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    DIREITO PENAL ESPECIALPROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS 

    O SISTEMA DA CLASSIFICAÇÃO DOS CRIMES

    O Código Penal brasileiro classificou os delitos de acordo com a objetividade jurídica tutelada,distribuindo-os em onze títulos que, por sua vez, estão divididos em capítulos, sendo alguns destes

    subdivididos em seções.A objetividade jurídica compreende o bem ou interesse tutelado pela lei penal, que o crimeofende ou põe em perigo. Entende-se por “bem” tudo aquilo que pode satisfazer uma necessidadedo homem, e por “interesse” a avaliação subjetiva em torno desse bem.

    A classificação é uma técnica legislativa empregada para facilitar o estudo do direito,reunindo no mesmo título ou capítulo os crimes que guardam certa afinidade. No tocante aosdelitos pluriofensivos, que atentam contra mais de um bem jurídico, como, por exemplo, latrocínio(CP, art. 157, § 3º, 2ª parte), que ofende simultaneamente o patrimônio e a vida. O legislador, nahora da classificação, se vê obrigado a optar por um dos vários bens ofendidos, atuando com certadose de arbítrio.

    Os onze títulos previstos na Parte Especial estão classificados na seguinte ordem:

    I.  Crimes contra a Pessoa (arts. 121 a 154);II.  Crimes contra o Patrimônio (arts. 155 a 183);III.  Crimes contra a Propriedade Imaterial (arts. 184 a 196);IV.  Crimes contra a Organização do Trabalho (art. 197 a 207);V.  Crimes contra o Sentimento Religioso e o Respeito aos Mortos (arts. 208 a 212);VI.  Crimes contra a Dignidade Sexual (arts. 213 a 234);VII.  Crimes contra a Família (arts. 235 a 249);VIII.  Crimes contra a Incolumidade Pública (arts. 250 a 285);IX.  Crimes contra a Paz Pública (arts. 286 a 288);X.

     

    Crimes contra a Fé Pública (arts. 289 a 311);XI.  Crimes contra a Administração Pública (arts. 312 a 359-H).

    CRIMES CONTRA A PESSOA

    CONSIDERAÇÕES GERAIS

    No Título I da Parte Especial estão os crimes contra a pessoa. O bem jurídico genericamentetutelado é a pessoa. Entretanto, o Título I é dividido em seis capítulos, tendo em vista aobjetividade jurídica especificamente tutelada, a saber:

    I.  Dos crimes contra a vida (arts. 121 a 128);II.  Das lesões corporais (art. 129);III.  Da periclitação da vida e da saúde (arts. 130 a 136);IV. Da rixa (art. 137);V.  Dos crimes contra a honra (arts. 138 a 145);VI. Dos crimes contra a liberdade individual (arts. 146 a 154).

    O legislador tutela nesses capítulos, de maneira específica, os seguintes bens jurídicos: a vida,a integridade corporal, a honra e a liberdade da pessoa.

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    Verifica-se que o delito de aborto está compreendido entre os crimes contra a vida da pessoa.Força convir que o Código Penal conferiu ao nascituro o atributo de pessoa, permitindo-lhe aaquisição do direito à vida, antecipando-lhe a personalidade para esse efeito, figurando, assim,como titular do bem jurídico e como sujeito passivo do abortamento.

    PESSOA FÍSICA E PESSOA JURÍDICA

    Ao lado da pessoa física ou natural, o direito reconhece a existência das pessoas jurídicas oumorais.

    Aludiu-se acima que no Título I do Código Penal estão os “Crimes Contra a Pessoa”. Refere -seo texto legal à pessoa natural (ser humano), uma vez que a pessoa jurídica não pode ser vítima damaioria dos delitos ali catalogados. Excepcionalmente, porém, a tutela penal estende-se também àpessoa jurídica. É o que ocorre nos seguintes crimes: a) difamação (art. 139); b) calúnia, quando selhe imputa um crime ambiental (art.138); c) violação de domicílio (art. 150); d) violação de

    correspondência (art. 151); correspondência comercial (art. 152).

    CRIMES CONTRA A VIDA

    OS CRIMES CONTRA A VIDA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

    No Capítulo I do Título I da Parte Especial do Código Penal estão previstos os crimes contra avida: homicídio, participação em suicídio, infanticídio e aborto (arts. 121 a 128).

    Nos delitos de homicídio e infanticídio tutela-se a vida extra-uterina e o período de transição,desencadeado pelo início do parto, entre a vida intra-uterina e a vida extra-uterina.

    No delito de participação em suicídio tutela-se a vida extra-uterina.E, no delito de aborto, protege-se a vida intra-uterina, ressalvando-se, porém, que no abortoprovocado sem o consentimento da gestante a tutela penal compreende também a vida e aintegridade corporal da gestante (arts. 125 e 127).

    COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DOS CRIMES CONTRA A VIDA

    Os crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, e as infrações penais que lhessejam conexas são julgados pelo Tribunal do Júri, cuja soberania a Constituição Federal assegura emtermos peremptórios (CF, art. 5º, XXXVIII). Saliente-se, todavia, que por crimes dolosos contra a

    vida se compreendem apenas os previstos no Capítulo I do Título I do Código Penal: homicídio (art.121), participação em suicídio (art. 122), infanticídio (art. 123) e aborto (arts. 124 a 127).

    O homicídio culposo é o único delito previsto nesse capítulo cuja competência não está afetaao Tribunal Popular (art. 121, § 3, do CP).

    Se lançarmos nossas vistas sobre o direito constitucional, verificaremos que nos crimesmilitares, mesmo os dolosos contra a vida, serão julgados pelo escabinato da Justiça Castrense (CF,art. 124). Da mesma forma, tratando-se de competência ratione personae, exclui-se também acausa da apreciação do júri (por exemplo: no homicídio praticado pelo Presidente da República oforo competente é o Supremo Tribunal Federal).

    Cumpre, porém, ressaltar que a Justiça Militar só tem competência para o julgamento dos

    crimes dolosos contra a vida cometidos por militar contra militar, pois, com o advento da Lei n.

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    9.299 de 7 de agosto de 1996, o crime doloso contra a vida perpetrado por militar contra civilpassou a ser da competência do Tribunal do Júri.

    Assim, o crime doloso contra a vida cometido contra civil, à medida que se deslocou acompetência para o Tribunal do Júri, deixou de ser crime militar. Essa é a melhor exegese, pois o

    Tribunal do Júri não pode julgar crime militar. Desse modo, o crime doloso contra a vida perpetradopor militar contra civil submete-se à disciplina do Código Penal e do Código de Processo Penal.Os delitos pluriofensivos, que lesam simultaneamente a vida e outro bem jurídico, como, por

    exemplo, latrocínio (art. 157, § 3º) e extorsão mediante sequestro seguida de morte (art. 159, § 3º),ainda que a morte tenha sido dolosamente provocada, são da competência do juízo singular,porquanto perante o Código Penal não estão classificados entre os crimes dolosos contra a vida,mas entre os delitos contra o patrimônio.

    INDISPONIBILIDADE DO DIREITO À VIDA

    A vida é um direito indisponível; considerado inviolável pela Constituição Federal (art. 5º, caput ). Não se pode renunciá-la, uma vez que o ordenamento jurídico não confere às pessoas odireito de morrer. Prova disso é que o legislador torna lícito o emprego de violência para impedir osuicídio (CP, art. 146, § 3º, II).

    Se a pessoa tivesse o direito de morrer, ninguém poderia impedi-la de pôr termo à própriavida. O caráter indisponível do bem jurídico torna inócuo o consentimento do ofendido, subsistindointegralmente os delitos previstos nos artigos 121 a 128 do CP, malgrado a aquiescência da vítima.

    HOMICÍDIO

    CONCEITO

    Homicídio é a morte de um homem causada por outro homem.

    OBJETIVIDADE JURÍDICA

    O homicídio é o delito máximo, por excelência, pois atenta contra a vida humana, bem jurídico supremo, do qual irradiam todos os demais.

    A preservação da existência da raça humana, o progresso social e os bons costumes justificamo interesse do Estado em tutelar a vida humana. Trata-se, portanto, de bem jurídico indisponível,

    assegurado no art. 5º, caput , da Constituição Federal, sendo, pois, inadmissível o consentimento doofendido para excluir o delito.Porém, se lançarmos nossas vistas para o delito de aborto, verificaremos que o bem jurídico

    tutelado também é a vida humana.Aparece, destarte, o problema do início da tutela penal do homicídio.É pacífico que a eliminação da vida humana intra-uterina caracteriza aborto, enquanto a

    destruição da vida humana extra-uterina constitui homicídio.É falsa, no entanto para o direito penal, a assertiva de que viver é respirar, pois a vida extra-

    uterina pode ocorrer sem respiração, podendo, nesse caso, ser demonstrada, inclusive, pelosbatimentos cardíacos.

    Uma interpretação sistemática do art. 123 do CP serve para identificar o início da proteçãopenal do homicídio.

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    Interessante problema é o dos xifópagos (gêmeos ligados um ao outro), cumprindo, nessepasso, transcrever, na íntegra, a lição de Euclides Custódio da Silveira: “Dado que a deformidade

     física não impede o reconhecimento da imputabilidade criminal, a conclusão lógica é queresponderão como sujeitos ativos. Assim, se os dois praticarem um homicídio, conjuntamente ou de

    comum acordo, não há dúvida que responderão ambos como sujeitos ativos, passíveis de punição.Todavia, se o fato é cometido por um, sem ou contra a vontade do outro, impor-se-á a absolvição doúnico sujeito ativo, se a separação cirúrgica é impraticável por qualquer motivo, não se podendoexcluir sequer a recusa do inocente, que àquela não está obrigado. A absolvição se justifica, comodiz Manzini, porque, conflitando o interesse do Estado ou da sociedade com o da liberdadeindividual, esta é que tem de prevalecer. Se para punir um culpado é inevitável sacrificar uminocente, a única solução sensata há de ser a impunidade”.

    Discordamos desse posicionamento. A nosso ver, o xifópago que cometeu o delito, contra avontade do outro, deve ser processado e condenado por homicídio, inviabilizando-se, porém, ocumprimento da pena, tendo em vista o princípio da intransmissibilidade da pena. Se, no futuro, ooutro também vier a delinquir e a ser condenado, ambos poderão cumprir a pena.

