim. Sefosse sentido que o livre desenvolvimento da individualidade éum dos elementos capita is da essência do bem-estar, que ele nãoé apenas um elemento coordenado com tudo que se designa pelostermos – civilização, instrução, educação, cultura , mas é, elepróprio, parte e condição necessária de todas essas coisas, nãohaveria perigo de que a liberdade fosse subestimada, e a delimi-tação de fronteiras entre ela e o controle socia l não apresentariadificuldade fora do comum. O mal, porém, está em que aespontaneidade individual quase não é reconhecida, pelos modoscomuns de pensamento, como tendo um valor intrínseco, oucomo merecedora , por si mesma, de atenção. A maioria , achan-do-se satisfeita com os procedimentos atuais da humanidade(pois é ela que os faz o que são), não pode compreender por que

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ta is procedimentos não são suficientemente bons para a lguém.E, o que é mais, a espontaneidade não participa do idea l damaioria dos reformadores socia is e morais, mas é antes olhadacom desconfiança, como obstrução, fonte de perturbações e derebeldia , à acolhida gera l do que esses reformadores têm comoo melhor para a humanidade. Poucas pessoas fora da Alemanhasequer compreendem o sentido da doutrina de que Guilherme deHumboldt, eminente tanto como savant quanto como político,fez a matéria de uma dissertação – a doutrina de que “o fim dohomem, ou o que lhe é prescrito pelos eternos e imutáveisditames da razão, e não sugerido por desejos vagos e passageiros,é o mais elevado e harmonioso desenvolvimento dos seus poderesvisando constituir um todo acabado e consistente”; de que,portanto, o objeto “para o qual todo ser humano deve incessan-temente dirigir os seus esforços, e ao qual especia lmente aquelesque tencionam influenciar os seus semelhantes devem dar, sem-pre, a sua atenção, é a individualidade de poder e desenvolvi-mento”; de que para is so há dois requis itos , “liberdade evariedade de situações”, e da união dos dois surge “o vigorindividual e a múltipla diversidade” que se combinam em “origi-nalidade”6.

Todavia , se o povo pouco se acostuma a uma doutrina comoa de von Humboldt e se surpreende de que seja possível a tribuirtão a lto va lor à individualidade, deve-se não obstante pensar quea questão ta lvez seja apenas de grau. Ninguém tem, sobre oproblema da excelência na conduta , a opinião de que as pessoasdevam tão-somente copiar-se umas às outras. Ninguém afirmariaque não se deva pôr no próprio modo de vida , na direção dospróprios interesses, nenhum cunho do próprio discernimento oucaráter individual. De outro lado, seria absurdo pretender que oshomens devam viver como se nada se tivesse conhecido nomundo antes que a í chegassem, como se a experiência nadaainda houvesse feito no sentido de mostrar que um modo deexistência ou de conduta é preferível a outro. Ninguém nega queos indivíduos devam receber, na juventude, o ensino e o treinonecessários para conhecerem os resultados verificados da expe-riência humana e deles se beneficiarem. Mas constitui o privilé-gio e a condição específica de um ser humano chegado àmadureza das suas faculdades usar e interpretar de uma maneira

6. The Sphere and Duties o f Government ( traduz ido do a lemão) , pelo BarãoGuilherme de Humboldt, p. 11-13.

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própria a experiência . Cabe-lhe descobrir que parte da experiên-cia registrada se aplica , com propriedade, às suas circunstânciase caráter. As tradições e costumes a lheios, em que se manifestamcertas normas, provam, até certo ponto, a justeza destas, sendoo que a experiência ensinou aos outro s . Prova presuntivamente,e têm elas, assim, direito à deferência de um indivíduo. Mas, em1º lugar, a experiência a lheia pode ter sido muito estreita , ou nãoter sido corretamente interpretada. Em 2º lugar, embora correta ,a interpretação pode ser inconveniente ao terceiro que a consi-dera . Costumes se fizeram para circunstâncias costumeiras ecaracteres costumeiros; e as circunstâncias que rodeiam esseterceiro, e o seu caráter, podem não ser costumeiros. Em 3º lugar,mesmo que os costumes sejam bons como costumes, e a indaconvenientes ao terceiro, conformar-se ao costume meramentecomo costume não educa nem desenvolve no indivíduo nenhumadas qualidades que são o dom distintivo de um ser humano. Asfaculdades humanas de percepção, juízo, sentimento discrimina-tório, a tividade menta l, mesmo preferência moral, só se exerci-tam fazendo uma escolha. Quem faz a lgo porque seja o costume,não escolhe. Não ganha prática quer de discernir quer de desejaro melhor. Os poderes mentais e morais, como os musculares, sóse aperfeiçoam pelo uso. As faculdades não são postas emexercício quando se faz a lgo meramente porque os outros fazem,nem quando se crê a lgo só porque os outros crêem. Se osfundamentos de uma opinião não são concludentes para a razãodo indivíduo, essa razão não pode ser robustecida , mas antes seenfraquecerá adotando ta l crença. E se os motivos de um ato nãosão ta is que se coadunem com os sentimentos e o caráter dapessoa (quando não este jam em causa a feição ou direitosa lheios), esse ato torna os sentimentos e o caráter inertes eentorpecidos, ao invés de ativos e enérgicos.

Aquele que deixa o mundo, ou a parte do mundo a quepertence, escolher o seu plano de vida em seu lugar, não necessitade nenhuma faculdade a mais da imitação simiesca . Aquele queescolhe por si o próprio plano, emprega todas as suas faculdades.Deve usar a observação para ver, o raciocínio e o juízo paraprever, a a tividade para colher materia is de decisão, a discrimi-nação para decidir, e, quando há decidido, a firmeza e o auto-controle para se conservar fiel à decisão deliberada. E essasqualidades, ele as requer e exercita na proporção exata em queé ampla a parte da sua conduta determinada de acordo com opróprio juízo e sentimento. Talvez sem qualquer dessas coisas

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pudesse ele tomar por a lgum bom caminho e a fastar-se daestrada do mal. Qual, porém, seria , então, o seu va lor como serhumano? Realmente, importa não só o que é feito, mas tambémquem o faz. Entre as obras em cujo aperfeiçoamento e embele-zamento o homem faz bom emprego da sua vida , está , semdúvida, o próprio homem. Supondo se pudesse obter que máqui-nas – autômatos com forma humana – construíssem as casas,cultivassem o trigo, pelejassem as bata lhas, processassem ascausas, erigissem as igrejas, fizessem as orações, muito se perde-ria em trocar por elas mesmo os homens e as mulheres quehabitam, hoje, as partes mais civilizadas do mundo, e que são,seguramente, tão-só miseráveis espécimes do que a natureza écapaz de produzir e produzirá . A natureza humana não é umamáquina a ser construída segundo modelo, e destinada a rea lizarexatamente a tarefa a ela prescrita , e sim uma árvore quenecessita crescer e desenvolver-se de todos os lados, na confor-midade da tendência das forças internas que a tornam uma coisaviva .

Conceder-se-á , provavelmente, que seja desejável se exer-cite a razão, e que uma inteligente observância ou mesmo,ocasionalmente, um inteligente desvio do costume va lha mais doque uma adesão cega e simplesmente mecânica a ele. Admite-se,até certo ponto, a autonomia da nossa razão, mas não há a mesmaboa vontade para admitir a autonomia dos nossos desejos, oupara aceitar que possuir impulsos autônomos, e de qualquerforça , não constitui um perigo e uma armadilha . Todavia , desejose impulsos são tanto uma parte do ser humano perfeito quantocrenças e freios; e os impulsos fortes são perigosos apenasquando não convenientemente contrabalançados, isto é, quandouma série de intenções e inclinações se forta lecem permanecen-do fracas e inativas, outras que com aquelas deveriam coexistir.Não é porque sejam fortes os desejos que os homens agem mal,e sim porque as consciências são fracas. Não há conexão natura lentre o impulso forte e a consciência fraca . A conexão natura l éoutra . Dizer que os desejos e sentimentos de uma pessoa são maisfortes e mais variados que os de outra é simplesmente dizer queela conta mais do materia l bruto da natureza humana, e, portan-to, é capaz, ta lvez, de maior mal, mas seguramente de maior bem.Impulsos fortes são, apenas, um outro nome de energia . A energiapode voltar-se para maus usos; pode-se sempre, contudo, praticarmaior bem com uma natureza enérgica do que com uma indo-lente e impassível. Sempre os que possuem os sentimentos mais

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natura is são os que, se os cultivam, podem fazê-los os maisvigorosos. As suscetibilidades fortes que dão vida e poder aosimpulsos pessoais são as mesmas que constituem a fonte do maisapaixonado amor à virtude e do mais severo domínio de simesmo. É pelo cultivo disso que a sociedade cumpre o seu devere protege os seus interesses, e não rejeitando o estofo de que sefazem os heróis por não saber ela fazê-los. Uma pessoa cujosdesejos e impulsos são autônomos – expressões da próprianatureza como a desenvolveu e modificou a cultura – é dita decaráter. Outra , cujos desejos e impulsos não possuem essa auto-nomia, não tem caráter, não o tem mais do que uma máquina avapor. Se a lém de próprios, os impulsos forem fortes e governa-dos por uma vontade vigorosa , a pessoa é dotada de um caráterenérgico. Quem quer que julgue não se dever encora jar o desen-volvimento da individualidade dos desejos e impulsos, devesustentar que a sociedade não carece de naturezas fortes – nãolhe convém contar muitas pessoas dotadas de muito caráter – eque um alto nível gera l de energia não é desejável.

Em alguns estágios primitivos da sociedade, essas forçaspoderiam ir, e foram, muito a lém do poder que a sociedade entãopossuía , de discipliná-las e controlá-las. Tempo houve em que oelemento da espontaneidade e individualidade foi excessivo, e oprincípio socia l com ele travou penosa luta . A dificuldade residiu,então, em induzir homens fortes de corpo e espírito a prestaremobediência a normas que lhes solicitavam o controle dos impul-sos. Para a vencerem, a lei e a disciplina , como os papas em lutacom os imperadores, a firmaram um poder sobre o homem todo,reivindicando o controle de toda a sua vida a fim de lhe contro-larem o caráter – para cujo domínio não encontrara a sociedadeoutro meio. Agora , porém, a vantagem cabe à sociedade sobre aindividualidade. E o perigo que ameaça a natureza humana nãoé o excesso, mas a deficiência dos impulsos e preferênciaspessoais. Mudaram imenso as coisas desde o tempo em que aspaixões dos que eram fortes pela posição ou por dotes pessoaisse achavam em habitual revolta contra as leis e ordenanças, edemandavam um refreamento rigoroso para permitirem às pes-soas sob o seu poder uma partícula de segurança. No nossotempo, da mais a lta à mais ba ixa classe socia l, todos vivem sobas vistas de uma censura hostil e temida. Não somente no queconcerne aos outros, mas a inda no que só diz respeito a elespróprios, o indivíduo e a família não se perguntam – que prefiro?ou que estaria conforme ao meu caráter e à minha intenção? ou

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que permitiria ao melhor e mais elevado em mim expandir-se, eo habilitaria a crescer e desenvolver-se? Eles se perguntam – queconvém à minha posição? que é usualmente feito por pessoas daminha classe e das minhas condições financeiras? Não digo queescolham o costumeiro de preferência ao que lhes dita a inclina-ção. A eles não sucede ter inclinações, a não ser a inclinação parao costumeiro. Dessa forma o espírito se dobra ao jugo; mesmono que se faz por prazer o conformismo é a primeira coisa emque se pensa ; as pessoas desejam em grupo; exercem a escolhaapenas entre coisas comumente feitas; fogem da peculiaridadede gosto e da excentricidade de conduta como de crimes; a té que,à força de não seguirem a própria natureza , não têm maisnatureza a seguir; as suas capacidades humanas mirram e mor-rem; tornam-se incapazes de desejos fortes e de prazeres natu-ra is ; e não apresentam, em regra , opiniões e sentimentosbrotados do íntimo, propriamente seus. É essa , entretanto, acondição desejável da natureza humana?

Assim é, na teoria ca lvinista . Nesta , a grande ofensa huma-na é a vontade autônoma. Todo o bem de que a humanidade écapaz está compreendido na obediência . Não tendes escolha;assim deve ser feito, e não de outra forma; “o que quer que nãoseja dever, é pecado”. Sendo a natureza humana radica lmentecorrupta , não há redenção para nenhuma pessoa enquanto nãomate dentro de si essa natureza . Para quem sustente essa teoriada vida , aniquilar a lguma das faculdades, capacidades e susceti-bilidades humanas não é um mal; o homem só necessita dacapacidade de se abandonar à mercê de Deus; e se usa das suasfaculdades para outro propósito que não executar eficazmenteessa suposta vontade, melhor será privado delas. Essa – a teoriado ca lvinismo. E é sustentada, numa forma mitigada, por muitosque não se consideram ca lvinistas, consistindo a mitigação eminterpretar menos asceticamente a referida vontade de Deus, demodo que, segundo esta , os homens devessem satisfazer a lgumasdas suas inclinações. É claro que não da maneira por elespreferida , mas por via da obediência , isto é, numa forma prescritapela autoridade e, portanto, pelas condições necessárias do caso,as mesmas para todos.

Há, no presente, sob formas assim insidiosas, uma fortetendência para essa estreita teoria da vida e para o opresso emesquinho tipo de caráter humano que ela preconiza . Muitaspessoas, sem dúvida, sinceramente pensam que os seres huma-nos assim tolhidos e minguados são como o seu Criador tencio-

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nou que fossem, precisamente como muitos julgam que asárvores são a lgo muito mais delicado quando aparadas, ouquando ta lhadas em figuras de animais, do que como a naturezaas fez. Mas se é da religião crer que o homem foi criado por umSer bom, é mais compatível com essa fé admitir que esse Serconcedeu todas as faculdades humanas para que fossem cultiva-das e desenvolvidas, e não desarra igadas e destruídas, e que eleestima se aproximem as suas cria turas, cada vez mais, da con-cepção idea l nelas incorporada, bem como aprova todo acrésci-mo das suas aptidões de compreensão, de ação, de gozo. Há umtipo de excelência humana diferente do tipo ca lvinista – umaconcepção da humanidade pela qual a natureza a ela concedidatem fina lidades outras que a mera renúncia . “A auto-afirmaçãopagã” é um dos elementos da dignidade humana tanto quanto“a auto-negação cristã”7. Há um idea l grego de autodesenvolvi-mento, com que o idea l platônico e cristão do domínio de sipróprio se mescla , mas que este não invalida . Talvez va lha maisser um John Knox que um Alcebíades, mas ser um Péricles va lemais que ser um ou outro, nem fa ltaria a um Péricles dos nossosdias o que de bom John Knox haja tido.

Não é fazendo desvanecer-se na uniformidade tudo queexiste de individual dentro de nós, e sim cultivando-o e estimu-lando-o, dentro dos limites impostos pelos direitos e interessesa lheios, que os seres humanos vêm a ser um belo e nobre objetode contemplação. E, como as obras participam do caráter dosseus autores, a vida humana se torna, com isso, variada eexcitante, fornecendo maior cópia de a limento aos pensamentossublimes e aos sentimentos que elevam, e forta lecendo o laço queune cada indivíduo à espécie, por fazê-la infinitamente maisdigna de se lhe pertencer. Na proporção em que se desenvolve aindividualidade, cada pessoa se torna mais va liosa para si mes-ma, e, portanto, capaz de ser mais va liosa para os outros. Há umamaior plenitude de vida na sua existência , e, quando há maisvida nas unidades, há mais vida no todo que delas se compõe.Não se pode passar sem a necessária compressão, se se visaimpedir os espécimes mais vigorosos da natureza humana deusurpar os direitos a lheios. Mas isso, a inda do ponto de vista dodesenvolvimento humano, encontra plena compensação. Osmeios de desenvolvimento que o indivíduo perde com o se lheimpedir satisfaça as inclinações a prejudicar os outros, são

7. Ensaio s , de Sterling.

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obtidos sobretudo à custa do desenvolvimento dos demais indi-víduos. E mesmo para ele próprio há uma completa compensaçãono melhor desenvolvimento da parte socia l da sua natureza ,possibilitado pela restrição à parte egoística . Ser obrigado àsrígidas normas da justiça de respeito aos outros, desenvolve ossentimentos e capacidades que têm por objeto o bem alheio. Masser coarctado no que não afeta esse bem a lheio, e apenas édesagradável aos outros, nada desenvolve de va lioso, a não ser ovigor de caráter que a resistência à coerção revele. A aquiescênciaa esta embota e entorpece toda a natureza . Para a livre expansãoda natureza de cada um, é essencia l que se permita a pessoasdiferentes viverem vidas diferentes. Cada época fez-se digna denota para a posteridade na proporção em que essa largueza devistas nela se exercitou. O próprio despotismo não produz os seuspiores efeitos enquanto sob ele persiste a individualidade. E oque quer que sufoque a individualidade é despotismo, seja qualfor o nome que se lhe dê, e a inda que proteste estar impondo avontade de Deus ou as injunções dos homens.

Tendo dito que a individualidade é a coisa mais o seudesenvolvimento, e que somente o cultivo da individualidade éque produz ou pode produzir seres humanos bem desenvolvidos,poderia eu encerrar aqui a argumentação – que mais e melhorse pode dizer de qualquer condição dos negócios humanos doque afirmar leva ela os homens para mais próximo do melhorque podem ser? Ou que de pior se pode sustentar de qualquerobstáculo ao bem do que impedir ele essa aproximação? Todavianão sofre dúvida que essas considerações não bastarão paraconvencer os que mais necessitam ser convencidos. E é preciso,ademais, evidenciar que esses seres humanos desenvolvidos têmalguma utilidade para os não desenvolvidos – é necessáriomostrar aos que não aspiram liberdade, e dela não se aproveita-riam, que lhes pode advir proveito inteligível do fato de permiti-rem a outrem o uso sem entraves da liberdade.

