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OS CABEÇAS DE PLANILHA 1/127 28/08/2006 O Plano Real.doc Os Cabeças de Planilha POR LUÍS NASSIF

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O Plano Real.doc

Os Cabeças de Planilha

POR LUÍS NASSIF

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OS CABEÇAS DE PLANILHA - ESTRUTURA 5

INTRODUÇÃO 6

“ENCILHAMENTO” E REAL: OPORTUNIDADES PERDIDAS 9

OS PERSONAGENS DA HISTÓRIA 10 FERRAMENTAS DE PODER 10

“CHUTANDO A PRÓPRIA ESCADA” 14

O EXEMPLO AMERICANO 14 O EXEMPLO INGLÊS 15 O EXEMPLO DA ARGENTINA 18 A RECEITA DO CRESCIMENTO 19

OS NOVOS TEMPOS 22

AS REVOLUÇÕES TECNOLÓGICAS 22 A “HAUTE FINANCE” 22 AS GRANDES BOLHAS ESPECULATIVAS 25

A SEGUNDA FASE DO DESENVOLVIMENTO: A ABOLIÇÃO 27

PROJETO DE PAÍS 30

O PRIMEIRO ATO DO “ENCILHAMENTO” 31 O SEGUNDO ATO DO ENCILHAMENTO 33 O TERCEIRO ATO DO ENCILHAMENTO 36 O QUARTO ATO DO ENCILHAMENTO 39 A CRISE FISCAL E O ESMAGAMENTO DOS ESTADOS 40 OS NEGÓCIOS DE RUI 40 INTERESSES DIVERSOS 41 O JOVEM GUSTAVO FRANCO 41

A REDEMOCRATIZAÇÃO E O PLANO CRUZADO 43

OS NOVOS FINANCISTAS 46

A NOVA ONDA DE GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA 47

NIXON 47 REAGAN 47 AS REVOLUÇÕES TECNOLÓGICAS 47 OS GRANDES MOVIMENTOS ESPECULATIVOS 48

O BRASIL ENTRA NA ERA MODERNA 51

O PROGRAMA QUE MUDOU O BRASIL 51 A MICRO-ECONOMIA SE CASA COM A MACRO 53 TANCREDO 54

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AS IDÉIAS SE IMPÕEM 55 OS PRIMEIROS MOVIMENTOS 56 A SEGUNDA VERTENTE, DA QUALIDADE 57 AS LIÇÕES DE MICHAEL PORTER 58

COLLOR ENTRA EM CENA 60

MUDANDO DE LUGAR 61 O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR 62 ESCANTEIO 63

AS IDÉIAS PRÉ-PLANO REAL 64

COMO SE CONSOLIDAM HEGEMONIAS 68

OS PARAÍSOS FISCAIS E OS DOLEIROS 70 A TROPICALIZAÇÃO DOS DÉFICITS GÊMEOS 73

O PLANO REAL 76

DIAGNÓSTICOS 76 A PRIMEIRA ETAPA DO REAL 77 AS REGRAS DE REMONETIZAÇÃO 78 A APRECIAÇÃO DO REAL 79 O FIM DOS SUPERÁVITS COMERCIAIS 81 A NOVA INSTITUCIONALIDADE 81 A GUERRA DE COMPRADOS E VENDIDOS 82 A IRREVERSIBILIDADE DO MODELO 84 O ABANDONO DOS ESTUDOS INICIAIS 85 A NOVA CLASSE 86 D.SEBASTIÃO E A REUNIÃO DE CARAJÁS 87 LÁGRIMAS DEPOIS 89

AS FERRAMENTAS FINANCEIRAS DOS ANOS 90 90

OS GESTORES DE RECURSOS E A PRIVATIZAÇÃO 94 AS INSTITUIÇÕES DA GLOBALIZAÇÃO 95 AS AGÊNCIAS DE RISCO 96 A MANIPULAÇÃO DAS ANÁLISES 99 A LIÇÃO DE CASA E A TAXA DE RISCO 102 A RETÓRICA DOS “JURISTAS” 102 A FEIJOADA FINANCEIRA 103 A LIÇÃO DE CASA E AS EXPECTATIVAS SUCESSIVAS 105 “EM TODO LUGAR É ASSIM” 105 O TODO PELA PARTE 107 A FALÁCIA DOS “JURISTAS” ERROR! BOOKMARK NOT DEFINED.

CABEÇA DE PLANILHA 109

A PRIORIDADE ÚNICA ERROR! BOOKMARK NOT DEFINED.

O ÚLTIMO VÔO DA GARÇA 110

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O FETICHE DO SUPERÁVIT 110

O NOVO BRASIL 113

O NASCIMENTO DO NOVO CICLO 113 O NEO-DESENVOLVIMENTISMO EM GESTAÇÃO 113 A ERA VARGAS E A PERDA DE RUMO 114 O POVO BRASILEIRO 115 A DIPLOMACIA BRASILEIRA 116 O PAPEL DA GRANDE EMPRESA 117 A INOVAÇÃO COMO PARADIGMA 118 PESQUISA E DESENVOLVIMENTO 119 O INPI E AS PATENTES 120 O ATIVO SOCIAL DO SUS 121 O NOVO PLANEJAMENTO 121 A INTEGRAÇÃO CONTINENTAL 122 O INTERESSE NACIONAL 123 O PAPEL DO ESTADO NACIONAL 124 O VÔO DO FALCÃO 125 É A POLÍTICA, ESTÚPIDO 126

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Introdução

As etapas para o desenvolvimento

A primeira etapa do desenvolvimento: o café

A segunda etapa do desenvolvimento: a Abolição

Situação internacional: grandes descobertas tecnológicas.

Economia interna e monetização.

Sistema financeiro internacional e as grandes bolhas especulativas.

As mudanças financeiras Encilhamento

As ferramentas de especulação

Os financistas do Encilhamento e o capital externo

O governo Campos Salles.

Movimento tenentista e a moratória de 1933.

A redemocratização e o Plano Cruzado

Os novos financistas

Os "pirañas" financeiros.

O plano Collor e os efeitos sobre a poupança.

As primeiras privatizações.

A entrada de Marcílio.

Os preparativos do plano Real.

A tese de Gustavo Franco.

O plano Real

As ferramentas financeiras

A reforma monetária e o Príncipe

Os economistas financistas.

O novo Brasil e o Real

A inclusão de consumidores.

Os saltos da economia.

A situação mundial e a grande chance

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Em alguns momentos, na vida de uma nação, ocorrem terremotos políticos, geo-gráficos, que chacoalham estruturas sociais estratificadas, ampliam o mercado de consumo e de cidadania e, se bem aproveitados, permitem saltos históricos no de-senvolvimento de um país.

A rigor, esse processo ocorreu três vezes no Brasil.

O primeiro, no final do século 19. A Abolição e a política de atração de imigrantes criaram a oportunidade para o grande salto de inclusão social e de ampliação do mercado de consumo. Não houve políticas sociais de inclusão dos libertos; os imi-grantes não tiveram a posse da terra, demorando anos para acumular poupança e renovar os hábitos empresariais do país. Sem políticas de integração, em vez de novos cidadãos, se criou uma exclusão social que atravessou o século.

A segunda grande oportunidade ocorreu no final dos anos 60. O processo de indus-trialização gerou rápida urbanização das cidades. Uma violenta seca no Nordeste provocou enorme processo migratório. Mais uma vez, políticas de inclusão social teriam parido uma nova sociedade, uma nova oferta de mão de obra especializada, um novo mercado consumidor. O regime militar nada fez. O resultado foi a deterio-ração dos serviços públicos e a criação das megalópoles, onde hoje em dia se con-centra a maior parte da miséria nacional. Depois, o esgotamento do “milagre” se deu pela falta de um mercado interno vigoroso.

Com o plano Real, teve-se a maior chance da história, maior que o pós-Abolição, maior que nos anos 70. As conquistas tecnológicas das últimas décadas esparrama-ram-se por todos os setores. O avanço da logística e das comunicações implodiu a cadeia produtiva convencional das multinacionais. Elas passaram a distribuir suas fábricas pelo mundo e o Brasil seria o porto natural para os investimentos na Amé-rica do Sul.

O fim da inflação, por sua vez, permitiu que milhões de brasileiros emergissem da noite para o dia para o mercado de consumo de forma indolor, sem movimentos migratórios traumáticos, sem crises políticas desorganizadoras.

A explosão de consumo dos meses iniciais do Real atraiu os olhos do mundo. No final de 1994, havia projeções portentosas de crescimento da produção de bens de consumo duráveis e não duráveis, atraindo a atenção das maiores empresas do planeta.

Por volta de 1994 fui entrevistado pela equipe de uma televisão finlandesa que pre-parava um especial sobre o Brasil. Estranhei o interesse de um país aparentemente tão afastado do Brasil quanto a Finlândia. A resposta do jornalista foi que o Brasil era a bola da vez. “Vocês, a China, a Rússia e a Índia”. O conceito do BRICs come-çava a se consolidar.

Dez anos depois visitei a China. O que assisti em Xangai e Pequim foi inesquecível, o parto de uma potência. Esses dez anos haviam sido fundamentais para moldar o futuro da China. A lógica foi preparar uma espécie de projeto piloto de mercado, um mercado consumidor de 60 milhões de pessoas que serviam de chamariz inicial para o capital internacional. E 1,2 bilhão de excluídos como mercado potencial. À medida que os investimentos iam sendo realizados, integravam-se mais chineses ao mercado de consumo, criando mais atrativos para novos investimentos.

No Brasil, o sonho acabou em abril de 1995. Um profundo desequilíbrio nas contas externas, intencionalmente provocado pela equipe do plano Real, impediu o país de continuar crescendo. Com as contas externas em frangalhos, o Banco Central preci-sou aumentar as taxas de juros de forma explosiva. Houve um cavalo-de-pau na economia. Seguiu-se enorme processo de quebradeira do setor público e privado, e de crescimento exponencial da dívida pública.

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O país foi dividido em dois: o país dos dólares – que enriqueceu rapidamente apli-cando em títulos públicos – e o país do Real -- que foi sufocado, sem acesso a cré-dito, sem condições de rolar seus passivos, pagando cada vez mais impostos para garantir a remuneração dos rentistas.

Todos os alertas foram feitos já em 1994, mais ainda em 1995. Mas até 1999 se manteve intocada a política cambial. Depois, pelo segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e pelo primeiro mandato de Lula, o BC continuou aplicando as mais altas taxas de juros do planeta.

Mês após mês houve um refluxo do mercado, com os novos cidadãos voltando de novo para o limbo, para a zona cinzenta do baixo consumo e da baixa cidadania.

Ano após ano o foi sendo queimada a oportunidade histórica de dar um salto no seu processo de desenvolvimento. Da mesma maneira que no início da República, com a política econômica implementada por Rui Barbosa que resultou no episódio co-nhecido como o “Encilhamento” – pesado jogo especulativo, primeiro com ações, depois com câmbio, que matou por quatro décadas as oportunidades de crescimen-to da economia brasileira.

A vida de um país é formada por janelas de oportunidades. Elas permitem saltos, avanços, que, depois, vão sendo consolidados ano a ano, até o próximo salto, a próxima janela de oportunidades.

São esses momentos que colocam à prova a racionalidade das elites. A passagem para um novo paradigma exige a superação dos esquemas de poder tradicionais, exige discernimento na implantação dos novos centros de poder, para evitar que os novos privilegiados imponham seus interesses sobre os interesses maiores de país. Se a acumulação de riqueza do período é canalizada para investimentos produtivos, o país se desenvolve; patina se fica rodando em falso, nos investimentos meramen-te especulativos.

O que leva um governo, uma equipe de economistas presumivelmente preparados, a cometer erros bisonhos, facilmente detectáveis por seus contemporâneos, como foi o caso da apreciação do Real em 1994, ou da remonetização selvagem de Rui Barbosa em 1890? O que os leva a ignorar todos os alertas?

A intenção desse trabalho é demonstrar as incríveis semelhanças entre os dois momentos cruciais, talvez as duas maiores janelas de oportunidade que o país já experimentou: a reforma monetária de Rui Barbosa, no alvorecer da República, e o Plano Real, no final do século 20.

1. Ambos os momentos foram precedidos por intensas mudanças tecnológicas nos países centrais que, depois de maduras, passam a buscar os países periféricos. No século 19, as ferrovias, a iluminação a gás e outros avanços ligadas ao processo de urbanização que marcou o período. No século 20, a Internet, as telecomunicações, os novos aparelhos eletrônicos,a computação.

2. Essas descobertas criam a oportunidade para grandes movimentos especulati-vos, que induzem o sistema financeiro internacional à criação de novas ferramentas financeiras de captação de poupança. A especulação se dá pelo fato de que, sabe-se que as novas invenções serão dominantes no novo mundo, mas não se consegue avaliar as vitoriosas e qual o prazo de consolidação e o ritmo de crescimento delas. Essa incerteza abre espaço para os grandes movimentos especulativos. No século 19, foram conhecidas as bolhas em torno de ferrovias, navegação a vapor e outros empreendimentos; no século 20, em torno da Internet, das telecomunicações.

3. Nas duas épocas há uma aceleração dos fluxos de capitais no mundo. À medida que os movimentos especulativos crescem, bolhas são criadas, explodem, outras surgem. Quando os ciclos tecnológicos amadurecem nos países centrais, o grande capital volta os olhos para as economias emergentes. Passa a interferir no próprio processo político desses países, em busca do melhor ambiente para o grande capi-tal, que é o da pax universal. Em meados do século 19 esse movimento é iniciado

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pelos Rotschilds de Londres, comandando a Pax Britânica; no século 20 o movimen-to começa com a desvinculação do dólar do ouro, no governo Nixon, em 1972, ace-lera-se com o fim da União Soviética, e é comandado basicamente pelo Citibank, seguido dos grandes bancos de investimento norte-americanos.

4. Para que esse movimento seja maximizado, há a criação de uma ideologia de defesa do livre fluxo de capitais, da interferência política nos países periféricos (pa-ra impedir a eclosão de guerra ou o não cumprimento de contratos), da cooptação de quadros técnicos, políticos e econômicos, como associados menores desse capi-tal. Esses quadros técnicos atuam especialmente em duas frentes: na regulamenta-ção da economia e na garantia de livre fluxo cambial.

5. Tem-se uma paz duradoura no período, comandada pelo grande capital. A utopia fascina. Imagina-se que, à medida que os países centrais vão se desenvolvendo, os custos vão se tornando elevados, e o capital transbordaria para países periféricos universalizando o desenvolvimento. Bastaria, portanto, um ambiente favorável ao capital financeiro, livre circulação de capitais, que o desenvolvimento viria por si só.

Em meados do século 19, a teoria em voga era a das vantagens comparativas. Ca-da país deveria se fixar naquilo que deveria ser sua vocação histórica – um princí-pio que condenava os produtores de matérias primas a se manterem assim até o final dos tempos.

No final do século 20, vingou a teoria do capital externo como provedor de poupan-ça para os países emergentes. Bastaria criar as condições adequadas à sua atração, que o desenvolvimento se produziria automaticamente.

Em ambas as ocasiões os emergentes que seguiram o receituário clássico torna-ram-se reféns de crises cambiais freqüentes. No final do século 19 representada pela quebra do Banco Bahrings, que provocou uma forte crise cambial na Argenti-na, rebatendo imediatamente no Brasil. No final do século 20, com o Brasil afetado sucessivamente pelas crises do México, Ásia, Rússia até explodir o modelo cambial no início de 1999.

6. Em ambos os períodos, há a ampliação do processo de industrialização. No sécu-lo 19, com o capital inglês transbordando e permitindo a industrialização tanto dos EUA quanto da Europa. No final do século 20 com a implosão da cadeia produtiva das grandes multinacionais, em um movimento de implantação de grandes unida-des em alguns países-chave, particularmente nos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China).

Mas, curiosamente, só crescem os países que não seguem as regras preconizadas pelas grandes potências. Quem se abre para o livre fluxo de capitais e de comércio, não consegue se desenvolver. Nos dois momentos já havia um conhecimento sis-tematizado sobre os passos dados por países que lograram alcançar o desenvolvi-mento. Mas esse conhecimento é sufocado pela atoarda ideológica dos que defendi-am o livre fluxo de capitais.

7. Em ambos os momentos, o Brasil perde o bonde. No final do século 19 com o episódio conhecido como o “Encilhamento”; no final do século 20, com a apreciação do Real. Houve uma mesma lógica explicando os dois episódios e, em ambos os momentos, crises cambiais que ajudam a precipitar o desastre.

Nos dois episódios, o processo-chave a ser desvendado é o da “remonetização” da economia. Isto é, o processo de injeção de moeda na economia de forma maciça, processo de reforma monetária que se repete poucas vezes na história e que confe-re a seus formuladores poderes discricionários. Se utilizados com sabedoria e patri-otismo, mudam a face dos países; se se deixam prevalecer os interesses individu-ais, matam por gerações as chances de desenvolvimento.

É isso o que procuraremos sintetizar no próximo capítulo.

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No século 19 o fechamento econômico havia produzido, no Brasil, uma classe agrá-ria anacrônica; no final do século 20, uma classe industrial mal acostumada. Com esse movimento de abertura, com a economia mundial mergulhando em processos agudos de liberalização financeira, surge uma nova classe, internacionalizada, do-minando as últimas ferramentas financeiras. São os “financistas”, no século 19 re-presentada pelo Barão de Mauá, Conselheiro Mayrink, Conde de Figueiredo, Conde de Leopoldina; no final do século 20, pelos bancos de investimento que surgem nos anos 80, como o PEBB, Garantia, Icatú, Pactual.

Nos dois momentos, havia uma economia nacional que começava a se integrar ao mundo, grande liquidez internacional, uma situação excepcional na economia mun-dial, e um paradoxo brasileiro: um enorme potencial a ser explorado no mercado interno e uma poupança acumulada no período anterior, empoçada ou meramente preocupada com ganhos especulativos por falta de um ambiente de negócios favo-rável.

Externamente, havia um volume expressivo de capitais brasileiros no exterior --uma mistura de sub-faturamento das exportações, corrupção política, crime organi-zado e caixa dois—que florescia sob os ventos dos novos mecanismos financeiros criados para alavancar as novas modalidades de negócios. No século 19, a poupan-ça liberada pela Lei Eusébio de Queiroz, que proibiu o tráfico negreiro; no século 20, os enormes ganhos especulativos proporcionados pela inflação dos anos 80.

Nos dois momentos, há uma confluência inédita de fatores, abrindo a possibilidade de notável expansão no mercado de consumo. No século passado com a Abolição e a política de importação de imigrantes cria-se um novo mercado interno com enor-me potencial. No final do século 20 com os milhões de brasileiros que ingressam no mercado de consumo nos primeiros meses do Real, abre-se a possibilidade de um enorme salto no mercado consumidor.

Por outro lado, o crescimento dos países centrais provoca o transbordamento de capitais produtivos para países que privilegiam o mercado interno. No século 19, capitais ingleses ajudam na industrialização dos Estados Unidos; no século 20, capi-tais americanos se voltam para a Ásia e para a China.

Em ambos os momentos, no Brasil, há a necessidade de uma remonetização da e-conomia, isto é, de uma política de aumento das emissões monetárias para atender às novas demandas da economia: no final do século 19, devido à mudança nas re-lações do campo, com a substituição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado; no Plano Real, com o fim da inflação e a substituição de uma moeda inflacionada (o cruzeiro) por uma nova moeda, o real.

A nova etapa de desenvolvimento depende de movimentos prévios bem sucedidos. O primeiro, da criação de um ambiente favorável à realocação da poupança interna e do investimento externo. O sucesso desse movimento depende de dois fatores: uma nova regulação, que prepare a economia para as novas formas de negócio in-ternacionais; e uma remonetização adequada, que canalize a poupança para a ati-vidade produtiva.

Só que o controle sobre a remonetização confere um poder inédito aos seus condu-tores. Nos dois momentos – no “Encilhamento” e no Plano Real --, os interesses individuais se sobrepuseram aos interesses de país. Em lugar do salto de cresci-mento, houve concentração de renda, rentismo desbragado, aumento geométrico da dívida pública e estagnação da economia.

Essa é a chave para se entender os dois momentos: a remonetização, o poder con-ferido às autoridades econômicas e políticas para definir de que maneira o novo di-nheiro fluirá para a economia. É aí que se dá o pacto de poder e de dinheiro entre

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os novos grupos hegemônicos, os condutores da política econômica, o poder finan-ceiro e o poder político.

Nos dois momentos os personagens são os mesmos. Mudam apenas os atores.

Os personagens da história

Rentista – é o personagem passivo (ou não) da história. É o detentor do grande capital nacional, que vai atrás de rentabilidade para ele. No século 19 eram ex-traficantes de escravos, comerciantes que enriqueceram com exportação de café ou de algodão, políticos ou advogados com influência nas políticas públicas. Mantinham seus recursos entesourados no país; os mais sofisticados, aplicavam na praça lon-drina. Nos anos 90, especuladores que enriqueceram na década de 80, com os grandes movimentos agressivos do mercado de capitais e da dívida pública brasilei-ra, políticos ou funcionários públicos que enriqueceram com grandes golpes permi-tidos pelo processo inflacionário; empresários que venderam suas empresas e re-solveram viver de rendas. No final dos anos 80 há início um processo de internacio-nalização dessa poupança, com os recursos sendo depositados inicialmente em bancos suíços e, depois, em paraísos fiscais preferencialmente do Caribe.

Financista – são os donos de bancos de investimento que atuam para o grande capital rentista, têm contato com o grande capital internacional, e aprenderam as novas formas de engenharia financeira. No final do século 19 os nomes mais ilus-tres são o Conde de Figueiredo, o Conselheiro Mayrink, o Conde de Leopoldina. Nos anos 80, um conjunto amplo de corretoras que se transformam em bancos de in-vestimento. Dentre eles, os mais destacados são o PEBB, Garantia, Pactual, Icatu, Bozzano Simonsen. Nos anos 90 entram em cena o Opportunity, o Matrix, o BBA.

Político – tem papel fundamental para definir o ambiente regulatório adequado ao financista e ao rentista. Depende do rentista como financiador de eleições; do eco-nomista como formulador das bandeiras de campanha. No alvorecer da Republica, ante a alienação do Marechal Deodoro, a figura-chave é o primeiro Ministro da Fa-zenda republicano, Rui Barbosa. No Plano Real, ante a alienação de Itamar Franco, o Ministro da Fazenda e depois presidente Fernando Henrique Cardoso dá as cartas.

Economista – o formulador de política econômica. É o peão, o sujeito que faz o meio campo entre os interesses dos financistas e dos políticos. Em geral, estudou fora ou tem conhecimento das últimas teorias econômicas, e das últimas práticas regulatórias. O conhecimento que traz de fora, em linha com o último pensamento econômico, ou com a ideologia dominante, fornece o discurso de que carece o polí-tico para se legitimar perante a opinião pública. Seu conhecimento técnico definirá o modelo regulatório ou de monetização que atenda aos interesses dos financistas e dos rentistas. Ele cumpre seu papel no governo e se torna sócio menor dos finan-cistas. Foi o caso de Rui Barbosa, no “Encilhamento” e de praticamente todos os economistas que ajudaram na formulação do Plano Real.

A “haute finance”—designação do economista Polanyi para o grande capital fi-nanceiro que começa a se organizar em meados do século 19, no primeiro grande ciclo de liberalização financeira e passa a intervir decididamente na vida das na-ções, visando criar o ambiente adequado para os negócios. Na primeira etapa, no final do século 19 o predomínio era dos bancos ingleses, capitaneados pelos Rots-child; na segunda, no final do século 20, da banca norte-americana, lierada pelo Citibank.

Ferramentas de poder

Havia três ferramentas poderosas das quais se valeram os economistas brasileiros para exercer o poder e abrir caminho rumo à fortuna pessoal: a remonetização, permitindo a acumulação de renda nas mãos do grande capital, a regulação da economia, criando o espaço favorável para o desenvolvimento do grande capital, e

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a administração da dívida pública, como o grande lócus onde iria ocorrer a transferência de renda dos demais setores da economia para o capital rentista.

No governo Deodoro, o movimento se dá em torno das grandes concessões ferrovi-árias, de serviços públicos ou de terras para colonização. No governo FHC, na pri-vatização e no crescimento descontrolado da dívida pública.

Rui Barbosa viu na reforma monetária a possibilidade de beneficiar grupos específi-cos --e de ser beneficiado por eles. Beneficiou especialmente o Conselheiro Francis-co de Paula Mayrink e saiu do governo sócio de três mpresas dele.

Do lado dos economistas do Plano Real, o processo foi semelhante. Eles surgem no bojo do Plano Cruzado, voltam com o Plano Real e implementam a troca de moe-das. Deparam-se, nesse trabalho, com o negócio do século: a reciclagem da pou-pança brasileira que, desde meados dos anos 80, se internacionalizara.

Esses momentos permitem redesenhar o futuro não só econômico como político dos países. Defina-se por onde circulará o novo dinheiro e se definirá quem serão os novos vitoriosos da economia.

Se se decidisse remonetarizar pela não rolagem da dívida pública, por exemplo, ha-veria uma esplêndida redução do endividamento – que já havia sido bastante redu-zido pelo bloqueio de cruzados do Plano Collor.

Decidiu-se pela remonetização através da captação externa de dólares, que aqui eram adquiridos pelo Banco Central através da emissão de reais.

Em todo processo de estabilização usando como âncora o câmbio, há a preocupa-ção em criar uma gordura, uma desvalorização cambial inicial que propicie fôlego para a estabilização. Depois do início do plano, o câmbio tem que permanecer está-vel para sinalizar para a nova estrutura de preços, e permitir a importação de pro-dutos sujeitos a altas especulativas. Por isso a gordura inicial é essencial.

A cada dia que passa, há uma inflação interna não inteiramente domada, que é re-passada para os preços dos produtos exportados. Sem possibilidade de compensar com o câmbio, ocorre um encarecimento dos produtos internos vis-a-vis os produ-tos externos. Há uma redução das exportações, um aumento das importações, com a perspectiva de um estrangulamento cambial a médio prazo. Daí a necessidade de se criar uma gordura inicial no câmbio, para permitir uma folga que suporte o perí-odo de transição da estabilização.

Com o Plano Real, em vez dessa precaução, tratou-se de apreciar o Real em 15% da noite para o dia. Não se tratava apenas de criar um garantia extra, ainda que exagerada contra a inflação. Sem oficialmente consultar ninguém da equipe, a e-xemplo de Rui Barbosa quando anunciou os beneficiários de sua política monetária, Gustavo Franco tomou a decisão solitária de apreciar o câmbio em níveis irreais. O único aplauso foi de Mário Henrique Simonsen, guru maior do grupo, e membro do Conselho Internacional do Citibank.

Em seguida, especialmente Edmar Bacha e Gustavo Franco, passaram a difundir a necessidade de criação de déficits em contas correntes, que permitisse atrair pou-pança externa, que ajudaria a complementar a poupança interna e a pavimentar o caminho do crescimento. Tratava-se de um princípio econômico falso (cujos funda-mentos discutiremos mais adiante), mas que serviu de álibi para a apreciação cam-bial.

No início do plano Real a balança comercial exibia um superávit anual de US$ 14 bilhões. No segundo semestre de 1994, todas as imprudências foram cometidas pa-ra reverter esse quadro. Além da apreciação cambial, derrubaram-se tarifas de im-portação, facilitou-se até a importação pelo correio.

Para que o modelo de remonetização via ingresso de capitais externos fosse bem sucedido, isto é, para que criasse uma nova elite financeira e política, havia a ne-

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cessidade de transformar o dólar em ativo escasso. Quanto mais escasso o dólar, maior a taxa de juros para atraí-lo.

No final do ano, as contas externas estavam desequilibradas e tinha se alcançado o objetivo de tornar o dólar um ativo raro, pelo qual o Tesouro chegou a pagar 45% ao ano.

Quem dominava o circuito de captação de dólares passou a deter o poder. Quem não dominava, quebrou. Com o golpe da apreciação, em poucos meses criou-se uma enorme dependência de dólares. Com essa manobra simples, aparentemente asséptica, estava definido o jogo, sem expor o flanco ao inimigo, como com Rui Barbosa, quando escolheu nominalmente os vencedores do jogo da remonetização.

Quem comandou o movimento de atração de dólares foram os novos bancos de in-vestimento. A maior parte dos recursos externos captados era do grande capital brasileiro exportado nos anos anteriores. Em menos de um ano, a crise de inadim-plência quebrou a espinha dorsal da indústria e da agricultura.

Em vez de esterilização da dívida pública, houve crescimento exponencial para re-munerar os fluxos de capitais externos. Foi nesse ambiente da dívida pública que se processa a maior transferência de renda da história.

No Encilhamento e no Real houve especulação enriquecimento de poucos, concen-tração de renda e – pior – mataram-se as duas maiores janelas de oportunidade que a história do país registrou.

Politicamente, o processo tem um discurso legitimador, não explicitado, uma espé-cie de código tácito entre seus operadores. O país tem uma classe empresarial ana-crônica, um operariado despreparado, não tem quadros tecnológicos disponíveis? Simples, escolhe-se uma classe internacionalizada – os financistas – com experiên-cia em novos modelos de negócios, acesso ao grande capital interno-exportado e internacional, e lhes entregue as ferramentas para se transformar nos agentes de modernização. Na interpretação de San Tiago Dantas, Rui Barbosa teria tentado “libertar forças novas que substituíssem a estrutura agrária e feudal do Império”.

Com o tempo, os interesses particulares se sobrepõem ao geral. Cria-se um proces-so econômico torto, adaptado aos interesses de grupos, supondo-se que o novo modelo colocará a economia em um círculo virtuoso, capaz de corrigir sozinha as concessões iniciais. Depois, o projeto vai se entortando mais e mais, a sobrevivên-cia dos beneficiários passa a exigir novas gambiarras, que acabam por entortar mais o que torto está. Novos grupos de interesse se solidificam rapidamente sobre os alicerces tortos do modelo inicial.

Os pontos centrais do fracasso são comuns a todos esses movimentos especulati-vos. Primeiro, o deslumbramento com a riqueza fácil, criando uma espécie de lassi-dão moral nos economistas, que passaram a subordinar todas as decisões de políti-ca econômica aos interesses imediatos do capital rentista.

As demonstrações de novo-richismo no período não ficam atrás do ambiente descri-to pelo Visconde de Taunay em seu romance “O Encilhamento”. Todos da classe média, alguns ex-funcionários públicos, um se torna piloto de corrida e criador de cavalos, outro convida para degustação de vinhos em sua casa, através de colunas sociais, todos, em algum momento, tornam-se sócios de bancos de investimento, seguindo o exemplo de Rui Barbosa.

O segundo ponto, conseqüência do primeiro, foi a escolha dos financistas que co-mandaram o processo. Com os interesses pessoais se sobrepondo aos nacionais, levou quem se articulou melhor.

O terceiro, a falta de um estadista para corrigir o errado. Não há como construir uma nação sem uma profunda profissão de pé nos seus habitantes, e sem raciona-lidade.. Napoleão e Caixas dormiam com seus soldados, Franklin Roosevelt celebra-va a força do americano comum. FHC nunca ocultou seu deslumbramento com os salões e seu desprezo com sua missão de “comandar o atraso”. Esse temperamento

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explica a falta de vontade em corrigir as distorções e o fato do desenvolvimento in-terno jamais ter se tornado prioridade em seu governo.

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“““CCChhhuuutttaaannndddooo aaa ppprrróóóppprrriiiaaa eeessscccaaadddaaa”””

O exemplo americano

No final do século 19, já havia uma consciência nacional sobre os modelos de de-senvolvimento bem sucedidos no mundo. Manoel Bonfim, o grande médico-psicólogo-historiador sergipano, autor do fundamental “América Latina, Males de Origem” mostrava um claro diagnóstico sobre o processo de desenvolvimento dos Estados Unidos, Japão e Argentina.

Em meados do século 19, o economista alemão Friedrich List havia escrito uma o-bra seminal, identificando o processo de desenvolvimento das nações, do momento em que são constituídas ao momento em que se tornam hegemônicas, ou que se perdem pelo caminho.

O grande exemplo da elite brasileira eram os Estados Unidos, embora a influência britânica persistisse até a década de 1930. De lá vinham as modas do mercado de capitais, da legislação tributária, o exemplo da independência. Havia um movimen-to irresistível de aproximação com os EUA, até como reação à influência britânica.

Em 1792, o Secretário do Tesouro norte-americano, Hamilton, apresentou o “Re-port of Manufactures”, onde propunha a defesa das manufaturas norte-americanas, em reação ao protecionismo que havia na Europa.

As tarifas iniciais foram insuficientes. Além disso, havia latente o conflito norte-sul. O norte, industrializado, demandava proteção; o sul, consumidor, reclamava do en-carecimento dos produtos. Mas em 1808, com a guerra explodindo, o comércio com a Europa foi interrompido. Em um ano o número de indústrias têxteis saltou de 8 para 31 mil. Embora ainda tímida, a defesa tarifária logrou estimular a manufatura interna.

Com seu pragmatismo, os EUA queriam segurança, que as manufaturas viessem se instalar perto dos agricultores, para prevenir o desabastecimento em caso de guer-ra.

A discussão estava acesa quando, em 30 de julho de 1827, durante a Convenção Nacional dos Protecionistas de Harrisburg, surge a voz poderosa de Friedrich List (1789-1846), economista alemão exilado de seu país por causa de suas idéias, que contrariavam o pensamento dominante de Adam Smith e Ricardo, com sua teoria das vantagens comparativas. Pela teoria, cada país deveria se fixar nos produtos em que pudesse obter vantagens claras. Dessas especializações sucessivas se teria um mundo cosmopolita, integrado e mais eficiente.

Adam Smith e J.B.Say diziam que, da mesma forma que a Polônia, os Estados Uni-dos estavam destinados à agricultura, aproveitando o que natureza lhe oferecera.

List se insurgia contra esses conceitos. Na Alemanha, sua atuação foi decisiva para a criação da união aduaneira dos estados alemães, início do futuro grande império alemão, e também para seu exílio, por seu estilo contundente de polemizar.

Nos EUA, seu papel foi fundamental para consolidar os princípios defendidos por Hamilton, conferindo-lhe consistência técnica. Publicou doze cartas no Philadelphia National Journal, muitos anos depois, em 1841, juntadas no livro “Sistema Nacional de Economia Política”.

Pela primeira vez, eram sistematizadas experiências nacionais de desenvolvimento e se rompia com um pensamento dogmático e esquematizante que se seguiu ao livro “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith. A essa altura, Adam Smith, Quesnais e Ricardo iniciavam a construção da economia, como ciência. Os valores do livre comércio eram cantados com ênfase, trazendo o ideal da universalização dos negó-cios e das nações.

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List partia da análise da realidade, das experiências históricas, para lançar as bases da nova Economia Política. No prefácio à primeira edição, descrevia a maneira como desenvolveu sua metodologia. Ainda estavam vivos em sua memória os ganhos que França e Inglaterra haviam obtido com o livre comércio, a primeira abolindo as tari-fas alfandegárias internas, a segunda unificando três reinos na Grã-Bretanha. Por-que com outros países não ocorria esse ganho?

O “insight” de List foi o de que os princípios de livre comércio de Adam Smith fun-cionavam maravilhosamente bem, mas só na hipótese de que todas as nações ob-servassem entre si os princípios de livre comércio em igualdade de condições.

Para List, a teoria econômica levava em consideração apenas a humanidade como um todo e os indivíduos. Mas entre o indivíduo e a humanidade havia as nações. Em um ponto qualquer do futuro, a humanidade chegaria na situação de que todas as nações convergiriam para uma única federação. Mas, enquanto esse ponto não avançasse, não se poderia considerar o livre comércio como uma saída – especial-mente para as nações mais fracas.

O livre comércio entre duas nações civilizadas só poderia ser mutuamente benéfico se ambas estivessem em um mesmo patamar de desenvolvimento industrial. Qual-quer nação que estivesse atrasada em relação a outra, do ponto de vista industrial, comercial e naval, mesmo possuindo meios materiais e humanos para se desenvol-ver, deveria, antes, aparelhar-se para entrar na livre concorrência com nações mais desenvolvidas.

Em 1840 List previa que em breve os EUA se tornariam o maior país do mundo. A razão, segundo ele, é que, dotada de espírito pragmático, a elite norte-americana não se conformara com a teoria das vantagens comparativas.

Se os EUA fossem seguir os ensinamentos de Adam Smith e apostar apenas em su-as vantagens agrícolas, dizia List, a população norte-americana teria se espalhado por todo o país, se diluído, sem a menor possibilidade de se formar um mercado interno forte, capaz de alavancar a industrialização.

Ao contrário, com a Lei dos Têxteis, de Hamilton, os EUA passaram a proteger sua indústria nascente, a concentrar a população na costa Atlântica e a gerar massa crítica para iniciar a industrialização. Depois, uma política inteligente de distribuição de lotes a imigrantes ajudou na consolidação da moderna agricultura norte-americana, superando o modelo agrícola anacrônico do sul.

Simultaneamente, grandes ferrovias passaram a integrar todo o país, permitindo a ligação do Atlântico com o Pacífico, fugindo do controle severo que a Inglaterra e-xercia sobre o comércio marítimo do Atlântico. No final do século 19, os EUA já despontavam como grande potência mundial, e era modelo para muitos brasileiros lúcidos, como o próprio Manoel Bonfim.

O exemplo inglês

A estratégia inglesa servia de comprovação para as teses de List. A Inglaterra tor-nou-se a maior potência da época por ter evitado o erro de abrir seu mercado antes da hora. No início, a base de sua economia era vender lã de ovelhas em estado bruto para a Bélgica, onde eram tingidos e trabalhados. Sob o reinado de Carlos I e Jaime I houve proteção à produção inglesa. Em breve, a indústria têxtil se consoli-dou, a Inglaterra passou a exportar tecidos finos, de valor agregado, e a importar pouquíssimo.

Até Jaime I, as exportações de manufaturados de lã respondiam por 9/10 das ex-portações inglesas. Com a proteção à sua indústria, a Inglaterra conseguiu expulsar as exportações da Liga Hanseática para a Rússia, Suécia, Noruega e Dinamarca. Conseguiu lucros enormes no comércio com Orienta e as Índias Orientais e Ociden-tais. A indústria da lã estimulou a mineração do carvão que, por sua vez, deu ori-

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gem ao extenso comércio pesqueiro e à pesca, os dois últimos servindo de base à montagem do poderia naval britânico, consolidado nas Leis de Navegação.

Duramente criticadas por Adam Smith, as Leis de Nanegação davam exclusividade para os navios ingleses no transporte de carvão e todo transporte comercial marí-timo.

Outros setores de manufaturas foram protegidos. No reinado de Isabel, foram proi-bidas importações de artigos de metal e de couro, e foi incentivada a migração de mineiros alemães e trabalhadores em metal (List, 33). Também proibiu a constru-ção de navios fora do pais e estimulou a vinda de trabalhadores especializados.

Para concorrer com a pesca de arenque dos holandeses e com a pesca da baleia dos moradores de Biscaia, Jaime I chegou a exortar os ingleses a aumentar o con-sumo de peixe. Finalmente, artesões protestantes expulsos da Bélgica e da França foram acolhidos pela Inglaterra e, em troca, lhe deram a excelência na manufatura de lã fina, na fabricação de chapéus, linho, vidro, papel, seda, relógios de parede e de pulso, manufatura metalúrgica.

Em cada país europeu a Inglaterra foi buscar o que tinha de melhor. Depois, im-plantou sua própria manufatura, à custa de proteção alfandegária e estímulos de diversas naturezas. O aumento da marinha mercante permitiu a construção de uma marinha de guerra que ajudou a derrotar os holandeses.

As conseqüências maiores das Leis de Navegação foram as seguintes (List, 34):

1. A expansão do comércio inglês com todos os reinos nórdicos, Alemanha e Bélgi-ca, comércio do qual os ingleses haviam quase totalmente sido excluídos pelos ho-landeses até 1603. A lógica implacável dos ingleses era a de importar matérias primas e exportar manufaturados.

2. Expansão incalculável do comércio de contrabando com a Espanha e Portugal, e com suas colônias das Índias Ocidentais.

3. Aumento substancial da pesca de arenque e da baleia, atividades antes quase completamente monopolizadas pela Holanda.

4. Conquista da mais importante colônia inglesa nas Índias Ocidentais, a Jamaica, em 1655, permitindo o controle sobre o comércio açucareiro na região.

5. Conclusão do Tratado de Methuen (em 1703) com Portugal, que assegurou uma vantagem inquestionável para a Inglaterra.

List chamava particularmente a atenção para a maneira habilidosa como os ingleses casaram seus interesses em Portugal e na Índia. E produziu uma obra prima de sín-tese, mostrando as peças em jogo no Tratado de Methuen. Primeiro, a maneira co-mo a Inglaterra atuou em cima das condições dadas. Segundo, o que teria ocorrido se tivesse seguido os ensinamentos de Adam Smith e Ricardo.

Desde 1721, na abertura do Parlamento daquele ano, o rei Jorge I havia explicitado a estratégia inglesa: “É evidente que nada contribui tanto para o bem-estar público quanto a exportação de produtos manufaturados e a importação de matéria-prima do estrangeiro”. Mais do que uma teoria vaga, a Inglaterra montou sua estratégia em cima desse princípio vital.

Havia quatro blocos de países em jogo.

A Inglaterra, com sua manufatura em expansão e o domínio do comércio do Atlân-tico, com as Índias Orientais e Ocidentais.

Portugal tinha metais que interessavam a Inglaterra, e uma indústria de vinhos.

A Índia tinha uma indústria têxtil poderosa, mais articulada que a inglesa, e outras manufaturas desenvolvidas. Mas tinha carência de ouro.

A Inglaterra não queria importar manufaturas indianas, por serem mais competiti-vas que as suas. Mas havia demanda por produtos indianos em outros países da

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Europa que, por sua vez, produziam matérias primas que interessavam à Inglater-ra.

O acordo com Portugal, firmado pelo embaixador britânico Paul Methuen previa os seguintes pontos:

1. A Inglaterra permitiria a importação de vinhos portugueses com tarifas alfande-gárias equivalentes a 1/3 das tarifas de países concorrentes.

2. Portugal consentiria em importar roupas e tecidos ingleses com taxas alfandegá-rias de 23%, mesma alíquota cobrada antes de 1684, quando Portugal se tornou protecionista.

Para o rei de Portugal, o acordo interessava pela possibilidade de aumento das re-ceitas alfandegárias. Da parte da nobreza portuguesa, havia aumento da renda pelo aumento das exportações de vinhos. A rainha Ana da Inglaterra saudou Portugal como “seu mais antigo amigo e aliado”, “baseado no mesmo princípio pelo qual o Senado romano, antigamente, outorgava títulos aos governantes que cometiam a imprudência de estreitas relações comerciais com o império”, como lembra List (List, 47).

Imediatamente após o acordo, houve uma inundação de manufaturas inglesas que praticamente arrebentou com a indústria portuguesa. A Inglaterra recorreu a todos os expedientes, inclusive colocando produtos sub-faturados, para pagar menos ta-xas alfandegárias. Na outra ponta, levou toda prata e ouro de Portugal.

O Oriente tinha uma manufatura avançada de lã e algodão. Se abrisse as importa-ções de lã e seda aos produtos da Índia, a manufatura inglesa teria sido liquidada. Não interessava à Inglaterra importar produtos de valor agregado. O que ela fez então? Exportava suas manufaturas para Portugal e recebia o ouro e prata em pa-gamento. Com eles, adquiria os produtos do Oriente e vendia para o mercado eu-ropeu, mas na Inglaterra eles não entravam. Dos países europeus a quem vendia os produtos indianos, os ingleses adquiriam matérias primas que serviram para a-limentar sua manufatura.

Essa posição da Inglaterra foi insensata, indagava List? De acordo com os princípios de Adam Smith e da Teoria dos Valores de J. B. Say, sim. Teria sido loucura fabri-car internamente produtos mais caros, e ceder aos países do continente os produ-tos mais baratos adquiridos da Índia. No entanto, a Inglaterra se transformou na potência hegemônica do período. Isso porque não estava interessada simplesmente em adquirir artigos manufaturados de baixo custo e perecíveis, mas adquirir a “for-ça de produção”.

Com essa estratégia, a Inglaterra conquistou um poder sem paralelo; os demais países, que adquiriram manufaturas mais baratas, não se desenvolveram.

List lembrava que no capítulo 6º de seu Livro 4º, Adam Smith criticava acerbamen-te o tratado. Alegava que os portugueses levavam uma vantagem decisiva, ao ex-portar vinhos a taxas alfandegárias inferiores a seus concorrentes.Enquanto isto, os ingleses exportavam tecidos pagando taxas alfandegárias quase iguais a de seus concorrentes.

Os ingleses não auferiram nenhuma vantagem especial com o tratado, continuava Adam Smith, pois eram obrigados e enviar para outros países grande parte do ouro que recebiam de Portugal, pelas exportações de seus tecidos. Nesses países, eram obrigados a trocar o ouro por produtos locais.

Logo, teria sido muito mais vantajoso para a Inglaterra trocar diretamente seus te-cidos por produtos portugueses que necessitavam. Haveria uma única troca, em vez das duas, embutidas no acordo com Portugal.

Essa lógica linear não correspondia aos fatos reais, bradava List. Antes, Portugal importava grande parte dos artigos estrangeiros da França, Holanda, Alemanha e Bélgica. A partir do Tratado, os ingleses passaram a comandar o mercado portu-

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guês para um produto manufaturado, de cuja matéria prima ela, Inglaterra, era au-to-suficiente.

Além disso, o enorme superávit inglês provocou um desequilíbrio nas taxas de câmbio. A valorização da libra frente à moeda portuguesa fez com que os preços dos produtos portugueses chegassem 50% mais baratos aos consumidores ingle-ses. Com isso, praticamente acabaram as exportações de vinhos franceses e ale-mães na Inglaterra.

O ouro e prata de Portugal garantiram à Inglaterra acesso aos produtos indianos, com que inundaram a Europa, arruinando as manufaturas portuguesas. Todas as colônias portuguesas, especialmente o Brasil, se transformaram em feudos ingle-ses.

Era um jogo extraordinariamente complexo, sofisticado, fulminante, para caber a-penas nas regras gerais da nova ciência que surgia, a economia.

Nas relações comerciais, a Inglaterra era impiedosa. Em todos os tratados comerci-ais concluídos pelos ingleses, havia a tendência de incluir a venda de seus produtos manufaturados, oferecendo vantagens aparentes de troca por matéria prima e pro-dutos agrícolas. Em todos os casos, oferecia financiamentos e produtos mais bara-tos, visando destruir as manufaturas concorrentes. Além dos tratados, os ingleses se especializaram em fraudar a alfândega e em estimular o contrabando.

Com o bloqueio continental de Napoleão, pela primeira vez as manufaturas alemãs e francesas começaram a registrar progressos importantes e que se generalizaram. Com a volta da paz, a manufatura inglesa voltou, retomando a antiga primazia e destruindo as indústrias concorrentes.

O exemplo da Argentina1

De 1880 a 1910, em apenas vinte anos os argentinos transformaram um país qua-se selvagem, com um terço do território ocupado por índios, sem moeda própria, sem presença no comércio internacional na primeira potência a emergir do hemisfé-rio sul, um dos quatro maiores PIBs do mundo, o maior exportador de cereais do planeta, o segundo maior exportador de carnes, após os Estados Unidos.

Quando se consumou o processo de integração do país, até então dividido por guer-ras intermitentes entre as províncias, Buenos Aires se transformou em capital de fato. A província de Buenos Aires mudou sua capital para La Plata, e as rendas da aduana passaram a ser nacionais. Sob a presidência de Juan Roca, criava-se uma Nação e, tocando o projeto nacional, um Estado com receita própria, exército na-cional (assim como o nosso, que se profissionalizou na guerra do Paraguai). Calhou, nesse momento, o aparecimento de uma elite racional, com um projeto de país.

A base do pensamento estratégico havia sido fornecida, anos antes, pelo advogado Juan Bautista Alberdi, que defendia a imigração controlada. Haveria o estímulo aos imigrantes, a garantia de propriedade, de acesso aos bens públicos, inclusive do ingresso no serviço público. Apenas não lhes facultava provisoriamente o direito de eleitor. A visão de Alberdi era a de que os imigrantes gradativamente inoculariam a sociedade argentina com os valores do trabalho de seus países de origem e, após algumas décadas, com o país civilizado, haveria reformas políticas que completari-am o processo.

Mais que isso, através da criação do Conselho Nacional da Educação em 1882, de-cidiu-se universalizar o ensino gratuito. Os pais eram obrigados a colocar os filhos na escola, as províncias mais pobres eram ajudadas pelo governo central.

No plano econômico, teve início a grande “revolução dos Pampas”, a ocupação de grandes áreas, muitas quase desérticas, dominadas pelos índios, primeira tentativa de agricultura organizada no país. O exército ia à frente abrindo espaço. Inovações tecnológicas garantiam os saltos de produtividade. A primeira foi a cerca, que per-

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mitiu confinar o gado e preservar a lavoura, transformando a região, ao mesmo tempo, em produtora de carne e grãos. Outra foi o moinho de vento, importado da Austrália, que extraía água do subsolo, acabando com a dependência de rios ou la-gos, e ampliando as terras agricultáveis. Na mesma época, o campo começa a re-ceber as primeiras máquinas a vapor.

Quando um francês inventou o frio artificial, e surgiram os primeiros navios frigorí-ficos, a Argentina explodiu como exportadora de carnes para a Europa. No início do século já era o maior exportador de cereais e o segundo maior exportador de car-nes do mundo, atrás dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, uma política protecio-nista racional ajudava a fortalecer a indústria de vinhos de Mendoza e a açucareira de Tucumã.

As raízes ibéricas plantaram as sementes das crises posteriores que liquidaram com os sonhos de potência dos argentinos. As terras conquistadas ficaram nas mãos dos tarratenientes –oficiais do exército que se apossaram delas e que, na maior parte, viviam do arrendamento aos imigrantes. Estratificou-se a propriedade da terra, o grupo dos fundadores da nacionalidade envelheceu morreu, ficando elite predadora, enriquecida, deslumbrada pela rapidez com que tudo foi conquistado.