    SUJEITO PASSIVO

    Dispõe o Código Penal, no art. 121, em forma lapidar: “Matar alguém: Pena — reclusão, de 6(seis) a 20 (vinte) anos”.  A expressão alguém  compreende indistintamente a unanimidade dosseres vivos componentes da espécie humana. Assim sendo, qualquer pessoa humana viva pode sersujeito passivo do homicídio.

    Referentemente aos xifópagos, vindo os dois a morrer, o agente responderá por duplohomicídio em concurso formal.

    Por fim, o homem morto (cadáver) não pode ser sujeito passivo do delito diante dainexistência do bem jurídico tutelado, caracterizando-se, destarte, em crime impossível (art. 17 doCP). É o caso do agente que, pretendendo matar a vítima, aciona o gatilho do revólver, vindo,porém, depois, a verificar que ela já estava morta.

    Tratando-se de um neonato (recém-nascido), com parcas chances de sobrevivência, aindaassim haverá homicídio. Como observa Cezar Roberto Bitencourt: “Condições físico-orgânicas quedemonstrem pouca ou nenhuma probabilidade de sobreviver não afastam seu direito a vida,tampouco o dever de respeito à vida humana, imposto por lei ”.

    No que tange ao feticídio, isto é, ocisão de um feto durante o parto, conforme vimos tambémse configura em homicídio.

    Três são as hipóteses em que a pena do homicídio doloso aumentará em 1/3:a) se a vítima for menor de 14 anos (art.121, § 4º);b) maior de 60 anos (art.121, § 4º, última parte – Lei nº 10.741/03);c) se a vítima for índio não integrado (art.59 da Lei nº 6001/73).

    Na hipótese de homicídio praticado contra o Presidente da República, do Senado Federal, daCâmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal o crime será contra a Segurança Nacional,previsto no art. 29 da Lei nº 7.870/83.

    NÚCLEO DO TIPO

    O núcleo do tipo é o verbo “matar”, consistente em provocar a morte da vítima.

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    Vimos que com a cessação da vida não há homicídio. Mister, portanto, a presença de vidanaquele contra quem a conduta é dirigida, pois se já estava morto o crime é impossível porimpropriedade absoluta do objeto (art. 17 do CP).

    Ressalte-se, todavia, a existência de controvérsia acerca do conceito de morte. Cumpre, a

    propósito, primeiramente, distinguir a morte clínica da morte cerebral. A primeira é a paralisaçãoirreversível do batimento cardíaco e da respiração. A segunda é a cessação irreversível dos impulsoselétricos cerebrais. O silêncio cerebral é aferido pela linha reta no eletroencefalograma.

    A medicina moderna revela uniformidade de vistas ao repelir o critério da morte clínica,preponderando, na atualidade, a afirmação de que a verdadeira morte é a morte cerebral ouencefálica.

    Cumpre lembrar que a Associação Médica Mundial reconhece que nenhum critériotecnológico isolado é inteiramente satisfatório no presente estágio da ciência médica, e quenenhum procedimento técnico deve substituir o critério do médico.

    Todavia, a Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos,tecidos e partes do corpo humano, para fins de transplante e tratamento, autoriza a extirpação doórgão ou tecido da pessoa humana, desde que precedida do diagnóstico de morte encefálica,constatada e registrada por dois médicos, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicosdefinidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.

    Como se vê, a legislação brasileira adotou o critério da morte cerebral ou encefálica. Sendoassim, o desligamento dos aparelhos que artificialmente mantém viva a pessoa acometida de mortecerebral não caracteriza delito de homicídio, pois não existe mais vida no paciente e, sim,vegetação mecânica. Se, porém, o cérebro ainda funcionava, caracterizar-se-á o delito dehomicídio.

    MEIOS DE EXECUÇÃO

    O homicídio é crime de forma livre, admitindo, portanto, uma infinidade de meiosexecutórios.

    Saliente-se para logo que os meios empregados devem ser idôneos a provocar a morte. Antesde entrar no seu estudo, desejamos chamar a atenção para este fator expressivo: a idoneidade domeio executório tem que ser analisada à luz de cada caso concreto. O que para uns será inidôneo,para outros não. Basta lembrar o exemplo, citado por Maggiore, da exposição de um recém-nascidoao frio, com a intenção de matá-lo. Este meio objetivamente inidôneo reveste-se de idoneidade emvirtude das condições especiais da vítima.

    Os meios mais citados pela doutrina para a prática do homicídio são os seguintes: diretos,indiretos, materiais, morais e patológicos.  Diretos: são os meios executados pelo próprio agente contra o corpo da vítima, como, por

    exemplo, disparo de arma de fogo.  Indiretos: são os meios provocados pelo agente, mas por ele não executados diretamente.

    Por exemplo: introduzir uma tarântula venenosa no quarto da criança.  Materiais: são os meios que incidem sobre o corpo físico da vítima. Podem ser: mecânicos,

    químicos ou patológicos.  Morais ou psíquicos: são os meios que ocasionam a morte da vítima pela violenta emoção.

    São os traumas psíquicos, como, por exemplo, provocar um susto numa pessoa cardíaca.  Meios patológicos: são os provocados pela transmissão de moléstias. Interessante, nesse

    aspecto, a questão do aidético que, consciente da presença da doença, não hesita emmanter a conjunção carnal sem fazer uso de preservativo. Contagiando ou não o seu

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    parceiro, responderá por homicídio, consumado ou tentado, a título de dolo direto oueventual, pois no mínimo assumiu o risco da transmissão da moléstia, aceitando, destarte, amorte da vítima. A dúvida quanto à doença caracteriza também dolo eventual.

    Não comungamos do posicionamento que enquadra a transmissão dolosa do vírus HIV nodelito de lesão corporal gravíssima, previsto no art.129,§ 2º, inciso II, do CP, porque não se podefalar em lesão corporal, quando o agente procede com “animus necandi”. 

    O meio executório pode ainda ser positivo ou negativo, segundo conste de ação dolosa (porexemplo, acionar o gatilho do revólver), ou omissão dolosa (por exemplo, deixar a mãe dealimentar o próprio filho).

    Assim, configura-se o homicídio por omissão quando o agente, com intenção de matar avítima, abstém-se da prática de determinada conduta que lhe era juridicamente exigível. Dispõe oart. 13, § 2º, do Código Penal, que:

    “ A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o

    resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção e

    vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu

    comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado”. 

    Como se vê, o dispositivo deixou patenteado, com toda nitidez, a necessidade deinadimplemento de um dever jurídico. Não basta o descumprimento de dever moral.

    Com efeito, recusando-se a ceder o antídoto à vítima que sofreu uma picada de cobra, oagente, tendo o dever jurídico de impedir o resultado, como, por exemplo, o médico contratadopela família ou de plantão no hospital, responderá por homicídio, pois estará ao menos aceitando amorte da vítima, caracterizando-se, destarte, o dolo eventual. Ausente, porém, o dever jurídico, setratar-se de um vizinho que responderá pelo delito de omissão de socorro (art. 135, do CP).

    Convém esclarecer que a simples condição de médico não impõe ao agente o dever específicode impedir o resultado. Urge, para que responda por homicídio, que tenha assumido o encargo,contratual ou não, de velar pela vítima. O médico que simplesmente passava pelo local e não asocorreu, responderá por omissão de socorro, pois não se pode olvidar que o Código de ÉticaMédica, que impõe ao facultativo o dever de socorrer o próximo, não é lei, mas uma mera normade postura ética.

    Finalmente, no homicídio praticado com disparo de arma de fogo, impõe-se a absorção dodelito de disparo de arma, previsto no art.15, da lei nº 10.826/2003, por força do princípio daconsunção. Todavia, quanto ao delito de porte ilegal de arma, previsto no art.12, “caput“, da

    mencionada lei, nem sempre há a absorção.

    Com efeito, o delito de porte ilegal de arma é permanente, tendo se consumado muito antes daprática de homicídio, de modo que não há relação de meio e fim entre esses dois crimes, que naverdade são regidos pela conexão ocasional, impondo-se o concurso material de crimes. Ressalte-se,porém, que o porte de arma deve ser absorvido apenas na hipótese de a arma ter sido adquirida como fim específico de praticar o delito contra a vida, pois em tal situação integra o “iter criminis”  percorrido pelo agente, caracterizando-se uma situação de progressão criminosa.

    ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO

    O elemento subjetivo do crime de homicídio é o dolo, consistente na vontade livre e

    consciente de provocar a morte da vítima. O dolo, traduzido na intenção de matar, é revelado pelaexpressão animus necandi  ou occidendi .

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    O homicídio admite dolo direto e eventual.O dolo direto de primeiro grau ocorre quando o agente quer produzir um resultado certo.O dolo direto de segundo grau também chamado de dolo de consequências necessárias, se dá

    quando o agente quer produzir um resultado certo, sabendo que outro ou outros, em razão dos meios

    empregados, necessariamente ocorrerão. Exemplo: o agente atira para matar o xifópago “A”, mas sabeque o xifópago “B” também morrerá. Responderá por dois homicídios em concurso formal, dolo diretode primeiro grau em relação a “A” e dolo direto de segundo grau em relação a “B”.

    Quanto ao dolo eventual, ocorre quando o agente com sua conduta assume o risco deproduzir o resultado (art. 18, I). O dolo eventual é, pois, plenamente equiparado ao dolo direto.Como ensina Ary Azevedo Franco: “É inegável que arriscar-se conscientemente a produzir umevento vale tanto quanto querê-lo: ainda que sem interesse nele, o agente o ratifica ex ante, prestaanuência ao seu evento”. No dolo eventual, o agente não quer o resultado, mas realiza a condutana dúvida se irá ou não produzi-lo, ao passo que no dolo direto de segundo grau o agente tambémnão quer o outro resultado, mas realiza a conduta na certeza de que irá produzi-lo.

    Anote-se ainda que o dolo é genérico, porque o tipo penal não menciona a finalidadeespecífica da conduta de matar. Tratando-se, porém, do homicídio conexional, previsto no art.121,§ 2º, inciso V, o dolo é específico, porque o tipo menciona a finalidade da conduta de matar, que épraticada para assegurar a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro crime.

