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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA DO BRASIL
FRANCISCA RAQUEL DA COSTA
ESCRAVIDO E CONFLITOS: COTIDIANO, RESISTNCIA E CONTROLE DE
ESCRAVOS NO PIAU NA SEGUNDA METADE DO SCULO XIX
TERESINA
2009
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FRANCISCA RAQUEL DA COSTA
ESCRAVIDO E CONFLITOS: COTIDIANO, RESISTNCIA E CONTROLE DE
ESCRAVOS NO PIAU NA SEGUNDA METADE DO SCULO XIX
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria do Brasil da Universidade Federal do Piau como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Histria do Brasil. Orientador: Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima
TERESINA
2009
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FRANCISCA RAQUEL DA COSTA
ESCRAVIDO E CONFLITOS: COTIDIANO, RESISTNCIA E CONTROLE DE
ESCRAVOS NO PIAU NA SEGUNDA METADE DO SCULO XIX
Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Histria do Brasil da Universidade Federal do Piau UFPI como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Histria do Brasil.
Aprovada por:
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________
Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima (orientador)
______________________________________________________
Prof. Dr. Tho Lobarinhas Pieiro
______________________________________________________
Prof. Dr. Joo Renr Ferreira de Carvalho
Teresina, 17 de abril de 2009
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Para Jos Ribamar da Costa, in memoriam, e Rosa Rodrigues da Silva Costa.
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AGRADECIMENTOS
A construo deste trabalho contou com a participao de vrias pessoas e instituies
sem as quais no teramos condies de realiz-lo.
Aos profissionais da instituio na qual estou inserida, pela acolhida do tema e as
contribuies dadas no decorrer da pesquisa. Em especial, ao meu orientador e amigo,
professor Doutor Solimar Oliveira Lima, sem o qual no seria possvel a realizao deste
sonho. Alm da gratido, tenho por ele imensa admirao e sei que posso contar com seu
conhecimento e amizade. Na relao entre orientada e orientador, fortaleceram-se os laos
iniciados ainda na graduao em Histria.
Aos professores do Programa de Ps-graduao em Histria do Brasil da Universidade
Federal do Piau, em especial queles que foram meus professores das disciplinas do
Mestrado: Francisco Alcides do Nascimento, que participou da minha qualificao de
dissertao juntamente com o professor Joo Renr Ferreira de Carvalho, bem como Pedro
Vilarinho Castelo Branco, Edwar de Alencar Castelo Branco, Teresinha Queiroz, Juliana
Lopes Elias.
dona Eliete de Brito Arajo e Floriano, secretria do Mestrado, pela simpatia e
alegria com que sempre me recebeu.
CAPES, cujo apoio institucional possibilitou o desenvolvimento da pesquisa atravs
de uma bolsa de Mestrado, entre o incio de 2007 e o incio de 2009.
Ao meu amigo e companheiro de temtica, Mairton Celestino da Silva, pelas
discusses realizadas, pela leitura que fez de todo este trabalho e pelas sugestes que deu para
seu aperfeioamento. Cabe aqui destacar meu apreo e admirao por seu conhecimento
maduro sobre o tema.
A meus amigos e companheiros de Mestrado, os quais sabem o que significa esta
rdua tarefa. Entre eles, meus irmos de jornada, Jos Maria e Ana Cristina, os quais
estiveram sempre junto a mim, discutindo, compartilhando angstias e trocando experincias,
sempre prontos a me ouvir.
Ao meu grande amigo Benilton Torres de Lacerda.
Aos meus amigos e membros do Ncleo de Estudos sobre Africanidades e
Afrodescendncia, FARAD/UFPI, e membros do grupo de pesquisa Histria e Memria
da Escravido, Juliana Malherme, Luzilene, Ana Patrcia, Waldinar, Ivana, Dbora, Talyta,
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Cladio Melo, professora Ana Beatriz e demais integrantes, com quem durante anos dividi e
troquei experincia sobre a questo do negro no Brasil.
Aos meus amigos de graduao Suzanne, Suzana, Werner e Rosilene, que torceram
sempre por mim. Tambm como agradeo s amizades construdas no decorrer do curso,
Marylu, Elson, Emlia, Luciana, Nilzngela e a todos que, de uma forma ou de outra, sempre
demonstraram interesse em saber o andamento da dissertao e com quem aos poucos estou
construindo laos.
Agradeo de igual forma minha amiga Elenita, pela confiana que depositou em
mim quando precisei de seus livros.