Depois, em 1930 ocorreu o primeiro golpe de Estado. Mas as raízes plantadas na-queles curtos anos foram tão fortes que, mesmo passado do populismo mais des-bragado ao liberalismo mais irresponsável, a Argentina resistiu.

A receita do crescimento

O tratado de List decifraria, de forma ampla e sistêmica, o espetáculo do desenvol-vimento. O desenvolvimento não podia se sustentar em uma perna só. De nada a-diantaria de uma boa manufatura, sem dispor de uma esquadra naval adequada. De nada adiantaria a esquadra sem um mercado interno que garantisse os princi-pais produtos.

No caso da Liga Hanseática, durante séculos praticaram o que a nova ciência pre-conizava: compravam barato e vendiam barato. Quando os ingleses lograram fe-char os mercados para os mercadores da Liga, como não havia nem agricultura nem indústria manufatureira nativa suficientemente desenvolvida, o capital emi-grou para a Holanda e para a Inglaterra.

Em seu tratado, List abordaria praticamente todos os pontos que, no final dos anos 90, o Brasil começaria a estudar para tentar recuperar o caminho do desenvolvi-mento.

Tudo começava por uma visão estratégica adequada, dizia List. Poder é mais im-portante que riqueza. O poder nacional é uma força dinâmica, que abre a porta pa-ra novos recursos produtivos. O poder precisa ser utilizado para gerar novas forças de produção, e manter as existentes. Por poder, List definia a capacidade de uma nação de defender sua produção, de impor regras comerciais, de dominar fluxos de comércio.

Ponto central nas análises de List era o caráter nacional. Atribuía a enorme riqueza da Inglaterra não apenas ao poder nacional e ao amor inato do inglês pelo ganho financeiro. Considerava fundamental o amor inato do povo à liberdade e à justiça, à energia, ao caráter moral e religioso. Incluía nesse ambiente favorável a Constitui-ção do país, as instituições, a sabedoria e a força do governo e da aristocracia (List, 39).

Enquanto as liberdades civis atraiam para a Inglaterra capital e novos talentos, a Espanha perdeu todo seu ímpeto de grande potência, todos os elementos de gran-deza e prosperidade quando a Inquisição expulsou os judeus e os mouros, ao todo 2 milhões de seus mais operosos e abastados habitantes. Fugiram eles e seu capi-tal.

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Com sua lei de patentes, a Inglaterra estimulou e atraiu o gênio inventivo mundial. E com suas liberdades civis atraiu grande quantidade de capital e de talentos no-vos.

A História ensina que as artes e o comércio migram de uma cidade para outra, de um país para outro. Perseguidos e oprimidos em sua pátria refugiaram-se em cida-des e países que lhes asseguravam liberdade, proteção e apoio. Foi assim que as artes e o comércio migraram da Grécia e da ásia para a Itália; da Itália para a Ale-manha, Flandres e o Brabante; e dali para a Holanda e para a Inglaterra (List, 82).

A partir da análise de várias experiências nacionais, Lizt sistematiza conhecimentos sobre processos de desenvolvimento, dividindo-os em quatro etapas básicas.

O primeiro salto, depois de formada a nação, é quando descobre um bem primá-rio de exportação, e começa a se relacionar com o mercado internacional. Embora historicamente o Brasil fosse um país exportador de mercadorias –pau-brasil, açú-car--, o controle da acumulação era português. O café foi o primeiro produto que permitiu a exportação e a acumulação em mãos de empresários brasileiros.

A partir dessa base exportadora, o país começa a importar e a entrar em contato com bens e produtos dos seus parceiros comerciais. Aí se dá o segundo salto, que é o processo inicial de substituição de importações. Para se consolidar é fundamen-tal a proteção à indústria nascente através de tarifas, câmbio competitivo. E tam-bém a criação de condições para o fortalecimento de um mercado de consumo ini-cial, que sirva de alavanca para essa fase inicial da industrialização.

Consolidada a segunda etapa, entra-se na terceira etapa, que é a abertura grada-tiva do mercado, para conferir competitividade à indústria nacional, evitando o a-comodamento pelo excesso de proteção.

Completado o ciclo, ingressa-se na quarta etapa, que é a conquista do mercado internacional, através de estratégias comerciais, controle de rotas comerciais.

Tornando-se hegemônica, a economia torna-se liberal. Abrem-se os mercados nos quais é evidente a superioridade da nação, e exige-se contrapartida dos parceiros comerciais menos competitivos. Apresenta-se o modelo liberal que o país passou a adotar quando entrou na quarta fase como se fosse adequado para países das fases anteriores. E, aí, entra em ação e hegemonia cultural – a contrapartida natural à hegemonia econômica. O país hegemônico passa a propagar o ideário do liberalis-mo comercial. Seus centros de pensamento – universidades, instituições em geral, imprensa – passam a difundir como universais princípios adequados apenas à quar-ta etapa de desenvolvimento.

O processo de desenvolvimento não se dá em torno de teorias rígidas. As teorias são instrumentos de compreensão da realidade, subsídios para a implementação de políticas econômicas. Mas o referencial máximo, para a definição das políticas eco-nômicas adequadas, é o da análise da realidade, o comportamento estratégico ten-do em vista a situação de momento.

Uma política liberal, no início da industrialização, mata o processo. Da mesma ma-neira que uma política protecionista, na fase de maturidade econômica, provoca o acomodamento dos empresários e a perda de vitalidade.

Quando o país da quarta fase preconiza suas práticas econômicas para os países das fases anteriores, está procedendo ao que List chamava de “chutando a própria escada”. Depois de escalarem as três etapas iniciais de desenvolvimento, tentam impedir os países menos desenvolvidos de trilhar o mesmo caminho. Tentam impor as práticas que passaram a adotar depois de vitoriosos e, aí, o componente cultural ideológico, a emulação das práticas dos países centrais, passam a ser ferramentas fulminantes.

No seu livro, List repassava a história de inúmeras civilizações, de países ou cida-des-estado que ganharam enorme poder e influência, e acabaram afundando por não terem conseguido articular adequadamente os interesses nacionais. A partir

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desses estudos, o centro de análises de List passou a ser a nacionalidade, como o interesse intermediário entre o indivíduo e a humanidade inteira.

Quando a Alemanha começou a discutir projetos nacionais, List deparou-se com enorme resistência de um conjunto de interesses que juntava de intelectuais ale-mães que haviam estudado na Inglaterra, importadores com interesses em produ-tos ingleses e, por baixo de tudo, a enorme influência ideológica do pensamento inglês, àquela altura, potência hegemônica mundial. Narrava ele que “um exército incontável de correspondentes e escritores líderes, desde Hamburgo até Bremen, desde Leipzig até Frankfurt, saíram a campo para condenar os desejos absurdos dos manufatores alemães no sentido de estabelecer taxas alfandegárias protecio-nistas comuns”. A lógica de ataque se perpetuaria pelos tempos. List era acusado de ignorar princípios elementares de economia política, “tais como haviam sido consagrados pelas maiores autoridades científicas” (List, 4). Na época, era notória a influência do Ministério do Exterior inglês, com grossa verba destinada à defesa dos seus interesses comerciais.

No minucioso levantamento que faz sobre países que se tornaram hegemônicos, List deixa lições preciosas. Assim como para as empresas, os países crescem apro-veitando janelas de oportunidade, que podem surgir em mudanças políticas inter-nas, em conjunturas internacionais favoráveis. O grande segredo do desenvolvi-mento é saber aproveitar essas brechas de oportunidades e criar modelos institu-cionais adequados, que permitam ao país o salto para a etapa seguinte. Essa dinâ-mica inicial vai desenvolvendo o país, de forma mais ou menos acelerada, até a brecha seguinte, que vai exigir novas soluções.

O Brasil teve algumas janelas de oportunidade desde que se tornou nação. As duas mais relevantes guardam semelhanças extraordinárias entre si. A primeira, no final da Monarquia e início da República, que resultou no “Encilhamento”, o grande mo-vimento especulativo que atrasa substancialmente o ingresso do país na segunda fase. O segundo, o plano Real, que compromete o ritmo de ingresso do país na ter-ceira fase.

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Para completar o quadro de fatores que atuava sobre a economia internacional da época, e afetou diretamente o Brasil no período do “Encilhamento”, há a necessida-de de introduzir dois atores fundamentais da história: as grandes revoluções tecno-lógicas do século 19 e o aparecimento do grande capital financeiro, o chamado “haute capital”, montando a mais sofisticada estrutura de coordenação transnacio-nal que o mundo já testemunhara.’

As revoluções tecnológicas

As revoluções tecnológicas não são lineares. Em geral, há uma primeira etapa de mudança de paradigma. Depois, uma corrida frenética atrás das novas tecnologias que, invariavelmente levam a movimentos especulativos e “crashes” sucessivos. Depois disso é que o mercado se assenta, a especulação sai de cena e dá espaço para o período de consolidação.

É uma disputa pesada entre o novo e o velho. Em geral há dos períodos distintos, cada qual durando algumas décadas. A primeira fase é o período em que a nova economia se consolida e avança sobre a economia já madura. A segunda é a do es-palhamento do novo paradigma vitorioso, renovando toda a economia.

Tabela 1: Uma paradigma tecno-economico para cada revolução tecnológica diferente, 1770 a 2000 (Perez 2000), citado por Mateus Cozer

Instalação Desenvolvimento

Revolução Tec-nológica

Erupção Frenesi

Ponto de Virada

Sinergia Maturidade

1° Revolução In-dustrial 1771-início

dos 1780s

Final dos 1780s e início dos 1790s

1793-97 1798-1812 1813-1829

2° Era do Vapor e das Ferrovias

1829-1830s 1840s 1848-50 1850-1857 1857-1873

3° Era do Aço, Eletricidade e Engenharia Pesada

1875-1884 1884-1893 1893-95 1895-1907 1908-1918

4° Era do Petró-leo, do Auto-móvel e da Produção em Massa

1908-1920 1920-1929 1929-43 1943-1959 1960-1974

5° Era da Infor-mação e Tele-comunicações

1971-1987 1987-2001 2001-?? 20??

A “haute finance”

É no bojo do financiamento dessas ondas tecnológicas que o capital financeiro ga-nha musculatura e se internacionaliza.

Luis Nassif� 18/7/06 23:31Comment: Levantar mais dados

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Em um livro clássico escrito em 1940 – “A Grande Transformação” --, o economista Karl Polanyi tentava sistematizar, pela primeira vez, a natureza do que ele denomi-nava de “haute finance”, o grande capital que emerge nas três últimas décadas do século 19.

Essa “haute finance” teria papel relevante nos lances seguintes da política econômi-ca nacional, que resultariam no “Encilhamento”.

A partir daí e nas três primeiras décadas do século 20, coube a “haute finance” ser o elo entre a organização política e econômica do mundo, fornecendo os instrumen-tos para um sistema internacional de paz.

É um período dominado pelos Rotschild. Eles não estavam submetidos a nenhum governo, lembrava Polanyi. O poder de firma consistia em ser o único elo suprana-cional entre o governo político e o esforço industrial em uma economia mundial em rápido crescimento (Polanyi, 25). Seu poder e independência decorriam das neces-sidades da época, que exigiam um agente soberano que tivesse a confiança tanto dos governos nacionais quanto dos investidores internacionais.

Para cumprir esse papel, a “haute finance” precisava buscar aliados nos bancos e no capital financeiro nacionais. Organizacionalmente, constatava Polanyi, a “haute finance” foi o núcleo de uma das mais complexas instituições que a história do ho-mem já produziu. Além do centro internacional, em Londres, havia meia dúzia de centros nacionais gravitando em torno de seus bancos de emissões e bolsas de va-lores.

“Os banqueiros internacionais financiavam não apenas governos e guerras, mas faziam investimentos externos na indústria, nos serviços públicos e ban-cos, bem como empréstimos a longo prazo para as corporações públicas e particulares fora do país”.

Para garantir a segurança dos seus investimentos e empréstimos, a “haute finance” se preocupava bastante com as oscilações cambiais e com o equilíbrio orçamentário das nações. Os dois instrumentos de influência da City Londrina era o padrão ouro e o constitucionalismo. Eram as palavras de ordem para os países que aderiram à nova ordem internacional.

“O padrão era controlado por uma infinidade de grupos nacionais e persona-lidades, cada um deles com seu tipo peculiar de prestígio e destaque, autori-dade e lealdade, sua capacidade de dinheiro e de contatos, de patronato e au-ra social” (Polanyi, 26)

Apesar de apontado por Lenine como principal estimulador de guerras, ao grande capital internacional interessava fundamentalmente a paz. Era tamanha a rede de interesses entrelaçada por todo o mundo que, se a guerra poderia eventualmente beneficiar alguns clientes maiores, desarrumava a vida de milhares de outros clien-tes.

Em relação aos países, tinha duas posturas diferentes. Sabia reconhecer o exercício do poder das potências; e a dependência de capitais da periferia. Através do con-trole do crédito, acabam se transformando nos gestores de fato das políticas eco-nômicas dos países periféricos.

Toda a política econômica era centrada em dois pontos: a solvência do país, para quitar seus empréstimos; e a manutenção de moedas estáveis.

O “padrão ouro” conferiu um poder excepcional aos países detentores de capitais. Como os países que aderiam ao padrão só poderiam emitir com lastro em ouro, a cada crise cambial, do produto principal de exportação, eram obrigados a contrair dívidas com os bancos internacionais, para garantir a conversibilidade de suas mo-edas.

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Esse modelo acabava levando a crises financeiras periódicas, afetando vários países de periferia. No auge das crises cíclicas, os grandes bancos centrais em Londres, Paris e Berlim elevavam suas respectivas taxas de desconto, para evitar a saída de ouro. Com isso, atraíam os capitais de curto prazo e se beneficiavam da queda das cotações dos produtos primários, devido à redução da liquidez internacional (Beluz-zo, in Fiori, 96). Esses movimentos de capitais, da periferia para o centro, lançavam os emergentes em crises terríveis, mas ajudavam a resolver as crises dos países centrais.

Um dos mais famosos episódios especulativos da história, com o instrumento a venda a futuro, foi a "bolha" em torno das tulipas holandesas, Quando a especula-ção absorveu toda a produção foram criados negócios de venda futura de bulbos da tulipa, processo iniciado em 1636. Terminou em um crack violento.

A principal ferramenta que movimentaria a especulação até 1929 surgiu em mea-dos do século 19 nos Estados Unidos, Era o mecanismo da concessão de emprésti-mo, o chamado "call loans", recursos que os bancos comerciais repassam aos cor-retores, para que eles ofereçam à sua clientela. A garantia do empréstimo era a caução das ações dos tomadores. O "call" significava que o banco poderia chamar à liquidação do empréstimo a qualquer momento. O banco exigia uma "margem de garantia", emprestando apenas um percentual do valor dos títulos, de acordo com seu valor de mercado. Se as cotações caíssem, aumentava a dificuldade dos toma-dores, que era agravada pela redução automática do valor emprestado. Foi o pedi-do de garantias adicionais que acelerou o crack de 1929.

O câmbio também permitia jogadas especulativas periódicas, com os grandes ban-cos “apostando” contra moedas fracas, ou no deságio dos títulos das dívidas dos países periféricos.

A maneira de minimizar os riscos era o controle sobre as informações, a dependên-cia que os países tinham dos fluxos de capitais, e a capacidade de influenciar a opi-nião pública, criando uma ideologia pró livre cambismo.

As próprias mudanças no capitalismo internacional permitiam que a industrialização inglesa transbordasse para outros países, particularmente os Estados Unidos. Esse período é caracterizado pelos seguintes eventos2:

A consolidação das práticas de financiamento e de pagamentos internacionais sob a égide de um padrão monetário universal.

A metamorfose do sistema de crédito, expressiva no aparecimento de bancos de depósitos que ajustam suas funções e formas de operação à nova economia co-mandada pela indústria.

A emergência de uma nova divisão social do trabalho, consubstanciada na crescen-te separação entre o departamento de meios de consumo e o departamento de meios de produção.

A internacionalização capitalista sob a hegemonia inglesa “produz” a industrializa-ção dos EUA e da Europa e, simultaneamente, a periferia produtora de matérias primas e alimentos.

No final do século 19, quando a República ensaia os primeiros passos, já havia um mercado internacional de mercadorias funcionando em Londres, com suas cotações sendo acompanhadas diariamente por negociantes de todas as partes do mundo. De 1830 a 1870, um reduzido número de estados, todos europeus, dera início a um extraordinário ciclo de expansão do capitalismo financeiro. Esse ciclo se prolonga até 1914, quando eclode a Primeira Guerra Mundial.

Com o fim da Guerra da Secessão nos EUA, em 1860, o mundo passa por um pro-cesso inédito de transformações, preparando a nova etapa do desenvolvimento mundial. Os EUA já preparavam o salto para se tornar grande potência. Depois da guerra franco-prussiana, ocorrera a unificação da Alemanha; no Japão, acontecera a Restauração Meiji. Depois da Guerra da Criméia ocorrem mudanças na Rússia

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também. É esse grupo de países, ao lado da França, e sob a liderança da Inglater-ra, constituem o núcleo duro do novo sistema global (Fiori, 41).

Alguns países conseguiram aproveitar do excesso de capitais, da coordenação in-glesa e , com o chamado “déficit de atenção” da Inglaterra em relação às suas es-tratégias de desenvolvimento, nas décadas seguintes começavam a despontar co-mo novas potências.

Depois de várias crises cambiais, o sistema financeiro internacional se estabilizara em torno do “padrão ouro” e em uma estrutura hierárquica. No centro, ficava o Banco da Inglaterra. Num segundo grupo, os bancos da França e da Alemanha. No terceiro, da Holanda, Áustria e Bélgica (Fiori, 65).

A “haute finance” já havia fincado os olhos no país e montado sua rede de alianças, a partir do momento em que Mauá montou um banco em Londres e tentou se con-verter em banqueiro londrino para fugir à pressão política interna. Não conseguiu, foi derrotado, mas chamou a atenção da banca londrina para o grande potencial daquele gigante adormecido.

As grandes bolhas especulativas

O potencial de riqueza fácil com mudanças monetárias e as bolhas especulativas já eram de conhecimento geral quando Rui Barbosa deu início à política monetária que levaria ao “Encilhamento”.

O exemplo mais marcante foi o de John Law, nascido em 1671, filho de um ourives abastado que emprestava dinheiro a juros, que chegou a Ministro das Finanças da França e montou uma companhia que detinha o monopólio do comércio do Vale do Mississipi (ainda sob domínio francês), Índia, China e Pacífico Sul.

Law mudou-se para Londres com 17 anos. Era mulherengo, jogador, e, depois de matar o pretendente a uma amante sua, teve que se refugiar na Europa continen-tal. Lá, tomou contato com os modelos de crédito do Banco de Amsterdan. Na falta de reservas em ouro, o banco recebia moedas dos comerciantes, que adquiriam em troca crédito pelo seu valor, na forma de notas.

Em uma época dominada pelo “padrão-ouro”, passou a defender que a quantidade de moeda em uma economia não deveria ser pautada pelas reservas em ouro ou pelo saldo da balança comercial, mas pelas necessidades de troca internas da pró-pria economia. Defendia o papel-moeda e títulos lastreados em terras e impostos.

Em 1715 o Duque de Orleans se tornou regente, após a morte de Luís 14. A França passava por uma crise portentosa que o novo Regente tentava resolver através da recunhagem de moedas e de uma desvalorização cambial de 20%.

Amigo do Duque, Law apresentou um diagnóstico diferente. Em sua opinião, a França sofria de falta de moedas e de excesso de desvalorizações cambiais. Propu-nha o uso da moeda fiduciária e a criação de um banco emissor de títulos de crédito lastreados em receitas de impostos e propriedades. O Estado ficaria com o mono-pólio de todas as atividades financeiras e fazendárias.

Foi o início do Banque Generale, no ano seguinte, emitindo títulos resgatáveis em moeda corrente. Como o país ainda sofria do pânico da desvalorização das moedas metálicas, em pouco tempo a moeda fiduciária se impôs e os títulos passaram a ser negociados com ágio de 15% -- contra um deságio de 80% das moedas de ouro e prata. Percebendo o potencial do novo padrão monetário, Law criou uma compa-nhia na Luisiana, ainda uma colônia francesa, que deteria o monopólio do comércio no rio Mississipi. Prometia de que as terras gerariam riquezas em ouro , seda e a-gricultura.

Apenas um ano depois de fundado, o banque Generale foi estatizado, tornou-se o Banque Royale, e o Regente ordenou a impressão de papel-moeda no equivalente a

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três vezes a dívida pública. Houve reação do Parlamento e Law terminou afastado do Banque Generale.

Ainda influente, a Companhia do Mississipi conseguiu em 1817 não apenas a con-firmação de seus direitos sobre o rio Mississipi mas também sobre as Índias Orien-tais, China e Pacífico Sul. Para financiar as operações, Law emitiu 50 mil ações a serem integralizadas em notas do Tesouro com 80% de deságio. Prometeu aos a-cionistas uma rentabilidade de 120% ao ano.

Pequenos investidores correram em massa atrás do pote da fortuna, adquirindo op-ções de compra das ações. Excesso de papel-moeda, promessas de ganhos fantás-ticos, produziram uma corrida aos novos papéis, que tiveram uma demanda seis vezes superior à oferta. Em 15 meses os papéis de Law experimentaram uma valo-rização de 2.900%. Com esse sucesso, o passo seguinte foi a fusao do Banque Ro-yale com a Companhia do Mississipi, e Law nomeado novo Ministro das Finanças.

Em 1720, não resistiu à primeira crise. Houve uma corrida contra a companhia, com os vendedores não exigindo moeda metálica. Law resistiu, deflagrando uma onda de desconfiança em relação ao papel-moeda. Para enfrentá-la o governo des-valorizou e limitou os saques de moeda metálica. A conseqüência foi uma explosão de contrabando de ouro para a Inglaterra e Holanda, paralisando o comércio. Ten-tou-se limitar a posse de moeda-metálica pelos indivíduos, além de se proibir a compra de jóias, prata e metais preciosos. O país quase foi engolido pela revolta popular. No final do ano, o valor das ações da Companhia do Mississipi tinha caído 98% em relação ao início do ano.

Law foi demitido, a crise ajudou a preparar a Revolução Francesa e a palavra “ban-co” foi banida do dicionário financeiro francês, substituída pela “credit”. Mas seu modelo de enriquecimento fácil que montou passou a ser a ambição maior de mui-tos aventureiros por todo o mundo. E a pedra filosofal de sucessivas gerações de financistas passou a ser a suprema chance de montar uma reforma monetária com final bem sucedido, que lhes assegurasse o sucesso inicial de Law, sem arcar com os infortúnios posteriores.

Com a internacionalização financeira, os movimentos especulativos tornar-se-iam mais freqüentes.

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Na segunda metade da década de 1880, o Brasil tinha todas as condições de repetir o feito norte-americano. A economia estava prestes a explodir, a ultrapassar a fase da monocultura do café e começar a formar uma sociedade sofisticada, pronta para entrar na segunda fase de List.

As condições eram claras. Um primeiro ensaio de política industrial ocorreu com a vinda de Dom João 6º ao Brasil. Além da abertura dos portos, criou a siderurgia nacional e fundou o Banco do Brasil em 1808. Em 28 de anril de 1809 concedeu direitos aduaneiros às matérias primas consumidas pelas fábricas brasileiras, isen-tou de impostos a exportação de produtos manufaturados e passou a utilizar produ-tos brasileiros no fardamento das tropas (Moniz Bandeira, paper FGV).

Fez mais, introduziu os primeiros conceitos de patente, garantindo privilégios por 14 anos os inventores ou introdutores de novas máquinas, e garantiu 60.000 cru-zados às manufaturas com dificuldade, especialmente as de lã, algodão, ferro a a-ço. No arsenal da Marinha, construiu a fábrica de pólvora, a tipografia régia, bem como criou o Colégio Militar e o Naval.

Em fins de 1809, o engenheiro Friedrich Ludwig Varnhagen chegou ao Rio de Janei-ro com a missão de estudar a possibilidade de construção de uma siderúrgica no morro de Araçoiaba, perto de Sorocaba.

Em 1812, com o apoio de Dom Manuel de Assis Mascarenhas Castelo Branco da Costa Lencastre, conde de Palma, Dom João 6º construiu outra usina siderúrgica, a Fábrica Patriótica, perto de Congonhas do Campo. Ao mesmo terreno, começava a antiga tradição mineira de fabricação de ferro gusa, através de Manoel Ferreira de Câmar Bittencourt e Sá.

Segundo Moniz Bandeira, a Inglaterra não queria a abertura dos portos no Brasil. O que pedira fora apenas um porto exclusivo em Santa Catarina, que Dom João 6º não concedeu.

Como não conseguisse o monopólio, os ingleses pressionaram-no para que firmasse o Tratado de 1810, concedendo às manufaturas inglesas uma tarifa preferencial de 15% ad valoren, menor até que as de Pportugal, que eram de 16%, e de 24% para as demais nações.

O esforço por ver a Independência reconhecida, fez com que, no final da década de 1820, o Brasil assinasse inúmeros tratados comerciais desiguais com a própria In-glaterra, França, Prússia, Áustria, Dinamarca, Países Baixos, a Liga Hanseática e com os Estados Unidos. Esses tratados acabaram atrasando o processo de industri-alização interno.

Apenas entre 1842 e 1844, quando os tratados expiraram, o Ministro da Fazenda Manuel Alves Branco deu início a uma política de proteção da indústria infante, ele-vando a tarifa de importação de 3 mil produtos, para uma faixa entre 20 a 60%. Esse período se estendeu de 1844 a 1876. Em 1877, já havia no Brasil fábricas de produtos químicos, instrumentos óticos, calçados, chapéus, tecidos de lã e algodão.

Em meados do século 19, o cônsul geral da França em Montevidéu chegou a cha-mar o Brasil de “Rússia Tropical”, que tinha a “vantagem da organização e da per-severança em meio dos Estados turbulentos e mal constituídos” da América do Sul.

Em 1850, com a lei Eusébio de Queiroz, foi proibido o tráfico negreiro. A decisão liberou volumes consideráveis de capital. Dessa conjuntura se aproveitou Irineu E-vangelista de Souza, o futuro Barão de Mauá, lançando as bases de um sistema bancário moderno. Com sua capacidade de aglutinar poupança, obter ganhos de arbitragem no câmbio e ter acesso a capitais ingleses, o Barão de Mauá traçara o roteiro do desenvolvimento.

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Começa a trabalhar muito cedo em uma casa comercial brasileira, transfere-se para uma importadora inglesa, aprende as novas teorias econômicas e financeiras. De-pois, descobre a possibilidade de atrair capital externo para empreendimentos no país.

Monta um banco, com várias filiais pelo país e uma filial em Londres, e passa a cap-tar na praça londrina. Ao mesmo tempo, descobre rapidamente possibilidades e-normes de ganhos na arbitragem de câmbio, valendo-se do baixo fluxo de informa-ções no país. Ganhava meramente arbitrando as diferenças de câmbio entre as di-versas praças em que operava no país.

Descobriu, também, os dois grandes modelos de negócio que atrairiam os grandes capitais na época: os serviços urbanos e as ferrovias integrando grandes distâncias. Com sua capacidade de mobilizar capitais montou a primeira indústria de base no país, o porto de Areia, ..... Depois, o serviço de iluminação a gás no Rio de Janeiro, companhias de navegação no Amazonas, bancos no Uruguai, Argentina.

Mauá deixou lições indeléveis a todas as gerações posteriores. De um lado, mostrou o poder regenerador do capital bem aplicado, seu enorme poder transformador quando controlado por pessoas com imaginação para novos negócios, controle so-bre os números, estratégias empresariais bem definidas.

Mas a atuação de Mauá abriu os olhos de dois personagens que passariam a exer-cer um papel confuso no país, dali por diante. Primeiro, foi o dos grandes rentistas. Encurralado pelas ações de Pedro 2o, Mauá descobre um aspecto relevante da cul-tura estatal brasileira. Como empresário brasileiro, ele despertava ciúmes. Se se tornasse empresário inglês, teria direito a privilégios.

Quando começa a se mover por Londres, expondo seus negócios, desperta os ban-queiros ingleses para novas possibilidades para o país. Até então, os países emer-gentes eram uma boa fonte de lucros, mas apenas para o mercado de crédito. Quanto pior a situação do país, quanto maior o "risco país", maiores os juros pagos pelos empréstimos.

A atuação de Mauá mostrava, para o mercado londrino, as excepcionais possibilida-des abertas no mercado de investimento. O novo país tinha poupança acumulada, e uma enorme demanda por novos modelos de negócio que se desenvolviam nos paí-ses centrais. De um lado, os melhoramentos urbanos, iluminação a gás, saneamen-to. De outro, as grandes obras de integração nacional, como as ferrovias.

Quando Mauá se preparava para se associar ao banco britânico London and ......, foi derrubado por uma manobra conjunta do governo e da banca inglesa. Do lado de cá, recusaram a tratar como inglesa uma empresa que tivesse como sócio um empresário brasileiro. Do lado de lá, aproveitou-se essa dificuldade para desman-char a sociedade, e os candidatos a sócios entrarem no país competindo com Mauá, e dispondo de todos os favores do governo. Quando se deu o Encilhamento, esse banco tinha o controle sobre os movimentos cambiais do país, com claro poder de mercado.

A partir desse episódio, forma-se uma nova aliança, que irá marcar dali pela frente a economia brasileira, uma aliança tácita entre os grandes rentistas brasileiros e a banca internacional. O dinheiro saía do Brasil e ia para Londres. As empresas brasi-leiras montavam escritórios na cidade, depositavam os recursos nos bancos ingle-ses. Depois, esses recursos entravam no país através de empréstimos ao setor pú-blico ou de inversões em setores regulamentados, através de concessões com ga-rantia mínima de rentabilidade.

O rentista brasileiro garantia a aprovação de leis favoráveis às concessões. Atuava nas duas pontas, como político e como investidor. O banco inglês garantia recursos adicionais e a jurisdição internacional sobre os empréstimos.

Luis Nassif� 18/7/06 23:31Comment: O nome completo do banco

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Esse movimento estava completamente maduro em 1890, quando a República foi proclamada, e irá explicar dali para frente as enormes dificuldades que sucessivos governos encontrariam para controlar os fluxos de capital e o câmbio.

Os fatores que levaram à Abolição da Escravatura jogavam a economia em uma espiral de dinamismo sem paralelo na história. De um lado, a vinda de imigrantes fortalecia sobremaneira o mercado interno. Era uma nova cultura, de trabalho, de poupança, irrigando o campo e desdobrando-se para a cidade. Havia uma legião de libertos, que veio se formando após a Lei do Ventre Livre, em 1850, alguns poucos cidadãos de sucesso, bem sucedidos, e uma legião disponível para ser integrada.

Libertos e imigrantes criavam a possibilidade de uma revolução no mercado de con-sumo, na oferta de mão de obra, na cidadania e no emprendedorismo, sacudindo o acomodamento da sociedade patriarcal brasileira, onde prevalecia o instituto da he-rança e do compadrio e o consumo conspícuo.

Nos Estados Unidos, a doação de pequenos lotes de terras a imigrantes tinha per-mitido a colonização rápida do país e a criação de um enorme mercado de consu-mo.

Internamente, no plano político, a Abolição provocara um racha nos interesses da cafeicultura, entre a moderna, instalada em São Paulo, e a arcaica, basicamente ocupando as terras esgotadas do Vale do Paraíba.

Do lado da poupança interna, já a Lei Eusébio de Queiroz, de 1850 (que proibiria o tráfico de escravos) liberara o capital investido na compra de escravos. Havia e-norme poupança empoçada, guardada debaixo do colchão tanto dos fazendeiros quanto da classe média urbana. Externamente, havia capital brasileiro, cujo mon-tante é impossível estimar, mas certamente abundante depositado em bancos in-gleses, em uma provável mistura de capital legalmente exportado, contrabando, corrupção política e subfaturamento de exportações.

Havia também os financistas, brasileiros mais internacionalizados que se aproxima-ram da praça londrina estabelecendo relações de colaboração, parceria ou socieda-de com capitalistas ingleses, com grandes financistas, como os Rotschilds, a ban-queiros de menor expressão.

Nos anos anteriores, esses capitais financeiros já haviam sido investidos em estra-das de ferro em São Paulo, na modernização do porto de Santos, permitindo o grande salto da cafeicultura paulista.

O Barão de Mauá comandara esse processo, introduzindo na realidade agrária do país o conhecimento sobre as formas contemporâneas de organização do capital, assim como sobre as estratégias financeiras para ganhar dinheiro com as arbitra-gens cambiais e de taxas de juros.

Internacionalmente, as grandes descobertas tecnológicas do século 19 entravam em fase de maturação, abrindo espaço para uma ampla remodelação dos negócios. Dali para frente, a dinâmica da economia mundial --e de países que completavam a primeira fase, como o Brasil-- seria conduzida pelas novas tecnologias, pelas estra-das de ferro, pelos serviços desenvolvidos para a urbanização, como saneamento, água, energia elétrica, pela substituição de importação de bens de consumo e, de-pois de criada a base, pela implantação da indústria de base

Os novos modelos de negócio, com novas tecnologias e novas formas de organiza-ção do capital, iriam se impor sobre a ordem anterior, agrária, semi-feudal. Da ra-pidez e da maneira como se procedesse a esse movimento de superação, depende-ria o sucesso do Brasil nas décadas seguintes.

Do ponto de vista das condições potenciais, o Brasil estava pronto para entrar na segunda fase de desenvolvimento estudada por List.

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PPPrrrooojjjeeetttooo dddeee pppaaaííísss

Um projeto de país implicaria em ações óbvias, quase todas discutidas e defendidas pelas poucas vozes racionais que enxergavam o futuro, ou conseguiam colocá-lo acima dos interesses imediatos.

Do lado dos libertos, havia a necessidade de políticas públicas de inclusão social. Era necessário investimento federal em educação e saúde, treinamento profissional, complementando os escassos recursos dos estados.

Do lados dos imigrantes, era repetir o modelo norte-americano, de doação de pe-quenas glebas de terras, permitindo o rápido povoamento do interior. Dentre os imigrantes, havia toda uma geração de artesões, com condições de acelerar o inci-piente processo de industrialização e substituição de importações.

Em 1878, 22.423 imigrantes desembarcaram no Brasil; em 1887, 54.990; em 1889, mais de 160 mil. Eram portugueses de Lisboa, italianos de Nápoles, Gênova, pessoal de Ansver, Hamburgo, da Alsácia e do Tirol.

São Paulo criou uma Lei provincial em 29 de março de 1884 com o objetivo de es-timulara a migração. Foi constituída uma sociedade promotora presidida por Marti-nho Prado Júnior, que foi à Europa em 1887 para estimular a migração. São Paulo abriu uma hospedaria com capacidade para 4 mil pessoas, para receber os imigran-tes. Outras foram abertas na Ilha das Flores, no Rio, em Macaé, Juiz de Fora.

Em 1889, tinham-se belgas em Piquete e Canas, italianos e alemães em Ribeirão Preto, italianos em Cascalho, portugueses em Nova Louzã, italianos em Santa Veri-diana, italianos e alemães por todo o Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. (O Brasil, 113)

Trabalhando esses dois públicos, se teria a garantia de sustentabilidade do cresci-mento econômico, com a ampliação da oferta de mão de obra, de novos empreen-dimentos, e do mercado interno.

A infra-estrutura poderia ser atendida com uma regulação firme, que permitisse a atração de capitais internos e externos para as concessões ferroviárias e para os serviços urbanos, aproveitando a grande expansão da revolução industrial, trans-bordando as indústrias dos países centrais para os perfiéricos, e a abundância do capitalismo. Com a integração ferroviária, os imigrantes poderiam se espalhar pelo país, ajudando na sua ocupação e em um padrão de desenvolvimento similar ao milagre da Califórnia.

O empreendedorismo poderia ser estimulado pela criação de um sistema ordenado de bancos que ajudassem a irrigar a economia central e a regional com crédito a-bundante e barato. Havia a necessidade da modernização da legislação bancária, melhorando a apresentação de garantias, de maneira a destravar a oferta de crédi-to, e a implantação de um sistema competitivo no modelo de concessões existente.

Finalmente, a atividade interna de substituição de importações e de implantação de novos empreendimentos de infra-estrutura teria que ser defendida com um câmbio competitivo, de baixa volatilidade, e com tarifas de importação adequadas.

Era este o quadro que se apresentava em meados da década de 1880, nos esterto-res da Monarquia, no alvorecer da República. Ao contrário do início do século, na-quele final de século havia no tabuleiro todas as peças que permitiriam ao país sal-tar para a segunda etapa de desenvolvimento. Já havia conhecimento acumulado para se proceder ao salto para a segunda etapa de Lizt, da substituição de importa-ções.

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O primeiro ato do “Encilhamento”

No primeiro ato, sob o Visconde de Ouro Preto, último Ministro da Fazenda da Mo-narquia, é regulamentada a nova Lei Bancária.

O nó central a ser rompido era o da dificuldade de prover crédito à lavoura, em um período em que o ingresso de imigrantes e os libertos demandavam mais moeda. Havia Cada vez que havia safra, o dinheiro sumia da praça do Rio. Depois voltava, deixando o campo sem recursos.

A Lei Bancária foi aprovada em 24 de novembro de 1888, com o intuito de criar bancos que pudessem apoiar a agricultura, padecendo da falta de capital de giro com a Abolição. Em janeiro foi criado um primeiro regulamento permitindo aos bancos emitir sobre base metálica. Ou seja, o banco acumulava determinado valor em ouro e podia emitir moedas conversíveis tendo esse lastro como garantia. Os titulares da moeda poderiam ir até o banco e trocá-la por ouro a qualquer momen-to, observada a paridade de 27 pences por mil réis. Mas não havia nenhum meca-nismo que protegesse os bancos contra oscilações cambiais. Como as moedas eram conversíveis, se o câmbio caísse abaixo da paridade, os titulares de moedas sim-plesmente as trocariam por ouro, ganhando a diferença. Esse risco fez com que ne-nhum banco se aventurasse a ser emissor.

Em 5 de janeiro, João Alfredo havia promulgado o decreto no. 10.144, regulamen-tando o funcionamento dos bancos de emissão: aqueles com direito a emitir títulos. Em 6 de julho de 1889 Ouro Preto revogou o decreto, mas manteve a principal van-tagem, que era a permissão para os bancos poderem emitir até o triplo de seu las-tro metálico. O principal beneficiário das medidas foi seu banqueiro de confiança, Francisco de Figueiredo, que recebeu o título de Visconde em 1879 e de Conde a-penas quinze dias antes da Proclamação da República3.

Em 6 de setembro, através do decreto 10.336 Ouro Preto estabeleceu normas para o resgate de papel-moeda. E, logo, ajudou a colocar lenha na fogueira da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Lá, a especulação começara a crescer em 1886, mas se acelerou de agosto a outubro de 1889, por conta dos novos bancos. Os jornais a-nunciavam que os bancos beneficiados gozariam de um “capital gratuito que em muito aumentaria o lucro a dividir pelos acionistas”

Havia um furor para organizar bancos (Franco, 90). Em setembro o movimento da Bolsa atingiu 131 mil contos, dos quais 66 mil contos eram de ações de bancos. De 13 de maio a 15 de novembro, formaram-se novas companhias com capital total de 402 mil contos, 324 mil dos quais eram de novos bancos.

A enorme liquidez veio acompanhada da introdução de modernos mecanismos fi-nanceiros convivendo com os tradicionais, aumentando sua capacidade de alavan-cagem. Entre os novos mecanismos destacaram-se as ações e debêntures, alvo de corridas especulativas após alterações na Lei das Sociedades Anônimas. Entre os instrumentos tradicionais, pontificavam as cambiais (direitos de saque no exterior), as notas promissórias, as Letras Hipotecárias. Já os Títulos da Dívida Pública perde-ram expressão, depois que passaram a ser utilizados como lastro para as emis-sões4. A redução na colocação dos papéis públicos acabou abrindo espaço para a expansão dos títulos privados.

Uma das ferramentas que surgiram no século 19 foi a alavancagem, o contrato de compra e venda para liquidação futura. Esse instituto já constava do direito roma-no. Ocorre quando o vendedor ainda não tem o produto para entregar e o compra-dor não tem o dinheiro para pagar. Pactua-se, então, um contrato futuro, negocia-do em câmaras de compensação (Ney Carvalho, 56).

A especulação começou com os papéis dos novos bancos mas em breve, esparra-mou-se por outros setores. Frequentemente o Tesouro era obrigado a interferir na praça, controlando a liquidez a um custo alto.

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O Visconde de Ouro Preto decidiu, então, pela criação de um grande banco que pu-desse atuar como agente regulador do mercado. Em 19 de setembro de 1889, com capital de 90 mil contos foi criado o Banco Nacional do Brasil, a partir do Banco In-ternacional, do Conde de Figueiredo. No dia 28 daquele mês foram aprovados os estatutos do Banco Nacional do Brasil, conferindo-lhe o poder de emitir bilhetes ao portador conversíveis em ouro à vista. Figueiredo era apontado como um dos “três reis da rua do Ouvidor”, ao lado do Conselheiro Mayrink e Henry Lowndes, Conde de Leopoldina, e autor dos maiores golpes do Encilhamento. Dentre os três, era o que possuía maior ascendência sobre o Visconde de Ouro Preto, embora os dois ou-tros também fossem personagens influentes do Império.

O Interamericano tinha sido o banco brasileiro que mais operava em negócios cam-biais. O Conde tinha experiência com negócios em café, dois sócios ingleses, Willi-am H. Holman e Edward Herman, uma sucursal em Londres e estreitas ligações com o Banco de Paris e dos Países Baixos, que se dispôs a entrar com 2/3 do capi-tal do banco.

Com o apoio francês, depois de constituído o Banco Nacional do Brasil teria um fundo metálico (reservas de ouro) da ordem de 9,9 milhões de libras e seria o de-positário das reservas metálicas do Tesouro do Brasil. Sua missão seria articular a paridade do câmbio, isto é, impedir que o câmbio oscilasse acima ou abaixo da pa-ridade acertada.

Os estatutos do Banco Nacional também lhe conferiam o direito de negociar em-préstimos e pagar juros e amortização em nome do Tesouro. Tinha também a ga-rantia de suspensão da conversibilidade de suas notas, se a taxa de câmbio desces-se significativamente abaixo do par. Com a mono-emissao, o Banco Nacional assu-miria o monopólio da moeda.

No dia 2 de outubro, primeiro dia útil após a aprovação do estatuto, assinou-se o contrato que rezava que os bilhetes do banco seriam trocados à vista por moedas de ouro, ao câmbio de 27, “salvo os casos de guerra, revolução, crise financeira ou política”. Pelo acordo, o Tesouro abstinha-se de emitir durante o período de exis-tência do Banco Nacional.

Tinha-se um verdadeiro Banco Central privado, emprestador de última instância, agente do Tesouro e regulador da liquidez. Com a estabilização cambial trazida pelo Banco Nacional, em poucos meses surgiram diversos pequenos bancos emissores, todos em torno da voracidade especulativa que começava a dominar cada vez mais a Bolsa de Valores.

A proposta do banco único monoemissor tinha um grande adversário: Rui Barbosa, atuando brilhantemente na imprensa carioca. Dono de enorme erudição, Rui se va-lia de um truque retórico que viraria padrão brasileiro dali por diante. Cada idéia contrária ele rebatia com o argumento de que em nenhum lugar do mundo era as-sim; cada idéia que defendia, usava o argumento de que em todo país civilizado, assim se procedia.

A idéia de uma instituição destinada especialmente ao resgate de papel-moeda era vista como Rui como “produto de nosso gênio indígena” (Magalhães Jr.,61). Era o “polvo financeiro”, como tratou o banco em outro artigo. “Para qualificar a mons-truosidade de tais favores, basta recordar que não há memória deles, até hoje, na história dos bancos”.

No mesmo dia em que recebeu a concessão de Ouro Preto, o Ministro da Agricultu-ra Lourenço de Albuquerque – dependente de Ouro Preto --, através do decreto 10.372 presenteou o ainda Visconde de Figueiredo com concessões exageradas, entre as quais:

1) construção de uma grande bacia abrigada no porto do Rio de Janeiro para a pro-teção de navios;

Luis Nassif� 18/7/06 23:31Comment: Interamericano ou Internacio-nal?

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2) um sistema de cais, dentro dessa baía, onde navios de todo o tamanho possam atracar, e providos com guindastes hidráulicos e elevadores, trilhos e desvios de estrada de ferro, etc.;

3) armazéns e alpendres para o depósito de mercadorias;

4) uma estrada de ferro comunicante com a de D. Pedro II (hoje Central do Brasil);

5) uma área contígua às docas, para a construção de edifícios destinados ao co-mércio e ao porto, etc.

Através de sua coluna no “Diário de Notícias”, Rui Barbosa continuava reagindo.

"Esse curso forçado (o poder de não resgatar a moeda, isto é, de não entre-gar o ouro correspondente à emissão), que o contrato de 2 de outubro asse-gura ao Banco Nacional para qualquer ocorrência de crise, nunca o obteve o Banco de França senão duas vezes, ambas sob a pressão de grandes subver-sões nacionais”.

Na época, o Banco da França sofrera com as corridas provocadas por John Law.

A idéia de "armar o curso forçado vistosamente como figura de proa de uma institu-ição destinada especialmente ao resgate do papel-moeda, é o produto do nosso gê-nio indígena, cujas honras pertencem exclusivamente ao Visconde de Ouro Preto", vociferava Rui.

A 4, no artigo "Monopólios sobre monopólios", diz: "O contrato de 2 de outubro propõe-se evidentemente a dar ao Banco Nacional, em termos contrários à lei, à ciência, à praxe de todas as nações, a soberania do crédito em nosso mercado. O-ra, os perigos de conferir a um estabelecimento particular esse ascendente de in-comparável energia sobre a existência das sociedades modernas, encontram ampla lição na experiência do passado".

Ouro Preto se viu tão acuado que acabou assinando decretos estendendo a faculda-de de emitir ao Banco do Comércio do Rio de Janeiro e ao Banco de São Paulo5. A emissão também deveria ser sobre base metálica – isto é, tendo moedas de ouro como lastro.

A farra durou até o dia 15 de novembro, quando sobreveio a Proclamação da Repú-blica, o Visconde de Ouro Preto foi substituído pelo próprio Rui Barbosa no Ministé-rio da Fazenda. Menos de um mês depois, Rui apresentava uma proposta de criação de banco único de curso forçado. Apenas trocava o beneficiário: em vez do Conde de Figueiredo, seria o Conselheiro Francisco de Paula Mayrink.

O segundo ato do Encilhamento

Com a Proclamação da República seguiu-se um período de incertezas. O câmbio começou a ceder. Como havia 17 mil contos de moedas conversíveis na praça, po-deria haver um terremoto financeiro.

Em fins de novembro, o Banco de Paris e dos Países Baixos tirou o time de campo, e não aceitou os saques do Nacional, do Conde de Figueiredo, como intermediário dos empréstimos a Minas Gerais e Pernambuco.

Naquele momento, o Nacional tinha apenas 28 mil contos de fundo metálico para uma emissão conversível de 17.410 contos. Sem condições de segurar o câmbio, o Tesouro acabou recorrendo ao Banco do Brasil. Mesmo assim, em princípio de de-zembro não havia sinais de que o Banco do Brasil conseguiria administrar o câmbio. Vendo que a queda do câmbio era imediata, o Banco Nacional solicitou ao Ministro a suspensão da conversibilidade de suas notas. Rui Barbosa recusou. Com isso, o câmbio caiu durante dezembro, com ele a emissão em circulação do Banco Nacio-nal.

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Em vez de ajuda, o Nacional recebeu a sentença de morte, um decreto de Rui Bar-bosa, de 27 de dezembro, dando três meses de prazo para os bancos de emissão sobre base metálica completarem suas emissões até o limite autorizado, sob pena de perda da concessão. As emissões deveriam ser a 27 pence por mil réis. Como a taxa de câmbio estava a 24 ½ pence, ninguém iria se aventurar a isso. Com esse decreto, Rui destruiu o sistema de Ouro Preto, e preparou na surdina para colocar o seu sistema em vigor.

Em janeiro de 1890, Rui Barbosa apresentou seu projeto de reforma bancária, to-talmente inspirada nas idéias do Conselheiro Mayrink. O decreto autorizava a cria-ção de bancos emissores com bilhetes lastreados em títulos da Dívida Pública.

Depois da campanha ferrenha contra a reforma monetária de Ouro Preto, contra os privilégios de bancos emissores privados, contra o curso forçado, onze dias após a Proclamação da República, Rui Barbosa, o novo Ministro da Fazenda, colocava em prática tudo o que criticara antes. Havia apenas uma diferença em relação ao mo-delo Ouro Preto: o dono do modelo, agora, era ele próprio, Rui Barbosa.

De 26 de novembro a 8 de dezembro Rui concedeu o direito de emitir ao Banco Mercantil de Santos, ao Banco de Crédito Real do Brasil, ao Banco do Brasil, ao Banco Comercial do Rio de Janeiro, ao Banco Mercantil da Bahia, ao Banco de Per-nambuco e ao Banco do Comércio, ao Banco Comercial Pelotense, ao Banco da Ba-hia.

Criando vários bancos emissores, Rui destruiu os privilégios conferidos ao Conde de Figueiredo. Mas a intenção era reconstituir o privilégio para seus próprios aliados.

Apenas doze dias depois do novo Ministério tomar posse, Rui convoca uma reunião de financistas no seu gabinete, no edifício do Tesouro Nacional. Entre eles, estava o Conselheiro Francisco de Paula Mayrink, que se tornaria o banqueiro de Rui Barbo-sa.

O encontro foi descrito em reportagem de capa de “O País”, edição de 28 de no-vembro: "Depois do Sr. Ministro da Fazenda expor os motivos da reunião, o Sr. Conselheiro Mayrink indicou como providência mais acertada e pronta a que pres-creve a lei de 1885, autorizando o governo a emprestar aos bancos, sob caução de apólices gerais e bilhetes do Tesouro, indicados na mesma lei. Essa. indicação foi apoiada pelos banqueiros presentes e parece que será a do governo". E a República sequer completara um mês de existência.