    Examinemos agora a questão da prova da intenção de matar, salientando-se, desde logo, quea exteriorização desse elemento interno depende da análise das circunstâncias objetivas do crime,porquanto impossível é a captação do pensamento íntimo do agente.

    A doutrina ministra alguns critérios para identificação do animus necandi , extraindo-o dascircunstâncias exteriores ao delito. Os mais lembrados são: a sede da lesão, o tipo de armaempregada, número de disparos, profundidade do golpe de faca, as precedentes relações entre oagente e a vítima e os motivos do crime.

    O critério mais seguro, contudo, é o da sede da lesão, pois nesse caso a própria natureza daconduta revela o propósito do agente. Se, por exemplo, o disparo atingiu o tórax ou a cabeça éporque, em princípio, houve intenção de matar. Se, diferentemente, atingiu a perna ou o pé, emtese, seria excluído o animus necandi . Saliente-se, porém, que nenhum critério, isoladamente, éabsoluto, devendo o intérprete, na identificação do animus necandi , socorrer-se de todas ascircunstâncias exteriores possíveis.

    Não havendo ânimo de matar, exclui-se o delito de homicídio, respondendo o agente porlesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º) ou por homicídio culposo (art. 121, § 3º), conformetenha atuado com animus laedendi  (intenção de ferir) ou não.

    CONSUMAÇÃO

    Consuma-se o crime com a morte da vítima, resultante da conduta praticada pelo agente.Trata-se de delito não transeunte, exigindo-se, para comprovação da materialidade, o exame

    de corpo de delito, sob pena de nulidade do processo. Com efeito, prova-se a morte pelo exame decorpo de delito direto denominado necropsia. Não sendo, porém, encontrado o corpo da vítima (v.g., o agente o lançou ao mar) torna-se impossível, evidentemente, o exame necroscópico, podendo,no entanto, supri-lo pelo exame de corpo de delito indireto (art. 167 do CPP), não o suprindo,porém, a simples confissão do agente (art. 158 do CPP).

    TENTATIVA

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    Trata-se de delito material, portanto, admite a possibilidade da tentativa. Ocorre estaquando, empregados os meios executórios idôneos, a morte não se verifica por circunstânciasalheias à vontade do agente.

    Urge, porém, que o animus necandi   resulte de modo claro, induvidoso, inequívoco, sempossibilidade de impugnações, pois, na dúvida, o réu deverá ser absolvido - in dubio pro reo - pelotribunal popular.

    A prova do animus necandi , como já vimos anteriormente, é extraída das circunstânciasobjetivas do crime (sede da lesão, tipo de arma e etc.). Às vezes, porém, malgrado o esforço dointérprete, persiste a dúvida entre o agente ter agido com animus necandi   ou animus laedendi .Nesse caso, deve o promotor denunciar pelo delito mais grave (tentativa de homicídio) em virtudedo princípio da necessidade da ação penal pública e, também, porque nessa fase da formação daopinio delicti  vigora o princípio in dubio pro societate. A propósito, cumpre registrar que o princípio“in dubio pro societate”   vigora na área penal nas seguintes hipóteses: a) no momento do

    oferecimento da denúncia; b) no momento da pronúncia; c) no julgamento da revisão criminal.

    HOMICÍDIO PRIVILEGIADO

    Dispõe o Código Penal, no art. 121, § 1º, em forma lapidar:“Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob

    o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode

    reduzir a pena de 1/6 a 1/3”. 

    Na acepção jurídica, homicídio privilegiado é uma causa especial de diminuição de pena,

    discutindo os autores o caráter obrigatório ou facultativo da redução da pena.Antigo e profundo o debate doutrinário manifestado a respeito. Segundo o ponto de vista deMagalhães Noronha, a redução é facultativa, em face do emprego da expressão: “ o juiz podereduzir a pena”. Salienta o seguinte: “ A oração do artigo, a nosso ver, não admite dúvidas: podernão é dever. Dissesse a lei, por exemplo, ‘o juiz deve diminuir a pena’ ou ‘a pena será diminuída’

    etc., a diminuição seria imperativa. Em face da redação do artigo, outra interpretação não nos parece possível ”. 

    Essa doutrina, que mereceu apoio de Frederico Marques, não pode ser acolhida. Ela constituiclamorosa injustiça por atentar contra a soberania do júri e a seriedade do julgamento, pois, comoensina Celso Delmanto, “a indagação do homicídio privilegiado é quesito de defesa. De acordo coma jurisprudência da Suprema Corte, se essa indagação não precede os quesitos de qualificação dohomicídio, há nulidade absoluta do julgamento”. E adiante acrescenta: “Ora, se a indagação dohomicídio privilegiado é tão importante que sua mera supressão torna nulo o julgamento do júri,seria sumamente incoerente impor sua formulação, mas deixar ao puro arbítrio do juiz a aplicaçãoou não da redução da pena decidida pelos jurados. Por isso, e em respeito à tradicional soberaniado júri, entendemos que, quando for reconhecido pelos jurados o homicídio privilegiado, o juiz-

     presidente não deve deixar de reduzir a pena, dentro dos limites de 1/6 a 1/3. A quantidade daredução prevista no § 1º do art. 121 ficará, esta sim, reservada ao fundamentado critério domagistrado”. 

    Três são, por conseguinte, as espécies de homicídio privilegiado reconhecidas pela ordem

     jurídica:1º) por motivo de relevante valor social;

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    2º) por motivo de relevante valor moral;

    3º) sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima.

    Preconiza Maggiore que o motivo “é o antecedente psíquico da ação, a força que põe em

    movimento o querer e o transforma em ato: uma representação que impele à ação”. O relevante valor social é aquele inspirado para satisfazer o interesse coletivo, como noexemplo do agente que mata o traidor da pátria ou o perigoso bandido que apavora a comunidadelocal.

    O relevante valor moral compreende o interesse individual do agente, v. g., o pai que mata oestuprador da filha.

    Não basta, porém, para o reconhecimento do privilégio, o valor social ou moral do motivo,mister se faz a sua relevância.

    A análise da relevância do valor social ou moral do motivo é aferida em função dasensibilidade do homo medius da sociedade e não conforme a subjetiva valoração do agente.

    Não se perca de vista, porém, que a circunstância de relevante valor moral ou social temcaráter subjetivo e, por isso, não se comunica aos demais participantes do delito que não tenhamagido pelos mesmos motivos (art. 30 do CP).

    Por outro lado, o denominado homicídio emocional deve preencher os seguintes requisitos:1) provocação injusta da vítima;

    2) domínio de violenta emoção;

    3) reação logo após a provocação.

    Cuida-se inquestionavelmente de preceito salutar. Mas nem sempre é fácil a pesquisa dainjustiça da provocação, por tratar-se de elemento íntimo e espiritual, variável consoante asdiferenças de personalidade, cultura e educação das pessoas. Como dizia Fragoso: “o que para unsserá provocação, para outros, não”. E adiante acrescentava: “Dever-se-ão considerar, porém, os

     padrões do homem normal, e não os do hipersensível ”. Trata-se, porém, de investigação que deverálevar em conta a natureza e circunstâncias do caso concreto, a personalidade, cultura e educaçãodo agente, exigindo-se dos jurados a máxima ponderação e equilíbrio, ao lado de perfeitoconhecimento da vida, na infinidade de suas manifestações. Sim, dos jurados, porque compete ao

     júri, e não ao juiz no momento da pronúncia, a análise do homicídio privilegiado. A provocaçãoinjusta não é necessariamente antijurídica. Observa Aníbal Bruno, que o termo provocação deve serinterpretado largamente. Um dito ofensivo, um gesto de insulto ou menosprezo, ofensas físicas,violações de direitos, mesmo quando não intencionais ou somente sentidos como propositados

    pelo agente, podem constituir-se em provocação injusta. A nosso ver, entende-se por provocaçãoinjusta a conduta ilegal ou imoral, consoante os padrões do homem normal.

    Segundo mencionamos anteriormente, a provocação, além de injusta, deve ser a causa daviolenta emoção que domina o agente. Saliente-se, porém, que mister se faz o domínio de violentaemoção, isto é, a emoção precisa ser intensa, absorvente. Havendo mera influência de violentaemoção o privilégio será afastado, configurando-se, nesse caso, uma simples circunstânciaatenuante genérica (art. 65, III, c, do CP).

    Destaque-se, também, desde já, que, conquanto o Código se refira ao domínio de violentaemoção, o privilégio é igualmente aplicável quando houver domínio de violenta paixão. Como diziaFrederico Marques, por ser a paixão um estado emocional mais intenso e permanente está ela

    abrangida pelo dispositivo legal do art. 121, § 1º, do CP. De fato, tanto a emoção como a paixão

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    provocam no agente um desequilíbrio psíquico, motivando-o a agir irrefletidamente, de maneiraimpetuosa, com a diferença de que, enquanto a emoção é transitória, a paixão é duradoura.

    Ainda quanto ao homicídio emocional, cumpre esclarecer que a reação deve ser quaseimediata, isto é, sem demora, in continenti   a injusta provocação, pois não se pode esquecer a

    expressão usada pelo legislador: “logo em seguida a injusta provocação da vítima” (art. 121, § 1º,CP). Desse modo, o hiato imenso entre a provocação e a reação exclui o privilégio, pois, comoensinava Aníbal Bruno, “o impulso emocional e o ato que dele resulta devem seguir-seimediatamente à provocação da vítima. O fato criminoso objeto da minorante não poderá ser

     produto de cólera que se recalca, transformada em ódio, para uma vingança intempestiva”.Vejamos agora a questão do homicídio passional, cometido por amor, salientando-se que,

    nesse caso, nem sempre configurar-se-á o privilégio, bastando, para tanto, lembrar a lição deNélson Hungria: “Em face do novo código, os uxoricidas passionais não terão favor algum, salvoquando pratiquem o crime em exaltação emocional, ante a evidência da infidelidade da esposa. Omarido que surpreende a mulher e o tertius em flagrante adultério ou in ipsis rebus venereis (quersolus cum sola in eodem lecto, quer solus cum sola in solitudine) e, num desvairo de cólera, eliminaa vida de uma ou de outra, ou de ambos, pode, sem dúvida alguma, invocar o § 1º do art. 121; masaquele que, por simples ciúme ou meras suspeitas, repete o gesto bárbaro e estúpido de Otelo, teráde sofrer a pena inteira dos homicidas vulgares.” Em suma, o homicídio passional pode ou não serprivilegiado, conforme preencha ou não os requisitos do § 1º do art.121 do CP.

