100 lendas do folclore brasilei - a.s franchini

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    DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

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    dinheiro e poder, ento nossa sociedade enfim evoluira a um novo nvel.

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    NOTA

    O termo lendas utilizado no ttulo desta obra aplica-se em sentido amplo,uma vez que o livro composto por lendas, contos populares e perfis de

    personagens. Todos os textos so recriaes pessoais das histrias que a tradioconsagrou, com os acrscimos mnimos e inevitveis de toda recontagem , masque, em momento algum, descaracterizam a histria original.

    O livro est dividido em trs sees: nas duas primeiras temos lendasindgenas e contos populares, enquanto na terceira esto esboados os perfis dealgumas das mais importantes criaturas monstruosas ou entidades sobrenaturaisdo folclore brasileiro.

    Nosso folclore pode ser definido como uma imensa obra aberta,enriquecida pela contribuio das mais diversas etnias. Quase no h conto

    popular corrente entre ns, por exem plo, que no seja uma adaptao de contosde fadas europeus ou de lendas africanas. Como, porm, alm de serem belas eengraadas, essas histrias esto definitivamente incorporadas ao arsenal da

    nossa literatura oral, seria uma tolice pretender exclu-las pelo simples fato deserem importadas.

    Aquilo que possumos de mais autntico em nosso folclore, contudo, so asnossas lendas indgenas. Por essa razo, dediquei-lhes uma seo especial,mesmo que elas sejam praticamente desconhecidas do nosso povo. Estou certode que a leitura destas histrias divertidas e originais dar ao leitor uma nova esurpreendente viso da extraordinria cultura de nossos verdadeiros ancestrais.

    E assim, no conjunto, espero ter reunido um bom apanhado de tudo quantoo nosso povo foi capaz de criar e tam bm de assimilar do grande repertrio

    universal da narrativa oral e popular.

    Uma boa leitura.

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    PARTE I

    LENDAS INDGENAS

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    OS FILHOS DO TROVO

    (SAGA DOS TRIAS I)

    A lenda da origem dos trias, ou filhos do Trovo (tambm ditos filhos doSangue do Cu) est longe de ser a mais famosa das nossas lendas indgenas.

    Contudo, , seguramente, uma das mais interessantes, razo pela qual foiescolhida para abrir esta pequena mas representativa amostra da extraordinriacapacidade imaginativa dos nossos verdadeiros ancestrais.

    Os trias ou tarianas eram uma tribo do rio Uaups, situado noAmazonas. Segundo os estudiosos, a palavra tria deriva de trovo, elementogensico primordial dessa tribo.

    Vamos, pois, originalssima lenda que conta a origem dos trias.Diz, ento, que num tempo muito antigo o Trovo deu um estrondo to

    forte que o Cu rachou e comeou a gotejar sangue. O sangue caiu em cima

    dele prprio, Trovo aqui entendido como um ente personalizado , e secousobre o seu corpo. Algum tempo se passou e o Trovo trovejou outra vez, e osangue que estava sobre ele virou carne. Mais adiante, um novo trovej ar fez comque a carne se desprendesse do seu corpo e fosse cair sobre a Terra. Ao tocar osolo, a carne se despedaou em mil pedaos, e estes pedaos se transformaramem gente homens e mulheres.

    Assustadios por natureza, os filhos do Trovo correram logo a se meter nointerior da primeira gruta, assim que anoiteceu (eles eram ignorantes das coisasda Terra, ento, ao verem o sol desaparecer, imaginaram que ele nunca mais

    retornaria).Quando comeou a amanhecer, porm, tiveram uma grata surpresa: o cuvoltava, pouco a pouco, a tomar uma colorao vermelha, sob o efeito da luz dosol.

    Eles observaram o sol subir ao cu e, quando ele chegou ao znite,sentiram fome. No alto de uma rvore, viram , ento, um pssaro alimentando-sede um fruto.

    Faamos o mesmo! disse um dos filhos do Trovo.Para uma primeira frase, no estava nada m al. Demonstrava prudncia

    aliada a uma boa observao.

    Os trias j podemos cham-los assim subiram na mesma rvore eforam comer dos mesmos frutos com os quais a ave se alimentava.Empanturraram-se at a noite voltar, quando todos, assaltados novamente pelomedo, foram se meter no interior da gruta.

    No dia seguinte, bem cedo, treparam outra vez na rvore para saciar afome. Debaixo dela, surgiram dois cervos, macho e fmea, que tambmcomearam a se alimentar dos frutos que caam. Dali a pouco, um dos cervosmontou sobre o outro, e os dois esqueceram-se de tudo o mais.

    O que esto fazendo? disse um dos trias, que ainda ignorava as coisas

    deste mundo.Eles observaram bem e re tornaram para o interior da gruta. Ningum

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    conseguia esquecer o que se passara entre os cervos, e estavam todosextraordinariamente inquietos.

    Durante a noite, a Me do Sono uma das tantas Cys, as mes divinasindgenas de tudo quanto h na mata visitou-os em sua gruta para contar-lhesquem eles eram. Depois, transformou-os em cervos, e eles foram correndo para

    baixo da rvore repetir alegrem ente o que o casal de cervos de verdade havia

    feito. Quando o dia amanheceu, os pares ainda estavam abraados, um homempara cada mulher.

    E foi assim que os trias deram incio sua gloriosa descendncia.

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    OS TRIAS APRENDEM A FAZER EMBARCAES

    (SAGA DOS TRIAS II)

    A lenda dos trias to interessante quanto uma saga islandesa, e comportavrios episdios. Como tantas outras lendas extraviadas mundo afora, s no goza

    do reconhecimento universal porque lhe faltou quem a desenvolvesse em amplose vibrantes painis.

    Como vimos no primeiro conto, os trias surgiram do Trovo eaprenderam a se reproduzir observando as prticas sexuais dos cervos. (Eleshaviam sido metamorfoseados pela Me do Sono naqueles mesmos animais,recuperando logo depois o que se supe a antiga form a humana.)

    Todas as noites os casais repetiam as prticas aprendidas, de tal modo queno tardaram a surgir seus primeiros filhos. Aos poucos, eles aprenderamtambm a plantar e a criar animais.

    Ento, um dia, observando o rio Amazonas, eles pensaram em comopoderiam andar com o patos sobre as guas. (A expresso que usaram foiexatamente esta, pois no sabiam ainda o que fosse navegar.)

    Todos os dias eles se postavam s margens do rio e ficavam observando,cheios de admirao, o ir e vir sereno dos patos sobre a gua.

    Temos de aprender, tambm , a caminhar sobre as guas! disse, umdia, o lder supremo dos trias.

    Os ndios, deixando de lado a observao, passaram ento ao. V, mergulhe e faa com o eles! disse o cacique, atirando na gua um

    dos trias prximos.O pobre ndio caiu na gua e espadanou feito um desesperado, e, se nofossem os demais retirarem -no dali, teria descido ao fundo como uma pedra,sem jamais retornar.

    Mas os trias eram persistentes e continuaram insistindo, at que um diaum deles, bafejado pela sorte, viu passar um pau de bubuia flutuando. Numreflexo feliz, ele agarrou-se ao tronco e imediatamente sentiu que no afundavamais. Depois, com um pouco mais de pr tica, conseguiu guiar o tronco com asmos metidas dentro dgua. Ento, ele foi para onde quis, e a felicidade inundousua alma.

    Como no havia ningum por perto para admirar sua faanha, o ndioretornou margem e foi correndo aldeia comunicar a sua fantsticadescoberta.

    Descobri, irm os, um meio de cam inhar sobre as guas! gritava ele,cheio de orgulho.

    Logo ao am anhecer todos foram ver a proeza. O tria atirou-se na guamontado em sua boia improvisada e andou por todo o rio sem jamais afundar.

    E foi assim que os trias aprenderam a andar como os patos sobre asguas e, logo depois, a construir a sua primeira em barcao, amarrando troncos

    uns nos outros.

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    A PRIMEIRA NAVEGAO DOS TRIAS

    (SAGA DOS TRIAS III)

    Continuando com a deliciosa lenda dos trias, vamos saber agora como osverdadeiros pais da nacionalidade empreenderam a sua primeira e gloriosanavegao.

    Depois de terem aprendido a construir uma jangada, os trias lanaram-seansiosam ente ao rio. No se sabe ao certo se foi apenas uma ou se foram maisangadas, mas o certo que vrios indgenas tomaram parte nessa expedio.

    Consigo levaram um farnel de viagem.Quando os expedicionrios partiram, tudo foi alegria. Porm, quando a

    ltima mancha de terra sumiu, eles engoliram em seco. A terra sumiu! disse um dos ndios, vagamente alarmado.

    O chefe da expedio, porm, no quis retroceder. Adiante! disse ele, apontando o horizonte plano das guas.Ento a coragem retornou aos seus coraes, e eles seguiram alegres e

    confiantes at a noite estrelada desabar subitamente ao seu redor, como umacortina negra cheia de furos.

    Desta vez, o nimo de todos decaiu assustadoramente. Algum sabe dizer onde estamos? perguntou o chefe tria, lutando para

    dar um tom sereno sua voz.

    Naturalmente que, naqueles primrdios da navegao, ainda no haviapassado pela cabea de ningum dividir tarefas, atribuindo a algum a funo deguia ou piloto. Justamente por isso, todos responderam, numa admirvelconcordncia, que no faziam a menor ideia de onde estavam .

    Para piorar as coisas, um vento forte comeou a soprar, empurrando-osainda mais para as horrendas e desconhecidas vastides do rio. Em trs diasacabou a comida e, quando a fome apertou para valer, um dos trias avistoualguns tapurus (pequenas larvas) nos interstcios da jangada. Ele encheu a mo eenfiou tudo na boca. A careta que fez era de agrado: a comida era boa. As outras

    mos colheram avidam ente o resto dos tapurus, e assim os ndios saciaram poralgum tem po a sua fome atroz.

    Os viajantes vagaram, sem remo nem rumo, durante vrias luas. Ento,quando tudo parecia perdido, eles viram, ao longe, a sombra da terra.

    Terra! Terra! gritou um deles, dando o primeiro grito nutico dahistria dos trias.

    Os ndios desembarcaram num lugar ermo, muito parecido com suaprpria terra. Numa euforia de doidos, eles puseram-se a beijar o solo e acometer outras loucuras tpicas de nufragos resgatados. Depois, comeramalguns ovos que encontraram e decidiram fundar uma aldeia ali mesmo.

    Trs luas depois, a aldeia estava pronta, diz a crnica original.

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    BUOP, O NOBRE GUERREIRO

    (SAGA DOS TRIAS IV)

    A extraordinria saga dos ndios trias chega, agora, ao seu vibrantedesfecho. Desta feita ficaremos sabendo como nossos ancestrais tornaram-se

    grandes conquistadores.O chefe da primeira expedio nutica dos trias chamava-se

    originalmente Ucaiari, passando depois a ser conhecido por Buop. Ele era umtuixaua, ttulo supremo de um chefe tria, e havia chegado com seus homensnuma jangada aps navegar sem rumo pelo rio Negro.

    Ao colocar os ps em terra, o nobre guerreiro decidira se estabelecer ali. Voltar como, se nem sabemos para que lado seguir? dissera ele aos

    companheiros.Convicto disso, o chefe indgena mandou, ento, construir uma a ldeia e se

    autoproclamou senhor absoluto da terra, pois assim se fazia em toda parte nosdias antigos.Em trs luas, a nova aldeia estava pronta.Mas no demorou muito e um dos trias trouxe ao chefe esta pssima

    notcia: Grande tuixaua, encontrei rastros de ps humanos prximos da aldeia!Imediatamente nasceu no peito de Buop a certeza de que estavam sendo

    vigiados. Vamos, ento, espionar os espies! disse ele, tomando o seu tacape.