Assim, eu sugeriria , em 1º lugar, que os não desenvolvidosta lvez aprendessem a lgo dos desenvolvidos. Ninguém negará sera origina lidade um elemento va lioso nos negócios humanos. Hásempre necessidade de pessoas que não só descubram verdadesnovas e indiquem quando o que foi verdade deixou de o ser, comoainda iniciem novas práticas e dêem o exemplo de um melhorgosto e senso na vida humana. Isso, não o pode desconhecerquem não acredite tenha já o mundo atingido a perfeição emtodos os seus métodos e práticas. É verdade que não é qualquer

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um que pode prestar esse benefício: há apenas a lguns poucos,no conjunto da humanidade, cujos experimentos, se adotadospelos outros, constituiriam um aperfeiçoamento da prática esta-belecida . Mas esses poucos são o sa l do mundo; sem eles a vidahumana se tornaria uma lagoa estagnada. Não somente introdu-zem as boas coisas anteriormente inexistentes, como a indaconservam a vida nas que já existem. Se nada de novo houvessea fazer, deixaria o intelecto humano de ser necessário? Seria issouma razão para que os que fazem velhas coisas esquecessem porque se fazem, e as fizessem como se fossem gado, e não sereshumanos? Nas melhores crenças e práticas, verifica-se umatendência , e muito grande, para degenerarem em maquinais. E,sem uma sucessão de pessoas de origina lidade sempre recorrentea impedir os fundamentos dessas crenças e práticas de se torna-rem meramente tradicionais, essa matéria morta não resistiriaao menor choque de qualquer coisa rea lmente viva , e razão nãohaveria para que a civilização não se extinguisse como noImpério Bizantino. É verdade que os indivíduos de gênio são, pornatureza , uma pequena minoria ; mas, para tê-los, faz-se misterpreservar o solo em que crescem. O gênio só pode respirarlivremente numa atmos fera de liberdade. Os gênios caracteri-zam-se, ex-vi termini, por uma maior individualidade do que osoutros – são menos capazes, conseqüentemente, de se adaptar,sem uma prejudicia l compressão, a qualquer dos padrões pouconumerosos que a sociedade erige para poupar aos seus membrosa pena de formarem o próprio caráter. Se, por timidez, sedeixarem plasmar por um desses moldes, e não derem livre cursoa toda aquela parte da sua personalidade que se não podeexpandir sob pressão, o meio socia l será impróprio para o seugênio. Se patenteiam um caráter forte e quebram as cadeias queos restringem, a sociedade, que não logrou êxito em reduzi-losao lugar-comum, os aponta , numa atitude de solene advertência ,como “extravagantes”, “excêntricos”, e coisas análogas – quala lguém que se queixasse do rio Niágara por não fluir docementeentre as suas margens como um canal holandês.

Insisto assim, enfaticamente, sobre a importância do gênio,e a necessidade de deixá-lo desenvolver-se livremente, no pensa-mento e na ação, certo de que não serei contraditado em teoria ,mas também de que quase todos são, na rea lidade, completamen-te indiferentes a isso. O povo julga o gênio uma coisa preciosase habilita um homem a escrever um poema emocionante, ou apintar um quadro. Contudo, no seu verdadeiro sentido, isso de

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origina lidade de pensamento e de ação, embora ninguém digaque não seja de admirar, quase todos pensam, no íntimo, que écoisa bem dispensável. Isso, infelizmente, é tão natura l que nãocausa pasmo. A originalidade não pode ter a sua utilidadepercebida pelos espíritos não originais. Não podem ver queproveito ela lhes traz – como o veriam? Se pudessem vê-lo, nãose trataria de origina lidade. Esta , primeiro, tem de lhes abrir osolhos. Só depois disso plenamente feito, surgir-lhes-á a oportu-nidade de se tornarem, por sua vez, originais. Entrementes,recordando-se de que nada jamais se fez sem um primeiro afazê-lo, e de que tudo que de bom existe é fruto da origina lidade,sejam eles suficientemente modestos para crerem haja a indacoisas novas a se fazerem! E certifiquem-se de que tanto maisnecessária lhes é a origina lidade quanto menos lhe sentem afa lta !

Para dizer sobriamente a verdade, assina le-se que, qualquerque seja a homenagem que se tenha por devida, ou efetivamentese preste, à superioridade menta l, rea l ou suposta , a tendênciagera l das coisas, por todo o mundo, é atribuir à mediocridade opoder dominante entre os homens. Na Antiguidade e na IdadeMédia e, num grau descrente, a través da longa transição dofeudalismo para a época presente, o indivíduo foi uma força emsi mesmo. E quando possuía grandes ta lentos ou uma a ltaposição, ele era uma força considerável. Hoje os indivíduos estãoperdidos na multidão. Em política , é quase trivia l dizer que aopinião pública rege o mundo. A única força que merece o nomeé a das massas, e a dos governos enquanto se fazem o órgão dastendências e instintos das massas. Isso é verdade, e nas relaçõesmorais e socia is da vida privada, e nos negócios públicos. Aquelescujas opiniões se conhecem pelo nome de opinião pública nãosão sempre o mesmo público; na América , são o conjunto dapopulação branca, na Inglaterra , principa lmente a classe média .Entretanto, são sempre uma massa , isto é, mediocridade coletiva .E, o que constitui a inda maior novidade, a massa não toma, hoje,as suas opiniões, de dignitários da Igreja ou do Estado, de líderesostensivos ou de livros. O seu pensamento lhes provém dehomens muito semelhantes a ela , que a ela se dirigem, ou queem nome dela fa lam, sob a espora do momento, a través dosjornais. Não me estou queixando dessas coisas. Não afirmo quealgo melhor se coadunasse, como norma gera l, com o baixoestado hodierno do espírito humano. Isso não impede, todavia ,que o governo da mediocridade seja um governo medíocre.

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Jamais governo a lgum, fosse de uma democracia , fosse de umanumerosa aristocracia , seja nos seus atos políticos, seja nasopiniões, qualidades e tom de espírito por ele a limentados, seelevou acima da mediocridade, sa lvo quanto ao poder. Muitos sedeixaram guiar (o que, nos seus melhores tempos, os governossempre fizeram) pelos conselhos e influência de Um ou Algunsmais a ltamente colocados e instruídos. A iniciativa de todas ascoisas sábias ou nobres vem, e deve vir, de indivíduos, gera lmen-te, a princípio, de um certo indivíduo. A honra e a glória dohomem mediano residem na capacidade de seguir essa iniciativa ,em poderem repercutir no seu íntimo as coisas nobres e sábias,em se orientar para elas de olhos abertos. Não estou dando apoioa essa espécie de “culto do herói” que aplaude o vigoroso homemde gênio ao se apoderar, pela violência , do governo, e ao fazeros outros executarem, a despeito de si próprios, as suas ordens.Tudo que o homem de gênio pode reivindicar é liberdade paraindicar o caminho. O poder de compelir os outros a tomarem essecaminho, não somente é incompatível com a liberdade e odesenvolvimento das outras pessoas, mas a inda corrompe opróprio homem forte. Todavia , no momento em que as opiniõesdas massas de homens simplesmente medianos se tornaram, ouse estão tornando, por toda parte, a força dominante, parece queo contrapeso e o corretivo a essa tendência seria a individualida-de cada vez mais acentuada das mais a ltas eminências dopensamento. É sobretudo em ta is circunstâncias que os indiví-duos excepcionais devem ser encora jados, e não dissuadidos, aagir diferentemente da massa . Em outras épocas não haviavantagem em que assim fizessem, sa lvo se se não tratasse de agirapenas diferentemente, mas a inda melhor. Hoje, o mero exemplode não-conformismo, a mera negativa a dobrar o joelho aocostume, já constitui um serviço. Precisamente porque a tiraniada opinião é ta l que faz da excentricidade um opróbrio, édesejável, para vencê-la , que as pessoas sejam excêntricas. Aexcentricidade sempre abundou quando e onde muita energia decaráter existiu, e a soma de excentricidade num meio socia lesteve, em regra , na proporção da soma de gênio, de vigor menta le de coragem moral a í contidos. Essa pequena ousadia hodiernapara a excentricidade assina la o perigo capita l da época.

Falei da importância que há em dar às coisas não costumei-ras a mais livre expansão possível a fim de que se possa verificar,oportunamente, quais dentre elas se revelam próprias para seconverterem em costumes. Mas a independência da ação e o

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desprezo pelo costume não merecem encora jamento só pelapossibilidade que proporcionam, de se criarem formas melhoresde ação e costumes mais dignos de acolhimento. Nem apenas aspessoas de decidida superioridade menta l possuem justo título aorientarem a vida de uma maneira autônoma. Não há razão paraque toda a existência humana se construa por um só modelo, oupor um pequeno número de modelos. Se se possui tolerável somade senso comum e de experiência , o modo próprio de dispor aexistência é o melhor, não porque seja o melhor em si, masporque é o próprio. Os homens não são como os carneiros, emesmo os carneiros não são indistintamente iguais. Um homemnão pode adquirir um casaco ou um par de botas que lhe sirvamsem que se tenham feito à sua medida, ou sem que os escolhadentre um completo sortimento – e é, porventura , mais fácilprovê-lo de uma vida do que de um casaco? Ou serão as cria turashumanas mais semelhantes entre si pelo conjunto da formaçãofísica e espiritua l, do que pelo feitio dos pés? Se os indivíduos sóapresentassem diversidades de gosto, já haveria nisso razãosuficiente para não se tentar ta lhá-los por um único modelo. Mas,a lém disso, pessoas diferentes requerem condições diferentes dedesenvolvimento, e a identidade de atmosfera e clima moral podenão lhes convir mais do que convém à genera lidade das espéciesde plantas a identidade de atmosfera e clima físico. Aquilo queauxilia o cultivo da natureza mais elevada de um, impede-o aoutro. Para um, certo modo de vida é estímulo sadio, mantendona melhor ordem as suas faculdades de ação e de gozo; paraoutro, é carga pesada que para lisa ou aniquila toda a sua vidainterna. A diversidade das fontes de prazer, das disposições paraa dor, dos efeitos íntimos das várias ações fís icas e morais, é ta lnos seres humanos que eles não obtêm o seu justo quinhão defelicidade, nem se elevam à estatura menta l, mora l e estética deque a sua natureza é capaz, sem que exista uma correspondentediversidade nos seus modos de vida . Por que, então, se limitaráa tolerância , na medida em que o sentimento público está emcausa , aos gostos e modos de vida a que é em virtude da massados seus aderentes que se aquiesce? Em parte a lguma, sa lvo emcertas instituições monásticas, se deixa completamente de reco-nhecer a diversidade de gostos. Uma pessoa pode, sem motivode censura , preferir, ou não, remo, fumo, música , exercíciosatléticos, xadrez, bara lho, estudo, porque tanto os que gostamdessas coisas, como os que não as estimam, são bastante nume-rosos para se lhes poder impor a renúncia aos seus gostos. Maso homem, e a inda mais a mulher, a que se acuse de fazer “o que

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ninguém faz”, ou de não fazer “o que todos fazem”, sujeita-se aobservações depreciatórias como se tivessem incorrido em a lgumgrave delito moral. Faz-se mister a posse de um título, ou dea lgum outro signo de posição ou de apreço das pessoas deposição, para poder entregar-se, um pouco, ao luxo de fazeraquilo de que se gosta sem detrimento da estima a lheia . Paraentregar-se um pouco, repito, porque quem quer que se permitamuito dessa liberdade, corre o risco de a lgo pior que recrimina-ções – ficam em perigo de serem tidos por lunático s , e de se veremdespojados dos seus bens em proveito dos parentes.8

Há na presente orientação da opinião pública uma carac-terística particularmente adequada a torná-la intolerante paracom qualquer manifestação mais viva de individualidade. Oshomens, em gera l, não são moderados só de inteligência , masa inda de inclinações. Não possuem gostos nem desejos suficien-temente fortes para incliná-los a fazer o inusitado, e, em conse-qüência , não compreendem os que os possuem, aos qua isclassificam entre os extravagantes e imoderados a que costumamencarar com desprezo. Basta supor, agora , em adição a esse fa togera l, que se tenha assentado um forte movimento no sentido de

8. Existe a lgo de desprez ível, e também de espantoso, na espécie de provaque se tem requerido ultimamente para a decla ração judicia l da incapacidade degerir os próprios negócios. A disposição de bens que, para depois da morte, façaa pessoa objeto dessa decla ração, pode ser posta de lado deste que ha ja o suficientepara pagar a s despesa s do processo – ônus que reca i sobre os bens em causa . Todosas minúcia s da vida quotidiana são meticulosamente investigadas, e tudo que, vistoa través das faculdades de percepção e descrição do mais mesquinho entre osmesquinhos, se aparente diverso do lugar-comum absoluto, é apresentado ao júricomo prova de insanidade. E com freqüente sucesso, uma vez que os jurados,quando não são tão vulgares e ignorantes como as testemunhas, o são poucomenos; e que os juízes, com essa extraordinária fa lta de conhecimento da naturezae da vida humana que nos surpreende nos legista s ingleses, muita s vezes auxiliama obra de mal orientar os jurados. Esses julgamentos va lem por volumes que seescrevessem sobre o estado do sentimento e da opinião, no seio do vulgo,rela tivamente à liberdade humana . Ao contrá rio de a tribuírem a lgum va lor àindividua lidade – de respeita rem o direito de cada qua l a agir, nas coisa s indife-rentes, como bem lhe pareça ao entendimento e à inclinação – juízes e juradosnão podem conceber que a lguém, em estado de sanidade, possa querer uma ta lliberdade. Em dia s anteriores, quando se propôs queimar os a teus, pessoascaridosas sugeriram colocá-los em hospícios, ao invés de os queimar. Não seria desurpreender viéssemos a ver isso nos nossos dia s, bem como os aplausos dosautores da medida a si mesmos, por terem adotado, em lugar da perseguição pormotivos religiosos, um modo tão humano e tão cristão de tra ta r esses infelizes.Aplausos que se somariam à muda sa tisfação por haverem os a teus obtido, dessaforma, o que mereciam.

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aperfeiçoar os costumes, para não termos dúvida sobre o quedevemos aguardar. Tal movimento inicia-se nos dias de hoje.Muito há sido, de fato, rea lizado em prol da crescente regulari-dade da conduta , e do desencora jamento dos excessos. E mani-festa-se um espírito filantrópico para cujo exercício nenhumterreno é mais convidativo do que o do melhoramento moral eprudencia l dos nossos semelhantes. Essas tendências da épocacausam uma disposição do público maior que em tempos ante-riores, para prescrever normas gera is de conduta e esforçar-sepela conformidade de todos ao padrão adotado. E esse padrão,expresso ou tácito, consiste em nada desejar fortemente. O seuidea l de caráter é não ter um caráter assina lado; é mutilar, porcompressão, como se faz aos pés das chinesas, qualquer parte danatureza humana que se sa liente muito e tenda a imprimir aoindivíduo uma fisionomia acentuadamente diversa da da huma-nidade vulgar.

Como habitualmente acontece com os idea is que excluemmetade do desejável, esse padrão de conduta produz apenas umaimitação inferior da metade acolhida. Ao invés de grandes ener-gias orientadas por uma razão poderosa , e de fortes sentimentosfortemente controlados por uma vontade conscienciosa , deleresultam fracos sentimentos e fracas energias, que se mantêmnuma conformidade puramente exterior à norma, sem se acom-panharem de qualquer vigor da razão ou da vontade. Caracteresenérgicos numa grande esca la pertencem, hoje, cada vez mais, àtradição apenas. Qualquer movimento de energia constitui hojecoisa rara neste país, sa lvo em negócios. A energia despendidanestes a inda pode ser tida por considerável. O pouco que fogedesse objetivo é gasto em a lguma mania , a qual pode ser umamania útil, mesmo filantrópica , mas sempre é uma única coisa ,é gera lmente coisa de pequenas dimensões. A grandeza daInglaterra é, agora , toda coletiva : individualmente pequenos, sóparecemos capazes de a lgo grande pelo nosso hábito de associa-ção; e com isso os nossos filantropos morais e religiosos sesatisfazem perfeitamente. Todavia foram homens de outra es-tampa que fizeram da Inglaterra o que ela tem sido, e homensde outra estampa se fazem necessários para impedir o seudeclínio.

