10 - no tempo da feitiçaria

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    i d e l i n a j a r d i m&

    m n i c a s i n e l l ij o r n a l i s t a s

    fei-ti-

    a-

    riaLuiz Alberto CouceiroHistoriador e antroplogo121ABRILMAIOJUNHO 2008

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    OEstado imperial brasileiro crioumecanismos institucionais deregulao da feitiaria, mesmo tendo

    abolido do Cdigo Criminal, promul-

    gado em 1830, a punio e a denioda prtica de feitiaria como crime. A palavra feitiaria

    sequer aparece nesse Cdigo, o primeiro corpo de leis

    exclusivo do nosso territrio, no mais subordinado ao

    governo colonial portugus.1 No era crime praticar a

    feitiaria e nem acusar algum de pratic-la, de provocar

    o infortnio a outra pessoa mediante poderes mgicos

    ao contrrio do que zeram as Ordenaes Filipinas,conjunto de leis que antecedeu aquele Cdigo.

    Dava-se o nome de Ordenaes s leis portuguesascompiladas em cdigos que regulavam a vida dos sditosportugueses no reino e nas suas colnias. O primeiro

    conjunto de leis, ordenadas por D. Joo I, foi concludo

    em 1446. Em 1514 publicou-se nova coleo das leis do

    reino, com as alteraes introduzidas pelo tempo. Porterem sido impressas segundo ordem de D. Manuel, rece-

    beram o nome de Ordenaes Manuelinas. Em 1603 pu-blicaram-se as Ordenaes Filipinas, mandadas compilarpor Filipe I, que em Portugal vigoraram at 1868. No Brasil,as Ordenaes Filipinas, por fora da lei de 20 de outubro

    de 1823, vigoraram at 31 de dezembro de 1916, comosubsdio do Direito ptrio, e s foram denitivamenterevogadas pelo Cdigo Civil de 1917.

    O Ttulo 3 do Livro 5 das Ordenaes Filipinas, intitu-lado Dos Feiticeiros, prev as punies do acusado defeitiaria: pagar trs mil ris ao acusador, ser aoitado

    no brao, em plena vila onde residisse, e degredado para

    o Brasil.2 H outros dois momentos em que a palavrafeitiaria aparece nas Ordenaes Filipinas. Primeiro, noTtulo 88 do Livro 4, Das causas porque o pai ou me

    podem deserdar seus lhos, o Item 7 prescreve a deser-

    o no caso de algum usar de feitiaria ou conversar

    com feiticeiros para qualquer nalidade. Depois, emuma nota, intitulada Feiticeiros, h longa anlise das

    possibilidades do surgimento dessa expresso. Por m, otexto das Ordenaes conclui que no era possvel denircom preciso e em poucas palavras a feitiaria e nem

    o(a) feiticeiro(a).3

    O Cdigo Criminal do Imprio representou assim

    uma quebra em relao s Ordenaes Filipinas. Aps onal do governo imperial, h uma nova ruptura jurdicae volta-se condenao da magia e seus sortilgios e,portanto, da feitiaria no Cdigo Penal republicano,de 1890.

    Segundo Maggie (1992), o Cdigo Penal republicanolegislou sobre a magia e regulou as acusaes de feitia-ria, porque os legisladores e os funcionrios do Estado,

    assim como os rus e acusados, estavam imersos na

    lgica que preside as acusaes e na prpria crena.4 Otexto legal atesta o poder da crena que invade o espao

    pblico e as instituies do Estado. O artigo 156 proibia:Exercer a medicina em qualquer de seus ramos e a arte

    dentria ou farmcia; praticar a homeopatia, a dosime-tria, o hipnotismo ou o magnetismo animal, sem estarhabilitado segundo as leis e regulamentos. O artigo 157

    proibia Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilgios,usar talisms e cartomancia para despertar sentimentos

    de dio e amor, inculcar cura de molstias curveis e

    incurveis, enm, para fascinar a credulidade pblica, e oartigo 158 proibia Ministrar, ou simplesmente prescrever,

    como meio curativo para uso interno ou externo e sob

    qualquer forma preparada, substncia de qualquer dos

    reinos da natureza, fazendo ou exercendo, assim, o ofcio

    denominado de curandeiro.5

    Como nos arquivos brasileiros os documentos re-

    lativos aos crimes cometidos no Imprio, grosso modo,

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    o texto das ordenaes

    conclui que noera possvel definircom preciso

    e em poucas palavrasa feitiaria e nem

    o(a) feiticeiro(a)

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    esto organizados pelos artigos daquele Cdigo, no se

    pode localizar as acusaes de crena e prtica de fei -tiaria como motivos legais para a abertura de processo

    criminal isso porque, como disse anteriormente, as

    palavras feitiaria e feiticeiro sequer aparecem noCdigo Criminal do Imprio. Entretanto, encontrei esta

    acusao diluda noutras fontes, tais como um processo

    criminal de homicdio, outro de estelionato, notcias dejornais e correspondncias privadas de delegados de po-

    lcia e ministros da Justia. Alm destas fontes, h algunsromances que narram histrias nas quais personagenschamados de feiticeiros aparecem como agentes centraisda trama, como O Troco do Ip, de Jos de Alencar,

    de 1971. Deixarei a anlise desses romances para outroartigo, uma vez que a riqueza das suas informaes cer-tamente ser perdida neste artigo.

    Estas informaes demonstram que a crena no po-der do feitio e dos feiticeiros existia no Imprio do Brasil,e que no havia lei alguma que punisse os acusados defeitiaria, ao contrrio do perodo colonial e do republi-

    cano. As pessoas eram punidas no por serem feiticeiras

    e nem por praticarem a feitiaria, mas, sim, por estelio-

    nato, homicdio, e demais crimes prescritos pelo CdigoCriminal. Neste artigo, convido o leitor a percorrer casos

    que demonstram o que acabamos de armar, e ajudam aentender como a crena na feitiaria, no poder do feitio,

    era compartilhada por pessoas de todas as classes nasociedade imperial do Sudeste escravista, inclusive fun-

    cionrios de diversos escales do Estado.