    Buop no queria saber de ningum mais em seus domnios, mesmo que j estivessem ali muito antes dele. Aquela terra, agora, pertencia aos filhos doSangue do Cu.

    Aps certificar-se de que as pegadas pertenciam aos membros de umatribo vizinha, Buop reuniu rapidamente os seus homens.

    Alegrem-se, terem os guerra! anunciou ele, e todos puseram-se aconfeccionar grandes quantidades de tacapes, arcos, flechas, fundas e o restantede armas ento usadas pelos ndios.

    Uma lua depois, os trias guerrearam contra os seus inimigos nativos,derrotando-os fragorosamente. Alm de conquistarem mais uma boa poro de

    territrio, os filhos do Trovo conquistaram tambm uma poro de mulheres datribo vencida.

    Agora , j podemos multiplicar o nmero de trias! disse Buop, embilo.

    Trs anos transcorreram at que Buop e os seus valorosos guerreirospudessem entender a lngua daquelas mulheres. Quando isso finalmenteaconteceu, eles descobriram que outra poro da gente delas vivia num lugar nomuito distante dali.

    Levem -nos at l! ordenou o tuixaua s mulheres.

    Imediatamente, foi organizada uma nova expedio de conquista. Quandofez mo de lua, ou sej a, dentro de cinco luas, Buop e os seus chegaram ao

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    lugar.A batalha durou trs dias, e ao cabo dela Buop era, de novo, o vencedor.

    Mais ventres para espalhar a nossa raa! disse o chefe guerreiro,tomando para si outra vez as mulheres dos inimigos mortos.

    E assim o chefe tria foi conquistando todos os povos s margens do rioegro, at tornar-se senhor absoluto da regio. Quando seus filhos ficaram

    adultos, mandou-os irem guerrear contra as tribos de canibais acima e abaixo dorio.Buop tinha o costume de, aps matar os seus inimigos, ir at as margens

    do rio e cuspir dentro de um funil de folha. Depois, lanava-o correnteza abaixo,a fim de chamar m agicam ente a sua gente distante.

    Ento, os anos se passaram e ele envelheceu, perdendo finalmente asforas. Uma noite, a Me do Sono lhe apareceu outra vez e o fez sonhar que tinhamorrido. Buop viu, por entre as nvoas do sonho, que o seu corpo j no faziamais sombra e que, ao redor dele, todos choravam.

    Era o aviso do fim.

    O nobre tuixaua reuniu seus filhos, deu-lhes as ltimas instrues e, quandoo sol surgiu, um beija-flor saiu de dentro do seu peito e disparou em direo aocu.

    O corpo de Buop foi enterrado numa gruta secreta, cuja localizaopermanece ignorada. Descendente algum recebeu autorizao de ostentar o seunome glorioso, e todo aquele que pretendeu utiliz-lo, mesmo sob formasdisfaradas e ridculas, sofreu a maldio implacvel de tornar-se, por todos osdias da sua vida, um pobre-diabo fracassado e rosnador de maledicncias.

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    MAIRE-MONAN E OS TRS DILVIOS

    Os tupinambs creem que houve, nos primrdios do tem po, um serchamado Monan. Segundo alguns etngrafos, ele podia no ser exatamente umdeus, mas aquilo que se convencionou chamar de um heri civilizador.

    Deus ou no, o fato que Monan criou os cus e a Terra, e tam bm osanimais. Ele viveu entre os homens, num clima de cordialidade e harmonia, at odia em que eles deixaram de ser justos e bons. Ento, Monan investiu-se de umfuror divino e mandou um dilvio de fogo sobre a Terra.

    At ali a Terra tinha sido um lugar plano. Depois do fogo, a superfcie doplaneta tornou-se enrugada com o um papel queimado, cheia de salincias esulcos que os homens, mais adiante, chamariam de montanhas e abismos.

    Desse apocalipse indgena sobreviveu um nico homem, Irin-mag, quefoi morar no cu. Ali, em vez de conformar-se com o papel de favorito dos cus,ele preferiu converter-se em defensor obstinado da humanidade, conseguindo,aps muitas splicas, amolecer o corao de Monan.

    Segundo Irin-mag, a terra no poderia ficar do jeito que estava, arrasadae sem habitantes.

    Est bem, repovoarei aquele lugar amaldioado! disse Monan, afinal.A histria, como vemos, to velha quanto o mundo: um ser superior cria

    uma raa e logo depois a extermina, tomando, porm, o cuidado de poupar umou mais exemplares dela, a fim de recomear tudo outra vez.

    E foi exatamente o que aconteceu: Monan mandou um dilvio Terra paraapagar o fogo (aqui o dilvio reparador) e a tornou novamente habitvel,autorizando o seu repovoamento.

    Irin-mag foi encarregado de repovoar a Terra com o auxlio de umamulher criada especialmente para isto, e desta unio surgiu outro personagemmtico fundamental da mitologia tupinamb: Maire-monan.

    Esse Maire-monan tinha poderes semelhantes aos do primeiro Monan, e foigraas a isto que pde criar uma srie de outros seres os animais , espalhando-os depois sobre a Terra.

    Apesar de ser uma espcie de monge e gostar de viver longe das pessoas,ele estava sempre cercado por uma corte de admiradores e de pedintes. Eletambm tinha o dom de se metamorfosear em criana. Quando o tempo estavamuito seco e as colheitas tornavam -se escassas, bastava dar umas palmadas nacriana-mgica e a chuva voltava a descer copiosamente dos cus. Alm disso,Maire-monan fez muitas outras coisas teis para a humanidade, ensinando-lhe o

    plantio da m andioca e de outros alimentos, alm de autorizar o uso do fogo, queat ento estava oculto nas espduas da preguia.

    Um dia, porm, a humanidade comeou a murmurar. Este Maire-m onan um feiticeiro! dizia o cochicho intenso das ocas.

    Assim como criou vegetais e animais, esse bruxo h de criar monstros e Tupsabe o que mais!

    Ento, certo dia, os homens decidiram aprontar uma armadilha para essenovo semideus. Maire-monan foi convidado para uma festa, na qual lhe foram

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    feitos trs desafios. Bela maneira de um anfitrio receber um convidado! disse Maire-

    monan, desconfiado. simples, na verdade disse o chefe dos conspiradores. Voc s ter

    de transpor, sem queimar-se, estas trs fogueiras. Para um ser como voc, issodeve ser muito fcil!

    Instigado pelos desafiantes, e talvez um pouco por sua prpria vaidade,Maire-monan acabou aceitando o desafio.

    Muito bem, vam os a isso! disse ele, querendo pr logo um fim comdia.

    Maire-monan passou inclume pela primeira fogueira, mas na segunda acoisa foi diferente: to logo pisou nela, grandes labaredas o envolveram. Diantedos olhos de todos os ndios, Maire-monan foi consumido pelas chamas, e suacabea explodiu. Os estilhaos do seu crebro subiram aos cus, dando origem

    aos raios e aos troves que so o principal atributo de Tup, o deus tonante dostupinambs que os jesutas, ao chegarem ao Brasil, converteram por contaprpria no Deus das sagradas escrituras.

    Desses raios e troves originou-se um segundo dilvio, desta vez arrasador.No fim de tudo, porm, as nuvens se desfizeram e por detrs delas surgiu,

    brilhando, uma estrela resplandecente, que era tudo quanto restara do corpo deMaire-monan, ascendido aos cus.

    * * *Depois que o mundo se recomps de mais um cataclismo, o tempo passou

    e vieram Terra dois descendentes de Maire-monan: eles eram filhos de umcerto Sommay , e se chamavam Tamendonare e Ariconte.

    Como normalmente acontece nas lendas e na vida real, a rivalidade cedose estabeleceu entre os dois irmos, e no tardou para que a fogueira da discrdiaacirrasse os nimos na tribo onde viviam.

    Tamendonare era bonzinho e pacfico, pai de famlia exem plar, enquanto

    Ariconte era amante da guerra e tinha o corao cheio de inveja. Seu sonho erareduzir todos os ndios, inclusive seu irmo, condio de escravos.Depois de diversos incidentes, aconteceu um dia de Ariconte invadir a

    choa de seu irmo e lanar sobre o cho um trofu de guerra .Tamendonare podia ser bom, mas sua bondade no ia ao extremo de

    suportar uma desfeita dessas. Erguendo-se, o irmo afrontado golpeou o chocom o p e logo comeou a brotar da rachadura um fino veio de gua.

    Ao ver aquela risquinha inofensiva de gua brotar do solo, Ariconte ps-sea rir debochadamente.

    Acontece que a risquinha rapidamente converteu-se num jorro dgua, enum instante o cho sob os ps dos dois, bem como os de toda a tribo, rachou-se

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    como a casca de um ovo, deixando subir tona um verdadeiro mar impetuoso.Aterrorizado, o irmo perverso correu com sua esposa at um jenipapeiro,

    e am bos comearam a escal-lo como dois macacos. Tamendonare fez omesmo e, depois de tomar a esposa pela mo, subiu com ela numa pindoba (umaespcie de coqueiro).

    E assim permaneceram os dois casais, cada qual trepado no topo da sua

    rvore, enquanto as guas cobriam pela terceira vez o mundo ou, pelo menos, aaldeia deles.Quando as guas baixaram, os dois casais desceram Terra e repovoaram

    outra vez o mundo. De Tamendonare se originou a tribo dos tupinambs, e deAriconte brotaram os Teminin.

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    A VINGANA DE MAIRE-POCHY

    A saga dos descendentes de Monan no terminou com os dois irmos doconto anterior. Depois deles, vieram outros, e dentre esses sobressaiu-se um certoMaire-Pochy.

    Apesar da nobre ascendncia, Maire-Pochy, por alguma desgraa do

    destino, nascera votado infelicidade. Alm de servo do cacique, ele era feio ecorcunda.Maire-Pochy gostava de pescar, e certo dia trouxe do rio um belo peixe.

    Ao v-lo, a filha do seu amo lambeu os lbios de apetite. Que beleza! Tudo faria para sabore-lo!Maire-Pochy correu logo a preparar, ele mesmo, o belo peixe no

    moqum, uma espcie de grelha na qual os ndios assam a carne.O peixe devia ser muito especial, pois to logo a jovem o comeu, ficou

    grvida. O m enino nasceu com uma rapidez inaudita, e logo o pai da j ovem quissaber quem era o pai da criana.

    Mas ningum se apresentou, o que obrigou o cacique a ter uma conversacom o paj.

    Os miserveis esto calados, e ningum quer assumir a paternidade! disse o morubixaba. Como hei de saber quem o pai da criana?

    O paj , porm, que tinha receitas para todos os males, tinha uma tambmpara este.

    fcil descobrir disse ele, com uma empfia serena. Rena todos os

    homens da tribo e os faa desfilar diante da jovem portando seus arcos. Quandoo verdadeiro pai se apresentar, a criana tocar o seu arco.

    O cacique fez como o paj dissera, e todos os homens saudveis da tribodesfilaram diante da j ovem com o beb ao colo. Mais de cem ndios, de todos ostam anhos, passaram frente do beb, mas ele no tocou o arco de nenhumdeles.