O despotismo do costume é por toda a parte o obstáculoconstante ao avanço da humanidade, pela incessante oposição àtendência para visar a lgo superior ao costumeiro, tendênciachamada, segundo as circunstâncias, espírito de liberdade ou

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espírito de progresso ou aperfeiçoamento. O espírito de aperfei-çoamento nem sempre é um espírito de liberdade, pois podeaspirar impor melhoramentos a um povo relutante; e o espíritode liberdade, em tanto que resiste a ta is tentativas, pode a liar-se,loca l e transitoriamente, aos adversários do progresso. A únicafonte infa lível e constante, porém, de aperfeiçoamento é a liber-dade, desde que com ela há tantos centros independentes deaperfeiçoamento possíveis quantos indivíduos. O princípio doprogresso, contudo, numa ou noutra forma, como amor daliberdade, ou como amor do aperfeiçoamento, opõe-se ao domí-nio do Costume, implicando, ao menos, a emancipação dessejugo. E o debate entre os dois constitui o principa l interesse dahistória da humanidade. Propriamente fa lando, a maior parte domundo não tem história , por ser completo o despotismo doCostume. É o que se verifica por todo o Oriente. O costume é, a í,em todas as coisas, a instância fina l; justiça e direito significamconformidade ao costume; ao argumento do costume ninguém,sa lvo a lgum tirano intoxicado pelo poder, pensa em resistir. Enós vemos o resultado. Essas nações outrora devem ter tidooriginalidade. Elas não surgiram do solo populosas, letradas,versadas em muitas artes da vida . Fizeram-se tudo isso, e entãoforam as maiores e mais poderosas nações do mundo. Que são,agora? Vassa las ou dependentes de tribos cujos antepassadoserravam pelas florestas quando os delas possuíam palácios mag-nificentes e templos suntuosos – tribos, porém, sobre as quais ocostume exercia apenas um domínio partilhado com a liberdadee o progresso. Parece que um povo possa ser progressista por umcerto espaço de tempo após o qual pare: por que para? Paraquando cessa de possuir individualidade. Se uma transformaçãoanáloga sucedesse às nações da Europa, não seria exatamente domesmo feitio: o despotismo do costume que as ameaça nãoconsiste precisamente em imobilidade. Proscreve a singularida-de, mas não exclui a transformação desde que tudo se transformejunto. Descartamo-nos dos costumes estáveis dos nossos antepas-sados: cada qual deve vestir-se como os outros, mas isso nãoimpede que a moda varie uma ou duas vezes por ano. Quandohá mudança, cuidamos de que a sua fina lidade seja apenasmudar, e não provenha de idéia a lguma de beleza ou conveniên-cia ; pois uma mesma idéia de beleza ou de conveniência nãoocorreria a todos no mesmo momento, nem seria abandonadapor todos num mesmo outro momento. Somos tão progressistasquão mutáveis: continuamente rea lizamos invenções novas emcoisas mecânicas e conservamo-las a té que melhores as inva li-

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dem; ansiamos por aperfeiçoamentos em política , educação,mesmo em moral, embora, na última, a nossa idéia de aperfei-çoamento consista , sobretudo, em persuadir ou forçar os outrosa serem tão bons como nós. Não é ao progresso que nos opomos:ao contrário, gabamo-nos de ser a gente mais progressista quejamais viveu. É contra a individualidade que bata lhamos: julga-ríamos ter feito maravilhas se nos houvéssemos tornado seme-lhantes, todos, uns aos outros, olvidando que a dissemelhançadas pessoas é gera lmente o que mais fixa a atenção de cada umana imperfeição do próprio tipo e na superioridade de outro – ouna possibilidade de, combinando as vantagens de ambos, produ-zir a lgo melhor que qualquer dos dois. Um exemplo frisante,temo-lo na China – nação de muito ta lento e, ademais, a certosrespeitos, de muita sabedoria , devido à rara sorte de contar,desde cedo, com um conjunto particularmente feliz de costumes,obra , a té certo ponto, de homens a que mesmo os europeus maisesclarecidos têm de conceder, com certas restrições embora, otítulo de sábios e filósofos. Ela é notável, a inda, pela excelênciado seu aparelhamento para infundir, o quanto possível, em cadaespírito da comunidade a melhor sabedoria que possua, e paraassegurar aos que melhor a assimilaram os postos de honra epoder. O povo que ta l fez, certamente descobriu o segredo doprogresso humano, e deveria ter-se mantido, com firmeza, àfrente do mundo em marcha. Entretanto, ao contrário, tornou-seestacionário – assim tem permanecido por milhares de anos; e,se em a lgum momento avançar, sê-lo-á por obra de estrangeiros.Logrou êxito, a lém de toda esperança, naquilo por que tãolaboriosamente se esforçam os filantropos ingleses – na criaçãode um povo uniforme, em que todos orientam os seus pensamen-tos e a sua conduta pelas mesmas máximas e normas. E ta is sãoos frutos! O moderno rég ime da opinião pública é, numa formadesorganizada, o que os sistemas políticos e educacionais chine-ses são numa forma organizada. E, a menos que a individualidadeseja capaz de se a firmar, com sucesso, ante esse jugo, a Europa,não obstante os seus nobres antecedentes e o seu cristianismo,tenderá a se tornar uma outra China.

Que é que há preservado a Europa, a té o momento, de ta lsorte? Que é que fez da família das nações européias uma porçãoprogressista , e não estacionária , da humanidade? Não foi nenhu-ma excelência superior peculiar a elas, a qual, quando existecomo efeito, e não como causa ; e sim a sua notável variedade decaráter e de cultura . Indivíduos, classes, nações, têm sido extre-

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mamente dissemelhantes entre si; traçaram caminhos muitodiversos, cada qual levando a a lgo va lioso; e, embora em cadaperíodo os que tomaram por um desses caminhos hajam sidointolerantes para com os que pa lmilhavam outros, e cada qualpensasse na excelência de se coagirem os outros a virem para arota dele, a s tentativas de contrariar o desenvolvimento a lheioraramente lograram sucesso duradouro, e cada qual teve desuportar, a seu tempo, o benefício advindo dos outros. A Europadeve inteiramente, ao meu ver, o seu desenvolvimento progres-sivo e variado a essa plura lidade de caminhos. Já começa, porém,a usufruir esse benefício num grau consideravelmente menor.Ela está decididamente avançando para o idea l chinês da unifor-midade. M. de Tocqueville, na sua última obra , assina la quãomais se parecem entre si os franceses da presente época, do queos da última geração. O mesmo se poderia dizer dos ingleses numgrau muito maior. Guilherme de Humboldt, numa passagem jácitada, aponta duas coisas como condições necessárias do desen-volvimento humano, porque necessárias à dissemelhança daspessoas, a saber, liberdade e variedade de situações. A segundadessas condições está diariamente diminuindo neste país. Dia-riamente as circunstâncias em derredor das diversas classes eindivíduos, formadoras dos seus caracteres, se fazem mais seme-lhantes. Antigamente, classes diversas, vizinhanças várias, pro-fissões e ofícios diferentes, viviam no que se podiam chamar demundos diferentes; no presente, vivem, numa grande esca la , nomesmo mundo. Aproximativamente fa lando, agora lêem, ouveme vêem as mesmas coisas, vão aos mesmos lugares, dirigem assuas esperanças e os seus temores para os mesmos objetos, têmos mesmos direitos, as mesmas liberdades, os mesmos processosde os a firmar. Por grandes que sejam as diferenças de posiçãoque remanescem, nada são ante as que cessaram. E a assimilaçãocontinua a se operar. Todas as transformações políticas da épocaa promovem, uma vez que todas tendem a erguer o baixo e arebaixar o a lto. Cada extensão da educação a promove, pois aeducação submete o povo às influências comuns e lhe dá acessoà provisão gera l de fatos e sentimentos. O progresso dos meiosde comunicação a promove, pondo em contacto pessoa l oshabitantes de lugares distantes, e mantendo um rápido fluxo demudanças de residência de um lugar para outro. O incrementodo comércio e das manufaturas a promove, difundindo maisamplamente as vantagens das fáceis circunstâncias, e abrindo àcompetição gera l todos os objetos de ambição, a inda os maiselevados, por onde o desejo de subir se torna, não mais o caráter

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de uma classe particular, mas de todas as classes. Um agentemais poderoso que todos esses, da genera lização da similitudeentre os homens, é o estabelecimento completo, neste e noutrospaíses livres, da ascendência da opinião pública no Estado. Comoas várias superioridades socia is, que habilitavam as pessoas,acasteladas nelas, a desrespeitar a opinião da multidão, cedemante o nivelamento, e como a resolução de resistir à vontade dopúblico, quando se sabe ter este positivamente uma vontade,cada vez mais desaparece do espírito dos políticos militantes,cessa de existir qualquer ponto de apoio socia l para o não-con-formismo – qualquer força por si subsistente que, por si opostaà ascendência do número, se interesse por tomar sob a suaproteção opiniões e tendências em discordância com as dopúblico.

A associação de todas essas causas constitui um tão grandevolume de influência hostis à individualidade, que não se vêfacilmente como possa esta manter o terreno. A dificuldadecrescerá , a menos que se possa fazer sentir à parte inteligente dopovo o va lor da individualidade “ fazê-la ver como é bom hajadiferenças mesmo que não para melhor, mesmo que lhe pareçampara pior. Se em qualquer tempo se devem afirmar os direitos daindividualidade, devemos fazê-lo agora , enquanto muito fa ltapara se completar a assimilação forçada. É nos primeiros momen-tos que o combate à usurpação pode lograr êxito. A exigência deque todas as outras pessoas se façam semelhantes a nós quecresce com o que a a limenta . Se a resistência aguarda quase sereduza a vida a um tipo uniforme, todos os desvios desse tipovirão a ser considerados ímpios, imorais, mesmo monstruosos econtrários à natureza . A humanidade se torna rapidamenteincapaz de conceber a diversidade se por muito tempo se desa-costumou de vê-la .

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CAPÍTULO IV

Do s lim ite s d a a u to r id a d e d as o c ie d a d e s o b r e o in d iv íd u o

Qual, então, o justo limite à soberania do indivíduo sobre sipróprio? Onde começa a autoridade da sociedade? Quanto da

vida humana se deve atribuir à individualidade, quanto à socie-dade?

Cada uma delas receberá o próprio quinhão, se cada umativer aquilo que mais particularmente lhe diz respeito. À indivi-dualidade deve pertencer a parte da vida na qual o indivíduo éo principa l interessado, à sociedade a que à sociedade primacia l-mente interessa .

Embora a sociedade não se funde num contrato, e emboranenhum proveito se tire da invenção de um contrato de que sededuzam as obrigações socia is, cada beneficiário da proteção dasociedade deve uma paga pelo benefício, e o fato de viver emsociedade torna indispensável que cada um seja obrigado aobservar certa linha de conduta para com o resto. Essa condutaconsiste, primeiro, em não ofender um os interesses de outro, ouantes certos interesses, que, ou por expressa cláusula lega l oupor tácito entendimento, devem ser considerados direitos; e,segundo, em cada um suportar a sua parte (a se fixar segundoalgum princípio eqüitativo) nos labores e sacrifícios em que seincorra na defesa da sociedade ou dos seus membros contradanos e incômodos. Justifica-se que a sociedade imponha essascondições a todo o custo àqueles que tentam furtar-se ao seucumprimento. Nem isso constitui tudo que à sociedade é permi-

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tido fazer. Os atos de um indivíduo podem ser danosos a outro,ou fa ltar com a devida consideração ao bem-estar deste, sem iremao ponto de violar a lgum dos seus direitos estabelecidos. Nessecaso, o ofensor pode ser justamente punido pela opinião, a indaque não pela lei. Desde que a lgum setor da conduta de umapessoa a fete de maneira nociva interesses a lheios, a jurisdiçãoda sociedade o a lcança, e a questão de a interferência nesse setorpromover, ou não, o bem-estar gera l, torna-se aberta à contro-vérsia . Tal problema porém não tem lugar quando a conduta deum indivíduo não afeta interesses de outros ao seu lado, ou nãonecessite a fetá-los a não ser que esses outros o queiram (todosos interessados sendo maiores e da ordinária soma de compreen-são). Em todos esses casos, deve haver perfeita liberdade, lega le socia l, de praticar a ação e suportar as conseqüências.

Grande incompreensão dessa doutrina haveria em supô-lauma doutrina de indiferença egoística , que pretendesse nadaterem os seres humanos com a conduta a lheia , e não devereminteressar-se pelas boas ações e pelo bem-estar dos outros sa lvoestando o próprio interesse envolvido. O esforço desinteressadopor promover o bem alheio necessita ser grandemente incremen-tado, e não por qualquer forma descoroçoado. Mas a benevolên-cia desinteressada pode encontrar instrumentos de persuasãodas pessoas ao seu próprio bem, diversos de açoites e azorragues,no sentido litera l ou metafórico. Serei o último a depreciar asvirtudes para consigo mesmo: apenas as julgo segundas emimportância , se ta is, ante as virtudes para com os outros. É tarefada educação cultivar estas e aquelas. Mas mesmo a educaçãoopera convencendo e persuadindo tanto quanto constrangendo,e, passado o período educativo, é só pelo primeiro método quese deve inculcar as virtudes para consigo próprio. Os sereshumanos devem mutuamente a judar-se a distinguir o melhor dopior e animar-se à escolha do primeiro e à recusa do segundo.Devem sempre achar-se entregues a um mútuo estímulo doexercício crescente das mais a ltas faculdades, e da crescenteorientação dos sentimentos e desígnios para objetos e contem-plações sábios, e não tolos, que elevem, e não que degradem. Nãoassiste, porém, a uma pessoa, ou a qualquer número de pessoas,autoridade a lguma para dizer a outra , de idade madura, que nãodeve fazer da sua vida , em seu próprio benefício, o que decidiufazer. Ela é a maior interessada no próprio bem-estar: o interesseque outrem, sa lvo nos casos de forte a feição pessoa l, possa terneste, é frívolo comparado com o dela ; e o que a sociedade nutre

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por ela enquanto indivíduo (exceto no que diz respeito à suaconduta para com os outros) é fragmentário e tota lmente indi-reto. De outro lado, o homem ou a mulher mais vulgar contam,em relação aos próprios sentimentos e às próprias circunstâncias,meios de conhecimento que ultrapassam, sem medida, os quepossam ser possuídos por quaisquer outras pessoas. A interferên-cia da sociedade para impor a sua apreciação e os seus propósitosno que apenas diz respeito ao indivíduo tem de se basear empresunções gera is; e estas podem ser inteiramente errôneas, e,mesmo sejam certas, tanto podem ser, como não ser bem aplica-das aos casos individuais, por pessoas tão pouco ao par dascircunstâncias de ta is casos quanto o deve estar quem os olhapuramente de fora . Esse setor, pois, dos assuntos humanosconstitui o campo de ação adequado da individualidade. Naconduta de uns para com os outros, faz-se necessário que normasgera is sejam observadas na sua maior parte, para que as pessoaspossam saber o que esperar, mas, no que concerne propriamentea cada um, cabe à espontaneidade individual livre exercício.Pode-se fazer ao indivíduo, mesmo com oposição sua, considera-ções que auxiliem a sua apreciação, ou exortações que forta leçama sua vontade, mas, a fina l, é ele próprio quem decide. Todos oserros que é provável cometa mau grado conselhos e advertências,prejudicam menos do que permitir aos outros coagi-lo ao quejulgam o bem dele.

Eu não pretendo que os sentimentos com que se encare umapessoa não sejam, de nenhuma maneira , a fetados pelas qualida-des e defeitos no terreno da sua conduta para consigo mesma.Isso nem é possível nem desejável. Tanto quanto seja eminenteem a lguma das qualidades que conduzem ao próprio bem, faz-sedigna de admiração. Tanto mais se aproxima da perfeição idea lda natureza humana. E, se carece acentuadamente de ta is qua-lidades, disso se seguirá um sentimento inverso do de admiração.Há um grau de extravagância e um grau do que se pode chamar(embora o nome não seja insuscetível de objeções) ba ixeza oudepravação de gosto, que, apesar de não poder justificar se inflijaqualquer mal a quem o manifesta , o torna, necessariamente eadequadamente, objeto de desgosto, ou mesmo, nos casos extre-mos, de desprezo: ninguém poderia possuir com o devido vigoras qualidades opostas sem entreter esses sentimentos. Emborasem fazer injustiça a ninguém, uma pessoa pode agir de modo anos obrigar a julgá-la – e a dar-lhe a perceber isso – umainsensata , ou um ser de ordem inferior. E, desde que esse juízo

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e essa percepção constituem fato que ela preferiria evitar, éprestar-lhe um serviço adverti-la disso de antemão, bem como dequalquer outra circunstância desagradável a que se expõe. Bomseria , na verdade, que esse serviço fosse bem mais livrementeprestado do que as noções comuns de polidez o permitem hoje,e que a lguém pudesse honestamente observar a outrem que ojulga em fa lta , sem ser tido por indelicado ou presunçoso.Também nos assiste, de diversas formas, o direito de agir segundoa nossa desfavorável opinião de a lguém, não para oprimir a suaindividualidade, mas no exercício da nossa . Não somos obriga-dos, por exemplo, a lhe procurar a companhia : temos o direitode evitá-lo (embora não de ostentar esse evitamento), porquetemos o direito de escolher a companhia que nos é mais aceitável.Temos o direito, e pode caber-nos o dever, de acautelar os outroscontra ele, se lhe julgamos o exemplo ou a conversa capazes deefeito nocivo sobre os que dele se aproximem. Podemos preferirprestar a outros, e não a ele, o obséquio que nos é facultativofazer, sa lvo se está em causa o seu melhoramento. Dessas váriasformas, pode uma pessoa sofrer penalidades severas da parte dosoutros, por fa ltas que concernem diretamente só a ela , mas assofre apenas como conseqüências natura is, e, por assim dizer,espontâneas, das próprias fa ltas, não que lhe sejam propositada-mente infligidas com o intuito de punição. Aquele que manifestaleviandade, teimosia , presunção, que não pode viver de umamaneira moderada, que não pode esquivar-se a excessos danosos,que busca prazeres animais às expensas dos do sentimento e dointelecto, deve esperar ca ir na opinião a lheia , e contar menoscom as disposições favoráveis dos outros. Não lhe assiste, porém,direito a se queixar, a menos que tenha feito jus ao favor a lheiopor uma especia l superioridade nas suas relações socia is, e ha ja ,assim, adquirido um título aos obséquios dos outros, ao qual nãoafetam os deméritos dele para consigo próprio.

O que pleiteio é que as inconveniências estritamente inse-paráveis da apreciação desfavorável a lheia sejam as únicas a quese sujeite a lguém pela sua conduta e pelo seu caráter naquelascoisas que, concernentes ao seu próprio bem, não afetem, con-tudo, os interesses dos outros nas relações com ele. Já os atosofensivos aos outros exigem um tratamento completamentediverso. A usurpação dos seus direitos; infligir-lhes lesão ou danoque os direitos do que lesa ou prejudica não justificam; afa lsidade ou duplicidade no trato com eles; o uso ilícito oumesquinho de vantagens que sobre eles se tenham; mesmo a

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abstenção egoística de os defender contra injúria – tudo isso sãoobjetos adequados de reprovação moral e, nos casos graves, deretribuição e punição morais. E não somente esses a tos, mas asdisposições que a eles conduzem, são imorais no sentido próprio,dignas de reprovação, a qual pode ir à aversão. Tendênciascruéis; má índole e má fé; a mais antissocia l e odiosa de todas aspaixões – a inveja ; dissimulação e insinceridade; irascibilidadesem causa suficiente, e ressentimento desproporcional à provo-cação; o gosto de mandar nos outros; o desejo de embolsar maisvantagens do que compete a cada um (a πλεονεξια – pleonecsía– dos gregos); a soberba, que tira satisfação do amesquinhamen-to dos demais; o egotismo, que se supõe a si e aos própriosinteresses mais importantes que quaisquer outras coisas, e quedecide a favor de si mesmo todas as questões duvidosas – essessão vícios morais e formam um caráter moral mau e odioso. Nãocomo as fa ltas contra si mesmo anteriormente mencionadas, asquais não são propriamente imoralidades, e, a qualquer pontoque sejam levadas, não constituem perversidade. Estas podemser provas de certo grau de estultícia ou de carência de dignidadepessoa l e de auto-respeito. Só se tornam, porém, objeto dereprovação moral quando envolvem uma infração do dever paracom os outros, em caso nos quais estes se achem interessados naobrigação do indivíduo de cuidar de si. Os chamados deverespara conosco não são socia lmente obrigatórios, a não ser que ascircunstâncias os façam, ao mesmo tempo, deveres para com osoutros. A expressão – dever para conosco, quando significa a lgomais que prudência , significa respeito por si mesmo ou autoper-fectibilidade; e por nada disso responde a lguém perante os seussemelhantes, pois que, em nada disso, o bem da humanidadeimplica essa responsabilidade.