Rui não lhes concedia o curso forçado a seco, mas através de um estratagema. Os bancos poderiam emitir tendo como lastro títulos públicos. E só fariam a conversão dos bilhetes por ouro se o câmbio permanecesse na paridade de 27 pences por um ano, hipótese absolutamente improvável

No Brasil daquele tempo, “quantidades incalculáveis do meio circulante se imobili-zam em acumulações particulares”, dizia Rui. “e somas enormes dormem empoça-das, estagnadas, esquecidas”.

Na época havia uma profunda discussão sobre política monetária entre duas corren-tes inglesas, a Currency School e a Banking School. Rui Barbosa defendia que, em países com elevado propensão ao entesouramento, havia a necessidade de uma maior quantidade de base monetária para fazer circular o mesmo volume de tran-sações. Com isso justificava a autorização para a criação de bancos emissores de moedas inconversíveis.

Assim como em tantos episódios cinzentos da história do Brasil, o projeto de Rui Barbosa apresentava uma proposta legitimadora para um conjunto de privilégios espantosamente amplos.

A parte legítima seria a de utilizar o poder de emissão dos bancos para amortizar a dívida pública. O Governo Provisório havia nomeado uma Comissão de Oficiais Su-periores para estudar a melhor maneira de eliminar a dívida pública brasileira. O presidente da Comissão era um coronel republicano, Cândido José da Costa, que

Luis Nassif� 18/7/06 23:31Comment: O que dizia uma e outra

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convocou o banqueiro Francisco de Paula Maryrink para apresentar suas sugestões. O coronel Cândido se tornaria o intermediário, que permitiria a Mayrink se aproxi-mar de Rui e se tornar o grande condestável da curta e turbulenta fase do Encilha-mento. (Magalhães Jr.,62)

O modelo proposto era o seguinte:

1. Os bancos poderiam adquirir os títulos da dívida pública no mercado, abaixo do par (isto é, com desconto). Mas, para efeito de emissão, seria considerado o valor de face do título. Com isso, os bancos ganhavam a diferença. O lastro poderia ser constituído gradativamente, à medida que houvesse novas emissões.

2. No início das operações, os bancos deveriam reduzir em 2% os juros das apóli-ces que constituíam o lastro – caindo de 5% para 3% ao ano. Depois, a cada ano reduziriam em 0,5% a taxa de juros, até zerar ao cabo de seis anos. Adicionalmen-te, os bancos se comprometeriam a constituir um fundo, com uma cota não inferior a 10% dos lucros brutos, para futuro resgate das apólices do lastro. Com isso, a remonetização ajudaria a liquidar a dívida pública.

3. As compensações eram amplas. Os bancos emissores teriam direito a terras de-volutas do governo, de graça, podendo colonizá-las e vendê-las, assim como criar estabelecimentos industriais. Teriam preferência nas concorrências públicas para construção de obras públicas, exploração de minas, colonização e migração. Os es-tabelecimentos industriais que fundassem teriam isenção de todos os impostos. Também poderiam operar com desconto, câmbio, hipotecas, penhor, negociar com terras (Magalhães Jr.,61).

4. Para contentar a lavoura, o Tesouro também garantiria juros de letras hipotecá-rias emitidas como contrapartidas aos empréstimos agrícolas.

Só que, em vez de um ambiente competitivo, definia três bancos monopolistas, um para cada região do país. O da região Centro teria sede no Rio de Janeiro e 200 mil contos de limite à expansão monetária. O da Região Norte teria sede na Bahia e 150 mil contos de limite de emissão. O da região Sul seria sediado em Porto Alegre, com 100 mil contos de limite de emissão.

O decreto de Rui foi assinado na chamada calada da noite, no dia 17 de janeiro. Os demais ministros só souberam de sua existência pelos jornais do dia seguinte. Ob-viamente, explodiu uma crise ministerial. Era um escândalo de grandes proporções em qualquer tempo e em qualquer circunstância política. Conferiam-se benefícios extraordinários a pessoas escolhidas solitariamente pelo Ministro da Fazenda, sem sequer o Presidente da República ter sido consultado.

No dia seguinte ao da publicação do decreto, Rui convocou o Conselheiro Francisco de Paula Mayrink para ser o responsável pelo banco emissor do Centro. O banco de Mayrink foi autorizado a funcionar por decreto de 29 de janeiro. No dia 5 de feve-reiro o novo banco incorporou o Banco dos Estados Unidos do Brasil. Em 24 de fe-vereiro o novo banco começava a operar.

Rui alegava que a transparência do processo poderia comprometê-lo, que as medi-das exigiam sigilo. Era total sua ascendência sobre Deodoro, que em decreto de 31 de dezembro o nomeara “vice-chefe do governo provisório”.

Três dias depois do decreto promulgado, houve uma reunião ministerial. No decor-rer dela, o Ministro da Agricultura, o gaúcho Demétrio Ribeiro reportou o óbvio. Que a incorporação do banco emissor do Centro pelo Conselheiro Mayrink configurava um “verdadeiro privilégio e monopólio”; que, de tão poderosos, os novos bancos iriam administrar o Estado. Deodoro interrompeu a reunião.

Houve uma segunda reunião, no dia 30 de janeiro, com o Ministério todo contrário à proposta de Rui. Com o impasse criado, alguns ministros propõem a demissão coletiva do Ministério. Não, Rui, para quem a decisão dependia do chefe de estado. O pacote de Rui avançava até em assuntos jurídicos, alterando as condições da e-xecução judicial.

Luis Nassif� 19/7/06 18:34Comment: Que banco era esse?

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Para evitar um pedido de demissão de Deodoro, os ministros resolvem aceitar a proposta de Rui Barbosa. Apenas Demétrio Ribeiro resiste. Insiste que o novo ban-co irá ferir as liberdades bancárias, absorverá todas as estradas de ferro, impedirá o crescimento dos pequenos capitalistas e que traria necessariamente a queda do câmbio.

Os impasses começam a ser resolvidos com concessões variadas. Contrário à lei, Campos Salles arranca um banco emissor para São Paulo. Lembra que “esse banco, poderoso por causa da zona, vai ser uma potência até em política. Veja-se o que acontece com os bancos criados pelo Visconde de Ouro Preto, os quais lhes deram ganho de causa nas eleições. Imagine-se que os recursos para toda a atividade de-pendem do chefe do banco, e conclua-se daí a sua influência” (Franco, 112). Rui diz concordar com a proposta.

Rui Barbosa minimizou os riscos do câmbio, da exata maneira com que Franco faria quase cem anos depois: “Se o câmbio desce, é que está demonstrando que a situa-ção econômica do país não permite manter-se essa taxa naturalmente acima dos 23”. Ribeiro insistiu: “Mas nosso dever é preocupar-nos seriamente com os prejuí-zos que nos possam trazer o fluxo de câmbio”.

Nada consegue. Resta a Demétrio o consolo proporcionado por Benjamin Constant: o de constar suas ressalvas em ata, e “mais tarde, caso seja infeliz o resultado do banco, aparecerão elas com brilho para o nome de S. Excia”. Nem isso a história lhe permitiu.

Na saída da reunião, já de madrugada, Demétrio desabafou com Aristides Lobo e Campos Salles: “Esse banco é pior que um cancro (...) além de expor-nos à maldi-ção pública, vai ser a ruína completa da pátria”.

De nada adiantaram o bom senso, a visão sólida de Demétrio perto da erudição de-senfreada de Rui. No dia 31, em carta a um amigo, Benjamin Constant diria que “diante da brilhante defesa de Rui, justificando a sua reforma, e da pálida acusação de Demétrio, não pude deixar de aceitar o decreto de 17, e aplaudir o seu autor, cuja capacidade sempre apreciei”.

O país dos bacharéis e dos cabeças de planilha lograra se impor sobre o bom senso de quem conseguia enxergar o futuro sem as lentes das formulações abstratas.

O malfeito foi feito sem nenhuma preocupação em analisar os desdobramentos do ato. O fantasma de John Law foi imediatamente lembrado pelo jornalista francês Max Leclerc, correspondente do “Journal des Débats”.

“Na França, onde tiveram origem muitas idéias, boas ou más, que desde en-tão se irradiaram pelo mundo, as pessoas de alguma memória não se esque-cerão de dizer: mas isto dá idéia de coisa já vista. Sem remontar mais longe do que o ano de 1718, não havia, então, um certo sr. Law, que pretendia co-locar as duas margens do Mississipi em ações? E não é verdade que esse grande homem saiu-se mal? É duvidoso, portanto, que a rua do Ouvidor se torne a rua Quincampoix do Rio”.

O terceiro ato do Encilhamento

Em fins de fevereiro entrou em funcionamento o Banco dos Estados Unidos do Bra-sil (BEUB). De cara, espocaram reações contra os privilégios conferidos aos bancos emissores.

Pior: o BEUB nasceu sob suspeita de uma fraude, de falsificação de seu capital. Es-sa suspeita surgiu em correspondência de 25 de janeiro de 1890, de Capistrano de Abreu ao Barão do Rio Branco. O BEUB colocara um milhão de ações na praça. Tu-do foi colocado no primeiro dia, mas –observava Capistrano—só Mayrink tinha fica-do com 600 mil ações. Ou seja, 60% do capital não encontrou tomador (Magalhães

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Jr.,67). Tempos depois, já no governo Floriano Peixoto, o Ministro da Fazenda Ser-zedelo Corrêa, constatou que a integralização do capital foi mero jogo de contas.

Explodiam de imediato reações contra os privilégios conferidos ao Conselheiro Ma-yrink. Um grupo de empresários, liderado por Paulo de Frontim, preparou um abai-xo assinado e o levou a Deodoro. Cercado por todos os lados, Rui escreve uma car-ta a Deodoro em 8 de março de 1890. Nele, lembra Deodoro que o Banco Nacional, do Conde Figueiredo, tinha um contrato “inconstitucional e monstruoso no governo imperial”, todos esperavam que ele, Rui, rescindisse, mas não o fez. Portanto, Fi-gueiredo lhe devia um favor. “Todavia isso não queria dizer que a sua situação fi-casse 'definitivamente regularizada, nem que o Governo Provisório houvesse re-nunciado ao direito, ou talvez antes o dever de encaminhá-la, e dar-lhe situação compatível com os nossos compromissos oposicionistas”. E dava o xeque em Deo-doro: “O Banco Nacional já ousa levar os seus emissários até a presença do chefe do Estado e conta abalar-me a confiança dele. Para que eu prossiga, pois, é essen-cial saber eu definitivamente se o meu velho chefe, a quem pertence a minha dedi-cação e a minha vida, mantém para comigo o pacto da confiança absoluta e dá-me, na luta contra esse inimigo, a autoridade ilimitada de que eu preciso a bem do Go-verno, da República e da pátria. Nesta hipótese estou pronto para tudo e irei com o chefe glorioso da revolução até o extremo limite do sacrifício, sem me importarem hostilidades, quaisquer que forem. Mas, não sendo assim, o cálice é amargo de-mais, e a minha posição não será dignamente sustentável”.

Deodoro cedeu, como cederia nas nove vezes restantes em que Rui o pressionou com pedidos de demissão.

No segundo semestre de 1889 diversos bancos tinham gastado suas reservas im-portando ouro e, com as modificações introduzidas por Rui, tinham sido prejudica-dos em sua capacidade de emitir moeda. Esses bancos tinham até o final de março para fazer suas emissões, sob pena de perder as concessões. Assim, Rui foi sendo pressionado a autorizar a emissão com base nas reservas metálicas, em regime de inconversibilidade.

As pressões vinham acompanhadas de uma imensa atoarda na imprensa, atingindo um Ministro da Fazenda moralmente fragilizado pelas concessões escandalosas con-feridas ao Conselheiro Mayrink. No dia 6 de março Rui Barbosa foi até Deodoro e exigiu a autorização para os demais bancos poderem emitir até o dobro de 20 mil contos em espécies metálicas, que seriam depositadas no Tesouro em regime de inconversibilidade. Condicionava sua permanência no Ministério à aprovação do pleito por Deodoro.

O Marechal assinou o decreto. Mas, antes de ser publicado, Rui Barbosa recebeu orientação de Matta Machado (homem de Mayrink) para modificações no decreto, que foram feitas e enviadas a Deodoro, depois de inutilizado o primeiro decreto.

Pelo novo decreto, de número 273, de 7 de março, o Banco Nacional e o Banco do Brasil poderiam emitir até o dobro da quantia de 25 mil contos, da quantia que es-ses bancos depositassem em moeda metálica no Tesouro. As moedas só seriam conversíveis se o câmbio se mantivesse acima do par por mais de um ano. No mesmo decreto, reduzia-se para 50 mil contos o direito de emissão do BEUB, do Conselheiro Mayrink.

O que parecia ser uma redução dos privilégios do BEUB ficou claro em agosto, quando o banco foi autorizado a emitir os outros 50 mil contos sobre a base metáli-ca – agora muito mais vantajosa do que sobre títulos públicos, porque se autoriza-va emissão sobre o dobro do valor das reservas– com as mesmas vantagens con-feridas ao Banco do Brasil e ao Banco Nacional em março. Mais uma vez, o Ministé-rio não foi consultado. Mais uma vez explodiram acusações contra Rui. Cesário Al-vim, o novo Ministro do Interior – que substituíra Aristides Lobo, que se demitiu no episódio de 17 de janeiro – fez o mesmo alerta de seu antecessor: seria um desas-tre. Rui defendia a proposta com o argumento de que, se não houvesse aumento da liquidez, haveria uma crise sem precedentes na praça. Cesário Alvim rebatia que

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dois bancos emissores, o do Brasil e o Nacional, não tinham completado sua emis-são, o que significava que não havia problemas de liquidez.

O decreto n.° 700ª, de 29 de agosto, dava ao Banco dos Estados Unidos do Brasil o direito de fazer nova emissão até o dobro de 25 mil contos, que depositaria no Te-souro. Rui vencera declarando que "sem essa medida justa, inadiável, imprescindí-vel, não poderia continuar no seu cargo".

Pouco depois, para superar as pressões, patrocinou a fusão do BEUB com o Nacio-nal, do Conde de Figueiredo, resultando no Banco da República, dando a gestão ao Conselheiro Mayrink. O novo banco emitiria o triplo do seu lastro ouro e faria o res-gate do papel-moeda, duas terças partes gratuitamente e a outra contra apólices de 4%. Agora se copiava integralmente o sistema bolado pelo Visconde Ouro Preto para beneficiar o Conde de Figueiredo (Magalhães Jr.,75). Rui fez questão de no-mear conhecidos, Felício dos Santos, Rodolfo de Abreu, Almeida Pernambuco, Silvio Romero para o banco.

Àquela altura, com os negócios completos, jogava-se para o lado as metas de redu-ção da dívida pública.

Para complicar a história, houve uma jogada especulativa na Argentina que provo-cou a quebra do Banco Berhings, com conseqüências inevitáveis sobre o câmbio brasileiro.

No início de 1891, já rico, tendo saído do governo para dirigir companhias, filhas do Encilhamento e do Conselheiro Mayrink, Rui lamentaria as decisões tomadas. Se não tivesse sido pressionado, diria ele, metade da dívida pública teria sido resgata-da. Quase cem anos depois, sócio de bancos, rico e realizado, o economista Edmar Bacha, um dos pais do Real, também se lamentaria da falta de força política para reduzir a dívida interna.

As conseqüências foram dramáticas. Primeiro, ampliou de forma drástica a capaci-dade dos bancos de emitirem. Segundo, como as emissões sobre as bases metáli-cas passaram a ser inconversíveis, deu enorme poder aos bancos para atuar no mercado de câmbio, utilizando suas reservas ainda não aproveitadas como lastro para a emissão de títulos.

No caso do encilhamento, os golpes foram montados em cima de emissões primá-rias de ações. O comprador pagava 10% do valor da emissão. A empresa era lan-çada. Quando necessitava de mais capital, procedia a novas chamadas. Se o inves-tidor não subscrevesse a nova chamada, perdia direito ao que já havia pago. Não havia mercado secundário, com a negociação dos papéis em bolsa.

Além disso, as ações eram negociadas por seu valor nominal. Se uma empresa ia mal, não havia queda na cotação dos seus papéis -- o que permitiria ao investidor reduzir seu prejuízo, vendendo o papel com desconto. Na hora de novas emissões, as empresas não tinham como reduzir o valor das ações, que estavam amarradas ao valor nominal dos vencimentos. Resultava disso o encalhe dos lançamentos pos-teriores, inviabilizando as empresas e dando prejuízo integral aos acionistas.

Embora não houvesse um mercado secundário formal, e teoricamente as ações cor-respondentes à primeira emissão não poderiam ser negociadas, criou-se uma gam-biarra, Usava-se uma "procuração em causa própria", que permitia a transferência da propriedade sobre as ações, sem e necessidade de assinatura no livro de regis-tro de ações da companhia.

Os Mendes de Almeida criaram os certificados de depósito, chamados de "war-rants", permitindo a circulação de títulos nominativos como se fossem ao portador, "mediante comissão insignificante" (Carvalho, 161).

De janeiro a abril, tal como Demétrio havia previsto, houve intensa desvalorização cambial, de cerca de 25%, seguida da volta da inflação. De uma taxa negativa de 16,1% em 1887, a inflação chegou a alcançar 84,9% em 1891, quando a especula-ção atingiu o seu auge6.

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Deodoro cobrou explicações de Rui. Sua resposta foi a de que o câmbio estava submetido a uma especulação do Banco Nacional, mas que não poderia durar muito tempo. A intenção dos especuladores seria a de enfraquecer o governo de Deodoro, mas não conseguiriam atingir seu intento. O Ministério aceitou as explicações.

Na verdade, tinha havido volume considerável de vendas de cambiais a descoberto antes da safra. Os tomadores dos papéis passaram a atuar para forçar a baixa do câmbio. No momento da liquidação, quem tinha vendido a descoberto foi obrigado a ir a mercado adquirir cambiais a preços muito mais elevados. A corrida dos com-pradores a descoberto deflagrou um jogo especulativo pesado, em que as somas jogadas eram sucessivamente mais elevadas7

Com a dinheirama inundando a economia, com as reservas de ouro dos bancos po-dendo influenciar o mercado de câmbio, o movimento especulativo em torno da Bolsa de Valores atingiu seu ápice.

Após a especulação com ações, seguiu-se uma muito mais ampla, sofisticada e in-tensa com o câmbio, em geral pouco estudada. Principalmente após a quebra do Bharing, especulando com câmbio na Argentina.

A desorganização financeira abria espaço para toda sorte de jogadas cambiais. Esse jogo consistia em vender ou comprar saques no exterior sem cobertura cambial. Só depois que chegavam as mercadorias e eram vendidas os importadores tinham os recursos necessários para as liquidações cambiais8.

O quarto ato do Encilhamento

No período de 1876 a 1886 houve um aumento de 1,067% nas transações na Bolsa de Valores e de 231% no número de companhias com títulos cotadas em pre-gão.ram 53 empresas, entre as quais 16 bancos, 11 companhias de seguro, 2 de fiação e tecidos, 21 de transportes e 3 de serviços públicos.

A partir de 1889 o aumento de transações é de 84% em 1889, 98% em 1890 e 45% em 1891. Em 1890 já eram 114 empresas listadas em Bolsa, das quais 43 bancos, 7 companhias de seguro, 10 de fiação e tecidos, 3 de alimentos e bebidas, 22 de transportes, 8 de serviços públicos, 2 de extração mineral, 3 de comércio, 5 de construção civil, uma de construção naval, 3 de recreação e esportes, 2 de colo-nização e cinco de setores não identificados9.

As grandes especulações bursátis promovidas por Rui Barbosa deixaram para se-gundo plano sua ação no campo da dívida pública. Desde a Independência, o endi-vidamento público sempre fora uma fonte de ganhos consideráveis para os bancos. Assim como hoje, a taxa de juros refletia o risco Brasil. Quanto pior o país, maiores as taxas.

Quando candidato à presidência, na Campanha Civilista, Rui fizera um manifesto com dezoito itens sobre atos que “não farei”. Um deles era: "Não empenharei a ga-rantia federal em empréstimos internos ou externos, contraídos por Estados ou municipalidades" (Magalhães Jr.,122).

No Ministério da Fazenda de Deodoro, além do Encilhamento, Rui escancarou as portas para o endividamento de estados e municípios. Em 14 de agosto de 1890, pouco antes de se reunir o Congresso Constituinte, Rui se antecipou e fez Deodoro aprovar um decreto pelo qual o governo federal iria garantir qualquer empréstimo aos estados até o limite de 50 mil contos. A intenção seria favorecer dois interme-diários ligados a um grupo de banqueiros ingleses, liderados pela firma Louis Cohen & Sons.

Eram João Pereira da Silva Monteiro e Alberto José Pimentel Hargreaves, que arti-cularam essa medida com Rui. Cinco dias depois do decreto ser publicado, um tele-grama da empresa Louis Cohen & Sons dava início ao processo de endividamento dos Estados.

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O contrato definia as obrigações dos Estados. Os juros seriam de 5% ao ano sobre o capital nominal emprestado e seriam pagos por um fundo cumulativo de amorti-zação de 1%. Para garantir o pagamento, os Estados dariam como garantiam, por lei especial, “as rendas precisas, provenientes da exportação e importação, ou quaisquer outras e que correspondessem aos compromissos contraídos”. O Tesouro garantiria qualquer inadimplência.

A crise fiscal e o esmagamento dos estados

Os negócios de Rui

Quando deixou o governo, no bojo de uma renúncia coletiva do Ministério Deodoro, Rui foi presenteado por Mayrink e outros banqueiros com um palacete em Laranjei-ras. Segundo relatou seu cunhado Carlos Viana Bandeiras, foi sua mãe (sogra de Rui) quem o convenceu a não aceitar o presente, porque tal coisa “não cheirava bem”.

A ficha de Deodoro só caiu mais tarde quando Rui vendeu a Quinta do Caju, de propriedade da União, sem consultar o presidente e por um preço considerado irri-sório. A venda foi anulada, Rui pediu demissão pela nona vez, Deodoro recusou pe-la última vez.

Quando saiu do Ministério, Rui já era um homem rico, participando de três empre-sas criadas no Encilhamento. Ainda se tornou presidente da Estrada de Ferro Goiás e Mato Grosso e do Banco Impulsor. Entre fevereiro e maio de 1891, em plena a-gonia do Encilhamento, o banco patrocinou cinco novos lançamentos no mercado.

Com o cunhado Carlos Viana Bandeira, o Carlito, e o Conselheiro Mayrink, ainda participou da fundação de um tal Banco Vitalício do Brasil que, como quase todos os empreendimentos de Mayrink, era subcapitalizado, com a subscrição constituída por notas promissórias. O banco acabou sendo fechado antes que explodisse o es-cândalo.

O prestígio angariado no Ministério ainda permitiu que se tornasse membro do con-selho de meia dúzia de empresas (Carvalho, 137). Depois de enriquecer, os atores do Encilhamento buscavam status social, prestígio político, refinamento cultural.

Pouco após a renúncia coletiva do Ministério de Deodoro, surgiram duas das últimas empresas do Encilhamento: a Companhia Estrada de Ferro Goiás-Mato Grosso e a Companhia Fomento Industrial e Agrícola do Mato Grosso.

A primeira foi autorizada por Francisco Glicério, colega de ministério de Rui, com inúmeros privilégios, rentabilidade assegurada. A segunda teve como objetivo colo-nizar os 40 quilômetros de terras ao redor da ferrovia. Provavelmente, tudo foi ar-ranjado pelo seu patrono, Conselheiro Mayrink, que também colocou Rui na presi-dência da Companhia Frigorífica e Pastoril Brasileira.

Fora os negócios em que se meteu seu cunhado. Foi ele quem conseguiu para Rui o posto de consultor jurídico da Light and Power Co. Ltd. E também envolveu o cu-nhado em inúmeros escândalos, como a fundação do Banco Vitalício do Brasil, colo-cando Rui como presidente. O banco tinha como capital apenas uma promissória de Mayrink a Carlito.

Em suas memórias, Carlito confessava que

"Minhas atividades em torno da Bolsa proporcionavam-me resultados que me faziam nadar em dinheiro. Os sucessos eram expostos na nossa roda como tacadas. De quando em quando, uma de 20, 30. de 50 contos. Vez por outra, uma de 100 ou mais. Agora, sim, apresentava-me como um capitalista. En-chi-me de boas roupas, calçados, chapéus e bengalas".

Nessa época, em que Rui foi Ministro, o cunhado tinha apenas 20 anos10.

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As relações de Rui com o capital financeiro internacional ficariam mais claras ainda nas reuniões de Haia –onde consolidou seu prestígio. O diplomata argentino Luiz Maria Drago defendeu uma posição que impedia países credores de usar da força para conseguir receber seus créditos de países endividados. A América Latina em peso votou a favor da proposta. O único voto contrário foi de Rui (Gonçalves, 118).

Em 1993, dois anos depois de deixar o governo, Rui estava suficientemente rico para comprar o palacete neoclássico na rua São Clemente, bairro do Botafogo, que pertencera ao Barão da Lagoa.

Interesses diversos

Os chamados interesses da cafeicultura não podiam ser entendidos de forma ho-mogênea. A cadeia do café tinha duas etapas: a interna e a externa. A interna era composta pelo plantador de café, pelo financiador (casa comissária, bancos) até chegar ao exportador. A partir daí, havia uma outra dinâmica, que era o circuito percorrido pelos dólares (ou libras) até os bancos internacionais.

O que impôs a agenda “liberal” (de livre fluxo de capitais) na Primeira República foram os interesses rentistas da última etapa da cadeia do café, a quem interessa-va câmbio livre e juros altos. Esse modelo enreda a economia do café em crises su-cessivas, levando, aí sim –pelo poder político do cafeicultor—, à gambiarra das polí-ticas de sustentação de preço que quebram as contas públicas.

Como se deu tal sobrevida a uma política que liquidava com a incipiente produção industrial local, mantinha o país na estagnação e submetia o principal setor produ-tivo –a cafeicultura— à espada de Dâmocles de crises sucessivas?

O jovem Gustavo Franco

O Brasil começava a ingressar na segunda era da internacionalização do capital, no início dos anos 80, quando o jovem Gustavo Franco terminou sua monografia, que se tornou vencedora do prestigiado Prêmio BNDES. O tema era justamente o Enci-lhamento.

Qualquer um que limitasse sua leitura do período à monografia de Gustavo, não teria dúvidas sobre as razões do fracasso a política monetária de Rui Barbosa. Pri-meiro, o escândalo político provocado pela decisão solitária de Rui Barbosa, de es-colher o vencedor do jogo. Depois, pela complacência de Rui com os abusos come-tidos pelo Encilhamento, e suas sucessivas tentativas de salvar o Conselheiro Ma-yrink das estripulias em que se metera.

O poder político da monetização era evidente na fala de Campos Salles, sobre o e-norme poder de que dispunha o Conde de Figueiredo, no curto espaço de tempo em que seu banco ganhou os poderes de emissor de moeda.

A retórica utilizada para a implementação do modelo monetário de Rui era compe-tentemente dissecada. A promessa (não cumprida) de acabar com a dívida pública, a retórica do “em todo lugar é assim”, a capacidade de Rui de enrolar Deodoro ora com um linguajar técnico fora da compreensão do presidente, ora com pedidos de demissão, ora com citações selecionadas sobre o que ocorria em outros países.

Sua grande indagação, durante todo o livro, era saber o que faltou para Rui Barbo-sa ter vencido o jogo, e os financistas terem avançado em sua missão de coordenar o desenvolvimento brasileiro.

Para Gustavo, Mayrink era um empreendedor à altura de Mauá. O plano de Rui era perfeito. Só falhara ao não dispor de um grande Banco Central para controlar as repercussões cambiais da quebra do Bharing.

A formação de Franco explicaria seu fascínio pelo jogo monetário e cambial, e pelas perspectivas que abria para o grande jogo do poder político.

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Seu pai é Gustavo Arinos, um amazonense que deixou uma cidade distante para se candidatar em um concurso do Banco do Brasil, venceu e ajudou na montagem do plano cambial que permitiu ao Brasil enfrentar a escassez de divisas da Segunda Guerra.

Depois, descoberta por Alzira Vargas, tornou-se assessor pessoal de Vargas. Dis-creto, leal, tornou-se especialista nas intrigas palacianas. Sabia, como ninguém, que o poder, nas burocracias, residia na capacidade de organizar idéias e preparar decretos.

Quando Vargas caiu a primeira vez, Guilherme foi um dos dois servidores leais que acompanharam o ditador ao seu exílio, em uma casa de fazenda sem luz elétrica. O outro era Gregório Fortunado, o Anjo Negro.

Anos mais tarde, associou-se à recém fundada Corretora Garantia, de Jorge Paulo Lehmann, que o ajudou a administrar a caixinha política do então governador do Rio Marcelo Alencar, seu parente. Terminou com 1% da corretora, depois Banco Garantia, o suficiente para torná-lo rico.

Não era o dinheiro que o entusiasmava, mas o jogo político, a capacidade de mudar o país, de participar dos jogos de poder. E essa paixão ele transmitiu ao filho Gus-tavo. Não apenas transmitiu como conferiu-lhe a responsabilidade futura de ser um ator político relevante.

É essa formação que explicava, ao lado de conhecimentos teóricos sobre política monetária e câmbio, o deslumbramento com o poder mágico da moeda no jogo po-lítico de um país e com a a extraordinária capacidade de Rui de transformar conhe-cimento técnico em poder político, em desenvolver argumentos legitimadores para ocultar privilégios intoleráveis.

Enquanto o jovem Gustavo completava seus estudos, o país iniciava o longo ciclo de mudanças, que começa com o fim do Regime Militar e desemboca no Plano Real.

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A volta do poder aos civis deu-se aos solavancos. A campanha pelas eleições dire-tas não prosperou, por receio das próprias lideranças civis. Em um pleito indireto, Tancredo Neves, político antigo, respeitado, ex-Ministro de Vargas, de Jango, ven-ceu as eleições tendo como vice José Sarney, egresso da Arena, partido do gover-no. Tinha início a Nova República, mas enfrentando um quadro econômico bem mais complexo que a bonança encontrada por Deodoro e Rui Barbosa na Proclama-ção.

A inflação já era o grande problema nacional. No início da década de 80, o aumento das taxas de juros internacionais e do preço do petróleo havia varrido a economia brasileira como um vendaval. Ao mesmo tempo, em 1979 assumia a presidência o general João Baptista Figueiredo, despreparado, açoitado de um lado pela crise in-ternacional, de outro pelo esgarçamento político do seu governo.

No começo de 1980, Delfim Netto assumiu o Ministério da Fazenda, com um pro-blema adicional, a aprovação da nova lei salarial instituindo reajustes semestrais de salários. Para acomodar as pressões, Delfim preparou um pacote econômico, que consistia em uma maxidesvalorização, seguida de um congelamento da correção monetária e do câmbio. Seis meses depois a maxi havia sido comida pela inflação. O congelamento da correção monetária provocou uma onda de saques na poupança ajudando a botar mais lenha na fogueira da inflação. A apreciação do câmbio, mais os custos adicionais do petróleo e dos juros levam o país à moratória em 1982. Em 1983, com outra maxidesvalorização Delfim conseguiu equilibrar as contas exter-nas, ainda que à custa de uma elevação substancial da inflação que, por sua vez, ajudou a equilibrar as contas externas e permitiu ao país começar a acumular supe-rávits comerciais expressivos.

Quando Sarney assumiu, as contas externas e internas estavam em ordem, a eco-nomia começava a se recuperar da recessão de 1982. O desafio era a inflação. É nesse momento que surgem os economistas do Cruzado.

Desde o início dos anos 80 o tema da inflação inercial atraía a atenção dos econo-mistas brasileiros. Estudiosos como Luiz Carlos Bresser Pereira, Yoshiaki Nakano, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, Adroaldo Moura da Silva, da Faculdade de Economia da USP, Chico Lopes, da FGV do Rio, começavam a se aprofundar no tema. No exterior, os estudos foram levados adiante por Pérsio Arida e André Lara Rezende.

Até aquele início dos anos 80, o pensamento econômico acadêmico se dividia em duas escolas. À esquerda, os economistas ligados à Unicamp, entre os quais Luiz Gonzaga Belluzzo, João Manuel, Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa, herdei-ros da tradição estruturalista de Celso Furtado. À direita, um grupo de economistas monetaristas, formados na Universidade de Chicago, como Paulo Guedes, Paulo Rabello de Castro, discípulos de Roberto Campos, reunidos em torno da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, na qual Chico Lopes e o jovem economista Paulo Nogueira Baptista Júnior eram vozes dissidentes.

No começo da década, a Faculdade de Economia da PUC-Rio começou a montar seu círculo de economistas. Contratou Edmar Bacha, Pedro Malan, Chico Lopes, Pérsio Arida e André Lara entre outros, aos quais se somava o sólido conhecimento de e-conometria de Dionísio Dias Carneiro e o conhecimento histórico de Marcelo de Pai-va Abreu. O primeiro livro, que sinaliza o lançamento do Departamento de Econo-mia, propunha uma revisão no papel do Estado, mas ainda lhe conferindo um papel bastante ativo.

Todos tinham em comum o fato de não serem ligados à ditadura. Naquele momen-to, compunham a enorme frente que se montava para ocupar o poder.

Luis Nassif� 18/7/06 23:31Comment: Mais detalhes do livro

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O mais preparado deles, Chico Lopes, era filho de Lucas Lopes, figura central do Plano de Metas de Juscelino Kubistcheck, e mais brilhante professor da FGV, da qual saiu por conflitos internos. Pedro Malan notabilizara-se pela atividade sindical. Era funcionário público ligado ao IPEA.

Bacha tinha vindo de Minas, passara pelo IPEA e, nos anos 70, escrevera uma uto-pia a quatro mãos com Roberto Mangabeira Unger, professor de Harvard. Depois, se notabilizara pelo estudo dos chamados "déficits gêmeos" e por ter cunhado a expressão Belíndia para definir o Brasil, mistura de Bélgica e Índia. Em determinado momento dos anos 80 ganhou sua consagração, a partir de um elogio de Mário Henrique Simonsen, reputando-o seu sucessor no pensamento econômico brasilei-ro.

André Lara Rezende era filho de Otto Lara Rezende, cronista mineiro, jornalista respeitado nos ambientes intelectuais do Rio de Janeiro. Pérsio Arida, filho de um comerciante paulista de origem libanesa, guerrilheiro precoce que foi preso antes dos vinte anos e desistiu da militância. Eram considerados os dois mais brilhantes do grupo.

Depois de um início de governo conturbado, Sarney demitiu o Ministro da Fazenda Francisco Dornelles, que havia sido indicado por Tancredo. Em seu lugar nomeou o então presidente do BNDES Dílson Funaro, industrial paulista dono de uma fábrica de brinquedos, a Trol. Funaro indicou para a presidência do Banco Central Fernão Bracher, grande especialista em câmbio. Foi em torno dele que se juntaram os fu-turos economistas do Real.

De família tradicional de São Paulo, ex-militante da Ação Popular nos anos 50, dire-tor do Bradesco, Bracher era respeitado pela seriedade e apuro intelectual que o distinguia dos demais banqueiros da época.

Havia sido diretor do Banco Central no governo Geisel, tendo como presidente Pau-lo Lyra. Estava como diretor do Banco da Bahia, quando este foi adquirido pelo Bradesco. Tornou-se vice-presidente da Área Internacional do Bradesco, até ser convocado para assumir a presidência do Banco Central, quando o primeiro Ministro da Fazenda de Sarney, Francisco Dornelles caiu.

Àquela altura, os estudos sobre inflação inercial tinham avançado bastante. Funaro assumiu levando consigo economistas ligados à Unicamp, liderados por Luiz Gonza-ga de Mello Belluzo e João Manuel Cardoso de Mello. Bracher levou Pérsio e André como diretores do Banco Central, Chico Lopes como assessor. Um terceiro grupo se formou em torno de João Sayad, indicado pelo governador paulista Franco Montoro, de quem havia sido Secretário. Começaram ali a preparar o Plano Cruzado.

A idéia central do plano é que o componente maior da inflação era inercial. Os pre-ços subiam hoje porque tinham subido antes. Subiam em relação ao valor da moe-da, mas tinham pouca variação entre si. Ou seja, uma laranja poderia dobrar de preço em determinado período, mas mantinha o mesmo valor em relação a um li-mão.

A idéia central do plano consistia, portanto, em eliminar o elemento inercial. Isso se daria através de uma troca de moedas, e de um processo conduzido de conversão dos preços da moeda antiga para a nova moeda, especialmente dos contratos. Em relação à conversão, o plano trabalhava com o conceito de fluxo e de estoque. Flu-xos (no caso contratos continuados,) eram convertidos pela média; estoques, pelo pico. Havia ainda um vetor para impedir que resíduos da inflação da antiga moeda contaminassem a nova.

Seguia-se um congelamento de preços e de câmbio por determinado tempo, neces-sário para que a população se acostumasse com a nova moeda. Decidiu-se final-mente, que a conversão dos salários também seria feita pela média, mas com um acréscimo de 8%, para tornar o plano mais palatável.

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As condições da economia na época não recomendavam a adoção do plano. Em planos dessa natureza, com âncora cambial e de congelamento de preços, há a ne-cessidade de um comércio exterior atuante, que permitisse a importação de bens em setores pressionados pela demanda interna. O comércio exterior brasileiro era praticamente inexistente.

Havia a necessidade de uma política cambial flexível, que absorvesse os choques de demanda. A política cambial brasileira era indexada e, depois do Cruzado, foi con-gelada. Mas todo o congelamento – de câmbio, de preços e contratos – tinha data certa para terminar: assim que o Cruzado completasse um ano.

Havia a necessidade de instrumentos consistentes de política monetária, que permi-tissem estender o prazo das aplicações e melhorar a eficácia da política de juros. O open market no Brasil era constituído de títulos públicos de curtíssimo prazo, pelos quais se pagavam taxas astronômicas de juros -- plena liquidez com plena rentabi-lidade.

Finalmente, as empresas não estavam preparadas para operar em regime de esta-bilidade. Não havia programas de qualidade, não havia gestão moderna, nem par-cerias. E os Cruzados não tinham a menor idéia sobre os efeitos da estabilização na liquidez da economia, na remonetização, nos ganhos salariais, na balança comerci-al.

Mesmo assim, tocou-se o plano. Fim da inflação, câmbio apreciado, salários aumen-tando, desestímulo à poupança provocaram uma explosão de vendas e uma pres-são incontrolável sobre os preços. E não se tinha nem como aliviar do lado das im-portações, nem do lado dos juros. O plano explodiu antes de completar o primeiro ano.

Pouco antes de sua explosão houve uma reunião em Carajás, onde compareceram todos os economistas do Cruzado, dos "inercialistas" como André e Pérsio, aos "es-truturalistas" ligados a Funaro, e o grupo de João Sayad, egresso da USP e ligado ao governador paulista André Franco Montoro.

Na reunião, não houve consenso sobre o que fazer para salvar o plano. A rigor, não tinha salvação. Não havia saída indolor do congelamento, as pressões de preços eram incontroláveis. Alguns dos economistas sugeriram aumento de juros, outros a criação de novos impostos. Qualquer que fosse a receita, não tinha como evitar a explosão dos preços, assim que se iniciasse a contagem regressiva para o fim do congelamento.

A saída foi a pior possível, através do Cruzado Dois, que impunha enorme reajuste no preço da gasolina. Seguiu-se uma temporada de superinflação que prosseguirá até o final do governo Sarney.

Para chegar ao final do governo, Sarney teve que apelar para mais dois planos eco-nômicos. Um, o chamado plano Bresser --implementado pelo novo Ministro da Fa-zenda Luiz Carlos Bresser Pereira. O outro, o plano Verão, implementado por Maíl-son da Nóbrega, funcionário de carreira do Banco do Brasil, secretário executivo da Fazenda, que assumiu o Ministério após a saída de Bresser e a recusa de Andréa Calabi em assumir o posto.

O Cruzado tinha sido um completo fracasso. Mas mostrou enorme eficácia política. Antes que acabasse, ajudou a eleger 23 governadores do PMDB. E, junto à mídia, consolidou-se a versão de que seu fracasso fora devido a a uma suposta indecisão de Sarney de acatar as recomendações dos Cruzados na reunião de Carajás. Para alimentar essa lenda, em muito contribuiu o sebastianismo intrínseco na cultura brasileira, de se aguardar sempre um salvador.

Muitas coisas explicavam esse encantamento com o Cruzado. Mal entrando na de-mocracia, a opinião pública experimentava dois desencantos, com o regime militar, que terminara, e com os primeiros ensaios da democracia que nascia. Havia uma desconfiança enorme em relação a políticos, a interesses corporativos. Os econo-

Luis Nassif� 18/7/06 23:31Comment: Conferir número de governa-dores

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mistas representavam a suposta visão técnica, neutra, técnicos isentos acima dos interesses e paixões da política.

Os novos financistas

A ligação dos novos economistas com o mercado começou antes mesmo de termi-nar o governo Sarney. Àquela altura, a falta de regulação e de transparência permi-tiram a criação de dois movimentos especulativos intensos.

O primeiro, foi a quitação antecipada de dívida externa. Com a moratória decretada por Dílson Funaro em fins de 1986, os títulos da dívida brasileira, a soberana e das estatais, desabaram. O negócio consistia em adquirir essas dívidas no exterior com 70 a 80% de desconto, depois revendê-la para as estatais com 30% de desconto. Os lucros eram excepcionais. Não se tratava de uma novidade. Nos anos 30 e 40 muita riqueza foi construída dessa maneira, com compra desagiada da dívida e in-formações privilegiadas.

A segunda brecha foi uma autorização do Ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, para a conversão de dívida externa em cruzeiros, pelo valor de face. Foi uma es-bórnia que ajudou a alimentar a inflação e foi uma das responsáveis pelo fato da inflação ter superado os 50% nos últimos meses do governo Sarney.

Os novos financistas brasileiros tinham acompanhado atentamente os primeiros movimentos de liberalização na América Latina, a experiência chilena com os “Chi-cago’s boys”. Pinochet se valera deles para abrir a economia e iniciar o processo de privatização.

Valendo-se de sua influência, os economistas montaram modelos de privatização que permitiram a vários deles assumir o controle de grandes estatais chilenas, re-presentando fundos de investimento externo, ou participando com parcela ínfima de capital.

Quando se deu conta de seus exageros, Pinochet mandou prender alguns, e foi cu-nhado o apelido de “pirañas financeras” para o personagem que, nos tempos de Rui, era chamado de financista.

Luis Nassif� 18/7/06 23:31Comment: Conferir se foi Maílson. E como foi

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Enquanto a jovem Nova República se debatia com a própria ausência de institucio-nalidade, a partir dos anos 70 a economia mundial começava a viver uma nova rea-lidade. O grande pêndulo das idéias econômicas hegemônicas começa a se inverter, a se afastar dos princípios moribundos de Bretton Woods e a buscar de novo a ple-na liberardade de movimento dos fluxos financeiros. A partir da decisão do presi-dente americano Richard Nixon, de desvincular o dólar do padrao ouro, em 1972, voltava-se ao panorama que sacudiu o mundo nas três últimas décadas do século 19.

Os anos 80 foi um período de fortes movimentos especulativos criados pelas novas modalidades de operações financeiras e pela descoberta de novos ativos, capaz de atrair a excepcional liquidez internacional.

Nixon

Reagan

As revoluções tecnológicas

Com a consolidação dos grandes complexos eletroeletrônicos, a economia interna-cional sofre uma profunda inflexão, uma revolução abrindo janelas de oportunidade para novos países.

Algumas dessas tendências começam a surgir nos anos 80 e ganham vigor nos a-nos 90 (Luciano Coutinho, http://www.perseuabramo.org.br/td/td16/td16_economia.htm).

• A emergência do complexo-eletrônico como principal complexo industrial e como epicentro da inovação;

• O aprofundamento da automação industrial integrada e flexível sob comando de computadores;

• A revolução correlata nos processos de trabalho, nas relações de trabalho e nos requerimentos educacionais;

• A revolução nas formas de organização e de gestão empresarial, com o avanço das redes-de-cooperação intra e inter- empresas;

• A globalização das relações financeiras e dos mercados de capitais, acompanhada de notável interpenetração patrimonial entre as grandes burguesias capitalistas;

• A emergência de novas formas de concorrência entre grupos de empresas oligo-polistas, através de alianças tecnológicas;

• O aguçamento da competição mundial, através da construção deliberada de com-petitividade, como resultado de estratégias conjuntas entre Estado e setor privado.

As novas tecnologias lograram ganhos de produtividade fantásticos. A indústria moderna entrou na era da mecânica de precisão, da robótica, a explosão das cadei-as produtivas das empresas, graças ao controle permitido pela informatização e pe-la Internet. As compras de insumos passaram a ser feitas automaticamente, graças à interligação das redes de computador pelas diversas cadeias produtivas.

No plano gerencial, as novas revoluções levaram o conceito de competitividade a níveis jamais vistos, com os programas de qualidade total, as metas de erro zero,

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as grandes fusões visando conquistar escala, e o novo mundo que se desenvolvia em torno das conquistas da microeletrônica.

Os Grandes Movimentos Especulativos

A partir do final da paridade dólar-ouro, o mercado começa a desenvolver diversas ferramentas de "hedge", como derivativos, opções e outras formas, que permitiam alavancar lances no mercado. A tecnologia teve papel essencial, através da telemá-tica permitindo a integração das diversas bolsas internacionais.

Foi o início de um período que mesclou bolhas especulativas com grandes escânda-los corporativos. Em 1982 explodiu a moratória do México, seguida da do Brasil. Nos anos seguintes, o mundo testemunharia o “crash” da Bolsa de Nova York em 1987, a crise do mercado imoliário norte-americano, a crise bancária japonesa.

O mais famoso escândalo do período foi o dos "junk bonds", movimento encerrado com a quebra do Banco Drexel Burnham e a prisão de seu proprietário Michael Mil-ken, por uso de informações privilegiadas.

No final da década explodiu nova bolha especulativa em Tóquio, depois de quase uma década de especulação na Bolsa local (Carvalho, 64). Houve denúncias de en-volvimento da máfia japonesa, demissão do presidente da Nomura Securities, mai-or corretora do Japão, e envolvimento de quase todos os grandes bancos japoneses com a especulação. Essa crise custou mais de uma década de estagnação da eco-nomia japonesa.

Os déficits gêmeos americanos aumentavam expressivamente a liquidez mundial, levando à emissão quase descontrolada de dólares. Por sua vez, o frenético ritmo de mudanças tecnológicas, de um lado, a instabilidade cambial do outro, levaram os capitais a se concentrar `cada vez mais no curto prazo, através das novas fer-ramentas financeiras que foram sendo desenvolvidas.

O mercado brasileiro começou a descobrir a jogatina mundial ainda no começo dos anos 80, com a Corretora Tieppo, de São Paulo, que passou a captar recursos de grandes investidores paulistas para aplicar no mercado internacional -- apesar da proibição da evasão de divisas. A corretora criou, sua contabilidade paralela (que identificava os investidores que aplicavam no exterior), acabou desaparecendo sem que houvesse punição. Ficou apenas o prejuízo.

Nos anos seguintes, a especulação em bolsa aumentou substancialmente. O regime militar ia por água abaixo, e, após o Cruzado, a inflação parecia incontrolável. Sur-giram novas corretoras, agressivas que, em seguida, se transformaram em bancos de investimento, após uma medida do Banco Central flexibilizando o sistema de cartas patentes.

Essas corretoras eram integradas por economistas e tesoureiros formados no exte-rior, dominando as novas ferramentas e a matemática da arbitragem de taxas. A-tuavam em duas frentes principais. A mais relevante era no mercado de taxas, de apostas feitas em torno de índices de inflação e de indexadores divulgados pela Re-ceita, pelo BC e por instituições privadas, como a Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Tornou-se folclórica a capacidade estatisticamente impossível desses grupos acertarem todas as taxas e projeções.

A segunda frente era no mercado de ações, mas preferencialmente utilizando o mercado futuro. A Bolsa de Valores era dominada por grandes especuladores, que se valiam de informações privilegiadas e de poder de fogo. Investidores como Nagi Nahas, Mathias Machline, Léo Kriss, se digladiavam no mercado, enquanto os novos bancos iam comendo pelas bordas, sempre atuando com o uso intensivo da mate-mática para ganhar na arbitragem.

Luis Nassif� 18/7/06 23:31Comment: Quando foi

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O ganho fácil proporcionado pelas operações de mercado aberto e de arbitragem de taxas atraiu também grandes grupos industriais, que se juntaram na constituição de corretoras para operar com seus caixas.

Essa fase terminou com o crack da Bolsa em 1989, que acabou levando à quebra da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, e marcou o fim dos mega-investidores da época, consagrando os novos bancos como os donos da liquidez.

Pouco tempo depois veio o Plano Collor, o bloqueio de cruzados. Nos meses seguin-tes, teve início uma pesada onda de exportação de capitais através de doleiros e do mercado de dólar-cabo --pelo qual, as ordens de transferência eram dadas via tele-fone ou fax.

Dos grupos que explodiram nessa época, os destaques maiores foram o Icatu, o Garantia e o Pactual, ao lado do PEBB, Bozzano Simonsen. Os três primeiros acaba-ram sendo apelidados de IGP -- uma ironia com a sigla do Índice Geral de Preços da FGV, um dos principais índices em torno dos quais se montavam as apostas no período e onde havia suspeita reiterada de vazamento de informações.

O Garantia era de Jorge Paulo Lehman, filho de suíços e ex-campeão brasileiro de tênis amador. Depois de ter amargado uma falência algum tempo antes, Lehman se reerguera e passara a trabalhar o banco com afinco, investindo em novos talentos e implantando o sistema de participação em resultados que viria a ser imitado pelos seus concorrentes. Como as previsões de inflação e os movimentos macroeconômi-cos tinham influência decisiva nos resultados do banco, um dos sócios era o eco-nomista Cláudio Haddad, formado em Chicago.

O Pactual foi formado por um dissidente do Garantia, Luiz Cezar Fernandes, tendo como economista outro egresso de Chicago, Paulo Guedes.