    Ento, o terror cresceu na alma do cacique. Ser Anhang, o esprito mau, o pai da criana?

    Mas, quando todos j estavam se dispersando, o paj gritou: Esperem! Faltou Maire-Pochy , o corcunda!Um coro de risos explodiu entre os ndios.

    Est brincando? exclamou o cacique ao paj . Ele um homem saudvel, apesar da aparncia disse o paj. Que

    desfile tambm!Ento Maire-Pochy desfilou diante da ndia e de seu beb. Assim que ele

    passou diante dos dois, portando o seu arco, o garoto esticou o bracinho e fezvibrar a corda.

    Um som parecido com o da harpa soou, fazendo calar a tribo inteira. Afronta e vergonha! gritou o morubixaba, fuzilando a filha com os

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    olhos.No mesmo dia, o cacique ordenou que a tribo inteira partisse daquele lugar,

    abandonando a filha e o neto junto com Maire-Pochy. De hoje em diante, no tenho mais filha! esbravejou o cacique, antes

    de partir.Desde aquele dia, a taba florescente converteu-se numa taba-fantasma,

    habitada apenas pela mulher, a criana e Maire-Pochy.Mal sabia, porm, o cacique que, ao partir, levara consigo uma m aldio,pois nas novas terras verdej antes onde a tribo se instalou no crescia mais umnico talo de erva, a gua havia secado e toda a criao perecera.

    Isto s pode ser uma m aldio de Maire-Pochy ! disse o cacique.Nas terras onde haviam permanecido o corcunda e a ndia, tudo continuava

    s mil maravilhas: as plantaes brotavam por si mesmas, a gua corria fresca eestuante e os animais procriavam como coelhos.

    Ao saber dos infortnios do cacique, Maire-Pochy mandou dizer a ele quepoderiam vir abastecer-se nas terras onde agora era o senhor.

    Maire-Pochy diz que no guarda m goa alguma disse o emissrio aocacique.

    O morubixaba pensou um pouco e disse: , no tem outro jeito, vam os ter de nos humilhar diante daquele

    miservel!Ento apresentaram-se diante do corcunda e da jovem.

    Abasteam-se de tudo quanto quiserem disse Maire-Pochy , com um arpiedoso.

    Os esfomeados se lanaram comida farta, espalhada por dzias de

    moquns. Ao experimentarem os pitus, no entanto, sobreveio imediatamente adesgraa, pois tudo no passava de uma armadilha. Logo todos comearam a seconverter em porcos, em grilos e em maracans (espcie de arara menor, de

    plumagem verde). O cacique se converteu num jacar, enquanto sua esposavirou uma tartaruga.

    Cumprida a vingana, Maire-Pochy fez como o seu antepassado Monan esubiu s nuvens, para nunca mais retornar Terra.

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    O COCAR DE FOGO E OS GMEOS MTICOS

    O filho de Maire-Pochy , o ndio vingativo da histria anterior, viveu algumtem po entre os tupinambs antes de regressar aos cus, de onde,

    presumivelmente, viera.O prosseguidor da saga dos Monan possua um cocar de fogo, ou

    acangatara, que tinha o poder de incendiar a cabea daquele que resolvesseexperiment-lo sem a autorizao do dono.

    Apesar disso, no faltou um imprudente disposto a arriscar. Quando aschamas envolveram sua cabea, ele correu para uma lagoa e mergulhou,convertendo-se instantaneamente numa saracura. Dizem que por isso que essaave possui at hoje o bico e as patas vermelhas.

    Quando o filho Maire-Pochy retornou sua verdadeira casa, que era o Sol,deixou no mundo um filho que atendia pelo nome de Maire-At.

    Certa feita, Maire-At resolveu fazer uma viagem com sua esposa.Mas a esposa, alm de ser meio lenta, estava grvida e no conseguia

    acompanhar os passos ansiosos do marido. Lenta mesmo! disse a voz de Maire-At, sumindo na mata.A pobre mulher caminhou desatinada at perder-se no cipoal da floresta.

    Maire-At, onde est voc? Ele foi por ali! disse, de algum lugar, uma voz fininha.A ndia estaqueou, assustada.

    Quem disse isso? Siga por aquela vereda, minha me! disse a vozinha, outra vez.S ento ela compreendeu que a voz vinha de dentro da sua barriga.

    Voc? Ento j fala? disse ela para o prprio ventre.Um pica-pau que observava tudo parou de martelar o tronco da rvore ebalanou a cabea, desconsolado:

    Outra doida!Mas era verdade, sim: o feto miraculoso, antes mesmo de nascer, j tinha

    o dom da fala. Vamos, minha me, alcance meu pai! disse a vozinha, impaciente.A mulher arremessou-se na direo da vereda e continuou a buscar Maire-

    At, mas ele no era capaz de diminuir o passo e cada vez distanciava-se mais.

    Ao passar por uma moita cheia de frutinhas vermelhas, a vozinha gritou: Espere, minha me, j unte aquelas frutinhas!Mas a ndia estava com pressa e no quis parar por nada deste mundo.

    Eu quero as frutinhas! esbravej ou a criana, sapateando no ventre dame.

    Elas no prestam, do dor de barriga! exclamou a ndia.Ao chegar a uma encruzilhada, ela bateu na barriga.

    Para que lado seu pai foi?Infe lizmente, desde aquele instante, a vozinha emudeceu. A ndia tentou de

    todos os modos fazer seu ventre falar outra vez, mas tudo o que conseguiu extrairdele foram alguns roncos de fome.

    Ento sua alma conheceu o pnico.

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    Perdida! Sim, agora ela estava positivamente perdida! No tardaria paraque os maus espritos ou as crias monstruosas da floresta viessem atazan-la!

    Depois de muito andar, acabou enxergando uma oca perdida. Graas a Tup, estou salva!Pelo menos era o que ela pensava, pois na tal oca vivia um ndio que estava

    havia anos sem ver uma ndia. Assim que ela pediu a sua ajuda, ele puxou-a para

    dentro da oca e fez com ela o que bem quis.Resultado: a esposa de Maire-At ficou grvida outra vez.Quando tudo terminou, ela cobriu o rosto com as mos. No seu peito

    misturavam-se a vergonha e o sentimento de vingana. O sentimento devingana ela votava, antes de tudo, ao seu marido, que no quisera esper-la.Quando, porm, decidiu levar a cabo a segunda vingana, contra o seu agressor,descobriu que um castigo sobrenatural j havia descido sobre o ele: na esteiraonde ela havia sido abusada, restava apenas, no lugar do ndio, um gambfedorento.

    A ndia abandonou a oca certa de que suas desditas haviam chegado ao

    fim, mas ainda havia um mal maior guardado. Nem bem deixara o lugar quandodeparou-se com um ndio canibal. Ele se apresentou como Jaguaret e disse que

    pretendia com-la.E tal como disse, assim o fez, de tal sorte que a pobre ndia foi devorada at

    o ltimo bocado pelo tal Jaguaret e pelos da sua comunidade, conhecendo ali,finalmente, o fim das suas desditas.

    Antes de devorar a ndia, porm, o canibal retirou do ventre as duascrianas o filho de Maire-At e o do ndio que a havia atacado e atirou-as nomonturo.

    No dia seguinte, a lgumas ndias piedosas recolheram as duas crianas.Diz a lenda que, ao crescerem, os dois irmos vingaram a morte da meatraindo o ndio e os seus sequazes at uma ilha, onde lhes prometeram fartaalimentao. Na travessia pela gua, os canibais se transformaram em animaisselvagens possivelmente em jaguares, j que, segundo os estudiosos, o nome dolder Jaguaret remete figura do jaguar.

    Maire-At criou os dois filhos, o legtimo e o ilegtimo. O ilegtimo, comono podia deixar de ser, era discriminado em toda parte, sendo chamado de ofilho do gamb.

    Maire-At educou-os, porm, da mesma maneira, impondo-lhes as provasrudes da selva. Numa dessas provas, os dois irmos deveriam passar por entreduas rochas que tinham o poder de esmagar aqueles que tentassem passar entreelas. O filho do gamb foi esmagado ao tentar a proeza, enquanto o filho deMaire-At saiu-se vitorioso. Penalizado, porm, do meio-irmo, o filho legtimoressuscitou-o, pois possua os dons mgicos da descendncia de Monan, osemideus civilizador.

    Mas havia, ainda, uma ltima prova: furtar os utenslios de pesca de Agnen,um ser mtico cuj a ocupao principal era a de pescar o peixe Alain, alimentodos mortos.

    Decidido a ter sucesso no seu furto, o filho legtimo de Maire-At tornou-seum peixe e, depois de deixar-se pescar, furtou tudo quanto quis enquanto o

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    pescador estava distrado.O filho do gamb, porm, saiu-se mal ao tentar o mesmo estratagema, e

    acabou sendo morto mais uma vez. Felizmente, o seu irmo demonstrounovamente a sua generosidade e, depois de recolher as espinhas do filho dogamb lembremos que ele se metamorfoseara em peixe , assoprou sobre elase o jovem retornou, desta forma, vida.

    Existem vrias verses para essas proezas dos gmeos mticos, que variammuito conforme a tribo, mas o certo que so dois personagens fundamentais dareligio indgena.

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    A ONA E O RAIO

    Os ndios taulipangs, habitantes do extremo norte do Brasil, contam a lendaa seguir.

    Certa feita, a ona passeava pela mata quando encontrou o raio a fabricarum porrete. A ona no conhecia bem o raio, pois nunca tinha visto um em terra,

    muito menos a fabricar porretes, e por isso imaginou que se tratava de algumanimal.Ento ela comeou a pisar macio e, depois de dar a volta, sem ser vista,

    pulou sobre o raio.O raio, porm, escapou com um pulo veloz, sem sofrer nada.A ona, desapontada, indagou:

    Quem voc? Sou o raio, no v? Voc m uito forte, no ? Est enganada, no sou nada forte.Ao escutar isso, a ona inflou o peito e engrossou a voz.

    Pois eu sou o animal mais forte destas matas! Quando estou furiosa, nosobra nada inteiro!

    Ento, para demonstrar a sua fora, a ona trepou numa rvore enorme ecomeou a devastar tudo, quebrando um por um dos galhos. Depois, desceu parao solo e comeou a escav-lo, atirando para cima tufos de re lva e de terra atestar tudo revirado, como se um tatu doido tivesse passado por ali.

    Muito bem, que achou disso? disse a ona, arfante.O raio escutou, mas no disse nada.

    Vamos, quero v-lo fazer algo parecido! desafiou a ona. Como poderia, se no tenho a sua fora? disse o ra io, afinal.Inflada ainda mais pela confisso do raio, a ona entregou-se a nova

    demonstrao de fora, revolvendo tudo outra vez at ter aberto uma clareira naparte da mata onde estavam.

    Enquanto a ona sorria, esbaforida, o raio tomou o seu porrete e comeou

    repentinamente a vibr-lo no cho e por tudo ao redor, fazendo a ona quicar erebolar pelo solo como um bicho de pano. Uma verdadeira tempestade, seguidade raios e ventania, tornou tudo ainda mais srio, a ponto de a ona achar que omundo se acabaria. Quando a tempestade finalmente cessou, a ona malencontrou foras para pr-se novamente em p e ir correndo esconder-se atrsde uma rocha.