A distinção entre a perda de estima em que se podelegitimamente incorrer por fa lta de prudência ou de dignidadepessoa l, e a reprovação devida por uma ofensa aos direitosa lheios, não é meramente nominal. É muito diferente, tanto paraos nossos sentimentos como para a nossa conduta para com umapessoa, que nos desagrade ela no em que nos julgamos com odireito de controlá-la e no em que sabemos não ter esse direito.Se ela nos desagrada, é-nos permitido exprimir o nosso desgosto,e conservar-nos a fastados de uma pessoa – como de uma coisa –que nos desagrada, mas não nos sentiremos solicitados a tornar-lhe, por isso, a vida desconfortável. Devemos refletir que ela jásuporta , ou suportará , o castigo completo do seu erro. Se ela

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estraga a sua vida pela má orientação, não devemos desejar, poresse motivo, estragá-la mais a inda. Ao invés de querer puni-la ,devemos esforçar-nos por lhe mitigar a pena, mostrando-lhecomo evitar ou remediar os males que a sua conduta tende atrazer-lhe. Ela pode ser para nós um objeto de piedade, ta lvez deantipatia , mas não de cólera ou de ressentimento. Não a tratare-mos como inimiga da sociedade. O pior que será justo fazer, éabandoná-la a si mesma, se não queremos intervir benevolamen-te mostrando-lhe interesse ou solicitude. Muito diverso será ocaso, se ela infringir as normas necessárias à proteção dos seussemelhantes individual ou coletivamente. As más conseqüênciasdos seus atos não recaem, então, sobre ela , mas sobre os outros,e a sociedade, como protetora de todos os seus membros, temdireito à represá lia : deve fazê-la sofrer pela fa lta , com o propósitoexpresso de puni-la , cuidando de agir com severidade. Ela seapresenta , então, como uma acusada ante o nosso tribunal, epede-se a nós não apenas julgá-la , mas a inda, de uma forma ououtra , executar a nossa sentença. No outro caso, não nos cabeinfligir-lhe nenhum sofrimento, sa lvo o que incidenta lmente sesiga do uso por nós da mesma liberdade de condução dos nossosnegócios que a ela concedemos nos seus.

Muitos recusarão admitir a distinção que apontamos entrea parte da vida de a lguém que só a ele concerne, e a que concerneaos outros. Como pode, perguntar-se-á , ser a lguma parte daconduta de um membro da sociedade assunto indiferente aosdemais membros? Ninguém é completamente um ser isolado, eé impossível a um indivíduo praticar permanentemente e seria-mente a lgo prejudicia l a si próprio sem acabar o mal por atingiras suas relações próximas, e sem ir mesmo, freqüentemente,muito a lém destas. Se o indivíduo ofende os próprios bens, causadano àqueles que, direta ou indiretamente, se apóiam neles, e,em regra , diminui, numa maior ou menor extensão, os recursosgera is da comunidade. Se desgasta as próprias faculdades corpo-ra is ou mentais, não apenas prejudica aqueles cuja felicidade, emparte, dele depende, mas a inda se desqualifica para os serviçosque deve aos seus semelhantes em gera l; ta lvez se torne um fardopara a a feição ou benevolência deles; e, se ta l conduta fossemuito freqüente, dificilmente se cometeria fa lta que desfa lcassemais a soma gera l de vantagens. Finalmente, se, por seus víciose tolices, a lguém não causa diretamente dano a outrem, contudo– pode-se dizer – é nocivo pelo exemplo, – e deve ser coagido a

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controlar-se, em benefício daqueles que a vista ou o conhecimen-to de ta l conduta poderia corromper ou desencaminhar.

E mesmo, acrescentar-se-á , se as conseqüências da máconduta pudessem ficar confinadas ao indivíduo vicioso ouirrefletido, deveria a sociedade abandonar à própria orientaçãoos que são manifestamente incapazes de se guiarem a si mesmos?Se se reconhece que às crianças e aos menores se deve auxíliocontra a sua própria fa lta de critério, não está a sociedadeigualmente na obrigação de concedê-la às pessoas de idademadura igualmente incapazes de se governar? Se o vício do jogo,ou a embriaguez, a incontinência , a ociosidade, a fa lta de higiene,são tão nocivos à felicidade, e obstáculos tão grandes ao aperfei-çoamento, quanto, ou mais que os atos proibidos pela lei, porque(pode-se perguntar) não deve a lei, quanto seja compatível coma praticabilidade e a conveniência socia l, reprimi-los também? Enão deve a opinião, como um suplemento às inevitáveis imper-feições da lei, ao menos organizar uma poderosa polícia dessesvícios, e aplicar rígidas penalidades socia is àqueles que sabepraticá-los? Aí não se trata , pode-se dizer, de restringir a indivi-dualidade, ou de impedir o ensa io de novas e originais práticasde vida . Aí o que se procura tolher são coisas experimentadas econdenadas desde o começo do mundo, coisas que a práticamostrou não serem úteis ou convenientes à individualidade deninguém. É preciso que decorra certo espaço de tempo e seacumule certa soma de experiência para que uma verdade moralou prudencia l possa ser olhada como estabelecida , e a í se desejameramente impedir que geração após geração se precipite nomesmo abismo que já foi fa ta l às que as precederam.

Admito cabalmente que o mal feito por a lguém a si mesmopossa seriamente a fetar, a través das simpatias e interesses quetenham, aqueles que de perto com ele se relacionam, e, num graumenor, a sociedade em gera l. Quando, por uma conduta dessegênero, a lguém é levado a violar uma obrigação clara e determi-nada para com outra pessoa ou outras pessoas, o caso refoge àclasse dos estritamente individuais, e torna-se sujeito à desapro-vação moral, no sentido próprio do termo. Se, por exemplo, umhomem, por intemperança ou extravagância , se faz incapaz depagar as suas dívidas ou, havendo assumido a responsabilidadede uma família , incapaz de sustentá-la ou educá-la , ele merecereprovação e é justo que seja punido. Mas porque infringiu odever para com os credores ou para com a família , não por serextravagante. Se os recursos que se deveriam destinar-lhes tives-

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sem sido desviados para a mais prudente aplicação, a culpabili-dade seria a mesma. George Barnwell assassinou o tio a fim deobter dinheiro para a amante; mas, se o houvesse feito para seestabelecer comercia lmente, teria sido igualmente enforcado.Por outro lado, no caso freqüente de um homem que prejudicaa família por se entregar a maus hábitos, merece ele, por suamalvadez ou ingratidão, uma censura que, entretanto, lhe cabe-ria também se cultivasse hábitos em si não viciosos, mas fontesde dor para aqueles que partilham a sua vida ou cujo confortodele depende em virtude de laços pessoais. Quem quer que fa lteà consideração gera lmente devida aos interesses e sentimentosa lheios, não sendo a isso obrigado por a lgum dever mais impe-rioso, ou autorizado por uma preferência pessoa l lícita , faz-seobjeto de desaprovação moral pela fa lta , não, porém, pelo quecausa a fa lta , ou pelos erros de natureza meramente pessoa l quepodem remotamente tê-lo levado a ela . De maneira análoga, sea lguém se incapacita , por conduta que diga respeito meramentea ele próprio, para o desempenho de a lgum dever determinadoque lhe incumba para com o público, incorre em culpa por umafa lta de natureza socia l. A ninguém se deve punir simplesmentepor ter bebido; mas um soldado ou um policia l que bebeu emserviço deve sofrer pena. Em suma, quando se verifica umprejuízo definido, ou existe um risco definido de prejuízo, a umindivíduo, ou ao público, o caso sa i do setor da liberdade, e reca ino da moralidade ou no da lei.

Mas, em relação à injúria meramente contingente, que sepoderia chamar – interpretativa , que uma pessoa pode causar àsociedade por conduta que não viola qualquer dever específicopara com o público, nem ocasiona dano perceptível a determi-nado indivíduo, a inconveniência é de ordem ta l que a sociedadepode consentir sofrê-la em benefício da liberdade humana. Se setem de punir adultos por não cuidarem convenientemente de si,eu preferia que ta l se fizesse em intenção deles mesmos, e nãosob o pretexto de os impedir de prejudicar a sua capacidade deprestar à sociedade serviços que esta não pretende tenha o direitode exigir. Mas não posso consentir em debater o assunto comose a sociedade não contasse, para elevar os seus membros maisfracos até o seu padrão ordinário de conduta racional, com meiosoutros que aguardar pratiquem algo irracional, para ela , então,os punir por isso, lega l ou moralmente. A sociedade teve umpoder absoluto sobre eles durante todo o primeiro período da suaexistência – teve o período inteiro da infância e da menoridade

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para procurar torná-los capazes de conduta racional na vida . Ageração existente é senhora da educação e de todas as circuns-tâncias da geração seguinte. Não pode, na verdade, fazê-laperfeitamente sábia e boa, tão lamentavelmente fa lha é elaprópria em bondade e sabedoria . Os seus melhores esforços nãosão, sempre, nos casos individuais, os mais bem sucedidos. Maspode, muito bem, fazer a geração, que surge, tão boa, noconjunto, como ela própria , e a té um pouco melhor. Se asociedade deixa uma quantidade considerável de seus membroscrescerem como crianças genuínas, incapazes de atos fundadosna consideração racional de motivos distantes, a si mesma devecensurar-se pelas conseqüências. Armada não apenas de todosos poderes da educação, mas a inda da ascendência que a auto-ridade de uma opinião aceita sempre exerce sobre os espíritosmenos aptos para juízos autônomos; e coadjuvada pelas penali-dades naturais que inevitavelmente recaem sobre os que incor-rem no desagrado ou no desprezo dos conhecidos; não pode asociedade pretender que necessite, ao lado de tudo isso, do poderde expedir ordens e impor obediência nos assuntos de naturezapessoa l dos indivíduos, assuntos nos quais, segundo todos osprincípios de justiça e política , a decisão deve caber a quem lhesuportará as conseqüências. Seria recorrer ao pior meio, o quetenderia , mais que qualquer outra coisa , a desacreditar e frustraros melhores processos de influenciar a conduta . Se naqueles quese tenta coagir à prudência ou à temperança houver do materia lde que se fazem os caracteres vigorosos e independentes, eles,infa livelmente, se rebelarão contra o jugo. Nenhuma pessoadessa espécie sentirá jamais que os outros possuam o direito dea controlar no que lhe concerne, como têm o de impedi-la deofendê-los no que concerne a eles. E facilmente se vem a consi-derar um sina l de espírito e de coragem desacatar uma ta lautoridade fruto de usurpação, e fazer ostensivamente o contrá-rio exato do que ela prescreve. Foi o caso do tipo de grosseriaque sucedeu, na época de Carlos II, à fanática intolerância moraldos puritanos. Quanto ao que se disse da necessidade de protegera sociedade contra o mau exemplo dado pelos viciosos oulevianos, é verdade que o mau exemplo pode ter um efeitopernicioso, sobretudo o mau exemplo de fazer impunementeinjustiça aos outros. Estamos, porém, fa lando da conduta que,sem fazer injustiça aos outros, se supõe causar grande dano aopróprio agente; e eu não vejo como os que crêem nesse danopossam julgar que o exemplo não tenha de ser, a fina l, maissa lutar que nocivo, desde que, se exibe a má conduta , exibe,

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outrossim, as penosas e degradantes conseqüências, que, se éjusta a censura que se faz à conduta , se deve supor, necessaria-mente, acompanharem o mau exemplo, em todos os casos, ou namaioria deles.

O mais forte, contudo, dos argumentos contra a interferên-cia do público na conduta puramente pessoa l, é que, quando eleinterfere, se pode apostar que interfere de modo errado, e emlugar errado. Nas questões de moralidade socia l, de dever paracom os outros, a opinião do público, isto é, de uma maioriadominante, embora muitas vezes errada, é natura l que seja , a indamais freqüentemente, certa , pois que, em ta is questões, ele ésolicitado a julgar apenas dos próprios interesses, da maneira porque a lgum modo de conduta , se se lhe permitisse a prática , oafetaria . Mas a opinião de semelhante maioria , imposta como leià minoria , em questões de conduta estritamente individual, tantopode ser certa como errada. Nesses casos, a opinião pública , namelhor hipótese, significa a opinião de a lgumas pessoas sobre oque é bom ou mau para outras pessoas. Muito freqüentemente,porém, nem mesmo isso significa , pois o público passa com amais perfeita indiferença sobre o prazer ou a conveniênciadaqueles cuja conduta censura , para só considerar a preferênciadele próprio. Muitos há que consideram uma injúria a si qualquerconduta de que não gostem, e que com ela se magoam como sefosse um ultra je aos seus sentimentos, da mesma forma por quese têm visto carolas que, acusados de desrespeito aos sentimentosreligiosos dos outros, retrucam, que estes é que desrespeitam ossentimentos deles por persistirem no abominável culto ou credoque professam. Mas não há paridade entre o que sente umapessoa pela sua própria opinião, e o que sente outra que éofendida no fato de professar a opinião – não mais que entre odesejo de um sa lteador de arrebatar uma bolsa , e o do seulegítimo dono de a conservar. E o gosto de uma pessoa é tantodo seu peculiar interesse como a sua opinião ou a sua bolsa . Éfácil a qualquer um imaginar um público idea l que deixe imper-turbadas a liberdade e a escolha dos indivíduos em todas asmatérias incertas, e só exija deles a abstenção dos modos deconduta condenados pela experiência universa l. Mas onde se viuum público que ta l limite pusesse à sua censura? Ou quando sepreocupa o público com a experiência universa l? Nas suasinterferências na conduta pessoa l, raras vezes pensa em coisadiversa da enormidade de agir ou sentir diferentemente dele. Eeste critério de apreciação, ligeiramente disfarçado, é defendido

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ante a humanidade, por nove décimos dos escritores moralistase especulativos, como preceito da religião e da filosofia . Essesescritores nos ensinam que as coisas retas o são porque são,porque as sentimos assim. Dizem-nos que procuremos nos pró-prios espíritos e nos próprios corações as leis da conduta queobrigam a nós e a todos os outros. Que resta ao pobre públicosenão aplicar essas instruções, e fazer dos seus sentimentospessoais do bem e do mal, se ele mantém uma tolerável unani-midade na matéria , sentimentos obrigatórios para todo o mun-do?

O mal aqui apontado não é mal que exista apenas em teoria .E ta lvez se espere que eu especifique exemplos nos quais opúblico desta época e deste país a tribua às suas preferências ocaráter de leis morais. Não estou escrevendo um ensa io sobre asaberrações do sentimento moral existente. Isso é assunto pordemais grave para ser discutido incidentemente e por via deilustração. Contudo, faz-se mister dar exemplos que mostrem sero princípio por mim defendido de importância séria e prática enão me estar esforçando por elevar uma barreira contra malesimaginários. E não é difícil patentear, por exemplos abundantes,que a largar os limites do que se pode chamar polícia moral, a téa usurpação da mais inquestionavelmente legítima liberdade doindivíduo, é uma das mais universa is inclinações humanas.

Como primeiro exemplo, considerem-se as antipatias nutri-das sem melhor fundamento do que o fato de os antipatizados,de opiniões religiosas diferentes, não praticarem as observânciasreligiosas do sujeito, especia lmente as abstinências. Para citarum exemplo a lgo trivia l, nada, no credo ou na prática doscristãos, acirra mais o ódio dos maometanos contra eles, do quecomerem carne de porco. Poucos fatos os cristãos e os europeusencaram com um desgosto mais sincero do que o que os muçul-manos sentem por esse modo particular de satisfazer a fome.Trata-se, em primeiro lugar, de uma ofensa à sua religião. Essacircunstância , porém, de nenhum modo explica o grau ou ogênero da sua repugnância , pois beber vinho, coisa tambémproibida pela sua religião, todos os muçulmanos julgam malfeito, mas não repulsivo. A aversão deles à carne da “bestaimunda” é, ao contrário, desse peculiar caráter, análogo a umaantipatia instintiva , que a idéia de porcaria uma vez infiltradanos sentimentos parece sempre suscitar, mesmo naqueles cujoshábitos pessoais são a lgo diverso do escrupulosamente limpo, ede que o sentimento de impureza religiosa , tão intenso nos

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hindus, é um notável exemplo. Suponhamos, agora , que, numpovo cuja maioria fosse muçulmana, esta teimasse por que nãose permitisse comer carne de porco dentro das fronteiras do país.Isso não constituiria nada de novo em países muçulmanos9.Tratar-se-ia de um exercício legítimo da autoridade moral daopinião pública? E, se não, por que não? A prática , proibida nahipótese, é rea lmente revoltante para ta l público. Ele pensa ,ademais, sinceramente, que ela é proibida e abominada pelaDivindade. Nem poderia a interdição ser censurada como perse-guição religiosa . Seria religiosa na sua origem, mas não perse-guição por religião, desde que a religião de ninguém faz do comerporco um dever. O único fundamento sustentável da recusa aopleiteado estaria em que o público não tem direito a interferirnos gostos pessoais e nos interesses estritamente particulares dosindivíduos.