    Pai Gavio e a Grande insurreioPai Gavio foi o nome dado ao esprito que encar -

    nava no escravo africano Jos Cabinda, na cidade de Itu

    e cercanias, na provncia de So Paulo, em 1854. Segundo

    uma srie de notcias escritas in loco por um jornalista

    enviado da cidade de So Paulo pelo Correio Paulista-

    no, Pai Gavio era o principal articulador de um grande

    plano de insurreio dos escravos das fazendas daquela

    regio.6 De acordo com os relatos, Pai Gavio ameaava

    os senhores nas ocasies em que falava atravs de JosCabinda, armando ser o lder dos Filhos das Trevas,grupo composto por escravos que seguiam suas ordens,

    escondendo-se nas matas daquela regio, preparando a

    prometida grande insurreio.Havia rituais presididos por Pai Gavio, narrados

    pelo jornalista como encontros que reuniam numerosa

    quantidade de escravos e livres, sempre durante a noite.Em uma destas reunies, Pai Gavio teria armado que

    os escravos matariam todos os brancos da regio eque, para isso, possuam grande nmero de espingar-das. Rapidamente, esta notcia chegou aos ouvidos dodelegado e de inuentes senhores de escravos locais, queconvocaram Pai Gavio ou melhor, Jos Cabinda paraum interrogatrio na delegacia de Itu.

    Segundo o jornalista, a sala do delegado estava

    lotada de gente. O interrogado em momento algumfoi chamado pelo seu nome, Jos Cabinda. Durante ointerrogatrio feito pelo delegado, Pai Gavio teve seus

    poderes de adivinhao testados: deveria saber onde

    certos objetos teriam sido escondidos naquela sala. Ojornalista escreveu que, quando Pai Gavio indicou o local

    correto, um dos presentes mudou os objetos de lugar,

    trapaceando-o. Seguiu-se, ento, uma srie de chaco-tas a Pai Gavio, ao seu fracasso, denunciado como falso

    pelo jornalista que se vangloriou da derrota pblica do

    esprito. Depois disso, houve grande represso policialaos integrantes dos Filhos das Trevas e forte vigilnciaaos freqentadores das reunies capitaneadas por PaiGavio. A idia dos senhores de escravos da regio era seantecipar ecloso de alguma insurreio de escravos.

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    Futuras investigaes geolgicaspara uma possvel descoberta deouro em Itu que, a princpio, em

    nada tinham a ver com as ameaasde insurreio dos escravos ligados a

    Pai Gavio possibilitaram a descoberta de um paiol

    com mais de cem espingardas. O paiol estava locali-zado em um dos lugares indicados por Pai Gavio como

    o local do arsenal de fogo que os Filhos das Trevasvinham, aos poucos, acumulando. Era o alto de umamontanha, lugar privilegiado para a possvel insurreiodos escravos, uma vez que dali podia-se ver todas as

    fazendas da regio, bem como toda a movimentao da

    cidade de Itu. Desta forma, os engenheiros que faziama pesquisa geolgica, bancados por importantes mem-bros da elite local, conrmaram, sem querer, as ameaasdo esprito.7

    Infelizmente, no localizamos processo criminal al-

    gum sobre o caso, nem outras fontes para alm da srie

    de reportagens publicadas pelo jornal paulistano. Ao

    contrrio do caso a seguir.

    a Coroa da salvao eos envenenamentos

    Em 1869, escravos de uma fazenda localizada nacidade de Cunha, perto de Parati, provncia do Rio deJaneiro, foram processados por estarem usando de fei-

    tiaria para matar outros escravos de algumas fazen-das da regio.8 Durante as investigaes, promovidaspor empregados e parentes da senhora e proprietriada fazenda, dona Geraldina de Campos, foi descoberta

    a existncia de reunies em torno do que, no processocriminal, foi denominado escola de feitiaria paraos escravos e libertos, seu nome era Coroa da Sal-

    vao. Esta escola previa etapas de aprendizado

    de feitios, segundo os depoimentos dos acusados e

    de testemunhas, em que feiticeiros mais graduadosministravam aulas para os iniciantes aos domingos e

    nos dias santos. A aula correspondia a uma etapa es-

    pecca do aprendizado. Em cada uma das etapas, osmestres pressupunham que os alunos exerceriamos conhecimentos adquiridos e acumulados nas aulasanteriores, exigindo que utilizassem misturas de plan-

    tas e ervas com aguardente, todas elas compradas de

    outros feiticeiros.Certos alunos resolveram praticar seus conhecimen-

    tos e misturaram algumas ervas na comida de alguns

    escravos mulheres e crianas, inclusive com con-

    seqncias fatais. Um dos alunos, o escravo Pascoal,pertencente a dona Geraldina, foi preso e contou como

    ele estava agindo. A partir da, foi aberto processo cri-

    minal contra Pascoal e outros escravos e alguns libertos,

    sob a acusao de tentativa de homicdio. Ao ler essevolumoso documento, descobri que as autoridades en-

    volvidas acreditavam que as mortes foram provocadas

    no somente pela aplicao das substncias venenosas,

    pelos escravos e libertos. Elas acreditavam que o feitio

    ensinado na Escola de Feitiaria Coroa da Salvaoestava por trs de tudo.

    Ao nal do inqurito, escravos mais diretamente en-volvidos com os assassinatos foram presos e condena-

    dos priso perptua, num longo processo criminal quedurou at o ano de 1871. Esse processo foi aberto, comodisse, segundo a acusao de tentativa de homicdio,porque no o poderia ter sido pela de prtica de feitiaria.

    Os acusados foram tratados por feiticeiros durante osdepoimentos, nos quais o delegado e os jurisconsultos

    perguntavam detalhes sobre a estrutura da Coroa daSalvao e a realizao e os ns a serem obtidos pelosfeiticeiros atravs dos feitios.