    Mas o raio gostara da brincadeira e arremessou uma fagulha que fez avolta na rocha, acertando com preciso o rabo da ona. A ona deu o pulo maisalto de toda a sua vida, chamuscou a cabea no cocar do Sol e desceu Terra

    outra vez, fugindo a toda a velocidade.O raio continuou a vibrar o seu porrete e a arremessar coriscos e fagulhas

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    com tanta intensidade para c ima da pobre bichana que ela viu-se obrigada aprocurar refgio na toca de um tatu gigante.

    Tudo em vo: o raio varej ou a cova do tatu e acertou em cheio, outra vez,os fundilhos da ona. No havia jeito: onde quer que a ona buscasse refgio, alia a lcanava o brao longo do raio.

    Ao mesmo tempo, comeou a soprar um vento frio e a cair uma chuva

    gelada, e como a ona j estava quase sem pelo algum, devido s queimaduras,pouco faltou para e la congelar-se. Depois do fogo, o frio! gania ela, batendo os dentes, toda enrodilhada no

    solo.Somente ao ver a rival arr iada e completamente vencida foi que o raio se

    deu por satisfeito. Muito bem, agora diga quem o mais forte por aqui!A ona tapou a cabea para no ter de responder, enquanto o raio partia, a

    gargalhar.E aqui est, segundo os taulipangs, a razo de as onas temerem tanto os

    temporais.

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    KONEW E AS ONAS

    E j que se falou de onas, nada melhor do que referir algumas disputas deKonew contra as onas, pois os taulipangs, especialmente as crianas, parecemador-las com seu ritmo gil de desenho animado.

    Konew um ndio que parecia ter nascido para disputar com as bichanas.Certo dia, ele estava sentado, encostado a uma rvore, quando uma ona chegoue perguntou:

    Por que est a sentado, a escorar esta rvore? Para que ela no caia respondeu Konew, secamente. Todas as

    rvores esto por cair. Por que no faz o mesmo que eu com aquela outra rvoreali?

    A ona viu uma rvore que parecia prestes a ruir e achou que seria umaboa distrao ficar escorando-a, pois no tinha nada m elhor para fazer.

    Depois de encostar-se ao tronco, a ona fechou os olhos, sentindo-sevagamente virtuosa.

    De vez em quando bom ser til, pensou, vaidosa da sua virtude.Mas a virtude logo transformou-se em sono, e, quando a ona comeou a

    roncar, Konew ergueu-se e, ligeirinho, amarrou-a ao tronco com cordastranadas de cip.

    Konew desapareceu, a reprimir o riso, e a ona s acordou algumas horasdepois, completamente imobilizada.

    Os dias se passaram e ela j estava quase morta de fome quando ummacaco surgiu.

    O que faz a, toda amarrada rvore?

    Fui amarrada, no est vendo? rugiu a fera. Vamos, solte-me j! Ah, isso eu no fao, no! Se solt-la, voc me come! No com erei, dou-lhe minha palavra!O macaco no foi muito atrs da ona, e ela precisou insistir vrias vezes

    para que ele finalmente se decidisse a arriscar o pelo. Com toda a cautela, eledesamarrou a ona, e s por isso escapou vivo. Atento, assim que viu a pata

    peluda eriar as unhas na sua direo, deu um pulo para longe.O macaco desapareceu dentro da mata, enquanto a ona ficou

    maquinando a sua vingana contra o ndio que a aprisionara. Depois de andarmuito, farej ando o rastro de Konew, ela finalmente encontrou o seu desafeto,desta vez escorado numa rocha.

    Ah! A est voc! disse ela, pulando frente do ndio. Desta vez vocme paga!

    Konew olhou serenamente para a ona. O que quer? disse ele, friamente. Vingana!Ao observar, porm, a calma do ndio, a ona no pde deixar de

    perguntar-lhe:

    Ei! O que faz escorado a nesse pedregulho? Estou impedindo que ele caia. Todos os rochedos esto por ca ir.

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    Konew, ento, olhou para o lado e apontou outro rochedo dez vezes maior. Se voc fosse um a ona realmente til, faria com o eu, impedindo que

    aquele rochedo caia.Uma espcie de nuvem estpida desceu sobre a mente da ona, obrigando-

    a a ir tomar o seu lugar, mas assim que ela o fez, o ndio ergueu-se. Espere a, sabicho, onde pensa que vai? gritou ela.

    Tive uma excelente ideia para poupar-m e trabalho. Vou procurar umtronco para fazer uma escora e assim livrar-me de ficar o resto da vidaescorando a minha pedra.

    A ona sentiu o pedregulho chacoalhar s suas costas e deu um grito:Traga um a escora para m im tambm!Konew sumiu e nunca mais apareceu com escora alguma. Quanto

    ona, das duas uma: ou est l at hoje, escorando o pedregulho, ou terminousepultada viva pelo desabamento.

    * * *

    Konew tambm gostava de passar a conversa nos homens brancos, poisera crena de muitos ndios que as onas haviam sido gente antes de virarem oque so hoje.

    Certo dia Konew achou um gamb e introduziu debaixo do seu rabo umpunhado de moedas de prata. Depois, andando por ali, cruzou com um homembranco carregando uma rede novinha em folha.

    Bela rede! disse Konew. Quer troc-la por um gam b que botamoedas de prata?

    Est me achando com cara de bobo, ?Ento, Konew apertou a barriga do gamb, e as moedas saltaram por

    debaixo do rabo.O homem branco ficou pasmo.

    E esse fedorento faz isso muitas vezes por dia? perguntou ele. Quantas vezes lhe apertarem o ventre respondeu o ndio, apertando

    outra vez o bucho do gamb.As moedas saltaram outra vez, e o homem branco fez o negcio na hora.Assim que o ndio afastou-se, o homem branco ergueu o rabo do gamb e

    quase enfiou o olho l dentro. Vamos ver isto! disse ele, apertando com toda a fora a barriga do

    coitado.S que, desta vez, a nica coisa que espirrou foi um jato fedorento de fezes.

    * * *

    Mais adiante, Konew aplicou um golpe parecido em outro civilizado.

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    Depois de pendurar algumas moedas em alguns galhos de uma rvore, cham ou oprimeiro que enxergou.

    Veja, hom em branco, esta rvore d dinheiro! disse ele.O homem embasbacou-se. Ele estava cheio de mercadorias que a traram

    a cobia do ndio. Se voc me der todas as suas mercadorias, entrego a voc esta rvore

    mgica.O homem branco olhou para o seu farnel e depois para a rvore, ainda emdvida.

    Quantas vezes por ano ela d m oedas assim? Estou vendo poucas ali. que estou no fim da colheita disse o ndio. Mas no se preocupe,

    pois esta rvore d m oedas o ano todo. Esta j a dcima colheita!Fechado o negcio, o ndio tratou de pegar o dinheiro e dar o fora, enquanto

    o homem branco olhava para a m eia dzia de moedas penduradas nos galhosaltos. Impaciente, ele comeou a chacoalhar o tronco, e duas moedinhas caramunto com uma poro de folhas.

    Ainda mais impaciente, ele continuou a chacoalhar at que um galhodespencou e quase rachou a sua cabea, e isto foi tudo que ele viu cair, depois do

    primeiro chacoalho, da rvore am aldioada.

    * * *

    Mas os golpes prediletos de Konew eram aplicados mesmo s onas.Certo dia, ele estava sentado beira de um rio de guas profundas quando

    uma ona surgiu por detrs.

    Que faz a, bobo? disse a ona, mais curiosa do que esfomeada. Estou pensando em mergulhar no rio para apanhar aquele bolo de tapioca

    que est l no fundo.Konew apontou para o reflexo da lua sobre a gua.

    Ento v disse a ona, desconfiada. Quero ver se consegue apanh-lo!

    Konew tinha escondido debaixo da tanga um pedao de bolo e mergulhoupara logo em seguida retornar.

    Ah, aqui est! disse ele, dando uma dentada no bolo.

    A ona lambeu os beios, mas o ndio enfiou ligeiro o resto na boca. Por que no trouxe o bolo inteiro? disse a ona, frustrada. Acontece que sou muito leve respondeu o ndio. Por que voc, que

    mais pesada, no desce e traz o restante do bolo?A ona estava to vida por provar aquela delcia que aceitou na hora o

    desafio. Amarre esta pedra ao pescoo disse o ndio. Ela a aj udar a descer

    mais rpido, pois h muita correnteza nestas guas.A ona aceitou, e depois de ter o pedregulho bem am arrado ao pescoo,

    mergulhou. Quando chegou ao fundo do rio, porm, constatou que no havia boloalgum por ali. Olhou para cima e viu que o bolo ou a lua agora estava boiandona superfcie.

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    E essa foi a ltima coisa que a desgraada viu antes de morrer afogada.

    * * *

    Mais uma com ona.Konew ia andando na mata quando viu uma trilha de antas. No mesmo

    instante, uma ona surgiu. O que espia a? perguntou a bichana. No est vendo? respondeu o ndio. o rastro de uma anta gorda.A ona lambeu-se trs vezes antes de voltar a falar.

    Acha que est longe? Que nada! Vej a, o rastro ainda est fresco! Ento deixe comigo! disse a ona, preparando-se para uma boa

    corrida. No, espere, tenho um plano melhor disse Konew. Est vendo

    aquele morro elevado e coberto de vegetao? Foi por l que ela se escondeu. Euvou atrs dela, e voc fica aqui embaixo. Vou assust-la e encam inh-la bem nadireo da sua boca.

    A ona adorou a ideia e foi colocar-se na base do morro, enquanto o ndioo escalava. Ao chegar ao topo, Konew encontrou um pedregulho enorme erolou-o at o comeo da descida.

    A vai a anta! gritou o ndio.Ao escutar o rudo de algo pesado descendo, a ona firmou-se nas pernas.

    Que anta enorme deve ser! disse ela, lam bendo os bigodes.De repente, porm , surgiu do matagal inclinado o pedregulho enorme, a

    rolar furiosamente, e passou por cima da ona, deixando-a esmigalhada e fininhacomo um tapete.

    E esse foi o fim de mais uma ona.

    * * *

    Uma ltima.Konew estava sentado em um galho elevado de uma enorme rvore. Ele

    havia encontrado uma colmeia e estava se deliciando com o mel quando uma

    ona chegou e perguntou: Que faz a? Estou saboreando esta delcia disse Konew, lambendo os dedos

    dourados de mel. Tambm quero! disse a ona, apaixonada por mel. Ento, faamos o seguinte: eu deso e corto a rvore. Quando ela cair,

    voc apara a colmeia nos braos e fica o resto do dia se deliciando.A ona topou e ficou aguardando enquanto o ndio metia o machado na

    rvore.Quando a rvore finalmente comeou a inclinar-se, a ona fez meno de

    sair correndo.

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    Idiota, fique no lugar! berrou Konew. Apare a colmeia, seno elavai se estraalhar.

    A ona se encheu de coragem e esticou os braos na direo da colmeia.S que atrs dela vinha a rvore inteira, e foi assim que a pobre felina viu-seesmagada e coberta de picadas de abelhas.

    * * *Konew, segundo a lenda, teve um fim grotesco, mas que o amor ao saber

    obriga a contar.Certo dia, ele estava se aliviando, no alto de uma rvore, quando um

    besouro vira-bosta aproximou-se, l embaixo. Konew olhou para o serzinho edisse, apiedado:

    Gostou? Aqui dentro tem muito mais! disse ele, apontando para otraseiro.