Para nos aproximarmos mais de casa : os espanhóis, na suamaioria , consideram grave impiedade, ofensiva , no mais a ltograu, ao Ser Supremo, cultuá-lo de forma diversa da católicaromana; e nenhum outro culto público é lega l em solo espanhol.O povo de toda a Europa Meridional encara um clero casado nãosó como irreligioso, mas também como impudico, indecente,grosseiro, repugnante. Que pensam os protestantes desses senti-mentos perfeitamente sinceros e da tentativa de os impor aosnão-católicos? Contudo, se é legítimo interfira a humanidade naliberdade de cada um relativa ao que não concerne a interessesa lheios, segundo que princípio é possível, coerentemente, a fastaresses casos? Ou quem pode censurar as pessoas que desejemsuprimir o que lhes parece um escândalo aos olhos de Deus e doshomens? Não se pode encontrar caso mais eloqüente para aproibição do que se tenha por imoralidade pessoa l, do que oconstituído, aos olhos dos que encarem essas práticas comoimpiedades, pela sua supressão. E, a menos que sintamos boavon

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9. O caso dos parses de Bombaim é um curioso exemplo deste ponto.Quando essa industriosa e audaz tribo, descendente dos adoradores do fogopersa s, chegou, fugindo do pa ís na ta l ante os Ca lifa s, à Índia Ocidenta l, ossoberanos hindus consentiram em ser tolerantes para com ela , sob a condição deos seus membros não comerem carne de vaca . Quando aquela s regiões, mais ta rde,ca íram sob o domínio dos conquistadores maometanos, os parses obtiveram destesa continuação da tolerância , sob a condição de se absterem de carne de porco. Oque, a princípio, foi obediência à autoridade, tornou-se uma segunda natureza , eos parses, hoje em dia , abstêm-se quer da carne de vaca , quer da de porco. Emboranão requerida pela sua religião, a dupla abstinência teve tempo para se desenvol-ver em costume da tribo, e costume no Oriente é religião.

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ra acolher a lógica dos perseguidores, e para dizer que podemosperseguir os outros porque não estão certos, e que eles não devemperseguir-nos porque estão errados, devemos precatar-nos daadmissão de um princípio cuja aplicação a nós nos doeria comorude injustiça .

Pode-se objetar aos exemplos precedentes, embora irrazoa-velmente, que as contingências os tornam impossíveis entre nós:a opinião neste país não se adapta a impor a abstinência dea limentos, ou a interferir na maneira por que o povo, de acordocom o seu credo ou inclinação, pratique o culto, e prefira ocasamento ou o celibato. O seguinte exemplo, entretanto, serátirado de uma interferência na liberdade cujo perigo de nenhumaforma passou para nós. Onde quer que os puritanos tenham sidobastante fortes, como na Nova Inglaterra , e na Grã-Bretanha aotempo de república , eles se esforçaram, com bastante sucesso,por suprimir todos os divertimentos públicos, e quase todos osprivados: especia lmente a música , a dança, os jogos públicos, ououtras reuniões com propósitos diversivos, e o teatro. Existemainda neste país grupos grandes de pessoas cujas noções moraise religiosas condenam essas recreações. E, como essas pessoaspertençam principa lmente à classe média , que é o poder domi-nante na presente condição socia l e política do reino, não é denenhum modo impossível que pessoas desses sentimentos ve-nham, em a lgum momento, a dominar uma maioria no Legisla-tivo. Estimará a porção remanescente da comunidade que ossentimentos morais e religiosos dos mais estritos ca lvinistas emetodistas regulem que diversões lhe serão permitidas? Nãodesejaria , de um modo muito decisivo, que esses membros dasociedade, importunamente piedosos, se ocupassem com os ne-gócios dele? É isso precisamente que se tem a dizer a todogoverno e a todo público que pretendam não dever ninguémgozar de prazeres que julgam ilícitos. Mas se o princípio quefunda essa pretensão for admitido, ninguém pode razoavelmenteopor-se a que seja levado à prática no sentido da maioria ou deoutro poder preponderante no país. E todos devem estar prontosa se conformarem à idéia de uma república cristã , do tipo da dosprimeiros colonos da Nova Inglaterra , se uma profissão religiosasemelhante à deles lograr êxito, a lgum dia , em recuperar oterreno, como se viu acontecer, muitas vezes, com religiõessupostas declinantes.

Imaginemos outra contingência , mais própria , ta lvez, parase rea lizar que a última mencionada. Há, reconhecidamente,

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uma forte tendência , no mundo moderno, para uma constituiçãodemocrática da sociedade, acompanhada, ou não, de instituiçõespolíticas populares. Afirma-se que no país onde essa tendênciase rea liza de forma mais completa – onde tanto a sociedade comoo governo são muito democráticos, nos Estados Unidos, o senti-mento da maioria , ao qual desagrada qualquer aparência de umestilo de vida mais pomposo ou opulento do que pode ela esperaratingir, opera como uma lei suntuária de apreciável eficiência , eque em muitas partes da União é rea lmente difícil, para quempossua uma renda muito grande, achar um modo de a gastar quenão incorra na desaprovação do povo. Embora relatos como essessejam, sem dúvida, muito exagerados como representação dosfatos existentes, o estado de coisas que descrevem é um resultadonão somente concebível e possível, mas a inda provável, dosentimento democrático, combinado com a noção de possuir opúblico um direito de veto a respeito da forma por que osindivíduos gastam as suas rendas. Ademais, basta supor umadifusão considerável de opiniões socia listas para poder tornar-sedegradante, aos olhos da maioria , possuir a lgo mais que umapropriedade muito pequena, ou a lguma renda não provenientedo labor manual. Opiniões em princípio semelhantes a essas jápreva lecem, amplamente, na classe dos artesãos, e pesam, deuma maneira opressiva , sobre os que respondem perante aopinião dessa classe antes de qualquer outra – a saber, os seuspróprios membros. É sabido que os maus trabalhadores, queformam a maioria dos operários em muitos ramos da indústria ,são decididamente da opinião de que eles devem receber osmesmos sa lários que os bons e que a ninguém se deve permitiradquira , por meio do sa lário por peças ou de outra forma, e emvirtude de perícia ou destreza superior, mais que aos outros épossível sem essas qualidades. E eles empregam uma políciamoral, que ocasionalmente se torna fís ica , para impedir ostrabalhadores peritos de receber, e os empregadores de pagar,uma remuneração maior por um serviço mais útil. Se os assuntosprivados caem sob a a lçada do público, eu não posso ver comoestejam essas pessoas em fa lta , ou como qualquer público espe-cia l possa ser condenado por a firmar sobre a conduta pessoa l deum indivíduo a ele pertencente, a mesma autoridade que opúblico gera l a firma sobre o conjunto das pessoas.

Sem nos estendermos, porém, sobre casos hipotéticos,encontramos, nos nossos próprios dias, grosseiros esbulhos daliberdade da vida privada efetivamente praticados, e a inda maio-

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res ameaçados com certa expectativa de sucesso, e opiniõespropostas que afirmam um direito ilimitado do público, não sóde proibir por lei tudo que julgue mal feito, mas também, com ofim de atingir o mal feito, de proibir uma quantidade de coisasque ele admite serem inocentes.

A título de prevenir a intemperança, o povo de uma colôniainglesa , e de quase metade dos Estados Unidos, sofreu a interdi-ção lega l de fazer qualquer uso, exceto para propósitos médicos,de bebidas fermentadas: pois a proibição da sua venda é de fato,e pretende ser, proibição do seu uso. E embora a impraticabili-dade da execução da lei a tenha feito revogar em vários dosEstados que a adotaram, muitos filantropos professos iniciaram,não obstante, uma tentativa , e nela prosseguem com considerá-vel zelo, de agitar este país em prol de uma lei semelhante. Aassociação, ou “Aliança” como ela a si mesma se denomina, quese formou com esse propósito, adquiriu a lguma notoriedade como ser dada a público uma correspondência entre o seu secretárioe um dos muito poucos homens públicos ingleses que compreen-dem deverem as opiniões de um político fundar-se em princípios.A parte de Lord Stanley nessa correspondência é própria paraforta lecer as esperanças nele postas pelos que sabem quão raro,infelizmente, figuram na vida política qualidades como as que semanifestam em alguns aspectos públicos da sua personalidade.O órgão da Aliança, que “deploraria profundamente o reconhe-cimento de qualquer princípio que se pudesse forçar a justificara carolice e a perseguição”, empreende indicar “a larga e intrans-ponível barreira” que separa princípios dessa espécie dos do seugrêmio. “Todas as matérias rela tivas ao pensamento, à opinião,à consciência , parecem-me”, diz ele, “estar fora da esfera legis-la tiva ; todas as pertinentes ao ato, ao hábito e à relação socia is,sujeitos somente a um poder discricionário assumido pelo pró-prio Estado, e não pelo indivíduo, parecem-me estar dentro dela”.Nenhuma menção se faz de uma terceira categoria , diversa dequalquer dessas duas – a saber, a tos e hábitos não socia is, masindividuais; a inda que seja , seguramente, a essa categoria que oato de ingerir bebidas fermentadas pertença. Vender bebidasfermentadas é, em todo o caso, comerciar, e comerciar é um atosocia l. Mas a infração que se lamenta não é da liberdade dovendedor, mas da do comprador e consumidor; desde que tantofaz o Estado proibi-lo de beber vinho como tornar-lhe proposita-damente impossível obtê-lo. O secretário, todavia , diz: “

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Reivindico, como cidadão, o direito de legislar onde osmeus direitos socia is sejam invadidos pelo ato socia l de outrem”.E, agora , para a definição desses “direitos socia is”: “Se existe a lgoque invada os meus direitos socia is, esse a lgo é o trá fico debebidas fortes. Ele destrói o meu direito primário de segurança,por criar e estimular constantemente a desordem socia l. Invadeo meu direito de igualdade, tirando proveito da criação de umamiséria que sou taxado a suportar. Impede o meu direito ao livredesenvolvimento moral e intelectual, por cercar o meu caminhode perigos, e por enfraquecer e desmoralizar a sociedade, da qualtenho direito a reclamar a juda mútua e intercâmbio”. Uma teoriade “direitos socia is” cujas similares nunca, provavelmente, fa la-ram antes linguagem diversa : nada menos que isso – que cons-titui direito absoluto de todo indivíduo que cada outro indivíduoaja , a todos os respeitos, exatamente como é dever dele; quemquer que fa lte a este na menor particularidade, viola o meudireito socia l e autoriza-me a pedir à legislação que remova oagravo. Tão mostruoso princípio é muito mais perigoso quequalquer interferência especia l na liberdade; não há violação daliberdade que isso não pudesse justificar; esse princípio nãoreconhece direito a qualquer liberdade que seja , exceto, ta lvez,à de sustentar opiniões em segredo, sem jamais as revelar;porque, no momento em que uma opinião nociva ao meu verpassa pelos lábios de a lguém, ela invade todos os “direitossocia is” a mim atribuídos pela Aliança. A doutrina investe todosos homens de um direito à perfeição moral, intelectual, e mesmofísica , de cada outro indivíduo, perfeição que cada titular dodireito definirá em função do modelo que adote.

Outro importante exemplo de ilegítima interferência najusta liberdade individual, interferência não simplesmente amea-çada, mas há muito efetivamente triunfante, é o da legislaçãosabática . Sem dúvida, abster-se da usual ocupação quotidiana,em um dia por semana, tanto quanto as exigências da vida opermitam, embora a nenhum respeito religiosamente obrigatóriopara ninguém que não seja judeu, constitui costume a ltamentebenéfico. E, como esse costume não pode ser observado sem umacordo gera l nesse sentido entre as classes laboriosas, segue-sedaí que, em tanto que a lgumas pessoas podem impor, trabalhan-do, a mesma necessidade de trabalhar a outras, pode ser admis-sível e reto que a lei garanta a cada um a observância do costumepelos outros, suspendendo as mais importantes operações indus-tria is num dia especia l. Mas essa justificação, fundada no inte-

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resse direto que os demais têm em que cada um observe a prática ,não se aplica às ocupações de própria escolha, em que umapessoa possa julgar adequado empregar o seu lazer. Nem vale,no menor grau que seja , para as restrições lega is às diversões. Éverdade que a diversão de a lguns importa no trabalho de outros;mas o prazer, para não dizer a recreação útil, de muitos va le otrabalho de uns poucos, desde que a ocupação destes sejalivremente escolhida e possa ser livremente renunciada. Osoperários têm toda a razão em pensar que, se todos trabalhassemno domingo, o trabalho de sete dias teria de ser dado pelossa lários de seis dias; mas já , se a grande massa das atividades sesuspende, o pequeno número que, em bem da diversão a lheia ,deve a inda trabalhar, obtém um aumento proporcional dosganhos; e, ademais, estes não são obrigados a entregar-se a ta isocupações se preferem o ócio ao lucro. E, se quer mais umremédio, poder-se-ia achá-lo no estabelecimento, pelo costume,de um feriado em outro dia da semana para essas classesespecia is de pessoas. O único fundamento, pois, com que épossível defender as restrições às diversões domingueiras, temde ser o de que essas diversões constituem um mal do ponto devista religioso – e contra um ta l motivo de legislação jamais seráexcessivo o ardor com que se proteste. “Deorum injuriae Diiscurae”. Resta provar que a sociedade, ou a lgum dos seus funcio-nários, tenha recebido do a lto a missão de vingar qualquersuposta ofensa ao Onipotente que não seja ao mesmo tempo umainjúria aos nossos semelhantes. A noção de que um homemresponde por que outro seja religioso foi o fundamento de todasas perseguições religiosas em qualquer tempo levadas a efeito,e, se admitida , as justificaria por completo. Embora, o sentimentomanifestado nas repetidas tentativas de para lisar as viagensferroviárias no domingo, na oposição à abertura dos museus, enoutras coisas análogas, não tenha a crueldade dos antigosperseguidores, o estado de espírito por ele revelado é, essencia l-mente, o mesmo. É uma determinação de não tolerar façam osoutros o que a religião deles permite, mas não a do perseguidor.É uma crença de que Deus não só abomina o ato do descrente,mas a inda não nos julgará inocentes se o deixarmos em paz.

Não posso abster-me de acrescentar a esses exemplos dapequena conta em que comumente se tem a liberdade humana,a linguagem de manifesta perseguição usada pela imprensa destepaís quando chamada a noticiar o notável fenômeno do mormo-nismo. Muito se poderia dizer do inesperado e instrutivo fato de

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que uma pretensa nova revelação, sobre a qual uma religião sefundou, produto de pa lpável impostura , que nem mesmo opres tige de extraordinárias qualidades do fundador pode ampa-rar, seja crida por centenas de milhares, e tenha chegado a ser oa licerce de uma sociedade, na época dos jornais, das ferrovias edo telégrafo. O que aqui nos importa , porém, é que essa religião,como outras e melhores, conta os seus mártires; que o seu profetae fundador foi, em virtude do seu ensino, condenado à morte poruma turba; que outros dos seus aderentes perderam a vida pelamesma violência ilega l; que eles foram, em bloco, expulsos àforça do país em que primitivamente medraram; enquanto, agoraque foram acossados para um recesso isolado no meio de umdeserto, muitos, neste país, abertamente declaram que seria justo(apenas não é conveniente) enviar uma expedição contra eles, ecompeli-los pela força a se conformarem às opiniões a lheias. Oartigo da doutrina mormônica que mais antipatia provoca, anti-patia que transpõe, da maneira referida , os limites ordinários datolerância religiosa , é a permissão da poligamia, a qual, emboraautorizada aos maometanos, hindus e chineses, parece excitaruma inexaurível animosidade quando praticada por pessoas quefa lam inglês e se proclamam um ramo dos cristãos. Ninguémdesaprova mais profundamente do que eu essa instituição mor-mônica . Por muitas razões, uma das quais consiste em que, longede se amparar, de qualquer forma, no princípio da liberdade, éuma direta infração dele, pois que mera consolidação das cadeiasque prendem a metade da comunidade, e uma emancipação daoutra da reciprocidade de obrigações para com a primeira .Deve-se contudo recordar que essa relação é tão voluntária daparte das mulheres a que concerne e que podem ser consideradasas suas vítimas, como em qualquer outra modalidade da institui-ção do casamento. E, por mais surpreendente que ta l fa to possaparecer, tem ele a sua explicação nas idéias e costumes correntes,os quais, ensinando as mulheres a olharem o casamento como aúnica coisa necessária , tornam compreensível que muitas mulhe-res prefiram ser uma de várias esposas a não ser esposa demaneira nenhuma. Outros países não se viram solicitados areconhecer essas uniões nem a dispensar da observância das suasleis, por motivo de opiniões mormônicas, qualquer porção dosseus habitantes. Mas quando os dissidentes tiverem concedidoaos sentimentos hostis a lheios muito mais do que estes teriamdireito a reivindicar, e houverem deixado os países que conside-ram inadmissíveis as suas doutrinas, para se estabelecerem numremoto esconso do globo que eles tenham sido os primeiros seres

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humanos a habitar, será , então, difícil ver por que princípios, quenão os da tirania , se pode impedi-los de a í viverem sob as leis doseu agrado, desde que não agridam as outras nações, e dêem todaa liberdade de se irem embora àqueles que não estiverem satis-feitos com os seus métodos. Um escritor recente, a certos respei-tos de considerável mérito, propõe, para usar as suas própriaspalavras, não uma cruzada, mas uma civilizade , contra essacomunidade poligâmica , a fim de pôr termo ao que lhe pareceum passo atrás na civilização. Para mim também se trata de umpasso atrás na civilização; mas eu não penso que assista aqualquer comunidade o direito de forçar outra a ser civilizada.Enquanto as vítimas das más leis não invocarem a assistência deoutras comunidades, não posso admitir que gente inteiramentesem relações com elas intervenha, e exija que se ponha fim a umestado de coisas com o qual todos os interessados diretos pare-cem satisfeitos, porque seja ele um escândalo para pessoas,distantes de a lguns milhares de milhas, que nele não têm partenem interesse. Mandem missionários, se lhes agrada, pregarcontra o estado de coisas, e oponham-se, por qualquer meio lícito(e fazer ca lar os mestres do novo credo não é meio lícito), aoprogresso de ta is doutrinas em meio ao seu próprio povo. Se acivilização triunfou sobre a barbárie quando a barbárie dominavao mundo, é demais recear que a barbárie, depois de tão facilmen-te derrotada, reviva e domine a civilização. Uma civilização queassim pode sucumbir ante o inimigo vencido deve primeiro ter-setornado tão degenerada, que nenhum dos seus padres e prega-dores, nem ninguém mais, tem capacidades, ou assumirá openoso encargo, de se erguer por ela . Se assim for, quanto maiscedo ta l civilização se vir notificada a despejar, tanto melhor. Sópoderá ir de mal a pior, a té ser destruída e regenerada, como oImpério do Ocidente, por bárbaros enérgicos.