    Por outro lado, sobre a possibilidade da coexistência do homicídio privilegiado com a aberratioictus (erro na execução), prevista no art. 73 do CP, nenhuma divergência existe. Caracteriza-se, destarte,o homicídio privilegiado com a aberratio ictus  no exemplo do pai que dispara sua arma contra oestuprador da filha, vindo, porém, por desvio de pontaria, a atingir outra pessoa.

    Cumpre também registrar que a reação a uma agressão injusta configura legítima defesa,impondo-se a absolvição do agente. Se, porém, a reação for dolosamente desproporcional àagressão, desconfigura-se a legítima defesa, devendo o agente ser condenado por homicídiodoloso, que eventualmente poderá ser considerado privilegiado pelo domínio da violenta emoção.

    Questão não despicienda é a de saber se seria possível a coexistência do homicídio privilegiado edo qualificado. Variam as opiniões a respeito. Antes de adentrarmos no assunto, convém abrirmos umparêntese para explicar que as circunstâncias subjetivas são as que dizem respeito aos motivos docrime, às qualidades pessoais do agente e seu relacionamento com a vítima, ao passo que ascircunstâncias objetivas compreendem os meios e modos de execução do crime, tempo, lugar equalidades da vítima. O homicídio privilegiado, em suas três modalidades, caracteriza-se pela existênciade circunstâncias exclusivamente subjetivas, ao passo que no homicídio qualificado a natureza jurídicadas circunstâncias é bem variável: no art. 121, § 2º, I, II e V, estão as circunstâncias subjetivas e nos

    incisos III e IV, as objetivas.Para uma corrente, haveria possibilidade de o homicídio ser ao mesmo tempo privilegiado e

    qualificado, desde que a qualificadora tenha natureza objetiva, como, por exemplo, oenvenenamento cometido por motivo de relevante valor moral. Nesse caso, a pena base sairia dotipo legal qualificado (12 a 30 anos de reclusão) e, após a incidência das circunstâncias agravantes eatenuantes genéricas, o juiz aplicaria o privilégio, reduzindo a pena de um sexto a um terço.

    Para outros, porém, inadmissível é a concomitância do homicídio privilegiado e do qualificadoem virtude da posição topográfica dos §§ 1º e 2º do art. 121, isto é, se o legislador quisesseestender o privilégio ao homicídio qualificado teria invertido a ordem numérica dos aludidosparágrafos. Acompanhando esse último ponto de vista, entendemos que o privilégio não se aplica

    ao tipo penal qualificado, valendo a pena transcrever a lição de James Tubenchlak: “Como se sabe,na ordem dos quesitos formulados pelo juiz e votados pelo júri, os privilégios situam-se antes das

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    qualificadoras (art. 484, III). Por assim ser, quando reconhecido um privilégio,deve ficar prejudicadaa votação do quesito versante sobre a qualificadora. E outra não poderia ser a solução, tomando-seem conta a própria sistematização do art. 121 do CP, que enuncia as causas de diminuição de penano § 1º e as de aumento no § 2º, de sorte que as primeiras dizem respeito, exclusivamente, ao tipo

    básico ou fundamental do homicídio. Exegese em contrário, convenhamos, viria a acarretargravames irremediáveis ao acusado”.A jurisprudência dominante filia-se a primeira corrente, admitindo o homicídio híbrido

    (privilegiado-qualificado), desde que a qualificadora seja objetiva, que são as do art. 121, § 2º,incisos III e IV, sendo inadmissível a coexistência do homicídio privilegiado e qualificado, quando asqualificadoras forem subjetivas, que são as do art.121,§ 2º, incisos I, II e V.

    Sabe-se que na ordem dos quesitos, vota-se primeiramente a tese do homicídio privilegiado edepois a do qualificado. Se o júri reconhece que o homicídio é privilegiado, o juiz deve por emvotação os quesitos das qualificadoras objetivas, ficando prejudicada a votação dos quesitos dasqualificadoras subjetivas. Note-se que a segunda corrente, que rejeita a tese do homicídio híbrido,é mais vantajosa para o réu, pois se o júri reconhece o privilégio não se vota as qualificadoras,sejam elas objetivas ou subjetivas.

    Finalmente, cumpre esclarecer que a sentença de pronúncia não pode fazer menção aohomicídio privilegiado. Trata-se de tese de defesa, que deve ser suscitada em plenário do júri.Aliás, a sentença de pronúncia não pode fazer menção a atenuantes genéricas, a agravantesgenéricas, nem às causas de diminuição de pena, à exceção da tentativa. Note-se, porém, queas qualificadoras e causas de aumento de pena devem figurar na sentença de pronúncia.

    HOMICÍDIO EUTANÁSICO OU PIEDOSO OU COMPASSIVO

    O estudo da eutanásia é dos mais árduos de todo o direito penal. Talvez porque ahumanidade atual passe por um estágio oscilante acerca da real finalidade da vida do homem naTerra. Acreditamos, porém, que no futuro o direito de morrer proclamado pela escola positiva deFerri será repudiado e esquecido, trancado nas páginas amarelas do passado. “Defender aeutanásia, esclarece Nélson Hungria, é sem mais, nem menos, fazer a apologia de um crime. Nãodesmoralizemos a civilização contemporânea com o preconício do homicídio. Uma existênciahumana, embora irremissivelmente empolgada pela dor e socialmente inútil, é sagrada. A vida decada homem, até o seu último momento, é uma contribuição para a harmonia suprema do universoe nenhum artifício humano, por isso mesmo, deve truncá-la. Não nos acumpliciemos com a morte”. 

    Eutanásia é o homicídio praticado para alforriar, piedosamente, a pessoa dos insuportáveissofrimentos causados por doença incurável. A eutanásia também é denominada de homicídio piedosoou compassivo. Costuma-se também empregar as expressões homicídio médico ou caritativo.

    Ensina Paulo José da Costa Júnior, que são três as modalidades de eutanásia. Uma,consistente na eliminação das chamadas “vidas indignas de serem vividas“ (doentes mentaisincuráveis), que configuram o homicídio. Outra, consistente na morte provocada pelo médico apaciente incurável, que esteja padecendo muito (morte piedosa), que se trata de hipótese dehomicídio privilegiado. A terceira modalidade é a ortotanásia, definida como a circunstância de odoente estar já em um processo que, segundo o conhecimento humano e um razoável juízo deprognose médica, conduzirá imediatamente e sem remissão à morte, sendo certo que o ilustrepenalista considera lícita a ortotanásia.

    O Código Penal vigente não deixou impune a eutanásia. Conquanto não disciplinada

    expressamente, a sua prática constitui delito de homicídio. Na primeira modalidade o homicídio

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    pode ser simples ou qualificado, dificilmente o júri o consideraria privilegiado. Na segundamodalidade, o homicídio é privilegiado pelo relevante valor moral (art. 121, § 1º).

    A polêmica maior reside em torno da ortotanásia. Com efeito, a ortotanásia consiste nasupressão dos medicamentos que visavam prolongar por um pouco mais de tempo a vida do

    doente incurável incurso já em um estado que natural e irremissivelmente o levaria à morte. Étambém denominada eutanásia omissiva ou moral ou terapêuticaSuponha-se um enfermo em fase terminal, vivendo às custas de altas doses de antibióticos ou

    transfusões de sangue. Concluindo o juízo de prognose médica pela impossibilidade absoluta decura, cessando os medicamentos, deixando, destarte, o moribundo morrer naturalmente,responderia o médico por delito de homicídio? Um dos argumentos para justificar a ortotanásia é odireito de não sofrer inutilmente. Os seus detratores, porém, argumentam que há semprepossibilidades de reações orgânicas do paciente, consideradas “milagres”, restabelecendo o

    enfermo, acrescentando ainda a possibilidade do surgimento de cura da doença.Malgrado a clareza do art. 13, § 2º, b, do CP, considerando a omissão penalmente relevante a

    quem, como no caso do médico, tem o dever jurídico de evitar o resultado, o certo é que, no Brasil,mais difundida se tornou a tese da inexistência do delito, argumentando Aníbal Bruno, árduo defensordeste ponto de vista, o seguinte: “Nenhuma razão obriga o médico a fazer durar por um pouco maisuma vida que natural e irremissivelmente se extingue, a não ser por solicitação especial do paciente oude parentes seus.” Guilherme de Souza Nucci esclarece que a resolução nº 1246/88 considera aortotanásia um procedimento ético (p.371). A controvérsia , porém, continua, porque a resolução nãopode criar direitos e obrigações, violando o princípio da legalidade. O anteprojeto da parte especial doCódigo Penal preceitua no art.121, § 4º: “Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém pormeio artificial, se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e

    desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente,

    cônjuge, companheiro ou irmão”.

    Finalmente, cumpre ainda fazer menção à distanásia, consistente na morte lenta e sofrida deuma pessoa, prolongada pelos recursos da medicina. Se o prolongamento objetiva a salvação nãohá falar-se em crime. Mas, se ao revés, tem o escopo de matar a vítima lentamente, haveráhomicídio qualificado pelo meio cruel.

    HOMICÍDIO QUALIFICADO

    O § 2º do art.121 do CP prevê o homicídio qualificado, cuja pena varia entre 12 e 30 anos dereclusão. Trata-se de qualificadora, porque tem pena autônoma, desvinculada do tipo fundamental.

    A maioria das circunstâncias que qualificam o homicídio figuram como agravantes genéricasdos demais delitos (CP, art. 61, II, a, b, c  e d ). Mas, evidentemente, no caso do homicídio essascircunstâncias, erigidas à condição de qualificadoras, não poderão funcionar como agravantesgenéricas, por força do princípio do non bis in idem.