    O vira-bosta subiu, entrou-lhe traseiro adentro e comeu o resto da porcaria,e j unto com ela as tripas e tudo mais, dando um fim miservel ao maior tapeadorde onas j surgido nas matas brasileiras.

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    O UIRAPURU

    Existem diversas lendas sobre essa pequena ave amaznica, cujo cantodeslumbrante inspirou Heitor Villa-Lobos a compor um poema sinfnico.

    Esta lenda conta como duas amigas tornaram-se rivais pelo am or de ummesmo homem.

    As duas moas chamavam-se Moema e Juara. Desde crianas, elas eramapaixonadas por Peri, o ndio mais belo da aldeia. No havia ndia que no seinteressasse por ele, mas as nicas que tinham condio de disputar o cobiado

    prmio eram as duas amigas inseparveis.Apesar de rivais, as duas amigas no escondiam uma da outra a sua

    pretenso. Amo Peri perdidam ente dizia Juara a Moema. Tambm sou louca por ele dizia Moem a a Juara.As coisas seguiram assim, numa rivalidade amistosa, at o dia em que

    decidiram consultar o paj da aldeia para ver o que poderia ser feito para

    resolver o dilem a. Peri no sabe dizer qual de ns duas prefere disse Moema ao paj . Acontece que j estamos em idade de casar disse Juara.Ento o paj, depois de meditar, elaborou a seguinte proposta:

    No h outro j eito: vocs tero de disput-lo para ver quem fica com ele.No dia aprazado, as duas ndias, munidas de arco e flecha, apresentaram -

    se na mata. Quem acertar o pssaro que eu apontar ser a vencedora disse Peri.De arco na mo, as duas ndias ficaram espera da ordem de Peri.

    Ali, atirem! gritou o ndio ao ver uma ave branca surgir por entre osgalhos.Duas flechas velozes partiram, silvando no ar, mas somente uma delas

    acertou a pequena ave. Aqui est! disse Peri, tomando nas mos a ave a lvejada.As duas flechas estavam marcadas, e aquela que estava encravada na ave

    tinha a m arca de Juara.Desde ento, Juara passou a ser a esposa de Peri. Quanto pobre Moema,

    decidiu fugir da aldeia e ir se esconder na mata para lamentar a sua infelicidade.Tup, apiedado da moa, decidiu, ento, transform-la numa ave de canto

    maravilhoso. O seu canto ser to belo que ter o dom de curar a sua prpria tristeza

    disse o deus.Moema, convertida no uirapuru que em tupi significa pssaro que no

    pssaro , passou a m orar na floresta, e desde ento toda ela silencia sempreque seu canto comea a soar.

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    O SURGIMENTO DA NOITE

    Algumas tribos amaznicas creem que no comeo dos tempos s havia dia.Era sol de m anh, sol de tarde e sol de noite, e s quando as nuvens apareciam que se tinha um descanso para tanta luz e calor.

    Mas mesmo sem sol, continuava sempre dia. que a noite, diziam eles,estava adormecida no fundo do rio Amazonas, e at ali ningum se animara adespert-la.

    Naqueles dias, a Cobra-Grande, um dos personagens mais importantes dofolclore amaznico, no s vivia solta por a como tambm tinha uma lindafilha.

    O esposo dessa jovem andava m uito chateado, pois ela no queria dormircom ele de jeito nenhum. A desculpa da esposa era sempre a m esma:

    Deitar por que, se ainda no noite?O pobre tentava argumentar, dizendo que no seria nunca noite, mas no

    tinha j eito.

    S deito quando anoitecer teimava ela. Mas e quem vai despertar a noite do fundo das guas? Minha m e sabe o segredo. Mande algum at l buscar um coco de

    tucum.No mesmo instante, o marido mandou trs serviais at l.Apesar de mortos de medo pois no h ndio que no se arrepie ao

    escutar o nome dessa entidade , os serviais foram at a Cobra-Grande erelataram-lhe o pedido da filha.

    No o abram em circunstncia alguma! sibilou a serpente, entregando

    o coco aos trs.O coco fora selado com uma cobertura de breu, a fim de evitar a tentaoda curiosidade.

    Os emissrios retornaram pelo rio na mesma canoa em que haviampartido. Durante o trajeto, o coco comeou a vibrar , e um som baixinho, aomesmo tempo rouco e fininho, escapou da sua casca lacrada.

    O que ser isto? disse um dos trs ndios, colando a orelha ao coco. O que no para ser visto! disse o timoneiro, arrancando o coco do

    curioso.Mas o terceiro tambm estava curioso e, tomando o coco, colou nele a

    orelha. Tem um monte de coisas aqui dentro! disse ele. Talvez sej am joias! disse o primeiro.Ao escutar essas palavras, o timoneiro tambm acabou por render-se

    curiosidade. Est bem, vam os parar a canoa e ver o que h aqui dentro!A canoa parou bem no meio do rio, e eles acenderam uma fogueirinha

    para enxergar melhor. Como sempre acontece , o que mais discursara contra adesobedincia revelava-se agora o mais impaciente por pratic-la.

    Vamos, quebre de um a vez essa porcaria! disse o timoneiro, de olhosarregalados.

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    No!... Vamos retirar apenas o breu! disse outro, mais cauteloso.Com uma mecha do fogo eles derreteram , ento, a cobertura e finalmente

    abriram o coco.De repente, uma nuvem negra escapou de dentro e envolveu a canoa e o

    rio e o mundo todo enquanto os ndios cobriam as cabeas, abaixados. Ao mesmotem po, milhares de sapos e grilos pularam para fora do coco e se espalharam

    mundo afora, dando noite a sua inconfundvel trilha sonora.A noite se espalhara por tudo, indo alcanar a casa onde morava a f ilha daCobra-Grande e seu esposo.

    Veja, m eu m arido! disse ela. Algo aconteceu!Mas ele no podia ver nada, sequer a sua am ada esposa.

    Se no posso v-la durante a noite, ento jamais teremos a noite! disseele, enfurecido.

    Ento, ele fez meno de agarr-la, mesmo sem v-la. No, espere! gritou ela. Agora teremos de esperar o dia!O marido caiu da rede, de desgosto.

    E haver dia, outra vez? disse ele, desolado. Sim, ele no tardar afirmou a j ovem , confiante.E assim foi. Logo, uma luzinha despontou na escurido dos cus.

    Veja, a estrela dalva! disse ela, apontando a estrela que anuncia o dia. Agora vou separar a noite do dia, de tal sorte que teremos as duas coisas,alternadamente.

    Com o surgimento da noite, havia ocorrido uma srie de metamorfoses nanatureza. Bichos e aves de toda espcie haviam surgido, e quando ela olhou parao marido viu que tambm ele havia sofrido uma mudana.

    Meu adorado! gritou ela, radiante. Que cuj ubi lindo voc est!O pobre marido havia se transformado numa galinha preta de penasesverdeadas.

    Que besteira esta? disse ele ao acordar, agitando as asas e falando jpelo bico.

    Oh, que maravilha! disse ela. A partir de agora, sempre que o dianascer, voc cantar para mim e me despertar de uma noite deliciosa de sono!

    A jovem parecia mesmo feliz. Pena que o marido no parecesse toanimado com a mudana.

    Quer dizer que vou ser esta ave horrorosa o resto da vida?Horrorosa?! exclamou a jovem, ofendida. Oh, Me-dgua! Semprereclamando!

    Neste momento, os trs emissrios desastrados reapareceram.Imediatamente, o marido pulou na direo deles. Mas parou ao ver que os trsemissrios tambm estavam com os corpos cobertos de pelos negros.

    A jovem comeou a rir desbragadamente assim que a luz da aurora lhepermitiu ver m elhor no que os trs imprudentes haviam sido convertidos: trsmacacos de dentes arreganhados.

    Muito bem, toleires, a est o prmio da sua imprudncia! disse omarido, sentindo-se muito bem vingado. Doravante iro pular de galho emgalho, de dia e de noite!

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    Os trs macacos deram de ombros, arreganharam os dentes outra vez esaram pulando para dentro da selva. Suas bocas estavam pretas e tinham marcasamarelas nos braos, um resqucio do breu ardente que espirrara sobre elesquando arrombaram o coco no meio do rio.

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    A CABEA Q UE VIROU LUA

    Os ndios kaxinuas explicam de uma maneira realmente curiosa osurgimento da lua.

    A histria comea com uma caada cutia, um roedor das matas. Doisndios haviam acabado de ca-la e retornavam oca de um deles.

    Hoje irei apresent-lo minha mulher disse o primeiro.Quando chegaram diante da oca , porm, o solteiro no quis entrar.

    Tenho vergonha de apresentar-m e assim disse ele, todo suado edespenteado.

    O dono da casa mandou ele esperar ali fora e retornou em seguida comalguns itens de higiene. O ndio tmido deu uma limpada no suor, ajeitou oscabelos e colocou alguns enfeites.

    Pronto, est perfeitamente apresentvel disse o anfitrio, introduzindo oamigo na oca.

    O marido ordenou rispidamente esposa que desse de comer ao amigo.

    D-lhe toda comida que houver! Quero que coma at estourar!A jovem ndia trouxe um alguidar repleto de comida. Havia mingau,

    macaxeira, bananas de todos os tipos, cruas e assadas, inhame, pipoca e ummundo de outras comidas.

    O visitante comeu o quanto pde e depois guardou o resto num farnel paralevar para casa.

    Muito obrigado pela acolhida, m as j tarde e devo partir disse ele,afinal.

    Vou com voc disse o anfitrio, tomando um faco antes de sair.

    Para que o faco? Vou cortar madeira. Estou fazendo uma enxada e preciso de um cabo.Os dois partiram e, no meio do caminho, o anfitrio desfez todas as

    gentilezas ao cortar fora a cabea do outro, sem qualquer explicao.A cabea rolou pelo cho, mas o corpo permaneceu em p, recusando-se

    a morrer. Enraivecido, o matador caiu de faco sobre o corpo at prostr-lo semvida.

    Enquanto isso, a cabea, embora cada sobre o solo, permanecia viva. Que est olhando? rugiu o matador.A cabea no disse nada, mas as plpebras bateram vrias vezes.Diante do que julgou uma afronta, o matador cortou um pedao de pau

    com o faco, aguou-o e enfiou a cabea na ponta. Depois, colocou o marcomacabro bem no meio do caminho e deu no p.

    Logo em seguida surgiu outro ndio, tambm caador, que tomou umgrande susto ao ver aquela cabea espetada na encruzilhada.

    Quero ver direito o que isto! disse ele, indo p ante p.Ao chegar mais perto, viu que a cabea ainda batia as plpebras,

    derramando lgrimas enormes, e seu corao encheu-se de terror. Anhang! gritou ele, certo de estar diante de uma visagem.

    Enquanto fugia, porm, deu-se conta de que aquela cabea pertencia a ummem bro de sua tribo e foi correndo contar aos restantes.

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    Nosso irm o foi morto, e sua cabea j az espetada no meio da mata!Ao saberem da notcia, todos da tribo juntaram-se e foram ver o prodgio.

    Uma m ultido de ndios cercou a cabea como se fossem consulentes vidos deum orculo das matas. S que a boca, apesar de bater os lbios, no conseguiaemitir uma nica palavra.

    Ento um ndio mais destemido arrancou a cabea do poste e atirou-a num

    cesto. Vamos embora, na aldeia veremos o que se h de fazer! disse ele,partindo.