Durante a pesquisa no Arquivo Pblico do Estado do Piau contei com o apoio dos
funcionrios daquela instituio, entre os quais merecem especial ateno: Sebastio Bertolo,
pelo interesse, disposio e carinho com os quais sempre me atendeu. De forma especial,
tambm agradeo funcionria Maria de Jesus.
Agradeo professora Shirley M. Alves, a quem coube a reviso deste trabalho, pelo
profissionalismo e responsabilidade com que tratou a dissertao.
Aos meus familiares, pelo apoio, carinho e incentivo: minha me, Rosa Rodrigues;
minha irm, Rosina; meu irmo, Rangel; minha tia, Rita; minha prima, Maria da Cruz e sua
filha Ana Carolina; minha linda sobrinha a quem amo como se fosse filha, Ana Ceclia, pela
alegria que me d com a pureza de uma criana, sem me cobrar nada em troca. De forma
especial agradeo ao meu querido pai, Jos Ribamar, j falecido, mas que, em vida, me
ofereceu condies de ser o que sou.
Para finalizar, agradeo ao meu companheiro de vida, Jammal Moura Maciel, pela
pacincia de me esperar em todos os momentos nos quais no pude estar junto dele.
Companheiro e amigo, sempre me incentivou a ter coragem e a no sentir medo de seguir em
frente, agradeo pelo amor e carinho que sempre tem me oferecido.
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RESUMO
Na segunda metade do sculo XIX, diversos fatores, internos e externos, contriburam para
que o sistema escravista brasileiro sofresse profundas transformaes, as quais tornam este
perodo diferente dos anos iniciais da escravido no Brasil. A Provncia do Piau, mesmo no
apresentando sua base econmica nas grandes plantaes, tambm apresenta reflexos de tais
transformaes. As mudanas advindas das leis de proibio do trfico (1850), do ventre livre
(1871), dos sexagenrios (1885) provocaram alteraes na relao entre senhores e escravos,
sendo que as atitudes insubordinadas destes contriburam ainda mais para a desestruturao
do sistema, agindo eles como sujeitos histricos. Diante de tais fatos, o presente trabalho
busca analisar o cotidiano das relaes escravistas no Piau na segunda metade do sculo XIX,
verificando como elas eram construdas. Alm disso, tambm nos propomos a apontar as
principais formas de resistncia escrava praticada pelos escravos na Provncia, bem como
analisar o controle elaborado pelos senhores de escravos e pelo Estado diante das atitudes
insubordinadas dos escravos e do contexto estabelecido. Para a construo do trabalho foram
utilizadas fontes documentais e alguns jornais, localizadas no Arquivo Pblico do Estado do
Piau. Entre as fontes documentais, os relatrios de polcia, processos-crime e relatrios de
presidentes de Provncia foram cruciais.
Palavras-chaves: Escravido. Resistncia. Controle social.
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ABSTRACT
In the second half of century XIX, diverse factors, external interns and, had contributed so
that the Brazilian escravista system suffered deep transformations, which return this different
period of the initial years of the slavery in Brazil. The Province of the Piau, exactly not
presenting its economic base in the great plantations, also presents reflexes of such
transformations. The happened changes of the laws of prohibition of the traffic (1850), of the
free womb (1871), of the sexagenarians (1885) had provoked modifications in the relation
between gentlemen and slaves, having been that the insubordinadas attitudes of these had
contributed still more to the desestruturao of the system, acting they as subject descriptions.
Ahead of such facts, the present work searchs to analyze the daily one of the escravistas
relations in the Piau in the second half of century XIX, verifying as they were constructed.
Moreover, also in we propose them to point the main forms of enslaved resistance practiced
by the slaves in the Province, as well as analyzing the elaborated control you of slaves ahead
and for the State of the insubordinadas attitudes of the slaves and the established context. For
the construction of the work documental sources and some newspapers, located in the Public
Archive of the State of the Piau were used. Between the documental sources, the reports of
police, process-crime and reports of presidents of Province were crucial.
Word-keys: Slavery. Resistance. Social control.