O Icatu era da família Almeida Braga. O dono, Braguinha, português competente, montou uma grande seguradora, a Atlântica Boavista. Em determinada época, as-sociou-se ao Bradesco. Quando o casamento acabou, Braga montou o Icatu e levou para dirigi-lo o jovem PhD recém formado, Daniel Dantas, que trabalhava no Bra-desco. Daniel Dantas se destacaria, desde cedo, por práticas pouco convencionais, como uma proximidade perigosa com gestores de fundos de pensão.

O referencial intelectual máximo desse grupo era o ex-Ministro Mário Henrique Si-monsen, conselheiro mundial do Citigroup. Foi ele quem apresentou Daniel Dantas ao mercado e aos economistas do Cruzado, quando Bracher ainda presidia o Banco Central.

No final do governo Sarney, Dantas já se associara ao Citigroup e conseguira adqui-rir ações da Telebrás por menos de um dólar a ação. O jogo financeiro dos anos 90 já estava plenamente delineado.

Ao final do governo, o ex-Ministro João Sayad tinha se associado ao Manufactures Hannover -- banco que perdeu o bonde da conversão por descuido dos sócios ante-riores. Com a flexibilização das cartas patentes bancárias, Bracher comprou uma carta patente do Banco Econômico e a manteve até sair do governo, quando se as-sociou ao Credistantalt da Áustria na criação do banco BBA-Credistantalt. Um dos B era de Bracher, outro de Beltrán Martinez (ex-executivo do Bradesco) e o A de Ari-da, que acabou recusando a sociedade. Luiz Carlos Mendonça de Barros montou um banco agressivo, com capitais de grandes grupos privados nacionais, e acabou que-brando a cara no crack da Bolsa em 1989. André e Pérsio acabaram indo trabalhar no Unibanco. De certo modo, representavam a face civilizada da financeirização da economia.

Os desarranjos da economia levavam, de um lado, a grandes oportunidades de ga-nho. De outro, induzia o grande capital brasileiro a se dolarizar. Esse processo de dolarização, de expatriação de capital atingiu seu auge depois do bloqueio de Cru-zados no plano Collor.

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Em trabalho de 1992, Gustavo Franco já comprovava o fenômeno da dolarização da poupança financeira. Estudos sobre as taxas do câmbio "black" demonstravam que as variáveis sazonais (dólar para turismo) tinham perdido relevância no período posterior a 1985. O que passava a contar eram as variáveis macroeconômicas, co-mo taxa de câmbio oficial, o diferencial de juros e as avaliações sobre o déficit pú-blico.

"Dificilmente esta mudança pode deixar de se associar ao crescimento de importân-cia do "black", ao fim da década de 80, como veículo de fugas de capital, ou de in-vestimentos de carteira da parte de residentes", constatava Franco. Estudos de No-vaes, em 1990, indicavam que em 1989 o "black" estaria movimentando algo entre US$30 milhões e US$45 milhões diários. Não entrava na conta o "câmbio-turismo", criado em janeiro de 1989, que movimentava US$18 milhões diários1. A conclusão de Franco era óbvia: "o "black" cresce de importância ao final dos anos 80, em fun-ção do notável crescimento das fugas de capital do Brasil".

“O ponto importante a destacar diz respeito às conseqüências dessa mudança, ou seja, do notável aumento da dolarização da riqueza financeira no Brasil. O ponto de vista deste ensaio é que disto resultou uma importante mudança qualitativa do re-gime cambial brasileiro: evoluiu-se de um sistema de câmbio administrado e mer-cado paralelo marginal para um sistema de câmbio dual, onde boa parte das tran-sações da conta capital tem lugar no "black".

Deve-se notar que a extensão dos movimentos de currency substitution está limi-tada "estruturalmente" pois, no caso de uma moeda não conversível como a nossa, somente se pode obter dólares: (i) ou de não residentes através de manipulações de transações do balanço de pagamentos, tais como subfaturamento de exporta-ções; (ii) ou de residentes detentores de dólares que aceitam vendê-los em função de suas expectativas de desvalorização e diferenciais de taxas de retorno. Note-se que, neste último caso, trata-se de transações entre residentes, ou seja, fora do balanço de pagamentos do país3, mas de impacto significativo sobre a taxa de câmbio.

Na monografia sobre o “Encilhamento”, Gustavo não tinha conseguido entender al-guns movimentos não captados pelas contas do balanço de pagamentos. Agora, tendo a realidade à mão, entendia que os movimentos financeiros, mesmo sendo através do “black” já tinham impacto significativo sobre a taxa de câmbio.

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A rigor não se poderia afirmar que a nova economia mundial fosse, em princípio, prejudicial aos países emergentes. Assim como no final do século 19, abria enorme possibilidade para que países com visão estratégica e vontade política pudessem se prevalecer dos novos ventos e serem os novos vitoriosos do modelo, assim como o Japão, Alemanha e Estados Unidos no final do século 19. Quem não decifrasse a esfinge, seria devorado, como foi o Brasil do início do século 20.

O Brasil entrou na era moderna por duas portas, uma execrada pela chamada direi-ta, outra pela chamada esquerda. A primeira foi a Constituição de 1988, a segunda, a eleição de Fernando Collor de Mello em 1989.

Criou-se, no senso comum, a idéia de que a Constituição foi anacrônica, ao permitir concessões, como estabilidade a 5 mil funcionários indicados no governo anterior. Ou permitir benesses com a Previdência.

A Constituição Cidadã -- como era chamada -- foi muito mais que isso. Ao lado de defeitos, permitiu avanços fundamentais, como a consolidação dos direitos do con-sumidor, através do Código de Defesa do Consumidor. Esse instrumento tornou os consumidores cada vez mais exigentes, constituindo-se em um enorme poder de pressão para a modernização das empresas e dos produtos. Consagrou a defesa do meio ambiente, através do Código de Defesa do Meio Ambiente. Instituiu um novo federalismo, repassando para estados e municípios verbas que, antes, eram distri-buídas subjetivamente pelo executivo. Vinculou recursos para educação e saúde, permitindo a consolidação de uma rede básica universal, embora precária.

Pouco antes da Constituição, em 1985 um grupo de técnicos do BNDES, liderados pelo economista Júlio Mourão, apresentara o mais consistente programa de moder-nização da economia brasileira.

E, nesse ponto, é importante uma pausa para se voltar a Friedrick List, e as etapas que ele identificou na formação das nações emergentes. Remando contra a maré de Adam Smith, List propunha uma forte intervenção do Estado na fase inicial de con-solidação de uma nova economia.

O Brasil já completara o segundo ciclo de Lizt, a substituição de importações. Preci-sava agora ingressar no terceiro, a abertura gradativa da economia, permitindo às empresas nacionais experimentatr a competição e ganhar experiência internacional.

O Brasil estava prestes a entrar na terceira onda, e os estudos do norte-americano Michael Porter teriam papel decisivo na criação de uma nova consciência de desen-volvimento.

O programa que mudou o Brasil

Poucas vezes na história do país um episódio revelou tão profundamente o poder transformador das idéias e foi tão elucidativo acerca dos malefícios que as igreji-nhas acadêmicas e a politização da discussão econômica causaram ao país, do que o que ocorreu com a teoria da "integração competitiva", desenvolvida no âmbito do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social). Era o primeiro passo consistente para preparar a economia para a terceira etapa preconizada por Friedrick List – quando o país, completada sua industrialização, começa a se abrir para o exterior, visando ganhar competitividade e montar parcerias estratégicas.

Pai da "integração", o economista Júlio Mourão começou a formular suas idéias a partir de 1983, quando assumiu o Departamento de Planejamento do BNDES.

Formado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com mestrado de engenha-ria de produção pela Coppe-UFRJ (mais tarde, com pós-graduação pela Unicamp),

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Mourão entrou no banco em abril de 1966 e seu primeiro local de trabalho foi na mesma sala de Ignácio Rangel, que se tornaria a partir dali seu guru.

Há muito Rangel era considerado o mais criativo economista brasileiro. Em fins de 1979, surpreendera os setores ortodoxos de esquerda (que o veneravam) prevendo o esgotamento financeiro do Estado e a necessidade de substituí-lo por capital pri-vado nos investimentos em infra-estrutura.

Logo depois de assumir o cargo, no início de 1984, Mourão decidiu trabalhar no primeiro Cenário Decenal para o banco. A política do BNDES, na ocasião, incorria em um equívoco central. Ainda se achava que a saída da recessão dependia exclu-sivamente de investimentos públicos. Já que o Estado estava quebrado, a recessão seria de longo prazo. Logo, seria preciso que o BNDES amparasse um núcleo de empresas nacionais, que ele próprio ajudara a construir no período anterior, até que passasse o período difícil. A partir dessa premissa, os investimentos do banco concentravam-se exclusivamente no financiamento de obras de infra-estrutura de retorno problemático (quase todas tornaram-se inadimplentes), e em operações-hospital, com financiamento para saneamento financeiro de empresas privadas.

Para assessorar na organização foi contratado Eduardo Marques, da Comissão Na-cional de Energia Nuclear. Foi Marques quem convenceu Mourão a utilizar o concei-to de Cenário, utilizando o método de Michel Godet, economista francês de quem fora aluno, que trabalhava na identificação de estratégias que permitissem atuar de maneira positiva na busca do cenário adequado –em vez de se limitar a olhar pas-sivamente o horizonte.

O primeiro passo foi incumbir o engenheiro Luiz Paulo Velloso Lucaz, dos quadros técnicos do BNDES, de trabalhar nas projeções para a balança comercial daquele ano. Os resultados foram surpreendentes.

Desde os anos 50, o país esbarrava em estrangulamentos no balanço de pagamen-tos. Bastava crescer para ocorrerem problemas cambiais. No início de 1984, em plena crise da dívida externa, Mourão sustentava que o Brasil já fizera sua travessi-a. Naquele ano, de acordo com os levantamentos de Velloso Lucaz, seria possível um superávit comercial superior a US$ 12 bilhões e crescimento positivo do PIB.

Com base nessas previsões, o Cenário trabalhava com duas alternativas. A primei-ra, era de continuidade do ajustamento acertado com o FMI, com todos os ingredi-entes recessivos envolvidos. A segunda, otimista, era a da retomada do desenvol-vimento, possível em função das mudanças estruturais ocorridas.

Com o primeiro Cenário, mudou a ótica, pois lá se demonstrava ser possível a re-tomada do crescimento sem pressionar o balanço de pagamentos. Previa-se, além disso, que a retomada começaria pelo consumo, não mais pelos investimentos pú-blicos.

Haveria melhoria dos salários, graças à recuperação das exportações, aumentaria o consumo e, em função disso, os empresários privados passariam a investir nova-mente, inaugurando um novo ciclo de crescimento. Pela primeira vez, as exporta-ções eram claramente colocadas como o motor do crescimento econômico.

Com base nessas conclusões, propunha apoio maior para a modernização de em-presas de ponta do setor privado, acabando com a história do banco definir os seto-res a serem beneficiados.

As conclusões do trabalho foram apresentadas em um seminário histórico, que ti-nha como mentor Júlio Mourão, como organizador o diplomata Rubens Ricupero, e visava, no fundo, tentar responder à angústia dos setores técnicos do banco com o esvaziamento de suas funções.

A ditadura se esboroava e era questão de tempo para que a oposição conquistasse o poder. Com o esfacelamento do mito Delfim Netto, o debate econômico, ampla-mente politizado, passava a ser dominado pela escola da Unicamp, apadrinhada pelo presidente do PMDB, Ulisses Guimarães.

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O país estava em meio a uma recessão tenebrosa. Mas a primeira versão do Cená-rio Decenal, surpreendia o mundo acadêmico e econômico ao prever crescimento econômico e expressivo superávit comercial em 1984. Foi o ano em que, de fato, o superávit comercial passou pela primeira vez a estrondosa marca dos US$ 10 bi-lhões, e que o PIB cresceu, depois de anos de recessão.

Na imprensa, as teses do BNDES foram encampadas solitariamente pelo jornalista Aloisio Biondi. Enquanto o fechamento do ano ainda não confirmara o acerto dessas teses, tanto os técnicos do banco, quanto o próprio Aloisio, acabaram alvos de uma campanha virulenta da parte dos então economistas de oposição.

O trabalho constatava que já ocorrera as mudanças estruturais na balança comer-cial brasileira, fruto da maturação dos investimentos efetuados no âmbito do 2º Plano Nacional de Desenvolvimento.

Reforçado pelos dados do Cenário, o seminário de maio de 1984 decretava a o fim do ciclo conhecido como de substituição das importações e propunha um novo pa-radigma para a política industrial brasileira.

As empresas tinham que ser instadas a prospectar novas tecnologias no mundo, tinham que ser expostas à competição com o exterior, e os setores mais dinâmicos sobressairiam por si só. Acabava com a história de eleger um setor preferencial e cumulá-lo de proteção. Às instituições públicas competiria o papel de coordenar as empresas a melhor se integrar nesse novo cenário.

A micro-economia se casa com a macro

Mas não se ficava apenas no cenário estratégico. Simultaneamente, outras empre-sas públicas – especialmente a Petrobrás e a Eletrobrás – passavam a trabalhar na contrapartida micro-econômica do plano.

Na segunda metade dos anos 80 a Petrobrás deu início a um programa inédito de desenvolvimento de fornecedores. A equipe encarregada do programa era supervi-sionada por José Paulo Silveira e tinha, na área de suprimentos, o jovem engenhei-ro Antonio Maciel Neto. Provavelmente foi o primeiro programa em larga escala a trabalhar com o conceito de qualidade total.

Os primeiro passos foram dados em 1975, quando a Petrobrás iniciou uma reestru-turação interna e começou elevar os níveis de requisitos de qualidade com relação aos fornecedores, o que fazia com que no mercado acontecesse o seguinte: a em-presa que era fornecedora da Petrobrás utilizava o certificado como um aval. Como ela atendia à Petrobrás servia como certificação pra atender a qualquer outro

A Petrobrás tinha cinco níveis de qualificação de fornecedores de acordo com os re-quisitos de qualidade. Em meados de 1975, ela cortou os dois níveis de baixo, au-mentando as exigências.

No início, essa preocupação estava restrita aos setores gerenciais da Petrobrás. Com a descoberta da Bacia de Campos, a necessidade de segurança na exploração dos campos fez com que o programa se convertesse em meta de toda a diretoria.

Silveira tornou-se superintendente do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento, de onde coordenou o programa de capacitação em águas profundas, que acabou transformando a Petrobrás na maior especialista mundial da matéria. Enquanto is-to, Maciel assumia a chefia da Divisão de Planejamento Estratégico da Petrobrás de 1988 a 1990, conquistando a visão macroeconômica que faltava para fechar a e-quação da produtividade.

Nos dois grupos, o guru maior era Michael Porter. No mundo moderno, não havia mais espaço para um país desenvolver-se como se fosse uma ilha. Cada país teria que se abrir e encontrar seu espaço em um novo mundo, internacionalizado e com-petitivo.

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Foi por volta de 1985, que esse grupo de técnicos juntou suas visões micro e macro –as teses da reestruturação competitiva da Petrobrás com as da integração compe-titiva do BNDES e iniciou trabalhos em conjunto.

Para o BNDES eram gritantes as diferenças entre o que o trabalho da Petrobrás junto a seus fornecedores e a reserva e mercado da informática – defendida pelo grupo da Unicamp.

É cinqüenta vezes mais difícil tirar petróleo das profundezas do que fabricar micro-computadores, pensavam. Enquanto o Brasil desenvolvera uma tecnologia ímpar em águas profundas, graças à coordenação dos engenheiros da Petrobrás, a política de informática era um fracasso que comprometia o desenvolvimento de todos os demais setores da vida nacional.

Mas as idéias encontravam resistência até internamente. Técnicos da Eletrobrás e da Petrobrás que participaram da revisão do Cenário recusaram-se a assinar o do-cumento final, que propunha abertura da economia, privatização e desregulamen-tação. Isolado da academia e da burocracia pública, Mourão pôs-se a viajar pelo Brasil e pelo mundo, defendendo suas idéias, deixando marcas indeléveis por onde passou.

No dia 25 de julho daquele ano, a revista "IstoÉ" divulgou documento sigiloso do banco –porque crítico da política de ajustamento conduzida por Delfim Netto. O tí-tulo do artigo era "Sem mudanças, o Brasil acaba", em que reproduzia na íntegra o primeiro "Cenário para a Economia Brasileira".

Depois de suas palestras, o BIRD e o Banco Mundial mudaram sua concepção em relação à crise brasileira e passaram a oferecer financiamentos não mais condicio-nados a práticas recessivas, mas à modernização institucional e à abertura do mer-cado.

Teve início, então, o trabalho de conquistar a opinião pública. O primeiro grande momento foi em um programa "Roda Viva", da TV Cultura de São Paulo, onde o en-trevistado foi Velloso Lucas. Nos dias anteriores, Maciel havia feito uma prévia com ele, tentando checar todas as perguntas que seriam feitas. Só não tinham como responder à seguinte provocação: "É uma piada achar que a indústria automobilís-tica vai investir com a abertura do mercado", formulada por um dos entrevistado-res. A resposta viria quatro anos depois.

Sua pregação junto a setores do governo permitiu os primeiros ensaios de abertu-ra, ainda no governo Sarney. E foram seus discípulos que comandaram a abertura no governo Collor.

Tancredo

Na ocasião, o candidato a Presidência da República Tancredo Neves começava a preparar seu programa de governo. A Copag –órgão incumbido da tarefa– era che-fiada pelo economista José Serra. Mas a parte de política industrial estava a cargo dos unicampistas.

Na ocasião a discussão econômica estava dividida entre os unicampistas, para quem a única saída seria a moratória da dívida; e os mercadistas, reunidos em tor-no da Fundação Getúlio vargas (FGV) que viam o único caminho na recessão.

O grupo do BNDES procurou Tancredo, acreditando dispor de uma visão alternativa. Dizia ser possível crescer e, ao mesmo tempo, pagar a dívida. A pedra de toque se-ria transformar em programa de governo as teses "integração competitiva" – termo provavelmente cunhado por Maria da Conceição Tavares, em um dos artigos em que desancou as idéias.

O candidato morreu sem se saber se comprara ou não as idéias. E o grupo voltou novamente ao seu trabalho no banco.

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Em 1985, Dilson Funaro assumiu a presidência do BNDES e levou consigo o econo-mista Carlos Lessa, radicalmente contra as conclusões do Plano Decenal, alegando ser planos da ditadura. Passou sua gestão praticando um misto de assistencialismo com financiamento de pequenas obras, mas, mesmo assim, não teve condições po-líticas de esvaziar a bandeira interna dos "integracionistas".

Funaro virou ministro, não demonstrou maior inclinação pelos estudos, na verdade seguia certo pensamento empresarial paulista, ainda muito impregnado do prote-cionismo à indústria nacional.

O Cenário realmente confirmou-se. 1985 e 1986 registraram crescimentos substan-ciais na massa salarial, processo interrompido pelo período negro dos pacotes mo-netários.

Logo depois veio o Plano Cruzado inaugurando a era dos pacotes. Nos anos seguin-tes, enquanto o futuro era forjado por engenheiros, com visão do mundo real, o debate econômico perdia-se numa discussão estéril sobre troca de moedas.

As idéias se impõem

Na segunda revisão do Cenário Decenal do BNDES, preparada diretamente por Júlio Mourão, trabalhava-se basicamente com dois cenários para a década. O primeiro, otimista, previa a vitória das teses da integração competitiva; o segundo, mais pes-simista, trabalhava com a hipótese de fechamento da economia.

Em pleno 1987, com o país perdido pelos descaminhos de José Sarney, a terceira revisão do Cenário já aceitava como vencedora a tese da "integração". O que pode-ria atrapalhar o novo modelo seria apenas a "inércia corporativista", em que cada agente econômico jogasse para si e Deus contra todos.

Concluía que só se conseguiria o cenário otimista se os agentes econômicos fossem convencidos da necessidade de coordenar e conversar sobre esforços conjuntos. A idéia das câmaras setoriais começou a surgir, de forma embrionária.

Com o primeiro Cenário, mudou a ótica, pois lá se demonstrava ser possível a re-tomada do crescimento sem pressionar o balanço de pagamentos.

O Plano Estratégico do BNDES 1987/1990, teve como objetivo básico preparar o banco para interferir na operacionalização de suas idéias. Para tanto, foi fundamen-tal a gestão do empresário Márcio Fortes e seu secretário geral Sérgio Besserman. Assumindo a presidência, Fortes comprou integralmente as idéias e colocou em prática a estratégia do grupo, além de promover uma ampla reestruturação na or-ganização.

Privatizaram-se 14 empresas que consumiam energias dos técnicos, equacionou-se seu passivo e em fins de 1989 o banco estava pronto para voar, para interferir dire-tamente na política econômica do país e implantar os princípios da "integração competitiva", desenvolvidos por seus técnicos.

De seu lado, o vice-presidente Bruno Nardini, industrial paulista, também aderira às teses do grupo e passara a promover reuniões com outros setores da administração pública, visando estabelecer uma política ordenada em direção à abertura.

Participavam dos estudos Heloísa Camargo (do Conselho de Política Aduaneira), Er-nesto Carrara (da Secretaria de Desenvolvimento Industrial), Namir Salek (todo-poderoso diretor da Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil), Mauro Arru-da (pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial) e Ozires Silva, pela Fiesp. E também a nata do pensamento industrialista da Fiesp, com Paulo Cunha, Paulo Vil-lares, Eugênio Staub, Cláudio Bardella entre outros empresários que, mais tarde, criariam o Iedi (Instituto de Estudos e Desenvolvimento Industrial).

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Os primeiros movimentos

Ainda que de maneira difusa, as idéias da abertura econômica haviam começado a ganhar espaço no final do governo Figueiredo. Em todas as pontas do processo a-pareciam as idéias fundamentais de Júlio Mourão, o técnico do BNDES pai da "inte-gração competitiva".

Em 1984, provavelmente por conta desses contatos, o Banco Mundial passou a ne-gociar com o país empréstimos de comércio, destinado a atividades setoriais para países em crise. Um desses empréstimos era para reformas no comércio exterior. O banco já fora convencido por Mourão de que a abertura da economia brasileira aju-daria o Brasil a exportar mais –ao contrário do que dizia, por exemplo, a escola da Unicamp.

Quem coordenou os estudos iniciais foi João Baptista Abreu, então assessor de Del-fim Netto na Secretaria de Estudos Técnicos e um dos interlocutores contumazes de Mourão.

Quando começou o governo Sarney, foi para a Conselho de Política Aduaneira o e-conomista José Tavares de Araújo Filho que, embora de formação de esquerda or-todoxa, evoluiu para as novas idéias de abertura.

Tavares entrou com Funaro no governo, mas perdeu espaço no grupo de Funaro quando passou a abraçar a idéia da abertura controlada da economia.

Quando Bresser chegou, começou a prestigiar seu trabalho. O principal formulador econômico da equipe, Yoshiaki Nakano, comprou as teses da abertura e tornou-se propagandista eficiente, expondo objetivamente a necessidade de abrir a economia numa reunião com o presidente da República, presentes Bresser e Maílson, secretá-rio-geral do ministério.

Tiveram início no âmbito do governo os primeiros estudos sobre a nova política in-dustrial, coordenados por Antônio José Antunes, também de formação de esquerda, João Baptista e Heloísa Camargo, do Conselho de Política Aduaneira, que passaram a se reunir sistematicamente com Mourão.

O primeiro trabalho que se montou, por volta de 1988, foi a câmara setorial da in-dústria têxtil. Idéia era sentar todos segmentos da cadeia têxtil, inclusive bens de capital, para negociar início da abertura.

Por volta de maio de 1988 começaram a sair as primeiras medidas de liberalização. O então ministro da Indústria e Comércio, José Hugo Castello Branco, surpreenden-temente –para uma pessoa com sua história e passado político– teve papel impor-tante nesse processo, assumindo a ferro e fogo as novas idéias e abafando as resis-tências do Conselho de Desenvolvimento Industrial e da Cacex.

Em junho de 1988 ocorreu a primeira rodada de redução tarifária. Foram elimina-das todas as tarifas redundantes e os regimes especiais de importação. A tarifa média caiu de 85% para 50%.

Em 1989, com a segunda rodada, iniciou-se a redução do Anexo C – lista de produ-tos cuja importação era proibida. A lista foi reduzida de 3.000 para 500 itens. A i-déia era um processo gradativo, como tudo que marcou o governo Sarney.

Naquele ano, os técnicos da "integração" apresentaram suas propostas para os quatro candidatos a presidente. Usando um termo de engenharia, ofereciam uma "solução robusta" – isto é, que teria espaço como programa de governo indepen-dentemente da linha ideológica do vencedor das eleições.

O único a comprar a idéia foi Fernando Collor de Mello.

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A segunda vertente, da qualidade

O início de um programa sistemático de qualidade teve duas vertentes, ambas no governo Figueiredo. Uma, o programa de capacitação no no bojo do acordo nuclear com a Alemanha. Do lado brasileiro, o encarregado foi o Ministro de Ciências e Tec-nologia José Israel Vargas.

Havia a assistência técnica da TÜV, da Renânia e Westfalia, responsáveis pelo de-senvolvimento da qualidade na indústria alemã. Esses programas nasceram no sé-culo 18, quando as caldeiras começaram a explodir.

A metodologia de qualidade fazia parte do acordo para a construção dos reatores. Pela primeira vez se tinha um Conselho da Qualidade do IBQN (Instituto Brasileiro de Qualidade Industrial), e composto por associações do setor privado, como a AB-DIB (Associação Brasileira para o Desenvolvimento da Indústria de Base), ABINEE (Associação Brasileira da Indústria Eletro-Eletrônica), a ABEME (Associação Brasilei-ra de Engenharia de Montagens). Do lado do governo, o Instituto Nacional de Tec-nologia e a Secretaria de Tecnologia Industrial.

Até então havia dificuldades na definição de normas. As empresas achavam que o governo poderia impor normas exageradas que encarecessem os projetos; e o go-verno não confiava no setor privado, porque achava sua visão imediatista.

O presidente tinha de ser um nome nacional. Por conselho do professor Alberto Pereira de Castro, Vargas passou quatro horas tentando convencer Amaro Lanari Júnior, antigo professor de metalurgia da Politécnica e que havia acabado de deixar a presidência da Usiminas.

Amaro só toparia se houvesse alguém grande competência na área propriamente técnica. Havia na STI um grupo de normalização e qualidade com alguns engenhei-ros mas que tinham um conceito de norma técnica extremamente ditatorial. Nor-mas técnicas devem ser objeto de consenso no setor, devem ser voluntárias. Esse grupo queria passar normas goela abaixo na ABNT (Associação Brasileira de Nor-mas Técnicas).

Israel Vargas acabou encontrando um técnico competente, doutor em metalurgia pelo MIT, José Guilherme Lameira Bittencourt, que assumiu o cargo de diretor téc-nico do IBQN. No início, ele deveria atuar quase que só na qualidade nuclear, por-que o setor nuclear exigia o mais alto nível de confiabilidade, de controle de quali-dade. Posteriormente a IBQN ampliou sua atividade para outros setores

Àquela altura se negociava um primeiro financiamento de ciência com o BIRD, que de fato foi o segundo do mundo financiado pelo Banco Mundial. Foi o primeiro PADCT (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico).

Quando Vargas assumiu a STI, convenceu o Banco Mundial que não era possível gerar o impacto na indústria se não fosse tratado o programa de tecnologia indus-trial básica, com apoio à ABNT, ao INMETRO, INPI e os laboratórios credenciados para realização de medidas, mas a inspeção era sempre dos inspetores que passa-vam por um treinamento do IBQN

O INMETRO havia sido implantado por lei de 1979. Seu projeto foi feito numa licita-ção internacional. A Dinamarca construiu o Instituto de Acústica. As máquinas tér-micas vieram dos Estados Unidos. O padrão do metro foi resultado de uma coope-ração com a Alemanha.

Mas antes disso, Vargas convenceu Sérgio Quintella, presidente da Internacional de Engenharia, a assumir o cargo de presidente da ABNT, para melhorar a qualidade da representação.

Posteriormente ao IBQN, foram criados mais três institutos que cuidavam da quali-dade industrial, com intenso programa de treinamento nacional no exterior

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Foi criada também Fundação Brasileira da Qualidade e Produtividade e três institui-ções foram treinadas no exterior nessa área. O IBQN foi principalmente para Ale-manha e Inglaterra. A Fundação Cristiano Otoni para o Japão, liderada pelo profes-sor Vicente Falconi, professor de metalurgia com doutorado nos EUA. Em São Paulo a Fundação Vanzolini mandou o pessoal para ser treinado nos EUA

O Padct tinha três pernas: o presidente do CNPQ, a STI e o Ministério da Educação, e um fundo, o INT (Fundo Nacional de Tecnologia Industrial).

Nesse meio tempo surgiu a ISO 9000. Implantado o INMETRO, tentou-se um acor-do com o PPB (o INMETRO da Alemanha) e com o National Bureau Standard, que copiou os alemães. A Alemanha foi pioneira, com o instituto criado por Helmut Holtz e pela Siemens.

O programa foi interrompido quando o presidente João Baptista Figueiredo aderiu à candidatura Maluf, provocando a demissão de Vargas e do Ministro da Indústria e do Comércio Camilo Penna.

Seguiu-se um período confuso, com muita mudança nos ministérios e nenhuma continuidade, até que assumiu a presidência Fernando Collor.

O físico José Goldemberg foi nomeado Secretário de Ciência e Tecnologia. Como ele não tinha nenhum departamento voltado para a tecnologia, com exceção do CNPQ, a conselho de Vargas aproveitou toda a equipe da STI.

O país estava maduro para entrar na era da qualidade.

As lições de Michael Porter

Em 1986, uma ampla pesquisa comandada por Michael Porter para o governo ame-ricano --visando entender as razões do milagre japonês-- transformou-se em divi-sor de águas nos estudos de políticas industriais no mundo e converteu-o no maior especialista mundial em estratégias competitivas.

No Brasil, ajudou a reafirmar os princípios da teoria da "integração competitiva" --desenvolvidos pioneiramente por técnicos do BNDES em 1984--, e se tornou a bí-blia dos técnicos brasileiros que comandaram o processo de abertura da economia nos anos 90.

No fundo, o levantamento de Porter vinha comprovar o acerto dos estudos de Lizt, quase 150 anos antes.

1) Apesar da globalização da economia, as fronteiras nacionais continuam sendo elementos importantes de desenvolvimento tecnológico. Era papel dos governos nacionais ajudarem a gerar ambientes econômicos competitivos.

2) País que depender exclusivamente de insumos (matérias primas abundantes e salários baixos) para ser bem sucedido está fadado ao fracasso. Passada a fase ini-cial, sempre haverá um país mais atrasado, e com salários mais baixos, para rou-bar-lhe o mercado.

3) A característica atual das multinacionais consiste em eleger determinados países para localizar as bases domésticas de cada um de seus produtos. É aí que se loca-lizam os empregos melhores remunerados e a melhor base tecnológica. Um dos de-safios dos estados nacionais será tentar atrair o maior número de bases domésticas das multi.

4) Cada vez mais, o importante na definição das vantagens competitivas não são os insumos. Insumos genéricos (estradas, telecomunicações) podem atrapalhar, se forem de má qualidade, mas não se constituem em vantagem comparativa, já que todos os países tendem a competir na melhoria da qualidade desses insumos. O que faz diferença são insumos especializados. Não apenas o trabalhador, mas o PhD. Não apenas o porto, mas equipamentos especializados para famílias de produ-tos.

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5) Mesmo que se importem insumos e equipamentos, tem que se lutar para que esses equipamentos sejam fabricados internamente ou, ao menos, haja escritórios e técnicos do fornecedor, para obrigá-lo a se integrar ao processo de inovação.

6) Todo projeto de política industrial deve visar formar grupos de fabricantes, em todas as etapas da produção. Só assim se obtém massa crítica de insumos e equi-pamentos para acelerar a inovação.

7) É recomendado que esses grupos se concentrem em uma mesma região, e cada região encontre sua própria vocação, sem artificialismos. Onde existe concentração, cria-se infra-estrutura especializada que ajuda a reforçar os grupos.

8) O Japão só prosperou em setores de alta competitividade. Quando as empresas japonesas uniram-se para criar um novo tipo de televisão, foi um fracasso. Daí a necessidade de fortes práticas anti-trustes.

9) As empresas têm que cobrar eficiência dos serviços públicos e saber explicar cla-ramente suas necessidades ao governo. Na Itália, nas áreas com empresas volta-das para o exterior, os serviços telefônicos são muito melhores do que nas demais, porque se cobrou mais.

10) O principal papel do governo é se converter em comprador exigente dos produ-tos nacionais.

Em uma entrevista que me deu, nos anos 90, terminava com com um recado gené-rico, mas que caia como uma luva para a política econômica atual: "O que de pior pode acontecer a empresas e países é tomar medidas tópicas, respondendo a exi-gências de curto prazo, sem dispor de um plano estratégico de longo prazo".

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Ainda no Bolo de Noiva, a falta de experiência operacional acabou afastando o gru-po da PUC-RJ da condução dos trabalhos de abertura do governo Collor.

A equipe econômica de Fernando Collor chegou imbuída das idéias de abertura da economia. Mas, num primeiro momento, acabou pendendo para as teses da PUC-Rio, radicalmente liberais, que rezavam que governo não deveria se imiscuir em questões de política industrial.

Gustavo Franco e Winston Fristch, ambos da PUC, poderiam ter comandado o pro-cesso de abertura, mas acabaram batendo de frente com o mundo real. Não conse-guiram atender às solicitações de Ibrahim Eris e Antonio Kandir, da equipe de Zélia, para que avançassem além do conceitual e propusessem medidas concretas, com exposição de motivos, minutas de portarias etc.

A tecnocracia esclarecida resolveu a questão, com Heloísa Camargo detalhando a política inicial de abertura das importações.

Os primeiros dias do governo Collor foram decididamente desfavoráveis aos "inte-gracionistas". Luis Octavio da Motta Veiga assumiu a presidência da Petrobrás e demitiu toda a equipe que participara do programa de tecnologia em águas profun-das. A equipe do BNDES não só foi derrotada em sua pretensão de indicar o colega Nildemar Secches para a presidência, como o presidente indicado, economista da PUC Eduardo Modiano, acabaria encostando os técnicos e praticamente proibido o banco de pensar nos dois anos seguintes.

Júlio Mourão, o principal teórico da "integração", e o próprio Secches foram convi-dados a assumir a Secretaria de Planejamento do Ministério da Economia, mas re-cusaram.

Coube ao economista João Maia (que depois se desgastaria articulando benefícios para a Sade Engenharia) trazer seu ex-colega de "partidão" Luiz Paulo Velloso Lu-cas, membro de relevo dos "integracionistas" como seu vice no Departamento de Abastecimento e Preços.

Quinze dias depois de iniciado o governo, o economista Marcelo Abreu, também da PUC, pediu demissão do cargo de Secretário Nacional de Economia. João Maia as-sumiu a secretaria e indicou Luiz Paulo Velloso para diretor do Departamento de Indústria e Comércio. Velloso levou Antônio Maciel como seu vice. Os "integracio-nistas" chegavam ao poder.

Depois de seis anos, as idéias do BNDES conseguiam superar a pesada barreira im-posta pela academia e o grupo "integracionista" estava pronto para mudar o Brasil.

Com cem dias de governo, foi apresentado o plano de abertura da economia, o "Di-retrizes Gerais da Política Econômica e de Comércio Exterior", preparado por eles.

O anúncio foi no dia 26 de junho de 1990 – uma data a ser registrada nos futuros livros de história. Era um trabalho de engenheiros, com data, prazos e cronogra-mas.

1) Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade, como instrumento de política industrial e comércio exterior. Através do programa reconhecia-se a questão micro (de capacitação das empresas) como instrumento fundamental na reestruturação competitiva;

2) Fim da reserva da informática, tornando o computador mais acessível ao conjun-to das empresas nacionais;

3) Revisão do Código de Propriedade Industrial (que ainda não saiu do papel);

4) Cronograma de redução de tarifas de 36 mil itens, em 36 meses;

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5) Privatização como instrumento de política industrial –idéia que não foi posta em prática por Eduardo Modiano, o responsável pela tarefa.

Para que o programa não fosse tolhido pela falta de continuidade, todos os docu-mentos tinham capítulo especial dedicado ao seu gerenciamento. Foi nessa defini-ção que surgiu a idéia da constituição das câmaras setoriais.

Além disso, fugiu-se de um outro vício do serviço público, que era a montagem de comissões burocratizadas. Decidiu-se, de um lado, que o programa não teria orça-mento próprio nem estrutura burocrática. De outro, que no médio prazo seriam cri-ados instrumentos permanentes de execução, a salvo de interferências do governo.

A idéia foi imediatamente comprada pelo então presidente Fernando Collor, que, a partir de certo momento, passou a coordenar pessoalmente as reuniões do grupo.

Anunciava-se em 90 dias a nova Lei de Informática, em 180 dias, o Plano Brasileiro de Qualidade e Produtividade, em quatro anos, a redução ano a ano das tarifas de importação.

O anúncio do plano garantiu 11 dias de cobertura intensiva nos jornais e ajudou a mudar as expectativas em relação ao governo, num momento em que a inflação começava a voltar.

Mudando de lugar

Em outubro, João Maia demitiu-se da Secretaria Nacional de Economia, para assu-mir cargo na Sade Engenharia –empresa beneficiada por Zélia. Em seu lugar assu-miu Edgard Pereira, da Unicamp. Antônio Maciel foi indicado para seu sub, amplian-do a margem de manobra dos "integracionistas".

Com a queda de Zélia, a troca de governo trouxe dois elementos valiosos. Numa ponta, o novo ministro da Economia Marcílio Marques Moreira, partidário de solu-ções gradativas para as questões econômicas. Do outro, a nova secretária Nacional de Economia, Dorothéa Werneck, que manteve Maciel como sub, trouxe para o programa a classe trabalhadora e uma exposição na mídia que os "integracionis-tas", não-vinculados a grupos políticos, jamais tiveram.

O coroamento desse processo foi a Câmara Setorial da Indústria Automobilística, em reunião em que a equipe econômica precisou decidir sobre a redução dos tribu-tos. Havia grande resistência interna, de pessoas ainda impregnadas da visão fisca-lista da economia.

Fernando Collor assumiu a presidência com uma intuição clara sobre o que preten-dia com o país, mas com uma tática de confronto que o levou a colidir com inúme-ros setores. Um dos mais atacados foi justamente a indústria automobilística, que passou a ser alvo de campanhas sistemáticas contra as "carroças".

A virada foi provocada por um documento preparado pelo subsecretário de Política Econômica, Antônio Maciel, que a secretaria Dorothéa Werneck apresentou em uma reunião da equipe econômica, que aprovou a redução dos tributos do setor. O pró-prio Collor leu o documento e concordou em parar de atacar o setor automobilísti-co.

O documento intitulava-se "Setor Automotivo: Situação Atual e Alternativa Estraté-gica". Era de 9 de março de 1992.

Inicialmente lembrava se que o setor experimentou nos últimos anos conflito gene-ralizado e permanente entre todos os atores. "Os trabalhadores fazem manifesta-ções, diminuem a produtividade e recorrem às greves. Os empresários aumentam os preços de forma absurda. O governo aumenta a carga tributária e ameaça com redução de alíquotas dos impostos de importação. A imprensa joga lenha na foguei-ra, estampando o conflito nas primeiras páginas", dizia ele.

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O resultado da guerra era a falta de investimentos, a defasagem tecnológica na produção e a ausência de novos modelos.

Depois, listava aspectos negativos e positivos do setor.

Na seqüência, propunha a substituição do conflito generalizado e permanente por uma alternativa estratégica que "conduza à parceria pela competitividade em todas as direções, privilegiando as as relações trabalhistas e comerciais no longo prazo, buscando obstinadamente a cooperação entre todos os elos da cadeia produtiva e colocando o consumidor como referência fundamental para todas as decisões".

O papel dos governos federal e estaduais seria reduzir as alíquotas do IPI e do ICMS, como forma de incentivar a redução de preços, entre outras providências.

Ao empresário caberia o compromisso de evitar aumentos de preços, buscando maior volume de produção com margens menores, garantir a arrecadação com mais vendas, empenhar-se na construção de relações cooperativas com o trabalho, comprometer-se com o PBQP (Plano Brasileiro de Qualidade e Produtividade) e em-penhar-se para viabilizar aumento real de salários ao longo do tempo.

Aos trabalhadores pedia-se compromisso com o PBQP, melhoria no relacionamento com o capital, evitando conflitos e, em particular, as greves.

Foi esse cenário previamente preparado, de indução ao entendimento, que permitiu o aparecimento político de Vicentinho. Nem antes, nem depois, Vicentinho conse-guiu repetir a performance da câmara setorial da indústria automobilística, quando surpreendeu o país com uma visão de estadista.

Terminada a exposição, o presidente do Banco Central, Francisco Gros, provavel-mente o mais influente homem da equipe de Marcílio, declarou-se convencido. A redução foi aprovada, consagrando a câmara setorial.

O Código de Defesa do Consumidor

O Código de Defesa do Consumidor foi essencial para impulsionar os programas de qualidade. Falava-se muito nos brinquedos que vinham do Paraguai e não havia nenhum controle sobre os problemas decorrentes desse tipo de mercadoria. Mas de quem era a responsabilidade?

O Código veio regular uma série de instancias, envolvendo não só a iniciativa priva-da, mas também o governo no seu papel de educar e assegurar os direitos mínimos do cidadão.

Surgiram as redes de Procons no país, o Ministério da Justiça teve de se organizar pra isso. O mote “foco no cliente” tornou-se prioritário.

Então se passou a discutir a educação, a sensibilização das pessoas para a qualida-de, começaram a surgir cartilhas para sensibilizar donas de casa, começou a surgir também a preparação técnica com relação as normas existentes no Brasil para as-segurar que os produtos tivesse requisitos mínimos de produção, para diminuir o desperdício brutal que permanecia em muitos setores.

Então surgiram a ISO 9001, 9002, nas suas categorias procurando dar uma abran-gência para o escopo desse processo, para garantir a conformidade dos padrões exigidos ou contratados entre o produtor, o fornecedor e o cliente

Ao mesmo tempo veio a necessidade de se ter um aumento de produtividade com a redução de custos, justamente para combater o desperdício e o retrabalho.

Nessa época se levantaram índices de não conformidade, de falta de qualidade, de desperdício, de refugo de materiais que era uma coisa assombrosa na indústria. E por conta disso se começou a falar muito na normalização e na certificação

A indústria foi se organizando para o controle da qualidade, criando departamentos só para cuidar dos refugos. Com a nova consciência estimulando o controle, a de-

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volução de produtos com defeito, se começou a falar em padrão de qualidade, em zero defeito.

Quatro anos depois de ter sido anunciado, enfrentando desconfianças dos macro-economistas, resistências de setores protegidos por um mercado fechado, e de ter sido erroneamente confundido como "neoliberalismo", a estratégia da "integração competitiva" da economia brasileira na economia internacional, já podia ser reco-nhecida como o mais importante e decisivo conjunto de programas desenvolvimen-tistas implantados do país desde o Plano de Metas de JK.

A importância do “programa da integração competitiva” não podia ser medida por metas quantitativas. Devia ser entendida no âmbito das limitações decorrentes de um período politicamente traumático.

Mesmo assim, em apenas quatro anos mudou a face da economia brasileira. Além de ter proporcionado avanços substanciais na estrutura industrial –decretando o fim da reserva de mercado de informática, por exemplo –logrou mudar a mentalidade empresarial brasileira.

A partir desse programa, os conceitos de produtividade e qualidade passaram a ter vida própria. As empresas modernas começaram a explorar suas próprias energias e capacidade de reação, abandonando décadas de dependência das ações de Esta-do.

Escanteio

Enquanto suas idéias se tornavam vencedoras, Mourão viveu no governo Collor seu período de maior ostracismo.

Não aceitou nenhum cargo no governo. O novo presidente do BNDES, Eduardo Mo-diano, da PUC-RJ, não só não ignorava sua importância, como a temia. Tanto que demitiu-o da Superintendência de Planejamento sem ter tido a coragem de comuni-car-lhe pessoalmente, desmanchou sua equipe e praticamente proibiu o debate in-terno sobre suas idéias.

Só o procurou tempos depois, quando o secretário de Assuntos Especiais, Eliezer Baptista, resolveu preparar o macro-planejamento do país –uma idéia esplendorosa que, infelizmente, não resistiu ao impeachment de Collor– e convocou Mourão para sua equipe.

Com medo de perder poderes, Modiano chamou Mourão e comunicou-lhe que, co-mo o financiamento do projeto seria bancado pelo BNDES, ele iria para lá, mas na qualidade de representante do banco.

O último presidente do banco a conviver com Mourão foi Pérsio Arida, “pai” do Cru-zado e do Real. Mourão estava prestes a se aposentar. Pérsio encontrou-o no ele-vador, disse que precisava falar com ele, e morreu por aí.

Não poderia haver nada mais simbólico de uma era irracional. De um lado, o inte-lectual nacionalmente conhecido, estrela maior da elite acadêmica engajada, que dispôs de todas as facilidades do mundo para exercitar seus experimentos – porque os experimentos interessavam eleitoralmente aos donos do poder. Do outro, o ser-vidor público, que enfrentou o mundo armado apenas de suas convicções e do pro-pósito de desenvolver o país.

Se perguntar hoje, a quem assistiu o encontro, qual dos dois mudou o país com su-as idéias, ninguém acreditaria que foi o técnico humilde, que se preparava para so-licitar sua aposentadoria.

Daqui a alguns anos, quem se debruçar sobre esses tempos loucos não conseguirá entender como tantos puderam ser tão cegos e irracionais, tão sem critério duran-tes tantos anos.

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Em fins de 1993, o país estava pronto para o grande salto de modernização. As sementes plantadas desde o início dos anos 80 já tinham criado massa crítica de diagnósticos e de visão de futuro. O “impeachment” foi um acidente de percurso, que não chegou a atrasar a consolidação das novas idéias. Era apenas questão de tempo aguardar o final do governo transitório de Itamar e torcer por um novo pre-sidente que colocasse em prática os novos diagnósticos e propostas.

Embora a economia ainda patinasse, 1994 começou com esperança de que Itamar Franco refreasse seu estilo de biruta de aeroporto e começasse a dar passos mais sólidos. A CPI do Orçamento criara expectativas fundadas de que interesses estrati-ficados no setor público começassem a ser desmontados. Os fundos de pensão es-tatais começavam a ser enquadrados. A abertura iniciada por Fernando Collor co-meçava a surtir seus efeitos e os escritos de Michael Porter forneciam informações para novas políticas de planejamento que ajudassem a completar o processo de modernização.

A politização do tema ainda tornava difícil no país a conceituação da palavra mo-dernidade. Os críticos de esquerda transformaram tudo o que se referia a moderni-dade em manifestação de “neoliberalismo”.

Mas, nos últimos anos, a modernização do pensamento brasileiro produzira trans-formações relevantes no poder público e nas empresas. Os novos valores levanta-dos passaram a ser a busca de soluções individuais, fora do guarda-chuva paterna-lista do Estado, a exaltação da produtividade e da qualidade, de ambientes compe-titivos, da inovação em todos os níveis. E, principalmente, a mudança fundamental no enfoque das empresas, passando a privilegiar a figura do consumidor. Em que pesem desastres monumentais – como a reforma administrativa conduzida por João Santana – Collor havia conseguido cortar sucessivos nós que paralisavam a econo-mia brasileira, ajudado pelas mudanças trazidas pela Constituição de 1988.

1) Mudanças no comércio exterior, acabando com a parafernália burocrática, e permitindo a mais empresas o acesso a mercados e fornecedores internacionais.

2) Fim de todas as reservas de mercado, especialmente a da informática.

3) Abertura gradual e previsível da economia, induzindo as empresas nacionais a se tornarem mais competitivas.

4) Mudanças na política cambial, acabando com o sufoco histórico das crises cambi-ais.

5) Lançamento do Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade e Produtivida-de, que tomou de assalto corações e mentes do setor produtivo, apontando o cami-nho que deveria percorrer para competir com os importados.

6) Interrupção do paternalismo do BNDES.

7) Fim da ciranda financeira, com o bloqueio de cruzados e com o lançamento do fundão, levando as empresas a perceberem que a única segurança de que dispu-nham era na sua atividade específica.

8) Lançamento do Código de Defesa do Consumidor.

9) Reinserção do Brasil no mercado internacional de capitais, com o levantamento da moratória e a reaproximação com o Japão.

Até Collor, havia uma inibição geral em pensar o Brasil. Cada , proposta nova es-barrava na ausência de condições políticas, cada idéia inovadora, na perda do hábi-to de pensar o novo. Foi sua falta de limites que demonstrou que não havia mudan-ça impossível, desde que houvesse vontade política e clareza de idéias.

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Todo mundo sabia da necessidade de mudar a política de pré-fixações de câmbio. Quem tinha a coragem de botar o guizo no gato? A renovação da indústria automo-bilística era peça central da recuperação industrial do país. Quem se habilitaria a desmontar o sistema de privilégios fundado em reserva de mercado e cartelização?

Não dá para banalizar a importância desse rompimento.

As primeiras experiências das Câmaras Setoriais significaram uma notável mudança de paradigma. Substituía-se a cultura do conflito pela da cooperação. O adversário não era a montadora, o fornecedor ou o sindicato: era a outra cadeia produtiva, nacional e, principalmente, as que rondavam o mercado brasileiro, aguardando o primeiro sinal para entrar.

A estratégia da Câmara Setorial da Indústria Automobilística havia sido longamente maturada. Consistia em viabilizar a venda interna de veículos populares modernos, através da redução de tributos, criando uma escala mínima de produção. Com a escala garantida, buscava estimular novos investimentos no setor, visando moder-nizar as linhas de montagem. O passo final seria a busca do mercado externo, con-solidando a posição da indústria automobilística brasileira no âmbito mundial, como fornecedora de modelos populares.

A indústria automobilística recuperou rentabilidade e capacidade de atrair investi-mentos da matriz. Os trabalhadores garantiram emprego e salário. O poder público teve ganho de arrecadação, mesmo reduzindo nominalmente as alíquotas de tribu-tos do setor. O consumidor passou a ter à sua disposição carros a preços mais a-cessíveis. E a economia como um todo ganhou um fôlego adicional, com o PIB in-dustrial crescendo 11%, em grande parte devido à recuperação do setor.