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    dos atos que

    Juca rosa era acusadode ter praticado,o Juiz somente

    tinha razo em dizerque havia empregado

    substncias txicasnas suas consultas

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    Jos sebastio da rosa,o feitiCeiro JuCa rosa

    Jos Sebastio da Rosa era ru do processo iniciado

    no dia 5 de julho de 1871, no Tribunal do Jri da Corte.9A acusao havia sido feita por um annimo, atravs decarta veiculada no Dirio de Notcias, jornal de grande

    circulao na Corte, levando abertura do processo cri -minal contra Jos, sob a acusao de estelionato. Jos,

    acusado de nefando feiticeiro pelo denunciante anni-mo, dizia, segundo o mesmo e as testemunhas envolvidasno processo, fazer coisas atravs de feitiaria, comocurar feridas e molstias e trazer de volta amantes.10Por trs de toda a denncia, havia a clara referncia ao

    envolvimento do ru, mencionado no processo por sernotoriamente conhecido por Feiticeiro Juca Rosa, commulheres leia-se esposas de importantes guras docenrio poltico da Corte. No foi toa que o acusadoarmou em seu depoimento ao juiz do caso ter testemu-nhas a apresentar em seu favor (...), mas seria impossvelconseguir isso delas.11 Mulheres de esprito fraco eramas vtimas de Juca Rosa, dizia a denncia annima. Elaso procuravam com o m de curar sentimentos amorosos,quando deseja(vam) o mal de um inimigo. Juca Rosa,ainda segundo a denncia, era feiticeiro capaz de tudo

    fazer e, quando a moa lhe agradava preferia as bran-cas e pardas, desprezando em geral suas parceiras pretas era inserida num ritual de iniciao para tornar parte

    de sua seita. Neste ritual, Juca Rosa tornava-se senhorda alma da moa, servindo com satisfao de sua brutal

    sensualidade.12 Assim, o Feiticeiro Juca Rosa recrutavaas moas a quem passava a chamar de lhas.

    Aps apelar da deciso do primeiro julgamento ao

    imperador, Juca Rosa foi denitivamente condenado emjulho de 1871, pelo juiz Joo Alfredo Correia de Oliveira,por crime de estelionato, a seis anos de priso.

    Abaixo, resumirei a argumentao dos advogados

    que pediram apelao da sentena, em nome do ru.

    Em nome no somente de Jos Sebastio da Rosa,

    mas tambm de outro ru, Lcio Jos da Silva, o advoga-

    do argumentou que o primeiro fora condenado pelo crime

    de estelionato e o segundo por ser seu cmplice. Dizendo

    que a condenao no possua nenhum valor de mrito,num processo confuso e barulhento, o advogado armaque o juiz expediu mandado de busca e apreenso de (...)

    objetos de feitiarias13. Sobre isso, argumenta que fei-tiarias nem denominao jurdica de crime ou delito

    classicado pelo nosso Cdigo Criminal, nem constituicrime inaanvel, conforme havia armado o juiz. Dos

    atos que Juca Rosa era acusado de ter praticado, o juizsomente tinha razo em dizer que havia empregadosubstncias txicas nas suas consultas. Nenhuma daspessoas que foram se aconselhar com Juca Rosa, aose sentir lesada, procurou a polcia, nem se quer a Jus-

    tia, para se queixar. Mesmo assim, o tal emprego de

    substncias txicas nas tais consultas no foi agrado,continuava o advogado, pelas autoridades pblicas. Tal

    fato devia-se a boatos que corriam pela cidade, e que

    haviam penetrado no processo atravs das opinies dospoliciais que construram o inqurito.

    O pedido de apelao da sentena, que no foi acei-to, termina com o advogado de Juca Rosa armando queele jamais sofreu pronunciamento nem condenao pelo

    delito de obter dinheiro por meio de um artifcio fraudu-lento, isto , estelionato.

    Casos de feitiaria nos ofCiosConfidenCiais e reservados

    Nas pesquisas, tambm encontrei informaes troca-das entre autoridades do Estado imperial brasileiro sobre

    a ao de pessoas acusadas de feitiaria, informaes

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    estas contidas em ofcios reservados ou conden-ciais. Essas autoridades demonstram, nessas fontes, queacreditavam que o feitio e a ao de feiticeiros regiam

    certos acontecimentos malignos.

    No dia 16 de dezembro de 1867, por exemplo, o juizCarlos de Lima Teixeira escreveu aos responsveis pela

    Secretaria de Polcia da Corte sobre um sinistro fato

    de feitiaria.14 Segundo seu relato, no dia 14 daquelemesmo ms, ele fora procurado por um tal Luiz Tavares

    Guerra, que lhe armou temer que os escravos da casa[na qual ele trabalhava] formavam o desgnio de se re -voltarem contra seu senhor e caixeiros. O juiz enviou,imediatamente, uma fora do Corpo Militar de Polcia, e

    fez prender os que pareciam tornar-se suspeitos: Fran-cisco, Bento, Luiz, Torquato, Roque, Caetano e [outro]Francisco.

    O juiz interrogou um escravo de nome David, que tra-

    balhava na mesma casa, e pertencia a um ingls chamadoHill. David conrmou o que j havia dito ao administradordaquela casa, isto , que h um ms soube pelo escravoTorquato da existncia de uma mesa de feitiaria que

    tinha por m dar cabo de Guerra e dos caixeiros e [atmesmo] dos seus escravos at o m deste ano [1867], daqual era chefe um preto-mina velho de nome Francisco e

    [da qual] faziam parte cinco escravos. Aps este interro-gatrio, o juiz informou que continuaria as investigaessobre a tal mesa de feitiaria, uma vez que soube quemuitos outros escravos estariam envolvidos no apenas

    com a mesma, mas tambm com o plano de morte a

    Guerra e aos caixeiros e seus escravos. Neste sentido, ojuiz acreditava no somente na feitiaria como forma de

    fazer o mal, mas que, atravs da mesma, escravos, lide-

    rados por um africano, que j havia sido preso, poderiamlevar a cabo um plano de assassinar pessoas que lheseram bem prximas.