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SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................................10 CAPTULO I O COTIDIANO ESCRAVO NA PROVNCIA DO PIAU.....................18
1.1 PERFIL DA POPULAO ESCRAVA NA PROVNCIA DO PIAU............................18 1.2COTIDIANO DO TRABALHO: OCUPAES DOS TRABALHADORES ESCRAVIZADOS NO PIAU..................................................................................................23 1.3 MOMENTOS DE DIVERSO E DESCONTRAO NA VIDA DOS ESCRAVOS.....32 1.4 TENSAS RELAES........................................................................................................39
CAPTULO II A RESISTNCIA ESCRAVA NA PROVNCIA DO PIAU EM MEADOS DO SCULO XIX................................................................................................49 2.1 ESCRAVOS FUJES EM BUSCA DA LIBERDADE NA PROVNCIA DO PIAU........................................................................................................................................49 2.2 HOMICDIOS, TENTATIVAS DE HOMICDIOS E LESES CORPORAIS PRATICADOS POR ESCRAVOS..........................................................................................63 2.3 A ESCRAVA MARIA MOZINHA: ROUBOS E FURTOS PRATICADOS POR ESCRAVOS NA PROVNCIA DO PIAU.............................................................................68 2.4 ETERNA LIBERDADE: SUICDIOS DE ESCRAVOS NA PROVNCIA DO
PIAU........................................................................................................................................79
CAPTULO III CONTROLE, VIGILNCIA E PUNIO DE ESCRAVOS NA PROVNCIA DO PIAU........................................................................................................84 3.1 O CONTROLE DOMSTICO E A VIOLNCIA PRATICADA PELOS SENHORES DE ESCRAVOS..............................................................................................................................84 3.2 CONTROLE ESTATAL E ORDEM SOCIAL: PUNIO DE ESCRAVOS E O APARATO POLICIAL NA PROVNCIA...............................................................................98 3.2.1 O Rol dos Culpados: punio de escravos na Provncia do Piau.............................99 3.2.2 Em nome da ordem: o aparato policial a os escravos no Piau................................107 3.3 ENCARCERADOS: O COTIDIANO DOS ESCRAVOS DENTRO DAS PRISES....116 3.4 OS REDUZIDOS ESCRAVIDO: EXPLORAO DOS TRABALHADORES LIBERTOS .............................................................................................................................129
CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................141
REFERNCIAS....................................................................................................................143
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INTRODUO
A escravido negra no Brasil, iniciada ainda na primeira metade do sculo XVI,
perdurou durante mais de trs sculos. Em nenhum outro pas do Novo Mundo, essa instituio
teve vida to longa. Desde o incio da colonizao, a escravido foi utilizada como principal
fora de trabalho, sendo interrompida apenas no final do sculo XIX.
As discusses historiogrficas acerca da escravido no Brasil sempre foram permeadas
de polmicas e questes controversas. Nessa perspectiva a escravido tem sido um tema
recorrente nas produes acadmicas, o que retrata o vigor do tema e, sobretudo, a necessidade
de se conhecer a formao da sociedade brasileira, ainda mais em regies onde a produo
historiogrfica sobre o tema ainda carente. Nesse sentido, configura-se como objetivo deste
trabalho apresentar traos da sociedade escravista piauiense do sculo XIX, atravs de
elementos como o cotidiano, a resistncia e o controle de escravos no Piau.
Refletir sobre a sociedade escravista piauiense torna necessrio um retorno origem do
debate historiogrfico sobre a temtica no Brasil, na qual figura como primeira experincia a
reflexo sobre um sistema escravista paternalista. Ao construir a tese de uma escravido
branda e benevolente, Gilberto Freyre, nos anos 30, mostrou-se preocupado, como os de sua
poca, com a questo da raa e atento intensa miscigenao sofrida pelo Brasil desde a
colonizao. Dessa forma, buscou explicar o processo escravagista a partir da concepo de
uma sociedade paternalista, na qual as relaes sociais e pessoais ganhavam grande
importncia. Nesse caso, para Freyre, a miscigenao tinha o papel de corrigir a distncia
social existente.
A partir de 1950, comea a se configurar uma nova corrente historiogrfica que iria de
encontro s concepes de Freyre. Denominada de Escola Paulista, estava representada por
Florestan Fernandes, Otvio Ianni, Emlia Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, entre
outros. Influenciados pelo momento histrico no qual viviam e pelos novos enfoques tericos,
os adeptos dessa concepo destacavam o processo de acumulao de capital e a produo
para a exportao com o fim primordial do sistema escravista. Esses estudiosos consideravam
a coero e a represso como formas de controle social do escravo, apontavam a violncia do
sistema e acreditavam na coisificao subjetiva do escravo1.
1 Nesse caso, no sistema escravista, o escravo se auto-representava como no homem diante do sistema escravista.
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O final dos anos 80 trouxe uma nova discusso sobre a sociedade escravista brasileira,
com o debate constituindo-se em torno de duas concepes tericas: consenso/contratualidade
e violncia/coisificao social. A partir de diferentes concepes metodolgicas, a discusso
terica em torno dessa questo tem se revitalizado continuamente.