    Advirta-se, desde já, que a premeditação e a relação de parentesco, por si sós, não qualificam ohomicídio. No tocante à premeditação, no expressivo dizer de Heleno Cláudio Fragoso, “nem sempreela revela maior frieza ou perversidade, podendo, ao contrário, indicar hesitação ou resistência emrelação à ação criminosa. Premeditadamente pode ser cometido um homicídio por motivo de relevantevalor social ou moral, e pode também o crime ser praticado ex improviso, por motivo fútil, revelandoexcepcional insensibilidade moral por parte do agente”. O juiz poderá, porém, considerá-la na fixação dapena-base, nos termos do art. 59 do CP.

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    No tocante à relação de parentesco, limita-se o Código Penal a considerar agravante genéricaa prática de crime contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge (art. 61, II, e). Específicasdenominações recebe o homicídio praticado contra parente próximo:

       parricídio (matar o pai);

      matricídio (matar a mãe);  uxoricídio (matar a esposa);  mariticídio (matar o marido);   filicídio ou gnaticídio (matar o filho);   fratricídio (matar o irmão).

    Saliente-se, contudo, que com o advento da lei 13.104/2.015, o matricídio e uxoricídioenquadram-se como feminicídio, que é uma das hipóteses de homicídio qualificado.

    As circunstâncias qualificativas do homicídio estão sistematizadas do seguinte modo:a) as que resultam dos motivos (art. 121, § 2º, I e II);

    b) as que resultam dos meios (art. 121, § 2º, III);

    c) as que resultam da forma (art. 121, § 2º, IV);

    d) as que resultam da conexão (art. 121, § 2º, V);

    e) as que resultam de condição de sexo feminino (art. 121, §2º, VI).

    O art. 121, § 2º, I e II, do CP cuida das qualificadoras em razão dos motivos determinantesdo crime:

    No inciso I está o homicídio cometido mediante paga e promessa de recompensa, ou poroutro motivo torpe. No inciso II está o cometido por motivo fútil.

    A paga e a promessa de recompensa integram o denominado homicídio mercenário. Na pagao recebimento é prévio, v. g., entrega de dinheiro para que o pistoleiro perpetre o crime. Ohomicídio cometido mediante paga é também denominado assassínio. Na promessa derecompensa o recebimento da vantagem se verifica após a prática do delito. Há uma expectativa derecompensa, cuja efetivação está condicionada à realização do homicídio. Não vindo, porém, oagente a recebê-la, persiste, mesmo assim, a qualificadora.

    Divergem radicalmente os autores quanto à natureza econômica ou não da paga e promessade recompensa. Para uns, acertadamente, elas têm de ter conotação econômica, pois a razão daqualificadora é a cobiça, o móvel de lucro. É o ensinamento, dentre outros, de Nélson Hungria, paraquem a paga ou recompensa prometida tanto pode consistir em dinheiro, como em qualquervantagem econômica (aquisição de direito patrimonial, perdão de dívida, promoção em emprego

    etc.). Para outros, porém, não há necessidade da conotação econômica, configurando-se, porexemplo, a qualificadora na promessa de futuro casamento com o autor do delito.

    Observe-se, ainda, que o homicídio mercenário é crime bilateral, exigindo o concurso de duaspessoas: o mandante e o executor. Indaga-se se o homicídio seria ou não qualificado para omandante, respondendo uns afirmativamente, argumentando que a paga e promessa derecompensa são elementares do delito, comunicando-se ao partícipe, nos termos do art. 30 do CP,enquanto outros respondem negativamente, asseverando que o fundamento da qualificadora épunir a cobiça, o móvel de lucro, na maioria das vezes ausente naquele que manda matar. Essaúltima orientação é mais certeira, pois, como salienta Heleno Cláudio Fragoso, “não se exclui quemediante a ação de um sicário pratique alguém um homicídio por motivo de relevante valor social

    ou moral. A qualificação do homicídio mercenário justifica-se pela ausência de razões pessoais por parte do executor (indício de insensibilidade moral) e pelo motivo torpe que o leva ao delito. O

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    mandante busca a impunidade e a segurança, servindo-se de um terceiro”. Se, por exemplo, o paipagar um pistoleiro para matar o estuprador da filha, a solução, ao nosso ver, será a seguinte: o pai(mandante) responderá por homicídio privilegiado pelo relevante valor moral; o pistoleiro(executor), por homicídio mercenário (CP, art. 121, § 2º, II). Anote-se que a paga e a promessa de

    recompensa não constituem elementares do delito e, sim, circunstâncias qualificadoras. Seriasumamente injusto imputar a qualificadora ao mandante. Sobremais, trata-se de circunstânciasubjetiva (motivo  de paga ou promessa de recompensa), sendo incomunicável ao partícipe, nostermos do art. 30 do CP.

    A lei qualifica o homicídio pela paga, promessa de recompensa ou outro motivo torpe. Motivotorpe é o reprovável pela moralidade média. É o motivo repugnante, abjeto. Por exemplo, o filhomata o pai para receber a herança ou o traficante mata o viciado que deixa de efetuar o pagamentoda droga adquirida.

    A vingança, cumpre esclarecer, nem sempre se revela como motivo torpe, tudo dependerá domóvel que a antecedeu. Suponha-se que o pai mate o estuprador da filha, conquanto vingativo, ohomicídio é privilegiado pelo relevante valor moral.

    Por outro lado, o motivo fútil também qualifica o homicídio (art. 121, § 2º, II). Motivo fútil é oinsignificante, de somenos importância que, em regra, tomando-se por base o homo medius, nãoleva ao crime. É aferido pela gritante desproporção entre o motivo e o crime, considerando-se asensibilidade moral do homem médio e não a opinião subjetiva do réu. Esclareça-se, porém, que naausência de motivo, por ser desconhecido o motivo, exclui-se a qualificadora.

    O art. 121, §2º, III, do CP cuida dos meios empregados para a prática do crime:

    Considera qualificado o homicídio quando cometido com emprego de meio insidioso, meiocruel ou meio de que possa resultar perigo comum.

    Meio é o instrumento utilizado pelo agente para a prática criminosa. O homicídio é qualificado peloemprego de:

    a) meio insidioso;b) meio cruel;c) meio de que possa resultar perigo comum.

    Meio insidioso: consoante se lê na exposição de motivos da Parte Especial do Código Penal, éo dissimulado na sua eficiência maléfica. No meio insidioso há, pois, dissimulação. O meio éempregado sub-repticiamente, sem que a vítima dele tenha conhecimento, como, por exemplo, oveneno. O homicídio cometido mediante emprego de veneno denomina-se veneficio ou

    envenenamento.Veneno é qualquer substância mineral, vegetal ou animal, capaz de provocar dano ao

    organismo. Sendo assim, o açúcar ministrado ao diabético em dose profunda é consideradoveneno. É preciso, porém, ressaltar que o envenenamento só constitui meio insidioso quando avítima está insciente do fato. É necessário ainda que a perícia toxicológica constate a presença doenvenenamento. Atente-se, por fim, que, além do veneno, qualquer outro meio insidioso qualificao homicídio, v. g., sabotagem do motor de um carro.

    Meio cruel: é o que causa sofrimento desnecessário à vítima. No dizer da exposição demotivos, é o que aumenta inutilmente o sofrimento da vítima, ou revela uma brutalidade fora docomum ou em contraste com o mais elementar sentimento de piedade. Mas, como dizia Frederico

    Marques: “os atos que podem traduzir a crueldade somente são tais, como é óbvio, enquanto a pessoa está com vida. Não há, pois, perversidade brutal ou crueldade naquele que, depois de abater

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    e matar a vítima, lhe mutila o cadáver ou lhe esquarteja o corpo para melhor fazer desaparecer osrastros do crime”. 

    O Código traz três exemplos de meios cruéis: tortura, fogo e asfixia.Tortura é a inflição de sofrimento desnecessário ou fora do comum. Pode ser física, v. g.,

    matar aos poucos, para que a vítima sinta mais as dores, e moral, por exemplo, matar um cardíacotorturando-o psicologicamente. Só há tortura quando o agente faz com que a vítima sofrainutilmente. Assim, a reiteração de facadas, desde que necessária para causar a morte, emprincípio, não constitui tortura. Cumpre não confundir o homicídio qualificado pela tortura com ocrime de tortura qualificado pela morte. Com efeito, no delito de tortura, previsto no art.1º,§ 3º, dalei nº 9.455/97, o agente não age com dolo de matar, de modo que a morte é culposa. Assim, atortura qualificada pela morte é um crime preterdoloso, tendo em vista que há dolo em relação àtortura e culpa na morte. Se, após praticar o crime de tortura, o agente mata dolosamente a vítima,ter-se-á apenas o delito de homicídio, por força do princípio da consunção. Não concordamos coma opinião de Damásio de Jesus, esposada por Cezar Roberto Bitencourt, no sentido de que sedurante a tortura o agente resolve matar a vítima haverá dois crimes em concurso material: tortura(art.1º da lei nº 9.455/97) e homicídio (art.121 do CP), pois esse posicionamento desconsidera osestudos sobre o princípio da consunção, notadamente no aspecto da progressão criminosa.

    Por outro lado, o fogo e a asfixia também constituem meios cruéis, qualificando o homicídio.No tocante ao fogo, Magalhães Noronha cita o exemplo dos  playboys que o atearam em um

    pobre homem que se achava dormindo num banco de jardim público.Asfixia, dizia Costa e Silva, é o efeito da falta de ar e da suspensão, mais ou menos completa,

    da respiração. Esses efeitos resultam em verdade da privação, total ou parcial, rápida ou lenta, dooxigênio, elemento indispensável à manutenção da vida. A asfixia pode ser mecânica e tóxica.Ambas qualificam o homicídio por se revestirem de extrema crueldade. Na asfixia a morte écausada pela anoxemia (falta de oxigênio no sangue).

    A asfixia mecânica pode ocorrer mediante: enforcamento, estrangulamento, esganadura,sufocação, soterramento e afogamento. No enforcamento há a constrição do pescoço feita por laçoacionado pelo próprio peso da vítima; no estrangulamento há a constrição do pescoço feita porlaço acionado pela força muscular da própria vítima ou de estranhos; na esganadura a constriçãodo pescoço é feita com as mãos do agente; na sufocação há impedimento respiratório devido àoclusão dos orifícios respiratórios (narinas e boca) ou pela compressão do tórax; no soterramento,a asfixia se realiza pela permanência do indivíduo num meio sólido ou semi-sólido, onde a entradade ar está impedida; por fim, no afogamento há a submersão da vítima num meio líquido, quepenetra nas vias respiratórias.