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CAPÍTULO V

Ap lic a ç õ e s

Os princípios a firmados nestas páginas precisam obter umaaceitação mais genera lizada como base da discussão de mi-

núcias, antes de se tentar, com perspectiva de sucesso, umaaplicação coerente sua a todos os diversos setores do governo eda moral. As poucas observações que me proponho a fazer sobrequestões de deta lhe visam ilustrar os princípios, antes que osacompanhar às suas conseqüências. Ofereço não tanto aplicaçõ-es, como exemplos de aplicação, os quais podem servir paratrazer maior clareza sobre o significado e os limites dos doispreceitos que, conjuntamente, formam a doutrina deste ensa io,e para auxiliar o entendimento a decidir entre eles, nos casos emque pareça duvidoso qual o aplicável.

O primeiro de ta is preceitos é que o indivíduo não respondeperante a sociedade pelas ações que não digam respeito aosinteresses de ninguém a não ser ele. Conselho, ensino, persuasão,esquivança da parte das outras pessoas se para o bem próprio ajulgam necessária são as únicas medidas pelas quais a sociedadepode legitimamente exprimir o desagrado ou a desaprovação daconduta do indivíduo. O segundo preceito consiste em que, poraquelas ações prejudicia is aos interesses a lheios, o indivíduo éresponsável, e pode ser sujeito à punição, tanto socia l como lega l,se a sociedade julga que a sua defesa requer uma ou outra .

Em primeiro lugar, não se deve, de nenhum modo, suporque, se dano, ou probabilidade de dano, aos interesses a lheios,pode, sem mais nada, justificar a interferência da sociedade, isso

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sempre justifique ta l interferência . Em muitos casos, um indiví-duo, visando um objetivo legítimo, causa , necessariamente, e,portanto, legitimamente, dor ou lesão a outros, ou intercepta umbem que eles tinham razoável esperança de obter. Tais conflitosde interesses entre indivíduos surgem, muitas vezes, de másinstituições socia is, mas são inevitáveis enquanto essas institui-ções duram, e a lguns seriam inevitáveis com quaisquer institui-ções. Quem quer que logre êxito numa profissão superlotada, ounum concurso, quem quer que seja preferido a outrem numadisputa por um objeto que ambos desejem, colhe benefício doprejuízo do outro, do seu esforço, desperdiçado e da sua desilu-são. Mas, para o interesse comum dos homens, é melhor, porconsenso gera l, que as pessoas procurem os seus objetivos semse desviarem por esse tipo de conseqüências. Em outras pa lavras,a sociedade não admite o direito, lega l ou moral, dos competido-res decepcionados à imunidade desse gênero de sofrimento. Esente-se solicitada a interferir somente quando os meios desucesso empregados não são permitidos, por contrários ao inte-resse gera l, como a fraude ou a deslea ldade, e a violência .

Assim, o comércio é um ato socia l. Quem quer que em-preenda vender ao público uma espécie qualquer de bens, fazcoisa que afeta os interesses das outras pessoas e da sociedadeem gera l, e, dessa maneira , a sua conduta , em princípio, reca isob a lçada da sociedade. Em conseqüência , considerou-se, outro-ra , obrigação dos governos, nos casos tidos por importantes, fixarpreços e regular os processos de manufatura . Hoje, porém, sereconhece, não sem se ter travado uma longa luta , que a baratezae a boa qualidade das mercadorias são mais eficientementeatendidas deixando-se os produtores e vendedores perfeitamentelivres, sob a única restrição de igual liberdade para os compra-dores se suprirem em outra parte. É a doutrina chamada dolivre-câmbio, que repousa sobre fundamentos diversos do prin-cípio da liberdade individual a firmado neste ensa io, emboraigualmente sólidos. Restrições ao comércio, ou à produção defins comercia is, são, na verdade, a tos de coação, e tudo que écoagido, qua coagido, é um mal. Mas as coações em apreçoafetam, apenas, aquela parte da conduta que a sociedade écompetente para coagir, e são injustos unicamente porque, defato, não produzem os resultados a lmejados. Assim como oprincípio da liberdade individual não é envolvido na doutrina dolivre-câmbio, assim também não o é na maior parte das questõesque surgem a respeito dos limites dessa doutrina; como, por

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exemplo, sobre que soma de controle público é admissível paraprevenir a fraude por adulteração; a té onde precauções sanitá-rias, ou disposições para proteger os trabalhadores empregadosem ocupações perigosas, devem ser impostas aos empregadores.Tais questões envolvem considerações de liberdade somente emtanto que deixar o povo entregue a si mesmo é sempre melhor,coeteris paribus , do que o controlar. Mas que ele pode legitima-mente ser controlado em vista de ta is fins, é um princípioinegável. De outro lado, há questões relativas à interferência nocomércio que constituem, essencia lmente, questões de liberdade,ta is como a lei do Estado do Maine já referida , a proibição daimportação de ópio na China, a restrição da venda de venenos,casos, todos, em suma, nos quais a fina lidade da interferência éimpossibilitar ou dificultar que se obtenha uma certa mercado-ria . Essas interferências são impugnáveis, como infrações, nãoda liberdade do produtor ou do vendedor, mas da liberdade docomprador.

Um desses exemplos, o da venda de venenos, abre umaquestão nova – os limites convenientes daquilo que se podechamar funções de polícia : a té que ponto a liberdade pode serlegitimamente invadida para fins de prevenção do crime ou deacidentes. Uma das funções governamentais incontrovertidas étomar precauções contra o crime antes da sua prática , tantoquanto a de investigá-lo e puni-lo depois. A função preventiva dogoverno, entretanto, presta-se muito mais a abusos, em prejuízoda liberdade, que a função repressiva , pois que dificilmente seencontra aspecto da legítima liberdade de ação de um serhumano que não possa ser concebido, até demais, como incre-mentador de facilidades para uma ou outra forma de delinqüên-cia . Toda via , s e uma a utorida de pública , ou mesmo umparticular, vê a lguém evidentemente preparando-se para come-ter um crime, nem um nem outro são obrigados a conservar-seinativos até que ele seja cometido, mas podem interferir para oobstar. Se nunca se trouxessem ou usassem venenos para propó-sitos outros que o de assassinar, justificar-se-ia proibir a suafabricação e venda. Eles podem, contudo, ser necessários não sópara fins inocentes, como também para fins úteis, e não é possívelimpor restrições num caso sem operarem no outro. De outro lado,é função própria da autoridade pública a prevenção de acidentes.Se a lguém foi visto, por um agente da autoridade ou outraqualquer pessoa , tentando atravessar uma ponte verificada peri-gosa , e não havia tempo de adverti-lo do perigo, essas pessoas

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podiam agarrá-lo e trazê-lo para trás sem lhe infringir rea lmentea liberdade: pois a liberdade consiste em fazer o que se deseja , eele não deseja ca ir no rio. Não obstante, quando não há certeza ,mas apenas perigo de um mal, ninguém, a não ser a própriapessoa, pode julgar da suficiência do motivo que pode levá-la acorrer o risco. Nesse caso, portanto, a menos que se trate de umacriança, ou de um tresvariado, ou de a lguém num estado deexcitação ou de absorção incompatível com o pleno uso dafaculdade reflexiva , deve-se apenas, penso, adverti-la do perigo,não impedi-la à força de se expor a ele. Considerações análogas,aplicadas a uma questão como a venda de venenos, podemhabilitar-nos a decidir quais, entre os modos possíveis de regu-lamentação, contrariam, ou não, o princípio. Uma cautela , porexemplo, como a de marcar a droga com alguma palavra queexprima o seu caráter perigoso, pode ser imposta sem violaçãoda liberdade: não é possível que o comprador queira ignorar tera coisa por ele possuída propriedades venenosas. Mas exigir, emtodos os casos, o certificado de um profissional da medicina,tornaria a lgumas vezes impossível, sempre dispendioso, obter oartigo para usos legítimos. Parece-me que o único modo pelo qualse pode pôr dificuldades ao crime que se cometa com esses meios,sem qualquer infração, que mereça levada em conta , à liberdadedos que desejem a substância venenosa para outros fins, consisteem providenciar o que, na linguagem adequada de Bentham, sechama “prova preconstituída” (pre-appointed evidence). Essa cau-tela é familiar a todos no caso de contratos. É usual e justo quea lei, quando um contrato é assentado, exija , como condição daobrigação de o cumprir, a observância de certas formalidades,ta is como assinaturas, a testação de testemunhas, e análogas, afim de que, no caso de disputa subseqüente, possa haver provade que rea lmente se convencionou o contrato e nas circunstân-cias nada houve que o inva lidasse ante a lei. O efeito disso ésuscitar grandes obstáculos aos contratos fictícios, ou aos con-tratos feitos em circunstâncias que, se conhecidas, destruiriam asua va lidez. Precauções de natureza similar poderiam ser impos-tas à venda de artigos próprios para servirem de instrumentos decrimes. O vendedor, por exemplo, poderia ser solicitado a lançarnum registro a época exata da transação, o nome e o endereçodo comprador, a precisa qualidade e quantidade vendida; aperguntar o fim para que o artigo é necessitado, e registrar aresposta recebida. Quando não houvesse prescrição médica , apresença de a lguma terceira pessoa poderia ser exigida , pararecordar o fato ao comprador, no caso de mais tarde haver razão

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para acreditar ter sido o artigo aplicado a propósitos criminosos.Tal regulamentação não seria , em regra , impedimento materia la obter o artigo, mas um obstáculo muito considerável a se fazerdele um uso impróprio que não fosse descoberto.

O direito inerente à sociedade de opor precauções préviasaos crimes contra ela sugere as limitações óbvias à máxima deque não se pode, com propriedade, em matéria de prevenção ourepressão, visar a má conduta relativa puramente a si próprio. Aembriaguez, por exemplo, nos casos ordinários, não é assuntoadequado à interferência legisla tiva ; mas eu julgaria perfeita-mente legítimo que uma pessoa já uma vez condenada por umato de violência contra outrem sob a influência da bebida fossecolocada sob uma restrição específica da lei, pessoa l a ela ; e quese, depois disso, fosse encontrada ébria , se visse sujeita a umapena, e se, nesse estado, houvesse cometido outro delito, apunição deste se tornasse mais severa . Embebedar-se, para a l-guém que a bebida excita a fazer mal aos semelhantes, é umcrime contra os outros. Assim também, a ociosidade, sa lvo emquem receba do público o sustento, ou quando ela constitua umainfração de contrato, não pode, sem tirania , tornar-se objeto depunição lega l; mas se por ociosidade, bem como por qualqueroutra causa evitável, a lguém fa lta à execução de deveres lega ispara com outrem, por exemplo ao sustento dos filhos, não étirania forçá-lo, pelo trabalho compulsório se nenhum outromeio é eficaz, a cumprir essa obrigação.

Há, a inda, muitos atos que, sendo diretamente injuriososapenas aos próprios agentes, a lei não deve interdizer, mas, sefeitos publicamente, violam as boas maneiras, e, entrando assimna categoria das ofensas aos outros, podem ser legitimamenteproibidos. Desse gênero são os agravos à decência . Sobre isso édesnecessário deter-nos, tanto mais que apenas indiretamente seliga ao nosso assunto, a condenação da publicidade possuindo amesma força no caso de muitas ações não reprocháveis em simesmas, nem tidas por ta l.

Há uma outra questão para a qual se deve achar umaresposta compatível com os princípios firmados. Em casos deconduta pessoa l julgados censuráveis, mas que o respeito àliberdade impede a sociedade de prevenir ou reprimir, porque omal diretamente resultante ca i todo sobre o autor; o que o autoré livre de fazer, podem outros ser igualmente livres de aconselharou instigar? Essa questão apresenta dificuldade. O caso de umapessoa que solicita outra a praticar um ato não é estritamente

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um caso de conduta relativa a si mesmo. Dar conselhos ou incitara lguém é um ato socia l e pode, portanto, como, em gera l, a s açõesque afetam os outros, ser socia lmente controlado. Se se refleteum pouco, contudo, corrige-se a primeira impressão, vendo-seque, se o caso não está estritamente dentro da definição daliberdade individual, entretanto as razões sobre as quais se fundao princípio da liberdade, se lhe aplicam. Se se deve conceder àspessoas que a jam, no que quer que respeite somente a elas, comolhes pareça melhor, sob o seu próprio risco, igualmente se devedar-lhes liberdade para consultarem outrem sobre o que sejapróprio para ser assim feito, para trocarem opiniões, para ofere-cerem e receberem sugestões. O que quer que seja permitidofazer, deve ser permitido aconselhar que se faça . A questãotorna-se duvidosa somente quando o instigador tira um proveitopessoa l do conselho; quando, para fins de subsistência ou deganho pecuniário, faz promover o que a sociedade e o Estadoconsideram um mal a sua ocupação. Aí, de fato, se introduz umnovo elemento que complica a coisa , a saber, a existência declasses de pessoas de interesse oposto ao que é considerado obem público, e cujo modo de viver se baseia na contradição a ele.Deve-se, ou não, interferir nisso? Deve-se, por exemplo, tolerara luxúria , e assim também o jogo; mas deve a lguém ter liberdadepara ser um rufião ou para explorar uma casa de tavolagem? Ocaso é dos que se mantêm na exata linha divisória entre doisprincípios, e não é desde logo visível a qual dos dois pertencecom propriedade. Há argumentos a favor de ambos os lados. Dolado da tolerância pode-se dizer que o fato de se entregar a a lgocomo ocupação, e disso viver e se aproveitar, não pode tornarcriminoso aquilo que, se não constituísse a ocupação do que sevive, seria admissível; que o ato deve ser coerentemente permi-tido ou coerentemente proibido; que, se os princípios até aquisustentados são verdadeiros, à sociedade não compete, comosociedade, decidir se a lgo, que concerne somente ao indivíduo,é errado; que ela não pode ir a lém da dissuasão, e que, também,se uma pessoa é livre para dissuadir, outra deve ser igualmentelivre para persuadir. Em contrário pode-se a firmar: que, emboranão se justifique o público ou o Estado decidam, autoritariamen-te, para fins de repressão ou punição, que ta l ou ta l conduta , queafeta apenas interesses individuais, é boa ou má, é plenamentelegítimo presumam, se a olham como má, que a questão é, a fina l,discutível; que, suposto isso, eles não podem estar agindo erra-damente quando se esforçam por excluir a influência de solici-tações que não são desinteressadas, de instigadores que ta lvez

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não possam ser imparcia is – que têm um direto interesse pessoa lnum dos lados, precisamente aquele que o Estado crê errado, eque confessadamente o promovem por puros objetivos pessoais.É possível, a inda, insistir-se em que seguramente nada se podeperder, o bem não é sacrificado, com o se regularem assimmatérias, de modo que as pessoas façam a sua escolha, sábia ouestupidamente, segundo a própria persuasão, livres, o quantopossível, de artifícios de outros que, com propósitos interessados,lhes estimulem as inclinações. Assim (pode-se dizer), embora osregulamentos respeitantes aos jogos ilícitos sejam tota lmenteindefensáveis – embora todos devam ter a liberdade de jogar nasua casa ou na de outrem, ou em a lgum lugar de reuniãoestabelecido por contribuições suas e aberto apenas aos sócios esuas visitas – já as casas de tavolagem públicas não devem serpermitidas. É verdade que a proibição jamais é efetiva e que,qualquer que seja a soma de poder tirânico atribuída à polícia ,as casas de tavolagem podem manter-se sob outros pretextos.Mas pode-se compeli-las a conduzirem as suas atividades comcerto grau de segredo e mistério, de maneira que, sa lvo os queas procurem, ninguém sa iba nada sobre elas; e a sociedade nãodeve visar mais do que isso. Há considerável força nesses argu-mentos. Não me aventurarei a decidir se são suficientes parajustificarem a anomalia moral de punir o acessório quando oprincipa l é (e deve ser) concedido, de multar e aprisionar orufião, mas não o impudico, o dono da casa de jogo, mas não ojogador. Ainda menos se deve interferir nas operações comunsde comprar e vender com semelhantes fundamentos. Quase tudoque se compra e vende, pode ser usado em excesso, e os vende-dores têm interesse pecuniário em estimular o exagero. Mas nãose pode basear nisso argumentação nenhuma em favor, porexemplo, da lei do Maine, pois que o uso legítimo das bebidasfortes torna indispensável a classe dos comerciantes dessasbebidas, embora se interessem por que se abuse delas. Contudo,ta l interesse em promover a intemperança é um mal efetivo ejustifica que o Estado imponha restrições e exija garantias que,sem essa justificação, infringiriam a liberdade legítima.

Uma nova questão consiste em dever, ou não, o Estadodesencora jar indiretamente uma conduta que ele permite, masque, não obstante, julga contrária aos melhores interesses doagente; saber, por exemplo, se deveria tomar medidas que tor-nassem mais custosos os meios da embriaguez, ou aumentar adificuldade de os procurar limitando os loca is da venda. Nisso,

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como em muitas outras questões práticas, se requerem muitasdistinções. Taxar estimulantes com o único propósito de fazer asua obtenção mais difícil é uma medida que apenas em graudifere da completa proibição, e só se justificaria se esta sejustificasse. Cada aumento de custo é uma proibição para aquelescujos meios não vão até o preço encarecido. E para aqueles cujosmeios chegam lá , é uma penalidade que se lhes impõe pelasatisfação de um gosto particular. A sua escolha de prazeres, oseu modo de gastar dinheiro, uma vez satisfeitas as obrigaçõeslega is e morais para com o Estado e para com os indivíduos, sãoassuntos particulares deles, e devem assentar sobre a sua própriaapreciação. Essas considerações podem parecer, à primeira vista ,condenar a escolha de estimulantes como objetos especia is detaxação para fins de renda. É preciso, porém, lembrar que ataxação com propósitos fisca is é absolutamente inevitável; quena maior parte dos países é necessário que considerável partedessa taxação seja indireta ; que o Estado não pode, portanto,abster-se de lançar impostos, que para a lgumas pessoas podemser proibitórios, sobre o uso de a lguns artigos de consumo. Dondeo dever do Estado de considerar, na imposição de taxas, quemercadorias são mais dispensáveis para os consumidores, e, afortiori, de selecionar, de preferência , aquelas cujo uso a lém dequantidade muito moderada lhe parece positivamente nocivo. Ataxação, pois, de estimulantes, a té o ponto que produza a maiorsoma de renda (supondo que o Estado careça de toda a rendaque ela produza), não só é admissível, como a inda merece seraprovada.