A concepo consenso/contratualidade tem sua base terica nas idias de E. P.
Thompson e Eugene Genovese2, que repensam o conceito de violncia do sistema escravista,
admitindo a existncia de espao de autonomia para o escravo negociar um cotidiano mais
brando. Nesse caso, o escravo lanava mo de estratgias com o intuito de sobreviver, ora
curvando-se s ordens do senhor, ora a elas resistindo, num processo de resistncia e
acomodao, isto , o escravo resistia, mas, ao mesmo tempo, se acomodava para se ajustar ao
sistema. A escravido apresentaria, portanto, um carter consensual, que nega a coisificao,
sendo negociada pela grande maioria dos cativos.
Para Thompson, a lei implica limitaes ao arbtrio da classe dominante e pode ser
tambm um terreno para a defesa dos interesses dos oprimidos. Genovese aplica tal teoria na
sociedade escravista, afirmando que a lei era encarada como fora ativa, parcialmente
autnoma, a qual mediava os conflitos entre as diversas classes e compelia os dirigentes a se
curvarem s reivindicaes dos dirigidos. Com base nessa viso, muitos autores se apiam na
idia de que a lei podia garantir os direitos dos escravos e senhores, fazendo com que
entrassem em consenso. Reconhecendo as possveis resistncias escravas, os senhores
procuravam um movimento de flexibilidade para melhorar as relaes com seus escravos.
Sendo assim, o Estado e a sociedade, de modo geral, assumiam o papel de vigilantes para
manter o sistema escravista.3
Com relao concepo violncia/coisificao social, sua base terica est centrada
na luta de classes, bem como nos interesses antagnicos presentes na relao senhor - escravo.
O sistema se apoiava na violncia implcita e explcita como forma de dominao e
2 As principais obras utilizadas pelos autores partidrios dessa concepo terica so, respectivamente: THOMPSON, Edward P. Senhores e Caadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988; THOMPSON, Edward P. Costumes em comum. So Paulo: Companhia das Letras, 1999; GENOVESE, Eugene. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 3 Ver, entre outros autores, os seguintes trabalhos: MATTOSO, Ktia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1982. REIS, Joo Jos. Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante dos mals (1835). So Paulo: Brasilense, 1986; LARA, Silvia Hunold. Campos da violncia: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro. 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravido. Os letrados e a sociedade no Brasil colnia. Petrpolis: Vozes, 1986; REIS, Joo Jos; SILVA, Eduardo. Negociao e conflito: a resistncia negra em conflito. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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explorao, sendo que, em contraposio punio privada e pblica, levantava-se um
conjunto de aes por
parte dos trabalhadores escravizados para resistir ao sistema imposto. A fim de atenuar tenses
e conflitos, o Estado e a prpria sociedade se organizavam para minimizar os interesses
antagnicos, lanado mo inclusive de leis que buscavam proteger os diferentes interesses e
garantir a ordem social.4
No que respeita ao debate sobre a escravido no Piau, constata-se que o tema ainda
pouco explorado, sendo que as publicaes especficas sobre o escravismo piauiense escravista
limitam-se s seguintes obras: Escravos do Serto: demografia, trabalho e relaes sociais
(1986), de Miridan Britto Knox Falci; o trabalho de Tnya Maria Pires Brando, O Escravo
na formao social do Piau (1999), e, por ltimo, ao trabalho de Solimar Oliveira Lima,
publicado no ano de 2005, Brao Forte: Trabalho escravo nas fazendas da nao no Piau
(1822-1871). Esses estudos enfocam, principalmente, as fazendas e a pecuria, apresentando
vises diferentes no que diz respeito ao trabalho escravo e s formas de manuteno do
sistema escravista no Piau. Ressalta-se que, apesar da pouca produo sobre a temtica, as
existentes, considerando suas especificidades, contriburam sobremaneira para o debate
historiogrfico sobre o tema.
Embora assegurando a importncia dos trabalhadores escravizados na estrutura
produtiva, as pesquisas indicam certa dualidade no padro escravista. Essa dualidade diz
respeito a uma diferenciao de condies de trabalho e vida entre cativeiro pblico e privado.