Tinha-se a comprovação da eficácia de novas formas de atuação do governo, não mais conduzindo autarquicamente a economia, mas atuando como agente articula-dor das forças produtivas.

O ímpeto reformista não ficava por aí. Passou-se a discutir, uma nova política regi-onal, com a reestruturação do dos fundos e organismos regionais --tipo Finor e Su-dene (do nordeste), Finam e Sudam (da Amazônia), e Codesvaf (do Vale do São Francisco).

A idéia básica era substituí-la por um novo modelo, que ajudasse a estimular o chamado ambiente econômico --de acordo com o figurino preconizado pelos mo-dernos estudos de política regional. Em vez de dinheiro a fundo perdido para em-presas, investir em obras de infra-estrutura que atraíssem capital privado. A base dessa mudança eram estudos do senador cearense Beni Veras sobre a região.

O tiro de partida desse programa havia sido o seminário "Bases para um Pacto Polí-tico e Econômico", ocorrido no início de 1994, que juntou pessoal da Seplan, da Fa-zenda, do BNDES, líderes políticos regionais --como o governador cearense Ciro Gomes, o deputado Roberto Freire e o senador Beni Veras-- e empresários interes-sados na região.

Durante o seminário, foram identificadas diversas áreas com potencial econômico --como o Cerrado baiano, os vales do Jaguaribe (Ceará), do Gurguéia (Piauí), do Açú (Rio Grande do Norte), o Médio e Baixo São Francisco.

Os investimentos em infra-estrutura demandariam US$ 1 bilhão --a serem financia-dos pelo BNDES. Pelos cálculos apresentados pelo banco, já no primeiro ano permi-tiriam uma renda anual de US$ 900 milhões, e geração de 350 mil empregos dire-tos.

Como Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso lograra domar o perfil irre-quieto de Itamar, e consolidar um grupo renovador em torno dele, comprometido com o projeto de reforma do Estado.

Havia também um grupo atuando no âmbito da reforma do Estado, composto pelo general Romildo Cainhim, Ministro-chefe da Secretaria da Administração Federal, e

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os Ministros Alexis Stepanenko, do Planejamento, Sérgio Cutolo, da Previdência e Henrique Santillo, da Saúde.

O apoio de Fernando Henrique era a seu modo. Apoio tácito a quem quisesse fazer. Quem não quisesse, o problema não era dele.

A reforma do Estado brasileiro --tal como imaginada pelo pessoal da Secretaria da Administração Federal (SAF) e do Ministério do Planejamento (Seplan)—tinha duas pernas. De um lado, o aprofundamento da descentralização, através da criação de uma Câmara Setorial (já aprovada pelo presidente) para negociar transferência de atribuições para estados e municípios. De outro, a reorganização do serviço público, passando, primeiro, pelo enquadramento dos salários dos servidores públicos dos três poderes.

Esse processo seria conduzido por uma comissão especial, de onze membros, coor-denada pelo Ministro-Chefe da Secretaria de Administração Federal (SAF), Romildo Cainhim --o Executivo, o Legislativo e o Judiciário com dois representantes cada, o Ministério Público Federal e o Tribunal de Contas, um, e mais três representantes de sindicatos ligados aos três poderes.

O grupo teria 90 dias de prazo para apresentar suas conclusões. O primeiro passo consistiria em hierarquizar todas as funções, dentro de cada órgão, definir um teto e uma base igual para os salários dos três poderes.

Com bases nesses valores mínimo e máximo seria criada uma Tabela Salarial, ajei-tando nesse intervalo todos os demais salários. Não poderia ter implementação i-mediata, por problemas legais com redução de salários e restrições orçamentárias, mas acenava para o novo caminho.

Já a descentralização seria tratada por organismos tipo Câmaras Setoriais --com a presença dos ministros interessados, de prefeitos e governadores. A idéia inicial seria colocar todos os projetos de descentralização dentro de uma mesma medida provisória. Significaria extinguir os Ministérios assistencialistas --tipo Bem Estar So-cial e Integração Regional--, transferir os fundos regionais para o Ministério da In-dústria e do Comércio. A extinção do INAMPS, conduzida por seu presidente, depu-tado Carlos Mosconi, foi um marco nessa caminhada.

Em 22 de janeiro daquele ano, minha coluna tentava traduzir esse estado de espíri-to:

“A luta está apenas se iniciando --e será árdua. Falta desmontar o aparato empre-sarial que corrompeu o Estado. Depois do exemplo do Congresso, o país aguarda agora que o Judiciário, o Ministério Público, a estrutura sindical, as Universidades, as corporações públicas e privadas, as corporações de profissionais liberais, Estados e municípios, espanem a poeira, e dêem sua contribuição efetiva aos novos tem-pos, iniciando sua própria modernização. Nossos mortos já podem descansar em paz. Não serão mais alvo de apelos desesperados de uma Nação agonizante. Serão boas lembranças a impulsionar um país que começa a encontrar seu caminho”.

Até o deputado Antonio Delfim Netto abrira mão de seu pessimismo militante e pu-blicara pela gráfica da Câmara o trabalho "Brasil, Melhor do que Parece", pela pri-meira vez com uma visão francamente otimista do processo.

Admitia, claramente, os resultados concretos obtidos pela abertura da economia e pelos programas oficiais de produtividade e competitividade --que começavam a criar um pólo de discussão alternativo à cantilena de câmbio, moeda, e receita fis-cal. E apontava os seguintes fatores de otimismo:

* Abertura da economia.

O restabelecimento de relações financeiras com a comunidade internacional, a libe-ralização do comércio, com o aumento expressivo das importações, que acirrou o nível de concorrência interna, fazendo com que o nível tecnológico da economia brasileira passasse a incorporar as novas exigências mundiais.

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Até algum tempo atrás, muitos analistas limitavam-se a relacionar os problemas que a abertura gerou para as empresas brasileiras, sem contabilizar o potencial de criatividade e inovação, liberados pela necessidade.

* Privatização.

Apesar do processo "um pouco lento", as privatizações ocorridas, e as 66 por ocor-rer, são da maior importância, assim como a privatização futura dos serviços públi-cos sujeitos ao regime de concessão.

* Papel do Supremo Tribunal Federal.

Na qualidade de primeiro grande autor de “pacotes” da economia, o deputado dava a mão à palmatória, e taxava de revolucionário o novo papel do STF --que impôs limites legais à atuação do executivo, devolvendo a previsibilidade e a proteção aos contratos, nos moldes das sociedades desenvolvidas, ao ordenar o desbloqueio de cruzados.

* Revisão constitucional.

Delfim apostava que a revisão permitiria aperfeiçoar e consolidar o quadro institu-cional brasileiro, ajustando-o ainda mais à nova realidade mundial, de integração e competição. Principalmente com o possível fim dos monopólios, a flexibilização da seguridade social e a descentralização da saúde.

* Legislação Trabalhista.

A flexibilização da legislação, em discussão, permitiria a construção de uma relação mais flexível e construtiva entre trabalhadores e empresas, restringindo-se a justiça do trabalho às relações de direito entre eles.

* Lado real.

O processo de terceirização permitiu o aparecimento de uma nova geração de pe-quenas e médias empresas, criadoras de talento empresarial.

O fim da ditadura das empreiteiras, com a CPI, e o combate aos cartéis privados, acenavam com a oportunidade de florescer mais rapidamente as novas pequenas e médias empresas, renovando a vida empresarial nacional.

* Questão fiscal.

Delfim atribuía os problemas fiscais à inação de Brasília, não a questões estruturais.

Enfim, a economia já havia ingressado em uma nova fase, onde pontificam alguns princípios fundamentais e sem retorno. Eram eles:

1) Não se admitia mais protecionismo a empresas ou setores, créditos subsidiados ou outra forma de proteção setorial.

2) A abertura era irreversível e deveria ser encarada como instrumento de aumento da competição interna e de aprimoramento da produção nacional.

3) Para a consolidação da abertura seria fundamental a criação de um ambiente econômico competitivo.

O objetivo final desse jogo seria fortalecer o modelo industrial brasileiro --não des-truí-lo.

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Depois que Richard Nixon liquidou com a sincronização cambial prevista no acordo de Breton Woods, o mundo mergulharia novamente em uma espiral financeira se-melhante ao do fim da Pax Britânica.

Desde a morte de John Kennedy, a hegemonia civilizadora dos Estados Unidos, he-rança de Franklin Delano Roosevelt e de Nelson Rockefeller, dera lugar ao jogo bru-to da guerra fria. O modelo keynesiano do pós-guerra entrara em colapso. Um novo modelo monetário se impunha, com novos jogadores.

Breton Woods consagrou uma nova articulação cambial, com uma espécie de câm-bio fixo, não mais em torno do ouro mas do dólar, que passou a ser a moeda de reserva mundial. No final dos anos 60, o sistema parecia sólido e funcional. As prin-cipais moedas internacionais, como o marco, a libra e o franco, entre outras, torna-ram-se plenamente conversíveis, inclusive para transações privadas, e não apenas entre os Bancos Centrais.

Os BCs mundiais tinham o direito de trocar os dólares de suas reservas por ouro na Reserva Federal de Nova York. O ouro ficava depositado em Nova York, mas credi-tado para o país que o adquiriu.

Com a estabilização do padrão dólar, os bancos norte-americanos puderam oferecer empréstimos maciços para a reconstrução da economia européia – financiando a aquisição de bens norte-americanos.

Os altos déficits norte-americanos, no entanto, começaram a incomodar os euro-peus. O jornalista Jean-Jacques Servan-Schreiber escreveu “Desafio Americano”, um best seller da época, alertando para os riscos dos americanos comprarem todos os ativos franceses.

Em 1965, o presidente francês Charles De Gaulle insurgiu-se contra o que conside-rava “privilégio exorbitante” do dólar americano. O grande conselheiro de De Gaulle era o financista Jacques Rueff, nascido em 1896, indicado por De Gaulle para presi-dir o conselho de peritos incumbido de preparar o plano de reconstrução econômica do país na 5ª República.

Ambos sustentavam que os EUA se valiam do dólar – que havia se tornado a princi-pal moeda de reserva do regime de câmbio fixado negociado em Breton Woods – para poder abusar dos déficits e bancar as aventuras militares como a do Vietnã. A França se insurgia contra o dólar e tentou revitalizar o padrão-ouro, ao mesmo tempo em que os países europeus começavam a discutir a união monetária capaz de fazer frente ao dólar.

Aí começou um jogo de alto risco. Em vez de aplicar suas reservas em títulos do Tesouro Americano, os Bancos Centrais europeus, puxados pelo Banco de França, e depois, pelo Banco da Inglaterra, começaram a exigir a entrega de ouro da Reserva Federal, em quantidades enormes.

Foi quando De Gaulle propôs a volta do padrão ouro, aconselhado por Jacques Ru-effe, mas tendo contra si a opinião do Ministro das Finanças e do Banco de França. Houve reação acerba dos EUA, sustentando que uma desvalorização do dólar em torno de 100% desestabilizaria todo o sistema de comércio mundial. Argumentava que o maior beneficiário, depois da África do Sul, seria a União Soviética, o segundo maior produtor mundial de ouro.

Os argumentos caíram no vazio. De Gaulle ordenou a conversão de US$ 300 mi-lhões de uma só tacada e, depois disso, a França passou a trocar mensalmente seus dólares por ouro.

Em junho de 1967, De Gaulle aplicou novo golpe ao modelo, ao retirar a França do pool de dez países que, através de acordo celebrado em 1963, se comprometiam a sustentar a paridade cambial celebrada em Breton Woods. Em apenas seis meses,

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de outubro de 1967 até a desvalorização da libra em abril de 1968, os membros do consórcio foram obrigados a vender US$ 3,5 bilhões em ouro, par segurar os espe-culadores. Os EUA perderam 20% de suas reservas.

Em março de 1968 o pool de países foi dissolvido, seguindo período de extrema vo-latilidade cambial. Pouco tempo depois, a economia americana submergiu em uma grande recessão. O FED afrouxou a política monetária, para estimular a economia, mas expôs o dólar a ataques especulativos pesados.

Em 1970 a fuga de capitais dos EUA atingiu cifra de US$ 6,5 bilhões; em 1971, de US$ 20 bilhões. Com a fuga os EUA ficaram tecnicamente quebrados: se todos os BCs cismassem em resgatar seu ouro, não haveria ouro para todos. Em agosto de 1971, o Tesouro americano recebeu um relatório dos serviços de inteligência aler-tando para uma ofensiva dos Bancos da França e da Inglaterra sobre o que restou das reservas americanas.

Em 15 de agosto de 1971, Nixon anunciou que a Reserva Federal dos EUA não mais honraria suas obrigações, contraídas no âmbito do tratado de Breton Woods, de trocar dólares por ouro.

Em 1973, a livre flutuação ocupou o espaço do cambio fixo de Breton Woods, inau-gurando o que Rueff apelidou de “era do papel impresso”. (Wilson Carvalho, O No-vo Papel dos Estados Nacionais em Época de Globalização Crescente; http://www.asip.org.ar/es/seminarios/int031/ponencias/04_e.html).

Nos anos 70, com os dois choques de petróleo, surgiriam os primeiros novos atores do jogo, sheiks árabes, com estupenda liquidez reciclando seus dólares através da praça financeira de Nova York.

Com a livre flutuação do câmbio, com a aprovação dos Estados Unidos os três paí-ses derrotados na Segunda Guerra passam a trabalhar com câmbio superdesvalori-zado: a Alemanha, com o dólar a 4,2 marcos; o Japão, com o dólar a 360 ienes e a Itália, com o dólar a 2 mil liras. São eles que vão comandar o desenvolvimento nos anos 80, os derrotados da guerra crescendo mais do que os vitoriosos.

Esse primeiro round de valorização do dólar prossegue até 1985, quando os EU desvalorizam pela primeira vez sua moeda. Na esteira da valorização, havia ocorri-do um intenso processo de desindustrialização nos EUA e de crescimento vigoroso nos países que desvalorizaram suas moedas.

No final da década começava a se firmar um mercado de eurodólares. Nos anos 80, surgem os japoneses, surfando na explosão da sua economia e aproveitando o bre-ve momento antes da valorização do iene jogar a economia japonesa em recessão, ajudando a constituir a bolha imobiliária nos Estados Unidos.

Em 1985, com o Acordo do Plaza, e em 1987 com o Acordo do Louvre, criam-se mecanismos de coordenação entre os bancos centrais para evitar os grandes mo-vimentos especulativos cambiais. O Acordo definia limites para as oscilações do dó-lar e para a apreciação do marco e do iene, obrigando os bancos centrais a intervi-rem c

O Acordo do Louvre estabeleceu limites para as oscilações do dólar (e, conseqüen-temente, para a apreciação relativa do marco e do iene) levando os bancos centrais a ampliar substancialmente o volume e a freqüência das operações de estabilização cambial. De outro lado, providenciou-se à cobertura do "gap" de financiamento dos dois déficits americanos através da aquisição de títulos públicos de longo prazo do Tesouro dos EUA, pelos bancos centrais dos parceiros superavitários. É relevante assinalar que, apesar do recrudescimento da incerteza e da desaceleração do nível de crescimento mundial em 1987, com elevação das taxas de juros em vários paí-ses, os fluxos de acumulação produtiva não esmoreceram nas principais economias avançadas.

Mas não eram apenas países e potentados que entravam nesse jogo. Nos anos 80 o crime organizado se consolidaria como uma grande potência financeira, com o cres-

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cimento exponencial do narcortráfico, ancorado nos esquemas colombianos, e o tráfico de armas e de pessoas.

Assolados por crises intermitentes dos países emergentes, o grande capital nacional também se dolarizou, buscando nadar nos fluxos financeiros internacionais.

Assim como no final do século 19, misturavam-se em um mesmo ambiente o gran-de capital legalizado, caixa dois, dinheiro de corrupção política, investidores emer-gentes, crime organizado.

Para permitir a convivência desses vários tipos de capital em um mesmo ambiente, recorreram-se a ferramentas jurídicas e à legislação mais permissiva dos paraísos fiscais.

Os paraísos fiscais e os doleiros

Essa expansão desmedida da liquidez internacional levou ao florescimento das em-presas “offshores” – isto é, instaladas fora de seu país de origem, para melhor se beneficiar dos mecanismos financeiros internacionais.

Os paraísos fiscais foram se especializando. Curaçao, por exemplo, é muito bem vista porque esta sob soberania de um País da União Européia. É muita usada para emissão de bônus em euros, as conhecidas “offshores” N.V. (sociedade anônima em holandês). Já Bahamas e Panamá cheiram mal, apesar do IRS ter acordos de disclosure (abertura de informações) com muitos paises do Caribe.

Já as européias são melhores reputadas, porque têm a supervisão de paises consi-derados sérios e que são aderentes a todos os tratados sobre lavagem de dinheiro. É esse o caso da Suíça e do Luxemburgo

As “offshores” têm mais ou menos uma especialização por país. Cayman é muito usada para superfaturar e subfaturar ou operações de comércio exterior e permitir grandes jogadas financeiras. A Petrobrás tem bilionárias operações em Cayman. Usa a ilha como base para aluguel e leasing de plataformas. Bermudas, sob sobe-rania britânica, é usada quase exclusivamente para seguros e resseguros.

Ilhas Virgens Britânicas (BVI, no jargão de advogados) é muito usada para titular patrimônio no Brasil, participações em empresas e propriedade de imóveis. Com a pouca capacidade da Receita em seguir dezenas de milhares de “offshores” com bens no país e a indiferença do BC sobre o assunto, grande parte das mansões de milionários no Brasil está em nome de uma BVI. A razão principal é que o inquilino-dono não tem recursos declarados para fazer aquela casa (e também a de praia e a de campo), mas sua “off-shore” tem, dinheiro exportado antes. Também há outras razões: proteger de penhoras e arrestos e da voracidade das ex-mulheres.

Esse jogo internacional passou a se dividir, inicialmente, em duas áreas de especia-lização. A primeira, a dos dutos que transportava o dinheiro para os gestores de recursos – aí entrando casas de câmbio, doleiros e esquemas variados, que serão detalhados mais adiante. A segunda, a dos gestores de recursos.

Com o tempo, e com a impunidade, muitos gestores passaram a administrar dire-tamente a lavagem de dinheiro. Foi o caso do escritório do Credit Suisse no Brasil (não confundir com a filial) e mesmo com as operações do Banco Pactual, que se transformou no maior banco de investimentos do país, graças à competência técni-ca e à falta de limites na área de captação.

No início dos anos 90, Samuel Huntington passa a empregar o conceito de primacy (primazia), que passa a ser correntemente utilizada na comunidade estratégica dos EUA e que ganharia feições mais claras no governo Clinton, sob o nome de “Doutri-na Clinton”.

Segundo a citação de Huntington, em 1993:

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“É errôneo pensar que a principal razão pela qual os Estados buscam a prima-zia internacional consiste em capacitar-se para vencer guerras e que, portan-to, se uma guerra é improvável, a primazia não é importante. Os Estados buscam a primazia para manter a sua segurança, promover seus interesses e conformar o ambiente internacional de forma a refletir os interesses e valores deles. Ela é desejável não fundamentalmente para obter vitória em uma guer-ra, mas para alcançar os objetivos do Estado sem recurso a ela. A primazia é, pois, uma alternativa à guerra”

Na mesma época, começa a ser utilizado o conceito de “unipolaridade”, em contra-posição à bipolaridade que marcou a Guerra Fria.

Em fevereiro de 2000, a futura Assessora para Assuntos Internacionais de George W. Bush escrevia um trabalho mostrando o desconforto dos EUA com o final da Guerra Fria:

“Os Estados Unidos encontravam extremas dificuldades para definir seus ‘interesses nacionais’ diante da ausência do poderio soviético”, dizia ela, em artigo publicado para a futura plataforma de política externa do futuro governo de George W. Bush. (...) O “interesse nacional” não se alterou profundamente desde meados do século passado. O que, sim, passou a necessitar de reformulação foi a rationale para as ações pertinentes”.

A fórmula de Clinton para conciliar os interesses particulares dos EUA com os inte-resses universais, consistiu em ampliar a doutrina de segurança militar. Além da doutrina da segurança nacional, enfatizava a “revitalização da economia america-na”, e a promoção da democracia no exterior. Segundo esses princípios, haveria um jogo global de ganhos mútuos.

“A nova fórmula para conciliar o “particular” (o interesse) e o “universal” (a adesão ou a aquiescência legitimadoras) amplia a doutrina de segurança nacional para a-lém da esfera militar. A este objetivo (principal instrumento anterior da “conten-ção”, mas agora também modificado), acrescentam-se “a revitalização da economia americana” e a promoção da “democracia no exterior”. Os objetivos são correlacio-nados teoricamente e, o que é mais importante, envolvem um jogo global de ga-nhos mútuos. É necessário citar: Nações seguras tendem a apoiar o comércio livre e a manter estruturas democráticas. Nações de mercados livres com economias em crescimento e vínculos de comércio aberto tendem a sentir-se seguras e trabalhar para a liberdade. E Estados democráticos não tendem a ameaçar nossos interesses, inclinando-se a cooperar com os Estados Unidos e a promover o livre comércio e o desenvolvimento sustentado. Esses objetivos são alcançáveis desde que esteja as-segurado que a América permanecerá envolvida no mundo e com a ampliação da comunidade de nações seguras, de livre mercado e democráticas (idem)” (Guima-rães, 4).

Para que todos ganhem, é necessária a abertura econômica e a primazia do país líder. Para Huntington, “a primazia não objetiva a guerra, mas a evitá-la”.

É em cima dessa estratégia que começam a ser moldadas as novas teorias econô-micas, destinadas a reduzir as resistências à Primazia, que vinha substituir a Dou-trina da Contenção da Guerra Fria. A criação de blocos econômicos, a consolidação da OMC (Organização Mundial do Comércio), a ampliação do alcance da Lei de Pa-tentes, tudo visava impedir o desenvolvimento de estratégias nacionais autônomas, mesmo para países que historicamente tinham nos déficits em conta corrente o principal empecilho o para o desenvolvimento.

Repetia-se, em quase tudo, a estratégia britânica do início do século 20.

Toda a fundamentação teórica para justificar a criação de déficits em conta corren-te, e depois sustentar a manutenção daquele modelo torto, partia da teoria dos “déficits gêmeos”, difundida pelo Subsecretário do Tesouro norte-americano La-wrence Summers.

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Defendia ele que a única maneira de um país emergente crescer seria se financian-do com capital externo. A exemplo da financeirização do século 19, havia uma re-ceita do bolo simples para os governos nacionais. A eles competia apenas zelar pela segurança jurídica, melhoria dos “fundamentos” (isto é, da solvência das dívidas interna e externa), para que esse capital fosse atraído e trouxesse o desenvolvi-mento.

Caso o país acumulasse grandes superávits comerciais, a receita consistia em per-mitir a apreciação da sua moeda, reduzir os superávits para abrir espaço para o in-gresso do capital financeiro. Esse capital financeiro seria o abre alas do processo de desenvolvimento, assumindo o papel de líder da nova etpa de investimento.

Completava com a teoria dos “déficits gêmeos”, destinada a reduzir as resistências daqueles que temiam a criação de déficits comerciais – já que os desequilíbrios co-merciais sempre foram obstáculos ao desenvolvimento dos emergentes. Dizia ele que um país só tinha passivos externos para suprir a falta de poupança interna. Portanto, bastaria resolver a questão fiscal para, automaticamente, se equacionar a questão externa.

Era uma teoria exclusivamente norte-americana, a contrapartida teórica ao que se convencionou chamar de “Doutrina Clinton”, que de 1993 a 2000 procura definir um novo posicionamento estratégico para os EUA, depois do final da Guerra Fria11. Até então, a diplomacia americana havia se caracterizado pela “doutrina da conten-ção”, destinada a brecar a expansão soviética no mundo.

Em 1998, na banca americana, 8 entre 10 banqueiros achavam a questão fiscal mais relevante que a questão externa. Na banca européia, 8 entre 10 consideravam que o nó eram as contas externas.

Essa mudança de diagnóstico começou a ocorrer ainda na gestão Marcílio Marques Moreira como Ministro da Fazenda do governo Collor. O principal conceito passou a ser o fiscal: os países passam a depender mais agudamente de recursos externos quando não há poupança interna suficiente para financiar o excesso de demanda interno. Este era o mote inicial que, depois, tomou conta do mercado. Em geral a-tribuía-se esse excesso de consumo ao déficit público, que acabava absorvendo a poupança disponível, obrigando o setor privado a se financiar lá fora.

No fundo, ocorria o mesmo movimento estratégico de um país hegemônico – os Es-tados Unidos – repetindo o movimento britânico “chutando a própria escada” des-crito por Friedrick List.

A hegemonia não se dá apenas no campo econômico, mas no intelectual, nas for-mulações econômicas. A potência torna-se modelo, um núcleo que atrai cérebros da periferia. Por hegemônico, recorre a estratégias bem elaboradas, capazes de le-gitimar, junto aos países periféricos, ações que favoreçam a manutenção da hege-monia.

No final dos anos 80, os EUA já haviam se conformado com a perda da hegemonia industrial. A crise do setor automobilístico, das siderúrgicas, o crescimento da pe-netração de produtos japoneses provocara uma mudança estratégica no país. Não seria mais possível acompanhar a competitividade das novas potências industriais. Sua vocação – definida pela doutrina Clinton -- seria ampliar sua presença financei-ra e na área de serviços. As multinacionais americanas comandariam o globalização econômica instalando fábricas em economias mais competitivas; o mercado finan-ceiro norte-americano comandaria a globalização financeira, depois que as novas teorias se impusessem sobre os países emergentes.

Havia uma lógica férrea amarrando as novas teorias à nova etapa da hegemonia norte-americana, à Pax americana.

Primeiro, ao estimular o aumento de facilidades para a entrada e permanência do capital financeiro nos países periféricos.

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Segundo, ao propor a abertura comercial indiscriminada e a apreciação do câmbio. Ao mesmo tempo em que se criavam facilidades para o capital financeiro, se tirava a competitividade das economias nacionais pela apreciação do câmbio, reduzindo a pressão sobre a balança comercial e a produção interna norte-americana.

Terceiro, ao defender que o papel dos países periféricos seria apenas o de garantir a solvência do Estado (reduzindo o risco de calote), desregulamentar e privatizar a economia. Ao mesmo tempo anulava qualquer tentativa de montagem de estraté-gias de desenvolvimento autônomo, e se abrir um enorme mercado onde aportar os notáveis excedentes financeiros internacionais, em uma época de liquidez gigantes-ca.

Analisados individualmente, muitos dos princípios defendidos eram legítimos. O Es-tado brasileiro havia chegado a um tamanho indefensável. O fechamento da eco-nomia produzira reservas de mercado e ineficiência. O desafio consistia em separar, na teoria que começava a se universalizar, a parte que interessava ao país, descar-tando as que pudessem prejudicá-lo, definir a dosagem correta de abertura, de a-preciação cambial, os limites da privatização.

Mas não havia senso crítico suficiente para fazer a separação.

A tropicalização dos déficits gêmeos

No início dos anos 90, muitos economistas já repetiam a máxima de que o país não deveria mais pensar em contar com o câmbio para ganhar competitividade. Os no-vos tempos exigiam câmbio apreciado para abrir espaço para a entrada da poupan-ça externa, que levaria ao desenvolvimento. Varriam para baixo do tapete décadas de crises cambiais abortando qualquer tentativa de crescimento sustentado, e pas-savam a girar em torno de loucas teorias, sem relação de causalidade. Resolvida a questão fiscal, os problemas externos seriam automaticamente resolvidos, era o bordão.

Para os espíritos mais argutos, havia furos óbvios na teoria da abertura financeira e dos déficits gêmeos, especialmente devido ao fato do país não possuir uma moeda conversível. Com isso, criava-se um monstrengo desconjuntado, ilógico como um cruzamento de beija-flor com pterodáctilo.

Era o seguinte o roteiro de entrada dos dólares no país:

Passo 1 – o investidor trazia os dólares para o Brasil e vendia, atraído pela dife-rença entre as taxas de juros internas e as externas. Trocando os dólares por moe-da nacional, ele podia aplicar nas taxas de juros internas. Com muito dólar entran-do ocorria uma apreciação da moeda nacional (que passava a valer mais), encare-cendo os produtos brasileiros no exterior e prejudicando as exportações.

Passo 2 – o Banco Central era obrigado a comprar o excesso de dólares, e a cons-tituir reservas cambiais expressivas, para impedir uma super-apreciação do Real. Para comprar os dólares, o BC emitia moeda local.

Passo 3 – o excesso de moedas na economia provocava especulação com ativos reais, pressionando a inflação. Para abortar esse movimento, o BC vendia títulos da dívida pública no mercado, enxugando as moedas emitidas, mas aumentando o endividamento.

Passo 4 – a cada mês que passava, o BC era obrigado a remunerar os títulos pú-blicos por um muito superior ao que conseguia de remuneração por suas reservas em dólares. O resultado era o duplo aumento da dívida interna: pela colocação de papéis (para enxugar o excesso de moeda) e pelo diferencial de taxas de juros). Mesmo assim, como a entrada de dólares era excessiva, ocorria uma apreciação da moeda interna.

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Passo 5 – com a apreciação cambial, as exportações perdiam ímpeto, havia uma redução no superávit comercial e o país passava a depender dos fluxos financeiros para fechar suas contas externas.

Era uma rematada imprudência, mas defendida por muitos economistas de merca-do com uma lógica torta, obtusa, mas de plena aceitação pela imprensa especiali-zada. Segundo ela, esse capital volátil funcionaria como uma espécie de batedor da política econômica. Cada passo mal interpretado serviria de álibi para que saísse do país, pressionando as cotações do dólar. Mas se ganhasse confiança, através do capital especulativo viria o capital de investimento. E aí se completaria o círculo vir-tuoso.

A teoria não diferenciava capitais especulativos de curto prazo de capitais de longo prazo. Vendia o peixe de que havia a necessidade de permitir a entrada do capital especulativo, que funcionaria como um “batedor” para a entrada do capital de longo prazo. Era uma tese torta, como se as multinacionais, o capital de longo prazo, não conhecessem o Brasil desde o século passado. Como se uma IBM, uma Ford, com décadas de operação no Brasil, precisassem de um J.P.Morgan de batedor, para sa-ber em que terreno estavam pisando. A própria crise do México, em dezembro de 1994, prenúncio de outras graves crises cambiais, demonstrava que os dois tipos de capitais eram, frequentemente, incompatíveis. A dependência de capitais de cur-to prazo era um fator de risco que inibia o ingresso de capital de investimento. Ou seja, para o capital de investimento, o capital especulativo estava mais para índio do que para batedor.

Além disso, não se avaliava corretamente o impacto da liberalização cambial sobre as contas públicas, devido ao diferencial entre as taxas de juros interna e externa e à necessidade de emitir títulos da dívida para enxugar os reais emitidos para a compra de dólares.

Também não levava em conta o efeito-substituição dos dólares que entravam. Em vez de vir se somar à poupança interna, o que ocorria era a substituição da pou-pança interna pelo mecanismo descrito no item anterior. O investidor trazia US$ 100 milhões. O BC adquiria esse total e entregava para ele o correspondente em reais. No momento seguinte, enxugava o montante equivalente em reais ou com a colocação de títulos públicos (o que aumentava a dívida interna) ou pelo aumento do compulsório dos bancos.

Em lugar de suplementar a poupança interna, o investimento externo provoca um efeito-substituição sobre o crédito interno e um aumento no endividamento público. O Brasil do dólar acabava subtraindo recursos do Brasil que toma crédito em reais –que paga juros mais altos e impostos mais altos para compensar o aumento da dí-vida pública.

Finalmente, era falsa como uma nota de três reais a idéia de que bastaria equilibrar as contas internas, para as externas automaticamente se ajustarem.

Quando os dólares entram no país, o BC emite reais para comprá-los (e mantê-los nas reservas), depois vende títulos públicos para enxugar esses reais adicionais do mercado. Ou seja, os dólares que entram no país, e vão engordar as reservas, transformam-se em dívida pública.

Se o governo começasse a gerar superávits fiscais, ele teria reais em caixa, com os quais iria resgatar parte dos seus títulos ou pagar os juros em reais. Aí o investidor estrangeiro receberia os reais, mas teria que ir ao mercado adquirir os dólares para remeter ao seu país de origem. Só que, para isso, teria que haver dólares no país. E os superávits fiscais geravam excedentes de reais, não de dólares.

Também era falsa a idéia de que o investimento externo era função do aumento dos déficits fiscais, e que viriam para ajudar a financiar a dívida pública em reais. Os dólares que entravam geravam, como contrapartida, mais dívida pública.

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Na verdade, o investimento externo só tinha papel decisivo para o desenvolvimento quando o crescimento provocava desequilíbrios nas contas externas. Foi assim nos governos Vargas, JK, Jânio e Castello. O país passava a importar mais, a comprar equipamentos, e não possuía divisas em volume suficiente. Nessa circunstância, o investimento externo tinha papel crucial para assegurar o crescimento da economi-a.

Mesmo com todas essas conseqüências óbvias, a partir dos anos 90, o pensamento cabeça-de-planilha desandou. Não se tratava mais de combater desequilíbrios ex-ternos decorrentes do excesso de aquecimento de economia, mas de buscar inten-cionalmente o desequilíbrio, a fim de abrir espaço para o investimento externo, que viria suprir a necessidade de poupança do país.

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De agosto de 1993 até algum tempo após o Real, a equipe econômica discutiu as principais implicações do plano de estabilização sobre a economia. Das discussões emergiram os seguintes diagnósticos, relatados por Maria Clara do Prado em seu livro “A Real História do Real”:

Excesso de liquidez: sabia-se que haveria grande fluxo de dólares entrando no país após a estabilização. Em agosto de 1993, um “paper” de Gustavo Franco pro-punha que o excesso de liquidez fosse combatido atuando-se diretamente sobre as captações de dólares, “através dos recolhimentos compulsórios sobre captação ex-terna, sobre contas bancárias em dólares para exportadores, fundos de investimen-to em dólar para captação de papéis no exterior e, no limite, fechamento parcial da conta de capitais” (Maria Clara, 139). Bacha defendia que a remonetização seria apenas através da conversão em reais dos dólares colocados pelo governo no exte-rior.

Sobrevalorização cambial: No mesmo “paper” Gustavo Franco alertava para o risco da sobrevalorização cambial provocada pela inflação inercial. Promulgado o Plano, o câmbio ficaria parado e haveria uma inflação inercial interna que provoca-ria uma valorização do Real.

Controle de capitais: embora já apresentasse uma proposta de taxa de juros in-terna que embutisse o risco Brasil no exterior, Edmar Bacha defendia controles temporários sobre o capital externo, “para evitar a inconsistência de uma política de juros elevada com um câmbio fixo”. Era claríssimo para a equipe o efeito conju-gado de taxa interna de juros elevada e fluxo de capital financeiro. O dólar entraria, o investidor lucraria por alguns meses, depois embolsaria os juros e iria embora. Gustavo Franco e Pedro Malan também defenderam, em algum momento, medidas dessa natureza.

Custo das reservas cambiais – um relatório do Banco Mundial, de 1994, mencio-nado por Gustavo Franco em um de seus “papers”, demonstrava claramente o cus-to da manutenção das reservas no período 92-94, 0,45% do PIB, em média. E comprovava que o aumento da dívida pública no período fora proporcional ao au-mento das reservas cambiais, sugerindo uma relação de causalidade entre ambos os movimentos. Havia a preocupação de diminuir o tamanho das reservas e o ex-cesso de dólares na economia.

Dívida Pública – todo programa de remonetização permite a redução drástica da dívida pública, à medida que se pode trocar moedas por títulos da dívida. No início do Plano, a equipe discutiu a possibilidade de injetar dólares na economia, recolher reais e quitar dívida pública, permitindo que a remonetização beneficiasse a socie-dade como um todo (Maria Clara, 257). Por sua vez, Edmar Bacha defendia um re-dutor de 20% na dívida mobiliária interna e a possibilidade de troca por ações do programa de privatização, seguindo sugestão de Pérsio Arida, baseada, em parte, no Plano K.

Diagnósticos

As condições internacionais eram favoráveis. Com o avanço da logística e das co-municações, teve início a implosão das formas tradicionais de produção. As grandes multinacionais passaram a alocar unidades em todo o mundo, buscando países com mercado interno e/ou vantagens competitivas.

No início do plano Real, a economia conseguia crescer a 5,5% ao ano sem déficit em conta corrente, carga tributária representava apenas 26% do PIB, a dívida pú-blica era de R$ 30 bilhões.

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O mero final da inflação já havia provocado uma revolução no país. Naquele ano de 1994, Brasil e China se tornaram as grandes estrelas do mercado internacional.

A China havia criado uma região para experimentar o novo modelo de mercado, em substituição ao modelo comunista que vigorava. Mostrou um mercado real de 80 milhões de consumidores e um mercado potencial de mais de um bilhão.

Em menor escala, essas condições estavam presentes no Brasil. Da noite para o dia, dezenas de milhões de pessoas saíram da linha da miséria para a do consumo com o mero fim da inflação.

No final de 1994, as previsões de aumento nas vendas de automóveis, eletrodo-mésticos, bens de consumo não durável, alimentos, incendiava a imaginação das multinacionais. Todas as peças do jogo de xadrez estavam no tabuleiro. Faltava a-penas uma remonetização bem feita, uma operação competente no período de transição para a estabilidade, para evitar a volta da inflação e permitir ao país re-cuperar definitivamente sua vocação desenvolvimentista.

A remonetização era um jogo de xadrez com inúmeras possibilidades. Os economis-tas do Real poderiam ter escolhido o caminho da chamada monetização da dívida pública. No vencimento, em vez de títulos o investidor receberia reais. A divida se-ria monetizada, desapareceria, e o mercado teria que se organizar para reciclar os recursos, abrindo espaço para investimentos na atividade real.

Na época, havia propostas de privatização com investimentos internos por meio de encontro de contas com os fundos sociais (FGTS, FAT, Pis-Pasep), o chamado Plano K, uma idéia do empresário Paulo Britto e do economista Paulo Rabello de Castro.

Era uma proposta que casava as preocupações com a legitimação social da privati-zação, com um modelo moderno de mercado e com o acerto dos passivos públicos. A idéia seria, inicialmente, reconhecer os principais passivos da União, estados e municípios com os fundos sociais – FGTS, FAT e outros. Depois, criar um título de-nominado de Obrigação Social do Tesouro, lastreado nas transferências constitucio-nais e em outros ativos de estados e municípios, que seriam utilizadas para quitar seus passivos com os fundos sociais. Finalmente, permitir que, voluntariamente, trabalhadores pudessem trocar sua aposentadoria ou seus direitos ao FGTS por es-sas Obrigações. Elas seriam depositadas em fundos especialmente criados para participar da privatização.

Ao final do processo, haveria modernas empresas públicas de capital aberto, um mercado de capitais robusto e se teria começado a equacionar alguns dos grandes passivos públicos, como o da Previdência Social. Se trocariam direitos do velho por direitos no novo modelo.

A primeira etapa do Real

Foi esse o ambiente encontrado pelos economistas do Real, quando começaram a preparar sua obra. O plano foi anunciado antecipadamente, em 1993, com a cria-ção da URV (o indexador que deveria vigorar por seis meses, até se transformar no Real). Bastou o anúncio para todo o processo interno se reformas ser paralisado. O plano tinha que ser acelerado tendo em vista, principalmente, as eleições do ano seguinte.

E aí se entram em algumas definições que, a exemplo da política monetária de Rui Barbosa, foram pouco analisadas até hoje.

Há três maneiras de avaliar o Plano Real: a primeira, a troca de moedas em si, que levou ao fim da inflação inercial; a segunda, a maneira como ocorreu a remonetiza-ção da economia, isto é, como o governo planejou injetar a nova moeda na econo-mia; a terceira, a maneira como se encararam os ajustes necessários para a corre-ção de rumos. Em geral, as análises tendem tratar os três processos como elemen-tos indissociáveis de um mesmo todo. Não são.

Luis Nassif� 18/7/06 23:31Comment: Levantar números

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Na troca de moedas, havia várias maneiras de se definir a remonetização. O segre-do do novo modelo de país, que seria desenhado dali em diante, estava na remone-tização, em como o governo definisse a maneira como a nova moeda revascularia o sistema econômico.

A primeira etapa do Real consistiu em quatro movimentos, todos guardando a mesma lógica entre si, de transferir o controle das políticas monetária e fiscal para o exterior e beneficiar os novos banqueiros de negócio. A idéia básica é que, crian-do uma dependência do capital externo, ela passaria a balizar todas as decisões de política monetária e fiscal. Qualquer tentativa de sair da linha provocaria fugas de capital, que colocariam qualquer governo de joelhos.

Foram eles:

1. Regras de monetização, transferindo o controle da liquidez para os detento-res de ativos dolarizados, ao mesmo tempo em que se criavam barreiras ca-da vez maiores para o acesso a crédito em reais.

2. Montagem de uma estratégia de flutuação cambial para tirar outros agentes do controle da liquidez do sistema: os exportadores, pela destruição dos su-perávits comerciais; os bancos comerciais, pela não explicitação das regras de flutuação.

3. Mudanças institucionais para que todos os órgãos de controle da moeda (Conselho Monetário Nacional e o recém-criado ......) ficassem subordinado unicamente à representação do mercado.

4. Criação do ambiente de negócios favorável para que a liquidez proporciona-da aos ativos dolarizados se transformasse em riqueza, através de opera-ções no mercado futuro de dólares.

As regras de remonetização

Ao longo dos preparativos para o Plano Real, houve muitas discussões, mas não uma explicitação de como seriam as políticas monetária e cambial depois de lança-da a nova moeda.

Desde o início, André Lara Rezende tornou-se defensor intransigente da remoneti-zação com poupança externa. Na gestão de Fernando Henrique na Fazenda na Fa-zenda concordou em completar o processo de renegociação da dívida externa. Ali, ampliou os contatos com banqueiros internacionais. Nas discussões internas, che-gou a defender o “currency board” (o sistema adotado por Domingo Cavallo, se-gundo o qual o governo só poderia emitir moedas nacionais se lastreadas em dóla-res) (FHC, 173). Mesmo depois da URV na rua, insistiu no tema. Com o “currency board”, o controle da liquidez seria totalmente transferido para quem dispusesse de acesso a dólares. Só o dólar adquirido pelo Banco Central poderia ser trocado por reais.

O “currency board” não colou por ser extremamente rígido. Mas, na definição das regras de monetização, decidiu-se lastrear a base monetária do país nas reservas internacionais. Ao mesmo tempo, o BC estabeleceria exigências cada vez maiores de recolhimentos compulsórios, “travando a captação e, principalmente, as opera-ções de crédito no sistema bancário”, conforme explicitado por Gustavo em seu li-vro sobre o Real.

Numa ponta, amarrava a emissão às reservas cambiais. A política monetária era transferida ao detentor de dólares. A emissão de reais era ilimitada para quem dis-punha de dólares, mas não existia para quem só tinha acesso aos reais. O dinheiro entrava pela porta de dólares, mas antes que se convertessem em crédito, era su-gado pelos recolhimentos compulsórios do BC.

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Com essa definição, dava-se o primeiro passo para transferir o controle da liquidez para os detentores de dólares.

A rigor, havia três grupos beneficiários: os exportadores, devido aos altos superá-vits comerciais; os bancos comerciais, com seus parceiros internacionais podendo provê-los de linhas de financiamento em dólares; e para os novos banqueiros de investimento, que poderiam reciclar a poupança brasileira dolarizada.

O segundo passo foi com a apreciação do real, expulsando dos dois primeiros gru-pos da fase inicial da remonetização.

A apreciação do real

Na tarde do dia 31, quando houve o lançamento do plano, o próprio Ministro da Fa-zenda afiançava, em declarações públicas, que o câmbio seria fixado na proporção de um dólar por real. Não havia motivo algum para Ricupero fazer uma declaração que seria desmentida no dia seguinte pelo Banco Central.

A receita de remonetização do Real, com a apreciação da moeda, foi uma surpresa quase tão grande, e muito menos perceptível, do que o bloqueio de Cruzados de Collor. Inclusive para o próprio Ministro da Fazenda.

Só na antevéspera do lançamento do Real a equipe ficou sabendo, por Gustavo Franco, que o câmbio de partida seria de 92 centavos de real o dólar. O próprio A-rida considerou a cotação exagerada, porque a tendência seria ocorrer mais apreci-ação.

Às 16 horas do dia 29 de junho, encerrado o mercado de câmbio com um leilão de compra de dólares, o Banco Central comprou dólares a 95 centavos de real. As compras de câmbio são liquidadas dois dias úteis depois. No dia 5 de julho, eram feitas as primeiras emissões da nova moeda. No dia seguinte, a mesa de operações do BC recebeu nova instrução para comprar dólares no equivalente a R$ 16 mi-lhões, derrubando cotação para 93 centavos de real.

“A indicação era muito clara: a taxa de câmbio seria flexibilizada para baixo. Na verdade, começava ali uma nova fase na política cambial brasileira”,

conforme escreveria Franco posteriormente (Franco, 57).

Na verdade, Gustavo Franco não consultou ninguém, nem Ricupero, nem Pedro Ma-lan nem seus companheiros de Real. Foi uma decisão solitária, segundo ele, desti-nada a demover as apostas do mercado contra o real.

Segundo o próprio Gustavo, houve dois tipos de interpretação iniciais para aquela atitude imprudente do BC. A primeira, é que seria um expediente transitório do BC, para barrar operações de arbitragem de taxas na passagem do Real, entre as taxas de juros do overnight e as taxas de desvalorização cambial, devido à diferença de prazos de liquidação. A segunda, é que seria uma tentativa de restringir a entrada de capitais, na medida em que a apreciação geraria um fato de instabilidade, à me-dida que o dólar poderia se apreciar novamente e chegar a um real.

Para Gustavo, o jogo era outro. No primeiro semestre o BC havia adquirido US$ 2,5 bi mensalmente, resultando em expansão monetária de US$ 15,1 bi e um custo ex-traordinário de manutenção das reservas cambiais. Logo, pela sua ótica, a taxa de câmbio do primeiro semestre estaria fora do ponto de equilíbrio. Na avaliação sobre o programa, que escreveu no final de 1994, Franco sustentava que o ponto mais relevante da política cambial foi ter dado autonomia à política monetária, permitin-do desenvolver uma “âncora monetária”.

Mas como assim, se a taxa de juros passou a ser conduzida pela necessidade de atrair dólares para fechar as contas externas? Além disso, quem condiciona a emis-

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são de reais ao aumento das reservas cambiais obviamente não está preocupado com o seu nível ou o seu custo fiscal. É evidente que a “bonança cambial” não foi enfrentada.

Para alguns analistas, o BC não conseguiu segurar os dólares unicamente devido ao fato de que a enxurrada era incontrolável. Não era fato. Em julho de 2006, em uma polêmica com colegas da PUC-RJ, e em depoimento para mim, Gustavo Franco des-denhava os acadêmicos que não tinham noção sobre o poder de fogo do BC.

A única medida tomada foi aplicar alíquotas diferenciadas de impostos para cada modalidade de entrada de capital. Unificaram-se todas as entradas de capital de arbitragem nos Fundos de Renda Fixa – Capital Estrangeiro (criados pela Resolução 2.034/2003 do CMN), que passaram a ser tributados em 5% na entrada. Todas as demais entradas de empréstimo de médio e longo prazo, não diretamente associa-dos ao financiamento do comércio exterior, seriam tributados em 3%. Era uma ma-neira de estender o prazo de permanência do capital. Posteriormente, essas alíquo-tas foram aumentadas para 9 e 7%.

Os dólares comerciais foram expulsos pela apreciação do Real. Depois de todas as críticas feitas ao custo de acumulação de reservas do primeiro semestre de 1994, constituídas por dólares do saldo comercial, liquidava-se com o saldo comercial e continuava-se o mesmo jogo, só que com dólares financeiros, muito mais voláteis, com um custo de captação muito mais elevado.

Os bancos comerciais foram expulsos pela falta de garantias explícitas de que seria mantida a paridade de um dólar por real. Por suas características, não podiam cor-rer o risco de descasamento entre captação e aplicação.

Com essas medidas, sobraram apenas os banqueiros de investimento e os fundos agressivos, formados ao longo dos anos 80. E, quando o dólar tornou-se um ativo escasso (com o fim dos superávits comerciais), a taxa de juros da economia passou a ser fixada levando em conta as taxas internacionais, mais o custo Brasil, mais o risco cambial.

Em fins de 1994, as reservas cambiais estavam em US$ 40 bi. No seu diagnóstico desse quadro pré-Real, Franco anotaria o crescimento da dívida interna era da mesma magnitude do crescimento das reservas. E traçava o seguinte círculo vicioso de uma economia com muitos dólares:

“A esterilização do acúmulo de reservas pressionava os juros internos, o que ampliava o diferencial de juros e produzia mais entrada de capital e acumula-ção de reservas. Além disso, os recursos externos não se materializavam em investimento”.

Essa crítica ao período pré-Real se encaixava como uma luva ao período do Real. Com a diferença que os dólares foram substituídos: em vez de dólares do superávit comercial, capitais gafanhoto, de curto prazo.

Havia a consciência do risco do “overshooting” (excesso de apreciação cambial), e do risco da “Dutch Disease” (fenômeno ocorrido na Holanda, no qual o excesso de dólares, pela descoberta e exportação de gás levou à desindustrialização da eco-nomia), e também o risco de se criar um grande déficit em conta corrente de difícil sustentabilidade em médio prazo, como ocorrera com o México (Franco, 62). Ora, se havia todos esses riscos, e se tudo havia sido previsto com antecipação, porque não se tratou de evitá-los?

Segundo Franco,

“o Real sustou o círculo vicioso, ao simplesmente identificar a ‘bonança cam-bial’ como um problema e ao programar, para seu enfrentamento, uma estra-tégia composta de diversos elementos” (Franco, 61).

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É evidente que não sustou. No final do ano o montante de reservas era praticamen-te o mesmo e, nos anos seguintes, o BC foi obrigado a aumentar substancialmente as reservas, com taxas de juros recordes, para conseguir fechar as contas externas e impedir uma apreciação ainda maior do Real.