    A asfixia tóxica se dá mediante confinamento. O agente coloca ou mantém a vítima em local

    onde não penetra ar, v. g., numa garagem fechada com o carro ligado.O homicídio é ainda qualificado quando do meio empregado possa resultar perigo comum.O fogo e o explosivo foram elencados no inciso III do § 2º do art. 121 do Código Penal como

    exemplos legais de meios capazes de produzir perigo comum.Perigo comum: é o que atinge um número indeterminado de pessoas. Se o meio empregado

    atingir a vítima e ainda criar uma situação de perigo a um número indeterminado de pessoas, oagente responderá por homicídio qualificado em concurso formal com o crime de perigo comum(incêndio - art. 250; explosão - art. 251; inundação - art. 254; desabamento - art. 256, etc.). Háquem sustente a tese da absorção do delito de perigo comum, argumentando-se que já funcionariacomo qualificadora de homicídio, invocando-se, destarte, o princípio da subsidiariedade implícita.

    A nosso ver, não há falar-se em absorção, porquanto a razão da qualificadora não é o perigocomum, mas o meio de que possa resultar esse perigo. A escolha de um meio desse porte revela a

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    periculosidade do agente, justificando-se a qualificadora, ainda que no plano prático não tenhaocorrido o perigo comum. O que importa é a potencialidade do meio para causar este tipo deperigo. Na hipótese de efetivamente se concretizar o perigo comum haverá concurso formal. Nãohá nenhum “bis in idem” nesse ponto de vista. Com efeito, a escolha do meio é a razão da

    qualificadora, ao passo que a ocorrência do perigo concreto comum é um novo fato, cujo sujeitopassivo é a coletividade. São dois fatos distintos, a escolha do meio e o perigo concreto comum. Aqualificadora do homicídio incide independentemente de ocorrer o perigo comum. Se estesobrevier, haverá o concurso formal entre homicídio qualificado e o crime de incêndio ou explosãoou inundação ou desabamento etc.

    O art. 121, §2º, IV, do CP qualifica o delito em virtude do modo de execução (forma pelaqual se manifesta a conduta):

    Estabelece que o homicídio é qualificado quando cometido à traição, de emboscada,dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Referidodispositivo qualifica o delito em virtude do modo de execução (forma pela qual se manifesta aconduta).

    A traição, emboscada e dissimulação compõem a fórmula casuística empregada pelolegislador para exemplificar os modos de execução que dificultam ou tornam impossíveis a defesada vítima.

    Há traição quando o agente quebra a confiança que a vítima lhe depositava. É a perfídia, adeslealdade. É preciso, porém, que a vítima não perceba o ataque. Assim, não há traição se a vítimaviu o agente com a arma escondida.

    Referentemente à surpresa, à semelhança da traição, constitui um ataque inesperado,qualificando o homicídio à medida que dificulta ou torna impossível a defesa do ofendido.

    Íntima é a ligação entre a traição e a surpresa. Num e noutro caso a vítima é atingidainesperadamente, com a diferença de que, na traição, ela confiava no agente, enquanto nasurpresa não havia essa relação de confiança. Haverá surpresa se o agente matar pelas costas o seudesafeto e traição se matar dessa forma um parente ou amigo.

    Igualmente, o homicídio é qualificado quando cometido mediante emboscada oudissimulação. Emboscada é o ato premeditado de aguardar escondido a presença da vítima paraatacá-la de surpresa. Há, pois, simultaneamente, premeditação e surpresa. Entre os indígenas éconhecida como tocaia.

    Dissimulação é a ocultação do intuito criminoso, v. g., disfarce colocado pelo agente paraaproximar-se da vítima.

    O art. 121, §2º, V, do CP qualifica o delito quando cometido para assegurar a execução, aocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:

    Como se percebe, o fundamento dessa qualificadora é a conexão teleológica ouconsequencial entre o homicídio e outro delito.

    Há conexão teleológica quando o homicídio é cometido para assegurar a execução de outrocrime. Há conexão consequencial quando cometido para assegurar a ocultação, a impunidade ou avantagem de outro crime. Nessas duas hipóteses, observa Heleno Cláudio Fragoso, “é irrelevanteque o crime-fim seja praticado. Basta que o agente tenha praticado o homicídio com o fim de

    assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou o proveito de outro crime, qualquer que seja.Se o crime-fim foi cometido, haverá concurso material, aplicando-se cumulativamente as penas (art.

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    69, CP). É irrelevante, igualmente, que o homicídio seja praticado antes ou depois deste outro crime,bem como a desistência do agente em relação a este”. 

    Cumpre não esquecer que a qualificadora da conexão só tem incidência quando o homicídio écometido para assegurar a execução, ocultação, impunidade e vantagem de outro crime. Se o

    homicídio visa assegurar a prática de contravenção penal exclui-se a incidência da qualificadora emapreço, podendo, porém, nesse caso, configurar-se a qualificadora do motivo torpe ou fútil. Afasta-se, também, a qualificadora se o crime-fim é putativo ou impossível.

    Por outro lado, na expressiva lição de Euclides Custódio da Silveira, “ o homicídio pode sercometido antes, logo após ou muito tempo depois de ‘outro crime’, sendo exemplo da pr imeirahipótese o de quem, ao preparar-se para praticá-lo, mata um policial que o tem sob as vistas e

     poderá tornar-se uma perigosa testemunha”. Vejamos alguns exemplos de homicídio qualificado pela conexão:

    1º. Suponha-se que o agente provoque a morte do marido com a intenção de assegurar a execução

    do estupro da esposa. Efetivando ou não a conjunção carnal, responderá por homicídioqualificado pela conexão (art. 121, § 2º, V, do CP), em concurso material com o crime sexual doart. 213 do Código Penal, consumado ou tentado. Imagine-se, porém, que tenha sido preso emflagrante pelos vizinhos antes de iniciar a execução do estupro. Nesse caso, por ter sidocometido com o fim de assegurar a execução do estupro, o homicídio será igualmentequalificado pela conexão teleológica. Mas, como a lei penal pátria não pune os atospreparatórios, desnecessário dizer que o estupro não se caracterizou nem mesmo namodalidade tentada.

    2º. Suponha-se que o agente falsifique um documento público e, depois, para ocultar o fato, matea única testemunha. Responderá por homicídio qualificado pela conexão consequencial emconcurso material com o crime de falso (art. 297 do CP).

    3º. Suponha-se que o agente, após danificar dolosamente um objeto, mate a testemunha paraassegurar a sua impunidade. Note-se que ele matou para assegurar a sua impunidade e não aocultação do fato, pois a danificação permanecerá evidente. Responderá, nesse caso, porhomicídio qualificado pela conexão consequencial em concurso material com o crime de dano(art. 163 CP).

    4º. Suponha-se, por fim, que o ladrão mate o seu comparsa do furto para assegurar a exclusividadeda vantagem obtida com o delito patrimonial. Responderá por homicídio qualificado pelaconexão consequencial em concurso material com o crime de furto (art. 155 CP).

    A expressão vantagem do crime compreende o produto, o preço e o proveito. “Produto são

    as coisas adquiridas diretamente com o crime (ex.: a res furtiva), ou mediante especificação (ex.: oouro resultante da fusão da jóia furtada), ou obtidas mediante alienação (ex.: dinheiro ganho com avenda da coisa furtada), ou criadas pelo crime (ex.: mercadorias contrafeitas). Preço são os valoresrecebidos ou prometidos para cometer o crime. Proveito, finalmente, é toda vantagem, patrimonialou não, derivada do crime e diversa do produto e do preço”. 

    Cumpre advertir que a lei não prevê como qualificadora a conexão ocasional, ocorridaquando o agente comete um crime por ocasião da prática de outro (p. ex.: danifica o relógio davítima do homicídio). Mas, nesse caso, haverá, igualmente, concurso material entre o homicídiosimples ou qualificado por outra circunstância, exceto a conexão, e o crime de dano.

    Finalmente, a qualificadora da conexão incide ainda que se extinga a punibilidade do outro

    crime, conforme preceitua o art.108, 2ª parte, do CP. Anote-se ainda que no homicídio qualificado

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    pela conexão há um elemento subjetivo especial do tipo, consistente no especial fim de agir. O doloé específico, ao passo que nas demais modalidades o dolo é genérico.

    O art. 121, §2º, VI, do CP qualifica o delito quando cometido por razões da condição do sexo

    feminino:

    Trata-se do chamado feminicídio, que é o homicídio praticado contra a mulher por razões dacondição de sexo feminino, introduzido pela Lei 13.014, de 09 de março de 2.015. Este delito éhediondo, conforme art. 1º, I, da Lei 8.072/90.

    O §2º-A do art. 121 do CP considera que há razões de condição de sexo feminino quando ocrime envolve:

    I. Violência doméstica e familiar. De acordo com o art. 5º da Lei 11.340/2.006, a hipóteseabrange o homicídio praticado contra mulher com quem o agente mantém ou manteve convívio,ainda que esporádico e sem qualquer relação íntima de afeto, com ou sem vínculo familiar, bemcomo o perpetrado contra a mulher com quem o agente tem vínculo de parentesco natural ou porafinidade ou ainda um parentesco por vontade expressa (pessoa que o agente considerava comosendo parente). Compreende também o homicídio praticado em qualquer relação íntima de afeto,contra mulher com quem o agente convive ou tenha convivido, independentemente de coabitação,isto é, de terem morado juntos ou mantido relações sexuais. Quem, portanto, mata ex-namorada,incide na qualificadora. O matricídio, que é matar a mãe, também passa a ser homicídio qualificado.Igualmente, o uxoricídio, que é matar a esposa.

    II. Menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Aqui o tipo penal refere-se aofeminicídio homofóbico, isto é, o sentimento negativo em relação ao sexo feminino, que leva oagente a um comportamento hostil e discriminatório, a ponto de matar simplesmente por desprezoà condição de mulher.