A questão de fazer da venda dessas mercadorias um privi-légio mais ou menos exclusivo deve ser solucionada diferente-mente s egundo a s fina lidades de que se tenciona torna rdependente a restrição. Todos os lugares de reunião públicaexigem a presença da coação policia l, e lugares do gênero emapreço peculiarmente, visto que propícios, de modo especia l, aosurgimento de ofensas à sociedade. É, portanto, adequado con-finar a venda de ta is mercadorias (pelo menos, para consumo nolugar) a pessoas de conhecida e garantida respeitabilidade;regular o horário de abertura e fechamento do modo convenienteà vigilância pública , e cassar a licença se perturbações da paz severificam repetidamente com a conivência ou pela incapacidadedo dono, ou se a casa se torna ponto de reunião para se tramareme prepararem atentados contra a lei. Não concebo que se justifi-que, em princípio, qualquer outra restrição. Limitar, por exem-

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plo, o número das casas de cerveja e bebidas espirituosas, com ofim expresso de torná-las de mais difícil acesso, e de diminuir asocasiões de tentação, não apenas expõe todos a uma inconve-niência pelo fato de haver a lguns que abusariam da facilidade,como a inda só é apropriado a um estado socia l em que as classestrabalhadoras são francamente tratadas como crianças ou selva-gens, e postas sob uma coerção educativa para as adaptar à futuraadmissão aos privilégios da liberdade. Não é por esse princípioque se governam as classes trabalhadoras em qualquer país livre,e ninguém que dê à liberdade o va lor devido assentirá em quesejam elas assim governadas, a não ser depois que se tenhamesgotado todos os esforços no sentido de as educar para aliberdade e de as governar como a homens livres, e que se tenhadefinitivamente provado só ser possível governá-las como acrianças. Basta pôr essa a lternativa para que se evidencie oabsurdo de supor tenham sido ta is esforços feitos em a lgum casoque se necessite considerar aqui. É somente por serem as insti-tuições deste país um amontoado de incoerências, que encon-tram acolhida na nossa prática coisas que pertencem ao sistemade governo despótico, também chamado paternal, enquanto olibera lismo gera l das nossas instituições impede a soma decontrole necessária para dar à repressão uma eficácia positiva deeducação moral.

Já se disse, numa das primeiras partes deste ensa io, que aliberdade do indivíduo, em coisas nas quais só ele é interessado,implica uma correspondente liberdade em qualquer número deindivíduos para se acordarem mutuamente em regular coisas quedigam respeito a eles em conjunto, e só a eles e a mais ninguém.O problema é fácil enquanto a vontade desses indivíduos perma-nece ina lterada. Mas, desde que ela pode mudar, é necessário,muitas vezes, mesmo em coisas em que são os únicos interessa-dos, que esses indivíduos assumam obrigações recíprocas; e,quando o fazem, a regra adequada é que lhes cabe manter oscompromissos. Todavia , nas leis , provavelmente de todos ospaíses, essa regra gera l conta a lgumas exceções. Não somente aspessoas não estão adstritas a obrigações que violam direitos deterceiros, mas a inda, a lgumas vezes, se considera razão suficientepara as liberar de uma obrigação o ser prejudicia l a elas próprias.Neste e na maior parte dos países civilizados, por exemplo, umaconvenção pela qual a lguém se venda, ou se dê para ser vendido,como escravo, seria nula e sem efeito – nem a lei nem a opiniãolhe atribuiriam va lidade. O fundamento para assim limitar o

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poder de voluntariamente dispor da própria sorte na vida évisível, e muito claramente se patenteia nesse caso extremo. Arazão para não interferir nos atos voluntários de a lguém a nãoser tendo em vista os outros é a consideração pela sua liberdade.A sua escolha voluntária é prova de que o assim escolhido lhe édesejável, ou ao menos suportável, e a tende-se melhor ao seubem, em conjunto, permitindo-lhe que utilize os seus própriosmeios de o buscar. Mas, vendendo-se a si mesmo como escravo,ele abdica da liberdade, renuncia a qualquer uso futuro dela paralá desse único ato. Portanto, anula , no próprio caso, a verdadeirafina lidade que justifica permitir-se-lhe dispor de si. Já não é maislivre, mas está , da í por diante, numa posição que não mais sepresume surja da sua vontade de permanecer nela . O princípioda liberdade não pode implicar que ele tenha a liberdade de nãoter liberdade. Não é liberdade ser autorizado a a lienar a liberda-de. Essas razões, de tão conspícua força nesse caso particular,são, evidentemente, de muito mais larga aplicabilidade. Contu-do, um limite é, por toda a parte, posto a elas pelas necessidadesda vida , que continuamente exigem, não, é claro, que renuncie-mos à liberdade, mas que consintamos nesta ou noutra limitaçãodela . O princípio, porém, que demanda liberdade incontroladaem tudo o que diz respeito apenas aos agentes, requer que os quese tornaram reciprocamente obrigados em coisas que não con-cernem a um terceiro possam liberar, um ao outro, da obrigação.E, mesmo sem essa liberação voluntária , não há, ta lvez, contratosou obrigações, exceto relativos a dinheiro ou ao que tem va lorde dinheiro, a respeito de que se possa ousar dizer que não hajanenhuma liberdade de retratação. Guilherme de Humboldt, noexcelente ensa io já citado por mim, estabelece como convicçãosua que obrigações que envolvam relações pessoais ou serviçosnunca deveriam ter efeitos lega is a lém de uma duração limitada;e que o mais importante desses compromissos, o casamento,possuindo a peculiaridade de se frustrarem os seus objetivos seos sentimentos de ambas as partes já não se apegam mais a ele,deve ter a sua dissolução dependente apenas da vontade decla-rada de ambas as partes nesse sentido. O assunto é muitoimportante e muito complicado para ser discutido num parênte-se, e eu só o toco em tanto que é necessário para fins ilustrativos.Se o laconismo e a genera lidade da dissertação de von Humboldtnão o tivessem forçado, nesse exemplo, a contentar-se comenunciar a conclusão sem discutir as premissas, ele teria indubi-tavelmente reconhecido que a questão não se pode debater comfundamentos tão simples como aqueles a que se confina. Quando

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a lguém, ou por explícita promessa , ou pela maneira de seconduzir, levou outrem a contar com a continuidade sua em certaforma de agir – a construir esperanças, a fazer cá lculos e a apoiaruma parte qualquer do plano de vida sobre a suposição dessacontinuidade – uma série nova de obrigações morais lhe surgempara com essa outra pessoa , sobre as quais ele pode passar, masque não pode ignorar. E, a inda uma vez, se à relação entre asduas partes contratantes se seguiram conseqüências para ou-trem, se essa relação colocou terceiros numa posição especia l ou,como no caso do matrimônio, chamou terceiros à vida , paraambas as partes contratantes surgem obrigações ante essesterceiros, cujo cumprimento ou, em todo o caso cujo modo decumprimento, tem de ser grandemente a fetado pela continuaçãoou pela ruptura do laço entre os contratantes originários. Não seconclui daí, nem eu posso admitir, que essas obrigações cheguemao ponto de se exigir o cumprimento do contrato à custa , dequalquer forma, da facilidade da parte relutante, mas são umelemento que se não pode desprezar no problema. E mesmo quenão devam influir na liberdade legal das partes de se desobriga-rem do compromisso, como von Humboldt defende (e eu tambémpenso que não devem influir muito ), necessariamente elas in-fluem na liberdade moral. Uma pessoa é obrigada a ponderartodas essas circunstâncias antes de se decidir a um passo quepode afetar tão importantes interesses a lheios; e, se não concedea atenção conveniente a esses interesses, é moralmente respon-sável pelo mal resultante. Fiz essas observações óbvias paramelhor ilustrar o princípio gera l da liberdade, e não porque secareça inteiramente delas nesta questão particular, que, aocontrário, é habitua lmente discutida como se o interesse dosfilhos fosse tudo, e dos adultos nada.

Eu já assina lei que, devido à ausência de quaisquer princí-pios gera is reconhecidos, a liberdade é, muitas vezes, concedidaonde devia ser recusada e recusada onde devia ser concedida. Enum dos casos em que, no mundo europeu moderno, o sentimen-to de liberdade é mais forte, ele está , a meu ver, completamentedeslocado. Deve haver liberdade para se fazer aquilo de que segosta no que é estritamente de interesse individual. Mas não devehaver liberdade para agir por outro, sob o pretexto de que osnegócios do outro são os nossos próprios negócios. O Estado, aomesmo tempo que respeita a liberdade de cada um no estrita-mente individual, é obrigado a manter um controle vigilantesobre o exercício de qualquer poder sobre os outros que conceda

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a a lguém. Ele quase inteiramente desatende a essa obrigação nocapítulo das relações de família – caso mais importante, pela suadireta influência sobre a felicidade humana, que todos os outrostomados conjuntamente. Não precisamos estender-nos aqui so-bre o quase despótico poder dos maridos sobre as mulheres. Nadaé mais necessário para o completo removimento do mal do quegozarem as mulheres dos mesmos direitos, e deverem receber aproteção da lei da mesma maneira , que todas as outras pessoas;a lém de que, nesse assunto, os defensores da injustiça estabele-cida não se va lem da reivindicação de liberdade, mas se apresen-tam, abertamente, como campeões da força . É no caso dos filhosque noções de liberdade mal aplicadas constituem obstáculo rea lao cumprimento dos deveres pelo Estado. Poder-se-ia quasepensar que os filhos de um homem são considerados, litera lmen-te, e não metaforicamente, uma parte dele, tão ciosa é a opiniãoda menor interferência da lei no absoluto e exclusivo controledos pais sobre os filhos – mais ciosa dessa do que de qualqueroutra interferência na liberdade de ação de um indivíduo: tantomenor va lor dão os homens à liberdade que ao poder. Conside-remos, por exemplo, o caso da educação. Não constitui quase umaxioma, evidente por si mesmo, que o Estado deve solicitar eobrigar a educação, conforme a um certo tipo, de todo serhumano que é seu nacional? Entretanto, quem não receia reco-nhecer e a firmar essa verdade? Quase ninguém, sem dúvida,negará ser dos mais sagrados deveres dos pais (ou, como a lei eo uso agora estabelecem, do pai) , depois de terem trazido um serhumano ao mundo, darem-lhe uma educação que o adapte a bemdesempenhar, na vida , o seu papel para com os outros e paraconsigo. Mas, enquanto unanimemente se declara isso deverpaterno, raramente a lguém, neste país, suportará que se fa le emobrigar o pai a cumprir esse dever. Ao invés de se lhe reclamara lgum esforço ou sacrifício para assegurar educação ao filhodeixa-se à sua escolha aceitar, ou não, que ela seja gratuitamenteatendida ! Não se reconhece, a inda, que trazer à existência umfilho sem uma justa perspectiva de poder dar-lhe não só a limentoao corpo, como também instrução e treino ao espírito, é um crimemoral, tanto contra o infeliz rebento como contra a sociedade; eque, se o progenitor não satisfaz a essa obrigação, o Estado devevelar pelo seu cumprimento, à custa daquele, tanto quantopossível.

Uma vez admitido o dever de impor a educação universa l,teriam fim as dificuldades a respeito do que o Estado deve

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ensinar, e como deve ensinar, que ora convertem o assunto numcampo de bata lha para seitas e partidos, consumindo, em quere-las sobre a educação, tempo e trabalho que deveriam ser gastosem educar. Se o governo se resolvesse a exigir para cada criançauma boa educação, poderia poupar-se ao incômodo de a provi-denciar. Poderia deixar aos pais o obter a educação onde e comolhes agradasse, e contentar-se com auxiliar o pagamento dasdespesas de escola das crianças mais pobres, custeando as des-pesas tota is das que não tenham quem por elas pague. Asfundadas objeções que se fazem à educação pelo Estado não seaplicam à imposição pelo Estado da obrigação de educar, mas aofato de assumir o Estado a direção dessa educação – o que é coisainteiramente diversa . Eu estou tão longe como qualquer outro depleitear fique a educação do povo, no todo ou em grande parte,nas mãos do Estado. Tudo o que se disse da importância daindividualidade de caráter, e da diversidade de opiniões e demodos de conduta , envolve, como sendo da mesma indizívelimportância , a diversidade de educação. Uma educação gera lpelo Estado é puro plano para moldar as pessoas de formaexatamente semelhante. E, como o molde em que são plasmadasé o que agrada a força dominante no governo, quer seja esta ummonarca , um clero, uma aristocracia , quer a maioria da geraçãoexistente, a educação pelo Estado, na medida em que é eficaz ebem sucedida, estabelece um despotismo sobre o espírito, que,por uma tendência natura l, conduz a um despotismo sobre ocorpo. Uma educação estabelecida e controlada pelo Estado sódeveria existir, se devesse, como um dentre muitos experimentosem competição, executado com o fim de exemplo e estímulo, paramanter os outros em harmonia com um certo padrão de excelên-cia . Realmente, apenas quando a sociedade se encontra , emgera l, numa situação de ta l a traso, que não poderia providenciarou não providenciaria , por si mesma, quaisquer instituiçõesconvenientes de educação sa lvo empreendendo o governo atarefa , só então, na verdade, pode o governo, como o menor dedois grandes males, tomar sobre si o cuidado das escolas e dasuniversidades, como pode assumir o das sociedades anônimasquando o empreendimento privado, numa forma adequada àrea lização das grandes obras da indústria , não existe no país.Mas, em regra , se o país conta um número suficiente de pessoasqualificadas para atender à tarefa da educação sob os auspíciosdo governo, as mesmas pessoas teriam capacidade e boa vontadepara fornecer uma educação igualmente boa dentro do princípioda voluntariedade, uma vez garantida a sua paga pela existência

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de uma lei que tornasse compulsória a educação, combinada coma a juda do Estado aos incapazes de custear as despesas.

O meio por que se executaria a lei poderia não ser outrosenão exames públicos extensivos a todas as crianças, desdetenros anos. Poder-se-ia fixar uma unidade na qual toda criançadevesse sujeitar-se a exame que averiguasse se ele, ou ela , sabeler. Se uma criança demonstra não o saber, o pai, a menos quetenha fundamento bastante para a excusa , poderia sofrer umamulta moderada, a ser satisfeita , se necessário, por trabalho e acriança ser posta em escola às suas expensas. Uma vez por ano,o exame seria renovado, com uma série de matérias gradualmen-te ampliada, de modo a tornar virtua lmente compulsória aaquisição universa l e, o que é mais, a universa l retenção de umcerto mínimo de conhecimento gera l. Para lá desse mínimo,haveria exames facultativos sobre todos os assuntos, em quepoderiam pleitear um certificado todos os que atingissem umcerto padrão de proficiência . Para impedir o Estado de influên-cias de modo inconveniente, a través dessas medidas, a opinião,o conhecimento requerido para passar um exame (a lém daspartes meramente instrumentais do conhecimento, como aslínguas e o seu uso) se limitaria , mesmo nas mais a ltas categoriasde exame, a fa tos e à ciência positiva . Os exames sobre religião,política , ou outros tópicos controvertidos, não versariam sobre averdade ou a fa lsidade das opiniões, mas sobre a matéria de fatode que ta l opinião é sustentada, com ta is fundamentos, por ta isautores, escolas ou igrejas. Sob esse sistema, a geração nascentenão estaria pior, em relação a todas as verdades controvertidas,do que se está no presente. Os seus membros seriam educadoscomo anglicanos ou dissidentes ta l como hoje, cuidando o Estadomeramente de que fossem anglicanos instruídos ou dissidentesinstruídos. Nada os impediria de obterem o ensino de religião,se os pais o quisessem, nas mesmas escolas em que se lhesensinam outras coisas. Todas as tentativas do Estado para influirnas conclusões dos seus cidadãos sobre matérias debatidas sãoum mal. Mas ele pode, com muita propriedade, oferecer-se paraaveriguar e certificar que a lguém possui o conhecimento precisopara tornar as suas conclusões, sobre qualquer assunto dado,dignas de atenção. Um estudante de filosofia estaria nas melho-res condições para sofrer um exame sobre Locke e sobre Kant,quer siga um, quer siga outro, quer não siga nenhum dos dois;e não há objeção razoável a que se examine um ateu sobre asprovas do cristianismo, desde que se não exija dele que nelas

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acredite. Penso, contudo, que os exames nos mais a ltos ramos doconhecimento deviam ser inteiramente voluntários. Dar-se-ia umpoder muito perigoso aos governos permitindo-se a eles excluí-rem a lguém de profissões, mesmo da profissão de mestre, emvirtude de uma a legada deficiência de qualidades. E eu penso,com Guilherme de Humboldt, que graus, ou outros certificadospúblicos de aquisições científicas ou profissionais, deveriam serdados a todos que se apresentem a exame e resistam à prova,mas não deveriam conferir vantagens sobre os competidores amais do peso que a opinião pública atribua ao seu testemunho.