O fim dos superávits comerciais

O segundo elemento da estratégia foi ampliar desmedidamente as importações, re-tirando todas as restrições, tarifárias e não tarifárias. O terceiro, remover obstácu-los a investimento no exterior, criando os Fundos de Investimento no Exterior (Re-solução 2.486 de 30.09.1994), admitindo papéis do Tesouro em sua carteira.

Em meados de outubro a equipe econômica acreditava haver super-oferta de dóla-res.

“Todavia, no final do ano, o surpreendente crescimento das importações e as conseqüências da crise mexicana trariam a impressão oposta” (Franco, 64).

Houvesse o mínimo de acompanhamento da realidade, se saberia que há uma defa-sagem de tempo entre a abertura às importações e da conta capital e seu início e-fetivo. É o período em que os importadores aprendem a trabalhar os novos merca-dos, a identificar os produtos demandados, a convencer a rede varejista a colocar os produtos. Depois que aprendessem a importar, com o câmbio tão apreciado, se-ria uma enxurrada como a que se viu. Do lado da conta capital, é o período em que os investidores ganham confiança no novo modelo e, depois de um período de tes-te, começam a desovar dólares, especialmente quando a diferença de taxas de ju-ros era tão expressiva quanto no período.

Mas não havia interesse. No dia 26 de setembro de 1994, com as preocupações com o câmbio começando a dominar os debates internos do governo, Franco insis-tia que era preciso olhar não para o superávit comercial, mas para o que ele cha-mava de “superávit externo estrutural”, em que entrava a balança comercial mais os investimentos externos. Em sua opinião, o déficit na balança comercial deveria se estender por mais dois ou três anos (Maria Clara, 370). Qual a razão? Para ele, “não seria nada de mais se o déficit da conta corrente chegasse a 2% do PIB”.

Àquela altura, Pérsio brigava em vão pela regulamentação do Fundo de Amortiza-ção da Dívida Mobiliária, que permitiria a privatização com dívida pública. A idéia jamais saiu do papel. Naquela semana teve uma briga monumental, quando Franco afirmou que a taxa de câmbio de equilíbrio seria de 77 centavos de real o dólar.

“Não dá, você está maluco, esse processo de valorização tem que parar, te-mos que voltar para 90 ou 95” (Maria Clara, 390).

Em meados de outubro, com a eleição decidida, o investimento externo começou a entrar aos borbotões. E os importadores, com os motores aquecidos, começavam a comprar loucamente, aproveitando o câmbio favorável e o mercado interno aqueci-do.

A nova institucionalidade

A nova política monetária delineada pelo Real havia sido apresentada na MP no. 542 de 30 de junho de 1994, com três pontos principais.

Mudava a composição do CMN e criava a COMOC (Comissão de Moeda e Crédito), para tirar a influência de qualquer voz discordante em relação ao novo regime mo-netário-cambial. O argumento era “despolitizar” o CMN. A nova composição teria o Ministro da Fazenda, do Planejamento e o presidente do BC. Foram retirados minis-tros de várias pastas, presidentes de bancos federais e representantes de empresas e trabalhadores, pois sua presença “distorce o caráter de instituição pública do

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Conselho, pois envolve partes interessadas em decisões onde deve prevalecer ex-clusivamente o interesse público e o compromisso com a estabilidade da moeda”.

A guerra de comprados e vendidos

Historiadores e economistas tendem a analisar isoladamente dois fenômenos da gestão de Rui Barbosa na Fazenda: sua política monetária e o Encilhamento, que foi o movimento especulativo ocorrido na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. No má-ximo, estabelecem relações de causalidade, como se a especulação fosse resultado de erros não intencionais cometidos por Rui. Alguns economistas, como Celso Fur-tado, tendem a considerar o Encilhamento como um movimento independente da política monetária expansionista de Rui.

O que fazem é analisar os grandes agregados, comparar um terreno que vai ser irrigado com a água utilizada na irrigação, independentemente de como se dará a irrigação. Se aspergir por igual a água no terreno, o resultado será um; se passar a água por um cano e focalizar o jato em um ponto único, o resultado será um desas-tre

As ligações de Rui com o Conselheiro Mayrink, as benesses concedidas, a falta de intervenção no movimento especulativo, cujos desdobramentos eram previsíveis para qualquer analista da época, são um indício de que remonetização e Encilha-mento faziam parte de um mesmo modelo de fortalecer grupos econômicos aliados, ainda que em detrimento da economia.

Em toda a história do país, projetos de poder passavam pela constituição de alian-ças políticas, mas, fundamentalmente, pelo fortalecimento dos empresários aliados. Eles se constituíam em uma das âncoras para assegurar o fortalecimento do presi-dente no cargo, mas, também, a manutenção de aliados influentes nos períodos fora do governo. O Visconde de Ouro Preto tinha o Conde de Figueiredo; Rui apos-tava no Conselheiro Mayrink; Getúlio Vargas tinha o Conde Matarazzo, Euvaldo Lo-di, Valentim Bouças; JK tinha os empreiteiros mineiros; Geisel tinha os empresários da indústria de base, mais os próximos, Paulo Egydio Martins, Shigeaki Ueki, Raph Rozenberg; Sarney tinha Mathias Machline. Em sua pretensão de criar uma base auto-sustentável de poder, Collor investiu nos inacreditáveis irmãos Martinez, da CNT, em Wagner Canhedo, da Vasp. Um dos pilares dos vinte anos de poder do PSDB, era as alianças com os novos grupos que surgiriam na área de telecomunica-ções e nas privatizações em geral, mas, principalmente, os novos grupos financei-ros.

Para que a remonetização ajudasse a criar os super-grupos da próxima etapa, tinha que ser combinada com um ambiente que ajudasse a transformar a liquidez em ri-queza. O poder de emissão garante uma vantagem extraordinária para seu deten-tor. Mas, dentro da atividade normal de emprestar, o processo de acumulação é lento. Daí a importância de se ter um ambiente favorável a apostas especulativas, onde a liquidez poderia ser multiplicada várias vezes em riqueza. Todas as benes-ses concedidas a Mayrink, todos os problemas enfrentados por ele, que obrigavam Rui a mais concessões, estavam diretamente ligados às jogadas especulativas do Encilhamento.

Em pleno final de século 20 seria impossível distribuir privilégios individuais, como fizera Rui Barbosa. O caminho consistia em definir todo um setor: os novos ban-queiros de negócios que surgiram nos anos 80.

A maneira escolhida para premia-los foi um primor, uma obra prima, talvez o maior negócio do século 20, uma aventura quase tão grandiosa quanto as façanhas de John Law, o aventureiro que criou o Banco da França e comprou a Luisiana antes de quebrar.

Por trás da vã teoria, havia uma férrea lógica negocial, que ficaria claro em poucos meses para os observadores mais atilados. Não para a maioria da mídia e da cha-mada opinião pública.

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Ao começar o Real, foi anunciado que o dólar poderia cair o quanto fosse, mas, se se valorizasse, não poderia valer mais do que um real. Os especuladores podiam trazer dólares à vontade e aplicar em títulos do Tesouro. O risco era limitado a um real. Com a diferença entre as taxas de juros interna e externa, os especuladores podiam apostar em um dólar de até 85 centavos, com riscos mínimos de perda, no caso de desvalorização do real.

Para manter uma aposta tão elevada, havia um batedor privilegiado, o pequeno Banco Matrix, criado com capital de R$ 16 milhões, por um grupo de operadores do mercado tendo, entre seus sócios, André Lara Rezende, que continuava a participar intensamente das discussões sobre o real. Em pouco tempo tornou-se administra-dor de uma carteira de fundos de mais de US$ 500 milhões. Jamais um investidor estrangeiro iria colocar seu dinheiro em um banco recém-criado, pequeno, por me-lhor que fosse a reputação de seus gestores. O dinheiro era da Avenida Paulista, mesmo. E o lucro monumental, de mais de R$ 140 milhões declarados no primeiro ano, de R$ 500 milhões segundo rumores que correram na época, se devia à certe-za de André – na qualidade de um dos formuladores do plano – de que a equipe econômica não permitiria nenhum movimento brusco do câmbio que pudesse pena-lizar os investidores externos.

É por aí que se entenderá melhor a enorme resistência a se corrigir o câmbio, mesmo após as eleições e a crise do México. Na verdade, o mercado se dividira em dois grupos: os “comprados” (que apostavam na manutenção da apreciação do câmbio) e os “vendidos” (que apostavam na desvalorização do real). As instituições próximas à equipe econômica estavam esmagadoramente na ponta dos “compra-dos”. Rumores do mercado davam conta de que o Matrix teria US$ 1 bilhão aplica-do na ponta “comprada”. Qualquer desvalorização brusca do Real quebraria a cor-rente.

O afluxo de dólares foi tão grande que seu valor baixou imediatamente para 85 centavos de real. O investidor trazia os dólares, vendia a 85 centavos de real, rece-bia uma remuneração que chegou a 45% líquidos ao ano e o máximo de perda que teria seria de 17%, se o dólar batesse no teto de um real. Ou seja, na pior das hi-póteses, teria uma remuneração garantida de mais de 20%.

Em seu livro, Franco explica uma a uma as medidas, menos a essencial: porque se lastreou a emissão às reservas cambiais e se permitiu a apreciação do câmbio? Também não havia nenhuma explicação plausível para se buscar déficit nas contas correntes a qualquer preço – conforme diversas manifestações de Edmar Bacha e dos demais economistas do Real na época.

No dia que em se anunciou o primeiro balanço de pagamentos deficitário, houve comemoração da equipe econômica, palavras esfuziantes de Bacha na FIESP e na ENAEX (Encontro Nacional dos Exportadores), dizendo que o déficit não podia ser de apenas US$ 4 b i, mas deveria ser de US$ 8 bi. Para quê? Para abrir espaço para que a poupança externa pudesse entrar e ajudar a aumentar o investimento inter-no.

Ora, a natureza dos fundos que ingressavam no país era mais que conhecida. Eram fundos avaliados permanentemente, buscando o máximo de rentabilidade com li-quidez. O sistema de avaliação de risco, por parte das agências de rating, tornava esses capitais muito mais suscetíveis a situações de risco, passando a exigir mobili-dade absoluta. Como pretender que viessem financiar a infra-estrutura, o desen-volvimento, ou que se tornassem os “batedores” que antecediam o investimento de longo prazo?

No plano político, a apreciação do câmbio trazia vantagens adicionais. Primeiro, passava a sensação de riqueza provisória aos consumidores, facilitando as eleições no final do ano. Segundo, justificava as taxas de juros elevadas, para conter a in-flação de demanda.

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Mas não bastava. Era evidente que, ao permitir o livre fluxo de capitais com o dife-rencial de juros existente, se criaria uma valorização do real que tornaria o plano insustentável a médio prazo.

O caminho racional seria mudar o rumo da remonetização, impedir a entrada do capital especulativo, o capital gafanhoto. Mas significaria interromper a indústria da arbitragem, o maior negócio lícito da história do país.

Durante todo o segundo semestre de 1994, os economistas do Real se empenha-ram em ampliar desmedidamente as importações, supondo que com déficits comer-ciais – isto é, com mais dólares saindo do que entrando pela porta da balança co-mercial – se manteria o espaço para o capital especulativo. É difícil entender tanto empenho em gerar déficits comerciais, a ponto de se comemorar o primeiro deles, se não se incluir nessas análises o gigantesco cabo de esquadra que ocorria na BMF, em torno dos “comprados” e “vendidos”.

A irreversibilidade do modelo

Todos os atos dos condutores da política econômica iam na direção de assegurar a irreversibilidade das taxas de câmbio. No dia 31 de dezembro, último dia antes da mudança de governo, foram feitos vários leilões de títulos públicos, com a coloca-ção Notas do Tesouro Nacional de longo prazo com correção cambial. As de prazo de três meses pagaram 15,20% ao ano mais correção cambial. As de seis meses saíram com taxa de rentabilidade de 16,09% ao ano.

Naquela mesma semana, o BC anunciou venda de dólar no mercado flutuante, quando a cotação aproximava-se de R$ 0,860 (Folha). Por aqueles dias, a crise do México havia provocado um prejuízo de R$ 125 milhões somente com as baixas dos dias 21 e 22 de dezembro.

Em dezembro, uma leva de pequenos bancos havia quebrado por ter apostado na ponta errada, da desvalorização do real.

Em dezembro, Pérsio Arida – que nunca abriu mão do rigor técnico até sair do go-verno -- e José Serra tentavam convencer o presidente eleito Fernando Henrique Cardoso a mudar o câmbio. Lara Rezende, mais uma vez, seria o grande obstáculo. Serra alertou-o para o risco de um déficit comercial elevado. E ele: “Mas as moder-nas teorias sustentam que o que importa é analisar as contas correntes como um todo”. Serra não entendeu nada. Teorias do começo do século já diziam isso. Qual a razão de tamanha superficialidade na análise?

Apenas no final do primeiro governo FHC, quando já havia vendido sua posição no Matrix, é que André mudou sua posição. Junto com o ex-sócio Luiz Carlos Mendon-ça de Barros poderiam ter se constituído a grande dupla a mudar a política cambial, não fosse o episódio do grampo no BNDES.

Apoiado pelo futuro Ministro do Planejamento José Serra, Arida defendia uma cor-reção ampla, Gustavo uma correção modesta. Uma correção ampla resolveria o nó das contas externas, mas penalizaria o capital especulativo. E todas as decisões de Gustavo passavam por um constrangimento: não poderiam prejudicar o capital fi-nanceiro. Com esse obstáculo, os grandes problemas criados na partida do Real e-ram tratados com gambiarras, que entortavam cada vez mais o que torto estava. Recriava-se a saga de Rui Barbosa, tomando medidas casuísticas para corrigir os problemas criados pelo seu protegido, Conselheiro Mayrink.

No final do ano, a crise do México impediu qualquer correção. Em abril de 1995, tentou-se uma segunda vez corrigir o câmbio. Declarações desencontradas de Gus-tavo Franco, diretor do BC, provocaram uma corrida que apavorou o mercado, pro-vocou a evasão de US$ 8 bilhões e praticamente imobilizou o governo FHC.

A partir dali, o quadro se tornou irreversível. Arida saiu do governo, considerando que já tinha dado sua cota de sacrifício para o país e resolveu cuidar da vida. Gus-tavo permaneceu com sua bandeira de sustentação do câmbio a qualquer preço.

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Em lugar de uma correção radical no câmbio, decidiu por uma banda cambial que permitisse ao dólar desvalorizar a 8% ao ano. Imediatamente a taxa de arbitragem da economia subiu 8% ao ano.

Mantinha-se a mesma lógica financeira de beneficiar os detentores de dólares. O correto seria a correção de uma só vez. Haveria prejuízo para os “comprados”, mas, corrigido o desequilíbrio, as exportações recuperariam o fôlego, a volatilidade do câmbio se reduziria expressivamente e, superado o impacto inicial sobre os pre-ços, as taxas de juros poderiam se aproximar dos patamares internacionais abrindo espaço para a retomada do crescimento.

Em vez disso, a decisão de Gustavo terminou vencedora: criar uma banda cambial de 8% ao ano. A arbitragem se dava entre o custo da captação no exterior (taxa básica dos EUA mais risco Brasil mais alguns pontos para prevenir volatilidade cambial). Com a introdução da banda, imediatamente a taxa de arbitragem passou a ser a soma da taxa básica americana, mais risco Brasil, mais 8% ao ano da banda cambial. Para manter dólares no país, a taxa básica do BC deveria ser no mínimo muito superior ao novo teto.

Nunca se ganhou tanto dinheiro fácil quanto dali para diante. Nos anos seguintes, não havia mais política monetária e cambial autônomas. Todos os passos eram mo-nitorados pelas agências de risco, pelo receio do movimento manada dos capitais especulativos. Qualquer declaração de autoridades contra o modelo provocava mo-vimentos de saída de capitais, declarações terroristas de economistas e operadores, obrigando o recalcitrante a recuar.

A cada dia que passava, mais piorava a situação das contas externas, da dívida pú-blica. Mas o modelo ia ganhando vida através do desenvolvimento de uma retórica de criação de expectativas sucessivas.

O abandono dos estudos iniciais

Política econômica não é apenas teoria. Há uma infinidade de caminhos a serem percorridos, de alternativas a serem escolhidas, como se demonstrou no próprio processo prévio de discussão do Real. O chamado interesse nacional, por vezes, por ser apenas a expressão dos interesses de alguns grupos. Mas há posições que não comportam dúvidas.

Voltemos às preocupações iniciais, para uma avaliação das conseqüências reais das medidas adotadas:

Excesso de liquidez: Quando começa o Plano, aprecia-se o real e deixa-se a conta capital completamente aberta, com taxas de entrada insuficientes para conter a en-xurrada de dólares a partir de setembro de 1994. Os dólares entram aos borbotões.

Sobrevalorização cambial: Começa o Real com Gustavo tomando solitariamente a decisão de jogar o dólar para 93 centavos de real.

Controle de capitais: Deixaram-se entrar dólares sem limites pela conta capital. Ainda no período de Rubens Ricupero como Ministro da Fazenda, as discussões a-tingiram um nonsense inédito. Para evitar a apreciação do real, os economistas di-ziam que havia a necessidade de se reduzir a entrada de dólares. Mas julgavam que as restrições à entrada de dólares afetariam a credibilidade externa do plano. Se o objetivo era o de estimular os déficits em conta corrente, para reduzir a en-trada de dólares, teria que se deixar aberta a conta de capital para a entrada de investimento externo capaz de financiar o déficit (Maria Clara, 260). Era de um nonsense absoluto. Liquidava-se com o que consideravam excesso de dólares pro-vocado pelos superávits comerciais, e permitia-se uma tempestade de dólares tra-zidos pela conta capital.

Seria porque, com isso, entraria a poupança externa capaz de complementar a poupança interna e financiar o desenvolvimento, como dizia Bacha? Seria possível a

Luis Nassif� 27/8/06 22:27Comment: Levantar dados na BMF sobre taxas de juros e câmbio nessa ocasião

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um economista do seu nível não saber do efeito-substituição da entrada de dólares, do impacto sobre a dívida pública, do fato de que não complementaria poupança interna, mas simplesmente a substituiria, como aliás devidamente diagnosticado nos trabalhos prévios sobre o nível das reservas cambiais? É evidente que não. No entanto, apenas dez anos depois, quando os jornais o procuraram para um balanço do Real, Bacha reconheceu que, daqui para frente, se teria que encontrar um meio de atrair capitais externos que fossem para investimento, porque aqueles do início do Real não cumpriram essa função.

Custo das reservas cambiais – Quando começou o plano, as reservas cambiais chegavam a US$ 38 bilhões; a dívida mobiliária federal em poder do público em US$ 27 bilhões. Ou seja, mesmo depois de constatar de maneira clara a objetiva que o excesso de dólares no país tinha um custo fiscal, utilizava-se o álibi da dívida interna para justificar a captação de poupança externa (cuja entrada acarretava aumento da dívida interna). Em outros documentos, alertavam para o custo fiscal de atrair dólares. Era uma torvelinho tão disparatado que passava a impressão de que era intencional, para não se deixar antever os próximos passos.

Dívida Pública – Esquece-se completamente a dívida pública, de tal maneira que meses depois o efeito da monetização sobre ela foi quase nulo. Todo o ganho da redução da dívida interna, que poderia ter sido do país como um todo, se converte em transferência de renda para os detentores da liquidez. Maria Clara descrevia as-sim o pensamento dos economistas do Real:

“Quando o déficit do governo cresce, é sinal de que o setor público gasta mais do que arrecada e, deste modo, está gerando despoupança. O governo preci-sa ir buscar recursos em algum lugar, par financiar o déficit, internamente ou externamente. Foi buscar a poupança externa”.

Não tinha lógica. Se a entrada de dólares aumentava a liquidez da economia, se o BC era obrigado a emitir reais para comprar os dólares, e, depois, títulos para en-xugar o excesso de reais, a entrada de dólares aumentava a dívida pública, em vez de diminuí-la. Era o mesmo quadro denunciado por Franco sobre a política cambial pré-Plano Real: a um aumento das reservas cambiais correspondia um aumento da dívida mobiliária em poder do público para enxugar o excesso de reais em circula-ção.

Eram todos muitos preparados e havia muitas discussões e pontos de vista para que fossem atropelados pelo óbvio. Uma das lições que se aprende, em relação a políticas econômicas, é que não existe a burrice reiterada. Sempre haverá uma explicação para o erro óbvio ou reiterado, em geral ligada a interesses que não podem ser explicitados.

A nova classe

Os economistas do Real se dividiam em relação à visão e instrumentalização do plano. Pérsio Arida era eminentemente técnico, via o plano como uma revanche do Cruzado e se preocupava com sua consistência. André Lara Rezende via o plano como uma forma de ascensão social. Depois de enriquecer com o real, realizou so-nhos adolescentes de comprar carros de corrida e cavalos de corrida – que trans-portou de avião para Londres, quando resolveu passar uma temporada por lá.

Gustavo Franco era o ideólogo, sem o domínio técnico de Pérsio e André, ainda sem prática suficiente de mercado – que ele passaria a dominar em pouco tempo -- mas com um conhecimento aprofundado de história econômica do Brasil, e com a pre-tensão de moldar o país. Todos seus passos tinham como objetivo um novo mode-lo, de sepultar, varrer do mapa a estrutura industrial moldada no período de prote-cionismo e impor o primado do capital financeiro, com o voluntarismo que caracte-riza todo jovem acadêmico quando no poder.

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Os demais exerciam papéis secundários. Bacha, com sua senhoridade, mediava os embates. Winston Fristch deveria desempenhar funções operacionais, mas acabou se enroscando na falta de prática com a gestão diária. De Pedro Malan, não há re-gistro sobre opiniões que tenha manifestado ao longo dos meses em que se foram definidos os princípios do novo plano.

Gustavo e André tinham plena consciência do poder fantástico da remonetização. Em sua monografia sobre o Encilhamento, Gustavo enfatizara as falas de Campos Salles nas reuniões ministeriais de Deodoro, mostrando como a concessão do poder de emissão a alguns bancos – ainda no final do Império – conferiu a seus proprietá-rios, além de riqueza, enorme poder político. Mostrava claramente como Rui Barbo-sa tornou-se crítico exacerbado da política monetária anterior e, depois que assu-miu o Ministério, desmontou a anterior e montou uma nova, beneficiando grupos aliados. Todo esse know how seria utilizado na montagem do Real.

De Rui, Gustavo aprendeu técnicas de especialista, de apontar em uma direção en-quanto caminhava para outra. Da mesma maneira que Rui prometia utilizar a mo-netização para liquidar com a dívida interna, enquanto a utilizava para transferir riqueza e poder para os aliados. Com o pai, Guilherme Arinos, aprendeu manhas e artimanhas do poder. Em toda discussão interna, não ganhava quem tivesse razão, mas quem organizasse suas propostas na forma exigida, decreto, portaria ou proje-to de lei.

No seu período pós-Real, André ganhou experiência com as sutilezas do mercado financeiro. Por sua vez, Gustavo tinha como guru Natan Blanche, ex-garimpeiro, que se tornou sócio do Banco Cindam e presidente da ANORO (Associação Nacional do Ouro). Natan era próximo a José Sarney. Ainda no seu governo se aproximou da jovem tecnocracia que ascendia, como Gustavo Loyolla, Emílio Garófalo, Maílson da Nóbrega, Luiz Antonio e outros. Seu estilo paternal, amigo leal mesmo, acabou conquistando-os a todos, tornando-o uma liderança expressiva por conta das suas relações pessoais.

Fundamentalmente intuitivo, Natan foi das primeiras pessoas do mercado a perce-ber a importância da definição de uma ideologia de mercado que ajudasse em seus planos de abertura cambial. Em sua gestão na ANORO, contratou Mário Henrique Simonsen como consultor e espécie de porta-voz da Associação. E participou dire-tamente de todas as discussões que levariam à liberalização cambial brasileira, do período Sarney até o início do Real. Mais tarde montaria a consultoria Tendências, que teria enorme influência na formação do senso comum da imprensa financeira, no período pós-Real.

Tornou-se “fonte” de jornalistas para temas como déficit público e outras matérias que estavam longe da sua formação. Mas tinha uma enorme intuição de jogador para o mercado cambial e de ouro. Era capaz de indicar a tendência do mercado em cima das explicações mais estapafúrdias. Mas quase sempre acertava.

D.Sebastião e a reunião de Carajás

Assim como no “Encilhamento”, começava-se a reforma monetária com a promessa de ganho na redução da dívida pública. Acenava-se com a redução do superávit comercial, no Banco Central vendendo dólares no mercado e, com os reais recolhi-dos, recomprando títulos da dívida mobiliária, “trazendo para os cofres públicos e para a sociedade os benefícios do processo de remonetização” (Maria Clara, 257). Parecia uma declaração de Rui Barbosa para legitimar a sua reforma monetária.

O resultado final foi que o Real não conseguiu alongar o prazo de vencimentos da dívida pública, não logrou reduzi-la. Pelo contrário, ao manter o sistema de “rola-gem automática” do overnight, o BC permitiu que todo dinheiro que saísse retor-nasse ao over.

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“A frustração de Bacha é que nunca houve governo disposto a encarar a ques-tão de frente”, segundo Maria Clara.

Minha frustração (de Rui Barbosa)

Um governo que trocara a moeda, desindexara a economia, apreciara o Real até o limite da irresponsabilidade, aumentara as taxas de juros em níveis recordes, inter-viera no Banespa –banco do estado de seu maior aliado político—não tinha forças para acabar com a roleta da dívida pública. E Bacha ficou muito frustrado...

Ambos, ele e Rui, saíram e se tornaram sócios de setores beneficiados pelo modelo

A famosa reunião de Carajás, em junho de 1986, foi sem nunca ter sido. Poucos sabem do que se tratou na reunião. Mas firmou-se no imaginário popular a crença de que a reunião poderia ter salvado o Cruzado.

Depois dela, criou-se uma multidão de neo-sebastianistas --basicamente lotados na imprensa-- acreditando piamente que a salvação do país estaria nas mãos de um economista yuppie, descendo diretamente de Carajás, em seu Porsche de corrida, para preparar a revanche do Cruzado.

A grande maldição dos anos 80 não foi Sarney, nem a classe política Foi a superfi-cialidade dos pacotes econômicos e a mística que envolveu os pacoteiros.

Era enorme bobagem enquadrar todos os planos de estabilização na categoria de neoliberais --como pretendia parte da esquerda. Ou supor que tudo o que dói, cura --como acreditam alguns basbaques da mídia, que fariam melhor em entregar suas operações de safena nas mãos de um estripador de frangos.

Há planos que, mesmo não sendo de estabilização, fazem países avançar. Há pla-nos de estabilização que consolidam avanços. E planos que perpetuam a desorgani-zação na economia. Todos fazem doer.

Com todas as imprudências cometidas na área cambial, o segundo governo Vargas doeu, mas ajudou a lançar as obras de infra-estrutura que prepararam o grande salto de industrialização dos anos 50. Mesmo com sua crônica irresponsabilidade orçamentária, o governo JK mudou a agenda do país. E doeu depois.

Com todo componente autoritário, o período 64-66 permitiu à dupla Campos-Bulhões fazer doer, mas também lançar o mais bem sucedido programa de estabili-zação da história. Apesar do sacrifício inicial imposto aos mais pobres, as reformas chilenas ajudaram a viabilizar um país.

Em todos esses casos, havia como pano de fundo um projeto claro de país, e a busca de saídas para pontos que realmente contam na construção da economia: a criação de mecanismos de financiamento, a consolidação do mercado de capitais, a reorganização da política de comércio exterior, a viabilização de investimentos em infra-estrutura, a racionalização dos tributos etc.

Mas o quê a tecnologia dos pacotes e seus profetas agregaram ao país e ao estudo da economia em quinze anos de experimentalismo? Nada.

Quando se preparou a troca de moedas do real, todas as avaliações indicavam que tinha-se o melhor conjunto de circunstâncias favoráveis na economia para um pla-no de estabilização.

1) Maior nível de reservas cambiais da história --possível apenas depois que o eco-nomista Ibrahim Éris reformulou a política cambial brasileira.

2) Uma economia aberta e superavitária --a partir da reestruturação do comércio exterior, e de um programa de abertura planejada da economia.

3) Uma economia desregulamentada --depois do fim da reserva de mercados e de um sem-número de restrições à livre competição.

Luis Nassif� 27/8/06 22:27Comment: Levantar declaração de Rui

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4) Empresas brasileiras reestruturadas e ingressando firmemente em projetos de modernização --processo iniciado com o Plano Brasileiro de Qualidade e Produtivi-dade (PBQP) e com as Câmaras Setoriais.

5) Programas de investimento em quase todos os setores --assegurados pela ma-nutenção das regras do jogo por quatro anos.

6) Relativo consenso sobre reformas fundamentais.

7) Equacionamento da dívida interna, ainda que à custa da violência do bloqueio dos cruzados.

Com toda essa enorme agenda, em vinte anos tudo o que os gurus do Real haviam logrado produzir foram estudos recorrentes sobre troca de moedas --a parte mais espetaculosa e superficial de um plano.

Com apenas 18 meses com a economia de volta às suas mãos, e apenas com sua capacidade de brincar de fliperama com as políticas monetária e cambial, tinha-se:

1) O país em nova crise cambial;

2) a volta de alíquotas super-protecionistas em muitos setores;

3) crescimento exponencial da dívida interna, comprometendo o futuro ajuste fis-cal;

4) e uma multidão de empreendedores arrependidos até a medula dos ossos por terem apostado no país e programado investimentos.

Todo o ouro de Carajás não conseguiria pagar o que custou ao país a reunião de 1986.

Lágrimas depois

O que ocorreu em maio de 1995 era perfeitamente previsível para quem tivesse olhos para ver, para os que se acostumaram a analisar a economia como um pro-cesso dinâmico. Já estavam no ar as seguintes conseqüências óbvias, mas que só mostrariam sua face perversa nos anos seguintes (Nassif, 29/05/95)

1) Empresas pequenas e médias, menos capitalizadas, rodariam, jogando no mer-cado um exército de desempregados --donos de pequenos negócios e funcionários.

2) Grandes empresas reduziriam sua produção, aumentando o número de desem-pregados. Mas preservariam lucros porque, sendo líquidas, compensariam seu pre-juízo operacional com aplicações financeiras.

3) Pelo simples exercício de trazer dinheiro lá de fora e aplicar em inexplicáveis 4,5% ao mês, os bancos de negócios repetiriam os extraordinários lucros do ano anterior.

4) Todo o lucro do setor capitalizado da economia seria bancado pelo Estado, à cus-ta do aumento exponencial da dívida interna. Tudo o que se arrecadasse com a venda de estatais não seria suficiente para bancar o mero crescimento da dívida interna, em função desses juros.

5) Com a queda da atividade econômica, em pouco tempo as receitas tributárias iriam despencar.

Enquanto isto começava a ser criado no país um imenso mercado paralelo, juntan-do poupança dolarizada, caixa dois, caixinha política, dinheiro do narcotráfico, tudo sob o respaldo da liberalização cambial sem controles imposta pelo Banco Central, e do discurso que começou a tomar conta do mercado financeiro e, a partir dele, pelo jornalismo econômico em geral.

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AAAsss fffeeerrrrrraaammmeeennntttaaasss fffiiinnnaaannnccceeeiiirrraaasss dddooosss aaannnooosss 999000

A teoria econômica era apenas a ferramenta de retórica para permitir a formação do ambiente de negócios que se queria. O que importava era o mundo real, onde se materializavam as intenções e objetivos das medidas econômicas.

Com a liberalização cambial, ocorreu um notável fluxo de investimentos brasileiros para o exterior. Em seu período de presidente do BC, Gustavo Franco procurou, de todas as maneiras, estimular esse livre fluxo financeiro, tanto através de investi-mento registrado como pelas CC-5, cuja flexibilização provocou a evasão de US$ 139 bilhões entre 1996 e 1999, sem comprovação da origem no país (dados do Mi-nistério Público do Paraná).

Até 31 de dezembro de 2001, outros US$ 69,6 bilhões de dólares das reservas cambiais brasileiras foram expatriadas legalmente, de acordo com o primeiro le-vantamento efetuado pelo Banco Central, em 2001, valor quase três vezes superior ao superávit comercial de 2003.

Qual a utilidade para o país? Em 2003 o Brasil assinou um acordo oneroso com o FMI apenas para um reforço de US$ 14 bilhões nas reservas cambiais.

Um segundo levantamento do BC, fechado em 31 de dezembro de 2002, mostra-vam para US$ 72,3 bilhões de ativos totais no exterior, US$ 54,4 bilhões (75,4% do total) eram representados por investimentos diretos, o item mais nebuloso das remessas.

A decomposição por destino do levantamento de 2001, preparada pelo consultor André Araújo, era impressionante.

• Do total de US$69,6 bilhões em 31/12/2003, US$18,9 bilhões estavam em investimentos financeiros (bancos, fundos mútuos e títulos negociáveis) e US$50,7 bilhões em investimentos diretos em pessoas jurídicas.

• Nas empresas receptoras onde o investidor brasileiro tem pelo menos 10% do capital estavam US$ 43,6 bilhões.

• Desse total, nada menos que US$34 bilhões foram para paraísos fiscais, US$ 14,785 bilhões para Cayman, US$ 8,148 bilhões para Ilhas Virgens Britâni-cas, US$ 5,954 bilhões para Bahamas, US$ 1,048 bilhões para Ilha da Ma-deira e US$ 990 milhões para Bermudas.

• Dos investimentos para países que não são paraísos fiscais, foram US$ 1,657 bilhões para a Espanha, US$ 1,625 bilhões para a Argentina, US$ 1,401 bilhões para os Estados Unidos e US$697 milhões para Portugal, US$4,215 bilhões para outros países.

• Total desse sub-grupo de empresas, que tudo indica serem controladas pe-lo remetente, US$43,641 bilhões, isto é, foram remessas do investidor para si própria disfarçado em empresas off-shore, que todos sabemos serem sim-ples ficções legais.

Mas se se considerar, já para 2002, os cômputos consolidados da Secretaria da Re-ceita Federal, nada menos do que US$44,9 bilhões dos investimentos brasileiros no exterior estão em paraísos fiscais.

Pelos dados levantados, se poderia considerar que as empresas brasileiras eram, até 2001, grandes investidores internacionais, com empresas multinacionais atuan-do em todo o mundo. Afinal, lembrava André, nenhum país estrangeiro tinha indivi-dualmente US$ 69,6 bilhões investidos no Brasil. É um valor formidável, digno da Alemanha ou da Inglaterra para toda a América Latina.

Mas quais são os investimentos brasileiros no exterior? Com algumas exceções de grandes empresas da economia produtiva com operações no exterior, como Voto-rantim, Ambev e Gerdau, os investimentos brasileiros no exterior são basicamente

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operações financeiras, arquiteturas para beneficio fiscal e para dar roupagem de capital estrangeiro a capital nacional. Grande parte desse investimento volta ao Brasil como empréstimo de um credor estrangeiro a empresas nacionais, distorcen-do notavelmente as estatísticas do setor externo, contra os interesses nacionais.

Nos EUA, esse tipo de manobra seria imediatamente coibida. O IRS (Internal Re-venue Service, a Receita local) analisa a lógica contábil-financeira de cada remes-sa, proíbe remessas com sentido exclusivamente fiscal, exige declaração juramen-tada do investidor sobre a real destinação do investimento (Formulário IRS Form W9-Request forTaxpayer Identification and Certification). Se esse formulário não for preenchido, haverá taxação na fonte dos resultados produzidos por esse inves-timento, na ordem de 31%.

Mas o sentido geral do IRS é de não permitir manobras para fins de disfarce. E esse foi o eixo principal dos investimentos brasileiros no exterior, estimulado principal-mente na gestão Gustavo Franco.

Nenhum país, mesmo o que imprime a moeda reserva do mundo, se descuida da exportação de capital. Se não há justificativa econômica para uma operação de ex-portação de capitais, a intenção é de mera lavagem de dinheiro, algo que se tornou rotineiro no país pós-Real.

A ferramenta jurídica que permitiu esse jogo foram os fundos “offshore”, criados em paraísos fiscais para acobertar ou operações especializadas ou operações de lavagem de dinheiro.

O dinheiro de seus controladores passou a ser blindado juridicamente através da criação de duas figuras: o gestor ("limited partner") e o investidor ("general part-ner").

Muitas vezes são colocados testas-de-ferro nas "limited partners", assumindo as responsabilidades civis e criminais, deixando as empresas livres do controle da SEC e de outros organismos de fiscalização. Foi dessa maneira que grandes instituições como o Citibank conseguiram colocar dinheiro em fundos de investimento em “pri-vate equity” e entregar a gestão a gestores de fachada, e participaram de opera-ções controversas em muitos países emergentes.

A salvo das estruturas de fiscalização dos Estados nacionais, quebraram-se as bar-reiras entre as atividades legais e o crime organizado. Foram criados fundos atrás de retornos expressivos, maiores do que os das atividades convencionais, que pas-saram a atuar por meio de empresas de fachada, alguns servindo de biombo para o dinheiro do crime organizado, outros para golpes contra as próprias corporações.

Donos da liquidez internacional, passaram a conviver no mesmo ambiente os sheiks árabes ainda sentados em petrodólares, a dinastia Bush, as Enron da vida, os em-presários italianos tipo Sergio Cragnotti, os grandes bancos internacionais, dinheiro do narcotráfico, dinheiro da corrupção política, mercado negro da venda de jogado-res, golpes corporativos etc.

O Brasil passou a ocupar papel relevante como arena desse tipo de negócio. A pri-vatização sem um ambiente regulado, a facilidade das contas CC5 e CC4, a derra-ma fiscal e o florescimento de atividades clandestinas, culminando com o absurdo da autorização para o funcionamento dos bingos e videopôquer, tudo isso criou o campo que hoje explode na atual crise política que fere o centro do poder institu-cional brasileiro, com o episódio Waldomiro Diniz.

No episódio da CPI dos Precatórios, apesar do boicote dos parlamentares, deu para desvendar parte do intenso jogo de transferência de fundos comandado por dolei-ros.

Na época, havia intenso movimento de contrabandistas em Foz do Iguaçu, movi-mento provocado pela apreciação do câmbio. Sob o argumento de que esse movi-mento poderia influenciar o dólar paralelo, Gustavo Franco autorizou algumas insti-

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tuições a receberem depósitos em dinheiro vivo e remeter para o exterior, entre elas o Banestado e a corretora Araucária.

Montou-se, então, um duto de tamanho incalculável para transferência de recursos. A corretora-mãe dos doleiros, na época, era a Split, que operava da seguinte ma-neira, conforme descrevi em coluna da época:

1) Por seu ''laranja'', a IBF, a Split mandava reais para a conta de Carmen Alonso Javiel, na agência do Banco do Brasil em Foz do Iguaçu.

Dona Carmen era uma ''laranja'', pessoa que ganhava de US$ 600 a US$ 1.000 mensais para emprestar seu nome, CIC e RG para a Split. É de honrada família de doleiros paraguaios. Entre os cinco irmãos, há dois ou três que passaram do nível de ''laranjas'' para o de doleiros, como Benício Alonso de Godoi.

2) D. Carmen retirava os reais e transferia para o Paraguai. Era uma operação complexa, devido à quantidade de dinheiro envolvido. Segundo a CPI, pelas contas de D. Carmen passaram R$ 123 milhões, transferidos da agência paulista do Beron (o Banco do Estado de Rondônia). Provavelmente, D. Carmen e seus irmãos aluga-vam carros-fortes para levar a carga até o outro lado.

3) No Paraguai, o dinheiro era depositado em um banco correspondente -- isto é, autorizado a vender reais para os bancos brasileiros credenciados em Foz do Igua-çu.

4) O banco paraguaio depositava os reais, pagava uma parte em dinheiro vivo e a outra na conta da Split no exterior.

5) Agora, entrava-se na peça que faltava: a conta Rolex.

Até meados dos anos 90, quase todos os doleiros da América Latina operavam com dois pequenos bancos nos EUA: o Piano Banking (controlado pela Casa Piano, do Rio de Janeiro) e o M.T.B. Banking. O Piano quebrou. Sobrou o M.T.B.

Para operar o dinheiro, o M.T.B. precisava de uma conta em um banco que tenha a compensação. É o mesmo procedimento das DTVMs (distribuidoras) brasileiras. Au-torizadas a operar pelo Banco Central, elas abrem contas no Banco do Brasil para fazer seu movimento bancário.

O M.T.B. abriu sua conta no Chemical Bank de Nova York. E, depois, uma série de subcontas, cada qual de um doleiro da América Latina. A subconta da Split é a Ro-lex.

Tendo a conta lá, a Split vendia e comprava seus dólares por meio de procedimen-tos bancários simples. Quando comprava dólares, o vendedor depositava o dinheiro na sua conta. Para vender os dólares, transferia para a conta do comprador, atra-vés de três procedimentos usuais: ou por fax, ou por cheque, ou telefonando para o Chemical.

O Chemical registrava os três procedimentos. Cheques e fax eram arquivados; or-dens verbais gravadas, para que ficassem documentadas, e exigia-se que o cliente dissesse a senha.

Quando denunciei essa operação, o BC mudou o procedimento. Proibiu o depósito em dinheiro vivo, mas permitiu a manutenção dos bancos correspondentes. Basta-va, então, qualquer agência bancária enviar recursos para a conta dos correspon-dentes, para se retomar o mesmo curso.

Captados os reais por uma conta CC-5, geralmente em nome de uma “off-shore”, por sua vez representada legalmente no País por um “laranja”, compravam-se com os reais na conta os dólares físicos ou cabo. A vantagem do esquema de fronteira é que tudo se fazia sob a capa do comércio das cidades fronteiriças, cujo movimen-to legitimo é misturado ao financeiro puro vindo do Brasil.

As operações de remessa eram geralmente giradas via cabo através de casas espe-cializadas de Nova York. A maior delas era o MTB Bank, anteriormente a casa de

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câmbio Manfra, Tordella & Brooks, uma organização especializada em operar com moedas e corretoras do Cone Sul da América do Sul.

Quando se falavam em contas no Chase como receptora de transferências, na rea-lidade era simples depositário. Essas contas eram manejadas pelo MTB da seguinte forma: a mesa do Brasil ou do Paraguai tinha uma off-shore própria que mantinha a conta-mãe no MTB. Sob esse guarda chuva abriam-se sub-contas para os doleiros varejistas clientes da mesa grande.

Por exemplo, sob a conta Paradise Trade and Finance Co. que representava uma grande mesa de Assunção, existia a sub-conta Siboney, de um doleiro de São Pau-lo que operava com a mesa de Assunção. Com isso as entradas e saídas eram dire-cionada para a conta e a sub-conta com precisão. O dono da conta conhecia o titu-lar da sub-conta e respondia por ele. Para usar a conta-mãe, o titular da sub-conta se comprometia a um certo mínimo de negócios com o dono da conta.

As quebras nesse mercado ocorrem pelo mecanismo da confiança absoluta que o preside. As remessas são vias transferência de conta a conta e todos os dias as mesas grandes e pequenas correm riscos se a outra ponta não honrar os compro-missos, o que é raro, mas ocorre de quando em quando.

Já as grandes quebras são por outro motivo. Como existe um float considerável en-tre a ordem de transferência e a liquidação efetiva, o grande operador tem sempre à mão grandes saldos. A tentação de especular com esses recursos de terceiros le-vava essas casas à operações alavancadas de alto risco no mercado de títulos e-mergentes ou de câmbio futuro e as vezes eles quebram a cara e vão a lona. Foi o que aconteceu com outras grandes casas, ainda maiores do que o MTB, como Deak, Pereira & Co. e Piano Internacional Financial Corp., esta com raízes na tradicional Casa Piano, de Buenos Aires, que nas décadas de 50 a 70 foi a maior operadora do Cone Sul. A quebra da Piano fez investidores brasileiros perderem mais de 100 mi-lhões de dólares.

Esse era o circuito de varejo. O circuito master era outro. Uma operação de re-compra de bônus de emissão privada com desconto de 60%, comum no mercado, rendia uma fuga de US$ 30 milhões para uma emissão de US$ 50 milhões. Fazia-se isso sob o olhar complacente do BC que sabia perfeitamente que a emissão de US$ 50 milhões podia ser liquidada por US$ 20 milhões, já que eram dados de mercado. Mesmo assim, permitia remessa no vencimento do integral dos US$ 50 milhões, bem como dos respectivos juros, legalizando a fuga do deságio, que nem precisava ser lavado.

Confira-se, então, que a livre circulação de dólares, mesmo através de mecanismos clandestinos, tornou-se uma opção ideológica, que provocou a desmobilização de todo o sistema de fiscalização do Banco Central.

Os integrantes desse mercado não necessitavam de doleiros, de subterfúgios nem do mercado marginal. Podiam utilizar um JP Morgan ou um Republic para montar a estrutura e operar a movimentação de fundos. Não precisava do Cambio Guarany, arriscado e oneroso.

O circuito de doleiros -- que é o usava as CC-5 tipo Banestado --, fazia de tudo com todos. Existem remessas pequenas, médias e grandes. Existe dinheiro não legal, mas legitimo e também dinheiro de crimes. É claro que o dinheiro da política e da corrupção utiliza esse circuito, por ser um canal onde não se pedem explicações de origem.

É também um circuito só de transferência, não de administração de recursos.

Uma vez fora do País, a moeda conversível é aplicada em outros bancos e países. Os menos sofisticados usam os bancos com vínculos com o Brasil, como o Delta, o Pine, o Safra National, o Espírito Santo, todos com grandes operações em Miami. Em Nova York o maior depositário de fundos brasileiros era o Republic National Bank of New York, controlado por um brasileiro, Edmond Safra e bem longe, em

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segundo lugar, o Commercial Bank of New York, do filho do banqueiro de São Paulo (hoje ex-banqueiro), Edmundo Safdié. Ambos foram vendidos e seguramente parte de seus depósitos migrou para outros bancos, principalmente para o Safra National Bank of New York, hoje com quase US$ 10 bilhões de depósitos e para o português Banco Espírito Santo, que tem uma grande operação em Miami.

Com o clima anti-terrorismo em todo o mundo, diminuiu consideravelmente o nível de segurança de dinheiro de origem não legal em todos os grandes países. Os a-cordos de cooperação fiscal e policial têm diminuído a proteção desses recursos. A grande industria de private banking, que administra a nível mundial US$ 3 trilhões de dinheiro provindo de fuga de capitais está em processo de grandes mudanças.

Os gestores de recursos e a privatização

Depois que o dinheiro chegava ao gestor, entrava-se na segunda parte do circuito: como obter rentabilidade elevada.

A sofisticação do mercado financeiro nos anos 80 permitia um estoque inesgotável de operações de engenharia financeira. Com toda sorte de ativos disponível, sendo colocados no circuito, ampliou-se o grande jogo da “arbitragem”, que consistia em jogar com diferenças de taxas de rentabilidade, com operações cruzadas, permitin-do “arbitrar” ganhos nos diferenciais de rentabilidade.

Ainda no governo Collor, percebeu-se que uma das maneiras de ganhar com a pri-vatização estava na definição das moedas a serem utilizadas. Permitiu-se o uso de papéis micados, como papéis da Siderbrás, Títulos da Dívida Agrária, entre outros. Grandes fortunas foram feitas na época, com as instituições que souberam anteci-padamente da decisão e adquiriram os papéis no fundo do poço.

Outra das ferramentas utilizadas na privatização foi uma forma torta de calcular o preço das estatais privatizadas, através do método de fluxo de caixa descontado.

Por ele, primeiro estimava-se quanto seria o fluxo de caixa da empresa durante de-terminado período – em geral dez anos. Depois, trazia-se a valor presente de acor-do com determinada taxa de desconto. Quanto maior a taxa de desconto, menor o valor a ser obtido.

Por exemplo:

Imagine um investimento que rende dividendos de R$ 1.000,00 ao ano.

Se a taxa de desconto for de 10% ao ano (ou seja, o quanto o investidor estima ganhar), o valor inicial da aplicação será de R$ 6.145,00. Ou seja, este é o valor que precisa ser investido, para se receber R$ 1.000,00 ao ano, com a taxa de re-torno de 10% ao ano durante dez anos.

Se a taxa de retorno aumentar para 15% (isto é, se o investidor insistir em receber 15% de rendimentos), o valor inicial da aplicação cairá para R$ 5.019,00

O cálculo da TIR em operações de aquisição é mais complexo, porque deve levar em conta também o valor de revenda do ativo no final do prazo. E se a presunção é de uma elevação gradativa dos resultados, também haverá uma valorização grada-tiva do valor de revenda.

Mesmo sem levar em conta o valor de revenda, o exemplo mostra como a manipu-lação da taxa de desconto era suficiente para reduzir o valor das empresas. Muitas vezes se consideravam fatores pontuais para desvalorizar os ativos, como ocorreu na privatização da Ultrafértil, ainda no governo Itamar, que se tomou como perma-nente um momento provisório de queda nos preços, por conta de uma super-oferta de produtos russos no mercado mundial.

Nas privatizações iniciais, utilizavam-se os seguintes estratagemas para reduzir o valor das empresas privatizadas:

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Manipulava-se a TIR. Na privatização da Ultrafértil, por exemplo, utilizou-se uma taxa de desconto que levava em conta o risco Brasil no exterior (país em morató-ria), mais um adicional relativo ao setor. Em geral, quanto maior a volatilidade do setor, maior a taxa de desconto. Não havia razão para utilizar taxas de desconto internacionais porque a empresa gerava cruzados, os participantes do leilão eram brasileiros utilizando para a compra capitais brasileiros.

No cálculo do fluxo de caixa, não se consideravam os ganhos que a empresa obte-ria com a mera reestruturação. O preço era fixado levando em conta a situação da empresa do momento, e não seu valor potencial, ou seja, o quanto poderia gerar sem as amarras do setor público.

Outra das ferramentas muito utilizadas na privatização brasileira foram os “projects finances”, operações estruturadas em que se adquiriam empresas com financia-mento, confiando que a rentabilidade do investimento permitisse bancar o paga-mento O BNDES financiava os compradores. Com o lucro dos negócios, eles paga-vam os financiamentos tomados. Era ótimo para os compradores, péssimo para as empresas, expostas a uma brutal política de distribuição de dividendos (em vez de reaplicação de lucros) para permitir aos controladores pagar pelos financiamentos tomados.