Tal concepo pode ser percebida com maior nfase em Miridan Falci (1986) e Tnya Brando
(1999). A obra de Tanya Brando, especificamente em seu ltimo captulo, o qual foi dedicado
anlise da participao escrava na formao do Piau, demonstra que a escravido no Estado
se tornou uma questo mais social do que econmica, pois ter um escravo, de certa forma,
significava ascenso social. Segundo a autora, a prpria natureza da atividade extrativista da
pecuria requeria pouca mo-de-obra e, nesse contexto, caberia aos escravos uma reduzida
participao direta no criatrio, dando-se a sua principal utilizao em trabalhos considerados
mais pesados. Alm disso, a autora aponta ainda uma diferenciao no que respeita ao
tratamento dos trabalhadores nas diferentes propriedades existentes na Provncia, j que, nas
fazendas pblicas, a escravido era mais branda do que nas fazendas privadas.
Segundo Brando, 4 Entre os principais representantes dessa concepo terico-metodolgica e crtica da nova historiografia da escravido, podemos citar Jacob Gorender, que, em sua obra A escravido reabilitada, publicada em So Paulo pela Editora tica, em 1991, discute a nova historiografia da escravido o Brasil, analisando alguns autores e suas respectivas obras.
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Quando se pretende estudar o funcionamento da escravido no Piau, faz-se necessrio observar, em primeiro lugar, que, de acordo com o tipo de proprietrio, existiam pelo menos dois grupos de escravos: um composto de cativos pertencentes coroa e outro que abrangia os de propriedades de articulares. Esse fato provavelmente implicaria na vigncia de pelo menos dois tipos de tratamentos. 5
Para a autora, a escravido era uma exigncia da acumulao capitalista, mas, ao
mesmo tempo, estava diretamente associada a uma conscincia social e a um padro cultural,
entendido como hbitos e aes difundidos pela mentalidade da sociedade piauiense. Brando
no nega a existncia da violncia na relao senhor/escravo, contudo aponta os castigos
corporais apenas como disciplinadores das manifestaes da rebeldia escrava.6
Segundo Miridan Falci, as relaes sociais entre senhores e escravos tiveram vnculos
diferentes do paternalismo difundido largamente nas primeiras produes historiogrficas
sobre a escravido no Piau.7 Para a autora, nos espaos de produo existiam duas formas de
trabalho: o trabalho livre e o escravo, com suas especificidades. Com relao ao trabalho
escravo, a autora se preocupa em decifrar quais os tipos de trabalhos mais pesados e analisa
onde havia maior ou menor explorao do trabalho. A fim de explicar e confirmar tais
hipteses, ela se utiliza da demografia, dividindo o trabalho em sexual e etrio, ou seja, analisa
a idade do trabalhador e seu sexo. Falci conclui que os trabalhadores escravizados se inseriam
desde muito cedo no processo produtivo, com variados tipos de ocupaes, fato que tambm
abordado por Solimar Oliveira Lima. Segundo Falci, existiam profisses especficas de acordo
com o sexo e a idade.
Solimar Oliveira Lima, especificamente no captulo Formas de controle e resistncia
dos trabalhadores escravizados, analisa as atitudes do sistema escravista para manter a
escravido e, em contrapartida, como os escravos reagiram ao sistema. De acordo com esse
historiador, os escravos das fazendas pblicas do Piau tinham, at certo ponto, o direito de
receber uma parte da produo de gado, sistema denominado de quarta, no entanto o
verdadeiro objetivo desse mtodo de partilha era, de forma paternalista, manter o escravo
5 BRANDO, Tanya Maria Pires. O escravo na formao social do Piau. Teresina: EDUFPI, 1999. 6 Ibidem, p. 158. 7 Ver CHAVES, Joaquim. A escravido no Piau. Teresina: Comepi, 1975; NUNES, Odilon. Smula para a histria do Piau. Teresina: Editora Cultural, 1963; NUNES, Odilon. Pesquisas para a histria do Piau. Teresina: Imprensa Oficial, 1996. v. 1, 2, 3 e 4. e PEREIRA DA COSTA, F. A. Cronologia histria do estado do Piau: desde seus tempos primitivos at a Proclamao da Repblica. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
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preso ao sistema. A prpria subjetividade do escravo era o meio utilizado pelos senhores para
control-los.
Na prtica, o sistema tinha mais efeito psicolgico que econmico. A acumulao decorrente da quarta foi insignificante. O gado, no geral, transformou-se em matalotagem para consumo dos trabalhadores e, quando no, foi reincorporado ao patrimnio do senhor. 8
Os escravos no podiam obter mais de quarenta reses e nem mesmo podiam tornar-se
pequenos fazendeiros sem antes adquirir sua alforria. Segundo Lima, esse sistema tambm
teve uma pequena importncia no que diz respeito emancipao de alguns escravos. Com
relao questo da hereditariedade dos bens, os escravos no podiam pass-los sua famlia.