    Outro caso ocorreu no ano de 1862.Misteriosas cerimnias promovi-das por escravos surpreenderam os

    senhores de Valena, provncia do Riode Janeiro. Aos moldes dos encontros

    promovidos sob a crena em Pai Gavio, escravos de v-

    rias fazendas ajuntaram-se em reunies noturnas como m de preservarem-se de molstias e terem fortuna.As reunies eram temidas pelos senhores por indicara possibilidade de insurreio, pois envolviam grande

    quantidade de escravos. Ao receber comunicado urgen-

    te, o ento chefe de polcia da Corte, Jos Custdio deAndrade Pinto, tratou de investigar as reunies sinistras

    promovidas pelos escravos de Valena. Concluiu que osmesmos davam-lhes o nome de Congres, nas quaiscelebravam cerimnias grosseiras e misteriosas, com

    o m de protegerem-se de molstias e terem fortuna,como bem j disseram os seus senhores, por meio defeitios.15 Jos Custdio no tinha certeza de que ossenhores no estavam no caminho da fortuna e das mo -lstias dos escravos, devendo ser eliminados atravs dos

    feitios feitos nas Congres. Alm disso, quanto maisas autoridades demoravam a conrmar tal informao,mais a populao de Valena e municpios vizinhos se

    alarmavam. A soluo encontrada foi recorrer ao entoministro da Justia, Francisco de Paula Negreiros SayoLobato, que deu sustentao ao caso, recomendando

    que as investigaes continuassem. nesse ponto ondepra a documentao.

    esCravos invisveisEm 28 de novembro de 1838, o jornal O Sete DAbril,

    do Rio de Janeiro, publicou em suas pginas dois e trsuma longa narrativa sobre o sucesso de uma expedio

    senhorial para acabar com insurreio escrava de enor-

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    mes propores.16 A narrativa fora enviada e assinada,em 13 de novembro, por Francisco de Lacerda Werneck,senhor de grande quantidade de escravos e herdeiro de

    muitas terras produtivas.

    Em Vassouras, provncia do Rio de Janeiro, os es-cravos do capito-mor Manoel Francisco Xavier estavamrevoltados. s quatro horas da tarde do dia dez, 150 ho -mens da Guarda Nacional, mais paisanos armados, foram

    reunidos, em 48 horas, em quatro divises, para dar m insurreio dos escravos. O clima de tenso e expec-tativa era to grande que o coronel chefe da misso, oprprio Werneck, dirigiu aos seus camaradas um discur-so, cuja leitura enrgica produziu um efeito admirvel, fa-

    zendo ressoar por alguns minutos entusiasmados vivas.s seis horas da manh, uma das colunas foi explorar asmatas que cam direita da estrada de Santa Catarina,juntando-se mais tarde s demais colunas, logo abaixoda Pedra do Silveira. A coluna encontrou, logo, logo,o trilho dos escravos, com 33 ranchos, aonde haviampernoitado a primeira noite; adiante, viram mais um lu-

    gar junto Pedra do Silveira, onde haviam dormido. Nooutro lado da rocha, outro acampamento, com algunsties de fogo. s trs horas, mais um acampamento foiencontrado. Segundo informaes prvias, havia ainda

    um ltimo a ser descoberto, possivelmente formado porgrande nmero de escravos.

    O clima continuava tenso, pois as notcias eram de

    que os escravos fugidos para as matas de Vassouraspassavam de 100! Werneck ordenou, para prevenir al-gum incidente desagradvel, que seus homens no sedesunissem e demorassem o passo. Aps oito horasseguidas de caminhada por escarpados montes, quandocomeava a fatigar grande parte da tropa, muita dela

    pouco afeita a andar a p, todas as colunas acharam oacampamento. Eram ento cinco e meia da tarde. A ten-

    so aumentou, pois na descida de um serrote, sentiram

    golpes de machado e falar de gente.Os escravos estavam espalhados. Era um quilombo

    de, pelo menos, 150 escravos. Werneck pensou, e re-solveu cerc-los com todos os seus 150 subordinados.

    Depois disso, foram marchando em direo aos escravos.Um deles viu toda a movimentao da tropa, e deu o

    sinal aos demais. Com algumas poucas armas de fogo e

    outras cortantes, os escravos venceram a primeira bata-lha. Em seguida, eles gritaram: Atirem, caboclos! Atirem,diabos!. Uma descarga muito barulhenta se fez, e doishomens da misso caram feridos. Werneck mandou seushomens atacarem com fora total, logo fazendo 20 e

    tantos escravos rolarem pelo morro abaixo, uns mortos,outros gravemente feridos. Depois disso, o tiroteio setornou geral, com os escravos correndo mata adentro,largando parte das armas e dando as costas tropa, quecontinuava a atirar. Foram perseguidos e espingardea-dos em retirada e em completa debandada, por espao

    de uma hora. Conseguiram escapar.O cair da noite e a perda da trilha dos escravos zeram

    com que Werneck optasse por desfazer toda a estruturafsica do quilombo. Foi ento que descobriu grande estoquede alimentos: mais de 20 arrobas de acar, muito fub,

    farinha, toucinho, carnes, mais de 20 galinhas vivas, cincoperus, dois carneiros que elmente nos acompanharampara casa grande quantidade de utenslios de cozinha,machados, foices, enxadas, cavadeiras, ferramentas de car-pinteiro, de ferreiro, uma bigorna, 40 a 50 caixas com roupa

    na, e alguma engomada, grande quantidade de peridicosvelhos para cartuxame, folhas em que tinham trazido plvo-ra, cento e tantas esteiras, numerosa quantidade de mantas

    de dormir, talvez 60$000 rs em notas e cobre.17

    Queimaram tudo aquilo que os camaradas no pu-

    deram levar, a m de lhes tirar todos os recursos. O

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    saldo do conito: 22 presos, sete ou oito dos quais grave-mente feridos, sete mortos, com todo o mato rastilhadode sangue em todas as direes. Retornaram fazenda

    de um dos capites da misso s ave-marias. No diaseguinte, aps uma noite de muita chuva, alguns homensvoltaram ao local do quilombo para resgatar feridos ou

    mortos, e para explorarem suas imediaes. Trouxeramdois homens da misso e mais outros dois quilombolasferidos. Ainda faltavam ao capito-mor de 250 a 300escravos, de um e outro sexo, fugidos nas matas. Entre-tanto, o rei e cabea do motim, Manoel Congo foi preso;

    e seu vice-rei, morto com um tiro!.18

    No nal de toda a empreitada, Werneck reuniu seus

    homens em forma, e lhes dirigiu um discurso em louvor,causando aplausos e vivas extraordinrios.Dentro de toda a narrativa, h uma curiosa obser-

    vao feita por Werneck: Notei que nem um s escravofez alto quando se mandava parar, sendo preciso es-

    pingarde-los pelas pernas. Uma crioula gritava: morrer

    sim, entregar, no!!!. O que isso queria dizer? Porque osescravos foram to destemidos, num primeiro momento,

    e depois fugiram para o interior das matas, como que

    retornando, todos ao mesmo tempo, a algum lugar que

    as tropas no haviam conseguido chegar?