    Quanto ao sujeito ativo, o crime é comum, pode ser praticado tanto pelo homem quanto pelamulher, pois a lei não faz qualquer distinção.

    O §7º do art. 121 estabelece que a pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até ametade se o crime for praticado:

    I. Durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto. Quanto ao crime de aborto,é absorvido, pois a condição de gestante já figura como qualificadora. Entendimento diverso geraria“bis in idem”. 

    II. Contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência.As duas primeiras hipóteses, menor de catorze e maior de sessenta anos, já constam na segundaparte do §4º do art. 121 do CP, não havia necessidade de incluí-las como causa de aumento de

    pena. Quanto ao fato de matar deficiente, vale lembrar que pode ser o deficiente físico ou mental.Nessas três situações, para incidir o aumento da pena, é ainda necessário que a vítima seja mulher,pois se trata de uma majorante do feminicídio.

    III. Na presença de descendente ou de ascendente da vítima. Ainda que seja na presença dedescendente recém-nascido ou doente mental, incide a causa de aumento de pena, cujofundamento não é apenas o possível trauma que o delito possa causar nessas pessoas, mastambém o fato do desprezo pela vítima e a esses parentes revelar-se mais intenso.

    INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA

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    O legislador, sabendo de antemão que não poderia prever todas as hipóteses que viriam aocorrer na vida prática, para não mostrar-se dispersivo, expressou-se no art. 121, § 2º, I, III e IV, doCódigo Penal através de textos genéricos, porém, precisos, de modo que com o simples emprego dadenominada interpretação analógica (ou intra legem) se consiga encontrar a real vontade da lei.

    Na interpretação analógica o legislador abarca numa fórmula genérica os casos semelhantesaos mencionados na fórmula casuística.O art.121,§ 2º, I, do Código Penal elenca a fórmula casuística consubstanciada na paga ou

    promessa de recompensa e em seguida menciona a fórmula genérica através da expressão “ou por

    outro motivo torpe”.

    O art. 121, § 2º, III, do Código Penal discrimina a fórmula casuística ou exemplificativa(veneno, fogo, explosivo, asfixia e tortura) e em seguida menciona a fórmula genérica (ou outromeio insidioso, cruel ou de que possa resultar perigo comum).

    Os exemplos não previstos pela fórmula casuística são disciplinados pela fórmula genérica,desde que constituam meio insidioso, cruel ou de que possa resultar perigo comum.

    O veneno é exemplo legal de meio insidioso; o fogo, a asfixia e tortura, de meios cruéis; e ofogo e asfixia, de meios de que possam resultar perigo comum. Não passam, porém, de merosexemplos, pois a fórmula genérica compreende todos os outros casos semelhantes aosmencionados na fórmula casuística, como, por exemplo, a armadilha (meio insidioso).

    No art. 121, § 2º, IV, do Código Penal, a fórmula casuística é constituída pela traição,emboscada e dissimulação, e a fórmula genérica, pela expressão “qualquer outro recurso quedificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”. Traição, emboscada e dissimulação são meros

    exemplos legais de recursos que dificultam ou tornam impossível a defesa do ofendido, pois outrosmeios semelhantes, v.g., a surpresa, também qualificam o homicídio.

    Cumpre não confundir analogia com interpretação analógica.A analogia consiste em aplicar a uma hipótese, não prevista em lei, a norma regulamentadora

    de um caso semelhante. O ponto não focalizado na lei é preenchido pela norma que regula fatosemelhante. O problema é de integração da norma, pois como edita o art. 4º da Lei de Introduçãoao Código Civil: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, oscostumes e os princípios gerais do direito”. 

    Na interpretação analógica, o caso está abrangido pelo espírito da lei exteriorizado nafórmula genérica. A vontade da lei é focalizar os fatos que se enquadram na fórmula genérica.

    Em síntese, na analogia o fato não está previsto em lei, aplicando-se, por isso, disposiçãorelativa a caso semelhante, enquanto na interpretação analógica a hipótese está prevista nafórmula genérica da lei.

    A interpretação analógica é perfeitamente admitida pelo direito penal, pois o intérprete permanece

    dentro dos limites do comando legal.Em contrapartida, o recurso à analogia não é admitido nas leis penais, salvo quando in bonam

     partem e, mesmo assim, desde que não se trate de normas penais excepcionais.

    HOMICÍDIO HEDIONDO. HOMÍCIDIO PRATICADO POR GRUPO DE EXTERMÍNIO E PORMILÍCIA PRIVADA

    A lei nº 8.072/90, modificada pela lei nº 8.930/94, incluiu entre os crimes hediondos ohomicídio qualificado e o homicídio praticado em ação típica de grupo de extermínio.

    Quanto ao homicídio qualificado - privilegiado, a nosso ver, não se trata de crime hediondo,

    tendo em vista que o art. 1º da retrocitada lei nº 8.072/90 não faz menção a essa figura híbrida,sendo, pois, vedada a analogia “in malam partem”. 

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    Em relação ao homicídio praticado em ação típica de grupo de extermínio, ainda que executadopor um só agente, o que sensibilizou o legislador a incluí-lo no rol dos crimes hediondos foi a onda deviolência que assolou o país na década de 1990, destacando-se as chacinas de Vigário Geral,Candelária e Carandiru.

    A redação do preceito, porém, não deixa de ser estranha à medida que prevê a execução poruma só pessoa de uma ação típica de grupo. Deveria limitar-se a dizer: “ação típica de extermínio”.Aliás, aludido homicídio, em regra, já é qualificado pelo motivo torpe. No entanto, perfeitamenteadmissível o homicídio privilegiado cometido em atividade de grupo de extermínio. Suponha-se, porexemplo, que alguém matasse o bando de traficantes que apavorava a comunidade local. Malgrado aação de extermínio, o homicídio seria privilegiado pelo relevante valor social, mantendo, porém, ocaráter hediondo, pois o art. 1º da Lei n. 8.072/90 inclui em seu elenco o homicídio do art. 121 doCódigo Penal, e não apenas o caput   do citado art. 121, de modo que o homicídio privilegiado,cometido em atividade típica de grupo de extermínio, também será hediondo.

    Extermínio é a chacina, a destruição com mortandade. É a matança generalizada, isto é, queatinge a vítima em caráter impessoal, simplesmente por ser membro de um grupo ou ostentardeterminada condição social. Por exemplo, matança de crianças miseráveis, de prostitutas, depresidiários, de mendigos etc. A pluralidade de vítimas não é fundamental ao reconhecimento daqualificadora. Tem-se por qualificado o delito ainda que se mate uma só pessoa, desde que atingidaem caráter impessoal, isto é, simplesmente por ser membro de um grupo.

    O fenômeno do grupo de extermínio constitui um ato de terrorismo, executado, via de regra,por pessoas fanáticas de determinadas ideologias, que instigam desavenças políticas, econômicas,religiosas e o ódio entre as classes sociais. Todavia, a atividade de extermínio também podecaracterizar-se independentemente do mencionado fanatismo.

    Por outro lado, o homicídio praticado em ação típica do grupo de extermínio assemelha-secom o delito de genocídio. Com efeito, o art.1º, alínea “a”, da lei nº 2.889/56 define o delito de

    genocídio como sendo a conduta de matar membros de grupo nacional, étnico, racial ou religioso,com a intenção de destruir-lhe no todo ou em parte. A lei n. 2.889/56 incrimina esse genocídio comas penas do homicídio qualificado. A nosso ver, o homicídio praticado em ação típica de extermínioocorre por exclusão, isto é, nas hipóteses em que não se configura o genocídio. Assim, enquanto ogenocídio é a matança de membros de grupo nacional, étnico, racial ou religioso, com a intenção dedestruir-lhe, o homicídio em ação típica de extermínio compreende a matança de membros degrupo social, econômico, político, feminino, etc.

    O homicídio praticado por grupo de extermínio tem a pena aumentada de 1/3 (um terço) atéa metade, nos termos da lei 12.720/2012, que também prevê o mesmo aumento para o homicídiopraticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança.

    De fato, a lei 12.720/2012, introduziu o § 6º no art. 121 do CP dispondo que: “A pena éaumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o

     pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio”. Enquanto o grupo de extermínio caracteriza-se pela matança generalizada, sem que haja

    motivos pessoais em relação às vítimas, a milícia privada é uma organização paramilitar que agecomo se fosse o Estado, procurando dominar a comunidade, impondo ordens, traçando normas decomportamento, impondo toque de recolher, etc. Se o homicídio for praticado sob o pretexto deprestação de serviço de segurança para a comunidade, impõe-se a causa de aumento de penaacima. Mas o legislador abriu uma grande lacuna, pois se a milícia privada pratica homicídio quenão seja sob o pretexto de serviço de segurança, que teoricamente seria mais grave, não há

    previsão legal para o aumento da pena. O homicídio praticado por milícia privada não é hediondo,

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    O homicídio culposo simples está previsto no § 3º do art.121 do CP, cuja pena varia de um atrês anos de detenção. O conceito de homicídio culposo simples obtém-se por exclusão, tipificando-se quando não ocorrer nenhuma das hipóteses do § 4º do art.121 do CP.

    Com efeito, na primeira parte do § 4º do art.121 do CP está definido o homicídio culposo

    qualificado ou circunstancial. Trata-se de causa de aumento de pena em quantidade fixa de umterço.O aumento da pena em 1/3, previsto no sobredito § 4º do art.121 do CP, tem lugar:

    I.  Se o agente não observa regra técnica de arte, profissão ou ofício;II.  Se o agente omite socorro à vítima;III. Se o agente não procura diminuir as consequências de seu ato;IV. Se o agente foge para evitar prisão em flagrante.

    Essa enumeração é taxativa.Examinemos uma a uma as hipóteses referidas no aludido § 4º do art. 121.A primeira só tem incidência quando houver relação de causalidade entre a morte da vítima e

    a não-observância de regra técnica de arte, profissão ou ofício. Aproxima-se da imperícia, pois, emambas, comum é a não-observância de regra técnica de arte, profissão ou ofício.

    A diferença é que, na imperícia, o agente não dispõe do conhecimento técnico não-observado; embora habilitado legalmente, falta-lhe aptidão para o exercício da arte, profissão ouofício, enquanto na majorante do § 4º do art. 121, ao contrário, o agente tem esses conhecimentostécnicos, deixando, porém, de empregá-los, por indiferença ou leviandade.