    Os ndios seguiram atrs do valento do cesto, at que, dados alguns passos,a cabea varou a parte de baixo do sambur e caiu quicando no cho. Os quevinham atrs comearam a pular, esquivando-se da cabea como se fosse defogo, at que ela parou de rolar ao alcanar um barranco.

    Vamos, coloque-a em outro cesto! disse o lder.A cabea foi acomodada e a procisso recomeou, at o instante em que a

    cabea, a poder de dentadas, arrombou a trama do fundo outra vez. Uma nova e

    frentica dana recomeou at algum sugerir que deveriam retornar paraenterrar o tronco do ndio morto.

    Enterrado o corpo, a cabea sossega disse o sabicho.Quatro ndios retornaram e enterraram o corpo. Ao voltarem, porm, para

    a companhia dos demais, encontraram-nos aos pulos, pois agora a cabea, almde quicar, queria morder a todos.

    Coloque-a num cesto forrado e leve-a nas costas! gritou o chefe a umndio parrudo.

    O ndio fez o que o chefe mandara, e a comitiva retomou a marcha.

    De repente, porm , escutou-se um berro agoniado. Todos voltaram -se eviram, estarrecidos, a cabea ensandecida com os dentes na orelha do ndio. Socorro, acudam ! guinchava o pobre coitado.Ento, o chefe tomou uma deciso realmente sbia.

    Deixem essa cabea a mesmo! Ela deve estar amaldioada e s irespalhar malefcios pela aldeia!

    Todos concordaram a uma s voz, menos a cabea, que ao ver-se s eabandonada comeou a quicar velozmente atrs deles.

    Ento, foi um espalhar de ndios em todas as direes. Alguns buscaram a

    salvao ao avistarem um rio de guas revoltas Mergulhemos! Cabea nenhuma sabe nadar!Todos caram na gua e bracejaram com fria at alcanarem a outra

    margem. Estirados na relva, ensopados e sem flego, eles relancearam um olharpara a correnteza do rio.

    ela! gritou um deles. Anhang vem vindo!E vinha mesmo. Fazendo das orelhas duas nadadeiras, a cabea avanava

    velozmente, espalhando gua para todos os lados.

    Ento os ndios reuniram o que lhes restava de flego e treparam , com aagilidade de onas, num p de bacupari. L do alto eles viram quando a cabea,

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    aps sair da gua, sacudindo-se e cuspindo gua como um chafariz, comeou arolar sinistramente at a base da rvore.

    Naquela rvore havia, agora, mais ndios do que frutos dependurados. Desam ou sacudirei esta porcaria at carem todos! rugiu a cabea,

    adquirindo, subitamente, o dom da fala.Ao ver que ningum a obedecia, a cabea comeou a dar marradas no

    tronco, como um cabrito, enquanto os ndios balanavam no alto como folhasnum vendaval.

    De repente, porm , a cabea parou, talvez meio tonta com tudo aquilo. Antes de descerem , deem-m e algumas frutas, pois fiquei com fome!

    gritou ela.Instantaneam ente comearam a chover frutos sobre a cabea esfomeada.

    Ela deu algumas dentadas nos frutos, mas cuspiu tudo, enojada. Pfi! Esto verdes! Deem -m e os maduros!

    Desses, ela gostou. Pena que, ao engoli-los, eles lhe saam pelo pescoocortado, sem nunca matar-lhe a fome. Mesmo assim, continuava comendo-os.Ento, um dos ndios trepados teve uma boa ideia.

    Joguem longe os frutos! Assim poderemos fugir enquanto ela vai busc-los!

    Os frutos foram arrem essados o mais longe possvel, e a cabea saiurolando para apanh-los.

    agora! gritou o autor da ideia.Numa s vez, despencaram todos os ndios. Nem bem seus ps haviam

    tocado o solo, puseram-se a correr para a aldeia fe ito lunticos. Ao chegarem l,encerraram-se todos em suas ocas e ficaram esperando o pior, que era achegada da cabea maldita.

    Todos espiavam por entre as frestas das ocas, at que se escutou, cada vezmais ntido, um tum-tum-tum sinistro crescer de dentro da m ata.

    Anhang! ela! gritaram vozes esganiadas de todos os sexos.A cabea finalmente surgiu e foi postar-se no centro da taba. Apenas

    algumas tochas iluminavam o ttrico cenrio, pois naquele tempo ainda nohavia luminria alguma nos cus.

    Toleires! Se no me deixarem entrar em suas ocas vou lanar umamaldio que vai reduzir sua aldeia a cinzas!

    O silncio, porm, permaneceu, e ento a cabea passou a gritar umamistura incoerente de promessas e am eaas, que s serviu para aterrorizar aindamais os ndios.

    No me deixaro entrar, ento, malditos? Pois saibam que, a partir dehoje, subirei aos cus e me converterei na lua! Minha cabea ser a lua, e meusolhos, as estrelas! Aparecerei em quartos, e quando fizer minha primeiraapario as mulheres sangraro, e quando estiver completa nos cus os ces e os

    doidos se poro a uivar para mim!Neste instante, um urubu desceu dos cus, farfalhando suas asas negras.

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    Depois de enterrar suas unhas aduncas nos cabelos desgrenhados da cabea, aave subiu, levando-a consigo.

    Todos viram, abandonando suas ocas, quando o urubu gigante depositou acabea no alto do cu. Imediatamente ela comeou a fosforescer em prateado, edas suas rbitas espocaram milhares de fascas da mesma cor que, aps seespalharem por todos os quadrantes, se converteram em estrelas.

    E foi assim que, segundo os kaxinuas, a lua surgiu.

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    O FURTO DO FOGO

    Segundo os ndios tembs, nos tempos mticos o fogo tinha um nico dono:o urubu-rei. Como o urubu era muito avaro da sua preciosidade, os ndios no

    podiam fazer uso de chama alguma, e quando queriam comer carne s lhesrestava o expediente de exp-la longamente ao sol.

    Isso foi at o dia em que um ndio mais destemido resolveu dar um fimquilo.

    Vamos atrair o urubu-rei e a sua tropa inteira disse ele, matando umaanta enorme.

    Depois de sangrarem bem o bicho, eles deixaram o cadver exposto ao sol,para a trair os urubus.

    No dem orou muito e o urubu-rei, atrado pelo fedor da carnia, desceusobre a anta.

    Viva, temos hoje banquete farto! Vamos l, com panheiros, h carniapara todos! disse ele, dando um grasnido.

    Logo o cu anoiteceu com a chegada de uma verdadeira nuvem de urubus.A bicharada caiu sobre a anta, mas algum teve a ideia de acender um fogo e

    preparar a carne na grelha, ou no moqum , com o se diz entre os ndios. Carne moqueada tambm tem l suas delcias! disse o urubu-rei,

    retirando de debaixo da asa negra um tio muito bem escondido para acender agrelha.

    Os urubus, naquele tempo, tinham o dom de se transformar em gente e,assim, antes de se lanarem comilana, despiram as asas e ficaram com aaparncia de homens (da, talvez, o gosto que tinham em assar a carne, ao invs

    de comerem-na crua, como hoje normalmente fazem). Ufa! Que caloro! disse o urubu-rei, despindo o manto de penas.Nus feito gente, os urubus atiraram-se finalmente carne, e j usto neste

    instante, irrompendo de dentro da mata, surgiram os ndios, de olho aceso no fogoque ardia na grelha.

    Depressa! Apanhem um tio! gritou o velho paj, organizador doassalto.

    Um grito de alerta do urubu que vigiava avisou, entretanto, os dem ais, elogo todos vestiram seus mantos negros de penas e levantaram vooestabanadamente. Antes de partir, o urubu-rei tomou a ltima fagulha que ardiana grelha e, depois de ocult-la debaixo da asa, j untou-se s demais aves no cu.

    O paj correu alucinadamente a t a grelha, remexeu no borralho eencontrou um ltimo caquinho de carvo, com uma listrinha laranja correndo

    pra l e pra c. Aqui! Aqui! gritou ele aos demais. Vamos, assoprem, no deixem

    apagar!Quinze bocas cercaram o carvozinho e comearam a assopr-lo

    agoniadamente, mas o fizeram com tanta fora que a listrinha laranja acaboupor se finar, e o carvo nunca mais se acendeu.

    Idiotas! exclamou o paj , irado.Quando se acalmou um pouco, porm , viu que a anta ainda estava quase

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    inteira. Eles voltaro logo disse ele, animando-se outra vez. Desta vez, vou

    ficar bem prximo da grelha, e vocs desapaream e s surjam quando euordenar o ataque!

    Os tembs fizeram como o paj ordenara, enquanto ele tratava de cavarum buraco bem ao lado da carnia a fim de se enfiar ali dentro. O mau cheiro da

    anta decomposta era insuportvel, mas quem disse que furtar fogo era coisa fcile prazenteira?Dali a pouco, os urubus voltaram, loucos de fome. Aps despirem seus

    casacos pretos, que fediam mais do que a carnia, reacenderam o fogo erecomearam a banquetear-se.

    Enquanto comiam, o paj aproveitou para irromper da sua toca, gil comouma marmota, e meteu a mo dentro da grelha para apanhar um tio.

    Assustados, os urubus apanharam suas vestes e levantaram voo outra vez.O urubu-rei ainda tentou resgatar o tio, ou pelo menos extingui-lo na mo do

    paj , fazendo uma ventania danada com as asas, mas o velho ndio cerrara os

    dedos com tanta fora que nem um furaco teria como apag-lo.No fim de tudo, os urubus sumiram nos cus, e o paj viu-se dono do tio,

    que ainda ardia em sua mo. Que Anhang o carregasse se aquilo no ardiacomo cem mil espetadas!

    Como um Prometeu enlouquecido, o paj tratou de atear fogo em todas asrvores de lenho incandescente que encontrava, a fim de preservar a chama, eteria colocado fogo na mata inteira se os demais ndios no tivessem corrido paraapagar aquelas labaredas todas.

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    COMO SURGIU O OIAPOQ UE

    Os ndios oiampis explicam de maneira melanclica o surgimento do rioOiapoque, no extrem o norte do Brasil.

    Tudo comeou num tempo muito antigo, quando a fome e a doenaestavam afligindo a aldeia dos oiampis. Tarum, uma bela ndia, estava grvida e

    decidiu procurar um lugar livre da molstia e da penria para criar seu filho.Com a barriga pesada, a pequena ndia comeou sua peregrinao solitria pelamata, mas passados alguns dias sentiu que no teria m ais foras para ir a lugaralgum.

    , Tup, no posso mais dar um passo e morrerei com meu filho noventre! exclamou ela, sozinha e esfomeada no meio da mata.

    Ento Tup, apiedado, transformou-a numa enorme cobra.Tarum, convertida nessa cobra, encontrou foras para seguir adiante,

    levando sempre o filho no ventre, at que, um dia, encontrou um lugar aprazvel,onde havia gua e terra boa para plantar.

    Aqui haveremos todos de viver! disse ela, pensando em retornar spressas para avisar a gente da sua aldeia.

    Antes de retornar, porm, ela deu luz uma menina. Graas a Tup no nasceu uma cobrinha! disse ela, aninhando nas suas

    dobras o pequeno ser.Tarum refez todo o trajeto com a menina na garupa at chegar de volta

    sua aldeia. Entretanto, viu-se surpreendida pela pssima recepo dos seus.