    Na mesma pgina trs, onde a narrativa de Wernecktermina, um jornalista de O Sete DAbril fala que recebeumais informaes dos redatores de outro jornal, chama-do O Chronista. Um tal amigo Y lhe havia escrito umacarta com revelaes que explicavam a curiosa obser-vao de Werneck. As informaes so descritas comoseguras e verdadeiras.

    Na fazenda do capito-mor Manoel Francisco Xavier,trs ou quatro dos seus escravos conseguiram a fama

    de feiticeiros, e por esse ttulo ganharam a conana e orespeito de grande parte dos outros escravos. Como os

    viam como senhores da natureza, foram convencidospelos feiticeiros malandrins que tinham o poder de faz-los car invisveis. Alm disso, se fossem com os feiticei -

    ros para o mato, encontrariam a fazenda invisvel, longedos olhos dos senhores. Assim, muitos escravos, por voltade 300, se embrenharam mata adentro ao encontro dafazenda encantada. Construram uma estrada, com alargura de poder andar quatro homens de frente, umdo lado do outro. Quando paravam, faziam enormes

    ranchos, com toda a comodidade.Assim, continua o autor da notcia, no havia mais

    do que um boato de que os escravos do capito-mor

    se haviam insurgido, quando apenas tinham fugido. A

    insurreio ocorria to mansa e pacicamente, semque em momento algum a famlia do capito-mor fossecolocada em perigo. Prova disso era a certeza dos es-

    cravos de que eram invisveis, que no primeiro encontro

    que com eles teve a tropa, aos primeiros tiros dados da

    parte desta, eles vinham com os braos abertos oferece-rem-se como alvos das espingardas, e s quando viram

    que a invisibilidade os no preservava das balas que

    recorreram tambm s armas! 180 e tantos escravos stinham 19 espingardas velhas ou de caa!.19

    os esCravos Comedores de PlvoraEm 10 de junho de 1857, o comendador Joaquim

    Jos de Sousa Breves, um dos maiores senhores e tra-cantes de escravos do Imprio, escreveu ofcio re-servado ao ento presidente da provncia do Rio deJaneiro, Joo Manuel Pereira da Silva. Breves estavamuito preocupado com o indcio de sedio entre seus

    escravos, no municpio de So Joo do Prncipe.20 Seuincmodo era devido, num primeiro momento, ao fato de

    ter encontrado mais de 34 latas de plvora na senzala

    de uma de suas fazendas. Isso daria para carregar muita

    BZIOS

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    na fazenda do capito mormanoel francisco xavier,

    trs ou quatro dosseus escravos

    conseguirama fama de feiticeiros

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    munio, e provocar exploses de grandes proporesonde os escravos bem entendessem. Para sua surpresa,

    descobriu que a grande quantidade de plvora servia

    para ns menos sediciosos.Os escravos de suas e das demais fazendas da re-

    gio andavam se reunindo de noite, h seis meses, emgrupos ocultos, numa sociedade chamada Dom Miguel.Cada iniciado, segundo as investigaes do prpriocomendador Breves, era queimado e bebia plvora commisteriosas misturas. Apesar dos castigos que Brevesmandou aplicar nos escravos que descobriu pertencerem

    a tal seita, eles continuavam com estas baboseiras.Breves desconava que em tais reunies pudessem ser

    combinados planos para uma grande insurreio, dada ainsistncia dos escravos em continuar se encontrando,

    por vrias noites seguidas. Descobriu que os iniciadosdeveriam pagar certa quantia de dinheiro para os mes-tres da seita, o que lhe despertava a desconana daestratgia para ganhar dinheiro inventada por certosnegros espertalhes.

    Como as autoridades locais no faziam qualquer

    tipo de investigao mais profunda sobre as atividades

    da seita Dom Miguel, nem mesmo dela tomavam se

    quer conhecimento, Breves com toda a autoridade

    de um dos membros mais prestigiados da elite senhorial escreveu diretamente ao presidente da provncia do

    Rio de Janeiro. Aproveitando a situao, escreveu aomesmo solicitando a mudana de todas as autoridades

    da Justia naquela regio. Em sua opinio, o delegado e

    o subdelegado eram doidos, alm deste ltimo ser bobo e

    vingativo. Isso porque, avaliava Breves, tais autoridades,ao invs de pedirem reforo policial Corte para evitaruma possvel insurreio dos escravos, se dedicavam a

    se vingarem de questes pessoais, e resolverem intri-guinhas.

    Joo da Silva atendeu de pronto denncia de Breves, mandando ochefe de polcia interino da provncia

    do Rio de Janeiro, Jos Caetano deAndrade Pinto, comear as investiga-

    es sobre a seita Dom Miguel. Alm disso, nomeou umnovo subdelegado, Eusbio da Fonseca Guimares, quepassou imediatamente a dar buscas nas senzalas para

    encontrar objetos roubados que pudessem dar algum

    indcio sobre o plano de os escravos matarem os senho-res da regio. Eusbio proibiu que os escravos sassem noite das fazendas de seus senhores, para que as reu-nies sinistras fossem interrompidas. Em suas primeiras

    buscas, encontrou razes e ervas venenosas, que podemproduzir graves incmodos de sade. Os pretos encon-trados com estes objetos foram castigados, evitando o

    mal maior. Tais notcias foram comunicadas a Joo daSilva, em carta condencial de 21 de junho de 1857,pelo prprio Eusbio, que ainda informou no haver in-dcio algum de sedio entre os escravos.21

    Mas os trabalhadores livres e moradores dos ncleosurbanos prximos quelas fazendas no estavam bemcertos quanto insurreio ser to improvvel assim. Osboatos eram tantos que os administradores das fazen-

    das recorreram ao novo subdelegado, alegando que eranecessrio pedir, o quanto antes, reforos para evitar as

    sedies dos escravos. Diante de tal situao, Eusbiopassou a dar buscas tambm nas roas, onde poderia

    encontrar mais objetos e razes escondidas pelos escra-

    vos, que j sabiam de suas idas s senzalas, bem comodos castigos que sofreriam caso seus feitios fossem

    encontrados. Tratou de isolar os escravos do fazendeiroJoaquim Breves, que no tm contato com os dos fazen-deiros vizinhos, e por isso impossvel que possam entresi estabelecer um acordo para qualquer m sinistro.