Mas o país perdeu anos por conta desses interesses. Quebrou-se a petroquímica em dezenas de empresas menores, que levaram anos para se consolidar novamente. Matou-se a possibilidade de uma siderúrgica nacional de dimensão global. Princi-palmente, obteve-se pela privatização muito menos do que se poderia ter obtido se o modelo fosse das empresas públicas com fundos sociais.

O pano de fundo do modelo era esse. O grande capital saía e entrava do país atra-vés dos esquemas de doleiros, voltava na forma de fundos, no qual os cotistas não eram identificados, e permitia aos gestores o controle de companhias vendidas a-través de modelagens financeiras que exigiam pouquíssimo capital.

Por baixo desse jogo de interesses pairava a vã teoria, como se fosse algo neutro, limpo, científico.

As instituições da globalização

Não bastava apenas a teoria econômica adequada. A venda de uma ideologia é pro-cesso mais sofisticado, que não prescinde de toda uma organização para a dissemi-nação de conceitos. Obviamente, as bolsas de estudo em universidades americanas mais fechadas com esse pensamento financeiro foram um instrumento relevante de formação de consensos.

Mas o grande agente de disseminação dos conceitos foram os grandes bancos de investimento, através de seus departamentos econômicos.

No Brasil, apenas em meados dos anos 90 as instituições financeiras passaram a montar departamentos econômicos e a distribuir avaliações econômico-políticas vi-sando, de um lado, informar seus clientes mas, acima de tudo, terem influência so-bre os rumos da política econômica.

Historicamente, foram dois bancos americanos – o Citibank e o Chase--, ambos fi-lhos do mesmo tronco dos Rockefeller, os primeiros a perceber a importância de definir linhas ideológicas de apoio ao mercado, a exemplo dos Rotschild no século 10.

No pós-guerra, o Citibank já contratara os melhores economistas ortodoxos dos EUA e, através de sua carta econômica, tornara-se um arauto do anti-keynesianismo. Os Boletins de agosto de 1948, outubro de 1949 e dezembro de 1949 viraram peças antológicas de ataques ao keynesianismo, muito antes do apa-recimento de Milton Friedmann (André, 562). A velha luta entre o internacionalismo

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financeiro e as estratégias nacionais começou no dia seguinte ao tratado de Bretton Woods.

No começo dos anos 60, o diretor do Boletim Econômico do Citi era Sam Nakaga-ma, aluno de Friedman em Chicago. Depois, saiu do Citi e se ligou à Argus Resear-ch, consultoria econômica que promoveu a conferência de lançamento do moneta-rismo no Hotel Arizona Baltimore, em novembro de 1969 (André, 563).

O Boletim chegou a ter 300 mil exemplares. Nos anos 60, sob a presidência de Ge-orges Moore, quando ainda se chamava The First National City Bank of New York, foi o grande patrocinador de Friedman.

Seu departamento econômico tinha 80 economistas, dos quais 50 de primeira linha. Vieram dali os ensinamentos para os demais bancos de investimento, não apenas americanos, mas de todo o mundo.

Nas últimas décadas do século 20, o Citi passou a desempenhar a mesma influência política sobre os países devedores que os Rostchild.

Nos anos 80, foi o articulador do Comitê de Credores, que cuidou da dívida externa brasileira. Nos anos 90, tornou-se o principal padrinho do governo Carlos Menen, e do Plano de Conversibilidade de Domingo Cavallo. Sua influência foi grande na re-forma constitucional que permitiu o segundo mandato a Menen –o chamado “Pacto de Olivos”. Na época, o apoio que Menen recebeu do presidente do Citi John Reed foi tão explícito que mereceu uma censura pública do Diretor-Gerente do FMI Mi-chael Camdessus: “Eu nunca usaria os mesmos conceitos de Reed, se eu fosse um grande banqueiro internacional” (André, 564).

O Citi teve papel central não apenas nos empréstimos, mas em todo processo de privatização da Argentina, usando como moedas créditos desvalorizados, da mesma forma que as “moedas podres” da privatização brasileira, através da CEI, uma hol-ding com valor de mercado de US$ 1,5 bilhão, tendo como testa-de-ferro o grupo Banco República, de Raul Moneta.

No Brasil, no final dos anos 80, o Citi já havia adquirido papéis da Telebrás – a hol-ding estatal do setor de telecomunicações – por menos de um dólar a ação. Seu parceiro nas aventuras brasileiras era o executivo Daniel Dantas que logo depois montaria o grupo Opportunity, com apoio total do Citibank, e se embrenharia na mais nebulosa aventura empresarial do Brasil moderno.

Seguindo o modelo Citi, os bancos tornavam-se os maiores empregadores de eco-nomistas da economia. Para integrar seus departamentos econômicos, havia a ne-cessidade do economista se especializar no seu estilo de análise e em sua visão de mundo. E fazia-se isso com fé cega e faca amolada, graças aos modelos de partici-pação em resultados, que faziam de cada economista não apenas um funcionários, mas um irmão de fé.

O circuito de influência começava em Nova York, com os departamentos econômi-cos desses grandes bancos americanos. Aqui, as novas idéias eram reproduzidas, primeiro, através das filiais dos bancos novaiorquinos, depois dos europeus. Final-mente, através dos bancos nacionais montando seus próprios departamentos eco-nômicos.

A partir dos departamentos econômicos, as novas idéias batiam no jornalismo fi-nanceiro, que passava a repetir os mesmos conceitos. Havia uma homogeneidade notável entre as coberturas financeiras da imprensa americana, brasileira, argenti-na e espanhola no período.

As Agências de Risco

Uma segunda instituição relevante foram as agências de risco, essas sim atuando como “batedoras” no processo de globalização financeira, como agentes coordena-doras de expectativas e do chamado “efeito-manada”.

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A exemplo da financeirização do fim do século 19 e início do século 20, o jogo con-sistia em identificar, em nível global, ativos baratos e ativos caros. Os capitais mais agressivos iam à frente, adquiriam ativos baratos – por tal se entendendo empre-sas, setores ou países --, depois promoviam rodadas para difundir o ativo. A conse-qüência era o chamado “efeito-manada”, uma corrida em direção ao ativo que pro-vocava sua valorização, permitindo ao fundo agressivo vender na alta e pular atrás de outro ativo não valorizado.

Especializadas em análises de balanço, em geral essas empresas não tinham famili-aridade com processos econômicos, ainda mais em países emergentes. Pior: para funcionar como agentes articuladores de expectativas e atender às demandas de sua clientela, tinham que padronizar suas análises, em torno de clichês que permi-tissem aos seus assinantes disparar ordens de ompcra ou venda.

Principal usuário das análises das agências de risco, o operador de mercado age de forma binária a qualquer informação ou análise: “compro ou vendo”. Os melhores trabalham com horizontes de três meses; a manada, com horizontes de uma se-mana.

A euforia que tomou conta dos mercados internacionais na época não permitia mui-ta sofisticação. Assim, as agências passaram a atuar com manuais únicos para to-dos os países.

Uma economia a plena carga tende a exibir déficits externos (devido ao aumento das importações e redução das exportações). Um ajuste fiscal ajuda a reduzir o ní-vel de atividade, induzindo as contas externas ao equilíbrio. Portanto, ajuste fiscal pode ser virtuoso para economias a plena carga.

Já para uma economia em processo recessivo, aumento de impostos significa apro-fundamento de recessão e queda na arrecadação tributária, devido à queda da ati-vidade econômica. Ajuste fiscal em economia recessiva é veneno na veia.

Para as agências, bastava um país qualquer promover aumento da carga fiscal, in-dependentemente das suas características, para ser bem avaliado. Era como na pi-ada: Rosenberg, Goldenberg, iceberg, tudo é a mesma coisa e ajudou a afundar o Titanic.

A Argentina podia estar se exaurindo em recessão profunda. Bastava o anúncio de um novo pacote fiscal, para as agências acenarem com melhoria do seu “rating”, e os mercados elevarem as cotações dos seu papéis. Por poucos dias, é claro, à espe-ra do próximo pacote. E isso durou até a véspera da explosão do sistema de “cur-rency board” argentino.

O uso mecânico do manual dos “déficits gêmeos” se sobrepôs a qualquer veleidade de análises políticas ou econômicas. As contas internas estão equilibradas? Melho-re-se o “rating”, mesmo que as contas externas estejam em pedaços e a situação política interna à beira de uma catástrofe.

Havia elementos estruturais de mais fácil avaliação. Quando foi aprovada a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), por exemplo, a Standard & Poors deu perspectiva positiva para o país. Quando se tratava de analisar ou definir políticas sustentáveis, havia a necessidade de um entendimento dos mecanismos macro-econômicos. E, aí, essas agências comportavam-se como manada, cometendo análises no mínimo discutíveis.

Até a crise da Rússia, a dívida pública e a necessidade de financiamento externo brasileiros eram crescentes. No entanto, só depois da eclosão da crise russa as a-gências atentaram para o fato e rebaixaram o “rating” do Brasil.

Depois que o Brasil mudou a política cambial em janeiro de 1999 --e não houve o caos que muitos previam--, um analista arguto já saberia que a conversibilidade argentina estava com os dias contados (porque sustentada pelo desequilíbrio no câmbio brasileiro, permitindo o aumento das exportações argentinas). E que o Bra-sil caminhava para uma situação mais confortável no campo fiscal e externo. No

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entanto, durante muito tempo depois, o risco Argentina permaneceu abaixo do ris-co Brasil.

No momento em que até o FMI admitia que a única saída para a Argentina era a flutuação cambial, os analistas da Standard & Poors teimavam que a saída para a Argentina era o equilíbrio fiscal e a dolarização. Bastaria a dolarização para todos os problemas estarem resolvidos. Essa posição da Standard & Poors foi mantida até uma semana antes da implosão do “currency board” – a política monetária e cam-bial argentina.

Depois dos erros de avaliação em relação à Argentina, David T. Beers, presidente da Standard & Poor’s para a América Latina, voltou ao Brasil para tentar esclarecer os critérios de avaliação da economia pela empresa.

Sua preocupação, nas conversas que teve, foi explicar que o papel de uma agência de risco é analisar a solvência dos países e empresas – não necessariamente o que é melhor ou pior para o país e seu povo.

Mas tomemos a explicação de Mr. Beers ao pé da letra. Suponha um investidor de risco. Ele traz seu capital em dólares, aplica por aqui e gera receita em reais. De-pois, tem que converter os reais em dólares para remeter para a matriz.

Quando o real se desvaloriza o que ocorre com seus investimentos? Primeiro, reduz o o valor da remessa dos lucros e dividendos, porque terão que ser convertidos por um dólar mais caro. Depois, deprecia todos seus ativos no Brasil, porque também serão convertidos em dólares pela paridade do fechamento do balanço.

Logo, volatilidade do câmbio é um enorme fator de risco para ele.

Agora avalie-se a situação brasileira, à luz das eleições de 2002. De repente, criou-se um clima catastrofista no mercado internacional que levou até ao corte de linhas de financiamento comerciais. Sem oferta de dólar, o câmbio explodiu. O investidor direto teve enormes prejuízos com a desvalorização cambial, e seu risco foi propor-cional à vulnerabilidade externa brasileira. Em cima do risco-Brasil entrou o risco-manada – a possibilidade dos bancos cortarem suas linhas de crédito do Brasil, mesmo aqueles que acreditavam que Lula não iria botar lenha na fogueira, mas por não saberem se os demais bancos sabiam disso. É risco para iraquiano nenhum co-locar defeito.

Se o país fosse menos vulnerável, tivesse menos necessidade de dólares, obvia-mente o efeito-eleições provocaria muito menor volatilidade no câmbio, porque ha-veria fluxo estável garantido de dólares.

A desvalorização cambial, ao permitir o aparecimento de um enorme superávit e aumentar a oferta de dólares no país por conta da melhoria das contas externas, melhorou ou piorou a percepção sobre o país por parte do investidor direto? É óbvio que melhorou.

No entanto, quando se indagava de Mr. Beers qual a importância que dava à redu-ção da vulnerabilidade externa, que é função da melhoria do superávit comercial e do balanço de pagamentos que é função do dólar, o que ele dizia? Que contas ex-ternas não tem importância, o importante é apenas o superávit fiscal do governo. E não havia santo que o demovesse dessa posição.

Quando se cobrava uma definição dele sobre superávit comercial, limitava-se a di-zer que as economias que se abriram completamente ao fluxo financeiro interna-cional estão crescendo mais que o Brasil. Nem adiantava argumentar que, nelas, a proporção comércio exterior/PIB é muito maior que no Brasil, sujeitando a econo-mia a muito menor volatilidade no câmbio.

Naqueles anos de bolhas e esbórnia, as agências de risco eram muito mais propa-gandistas da liberdade de capitais do que analistas de risco. E foram elas os “bate-dores” que saíram na frente indicando ao capital financeiro o risco de empresas e países.

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A manipulação das análises

Consultor político de algumas instituições estrangeiras, o cientista político Alexan-dre de Barros admitiu, na época, que já fora vítima da ditadura dos “traders” –os homens que operam no mercado. Algumas de suas avaliações foram aceitas pelo presidente da instituição, mas que recomendou que não as divulgasse, porque cer-tamente iriam provocar resistências nos seus “traders” --atrapalhando suas posi-ções no mercado.

Esse é o dilema que provocava a crise de auto-conhecimento, que vitimava o mun-do todo. O meio acadêmico ainda não havia formulado diagnósticos precisos sobre a crise internacional. O exercício do diagnóstico e do prognóstico ficava, então, nas mãos de analistas ligados aos grandes bancos de negócios, que não eram parte neutra do processo. Suas análises eram utilizadas como argumento de venda de produtos financeiros, e também como instrumento do jogo de mercado dos seus “traders” – para quem o mundo é uma ilha dividida entre comprados e vendidos.

Em março de 2000, trinta dias antes da bolha da Nasdaq, foi divulgado relatório do Goldman Sachs recomendando a compra de ações da Microsoft, às vésperas do jul-gamento da ação de abuso de poder, e com seu valor de mercado batendo em ina-creditáveis US$ 400 bilhões.

A análise -completamente estapafúrdia, como se revelaria poucas semanas depois- destinava-se apenas a aquecer o mercado para que investidores pudessem desovar seus papéis da Microsoft sem provocar queda das cotações.

Apenas no início de 2001 a imprensa norte-americana abriu os olhos para a irres-ponsabilidade e a manipulação que grassou no mercado, a partir de muitos analis-tas de bancos de investimento.

Em janeiro, no artigo ‘Como tantos avaliaram de forma tão equivocada?‘, de autoria de Gretchen Morgenson, o New York Times, começou a botar o dedo em uma ferida que há anos maculava os mercados, penalizando investidores e iludindo a opinião pública: a manipulação exercida por grande parte desses analistas, que se torna-ram instrumentos ativos de manipulação de mercados em favor de seus emprega-dores.

A forma mais evidente de manipulação de mercado é o ‘insider information‘ -a in-formação privilegiada, disponível para apenas parte dos investidores. Tanto aqui como nos EUA já existe uma legislação clara a respeito.

Uma segunda forma de manipulação é a ‘espuma‘ -a divulgação de notícias não confirmadas com o intuito de manter as cotações artificialmente elevadas. Nos Es-tados Unidos essa forma de atuação também é reprimida. O órgão regulador exige a publicação de confirmações ou desmentidos em forma de ‘fato relevante‘. No Bra-sil, tem-se jogado pesadamente na disseminação de ‘espumas‘ com a CVM compor-tando-se passivamente.

A terceira forma de manipulação é a mais complicada. É a disseminação de análises equivocadas, facilitada pela falta de parâmetros para analisar tanto o desempenho de empresas da nova economia como de economias emergentes. Na economia tra-dicional as companhias já têm histórico de desempenho. Assim, os erros de análise são percebidos na hora. Na nova só se percebem os erros depois de consumados os prejuízos.

Há uma maneira óbvia de tratar da questão: quem erra não merece crédito e não é mais ouvido. Esse controle de qualidade não existe na mídia brasileira. Os jornais podem se esmerar em programas de qualidade, mas não existe nenhum ‘rating‘ de fontes. A fonte pode dar o palpite que quiser, cometer o erro que cometer, quebrar empresas e pessoas que acreditem nela, porque nada lhes será cobrado.

Suas opiniões passaram a ter peso significativo na decisão sobre bilhões e bilhões de dólares colocados em fundos, sob a guarda de suas instituições.

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É sobre os ombros desse profissional, estressado pela própria pressão do dia-a-dia, sem distanciamento para uma análise mais fria da crise, e sendo responsabilizados por decisões que poderiam significar prejuízo pesado para seus empregadores, que repousava esse processo maluco de formação de consensos sobre a economia mundial.

É só conferir o analista do Deutsche que previu o calote brasileiro, logo após a crise da Rússia. No dia anterior, suas análises sobre a Rússia haviam infringido prejuízos monumentais ao seu banco. Um sujeito desses, atormentado pelo erro que certa-mente lhe custará a carreira, cometeu análises nas quais a imprensa mundial foi se basear para formar juízo sobre o Brasil.

Era o ambiente ideal para o exercício da unanimidade burra. Ninguém podia ousar uma visão diferenciada, porque idéias precisavam ser estandartizadas para que as avaliações resultassem em decisões de compra e de venda. Para resolver a exposi-ção do Brasil ao risco era necessário obter supéravit fiscal (em ambiente recessivo), aumentar os juros (mesmo inviabilizando a dívida interna), aprovar as reformas, seja lá o que isso significasse.

A análise do risco, uma ciência que moveu mundos e produziu o capitalismo mo-derno, entrou em crise. A instabilidade tornou-se tão acentuada, que os profissio-nais do risco passaram a se esconder atrás do manto protetor da unanimidade. Se todos se afogassem, ótimo, porque pelo menos ninguém será individualmente res-ponsabilizado pelos erros coletivos.

Criaram-se, então, verdades absolutas que, dia após dia, eram desmentidas pelos fatos, agravando a situação nacional, e não sendo rebatidas, pelo medo de investir contra a unanimidade.

A cada ataque especulativo, fugia-se da saída óbvia de propor a redução da exposi-ção da economia ao capital especulativo. Em vez disso, repetia-se à exaustão que a saída consistia em ampliar cada vez mais as vantagens, reduzir cada vez mais as limitações, aumentar cada vez mais os juros.

A tática adotada em outubro do ano passado pelo Banco Central foi um primor des-se exercício da retórica da repetição. Os juros foram jogados nas alturas, o nível de reservas foi mantido, mas com capital cada vez mais volátil. Segurou-se por 10 meses a crise, e para que? Para ter-se, dez meses depois, uma economia mais fra-gilizada, uma dívida interna ainda maior, mais inadimplência e recessão. Não se avançou um milímetro sequer na redução das fragilidades macro-econômicas. Cri-ou-se uma tática de curto prazo que, dez meses depois, legou uma economia mais frágil e endividada.

Esse jogo de responder aos clichês do mercado já vinha de 1994. Vinte dias antes da crise do México, os analistas do Morgan Stanley –em seminário no Banco Cen-tral, no Rio de Janeiro—apresentavam o México como o de menor risco na América Latina; e o Brasil como o maior risco. Um mês depois da queda, o México era o país de maior risco e o Brasil era um risco menor.

E porque isso? Simplesmente para não colocar em risco os investimentos que já haviam sido feitos pelo banco para constituir uma clientela para papéis mexicanos. O investimento de vendas tem que ser preservado até a véspera do estouro, para ser maximizado.

Além disso, as análises serviam de freio para qualquer tentativa de ir contra as li-nhas mestras do que o mercado considerava uma política virtuosa. Quando Lula começou a crescer nas pesquisas eleitorais de 2002, por exemplo, Gustavo Franco deu uma declaração óbvia, porém mesmo assim chocante: “Não tem perigo, porque o mercado não deixa”. Não que Lula soubesse efetivamente o que fazer.

Mas no dia 23 de outubro de 2002, em pleno processo eleitoral, o analista da Salo-mon Smith-Barney (ligada ao Citigroup), José Garcia-Cantera, distribuía um docu-mento para sua clientela sobre os planos do PT, caso Lula fosse eleito.

Luis Nassif� 18/7/06 23:31Comment: Quando mesmo?

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Dizia estar de posse de um documento interno do partido, onde não se descartaria a possibilidade de mudar a regulação do setor para forçar os bancos a reduzir seus “spreads”. Recomendava que os bancos não deveriam apostar no médio prazo no Brasil, em função do risco de reestruturação da dívida pública, risco de uma grande intervenção federal no setor e risco de uma economia estagnada.

Por alguns detalhes do documento, percebia-se que Garcia-Cantera se baseara em uma reunião da equipe de Lula com a Febraban (Federação Brasileira Bancos), on-de em nenhum momento essas hipóteses foram aventadas, segundo outros partici-pantes do encontro.

O que levaria um analista a conclusões dessa natureza, sem nenhum embasamento na realidade? Pior: baseando-se em uma reunião na qual estava presente o mundo bancário brasileiro, sem que nenhum outro bancário tivesse entendido a conversa da maneira relatada?

A forma de entender esse jogo é recorrer ao “fator Jack Grubman”, o ex-analista de telecomunicações da Salomon Smith Barney, divisão do Citicorp, acusado de ter manipulado análises para beneficiar operações do banco.

No dia 13 de abril de 2002, sob o título “O terremoto que se avizinha”, antecipei aqui o que poderia acontecer com o Citibank. “Não se menospreze o trabalho inici-ado por procuradores de Nova York contra bancos de investimentos nova-iorquinos, acusados de manipular o boom ocorrido na Nasdaq. Pode-se estar entrando em pe-ríodo de turbulência maior do que aquele provocado pela revelação das operações da Enron”.

Apenas no início de 2001 a imprensa norte-americana abriu os olhos para a irres-ponsabilidade e a manipulação que grassou no mercado, a partir de muitos analis-tas de bancos de investimento.

Em janeiro, no artigo ‘Como tantos avaliaram de forma tão equivocada?‘, de autoria de Gretchen Morgenson, o New York Times, começou a botar o dedo em uma ferida que há anos maculava os mercados, penalizando investidores e iludindo a opinião pública: a manipulação exercida por grande parte desses analistas, que se torna-ram instrumentos ativos de manipulação de mercados em favor de seus emprega-dores.

Em março de 2000, trinta dias antes da bolha da Nasdaq, foi divulgado relatório do Goldman Sachs recomendando a compra de ações da Microsoft, às vésperas do jul-gamento da ação de abuso de poder, e com seu valor de mercado batendo em ina-creditáveis US$ 400 bilhões.

A análise -completamente estapafúrdia, como se revelaria poucas semanas depois- destinava-se apenas a aquecer o mercado para que investidores pudessem desovar seus papéis da Microsoft sem provocar queda das cotações.

Naquela semana, o colunista Ben White, do Washington Post escreveu artigo com o título “Crise ética desafia reputação de Weill, o líder do Citi”, publicado na segunda-feira em “O Estado de S.Paulo”.

Dizia ele:

“Enquanto se esforçava para transformar o Citigroup Inc. na maior e mais lu-crativa empresa de serviços financeiros dos Estados Unidos, Sanford Weill a-judou a criar um tipo de Wall Street no qual os componentes chaves do finan-ciamento moderno trabalhavam juntos, sob o mesmo teto. Agora, o Citicorp e seu líder estão presos na investigação desse novo mundo”.

“A questão é se os íntimos relacionamentos entre os analistas de ações e va-lores, os banqueiros de investimento e outros atores financeiros criaram con-flitos que encorajaram companhias a enganar investidores e dar vantagens a grande clientes (...)”

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Na semana anterior, o Wall Street Journal divulgou e-mails de Grubman dizendo ter melhorado a avaliação da ATT para fortalecer a luta de Weill contra John Reed, co-presidente executivo do Citigroup, o grupo resultante da fusão entre a Travelers, de Weill, e o Citicorp.

A lição de casa e a taxa de risco

Quanto maior a dificuldade de uma economia, maior a taxa de risco, maior a remu-neração do capital. A estratégia básica desse capital gafanhoto consistia em buscar economias vulneráveis e tratar de minimizar os riscos através de dois expedientes.

O primeiro, era prolongar o máximo possível a agonia do paciente. O segundo, contar com a ajuda da cavalaria americana – o FMI – quando a economia explodis-se.

O primeiro expediente era fácil de quantificar.

Suponha que a taxa de juros americana estivesse em 4% ao ano; a brasileira em 25% ao ano. Ao final de um ano, US$ 1.000,00 aplicado no EUA estariam valendo US$ 1.040,00; no Brasil (sem correção cambial), em R$ 1.250,00. Nesse quadro, o rendimento de um ano no Brasil suportaria um calote de 20%. Ou uma correção cambial de 20%.

Em dois anos com esse diferencial, o investimento no Brasil poderia perder até 44% de seu valor – e ainda assim ficaria similar ao investimento nos EUA. Com quatro anos, o investimento no Brasil já teria permitido recuperar o principal acrescido de 9% a mais do que o investimento nos EUA. Ou seja, quanto mais prolongasse a a-gonia, maior a rentabilidade do investimento, e menor o risco do investidor exter-no.

Aí, vinha a segunda rede de proteção. Quando o país estava prestes a explodir, a-certava-se um acordo com o FMI. O dinheiro injetado servia para o capital especu-lativo sair do país sem risco.

Vamos às contas:

Suponha que o investidor tenha R$ 1.000,00 aplicados no Brasil, com o dólar cota-do a R$ 1,00. Na saída, troca esses R$ 1.000,00 por US$ 1.000,00.

Quando há o efeito-manada, porém, a saída simultânea de muitos investidores pressiona o dólar. Suponha que o real sofra uma desvalorização de 20% e US$ 1,00 passe a valer R$ 1,20. Com R$ 1.000,00 o investidor só conseguirá adquirir US$ 833,33.

No momento da corrida, como o que antecedeu a explosão do câmbio em janeiro de 1999, todo o dinheiro emprestado pelo FMI foi empregado pelo governo brasilei-ro para assegurar a saída tranqüila dos investidores externos. De outubro de 1998 a janeiro de 1999, saíram do país US$ ...... bilhões, a um câmbio de R$ ........, ga-rantido pelo empréstimo do FMI.

Depois que esse capital estava a salvo, veio a explosão cambial, o dólar passou a valer R$ ....... Os empréstimos do FMI encareceram na mesma proporção. Mas, aí, a conta já era do governo brasileiro.

A retórica dos “juristas”

Para dar sustentação máxima ao quadro de instabilidade econômica, o mercado de-senvolveu retóricas, clichês, alguns de fundo esotérico, outros de uma inconsistên-cia tão primária que assustava, mas eram suficientes para provocar o efeito-manada especialmente na mídia.

Esses economistas se denominavam de “juristas”, por acreditar na função saneado-ra dos juros, em qualquer circunstância – conforme me disse certa vez Gustavo Lo-

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yolla, ex-presidente do Banco Central. Em geral, eram economistas que achavam que o país inteiro era uma variável onde a única constante é a taxa de juros alta.

Daqui a 50 anos, os historiadores se debruçarão sobre essa escola, com a curiosi-dade de antropólogos, e identificarão nela vestígios de uma ciência pré-colombiana, que vicejou tardiamente. Foi uma quase ciência, porque quase conseguiu, a seu modo (e com bastante inovação), atender a dois princípios necessários para qualifi-car um pensamento científico:

1) sistematizou um conjunto de fenômenos econômicos que se aplicavam aos seus princípios (invertendo esse cartesianismo pouco criativo que marcou a ciência oci-dental, de partir dos fenômenos para chegar aos princípios);

2) suas experiências e análises produziram um padrão constante de resultados: sempre erram. Sendo constante, o padrão é de grande valia. Basta ouvir suas pre-visões e apostar na previsão oposta, para acertar.

Durante certo período, as alegações para manter a política monetária beiravam a caricatura. Suas máximas eram as seguintes:

Primeira máxima - "Em qualquer nível de atividade econômica, de inflação e de reservas, os juros sempre estarão defasados em 20%."

Segunda máxima - "Se a inflação é baixa, a taxa de juros tem de ser alta para compensar a desvalorização cambial. Se a desvalorização cambial é baixa, a taxa de juros tem de ser alta para compensar a inflação. Se não existe nem inflação nem desvalorização cambial, a taxa de juros tem de ser alta por alguma razão que não me ocorre no momento."

Terceira máxima - "Se as reservas cambiais estão baixas, a taxa de juros tem de ser alta para que os dólares entrem. Se as reservas cambiais estão elevadas, a ta-xa de juros tem de ser alta para que os dólares não saiam."

Quarta máxima - "Se tem corrida contra o real, a taxa de juros tem de ser alta para contê-la. Se não tem corrida contra o real, a taxa tem de ser alta porque é melhor prevenir do que remediar."

Quinta máxima - "Os culpados pelos problemas causados por uma política de ta-xas de juros permanentemente altas são os adeptos da fracassomania, que criam expectativas negativas, alertando para os problemas causados pela política de ta-xas de juros permanentemente altas."

Sexta máxima - "Se a política de taxa de juros alta quebrar o país, o problema é com outro departamento. O meu só cuida dos juros."

Sétima máxima - "A culpa de uma política econômica que depende de uma meta inviável para ser bem-sucedida é da meta inviável, não de quem considerou a meta viável."

Oitava máxima - "Política de juros conservadora é aquela que conserva o país quebrado."

Nona máxima - "Todo gasto público não destinado a pagamento de juros é, por definição, iníquo."

Décima máxima - "Administrador público corajoso é o que tem coragem de cortar o leite das criancinhas para garantir os juros da minha clientela."

Décima primeira máxima - "Toda previsão econômica é absolutamente correta até nossa próxima retificação semanal."

A feijoada financeira

Um capítulo à parte na implantação desse modelo foi a retórica “cabeça-de-planilha”, a maneira como iam sendo construídos argumentos, que se transforma-

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vam em clichês, que eram desmentidos pelos fatos e ressurgiam logo em seguida, em uma repetição infindável, que atropelava a lógica.

Desde cedo, o modelo econômico se mostrava inconsistente. Defendia a melhoria dos fundamentos da economia através de aumento dos impostos e do corte de gas-tos públicos. Mas todo ganho era insuficiente para compensar o aumento da dívida devido aos juros.

Prometia crescimento, mas exigia juros altos e tributação elevada. Garantia atração de investimentos externos, mas só conseguia atrair capital especulativo de curto prazo, fazendo arbitragem entre juros e câmbio.

Como podia um país que seguia rigorosamente a receita do FMI e do mercado con-tinuar com altas taxas de risco, altas taxas de juros, com a desconfiança dos credo-res? A resposta era óbvia: o modelo aumentava a vulnerabilidade da economia à dívida interna e externa, devido à política de câmbio, que provocava déficits nas contas correntes, e de juros, elevados para atrair dólares necessários para fechar as contas.

Como a questão virou tabu, teve início uma ginástica mental fantástica que, dia a-pós dia, tinha que encontrar explicações para a ausência de resultados. Criou-se assim um manual de explicações esotéricas que ajudava a fechar as colunas finan-ceiras

O dólar subiu porque a Lei de Falências não foi aprovada, ou porque se demorou para aprovar a reforma da Previdência. Não havia teto para os salários do setor pú-blico. Criaram-se teto e sub-teto, mas isso foi uma derrota do governo, uma con-cessão, por isso o dólar subiu. Se não fosse isso, era o boné do MST que Lula colo-cou na cabeça que explicava a alta do dólar.

Ouvir a explicação do analista de mercado sobre as razões imponderáveis dos mo-vimentos diários do dólar tornou-se uma mesmice insuportável, uma repetição de slogans que afrontam a lógica, mas são aceitos pela força da repetição, transfor-mando qualquer economista de planilha em “pensador”.

Diversos comentaristas, muitos colunistas financeiros, passaram a fazer uso dos slogans e, a partir daí, a compor raciocínios sem relações causais, um bricabraque a partir de peças sem relações causais, sem entender o modelo complexo de fun-cionamento de uma economia.

À medida que o modelo foi se revelando disfuncional, começaram a pipocar pro-blemas em todas as pontas. Nada funcionava, os objetivos de atração de investi-mentos e promoção de desenvolvimento não eram alcançados. Mas se tratava de justificar cada ponto isoladamente, encontrando uma explicação para cada ponto de seu não funcionamento.

Outro sofisma era a comparação entre o custo das diversas crises cambiais. Mos-tram-se dados da crise russa, coreana e argentina e constatam que nosso BC foi extremamente eficiente porque o custo por aqui foi inferior.

O México viveu a crise do assassinato de um candidato a presidente da República e o fim de décadas de controle de um partido político sobre o país. A Rússia sofreu o desmonte de um império que existia desde a segunda década do século. A Argenti-na, as loucuras da lei de conversibilidade. Querer atribuir o menor custo da crise brasileira às virtudes da política monetária é o mesmo que comparar antigripal com antibiótico.

O ponto relevante é que, depois da primeira crise cambial, todos esses países alte-raram sua política econômica, deixaram o câmbio em patamar competitivo, passa-ram a gerar superávits comerciais crescentes, aumentaram as reservas cambiais e reduziram a dependência de capital volátil. Não houve mais crises cambiais. En-quanto isto, em quatro anos o Brasil conviveu com duas crises cambiais gravíssi-mas, várias menores e não conseguiu recuperar as condições de crescimento.

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A lição de casa e as expectativas sucessivas

Em todo começo de ano, acenava-se com perspectiva de crescimento, desde que cumpridas certas exigências, em geral ligadas ao corte de despesas da Previdência, na área social. Toda a conta baseava-se no conceito do déficit primário (aquele no qual não entram o serviço da dívida e a amortização). Não se tocava na questão dos juros. Apenas nos últimos anos começou a haver um questionamento maior sobre a taxa de juros, quando os grandes bancos comerciais passaram a constiutuir seus próprios departamentos econômicos e a perceber que a concessão de crédito era a sua vocação, além de ser extremamente rentável, e que poderia ser compro-metida pelo nível da taxa básica de juros.

À medida que o ano ia passando, as expectativas de crescimento iram se reduzin-do. No final do ano, se atribuía o não-crescimento ao não cumprimento das lições de casa. E se insistia que, se abandonasse a terapia proposta, todo o sacrifício feito até ali seria desperdiçado.

“Em todo lugar é assim”

Rui Barbosa era um mestre na retórica do “em todo lugar é assim”. Não raras ve-zes, se valia desse estratagema para defender uma posição e, logo depois, outra posição completamente oposta.

Nos anos do Real, a retórica foi utilizada em muitas ocasiões:

1. O câmbio e o mercado

Cada vez que se pedia ao BC para evitar volatilidade do dólar ou valorização do re-al, a resposta era que o mercado é quem determina o nível do câmbio, porque “em todo lugar é assim”.

Vamos às análises do professor Yoshiaki Nakano, tomando como base estudos do FMI, feito com números até março de 2001. Segundo esses estudos do FMI, há dois anos o mundo poderia ser dividido em quatro grandes blocos, classificados segundo a intensidade de atuação no câmbio.

a - No primeiro bloco, 47 países, praticamente todos desenvolvidos, nos quais a intervenção no mercado de câmbio visava “moderar a taxa de variação e evitar flu-tuações indevidas das moedas locais”. As intervenções são mais amenas apenas porque esses países não sofrem de vulnerabilidade externa, tem sistema financeiro estruturado e grande parte da dívida em moeda nacional.

b - Em 33 países, sobretudo os em desenvolvimento, a intervenção detectada era ativa e a flutuação administrada, mas sem regras fixas ou trajetórias pré-definidas para a taxa de câmbio. São países sem liquidez, com o câmbio exposto a meia dú-zia de operações articuladas. O Brasil entra aqui. Nestes países, ao contrário do primeiro grupo, o controle de capitais também é arma eficaz contra a volatilidade cambial. O Chile é um caso clássico. No começo da década de 90, 80% dos ingres-sos de recursos no país eram de curto prazo. No final da década, quando a quaren-tena já era prática estabelecida, 80% eram investimentos produtivos.

c – No meio do caminho entre a taxa fixa de câmbio e alguma flutuação, o FMI ca-tegorizou os países com “regime intermediário de câmbio”, como o regime de ban-das e reajustes pré-fixados.

d – No extremo do controle cambial, estava um pequeno número de países com “currency board” e dolarização, como Bulgária, Estônia, Lituânia, Equador e Argen-tina (na época).

2. O pensamento único do Banco Central

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O Banco Central não poderia pode permitir que integrassem o corpo técnico do CO-POM economistas não comprometidos com as metas inflacionárias, porque em todo lugar é assim.

No corpo técnico do FED (o Banco Central norte-americano) havia representantes de várias escolas acadêmicas. O charmain Alan Greenspan era da New York Univer-sity. O vice Roger W. Ferguson, Jr. da Harvard University. Edward M. Gramlich, da Yale University. Susan Schmidt Bies, da Northwestern University. Mark W. Olson, do Saint Olaf College. Ben S. Bernanke, Ph.D do - Massachusetts Institute of Tech-nology. Donald L. Kohn, da University of Michigan

3. Em nenhum lugar do mundo se baixa juros por decreto

Toda a estrutura de taxas de juros de uma economia de mercado é iniciada pela taxa básica de juros, baixada por decreto pela Autoridade Monetária. Além disso, o BC interfere nas taxas através de compulsório dos bancos, dos limites de alavanca-gem no mercado futuro. O mercado financeiro é basicamente regulado em qualquer economia moderna.

Nos EUA, o FED conseguiu reduzir a taxa básica de juros para 1% ao ano. E todas as demais taxas vieram atrás. E foi um ato de vontade política.

4. No Brasil, as taxas de juros são altas devido à incerteza provocada por morató-rias anteriores.

Não bate. O investidor não é moralista. A Argentina quebrou. Quando se consumou o calote, e recuperou sua capacidade de pagamento, o investidor voltou. A Rússia aplicou um calote maior do que o Brasil dos anos 80. Resolveu sua questão de en-dividamento, melhoraram as avaliações das agências de rating.

5. A única preocupação do Banco Central deve ser com a inflação.

Nos Estados Unidos, desde o início do novo século já havia consenso de que uma atuação estreita, como a que está em vigor no Banco Central Europeu. Hoje, a eco-nomia européia definha porque o BCE está mais preocupado com sua meta de infla-ção do que em promover a recuperação econômica.

6. A liberdade de fluxo dos capitais de curto prazo é condição necessária para a en-trada do capital de investimento.

Não havia lógica. Se um país depende de capitais de curto prazo, significa que está vulnerável, exposto a crises cambiais ao primeiro sinal de saída desse capital. O capital de investimento vem para ficar muitos anos. Se percebe que a economia está sujeita aos capitais especulativos, não entra. O capital de investimento entra na forma de dólares, é convertido em reais, fatura em reais e, depois, é novamente convertido em dólares para ser remetido na forma de lucros e dividendos. Se o dó-lar se desvaloriza, para efeitos de contabilidade todo o estoque de capital de inves-timento se desvaloriza na mesma proporção. Os luros gerados em reais também serão menores, quando calculados em dólares. Portanto, o capital de investimento foge do capital especulativo.

7. O investimento não entra por causa da incerteza jurídica.

A própria situação da China, sem nenhuma tradição, sem instituições jurídicas oci-dentais, mostra que o potencial de desenvolvimento é um elemento maior do que as próprias incertezas jurídicas. Mas, por aqui, na impossibilidade de incluir juros nas suas avaliações, economistas passaram a bater na tal “incerteza jurisdicional” – um palavrão do qual Bacha se jactava de ter criado. A demora em regulamentar as PPPs (Parcerias Público-Privadas) foi outro argumento utilizado para explicar a de-morar na entrada do investimento externo. Multinacionais atuam no setor de bens duráveis, semiduráveis, serviços, transportes e infra-estrutura. Preferem muito mais setores não regulados que os regulados. Se não entrava nem em setores não regulados, como justificar o não ingresso pela falta de regulação?

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8. A violência urbana é que impede uma melhor percepção sobre o país.

Naquele que talvez seja a obra-prima do pensamento cabeça-de-planilha, em arti-go no “Valor” o economista Fábio Giambiagi – um notável especialista em destrin-char números --, abordava a questão da “demanda por magia” pela mídia (a mídia que propõe a mudança do modelo, não a que acreditou que bastava abrir para crescer), garatindo que “o Brasil não tem um problema de modelo econômico”. Sustentava que “o que o país tem - e isso afeta a percepção da população, especi-almente nos grandes centros urbanos - é um grave problema de falta de seguran-ça”. Algo a ver com a falta de verbas para segurança, assim como para saúde, edu-cação, tecnologia? Claro que não, já que o modelo é virtuoso. “A solução passa por atacar o problema da impunidade e ter um sistema que aumente a probabilidade de o indivíduo: a) ser preso; b) ser condenado a uma pena elevada; e c) ficar de fato na prisão”. Para resolver esse problema provavelmente bastará um aditivo na lei ordenando que o criminoso se considere proibido de fugir quando faltar gasolina para o camburão. Ou que, na falta de recursos para penitenciárias, aceite se hos-pedar na casa do Giambiagi.

9. Todo ajuste fiscal com corte de despesas é virtuoso.

O então Secretário de Política Econômica Marcos Lisboa dizia que o ajuste fiscal de 2003 era virtuoso porque ocorria com corte de despesas, e não aumento de impos-tos. As despesas cortadas foram em educação, saúde, tecnologia, infra-estrutura, e na boca do caixa, através de contingenciamento, desarticulando todo o planeja-mento de gastos do governo. Como são despesas essenciais, além de seu conteúdo fundamentalmente anti-social, criam-se passivos nessas áreas que terão que ser cobertos com muito mais recursos no futuro e mais atraso no presente.

10. Todo país que tem câmbio flexível não enfrentará mais problemas com a vulne-rabilidade externa.

A conquista do mercado externo não é ação automática, como uma mesa de câm-bio que troca de posição em segundos. Ganhar mercado demanda tempo, investi-mento, persistência para expulsar concorrentes, para convencer os importadores de que haverá continuidade nas vendas. Quando o real se valoriza a ponto da exporta-ção ficar gravosa (dar prejuízo), parte dos exportadores desiste do mercado exter-no. Se, mais à frente, o câmbio se desvalorizar de novo, o retorno não é automáti-co. Será uma luta nova para recuperar o mercado, só que muito mais difícil, porque o exportador ficou estigmatizado pela não continuidade das suas vendas e será du-plamente cauteloso, depois de perdido todo o investimento no esforço anterior..

O que esse jogo de slogans pretende é que o mercado-fim (a economia real, que exige câmbio favorável e estável) se adapte ao mercado-meio (o financeiro). Nos Estados Unidos seria motivo de piadas pretender que o mercado estável, de longo prazo, tenha que se adaptar ao mercado volátil. Mas esse tipo de argumento era aceito sem nenhum questionamento.

O todo pela parte

Outra arma retórica era tomar o todo pela parte, ou não relativizar as informações utilizadas no raciocínio. Uma das Atas do Copom justificava a manutenção da taxa de juros inalterada porque tinha havido dissídios em que os reajustes se basearam na inflação passada, ou seja, voltou-se com a indexação. Assim, só isso! Bastava afirmar que houve dissídios indexados para se encontrar a justificativa para a ma-nutenção dos juros.

A edição de segunda-feira seguinte da “Folha” dimensionaria de maneira competen-te o tamanho da encrenca. O percentual de reajustes indexados tinha sido baixo e a massa de salários estava caindo. Devidamente dimensionado, o álibi não existia.

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Um dos grandes avanços do pensamento moderno foi a visão multidisciplinar (holís-tica), a integração de vários conhecimentos para uma melhor diagnóstico do pro-blema.

Não se trata mais de uma tendência restrita à física (onde começou) ou à medicina (ou tem obtido avanços importantes). Os modernos métodos gerenciais incorporam essa visão, impedindo que uma empresa seja conduzida apenas segundo a ótica do financeiro, ou da produção.

Sistema que mais influencia a vida dos brasileiros, a política econômica continua sendo conduzida pela ótica dos especialistas, sem a presença de um maestro que possa compatibilizar as várias visões e estabelecer os objetivos a serem alcança-dos.

Prova disso é a dependência da política econômica de dois tipos de especialistas: o “jurista” (defensor da política monetária como centro de toda política econômica) e do “fiscalista” (que considera a arrecadação fiscal como objetivo maior de toda polí-tica tributária).

Por influir em todos os aspectos da vida nacional, política monetária deveria ser a-nalisada de uma ótica interdisciplinar, com vários especialistas de diversas áreas analisando suas consequências sobre a economia como um todo.

É significativa desse estilo especialista a entrevista do então diretor do Banco Cen-tral, Francisco Lopes –principal guardião da política monetária--, à repórter Suely Caldas, no “Estadão”.

Lopes dizia que os efeitos dos juros altos não eram tão perniciosos assim porque estavam fora do torniquete: a) as empresas com acesso a financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), b) as empresas com acesso a capital externo e c.) as empresas com folga de caixa (que podem aplicar suas sobras). Nos três casos, grandes empresas ou altamente capitalizadas.

Depois, minimizava os efeitos sobre o emprego. Juros altos reduzem a atividade econômica, mas o desemprego é fruto da reestruturação da economia, como se re-dução da atividade econômica fosse neutro em relação à geração de empregos.

Um dos elementos centrais na competitividade é o crédito. Se a política monetária beneficia amplamente a grande empresa (intensiva em capital) em detrimento da pequena (intensiva em emprego) como pretender que ela seja neutra em relação ao nível de emprego?

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CCCaaabbbeeeçççaaa dddeee ppplllaaannniiilllhhhaaa

A “herança maldita” de FHC consistiu não apenas na enorme vulnerabilidade exter-na legada, mas na assunção, pelo governo Lula, do que de mais superficial e autis-ta a análise econômica brasileira produziu nas últimas décadas. Manteve-se o mesmo pensamento que quebrou o país a partir de 1995, na gestão Gustavo Fran-co, e não logrou reduzir em um centavo de dólar a vulnerabilidade externa na ges-tão Armínio Fraga-Ilan Goldfajn.

Como se explica essa marcha continuada da insensatez, essa insistência reiterada no desastre?

Tomemos o sistema de “metas inflacionárias”, base teórica desse modelo.

Na política econômica, é fundamental a boa sinalização para as expectativas dos agentes econômicos. Quando o BC aumenta ou reduz os juros, quanto mais rápida for a adesão do agente aos sinais da política monetária, mais eficaz será a política.

Aí vem o economista de planilha do BC –o sujeito que monta o “modelito”—, define um objetivo (a meta de inflação) e correlações entre ele e a taxa de juros básica da economia. Não existe ciência nisso, nem perspectiva histórica de estabilidade para permitir definir o nível ótimo de correlação. Por isso, é um jogo de tentativa-e-erro. Aqui, virou o bezerro sagrado.

Definido o modelo, cada departamento econômico de instituição monta a sua plani-lha. E sua competência consiste em acertar os resultados da planilha do BC, para “adivinhar” os próximos passos dos juros.

Quando o modelo é colocado em marcha, cria uma corrente de apoio que nada tem a ver com sua consistência. Não se trata de analisar se o nível dos juros e câmbio está correto para o equilíbrio da economia, mas se reflete a planilha do Ilan. Porque os analistas de mercado ganham dinheiro quando acertam o resultado da planilha do Ilan, e perdem quando erram.

Qualquer tentativa de se fugir do modelo, mesmo estando ele flagrantemente erra-do, cria esse coro de unanimidade contra mudanças. Mas o que está em jogo não é se a política é adequada ou não à economia, mas se segue ou não o que foi defini-do na planilha do Ilan. Criado o coro, o próprio BC termina refém da planilha do I-lan. E quem é o Ilan? Um economista de visão ampla, conhecedor dos meandros, das características da economia brasileira, como foram Campos, Bulhões, Simon-sen? Não. O Ilan é um especialista na planilha do Ilan.

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OOO úúúllltttiiimmmooo vvvôôôooo dddaaa gggaaarrrçççaaa

Tentou-se montar uma política de financiamento à pesquisa, o superávit primário não deixou. Quando se tentou revitalizar a marinha mercante, o superávit primário impediu. O dinheiro das estradas, o superávit primário consumiu. O crédito interno, o superávit primário absorveu. As despesas com saúde, o superávit primário co-meu.

Quando se pensa em qualquer política pró-ativa, Lula se vira para o interlocutor e resmunga: “Mexe com o superávit primário?” Se mexer, não sai.

Nas últimas semanas, procurei fazer um pequeno inventário dos avanços que o país real conquistou nos últimos anos, apesar do pensamento cabeça-de-planilha. Transformar o potencial em real demanda romper com o nó górdio da dívida.

Conforme descrevi na semana passada, há um ponto em comum entre a estagna-ção da Monarquia, a falta de rumo da Velha República e o rentismo da Nova Repú-blica (entendido o período que se prolonga da redemocratização até o final do go-verno Lula). Trata-se do monopólio do crédito.

Cria-se o ambiente propício para que grupos internos se associem à banca interna-cional, captem a taxas baratas para aplicar, internamente, a taxas caras. Não se trata do movimento virtuoso de aplicar em atividades produtivas, mas de mera-mente arbitrar taxas.

O monopólio do crédito é transferido para a banca internacional. Ganha quem tem acesso ao crédito externo; paga a conta quem fica restrito à moeda interna, pelas taxas de juros pagas, pelos impostos cobrados e pelas despesas públicas cortadas. A transferência da riqueza se dá através desse mecanismo perverso de internacio-nalizar as aplicações na dívida pública e rola-la a taxas exorbitantes.

Pais desse modelo, os cabeças-de-planilha são tão antigos quanto o diabo. Aliados dos escravagistas, flanaram pela monarquia impedindo o Barão de Mauá de espa-lhar crédito barato pelo país. Depois transformaram os cafeicultores em rentistas, ensinando Campos Salles a destruir as políticas públicas para preservar os créditos em libra. Quebraram o país do Cruzado, quebraram o país do Real. Mas cumpriram sua missão de enriquecer os rentistas e desmoralizar princípios de trabalho, produ-ção, projeto de país e solidariedade nacional.

A vantagem é que esses processos não têm como se perpetuar. Encerram-se em si próprios, quando a dívida pública assume uma dinâmica própria e se torna não fi-nanciável. Aí se dá a ruptura, que pode ser através de três caminhos: crise social e política, super-inflação ou tentativa de saída organizada da armadilha da dívida.