    E no era para menos, j que Tarum ainda ostentava sua figura de cobragigante.

    a Cobra-Grande! disse um ndio, apavorado.Desde tempos imemoriais que os ndios amaznicos nutrem um medo atroz

    da Cobra-Grande, um ser frio e devastador, cujo nico propsito alimentar-sede ndios e animais. Imediatamente, um grupo de valentes surgiu com arcos eflechas e comeou a arremessar uma verdadeira chuva de setas para cima da

    pobre ndia-cobra.

    Tarum no foi atingida, protegida que estava por suas escamas, mas suafilhinha no teve a mesma sorte e acabou varada por uma flechada certeira.Ao ver a filha morta, a cobra lanou para o ar um silvo de dor e tristeza to

    aterrador que os ndios saram correndo em todas as direes. Imediatamente,um verdadeiro rio de lgrimas brotou das pupilas da cobra, preenchendo todo osulco que ela abrira durante a sua viagem de ida e de volta. Um rio imensoformou-se, e a cobra m ergulhou nas suas guas caudalosas, desaparecendo parasempre.

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    OS POTES DA NOITE

    Dizem os ndios tem bs que outrora o cu no era to alto como agora, eque um dia os passarinhos e todas as aves do cu, querendo mais espao para assuas acrobacias, convocaram uma reunio para pr o assunto em votao. Esseencontro foi quase to concorrido quanto a fam osa Assembleia dos Pssaros,ocorrida l para as bandas do Oriente, e tinha ave de todos os jeitos, at mesmocriaturas que de aves s tinham as asas, tal como o morcego.

    Alis, o morcego foi o nico ser provido de asas que repudiou a ideia desuspender o telhado do cu.

    O cu j no est a lto o bastante? disse ele.Mas as aves no queriam saber de cu baixo e aprovaram por esmagadora

    maioria a elevao da abbada dos cus.Foi uma trabalheira imensa, mas as aves conseguiram, afinal, erguer o

    grande telhado azul de tal modo que, a partir dali, sobrou espao para as piruetasaladas de todos os seres amigos do ar. O morcego, porm, foi punido por sua

    casmurrice, e desde ento passou a dormir de ponta-cabea. De hoje em diante, dormir com o cu debaixo dos ps! disse a coruja,

    ao decretar a sentena.Mas, se os pssaros estavam felizes com a suspenso do cu, os ndios

    continuavam desgostosos com as coisas do alto. O cu fora suspenso, mas e da?em por isso a c laridade diminura, j que no havia noite, ainda, em parte

    alguma do universo. Os tembs no aguentavam mais dormir com luz no rosto, eera preciso fazer a lguma coisa para terem , pela primeira vez, uma noite dedescanso real.

    At que um dia um velho ndio, chegado dos fundos da mata, trouxe umagrande novidade. Acabei de descobrir o local onde o mau esprito Az esconde seus dois

    grandes potes!Aquilo parecia histria de um velho maluco, mas, mesmo assim, o cacique

    decidiu tirar a dvida. Est fa lando dos potes que guardam a noite? disse ele. Sim, sim, eles mesmos! bradou o velhote, sapateando os ps nus sobre o

    p.No mesmo instante, o cacique organizou uma expedio mata para

    arrebatar os dois potes. Eles eram negros como a noite que escondiam e estavammetidos entre os joelhos do velho demnio, que nunca dormia. Quanto mais seaproximavam, mais escutavam o rudo que havia dentro dos potes. que dentroestavam guardados, alm da noite, todos os seres esparrentos que a povoam, taiscomo os grilos, os sapos e toda a fauna gritona das trevas.

    Tirar os potes do meio das pernas do demnio j se v que no d disseo cacique.

    Ento, chamando seu arqueiro mais hbil, ordenou-lhe baixinho:

    Vare aqueles dois potes com uma nica flechada.O arqueiro rastej ou no musgo at encontrar a posio ideal. Quando teve a

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    certeza de poder espatifar os dois cntaros com uma nica flechada, eleabandonou a posio de cobra rastej ante e ficou de joelhos; depois, alou o arcoe caprichou bem na mira para s ento disparar a seta. Um zum de vento cruzoua mata e passou por entre as pernas do demnio, espatifando um dos vasos (ooutro, Az conseguiu proteger, pois enganava-se quem pensava que ele dormia).De qualquer jeito, um dos potes se espatifara, e seus cacos saltaram na cara do

    demnio, deixando-o momentaneamente cego.Com a exploso do primeiro pote, um jato veloz de trevas jorrou para fora

    e, depois de engolir o demnio e se espalhar por tudo, continuou avanando portoda a selva. Junto com a treva, vinham os habitantes da noite onas, aranhas,cobras, morcegos, mosquitos e predadores de toda espcie, que se aproveitam daescurido para espalhar o seu reinado de terror e de sangue.

    Ao verem aquilo tudo crescer para cima deles, os ndios largaram a corrercom quantas pernas tinham, pois a noite se revelara pior, afinal, do que o dia sem

    fim. Eles s pararam quando chegaram sua aldeia. Quase junto com eleschegou a noite, e ento eles desabaram, exaustos, sobre o cho, pois no haviaquem pudesse resistir quela gostosa escurido para tirar um bom ronco. Quandoestavam , porm, no bom do sono, a barra do dia comeou a erguer-se outra vez,e um raio de sol feriu o olho do cacique.

    Danao! Que noite mais curta esta?De fato, a noite fora m uito curta. Ento, ele percebeu que teria de quebrar

    tambm o segundo pote, que ainda restara inteiro na selva.O arqueiro, pressentindo o chamado, apresentou-se, solcito.

    Voc no! disse o morubixaba, expulsando o arqueiro fajuto.Ento mandou chamar o urutau, um dos aj udantes de sua predileo.

    (Naquele dias, o urutau era ainda um ndio, como todos os outros.) V voc at a mata e quebre o segundo pote!Urutau tomou do arco e se foi, embora pressentisse coisa ruim. Ao chegar

    perto de Az, viu que ele ainda esfregava os olhos magoados e aproveitou paraarremessar a sua seta sobre o pote.

    Resultado: o vaso rachou inteiro, e nova onda de trevas se espalhou por

    tudo. Assustado, o ndio-urutau abriu o compasso das pernas e comeou a corrercom toda a energia, mas acabou enredando os ps num emaranhado de cips,indo dar de cara na relva. Ento, antes que pudesse erguer-se, a treva finalmentealcanou-o. O ndio deu um grito e cobriu a cabea com os braos. Quandodestapou-se, porm, foi com um par de asas que o fez. Tambm um bicoenorme havia crescido no lugar da boca, e um par de olhos amarelos earregalados dava agora sua cara um ar permanente de espanto.

    E foi desde este dia que o urutau deixou de ser um ndio para converter-se

    na ave noturna que hoje se conhece. De noite, o urutau grita, e durante o dia nofaz outra coisa seno estar empoleirado num galho e acompanhar, de olhos

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    arregalados, a marcha do sol pelos cus.

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    O GAVIO E O DILVIO

    Havia, num tempo antigo, dois irmos caadores da tribo dos tembs. Certafeita, decidiram subir numa rvore para pegar o ninho do gavio Uiruuet.Depois de improvisarem uma escada de varas, chamada mut, o mais velho

    prontificou-se a subir. E o fez. Embaixo ficaram sua esposa e o irmo mais novo.

    De repente, algo caiu do alto e foi enroscar-se nos cabelos do irmo queficara embaixo. Deixe que eu desenrosco disse a esposa do ndio que havia subido.Com dedos hbeis, a bela ndia ps-se a vasculhar o cabelo do cunhado. Ao

    ver tudo isso l de cima, o irmo mais velho ficou cheio de cime. Estou tonto, suba voc! disse ele ao irmo, descendo.Os dois trocaram de lugar. O irmo mais novo subiu, enquanto o outro, j

    no cho, cortava as cordas que uniam os degraus da escada, desconjuntando-atoda. Depois, tomando a esposa pelo brao, arrastou-a para casa, deixando oovem dependurado no alto, sem meios de descer outra vez.

    O jovem gritou, mas o irmo mais velho deixou-o entregue prpria sorte. Esta voc h de m e pagar! disse ele, brandindo o punho, l do alto.Ento, sem ter mais nada para fazer, decidiu vasculhar o ninho do gavio.

    H apenas um filhote disse ele, ao inspecionar o espaoso ninho.De repente, porm , chegou a esposa do Uiruuet, agitando as grandes asas.

    Um pequeno tufo quase derrubou o ndio, que ficou paralisado de medo, poisagora era o gavio ou o abismo.

    Num primeiro momento, ele preferiu arriscar com a esposa do gavio. O que quer aqui, criatura pelada? disse a ave, encostando o bico adunco

    no nariz achatado do ndio.O ndio confessou que tinha ido ali para pegar alguns ovos.

    Pois daqui no sair mais disse a ave, empurrando-o com as asas parao fundo do ninho.

    O ndio sorriu amarelo e disse que fazia muito gosto em ficar por ali. Com gosto ou sem gosto, assim que ser disse a esposa do Uiruuet,

    atirando aos ps do ndio o cadver de um macaco. Esfole o bugio at e le ficarparecido com voc.O ndio comeou a esfolar o macaco, mas era to desajeitado que levou

    um tempo para arrancar apenas um pedao do pelo. Olhe l! disse a ave , de repente, apontando para o cu. Agora voc

    vai ver como se faz!Era o Uiruuet chegando pelos ares com outro macaco.O gavio m acho pousou e fincou logo seus olhos arregalados no intruso.

    Por que trouxe esta comida imprestvel para o nosso filhote? disse ele

    esposa. No sabe que a carne dessa raa imunda no agrada nem aos urubus? Ele o nosso novo esfolador disse ela, sem se intimidar.

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    O qu?! isso mesmo. Estou farta de pelar bugios enquanto voc voa

    alegrem ente por a. At logo. Ensine-o a pelar os macacos que eu vou dar umavolta disse ela, levantando voo.

    Uiruuet e o ndio passaram o resto do dia cobertos de pelo e de sanguecoagulado enquanto o filhotinho do gavio, aos seus ps, no parava de piar,

    louco de fome. Voc gostaria de tornar-se um gavio? disse o Uiruuet, ao fim dotrabalho.

    Est brincando? disse o ndio, nauseado dos ps cabea. muito melhor do que ser homem disse o gavio. No gostaria de

    voar?O ndio pensou nisso, e depois no irmo que o abandonara a li, e em toda a

    raa humana que no valia m uito mais do que o irmo, e tomou finalmente adeciso.

    Muito bem, serei um gavio!

    No mesmo instante o Uiruuet ergueu voo. Espere a, eu j volto!O ndio olhou para baixo e disse a si mesmo:

    Que outra coisa posso fazer, sem asa ou escada?Dali a pouco, o gavio retornou com um bando de seus colegas. O ndio

    sentiu o sangue gelar ao imaginar que estava prestes a ser transformado no emgavio, mas no prato principal dessa espcie.

    Os gavies pousaram no ninho e comearam uma dana, at que o ndiosentiu crescer-lhe por todo o corpo um manto de penas. Seus braos viraram asas

    possantes, e suas pernas converteram-se em dois mem bros speros queterminavam em patas de dedos com unhas aduncas. O que houve comigo? disse ele, apalpando-se todo com as asas. Voc agora um de ns! disse, triunfante, o Uiruuet.O ndio grasnou algo que nem mesmo os gavies entenderam.

    Agora vam os tirar a desforra do seu irmo!O ex-ndio aprovou a ideia na hora e lanou-se junto com os outros na

    direo da aldeia. Quando chegou prximo a ela, viu o irmo pintando-se parauma grande festa que iria acontecer na taba.