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    Eusbio havia percebido que entre aqueles escravoshavia naes rivais, apesar da harmonia forada em quevivem pela sujeio do cativeiro. Mas, havia uma coisa

    que unia tais escravos, a supersticiosa idia que sempre

    domina a raa africana, acreditando em seus fetiches,patus, amuletos etc., quando praticam cerimnias e

    danas grotescas do seu pas, e nesta prtica supemalcanarem absurdas felicidades, regresso sua ptria,a bem de algumas douras ao cativeiro em que vivem, e

    mil insignicantes coisas de sua fantasia.22 O subdele-gado alegara que, apesar dos escravos terem motivos de

    sobra para manifestar a rivalidade entre suas diferentes

    naes, a crena no feitio era superior a tais querelas.

    As coisas pareciam se agravar. Em correspondn-cia condencial, de nove de julho, o delegado local,Antonio Cesar de Azevedo, escrevia ao vice-presidente

    da provncia do Rio de Janeiro comunicando que haviaconrmado a informao de que os escravos de diversasfazendas realmente andavam planejando uma insurrei-

    o.23 O centro das reunies dos escravos era, segundoo delegado, a lavoura da fazenda So Joaquim, perten-

    cente ao comendador Joaquim Breves, onde guardamzagaias e outros instrumentos de semelhante gnero. Ovice-presidente resolveu tambm investigar o caso. Leu

    cartas de empregados e caixeiros de fazendas da regio,datadas de dez e 11 de junho, nas quais tomou conheci-mento da existncia de 270 colonos portugueses numasdas fazendas de Breves que poderiam ser atingidos coma insurreio. Era necessrio esclarecer, ainda segundo o

    vice-presidente, quais eram os ns da associao de DomMiguel, de que trata a carta do comendador Breves.

    No dia 22 de julho, novamente chegavam notciassobre o fracasso do plano de insurreio, aps as batidas

    das autoridades policiais nas senzalas dos escravos, bem

    como os castigos aplicados aos escravos feiticeiros de

    Dom Miguel. No dia 24 de julho, num ofcio reservadodirigido ao Palcio da Presidncia da Provncia do Rio deJaneiro, chegou ao ministro e secretrio dos Negcios da

    Justia, Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos, a conr-mao de tais notcias. Aparentemente, a associao de

    feitiaria Dom Miguel havia sido dissipada por senhores eautoridades imperiais tendo frente o comendador Breves.No se falava mais em insurreio nem em feitiariaentre os inmeros escravos das fazendas daquele lugar.

    Entretanto, a tranqilidade que as boas novas traziam deu

    lugar a mais apreenses por parte de altas autoridadesimperiais. Os escravos de So Joo Marcos acreditavam

    que o dia de Santo Antonio seria o m do mundo. O mi -

    nistro conta que se ouvia nas ruas da Corte semelhanteboato entre os escravos, boato este que ia se espalhan-do rapidamente por toda a provncia do Rio de Janeiro.Neste sentido, recomendava o ministro aos chefes depolcia que todas as investigaes e prticas necessriasfossem tomadas para to importante objeto.

    Para alm do medo que as reunies de tantos escra -vos provocaram nos senhores de So Joo Marcos, medoeste ligado no apenas crena nos efeitos dos feitiospor eles aprendidos e ensinados na seita Dom Miguel,

    temos que lembrar que a primeira metade do sculo XIX

    foi palco de forte inuncia de mdicos na poltica impe-rial. Estes mdicos lutavam pelo prevalecimento de suas

    tcnicas de curar, bem como seu saber cientco, numasociedade que acreditava, desde os tempos coloniais, no

    poder de curandeiros e de feiticeiros (Machado e outros,1978; Montero, 1985; Sampaio, 2001). Vimos que altasautoridades imperiais estavam diretamente envolvidas na

    questo da represso da seita Dom Miguel. No pen-semos que foi apenas a inuncia do poderoso senhore tracante de escravos Jos de Sousa Breves o motivopara tamanho interesse. Tais autoridades se reuniam,

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    a classe senhorial

    desenvolveu mecanismospara conviver com aesviolentas por parte

    dos escravos,desde que no ameaassem

    seu poder poltico.ela tambm convivia

    com a crena no feitio

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    muitas vezes, em grupos sociais que se estabeleciam na

    Corte para discutirem e divulgarem para membros da elite

    imperial a medicina cientca.

    Ao longo da segunda metade do sculo XIX, as crticasde cientcos a que acusavam de feitiaria foram orga-nizadas em peridicos, tais como no Correio Paulistano e

    Provncia de So Paulo. Notcias de desmerecimento dos

    feitos dos feiticeiros em grande medida eram escritas em

    tom de acusao moral aos mesmos (Schwarcz, 1987:125-128). Em notcia de 30 de novembro de 1879, porexemplo, o Correio Paulistano publicou o caso de um a-grante a uma sesso de feitiaria, com 42 pretos livres eescravos, e 11 pretos-minas. O celebrante, no ato em que

    foi preso, continua a notcia, era escutado com atenopelo piedoso auditrio. A riqueza de detalhes conrma ofascnio que tais prticas chamadas de feitiaria provo-cavam naqueles homens de cincia. O jornal termina anotcia com a acusao de que a cena era uma indecente

    comdia, sendo os escravos que dela participaram presose castigados (Apud. Schwarcz, 1987: 126).