Para a última alternativa, passam-se pelas seguintes etapas: 1) Tomada de consci-ência sobre o esgotamento do modelo rentista. 2) Montagem de um projeto alter-nativo que permita unir o país em torno das novas idéias. 3) Articulação de um pacto político capaz de dar sustentabilidade ao novo modelo. 4) Montagem da en-genharia financeira capaz de refinanciar a dívida sem comprometer o desenvolvi-mento. 5) Coragem política para o tiro de largada.

No momento, o governo Lula e o país estão começando a sair da primeira etapa. Sobre as demais, falamos outro dia.

O fetiche do superávit

Vamos retomar o tema da ditadura do superávit primário, levantado nas últimas colunas, a partir do noticiário recente dos jornais.

Segundo estudos da economista Érica Amorim –mencionados ontem em ó Globo”—apenas a decisão de manter a taxa Selic em 16% ao ano, contra a previsão de che-

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gar em 13% no final do ano, significará R$ 15 bilhões a mais de custo da dívida es-te ano --R$ 3 bi a mais que todo investimento público previsto.

O Brasil gastará este ano US$ 9 bilhões com pagamento de frete a companhias es-trangeiras. Exportações não estão sendo concretizadas por falta de navios. A saída proposta foi a criação de um Fundo de Aval, no valor de R$ 600 milhões. Sendo de aval, provavelmente nem seria utilizado. Mas como haveria um impacto contábil nas contas públicas, não saiu, por veto da Fazenda e do Tesouro. Criam-se passivos reais por conta de uma miragem contábil.

Pouco se fala do déficit nominal (que inclui superávit primário menos a conta de juros), porque aí se exporia o núcleo central do déficit brasileiro: juros elevados. Há duas justificativas para a manutenção das taxas elevadas, ambas sem relação entre si, mas repetidas, em esquema de revezamento, pelos mesmos teóricos.

A primeira é que os juros são elevados por conta do tamanho da dívida e do risco Brasil. Se a dívida interna é financiada em reais, qual a razão para se utilizar como referência o risco Brasil, que é parâmetro apenas para a atração de dólares?

A segunda é a incrível “teoria da jabuticaba”, segundo a qual, as grandes empresas costumam comparar taxas longas de juros com expectativas de inflação. Se a dife-rença for inferior a 8% ao ano, eles reajustam preços.

Teorias são formulações abstratas, hipóteses que necessitam de comprovações empíricas para se comprovar corretas ou não. Não existe comprovação dessa teori-a. Os preços continuam sendo reajustados quando há demanda e contidos quando há competição. De 1995 para cá todos os soluços inflacionários tiveram por causa principal a desvalorização do câmbio.

O que se quer é fugir do ponto focal: porque o câmbio se desvaloriza, mesmo quando o país equilibra suas contas externas? Porque se deixou aberta a porteira para o livre fluxo de capitais, para o ganho fácil da arbitragem, de trazer dinheiro barato e aplicar em taxas elevadas. Se o FED ameaça aumentar os juros dos EUA, os dólares saem do Brasil provocando uma desvalorização cambial. Aí o Copom aumenta os juros para combater os efeitos inflacionários, voltam os dólares e o câmbio se aprecia de novo, recriando a dependência.

Essa lógica do cachorro-comendo-o-próprio-rabo foi dissecada alguns anos atrás pelo economista Rubem Almonacid, já falecido. Hoje em dia, o paradoxo de Almo-nacid tornou-se referência. E será alavanca fundamental para se quebrar as últimas barreiras da irracionalidade, impondo o controle ao capital volátil, e acabando com a internacionalização do financiamento da dívida pública brasileira.

O desafio é saber a maneira como será operacionalizado.

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1 O livro “Os Argentinos”, de Félix Luna 2 Beluzzo, CartaCapital 07/12/2005 3 Magalhães Jr 4 “História do Rio de Janeiro”, 458 5 Magalhães Jr. 6 “História....” 7 “História do Rio”, 201 8 “História do Rio”, 459 9 “História do Rio”, 459 10 Raimundo Magalhães Jr

11 “A política externa dos Estados Unidos:da primazia ao extremismo”, de César Guimarães do Instituto de Estudos Avançados da USP.

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O nascimento do novo ciclo

O país já iniciou um novo ciclo de pensamento estratégico. A exemplo das duas primeiras décadas do século 20, nos últimos vinte anos houve um vácuo no pensa-mento estratégico brasileiro. Está-se agora, naquela fase intermediária, em que o novo está sendo plasmado e o velho ainda não foi enterrado.

Nos jornais, ainda há o predomínio dos mesmos cabeças-de-planilha que ocuparam o espaço de formulação econômica nos últimos dez anos. Não têm mais nada a di-zer. O modelo proposto em julho de 1994 –que partia do pressuposto de que a falta de poupança interna seria resolvida com a plena abertura financeira, em detrimento da busca de saldos comerciais— esgotou-se seis meses depois de adotado. Mas cri-ou interesses, toda essa imensa legião de consultores, tesoureiros, operadores que passaram a lucrar em cima da mera arbitragem de taxas.

Morto, o modelo foi preservado esses anos todos graças a um altíssimo índice de ignorância que marcou a discussão pública, fundado em clichês, na recomendação monocórdica de “boas práticas”, no tratamento das conseqüências pela impossibili-dade de admitir os erros de fundo.

Com o esgotamento do discurso, os papagaios retornaram para o segundo planos e os autores originais do modelo voltam a ocupar a cena, tentando dar uma sobrevi-da impossível. Não se consegue avançar além de uma sucessão de propostas tópi-cas, sem conseguir uma resposta para a armadilha original do modelo: como resol-ver o nó de uma dívida pública impagável.

Enquanto a mídia continua a repetir os clichês, há um movimento nervoso, inces-sante, das melhores cabeças do país trabalhando em vários centros de pensamen-to, concordando nas críticas ao modelo, discutindo saídas para poder convergir nas propostas para o próximo tempo do jogo.

Nesse exercício, é importante identificar as diversas camadas de pensamento que, somadas, permitirão entender o todo. Na base de tudo, no plano que leva décadas, às vezes séculos para ser implementado, está o pensamento estratégico. Precisa ser suficientemente complexo para entender os diversos ângulos da formação do país e do mundo; e suficientemente simples e objetivo para conquistar adesões. Esse tipo de pensamento tem que levar em consideração aspectos econômicos, ge-opolíticos, diplomáticos, antropológicos.

Numa segunda camada entra o desafio político, a maneira de juntar forças em tor-no das idéias traçadas, de tal maneira que se consiga romper a inércia secular bra-sileira, na qual a política tem sido a arte de administrar pressões –e quem pressio-na são os poderes existentes, o velho, quase sempre em detrimento do novo, o que ainda está por nascer.

Finalmente, em um terceiro nível entram os conhecimentos setoriais, a maneira de adaptar a política científico-tecnológica, a regulação micro-econômica, a política in-dustrial e as políticas macro-econômicas.

Vamos tentar sintetizar um pouco o conjunto de idéias que estão começando a to-mar corpo para permitir a virada do jogo num ponto qualquer do futuro.

O neo-desenvolvimentismo em gestação

O novo pensamento estratégico brasileiro em gestação poderia ser chamado de neo-desenvolvimentismo. De certo modo é uma soma dos estudos sobre a integra-ção competitiva, desenvolvidos em meados dos anos 80 no âmbito do BNDES (Ban-co Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social); da visão estratégica da Esco-

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la Superior de Guerra, re-elaborada nos anos 90; e da nova postura do Itamaraty, plasmada a partir da segunda metade dos anos 90 e aprofundada nos últimos 18 meses e da visão de mercado consolidada nos anos 90.

Na economia, segue o pensamento do alemão Friedrick List e do norte-americano Hamilton que no século 19 estudaram profundamente as raízes do desenvolvimen-to. List cunhou a expressão “chutando a escada”, em que demonstrava que os paí-ses hegemônicos desenvolviam determinadas práticas para conquistar o centro. Depois, “chutavam a escada”, demonizando as mesmas práticas que adotaram para impedir que outros países viessem ameaçar sua hegemonia. Isso se dava através do predomínio cultural, da atração de cérebros dos países colonizados e do seu convencimento sobre as “boas práticas” que deveriam adotar (não é coincidência qualquer semelhança com a “lição de casa” ou “em todo lugar é assim”, praticados por nossos cabeças de planilha).

As relações de dominação se estabelecem na relação centro-periferia. E o palco do embate é o controle do comércio. Centro é centro porque está no centro das rela-ções comerciais.

Os EUA eram periféricos no século 19. Sua estratégia para enfrentar o predomínio inglês no Atlântico consistia em integrar as rotas continentais dos dois oceanos. Não deu certo a primeira experiência de integração, com navios a vapor. Acertaram com as ferrovias transcontinentais e entraram no centro das relações comerciais.

O neo-desenvolvimentismo em marcha não é a favor do fechamento da economia, é do aumento das exportações. Contra o conceito de globalização (entendido como integração dos mercados financeiros) contrapõe o da mundialização (a integração comercial e diplomática do país no jogo mundial). Não é a favor do protecionismo dos anos 80, nem no neoliberalismo dos anos 90, mas julga que a competição deve ser um meio de impedir o acomodamento. E que o Estado tem que ser um agente ativo da promoção das empresas brasileiras.

Aposta na criação de grandes empresas nacionais e na integração com a América do Sul. É contra a especulação financeira, mas não contra os bancos. Acha que é fundamental mecanismos que canalizem para investimentos produtivos a enorme acumulação financeira dos bancos nos últimos dez anos.

A era Vargas e a perda de rumo

O ciclo em que se encontra o Brasil de hoje guarda enorme semelhança com os a-nos 20 do século passado. Desde o Império o país se dividiu em dois setores: com acesso ao mercado internacional e aqueles ligados ao mercado interno. Os primei-ros sempre ganharam com a arbitragem de taxas: captavam dólares (ou libras) e aplicavam internamente, ou em taxas elevadas ou em ativos baratos. O crédito sempre foi elemento essencial nesse jogo imobilizador. A chave do crescimento consistia em mudanças que carreassem o capital especulativo para o setor produti-vo.

No Império a resistência à democratização do crédito e à redução dos juros vinha dos escravagistas que detinham o monopólio do acesso ao mercado financeiro in-ternacional.

O café criou uma nova classe com acesso à moeda externa. Muda-se o modelo e, sem projeto de país, faz-se a República e instaura-se a hiperinflação. Os políticos e os rentistas se valem de “financistas” –economistas formados fora do país que ti-nham a “lição de casa”, que consistia meramente em equilibrar o orçamento, não importando de que modo. Não se cortam favores de aliados, mas se corta na saú-de; evita-se mexer nos interesses dos credores externos, porque não interessava à nova classe, mas se corta na educação; não se avança sobre o empreguismo na área pública, mas se corta em infra-estrutura. E não se cuida de dirigir o lucro dos cafeicultores para a atividade produtiva.

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Essa inércia explode nos anos 20 com o movimento tenentista, que precede e en-gendra o nascimento da era Vargas --que vai de 1930, quando Getúlio Vargas toma o poder, até 1980.

Ela foi montada sobre um tripé: a industrialização, a urbanização e a integração territorial. Cada vez que uma dessas pernas estivesse ameaçada, o Estado se faria presente. Cria-se o código de águas dando poder de regulação ao Estado e ocorre a substituição de importações. O dinheiro acumulado pelo café deixa de ser rentista para virar capital industrial. E o país cresce como nunca cresceu.

Em 1980 o país dispunha de uma indústria de base e de equipamentos pujante e sedenta por projetos, mérito de Geisel. Mas tinha pela frente uma crise externa de proporções gigantescas, culpa de Geisel. E um estado descomunal, obra de Geisel. O grande salto consistiria na privatização organizada e em investimentos em infra-estrutura que consolidariam a indústria. Toda a energia do período foi imobilizada pela crise da dívida, pela agonia do regime militar e pelo despreparo de sucessivos governos.

O país se industrializou, mas não virou sociedade industrial --aquela na qual todas as pessoas participam do usufruto dos bens da indústria. A cidade tem que ser o locus do trabalho e do bem estar. Se não é, é porque o país não urbanizou. A inte-gração se limitou a aproximação com o sul do continente e a África –muito mais pelas vantagens logísticas.

Nos anos 80 moldou-se a nova classe que, com o Real, passa a viver da arbitragem entre dólar e real –com a mesma resistência a mudança dos escravagistas e cafei-cultores. Segue- o grande vazio similar ao das duas primeiras décadas do século. Agora, retoma-se leito do rio em outras bases.

O povo brasileiro

Mais visionário dos brasileiros do seu tempo, estudioso que primeiro e melhor in-terpretou o enigma brasileiro do século 20, Manuel Bonfim foi o primeiro a destruir as teorias raciais –segundo as quais o Brasil não se completava porque a mistura produzira uma raça inferior.

No clássico “América Latina, Males de Origem”, identifica as grandes forças e pro-cessos que marcariam a glória e a desgraça brasileira no século 20. O maior ativo que o país dispunha era a qualidade do seu povo, concluía ele. A mistura de raças gerara um povo afável, criativo, que facilmente assimilava os de fora, que amalga-mara um conjunto de características que garantira a integridade do território nacio-nal.

Enquanto o povo fizera a Abolição, a elite promovera a Guerra do Paraguai. Os líri-cos cantavam os valores nacionais, a elite saqueava o Tesouro. Bonfim apenas ti-nha dúvidas se era o momento de se escancarar o país à imigração. Queria que a idéia de povo brasileiro estivesse mais consolidada, para o país assimilar os imi-grantes sem o risco de se criar guetos raciais.

O povo ainda era melhor do que supunha Bonfim. No decorrer do século 20, levas de imigrantes de todas as raças aportaram ao país e se tornaram brasileiros desde o embarque. Assimilara, enriqueceram e civilizaram a mistura racial brasileira.

Em pleno século 21, na era da globalização, o povo brasileiro emerge como o gran-de ator internacional de que o país dispõe. Analistas internacionais, sociólogos bra-sileiros como Roberto da Matta, aprofundaram estudos sobre essa característica de mediação que faz do povo brasileiro único no mundo, sem conflitos raciais, sem preconceitos, sem racismo –apesar da decisão racista de se criar as cotas universi-tárias.

Quando completar a internacionalização das economias, o brasileiro será o povo mediador por excelência. O que significará isso na prática?

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No campo diplomático, suas características –de alegria, simplicidade, espontanei-dade—deverão alavancar o mais integrador e democrático estilo diplomático que o mundo já presenciou. O jogo de futebol no Haiti é um marco dessa nova etapa, dando cor, vida, visibilidade ao papel de mediação que historicamente o Itamaraty desempenhou no mundo.

No campo da diplomacia comercial, as grandes empresas brasileiras deverão se va-ler desses valores culturais, e da enorme variedade de comunidades de imigrantes que vivem no país para abrir mercados e países para seus produtos.

Na economia, a palavra de ordem será a cooperação, o grande movimento sinérgi-co entre grandes e pequenos, estado, universidade, entidades empresariais, tercei-ro setor, às vezes caótico, sempre estimulante, inspirado nas grandes festas nacio-nais e nos grandes espetáculos esportivos. Aí se em um dos pilares em torno do qual se irão construir as novas relações sociais e econômicas no país. O povo será protagonista principal de qualquer novo projeto nacional que se pretenda legítimo. E não se trata mais da velha retórica para ganhar votos. A promoção do povo é im-perativo de ordem política e econômica.

A diplomacia brasileira

O neo-desenvolvimentismo brasileiro tem forte componente diplomático e geopolíti-co. Na verdade, o pensamento estratégico no Brasil vem evoluindo desde o Impé-rio. Na época, a consolidação do país estava centrada no Prata. Até a Revolução de 30, na América do Sul.

A grande transformação começa a ocorrer agora, com os primeiros ensaios do go-verno Fernando Henrique Cardoso, aprofundados no governo Lula, de uma atuação diplomática centrada no mundo.

Para consolidar seu papel de interlocutor global, o grande desafio geopolítico brasi-leiro é a integração da América do Sul, transformando a região em um mega-país, nos moldes da União Européia.

Será a maneira de ganhar escala, conseguir unir o Atlântico ao Pacífico e se inserir no comércio internacional com vantagens comparativas consistentes. De certo mo-do, repetindo a saga americana do século 19.

As negociações comerciais em torno do Mercosul estarão sempre sujeitas a fricções. A integração física, não.

A América do Sul tem sete espaços de tráfego consistente, ambientes capazes de gerar negócios e dinamismo:

1) O litoral Atlântico,

2) O Planalto brasileiro,

3) a bacia do Prata,

4) a bacia Amazônica,

5) o litoral do Pacífico,

6) a Cordilheira dos Andes e

7) o Orenoco-Caribe. Mas a Amazônia só se transformará em um centro onde se articulam ações de produção se se integrar com seus vizinhos do continente.

O desafio estratégico consiste na montagem da estrutura para unir esses espaços por redes de energia elétrica, logística de acesso e comunicação. 2/3 da América do Sul não são dotadas das três coisas. Unido, o continente sul-americano seria auto-suficiente em quase todas as matérias primas essenciais.

O movimento de integração começou imperceptivelmente há alguns anos, quando Ministros do Planejamento do Mercosul começaram a se reunir para pensar na inte-

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gração física do continente. Depois, a idéia evoluiu quando se percebeu que o BN-DES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) poderia se associar ao CAF (Cooperação Andina de Fomento), ganhando escala e capacidade de capta-ção.

Está na agenda a reestruturação da ALIDE (Associação Latino-americana das Insti-tuições de Fomento Econômico) para que trabalhem em conjunto, em co-financiamento das obras de infra-estrutura necessárias. Juntará BNDES, BNB, BASA e BDMG, do Brasil, bancos de desenvolvimento da Argentina, Chile, entre outros.

O Convênio de Crédito Recíproco (CCR) é visto como a grande ferramenta de inte-gração comercial -- uma espécie de câmara de compensação, permitindo aos países da região negociarem com suas próprias moedas. Quando o dólar deixar de arbitrar as negociações comerciais, haverá enorme avanço no comércio da América do Sul.

Um dos grandes desafios será sustentar o conceito de grande empresa nacional ou latino-americana em um contexto de globalização.

O papel da grande empresa

Vocação de estadista, apaixonado pela América Latina, herdeiro do mais importante sobrenome da história do moderno capitalismo norte-americano, Nelson Rockefeller via apenas uma saída para o continente: criar uma classe média esclarecida. Sem-pre alimentou dúvidas fundadas sobre a capacidade da elite do continente em co-mandar processos de modernização.

A industrialização brasileira da era Vargas foi fincada na criação de grandes grupos nacionais orbitando em torno do Estado. Nos anos 80, esses grupos foram benefici-ários e estimuladores do fechamento da economia, que drenou a competitividade brasileira.

Com as possibilidades abertas pela privatização, Fernando Henrique Cardoso reci-clou, e entregou a liderança do processo a uma nova classe, dos rentistas, forma-dos nos anos 80 em cima dos lucros proporcionados pelo mercado financeiro. Era um pessoal internacionalizado, sem os ranços que caracterizava a velha FIESP dos anos 80. Apoderando-se do poder, foram beneficiários e estimuladores da abertura financeira que esmagou a competitividade interna.

O novo pacto do desenvolvimento brasileiro não pode se escudar apenas na grande empresa.

Há empresas que surgiram ou cresceram no período, ganhando a vocação da inter-nacionalização. Mas a Ambev foi absorvida pela Interbrew, CSN quase absorvida pela Corus. Dentro de algum tempo, provavelmente a base de operação da Gerdau, da Vale e outras mais será algum país central. Poderão continuar sob controle de brasileiros, mas a lógica será cada vez mais internacional.

Uma das maneiras de manter seu caráter nacional será torná-las aliadas e atores da diplomacia empresarial –a conjugação dos seus interesses com os interesses di-plomáticos e econômicos do país.

Mesmo assim, elas não poderão se constituir na âncora do desenvolvimento, como foi no período anterior, mesmo porque o modelo varguista, se criou grandes grupos nacionais, não logrou criar uma economia intrinsecamente competitiva. Em parte porque o processo foi interrompido, em parte porque o modelo não previa a irradia-ção da modernização para fora das grandes empresas.

No novo quadro que se desenha, o papel da grande empresa terá que ser mais am-plo. O país será competitivo dependendo de sua competitividade sistêmica. E ela depende da expansão da educação, gestão e inovação para o conjunto da socieda-de. Quando se analisam os modelos italiano, chinês e coreano, se percebe que o processo de desenvolvimento exige que a inovação transborde das universidades e

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das grandes empresas para pequenas e micro empresas, para arranjos produtivos, para pequenas empresas de base tecnológica.

Caberá tanto às grandes empresas nacionais como às filiais de multinacionais se-rem agentes de disseminação de conhecimento para seu universo de fornecedores, no seu entorno, entre sua clientela. E também se constituir em pontas de lança da colocação da produção da pequena e média empresa no exterior.

Mesmo porque, o grande ativo de que dispõe o país para enfrentar a mundialização chama-se povo brasileiro.

A inovação como paradigma

Os anos 90 consolidaram novos paradigmas na articulação entre universidade, ins-titutos, agências financiadoras e empresas para a busca de inovação. O conceito de inovação ganha força, como complemento indispensável à pesquisa, e define-se com maior clareza o papel de cada agente.

À universidade cabe formar quadros e prospectar as chamadas fronteiras do conhe-cimento. Aos institutos, pesquisar. Às empresas, inovar. Às agências de financia-mento, ser as indutoras para o novo modelo.

Constata-se, pela primeira vez, que a abundante produção de “papers” por parte de pesquisadores brasileiros acabava apropriada por países de cultura mais pragmáti-ca. O pesquisador passa a ser valorizado também por sua capacidade de gerar ino-vação e patente.

A partir dos trabalhos pioneiros da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa) de São Paulo), chega-se ao diagnóstico de que a melhor maneira de criar e disseminar a inovação é através da presença dos pesquisadores nas empresas.

Começa-se a romper o pesado monopólio das universidades e instituições de pes-quisa sobre os financiamentos públicos para pesquisa e os recursos passam a ser mais focados no cliente: as empresas. Criam-se os fundos setoriais e montam-se organizações incumbidas de promover a difusão do conceito de inovação e o meio campo entre pesquisador e empresa.

Além disso, há o reconhecimento da importância do papel do Estado no financia-mento da inovação, com recursos a fundo perdido, com financiamento e com seu poder de compra.

Está-se falando de sementes plantadas nos últimos anos, de diagnósticos duramen-te maturados, em um longo e penoso debate nacional. Entre o diagnóstico e o re-sultado, tem a construção.

O novo modelo de ciência e tecnologia, montado no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, quase foi destruído na gestão Roberto Amaral. Agora, começa a reconstrução. A Lei de Inovação está no Congresso, depois de uma ampla discussão que permitiu a inclusão de dois conceitos relevantes: o uso do poder de compra do Estado, e o acesso de empresas a bolsas de pesquisa, para a contratação de pes-quisadores.

Há uma tecnologia que pode ser produzida de forma descentralizada, como as fer-ramentas de software. Mas há uma tecnologia que demanda investimentos pesa-dos.

Para ir à frente, existem dois pilares a serem construídos. O primeiro, a mobilização de recursos públicos para financiamento e investimento. Essa perna está comple-tamente paralisada pela obsessão em manter déficits públicos elevados. Fundos se-toriais estão sendo contingenciados, assim como recursos para infra-estrutura e outras áreas cruciais.

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O pensamento cabeça-de-planilha está tentando dinamitar essas pontes acabando com toda a vinculação orçamentária. Não irá conseguir. Mas vem conseguindo há anos interromper todo o fluxo de recursos para áreas fundamentais.

O segundo pilar é a existência de empresas brasileiras com fôlego para bancar o desenvolvimento. O país consegue inovar, e bem, em siderurgia, petroquímica, ce-lulose e no agro-negócios. Mas quem vai bancar o desenvolvimento em janelas de oportunidades que se abrem, como os fármacos provenientes da biodiversidade brasileira, ou a nanotecnologia?

Sobre isso iremos falar mais à frente.

Pesquisa e desenvolvimento

Hoje em dia a área farmacêutica está na fronteira do conhecimento. E, dentro de uma visão estratégica de longo prazo, abre-se enorme janela de oportunidade para o Brasil.

Nos anos 90, a indústria farmacêutica mundial investiu na química combinatória (infinitas combinações em cima de uma molécula). Nos últimos dez anos foram gastos US$ 880 milhões para um único produto que deu certo. No ano passado, não se obteve um resultado concreto sequer.

Esse método passou a ser questionado em favor da biodiversidade, o tipo de pes-quisa em que a natureza faz a seleção inicial da molécula. E aí entram vantagens comparativas relevantes do Brasil.

Tem-se a biodiversidade brasileira. Na Universidade, existe uma pesquisa feita diu-turnamente em laboratórios de nível internacional. Já existe um Sistema Nacional de Inovação, um excelente sistema de pós-graduação em quase todas as áreas es-tratégicas.

Nos últimos dez anos, só a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) investiu R $ 400 milhões, e formou 1.400 doutores nas áreas biomédica e biológica.

Existem dois problemas centrais a serem superados. O primeiro, de ordem cultural. Nos países avançados, a geração de conhecimento é universal; a aplicação é nacio-nal. O Brasil ainda não saiu da primeira fase, de sair distribuindo conhecimento co-mo se fosse o primo rico do mundo.

Baseada na experiência norte-americana, a Fapesp criou o modelo CEPID (Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão), para fazer o meio campo entre o pesquisador e a empresa. Foram analisadas 120 propostas de criação de CPIDS setoriais e aprova-das 20. Cabe a cada CEPID prospectar pesquisas, obter financiamento junto à pró-pria Fapesp, orientar o pesquisador, inclusive no campo jurídico e contratual, colo-ca-lo em contato com empresas interessadas no desenvolvimento.

O segundo desafio é como criar a grande empresa nacional nessas áreas de ponta. Recentemente o CAT (Centro de Toxinologia Aplicada), um dos CEPIDs, conseguiu juntar três empresas brasileiras -- Biolab, Biossintética e União Química—no con-sórcio Coinfar. Pelo modelo, as empresas ficam com 40% da titularidade da paten-te, o pesquisador líder com outros 10% e a Fapesp com 50%. Já foram depositadas 6 patentes, e mais 3 já inscritas para serem depositadas.

Existe o risco de não dar em nada, mas existe a possibilidade de se tornar um pro-duto farmacêutico internacional. A dificuldade é a falta de empresas brasileiras de fôlego. O próprio BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) está tentando induzir a uma fusão entre essas empresas para ganhar massa crítica. Mesmo assim, o setor tem poucas empresas, que acabaram se acomodando na rota de menor risco dos genéricos.

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O desafio consiste em juntar elementos, induzir a entrada de novos investidores, e prospectar parceiros internacionais, especialmente empresas de grandes países-baleia, como China, Índia e Rússia ou empresas médias dos países centrais.

De qualquer modo, as peças do jogo estão à mão. Só falta começar a jogar.

O INPI e as patentes

Dos anos 60 para cá, o país implementou eficiente política de formação de mestres e doutores. Ë enorme a quantidade de PhDs e de pesquisas produzidas. Falta trans-forma-las em riqueza. Entre a pesquisa e o produto, há um tripé essencial: a pa-tente, a metrologia (definindo normas e padrões) e o financiamento.

Montar um modelo azeitado nessa área é ponto essencial para se começar a pensar na inserção do país na tecnologia de ponta.

E aí aparecem os gargalos. Comecemos pela patente. O órgão de registros de mar-cas e patentes do país é o INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial). Foi criado em 1970, como autarquia. Hoje é ligado ao MDIC (Ministério de Desenvolvi-mento, Indústria e Comércio).

Em 1996 o Brasil aderiu ao acordo internacional de patentes, o TRIPs (Treaty on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights). Em função dele, foi publica-da lei que estabelece que o INPI deveria ter autonomia para contratar e pagar seus funcionários com recursos da própria autarquia. O superávit primário não deixa. Hoje em dia o pesquisador ou empresa entra com pedido de patente ou registro de marca, paga antecipadamente e tem que esperar até seis a sete anos para obtê-la.

Em 1994, o INPI recebia entre 45 e 55 mil pedidos de marca e 10 mil de patentes por ano. Tinha cerca de 80 examinadores de marca e 130 de patentes que não da-vam conta do recado. Em 2000, o número de examinadores de marcas caiu para 42, e o número de marcas a serem examinadas explodiu para 110 mil. O número de examinadores de patentes caiu para 88, o número de pedidos subiu para 23 mil. O USPTO (o INPI dos EUA) tem 11mil funcionários.

Desde a sua fundação, em 1970, o INPI realizou apenas três concursos públicos. Os funcionários contratados saem ou por motivo de morte ou para não morrerem de fome. Para um cargo que exige, no mínimo, mestrado, o salário é de R$ 2 mil. No final de 2003, o INPI fechou três delegacias regionais, de Santa Catarina, Bahia e Pernambuco. Restaram apenas 6.

Ao assumir o cargo, o Ministro Luiz Furlan autorizou o órgão a contratar mais 108 novos servidores, dos quais 32 examinadores de patentes e 16 de marcas. E con-cordou com a contratação de mais 450 servidores nos próximos 2 anos. Também está sendo fechado acordo com o Escritório Europeu de Patentes, para acessar seu sistema de busca de patentes, um banco de dados com mais de 100 milhões de do-cumentos.

Mas é pouco. Recentemente foi indicado para o cargo o diplomata Roberto Jaguari-be, conceituado, é fato, mas dividindo as atribuições com as de Secretaria de Tec-nologia Industrial do MDIC.

O INPI exige dedicação integral, valorização do corpo de funcionários, garantia de continuidade administrativa. Nos primeiros 14 anos de vida, o INPI teve 4 presiden-tes. Nos últimos 20 anos, teve 14 presidentes.

Além da agilidade maior interna, há outros desafios fundamentais para a produção de tecnologia. Um deles, o custo da patente internacional, que pode chegar a US$ 100 mil. O outro, a falta de empresas brasileiras que possam bancar o desenvolvi-mento de produtos de ponta. Sobre isso, falo amanhã.

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O ativo social do SUS

A nova visão de país que se pretende, cuja construção se iniciará nos próximos a-nos para vigorar pelo próximo século, pressupõe o exercício permanente da solida-riedade. Há consenso, à direita e à esquerda, que a inclusão social permite não a-penas criar uma sociedade mais justa, como incrementar o capital social e, com e-feito dinamizador sobre outros setores da sociedade.

E, aí, o grande ativo de que o país dispõe é o Sistema Único de Saúde (SUS), au-têntica obra coletiva, que surgiu dos estudos de sanitaristas nos anos 60.

Desde 1990 o SUS vem sendo socialmente construído em um movimento incremen-tal lento. Primeiro, começou-se a transferir recursos para estados e municípios. De-pois, se criaram as condições para uma gestão tripartite, de municípios, estados e União. Com o fim do INAMPS, consolidou-se o federalismo, através da instituição da “gestão plena”, dando aos municípios habilitados a condição de gerirem suas ver-bas, sob supervisão do Ministério da Saúde.

No entanto, a crise fiscal do Estado acabou gerando dois SUS, como lembra o mé-dico mineiro Eugênio Villaça Mendes, principal especialista do setor. O constitucio-nal propõe a universalização do sistema. O real subdividiu o sistema em três: o pú-blico, destinado a 140 milhões de brasileiros, o Sistema de Atenção Médica Suple-mentar, de planos de saúde, destinado a 38 milhões de brasileiros, e o Sistema de Desembolso Direto, ao qual recorrem os brasileiros, ricos e pobres, para a compra direta de serviços.

Ao se segregar os pobres no SUS, colocou-se o modelo em xeque. Com a desorga-nização social e baixa vocalização política de seus usuários, o sistema público ten-de, sempre, a ser sub-financiado e a ofertar serviços de menor qualidade.

O gasto sanitário total per capita do Brasil, em 2001, foi de US$ 222, contra US$ 603 do Uruguai e US$ 679 da Argentina. Em 2001, o gasto sanitário público do Brasil em relação ao gasto sanitário total foi de 41,6%. As evidências internacionais mostram que, nos sistemas públicos universais, essa relação deve ser superior a 70%., diz Villaça.

É pouco dinheiro e mal gasto. Se bem gasto, continuaria pouco. Em vez de se de-fender dinheiro bem gasto e suficiente, propõe-se a eficiência como álibi para redu-zir recursos.

Três movimentos conspiram para destruir o SUS. O primeiro, foi ter jogado nas costas das seguradoras atender inclusive a população de baixa renda. Segregou-se o cliente do SUS, desviou-se o foco das críticas e jogou-se o modelo da universali-zação no limbo. Há uma (justa) chiadeira nacional contra reajustes de seguradoras, mas quase nenhuma reação em relação ao desmonte do SUS.

Agora, se cria a Farmácia Popular, que rompe com um dos principais paradigmas do SUS –a oferta remédio gratuito à população atendida. Finalmente, há as tentativas de desvinculação orçamentária, que terminariam por destruir o modelo de rede so-cial, dentro do álibi da “focalização”.

O SUS é fundamental para o desenho do novo país. Mas sua manutenção passa pe-lo modelo monetário e fiscal. E aí se começa a entrar no fulcro da questão, tema das próximas colunas.

O novo planejamento

É interessante acompanhar os primeiros ensaios no Núcleo de Assuntos Estratégi-cos da Presidência da República, especialmente a metodologia de planejamento que está sendo desenvolvida pelo coronel Oliva e que consta do documento “A Me-todologia da Gestão Estratégica do NAE”.

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Antes dele, recorreu-se ao setor privado, à indefectível Booz Allen --que já havia registrado rotundo fracasso quando contratada para tocar parte do projeto "Brasil em Ação", no primeiro governo FHC, e a reorganização do Departamento de Pro-moção Comercial do Itamaraty. O conhecimento interno no país, na atualidade, es-tá muito à frente desse tipo de consultoria fast-food, que se limita a trazer manuais desenvolvidos para situações e circunstâncias diferentes, sem capacidade de adap-tá-los a novas situações. Vendem (e caro) grife, não resultados.

A metodologia desenvolvida pelo coronel Oswaldo Oliva Neto, está em linha com tentativas de ponta desenvolvidas em poucas empresas mundiais: a substituição do planejamento estático, que trabalha com a visão de “projeto” e de orçamento com metas rígidas, pela noção de processo. No modelo estático, não são levados em conta a instabilidade do ambiente e o dinamismo da construção do futuro.

O caminho consiste em substituir o conceito de projeto pelo de processo, e o de planejamento pelo de gestão. A partir daí, emergem novos valores: a visão global; a pró-atividade e o foco participativo; o incentivo à criatividade; o permanente con-trole do processo; o foco organizacional; a ênfase em alianças; a responsabilidade social; e a aprendizagem contínua.

Dados esses fundamentos, está se desenhando a nova metodologia, que consiste em:

identificação da realidade presente;

conhecimento dos fatores históricos (ações e agentes), com a finalidade de se com-preender a dinâmica do passado, que conduziu a sua conformação na atualidade;

antevisão dos possíveis cenários futuros e suas implicações na definição e conquista dos objetivos estratégicos identificados;

elaboração de todas as soluções estratégicas possíveis de conquistar os objetivos identificados nos cenários prospectivos;

utilização dos fundamentos da estratégia para selecionar a solução estratégica mais adequada para a conquista destes objetivos;

construção das “curvas de futuro” que apontam todos os parâmetros necessários à conquista dos objetivos estratégicos;

permanente interação corretiva entre o plano teórico e a realidade, para adaptar a construção das curvas de futuro à realidade, sem perder o foco no objetivo;

aplicação do poder disponível (vontade e meios), no local, na forma e no momento certo, para contribuir, no presente, com a construção do futuro e garantir a con-quista dos objetivos estratégicos pretendidos.

Por enquanto o NAE é um ensaio, que poderá ou não trazer resultados se conseguir fugir da sina de dispersão que tem caracterizado as tentativas de implantação de ferramentas de gestão do atual governo. Mas os conceitos em jogo merecem ser analisados.

A integração continental

Principal responsável pela Agenda de Desenvolvimento da União Européia, a portu-guesa Maria João apresentou uma síntese brilhante de sua estratégia na reunião de ontem do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES)

O primeiro passo consiste em superar as dicotomias que costumam aprisionar as discussões nacionais. Como a dicotomia entre econômico e social, entre produtivi-dade e emprego, entre política macroeconômica e desenvolvimento, entre fecha-mento e globalização.

A implantação da Agenda européia passou por cinco fases:

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Momento 1: definição da estratégia, o big bang, que significa harmonizar o conhe-cimento existente, identificar os atores relevantes que tenham algo a dizer e expe-riência a transmitir.

A questão chave é definir apenas um objetivo estratégico, para evitar dispersão.

No caso da Agenda da Lisboa, o objetivo definido foi o de criar uma trajetória de desenvolvimento sustentável, criando mais e melhores empregos, reduzindo a de-sigualdade social com base em uma economia competitiva fundada na geração do conhecimento.

Para se atingir o objetivo proposto, definiu-se uma lista restrita de prioridades. Tem que ser quatro, cinco prioridades no máximo, ensina Maria João.

Foco no emprego. Mais e melhores empregos, explorando novas áreas de criação de emprego com criatividade e inovação.

Novas políticas de inclusão social, mais voltadas para equipar pessoas para se tornarem ativas e de promoverem socialmente do que seguindo a lógica compensa-tória.

Construção de novos fatores competitivos, mais baseados na qualidade, na inovação, através de um sistema nacional de inovação.

Definição de uma política macroeconômica que possibilite melhor articulação com crescimento na base de uma reforma do sistema financeiro.

Repensar a política de inclusão competitiva na economia internacional.

Momento 2 -- consagração pública da estratégia. Os governos nacionais precisam apresentar o máximo de capacidade política e de mobilização da sociedade civil.

Momento 3 – transformação dos princípios em agenda, através do desdobramento em planos para políticas setoriais. No caso do pacto europeu, foram definidas políti-cas para onze setores, desde política de emprego, reforma da Previdência Social, tecnologia etc..

Simultaneamente foram identificadas medidas concretas e indicadores de acompa-nhamento, como indicadores de progressão do desenvolvimento: de emprego, de qualificação, de nível de proteção social, de redução da pobreza etc.

Momento 4: a implementação da política. A grande preocupação é a adaptação da política a cada região e local, com envolvimento dos atores mais relevantes.

Há uma especial atenção para o desenvolvimento regional, sem a visão compensa-tória. Cada região tem que traduzir para ela a estratégia que o país adotou para si.

Momento 5: o monitoramento, verificar constantemente o que está acontecendo, corrigindo a trajetória, aprendendo uns com os outros, de forma que os casos de sucesso se difundam rapidamente.

O papel de um organismo tipo CDES seria a capacidade de sentir a pulsação da so-ciedade civil, ajudando na implementação da estratégia de forma adaptada a cada região.

O interesse nacional

Nas próximas semanas haverá um encontro em Brasília de estudantes de Relações Internacionais. Nele, cada faculdade representará um país, entenderá quais seus interesses e os defenderá em um fórum de negociações. Utilizarão as táticas que elas utilizam, montarão acordos das quais eles se valem.

Chamo a atenção para esse evento porque representa a consolidação de um conhe-cimento fundamental: o de que as grandes potências são grandes porque aprende-ram desde crianças a incluir a defesa dos interesses nacionais em todos seus atos externos e internos --que pode ser uma norma de comércio da Organização Mundial

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do Comércio (OMC) ou uma recomendação do FMI. Algumas são boas, algumas são ruins, nenhuma é desinteressada.

Pode ser uma estratégia positiva, de criar mercados de consumo nos países emer-gentes, consolidar a democracia, criar ambientes econômicos modernos. Pode ser uma agenda negativa, de impedir o desenvolvimento de tecnologias concorrentes, atrapalhar o desenvolvimento bélico; impedir alianças comerciais que fortaleça a autonomia dos emergentes.

O grande problema tanto do nacionalismo quanto do internacionalismo dos anos 50 era a indiferenciação de atores e ações. Colocavam-se no mesmo balaio as iniciati-vas de Nelson Rockefeller de introduzir a pesquisa agrícola em países tropicais e as conspirações de Lincoln Gordon em 1964.

Ambas as posições --dos nacionalistas e internacionalistas-- refletiam a baixa auto-estima nacional, a falta de informação e, por conseqüência, de fé na própria capa-cidade do país de identificar oportunidades e armadilhas, para lograr negociações soberanas.

Nos anos 90, era sinal de "modernidade" repetir clichês como "fazer a lição de ca-sa", defender que cortar verbas de saúde e educação são pré-condição para o cres-cimento, e supor que a internacionalização da economia significaria o fim do concei-to de interesse nacional –uma visão tão enganadora quanto a de supor que faz par-te das virtudes de Estado massacrar pobres e excluídos para reservar recursos para a banca.

A idéia da disfuncionalidade Estado-nação está desmoralizada. Dois domingos a-trás, o próprio Francis Fukuayama, o grande ideólogo da teoria do "fim da história", no artigo em que discute o livro "Multidão" de Negri/Hardt (caderno "Mais"), diz que "a falta de poder e a pobreza no mundo atual não se devem ao excesso de poder dos Estados-nação, mas à sua fraqueza. A solução não é minar a soberania, mas construir Estados mais fortes no mundo em desenvolvimento".

Para que esse Estado cumpra suas funções, no entanto, são fundamentais os prin-cípios da profissionalização e da impessoalidade na definição das políticas públicas.

Este será um dos grandes desafios dos novos tempos que virão. Agora é bobagem se espelhar no passado para decretar a impossibilidade de um modelo eficiente de intervenção. Hoje em dia, existe um grau de consciência inédita no país.

O papel do Estado nacional

Em plena era da globalização, há espaço para o Estado nacional? Em havendo, quais seriam seus limites e potencialidades? Todo grande país conta com um Esta-do forte e atuante. Por isso mesmo é “ciência” cabeça de planilha decretar que, como a intervenção do Estado foi abusiva nos anos 80, toda forma de intervenção do Estado será sempre abusiva. Que mané determinista é este?

Um Estado nacional, e conceitos como o neonacionalismo são relevantes porque a soma da lógica das empresas predominantes, em um determinado momento da história, não corresponde necessariamente à lógica de futuro de país. O Brasil de 2020 só será bem sucedido se abrir espaço para um conjunto de atores que hoje em dia ou são insignificantes politicamente, ou sequer existem. Quem vai defendê-los?

Além disso, nenhuma empresa, por mais poderosa que seja, tem fôlego suficiente para montar formas de auto-defesa contra outros países e/ou empresas estrangei-ras. Quando o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) atuou de forma pró-ativa para impedir a entrada da Bombardier no país, e criou as condições para a Embraer voar, era o Estado nacional atuando em defesa do que se considerou interesse nacional. Foi um esboço da nova forma de atuação do estado.

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Esses conceitos estão magistralmente descritos na obra do autor alemão Friedrich List (1789-1846), “Sistema Nacional de Economia Política” (Coleção Os Pensadores da Abril Cultural, edição de 1983).

List historia o processo de desenvolvimento e decadência de diversas economias. Na década de 1830 já previa que os EUA iriam se tornar a maior potência do mun-do e ironizava a visão de Adam Smith que, algumas décadas antes, baseado na te-oria das vantagens comparativas, garantia que a vocação dos EUA era iminente-mente agrícola.

Anotava que a costa Atlântica tinha se tornado centro manufatureiro. A expansão agrícola se dava em direção ao interior do país. Sem a proteção aos centros manu-fatureiros, teria ocorrido uma dispersão, uma migração de pessoas e talentos para o centro e para a costa do Pacífico, demolindo o potencial de crescimento. Se a in-dústria manufatureira era nascente, como conseguiu impor seus interesses? Por-que, acima deles, pairava o interesse nacional exercido pelo Estado soberano.

O livro de List é fantástico pela capacidade de observação da realidade e por definir claramente os limites da proteção e da atuação do Estado. Há o momento da prote-ção e o momento da competição. Em casos analisados –como Veneza--, o que des-truiu a economia foi excesso de proteção. Em outros –como em Portugal--, o des-regramento moral com o ganho fácil. Em outros, a abertura comercial indiscrimina-da.

Em todos os casos bem sucedidos, o nacionalismo foi ferramenta de coesão, permi-tindo consolidar princípios éticos, liberdade de manifestação e de iniciativa, ética do trabalho e da inovação como valores centrais, e como moderadores de excessos que pudessem vir a ser cometidos pela ação do Estado nacional.

Mas a quem caberá definir os pontos centrais de uma ação de Estado? Voltamos com o tema em outra coluna.

O vôo do falcão

Daqui a algum tempo a opinião pública olhará para trás e se surpreenderá como foi possível uma sobrevida tão longa a um amontoado de clichês tão rasos desses anos 90, a história da “lição de casa”, do superávit primário como fim em si, esse mo-dernoso tão velho e primário quanto a usura. Mas o jogo é esse. O amadurecimento de um país não se dá de forma linear, mas aos trancos e barrancos.

O golpe final simbólico foi dado pela entrevista de Fernando Henrique Cardoso ao “Primeira Leitura” admitindo publicamente o que ele não podia admitir por contin-gência do cargo e da sua responsabilidade sobre a situação: o modelo é insustentá-vel, pela progressão da dívida e pela impossibilidade de crescer. Dado o tiro de lar-gada, o processo de reavaliação do modelo será acelerado. Mas é importante não se repetir simplificações de outros tempos.

Em meio à aridez intelectual da discussão pública dos anos 90, como flores no de-serto consolidaram-se novos princípios e paradigmas relevantes, provenientes dos centros mais diversos de pensamento. A cada novo dia, mais claro ficará que a construção do país dependerá de educação, saúde, inclusão social, inovação, ges-tão, competitividade.

O pessoal da tecnologia desenvolveu conceitos sobre o papel da inovação, o pessoal da qualidade sobre o papel da gestão; as áreas militar e diplomática dinamizaram a visão da geopolítica territorial; a diplomacia avançou no conhecimento dos proces-sos de negociação comercial; economistas mais sofisticados desnudaram as incon-seqüências do atual modelo; a inserção competitiva no mercado internacional tor-nou-se valor maior, assim como conceitos como responsabilidade social.

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Não são idéias do grupo A ou B, mas ativos intelectuais nacionais, consolidados em dez a quinze anos de discussões, avanços e frustrações, em meio ao festival de ir-relevâncias monofásicas que predominou no período.

Há que se discutir, discutir como nunca, para que as diferenças sejam aplainadas, as análises complexas se imponham sobre o pensamento monofásico, e dessa dis-cussão saia um país mais justo, forte e promissor.

Fala-se na criação de um Instituto Celso Furtado, mantido por governos da América do Sul, para retomar as discussões sobre desenvolvimentismo. Do lado não ortodo-xo, há novos centros de discussão econômica sendo montados –como a Escola de Economia da FGV-SP--, centros tradicionais sendo revitalizados –como a Unicamp e a UFRJ. Do lado ortodoxo, a velha FGV está renascendo em instituições como o IB-MEC. Sem o predomínio de seus talibãs, a PUC Rio tem pensadores sofisticados. E há tentativas independentes de ampliar o escopo da discussão.

Idéias mágicas e salvadoras continuarão a ser utilizadas por vendedores de Bíblia. Mas o país não comporta mais vôos de galinha nem de garças. O país tem que ini-ciar o seu vôo do falcão. Se não for com Lula, será com o próximo presidente. Mas é inevitável nossa vocação para ser uma grande nação.

É a política, estúpido

Ficou famosa a frase do assessor de Bill Clinton sobre a campanha eleitoral norte-americana, alertando para o tema que no final prevalece. Vale o inverso para a mudança do modelo econômico e para o novo salto que o país experimentará nas próximas décadas: é a política, estúpido! Sem consenso nacional, batalhado no campo das idéias e dos conceitos, sem a adesão dos diversos setores que compõem a sociedade, não se avançará mais do que guerras retóricas.

Não se está mais no país dos tenentes nem dos generais. Tão pouco no país do po-pulismo ou de outros momentos da história nos quais um grupo detinha uma idéia e a transformava em bandeira salvadora.

Nas últimas semanas, procurei traçar um quadro das potencialidades que o país a-cumulou nessas décadas perdidas, como idéias inovadoras avançaram em várias frentes, a maneira como o país se sofisticou. Falta agora a arrumação política, que é o ponto crucial.

Os diversos centros de pensamento inovador pouco conversam entre si. Grandes corporações, elite acadêmica, APLs, economistas desenvolvimentistas, diplomacia, área militar etc. O estalo de Vieira que precipitará o processo de crescimento se da-rá no momento em que todos se olharem e se verem partes de um mesmo corpo, somando e trocando competências -- aprimoramento da gestão, busca da inovação, investimento em educação e saúde, ousadia diplomática, integração física do conti-nente, parceria com as subsidiárias de multinacionais.

É dessa visão integral de país que emerge o sentimento de nacionalidade capaz de empurrá-lo em direção ao futuro, com todas as peças funcionando simultaneamen-te.

É por isso que o conceito de pacto faz todo o sentido. E pacto implica relações pré-vias civilizadas no campo político. Há valores que não podem ser desrespeitados, menos ainda pelos que são poder, como a impessoalidade no trato da coisa pública, o respeito aos direitos individuais, à liberdade de imprensa.

E há que se cuidar da retórica. Na política, valem os atos e valem as declarações. A guerra das idéias se dá em um círculo restrito de pessoas. Quando as velhas idéias são superadas, gradativamente as novas idéias começam a conquistar círculos mai-ores até se chegar ao último estágio –o dos cultivadores de clichês. Hoje os chama-dos “desenvolvimentistas” no governo são muito mais atacados pelo desperdício da retórica do que pelas idéias.

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Como toda guerra de idéias, as vitoriosas se impõem sobre as moribundas, o que estimula o espírito aguerrido que povoa as grandes discussões públicas. Mas se se perder de vista a idéia do pacto, se se permitir que os embates eleitorais criem um racha, se se passar a sensação de que idéias serão colocadas a serviço de interes-ses partidários ou conspiratórios, será mais uma oportunidade perdida e a reedição das polarizações políticas do passado.

O país já tem as condições para a virada. Mas só conseguirá desatar esse nó górdio o governante que conseguir pairar acima das paixões partidárias.