    Ao verem o bicho pousado, os amigos do ndio alertaram-no: Veja que enorme gavio! Acerte-o com uma flechada!O ndio gabola tomou do arco e disparou uma flechada, mas o gavio

    desviou-se com notvel destreza. Outra flecha foi arremessada, e de novo ogavio desviou-se. Ento, farto do brinquedo, o gavio-ndio avanou sobre oirmo e enterrou as garras no seu cabelo.

    Socorro! gritou o desgraado, ao mesmo tempo em que era suspensono ar.

    Ao alcanar uma boa altitude, todos os outros gavies lanaram-se sobre apresa, picando-o vivo em pleno ar. Uma chuva de ossos foi tudo o que retornoudo ndio morto sua aldeia natal.

    Agora trate de retirar seus pais da aldeia, pois vamos atac-la disse o

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    Uiruuet.O gavio-ndio chegou oca dos pais e disse para virem com ele.

    No vam os! Voc converteu-se em dem nio! responderam .Ento o gavio cresceu em tamanho e, depois de agarrar a oca com o bico,

    suspendeu-a nos ares.Ao verem aquilo, os demais ndios tentaram impedir a fuga da oca

    voadora, pulando e estendendo os braos. Os paj s tomaram dos seus cachimbose puseram-se a assoprar a fumaa na direo da oca, mas isto s serviu paraempurr-la ainda mais para longe.

    Assim que a oca desapareceu por entre as nuvens, uma chuvaradaequivalente a dez rios Tocantins sendo despejados do alto comeou a desabarsobre a aldeia, submergindo tudo em minutos.

    Alguns, porm, conseguiram escapar, escalando palmeiras. Durante vriosdias, imersos em trevas, eles lanaram coquinhos sobre as guas para ver se elashaviam baixado, mas o rudo soava sempre prximo. Ento, comearam acham ar-se uns aos outros, para ver se ainda viviam, e tanto gritaram que o seu

    vozerio rouco acabou por transform-los em sapos.A lenda no especifica se todos os ndios sobreviventes se transformaram

    em sapos, mas devem os crer que no, pois doutra forma os tem bs, hoje, seriamtodos habitantes dos rios.

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    A CONVERSO DE AUK

    Auk um personagem da tribo Krah, das margens do rio Tocantins.Mesmo antes de nascer, esse ser singular j andava aprontando por a, comoveremos agora.

    que ele no queria nascer de j eito nenhum. Assim, os meses da gestaose passavam , e ele permanecia escondido no ventre da me. S noite que eledava uma saidinha para ver como era o mundo, transformado numa pre ounuma paca, mas logo ao amanhecer retornava ligeirinho para a sua moradanatural e aconchegante.

    At que um dia no teve mais jeito, e o pequeno Auk foi obrigado a fazera sua entrada oficial no mundo. Todos o acharam um belo menino, mas elecrescia muito rapidamente. Alm disso, tinha o dom realmente impressionantede ficar igualzinho a todos os que dele se aproximassem.

    Assim, certa feita, ao receber a visita do mem bro mais velho da aldeia, umvelhote de costas encurvadas, o m oleque transformou-se instantaneam ente num

    ancio igualzinho a ele. Como vai o nosso menino? disse ele, gengivando. Seu velho sujo! respondeu o moleque, que tinha virado outro velho sujo.Quando o velho saiu, chegou um homem branco, de barba na cara .

    Instantaneam ente uma barba preta cresceu no rosto do indiozinho at ele ficarcom a cara idntica do homem branco.

    S quando corria para os braos da me que Auk voltava a ser umindiozinho normal, pequeno e pra l de moleque.

    Essas metamorfoses, porm, enchiam de terror a aldeia inteira, e logo

    trataram de enxergar no menino uma encarnao qualquer de Anhang, ou oDiabo dos homens brancos.Ento, quando o medo estava bem entranhado, passou-se esta conversa

    entre o pai e o av de Auk, dois ndios muito malvados: Que faremos com esta cria de Jurupari? disse o pai. S h um jeito disse o av, assoprando a m o como quem sopra um

    resto de p.Para quem no entendeu, eles tramavam a morte do menino. Assim, na

    manh seguinte, o av avistou Auk brincando no barro e lhe disse, como quemconcede o mais alto privilgio da Terra:

    Venha, m eu netinho! Venha passear na mata com o vov!Auk levantou-se e seguiu-o. Desta vez, o pequeno Auk, por alguma razo

    que s as lendas explicam, no se transformou numa criatura igual ao av.Os dois caminharam mata adentro at chegarem prximo a um abismo.

    Olhe s como belo e profundo! disse o velho, conduzindo o meninoat a beira.

    Auk olhou superficialmente, s para satisfazer o av, pois no achavagraa alguma naquilo.

    Neste instante, o velho empurrou o guri e voltou trotando para a aldeia.Felizmente, nem bem comeara a cair, o garoto transformou-se numa

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    folha seca e foi descendo de mansinho at pousar, so e salvo, no solo. Nomesmo dia, Auk voltou para casa como se nada tivesse acontecido. Ao v-lo, oav correu para abra-lo.

    Meu netinho! Pensei que tivesse cado e morrido! Todos nslamentvamos o desastre!

    A tribo inteira estava consternada, sim, mas era por ter o m enino de volta.

    No dia seguinte, o av levou Auk para um novo passeio na mata. Aochegarem nas brenhas, o velho mandou o netinho juntar m adeira e fazer umafogueira bem grande.

    Fogueira pra qu? perguntou o menino, torcendo a boca. Vamos moquear uma carne!O garoto ficou olhando desconfiado para o velho. Moquear carne para que,

    se o av no tinha mais nenhum dente na boca?O fato que, quando a fogueira estava bem alta e crepitante, o velho

    chegou pelas costas de Auk e empurrou-o para dentro das labaredas.Desta vez, no houve prodgio algum: o guri entrou nas chamas e no saiumais.

    A partir daquele dia, o lugar onde Auk morrera se tornou lugar demaldio, e as pessoas s iam l em grupos, a fim de saciarem a sua sede demorbidez.

    Numa dessas excurses, os visitantes deram de cara com uma casinhaerguida no lugar onde ardera a fogueira. Havia algum l dentro, pois ecoava vozde gente.

    Assustados, os indgenas voltaram correndo para a aldeia. Auk ressuscitou e est morando numa casa! disse um dos fugitivos. Onde? gritou o av.Um segundo ndio, que no reconhecera o velho, esclareceu:

    L adiante, onde o av m alvado queimou vivo o neto.Todos reuniram coragem e voltaram ao lugar. De fato, l estava a casa, e,

    ao seu redor, uma grande plantao. De dentro da casa surgiu Auk, um ndioadulto, agora. Ele estava casado com uma ndia e ambos passavam muito bem.

    Vov, como est? disse Auk, ao reconhecer o velho.Em sua voz no havia o m enor sinal de rancor. Pode entrar sem susto, meu av, pois no guardo rancor algum. Tornei-

    me cristo.O velho ficou desconfiado.Ento Auk levou todos at a beira do rio, para lhes contar uma parbola.

    Depois que se tornara cristo, ele aprendera a pregar moral e achou que aquelaera uma excelente ocasio para isso.

    Auk tomou uma pedra e lanou-a gua. Viram como ela vai ao fundo ao cair?Todos balanaram obedientemente a cabea.

    Assim ser a a lma de vocs quando morrerem . Cair no poo da morte e

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    no subir nunca ao cu.Todos engoliram em seco.Auk tomou outra pedra, envolveu-a numa folha seca e arremessou-a

    tam bm na gua. A pedra tam bm foi ao fundo, mas a folha destacou-se e subiuligeiro tona.

    Aquela folha a m inha alma. A pedra o corpo que desce sepultura,

    mas a alma crist sobe imediatamente ao cu.Depois da pregao, os ndios foram levados de volta para a casa de Auk.Todos deram graas a Tup que o castigo se limitara a uma ameaa vaga. Auk

    presenteou-os ricamente, dando-lhes espingardas, faces, plvora. sua m e eledeu um caldeiro. Depois, despediu-se de todos, fazendo-lhes o sinal da cruz.

    Voltem sem pre que quiserem, meus irm os em Cristo, e que Deus osabenoe!

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    KOIER, O MACHADO CANTANTE

    Os ndios krahs, do rio Tocantins, possuam outrora um machado mgicochamado koier. Sua lmina era feita de pedra, em formato de ncora, e ele erausado tanto na guerra quanto nas cerimnias religiosas da tribo.

    Os krahs viviam em guerra com seus vizinhos. O seu maior desafeto eramos krolkametrs, uma tribo rival.

    Certa feita, as duas tribos estavam se enfrentando, quando uma flechadacerteira abateu o portador do machado cantante. O valente guerreiro krah caiu

    para um lado, e o machado, para o outro.Como um raio, o matador correu e apoderou-se da arma.

    Agora o koier pertence aos krolkam etrs! urrou ele, brandindo no ar omachado.

    Finda a matana, todos voltaram satisfeitos para as suas casas, cada ladolevando os inimigos mortos para serem assados nas grelhas.

    Mas quem ia feliz mesmo era o novo portador do koier , que era casado

    com uma bela ndia. Antes mesmo de chegar em casa, decidiu que, agora que setornara um personagem importante da aldeia, deveria arrumar coisa aindamelhor do que a sua bela ndia.

    No dem orou muito, apareceu uma candidata, e o ndio se mudou para aoca dela. Na pressa, porm, acabou esquecendo o machado dependurado emcima da sua rede.

    Durante a noite, a ndia abandonada escutou por entre os intervalos dos seussoluos o machado falar-lhe:

    Mame, vam os passear!

    ndias so muito maternais. Por algum motivo, o machado passara acham-la de mame, e bastara isso para ela ficar enternecida com o objeto.Tomando-o nos braos, ela saiu porta afora para passear.

    Durante a noite inteira a ndia enjeitada embrenhou-se pelas matas,enquanto o machado lhe ensinava todas as canes de amor e de guerra doskrahs.

    Logo, toda a aldeia ficou sabendo do caso, e a notcia se espalhou,chegando a ldeia dos krahs. Ento, o irmo do primitivo dono do machadodecidiu recuper-lo.

    A esta a ltura, o novo dono j havia retomado o obje to e foi com raiva querecebeu a visita do emissrio.

    De forma alguma o restituirei! bradou ele.Mas o cacique da tribo disse que havia regras que o obrigavam a restituir o

    objeto aos inimigos. Anhang e maldio! rosnou o novo dono. Pois saibam que s o

    restituirei quele que me vencer na corrida de toras!Corrida de toras era uma competio que os ndios disputavam tendo

    atravessada s costas uma tora de madeira de cerca de um metro decomprimento.

    Quem me vencer poder no s levar de volta o machado com o mematar e comer a carne do meu corpo! disse o desafiante, segurssimo.

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    O emissrio retornou aos krahs e repetiu ao pretendente o desafio. Corrida de toras nenhuma! disse este. Vamos reaver o koier fora!Ento os krahs arm aram-se de flechas e porretes e rumaram para a

    aldeia dos krolkametrs, prontos para mais uma bela dana das flechas. Quandochegaram divisa da aldeia inimiga, foram lanados ao ar os brados de guerradas duas tribos valorosas, e as flechas assoviaram de novo, para valer. Mas quem

    mais trabalhou foi,