    Se, por exemplo, o médico especialista em cirurgia cardíaca, por descuido, cortasse um nervodo paciente, causando-lhe a morte, configurar-se-ia a aludida majorante, pois o profissionaldispunha do conhecimento técnico não observado. Suponha-se, porém, que, ao invés de umespecialista, a cirurgia fosse feita por um médico bisonho, que, por não dispor da necessáriahabilidade, cortasse o mesmo nervo do paciente. Nesse caso, tratar-se-ia de simples imperícia e amajorante seria excluída.

    Consoante o mencionado § 4º, tem também lugar o aumento da pena se o agente omitesocorro à vítima. Evidentemente, o aumento somente é aplicável quando for possível o socorro; amorte instantânea da vítima ou o seu imediato socorro por terceiro afasta a incidência damajoração da pena.

    Tenha-se ainda presente que no caso de inexistência de conduta anterior culposa excluir-se-áa presença da majorante, mas, deixando de socorrer a vítima, o agente cometerá o delito deomissão de socorro (CP, art. 135, parágrafo único). A omissão de socorro é a única causa de

    aumento prevista no Código Penal, que também é aplicável ao homicídio culposo do Código deTrânsito Nacional.

    Outra causa de aumento de pena é aquela em que o agente, após a conduta culposa, nãoprocura diminuir as consequências do seu ato. Alguns autores reputam-na supérflua, alegando quenão procurar diminuir as consequências de seu ato é o mesmo que omitir socorro. Contudo, aaludida majorante não constitui uma superfetação, pelo contrário, justifica-se, por exemplo,quando o agente deixa de indenizar os familiares da vítima.

    Por último, admite-se ainda o aumento da pena em 1/3 quando o agente foge para evitarprisão em flagrante. Justifica-se a majorante pelo fato da fuga dificultar a ação da justiça. Malgradoo caráter afiançável do delito, a prisão em flagrante torna certa a autoria e facilita as investigações.

    Excluir-se-á, evidentemente, a majorante na hipótese de fuga para evitar linchamento ou agressão.Anote-se que o art.301 do Código de Trânsito Brasileiro preceitua que a prestação de socorro

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    imediato à vítima impede a prisão em flagrante. Por analogia “in bonam partem”, esta norma deveser aplicada também ao homicídio culposo do Código Penal.

    HOMICÍDIO CULPOSO NO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO

    Dispõe o “caput” do art.302 do CTB: “Praticar homicídio culposo na direção de veículo

    automotor: Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a

     permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.” O âmbito de incidência do Código de Trânsito Brasileiro depende do binômio: veículo

    automotor e trânsito terrestre. Trata-se de um tipo especial de homicídio culposo, que afasta anorma genérica prevista no art. 121,§ 3º, do Código Penal.

    Entende-se por veículo automotor todo aquele movido a motor de propulsão, que circule porseus próprios meios, e que sirva normalmente para o transporte viários de pessoas e coisas, oupara a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termocompreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibuselétrico). Essa definição, haurida do Anexo I do CTB, é complementada pela definição deciclomotor, isto é, veículo de duas ou três rodas, cuja cilindrada não exceda a cinquentacentímetros cúbicos e cuja velocidade máxima de fabricação não exceda a cinquenta quilômetrospor hora. O ciclomotor é excluído do CTB, aplicando-se o Código Penal.

    Assim, não é aplicável o Código de Trânsito Brasileiro aos homicídios e lesões culpososocasionados por: a) pedestre; b) ciclomotor com menos de cinquenta cilindradas, cuja velocidademáxima não exceda a cinquenta quilômetros por hora; c) animais; d) bicicleta; e) charrete; f)carrinho de rolimã; g) trem.

    Por outro lado, o art.1º do Código de Trânsito Brasileiro deixa bem claro que o aludido codex  só é aplicável ao trânsito das vias terrestre, aberta a circulação. O parágrafo único do art. 2ºpreceitua que também são consideradas vias terrestres as praias abertas à circulação pública e asvias internas pertencentes aos condomínios constituídos por unidades autônomas.

    Portanto, não é aplicável o Código de Trânsito Brasileiro aos homicídios e lesões culpososoriundos de: a) acidentes marítimos; b) acidentes aéreos; c) acidentes na linha férrea do trem; d)acidentes no interior do estacionamento do Shopping Center; e) acidentes ocorridos em vias ruraisnão abertas à circulação.

    Cumpre observar que o homicídio e lesão culposos previstos no Código Penal são aplicáveis atodas as hipóteses de exclusão do Código de Trânsito Brasileiro.

    O parágrafo único do art.302 do CTB prevê o homicídio culposo qualificado, dispondo que a

    pena é aumentada de um terço à metade, se o agente:I.  Não possui permissão para dirigir ou carteira de habilitação;II.  Praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada;III.  Deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente;IV. No exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de

    passageiros.

    Vê-se assim a existência de quatro causas de aumento de pena em quantidade variável de umterço à metade.

    A primeira ocorre quando o motorista não possui permissão para dirigir ou carteira de

    habilitação. Convém registrar que a permissão é a habilitação provisória. Após um ano, o motoristarecebe a Carteira de Habilitação. Anote-se que o delito de falta de habilitação ou permissão para

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    dirigir, previsto no art. 309 do CTB, é absorvido, por força do princípio da subsidiariedade implícita.Da mesma forma, não há falar-se na incidência da agravante do art. 298, inciso III, do CTB, porque omesmo fato já configura causa de aumento de pena. Quanto ao motorista que tem Carteira deHabilitação, mas o exame médico encontra-se vencido, a nosso ver, não deve sofrer o aumento da

    pena. Com efeito, o vencimento do exame médico apenas obriga o motorista a realizar um novoexame para atestar a sua saúde e poder renovar a habilitação. Ele não se submete a novos examesde trânsito, de modo que o vencimento do exame médico não implica em inabilitação para dirigir.

    A segunda circunstância que majora a pena consiste no fato de o motorista praticar o delitoem faixas de pedestres ou na calçada. Justifica-se a majorante pela gravidade da culpa. Não incide aagravante prevista no art.298, inciso VII, do CTB, porque o mesmo fato já constitui causa deaumento de pena.

    A terceira majorante consiste na omissão de socorro. São duas as espécies de omissão desocorro: a) deixar de prestar assistência; b) não pedir o socorro da autoridade pública. A assistênciaé direta ou imediata quando o socorro é prestado pessoalmente; e indireta ou mediata quando ésolicitada a autoridade pública. Se a situação de perigo pode ser afastada a contento tanto pelaassistência direta como pela indireta, surge para o agente uma obrigação alternativa: prestarpessoalmente o socorro ou solicitá-lo à autoridade pública. Se, porém, a situação de urgência nãoadmite a mora, tornando inócua a solicitação da autoridade pública, o agente deverá prestar aassistência direta, sob pena de incidir em omissão de socorro. Como se pode observar, a assistênciaindireta é meramente supletiva ou subsidiária, podendo o sujeito optar pela solicitação do auxílioda autoridade pública somente quando a assistência direta não puder ser prestada sem riscopessoal, ou quando o socorro da autoridade pública for capaz de conjurar tempestivamente operigo. Se houver risco pessoal para o agente, exclui-se a obrigação de socorrer diretamente,subsistindo, porém, o socorro indireto, a menos que também haja risco pessoal. Acrescente-seainda que a causa de aumento só é aplicável quando for possível socorro, de modo que a morteinstantânea da vítima ou de seu imediato socorro por terceiro afasta a incidência da majoração dapena. Tenha-se ainda presente que no caso de inexistência de conduta anterior culposa excluir-se-áa presente majorante, mas, deixando de socorrer a vítima, o agente cometerá o delito de omissãode socorro ( art. 304 do CTB). Se, por exemplo, após o atropelamento fortuito do tresloucado quese lançou à frente do veículo, o motorista omitir socorro, responderá pelo delito de omissão desocorro, previsto no art. 304 do CTB. Outras considerações serão abordadas por ocasião da análisedo delito de omissão de socorro, previsto nos arts. 135 do CP e 304 do CTB.

    A última causa de aumento ocorre quando o agente pratica o delito no exercício de suaprofissão ou atividade de conduzir veículo de transporte de passageiros. Exclui-se a incidência daagravante genérica prevista no art. 298, inciso V do CTB, na parte em que trata de veículo de

    transporte de passageiros, porque o mesmo fato já constitui causa de aumento de pena. Tratando-se, porém, de veículo de transporte de carga, tais como os caminhões, não é aplicável a causa deaumento de pena, porque é vedada a analogia “ in malam partem”, mas em contrapartida incide aagravante do art.298, inciso V, na parte em que trata do veículo de transporte de carga.

    A incidência da majorante depende de o agente encontrar-se no exercício de sua profissão ouatividade. A palavra profissão está empregada para designar os motoristas profissionais, que sededicam exclusivamente a dirigir veículos, tais como os taxistas, motoristas de ônibus, etc., aopasso que a expressão atividade foi empregada para abranger as hipóteses em que o agente realizadiversas tarefas, dentre as quais a de conduzir veículos automotores. Há quem sustente que acausa de aumento só é aplicável se ao tempo do acidente havia passageiros no veículo,

    argumentando-se que a razão da majorante é o perigo ocasionado a esses passageiros. A nosso ver,a justificativa da majorante consiste no fato de a condução do veículo ser inerente à profissão ou

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    SUJEITO ATIVO

    O sujeito ativo do crime em apreço pode ser qualquer pessoa física. Trata-se de delitocomum. Admite a coautoria e a participação. Por exemplo: “A” e “B” instigam “C” ao suicídio. “A” e

    “B” são coautores. Outro exemplo: “A” induz “B” a induzir “C” ao suicídio. “A” é partícipe e “B”,autor do delito em estudo.

    SUJEITO PASSIVO

    Sujeito passivo deve ser pessoa ou pessoas determinadas, com capacidade de resistência ediscernimento para compreender o ato. No suicídio, a vítima conscientemente se auto-executa,sendo, por isso, indispensável a capacidade de resistênci