Não é apenas na matéria da educação que noções deliberdade deslocadas impedem se reconheçam obrigações moraisda parte dos progenitores, bem como se imponham a elesobrigações lega is, em casos nos quais se patenteiam as maisvigorosas razões para aquele reconhecimento, sempre, e paraesta imposição, muitas vezes. O fato, em si, de dar existência aum ser humano, é uma das ações de maior responsabilidade naseqüência da vida . Assumir essa responsabilidade – concederuma vida que pode ser uma maldição ou uma bênção – sem queo ser vindo à luz conte, ao menos, com as probabilidadesordinárias de uma existência desejável, é um crime contra esseser. E num país superpovoado, ou ameaçado disso, procriar filhospara lá de um número muito pequeno, com o efeito de reduzir apaga do trabalho pela sua concorrência , constitui um sérioagravo a todos os que vivem da remuneração do seu labor. Asleis que, em muitos países do Continente, proíbem o matrimôniose as partes não podem demonstrar que possuem os meios desustentar uma família , não excedem os poderes legítimos doEstado; e, quer ta is leis sejam convenientes, quer não (problemaesse que depende, sobretudo, das circunstâncias e sentimentosloca is) , elas não são impugnáveis como violações da liberdade.Tais leis são interferências do Estado para proibir um ato perni-cioso – um ato danoso aos outros, que deve ser socia lmentereprovado e estigmatizado, mesmo quando não se julgue opor-tuno acrescentar a punição lega l. Contudo, as idéias correntesde liberdade, que se curvam tão facilmente ante rea is infraçõesda liberdade do indivíduo em coisas que só a ele concernem,repeliriam a tentativa de pôr freio às inclinações dele, quando aconseqüência de ta l indulgência é uma vida (ou vidas) de misériae de depravação para a prole, com inúmeras más conseqüênciaspara aqueles que estiverem suficientemente ao a lcance paraserem, de a lguma maneira , a fetados pelas ações dos novos seres.

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Quando comparamos o estranho respeito dos homens pela liber-dade com a sua estranha fa lta de respeito pela mesma liberdade,poderíamos imaginar que uma pessoa tem um direito imprescin-dível a fazer mal aos outros, e absolutamente nenhum direito ase conceder um prazer sem causar sofrimento a a lguém.

Reservei para o último lugar uma grande classe de questõesrelativas aos limites da interferência governamenta l, a s quais,embora ligadas de perto com o assunto deste ensa io, não perten-cem estritamente a ele. Há casos em que as razões contra ainterferência não versam sobre o princípio de liberdade; a ques-tão não é de restringir as ações dos indivíduos, mas de auxiliá-los:pergunta-se se o governo deve fazer, ou provocar que se faça ,a lgo em benefício dos indivíduos, ao invés de deixar que elespróprios o façam, individualmente ou em associação voluntária .

As objeções à interferência governamenta l, quando ela nãoenvolve desrespeito à liberdade, podem ser de três gêneros.

O primeiro gênero é relativo a coisas mais adequadas aserem feitas pelos indivíduos do que pelo governo. Em gera l,ninguém está mais em condições de conduzir um negócio, ou dedeterminar como e por quem deva ser conduzido, do que ospessoa lmente interessados nele. Esse princípio condena as inter-ferências, outrora tão comuns, da Legisla tura , ou dos funcioná-rios governamentais, nos processos ordinários da indústria . Essaparte do assunto, porém, foi suficientemente explanada porautores de economia política , e não se relaciona particularmentecom os princípios deste ensa io.

A segunda objeção é ligada mais de perto com o nossoassunto. Há muitos casos nos quais, embora os indivíduos, emregra , não possam fazer a coisa em apreço tão bem como osfuncionários governamentais, é, entretanto, desejável que sejafeita por eles, antes que pelo governo, como um meio para a suaeducação menta l – um modo de robustecer as suas faculdadesativas, exercitando o seu discernimento, e proporcionando-lhesfamiliaridade com os assuntos cujo trato lhes é assim deixado.Esta é, não a única , mas uma das principais razões que recomen-dam o julgamento pelo júri (em casos não políticos), as institui-çõe s loca is de ca rá te r l ivre e popula r ; a conduçã o dosempreendimentos industria is e filantrópicos por associações vo-luntárias. Essas questões não são de liberdade, e só por tendên-cia s remota s s e lig a m a o a s sunto; ma s s ã o que s tõe s dedesenvolvimento. Esta não é a ocasião de se demorar nessas

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coisas como aspectos da educação nacional, como constituindo,na verdade, o treinamento peculiar de um cidadão, a parteprática da educação política de um povo livre, que o tira parafora do círculo estreito do egoísmo pessoa l e familiar, e oacostuma à compreensão dos interesses coletivos, à administra-ção de interesses coletivos – habituando-o a agir por motivospúblicos e semipúblicos e a guiar a conduta por a lvos que unemas pessoas, ao invés de as isolarem umas das outras. Sem esseshábitos e poderes, uma constituição livre não pode ser cumpridanem preservada, como se exemplifica pela natureza muito fre-qüentemente transitória da liberdade política em países nosquais ela não repousa sobre uma base suficiente de liberdadesloca is. A administração dos negócios puramente loca is pelasloca lidades, e dos grandes empreendimentos industria is pelaunião daqueles que voluntariamente fornecem os meios pecuniá-rios, é, ademais, recomendada por todas as vantagens atribuídasneste ensa io à individualidade de desenvolvimento e à diversida-de dos modos de ação. As operações governamentais tendem aser, por toda a parte, semelhantes. Com os indivíduos e asassociações voluntárias, ao contrário, há ensa ios diversos, e umainfinda variedade de experiência . O que o Estado pode utilmentefazer é tornar-se um depósito centra l da experiência resultantedos muitos ensa ios, e um ativo fator da sua circulação e difusão.O que lhe compete é habilitar cada experimentador a se benefi-ciar das experiências a lheias, ao invés de não tolerar outrasexperiências senão as próprias.

A terceira e mais eficaz razão para limitar a interferênciado governo é o grande perigo de lhe aumentar desnecessaria-mente o poder. Toda função que se acrescente às já exercidaspelo governo difunde mais largamente a influência deste sobreas esperanças e os temores, e converte, cada vez mais, a partemais a tiva e ambiciosa do público em pingentes do governo, oude a lgum partido que visa tornar-se governo. Se as estradas, asferrovias, os bancos, os escritórios de seguros, as grandes socie-dades anônimas, fossem ramos do governo; se, ademais, ascorporações municipais e os conselhos loca is, com tudo que hojereca i sob a sua a lçada, se tornassem departamentos da adminis-tração centra l; se os empregados de todos esses diversos em-preendimentos fossem nomeados e pagos pelo governo, e destedependessem para cada ascensão na vida ; nem toda a liberdadede imprensa e toda a constituição popular da legisla tura pode-riam fazer deste, ou de outro país, pa íses livres senão de nome.

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E o mal seria tanto maior quanto mais eficientemente e cientifi-camente se construísse a máquina administrativa – quanto maishábil fosse o plano para obter que as mais qualificadas mãos ecabeças se pusessem a fazê-la funcionar. Na Inglaterra se propôsrecentemente que todos os funcionários civis do governo fossemselecionados por concurso, a fim de trazer para ta is empregos aspessoas mais inteligentes e instruídas que se pudessem encon-trar, e muito se tem escrito e dito pró e contra essa proposta . Umdos argumentos em que os adversários da medida mais têminsistido é o de que a ocupação de funcionário efetivo do Estadonão abre suficientes perspectivas de ganho e de importância paraatra ir os mais a ltos ta lentos, os quais sempre poderão achar umacarreira mais convidativa nas profissões, ou no serviço dascompanhias ou de outros corpos públicos. Não é de surpreenderque esse argumento haja sido usado pelos partidários da propos-ta , como resposta à principa l dificuldade por ela apresentada.Vindo dos adversários, ele é bastante estranho. O que se apre-senta como objeção constitui a vá lvula de segurança do sistemaproposto. Se, na verdade, todos os a ltos ta lentos do país pudes s emser arrastados para o serviço do governo, uma proposta tendentea esse resultado bem poderia inspirar desassossego. Se cadaaspecto dos interesses socia is que requeresse concerto organiza-do, ou vistas largas e compreensivas, estivesse nas mãos dogoverno, e se se preenchessem as repartições governamentaiscom os homens mais capazes, toda a cultura adquirida e toda ainteligência experimentada do país, sa lvo a puramente especu-lativa , se concentrariam numa burocracia numerosa , a quemsomente o resto da comunidade procuraria para todas as coisas:a multidão para se orientar e receber ordens em tudo que tivessea fazer; os capazes e ambiciosos para o seu progresso pessoa l.Ser admitido nas fileiras dessa burocracia e, quando admitido,progredir lá dentro, seriam os únicos objetos de ambição. Sobesse regime, não só o público exterior fica mal qualificado, porfa lta de experiência prática , para julgar e censurar o modo deação da burocracia , mas a inda, se os acidentes de um funciona-mento despótico, ou do funcionamento natura l de instituiçõespopulares, ocasionalmente elevarem ao cume um governante, ougovernantes, de tendências reformadoras, nenhuma reformacontrária aos interesses da burocracia poderá efe-tuar-se. Tal éa melancólica situação do Império Russo, como a mostram osrelatos dos que têm tido suficiente oportunidade de observação.O próprio Czar é sem poder contra o corpo burocrático; ele podemandar a lguns dos burocratas para a Sibéria , mas não pode

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governar sem os burocratas ou contra a vontade dos burocratas.Em países de civilização mais avançada e de um espírito maisrevolucionário, o público, acostumado a esperar que o Estadofaça a lgo por ele, ou, ao menos, a não fazer nada por si semindagar do Estado, não apenas se lhe permite fazê-lo, mas a indacomo deve fazê-lo, natura lmente responsabiliza o Estado portodo o mal que lhe acontece, e, quando o mal se excede à somade paciência , se levanta contra o governo, e faz o que se chamauma revolução; à vista do que a lguém outro, com ou sem legítimaautoridade recebida da nação, sa lta no posto, expede ordens àburocracia , e tudo se põe a marchar como dantes, sem se termudado a burocracia , e sem ninguém ser capaz de tomar-lhe olugar.

Espetáculo muito diferente, exibe-o o povo habituado adespachar os próprios negócios. Na França, grande número depessoas tendo passado pelo serviço militar, havendo muitosa lcançado ao menos o posto de oficia is inferiores, em cadainsurreição popular existem vários indivíduos competentes paralhe tomarem a direção, e improvisarem um plano razoável a serlevado à prática . O que os franceses são nos assuntos militares,são os americanos em todo gênero de negócios civis: se ficaremsem governo, cada grupo deles é capaz de improvisar um, e deconduzir este ou aquele negócio público, qualquer que seja , comsuficiente soma de inteligência , ordem e decisão. Isso é o quetodo povo livre deve ser. E é certo que um povo capaz disso élivre. Nunca se deixará escravizar por um homem, ou por umgrupo de homens, porque eles sejam capazes de colher e manejaras rédeas da administração centra l. Nenhuma burocracia podenutrir a esperança de levar um povo como esse a fazer ou a tolerara lgo de que não goste. Mas onde tudo se faça por intermédio daburocracia , nada a que a burocracia rea lmente se oponha, podede qualquer modo ser feito. A constituição desses países burocrá-ticos é uma organização da experiência e da capacidade práticada nação sob a forma de um corpo disciplinado destinado agovernar o resto; e, quanto mais perfeita essa organização em si,quanto mais sucesso colha em atra ir para si e em educar por sias pessoas de maior aptidão de todas as fileiras da comunidade,mais completa é a escravidão de todos, inclusive dos membrosda burocracia . Porque os governantes são tanto os escravos dasua organização e disciplina , quanto os governados o são dosgovernantes. Um mandarim chinês é tanto o instrumento e acriatura de um despotismo quanto o mais humilde lavrador. Um

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jesuíta é, no mais a lto grau de aviltamento, o escravo da suaordem, embora a própria ordem exista para o poder coletivo epara a importância dos seus membros.

Não se deve esquecer, também, que a absorção de toda amelhor capacidade do país pelo corpo governante, cedo ou tardese torna fata l para a atividade de mente e para o progresso dessepróprio corpo. Com uma estreita ligação interna, executando umsistema que, como todos os sistemas, procede por normas fixas,o corpo oficia l está sob a constante tentação de submergir numaindolente rotina , ou se, de quando em quando, deserta do círculodo cava lo de moinho, de se lançar em a lguma empresa imatura ,semi-examinada, que feriu a fantasia de a lgum membro dirigentedo corpo. E o único obstáculo a essas tendências estreitamenteligadas, a inda que aparentemente opostas, o único estímulocapaz de conservar a capacidade do corpo em harmonia com umpadrão elevado, é a responsabilidade ante a crítica vigilante deuma igual capacidade exterior ao corpo. É indispensável, portan-to, que possam existir, independentemente do governo, meios deformar ta l capacidade, de lhe fornecer as oportunidades e aexperiência necessárias a uma correta apreciação dos grandesassuntos práticos. Se possuíssemos permanentemente um hábile eficiente corpo de funcionários – acima de tudo, capaz de darorigem ou de querer adotar aperfeiçoamentos; se não quisésse-mos a nossa burocracia degenerada numa pedantocracia , essecorpo não deveria monopolizar todas as ocupações que formame cultivam as faculdades requeridas para o governo dos homens.

Determinar o ponto em que começam tão formidáveismales para a liberdade e progresso humanos, ou antes em queeles começam a predominar sobre os benefícios que acompa-nham a aplicação coletiva da força da sociedade, sob a direçãodos seus chefes reconhecidos, à remoção dos obstáculos queentulham a estrada do bem-estar; assegurar tantas das vantagensdo poder e da inteligência centra lizados, quantas se possa tersem transformar uma proporção muito grande da atividadecomum em leito por que flua a corrente governamenta l; – eisuma das questões mais difíceis e mais complicadas da arte degovernar. Trata-se, numa grande medida, de uma questão deminúcias, na qual não devem ser perdidas de vista muitas evariadas considerações, e regras absolutas não podem ser fixa-das. Creio, porém, que o princípio prático em que reside asa lvação, o idea l a ter em vista , o padrão por que aferir todas asmedidas intentadas para vencer a dificuldade, se pode exprimir

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nestas pa lavras: a maior disseminação de poder compatível coma eficiência , mas a maior centra lização possível de informação,e a maior difusão dela a partir do centro. Assim, na administraçãomunicipa l haveria , como nos Estados da Nova Inglaterra , umadistribuição muito minuciosa entre funcionários isolados, esco-lhidos pelas loca lidades, de todas as funções que não é preferíveldeixar com as pessoas diretamente interessadas; mas, ao ladodisso, em cada setor de negócios loca is uma superintendênciacentra l, ramo do governo gera l. O órgão dessa superintendênciaconcentraria , como num foco, a informação e experiência váriaderivada da condução desse ramo de negócios públicos em todasas loca lidades, e derivada, a inda, de tudo análogo feito nos paísesestrangeiros, e dos princípios gera is da ciência política . Esseórgão centra l teria o direito de saber tudo que se faz, e o seudever específico seria esse de tornar o conhecimento adquiridoaqui proveitoso acolá . Emancipado, pela sua elevada dignidadee pela sua compreensiva esfera de observação, dos preconceitosmesquinhos e das vistas estreitas de uma loca lidade, a suaopinião contaria , natura lmente, muito prestígio; mas o seu poderefetivo, como instituição permanente, seria , concebo, limitada acompelir os funcionários loca is a obedecer às leis estabelecidaspara os guiar. Em todas as coisas não previstas em normas gera is,ditos funcionários seriam deixados ao seu próprio critério, res-ponsáveis ante os seus eleitores. Pela desobediência às normasresponderiam lega lmente, e ta is normas, estatuí-las-ia o Legisla-tivo. A autoridade administrativa centra l velaria somente pelasua execução, e, não executadas elas de modo conveniente,apelaria , de acordo com a natureza do caso, para os tribunaisque imporiam a lei, ou para os eleitores que poderiam substituiros funcionários que não a houvessem executado de acordo como espírito dela . Tal é, na sua concepção gera l, a superintendênciaque se pretende exerça , centra lmente, o Conselho da Lei dosPobres sobre os administradores da taxa dos pobres em todo opaís. Quaisquer poderes que o Conselho exerça a lém desse limitesão justos e necessários no caso específico, para a cura de hábitosarra igados de má administração, em matérias que afetam pro-fundamente, não as loca lidades, mas a comunidade inteira ;desde que a nenhuma loca lidade assiste um direito moral atornar-se, por desgoverno, um ninho de pauperismo, necessaria-mente transbordando sobre outras loca lidades, e prejudicando acondição moral e fís ica de toda a comunidade trabalhadora . Ospoderes de coerção administrativa e de legislação subalternapossuídos pelo Conselho da Lei dos Pobres (mas que, devido ao

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estado da opinião sobre a matéria , têm sido mui parcamenteexercidos por ele), embora perfeitamente justificáveis num casode interesse nacional de primeira ordem, estariam completamen-te deslocados na superintendência de interesses puramente lo-ca is. Contudo, um órgão centra l de informação e instrução paratodas as loca lidades seria igualmente va lioso em todos os setoresda administração. Nunca é demasiado esse gênero de atividadegovernamenta l, que não impede, antes auxilia e estimula , oesforço e o desenvolvimento dos indivíduos. O mal começaquando, ao invés de excitar a a tividade e as energias dos indiví-duos e grupos, o governo troca a sua atividade pela deles;quando, ao invés de informar, aconselhar, e, na oportunidade,censurar, ele os faz trabalhar sob grilhões, ou lhes determinafiquem de lado e faz o trabalho deles em seu lugar. O va lor deum Estado, a fina l de contas, é o va lor dos indivíduos que oconstituem. E um Estado que pospõe os interesses da expansãoe elevação mentais des tes a um pouco mais de perícia adminis-trativa nas particularidades dos negócios, ou à aparência dissoque a prática dê; um Estado que amesquinha os seus homens, afim de que sejam instrumentos mais dóceis nas suas mãos, a indaque para propósitos benéficos, descobrirá que com homenspequenos nada grande se pode fazer rea lmente; e que a perfeiçãodo maquinário a que sacrificou tudo não lhe aproveitará , no fim,nada, por carência da força vita l que, para a máquina podertrabalhar mais suavemente, ele preferiu proscrever.

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