    Consideraes finaisA classe senhorial desenvolveu mecanismos para

    conviver com aes violentas por parte dos escravos,

    desde que no ameaassem seu poder poltico. Ela tam-bm convivia com a crena no feitio, e no se incomo-

    dava com ele at o momento no qual vislumbrava algum

    abalo no exerccio da coero sobre seus subordinados.

    Isso porque ela acreditava no feitio. Seus membros com-

    partilhavam da explicao do por que as coisas aconte-cerem no mundo a partir de uma acusao de feitiaria,

    a partir da ao do feiticeiro. Por isso o Estado Imperial,

    mesmo sem uma lei especca que criminalizasse a fei-tiaria, procurou regular as acusaes e assim iniciou oprocesso de domesticao da crena, legislando sobre a

    magia, sobre acusaes de feitiaria, processo esse quese consolidou na Repblica.

    O Segundo Reinado foi uma poca de grande agi-

    tao na elite escravista. Logo nos primeiros meses de

    1850, o Estado Imperial proibiu e coibiu, por lei, o trcointernacional de escravos para o Brasil, atravs de apa-rato policial e rede de articulaes diplomticas ecientepara faz-la valer. Muitos escravos entenderam a apro-

    vao dessa lei como um enfraquecimento do poder se-

    nhorial, e uma excelente oportunidade para insurreies.Vimos como em 1854, liderados por Pai Gavio, escravosda cidade de Itu e cercanias por pouco no executaram

    uma das maiores, se no a maior, insurreio de escravos

    das Amricas. Atravs da liderana de Pai Gavio, reunin-do-se nos rituais por ele comandados, escravos juntaram

    grande nmero de armas de fogo e coragem para matar

    todos os brancos da regio. Membros da classe senho-rial local convocaram o escravo Jos Cabinda, ou Pai

    Gavio, para um depoimento na delegacia de Itu. O medo

    das insurreies e o do feitio estava lado a lado.As dcadas seguintes foram marcadas por intensos

    debates internacionais acerca do nal da escravido noAtlntico, principalmente aps esse regime ser derrubado

    nos Estado Unidos da Amrica, em 1863. A partir de 1864,

    D. Pedro II estava pessoalmente empenhado em acabarcom o trabalho escravo no Brasil. Fruto de suas aes,bem como de outros polticos a ele ligados e s pressesdas insurreies de escravos e do crescente nmerode compra de cartas de alforria na Corte, foi aprovada,

    depois de meses de batalha poltica, a Lei de 28 de Se-tembro de 1871 conhecida como Lei do Ventre Livre(Chalhoub, 1990 e 2003). A partir de ento, os escravostinham por lei o direito de juntar peclio para a comprade sua liberdade, agora legalizada pelo Estado, e senhoralgum poderia recusar sua venda.

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    aq nc

    Processo Criminal Corte de Apelao. Ru Pascoal e outros escravos,nmero 50, caixa 28, galeria C, ano 1870; Ru Jos Sebastio da Rosa,mao 196, caixa 11139, nmero 1081, galeria C, ano 1871; IJ6 SrieJustia /Polcia da Corte, pacote 517; AN, IJ1 pacotes 867 e 871, Ofciosdo Presidente da Provncia do Rio de Janeiro.

    bc ncSeo de Peridicos: Correio Paulistano. Seo de Obras Raras: O SeteDAbril.

    bc fc d ufbaCdigo Criminal do Imprio do Brazil annotado com os atos dospoderes Legislativo, Executivo e Judicirio, que tm alterado e inter-pretado suas disposies desde que foi publicado, e com o clculodas penas em todas as suas aplicaes por Arajo Figueiras Jnior(Bacharel em Direito),2. Edio cuidadosamente revista e aumentadacom os atos dos Poderes supra-referidos, expedidos depois da 1. Edio,Rio de Janeiro, Eduardo e Henrique Laemmert, 1876.

    Ordenaes Filipinas:http://www.uc.pt/ihti/proj/lipinas/l5p1150.ht m

    FONTES DE PESQUISA

    CHALHOUB, Sidney. 2003. Machado de Assis, historiador. So Paulo,Companhia das Letras.

    __________. 1990. Vises da liberdade: uma histria das ltimas dcadas

    da escravido na Corte. So Paulo, Companhia das Letras.COUCEIRO, Luiz Alberto. 2004. Pai Gavio e a Coroa da Salvao :crena e acusaes de feitiaria no Imprio do Brasil. Rio de Janeiro,Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia IFCS/UFRJ,Dissertao de Mestrado (Concentrao em Antropologia). (Salvador,EdUFBA No Prelo).

    EVANS-PRITCHARD, E. E. 1935. Witchcraft, oracles and magic amongthe Azande. Oxford, Clarendon Press. (Bruxaria, orculos e magia entreos Azande (edio resumida, com uma introduo de Eva Gillies). 1978.Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978; 2005. Rio de Janeiro, Jorge ZaharEditor).

    GOMES, Flvio dos Santos. 2006. Histrias de quilombolas: mocambos ecomunidades de senzalas no Rio de Janeiro sculo XIX. Edio revistae ampliada. So Paulo, Companhia das Letras. (Rio de Janeiro, ArquivoNacional, 1995)

    MACHADO, Roberto e outros. 1978. Danao da norma: a medicina social

    e a construo da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro, Graal.

    MAGGIE, Yvonne. 1992. Medo do feitio; relaes entre magia e poder noBrasil. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional.

    MONTERO, Paulo. 1985. Da doena desordem: a magia na umbanda.

    Rio de Janeiro: Graal.SCHRITZMEYER, Ana Lcia Pastore. 2004.Sortilgios de saberes: curan-deiros e juzes nos tribunais brasileiros (1900-1990). So Paulo, IBCCRIM.

    SAMPAIO, Gabriela dos Reis. 2001. Nas trincheiras da cura: as diferentesmedicinas no Rio de Janeiro. Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT.

    __________. 2000. A histria do feiticeiro Juca Rosa: cultura e relaessociais no Rio de Janeiro imperial. Campinas, Depto. de Histria da UNI-CAMP, Tese de Doutorado. (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional No Prelo).

    SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1987. Retrato em branco e negro: jornais,escravos e cidados em So Paulo no nal do sculo XIX. So Paulo,Companhia das Letras.

    SLENES, Robert. 2006. A rvore de Nsanda transplantada: cultos kongode aio e identidade escrava no Sudeste brasileiro (sculo XIX). In:LIBBY, Douglas Cole & FURTADO, Jnia (orgs.). Trabalho livre, trabalhoescravo: Brasil e Europa, sculos XVIII e XIX. So Paulo, Annablume, pp.273-314.

    REFERNCIAS

    O clima de tenso acerca de quando a escravido

    acabaria no Brasil corria em paralelo com a crena de pes-soas de todas as classes sociais no feitio, e no poder dos

    feiticeiros, de que a feitiaria era uma maneira de entender

    o porqu de as coisas ocorrerem. Essa situao no foi

    exclusiva ao Sudeste escravista. Em Salvador, as notcias

    de O Alabama denunciavam o Estado de se imiscuir na

    crena, quando policiais e pessoas de inuncia poltica na

    cidade protegiam os candombls de possveis persegui-

    es daqueles que antipatizavam por prticas religiosasoriundas de africanos e seus descendentes. O jornal ainda

    informava que essas mesmas pessoas tambm eram fre-

    qentadoras das festas e dos rituais do candombl, legi-

    timando o fato de a crena e o medo do feitio perpassar

    membros de todas as classes sociais (Couceiro, 2008). Masisso j assunto para prximo artigo.

    [email protected] articulista doutorando em antropologia cultural pela UFRJ

    BZIOS

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    1. Usei a seguinte edio do Cdigo Criminal do Imprio, localizadona Biblioteca da Faculdade de Direito da UFBA: Cdigo Criminal do

    Imprio do Brazil annotado com os atos dos poderes Legislativo,Executivo e Judicirio, que tm alterado e interpretado suas dis-posies desde que foi publicado, e com o clculo das penas emtodas as suas aplicaes por Arajo Figueiras Jnior (Bacharel emDireito), 2. Edio cuidadosamente revista e aumentada com os atosdos Poderes supra-referidos, expedidos depois da 1. Edio, Rio deJaneiro, Eduardo e Henrique Laemmert, 1876. Agradecemos ao his-toriador Rafael Sancho Silva pela localizao desta edio do CdigoCriminal. Para maiores informaes acerca da legislao sobre curano Imprio, e a ausncia da regulao da crena e das acusaes defeitiaria no Cdigo Criminal, ver Schritzmeyer (2004).

    2. http://www.uc.pt/ihti/proj/lipinas/l5p1150.htm (acesso em 18/agosto/2007).

    3. http://www.uc.pt/ihti/proj/lipinas/l4p931.htm (acesso em 14/agosto/2007).

    4. Tal como Maggie (1992), em minhas pesquisas sigo a teoria da

    feitiaria de Evans-Pritchard (1935). Para esse autor, as relaesentre acusadores e acusados residem na crena coletiva de que omal provocado por inimigos da vtima. Esses inimigos tm o poderde provoc-lo segundo poderes mgicos. Dessa forma, as acusaesde feitiaria tm como base as disputas j existentes na sociedade.Evans-Pritchard, a partir de trabalho de campo entre os Azande, noSudo, na dcada de 1920, arma que a feitiaria uma forma dever o mundo, de compreender como as coisas acontecem, e noo porqu. Se um celeiro caiu na cabea de uma pessoa que estavadescansando sua sombra, isso ocorreu porque os cupins j vinhamh algum tempo corroendo a madeira. Mas por que isso ocorreu comaquela pessoa, naquele momento, s poderia segundo a lgica dafeitiaria ter sido provocado pela feitiaria. Algum inimigo da vtimateria agido para que o celeiro casse sobre ela naquele momento, deforma fatal.

    5. Apud. Maggie (1992: 22-23, nota 3).

    6. Bibl ioteca Nacional, doravante BN, Seo de Peridicos.

    7. Outros caminhos de interpretao de parte das notcias sobre PaiGavio, enfatizando os possveis signicados africanos de objetos epalavras por ele usadas nos encontros rituais, podem ser encontra-das em recente artigo de Slenes (2006).

    8. Arquivo Nacional, doravante AN, processo criminal, Corte deApelao, nmero 50, caixa 28, galeria C, ano 1870.

    9. AN, Processo Criminal, Corte de Apelao, Ru Jos Sebastio daRosa, mao 196, caixa 11139, nmero 1081, galeria C, ano 1871.

    10. AN, Processo-crime, Corte de Apelao, Ru Jos Sebastio daRosa, mao 196, caixa 11139, nmero 1081, galeria C, ano 1871,folhas diversas.

    11. AN, Processo-crime, Corte de Apelao, Ru Jos Sebastio daRosa, mao 196, caixa 11139, nmero 1081, galeria C, ano 1871, .63.

    12. AN, Processo-crime, Corte de Apelao, Ru Jos Sebastio daRosa, mao 196, caixa 11139, nmero 1081, galeria C, ano 1871, .63v.

    13. Palavra sublinhada no processo.

    14. AN, IJ6 Srie Justia /Polcia da Corte, pacote 517.

    15. AN, IJ1 pacote 871, Ofcios do Presidente da Provncia do Riode Janeiro.

    16. BN, Seo de Obras Raras, documento microlmado.

    17. BN, Seo de Obras Raras, documento microlmado, p. 3.

    18. O quilombo de Manuel Congo foi detalhadamente analisado porGomes (2006: 179-321), uma vez que reuniu o mximo de documentosproduzidos pelas autoridades sobre os mais variados aspectos domesmo.

    19. BN, Seo de Obras Raras, documento microlmado, p. 3.

    20. AN, IJ1 pacote 867, Ofcios do Presidente da Provncia do Riode Janeiro.

    21. AN, IJ1 pacote 867, Ofcios do Presidente da Provncia do Riode Janeiro.

    22. AN, IJ1 pacote 867, Ofcios do Presidente da Provncia do Rio

    de Janeiro.23. AN, IJ1 pacote 867, Ofcios do Presidente da Provncia do Riode Janeiro.

    NOTAS