Observa-se que era exatamente essa condio de vida e a explorao exaustiva do
trabalhador escravizado que levavam aos conflitos. O cotidiano das propriedades era marcado
por permanentes tenses, que evoluam quase sempre para conflitos, diante das exigncias de
submisso e da violncia praticada por inspetores e criadores. 9 A principal forma de
imposio de limite explorao estava presente nas denncias e queixas realizadas pelos
escravos, sendo que, muitas vezes, tambm ocorriam reaes diretas contra os abusos dos
senhores.
Por outro, os trabalhadores manifestavam reaes de negao da opresso, como desamor ao trabalho, fugas para propriedades particulares, matas ou cidades e agresses fsicas. Os dois processos de enfrentamento constituam, portanto, um s movimento de resistncia frente dominao, explorao e violncia da instituio servil. 10
Em todo o seu livro, Lima demonstra que a historiografia tem, ao olhar para o Piau,
observado apenas as fazendas, priorizando assim apenas o criatrio, sem atentar para o fato de
que existia uma srie de atividades desenvolvidas por um conjunto de trabalhadores. O autor
discorda da tese da diferenciao das condies de trabalho entre as fazendas pblicas e
privadas e mostra, atravs da pesquisa realizada, o conjunto de tarefas desenvolvidas pelos
8 LIMA, Solimar Oliveira. Brao Forte: trabalho escravo nas fazendas do Piau. 1822-1871. Passo Fundo: UFP, 2005. p. 110. 9 Ibid., p.135. 10 Ibid., p. 138.
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trabalhadores escravizados em ambos locais, ao mesmo tempo em que afirma que todas
estavam a servio do mercado.
As obras citadas demonstram que na historiografia a sobre a escravido no Piau, tem
se mostrado sensvel a percepo de analises, que levam em conta os dois extremos, senhores e
escravos, considerando-os como elementos interdependentes. Tambm considera a apreenso
do universo ideolgico e social dos escravos. A historiografia admite a importncia de
recuperar, dialeticamente a complexidade das relaes sociais de dominao vigentes na
sociedade escravista levando em conta que essa sociedade foi fruto da dinmica social entre
senhores e escravos. O campo de influncia desses dois eixos bsicos no se esgota ai,
medida que, produzindo uma complexa rede de relaes sociais, condicionou as ligaes entre
os diferentes segmentos sociais, mesmo daqueles no implicados no sistema escravista. luz
dessas afirmaes e reflexes, consideramos que a sociedade escravista foi produtora de uma
ampla rede de controle social, capaz de combinar o argumento da fora com outros
mecanismos de dominao.
O contato com a bibliografia e fontes nos proporcionou a delimitao de nosso objeto
de pesquisa. Verificando que as publicaes referentes ao Piau discutem as relaes de
trabalho dentro das fazendas pblicas e privadas e que a temtica ainda se constitui pouco
estudada, para contribuir com a discusso, em nosso trabalho, priorizamos a anlise sobre os
escravos de propriedade privada na segunda metade do sculo XIX. O corte cronolgico
justifica-se por, nesse perodo, a sociedade escravista apresenta caractersticas diversas das do
incio do sculo XX, sendo estas resultantes do processo de desestruturao do sistema
escravista no Brasil. A proibio do trfico negreiro juntamente com as leis abolicionistas que
foram surgindo no decorrer da segunda metade do sculo, alm das prprias aes dos
escravos contribuiu profundamente para o fim da escravido no Brasil. As renovaes da
historiografia e os novos campos temticos por ela suscitados, nos levaram escolher as
relaes do cotidiano11, a resistncia dos escravos, assim como as formas de controle destes
como novas possibilidades de estudos sobre a temtica.
11Analisamos o cotidiano como territrio, configurando-se assim como um lugar ou espaos construdos. Dessa forma o cotidiano desdobra-se como resultado do processo de socializao, ou seja, da relao entre o indivduo com seu grupo. Nessa relao, desenvolvem-se personalidades, capacidades e comportamentos. No territrio do cotidiano, o ser humano troca experincias com o diferente, reconhecendo-se diante deste. Nosso conceito de cotidiano seguiu a concepo de Michel de Certeau em seu livro A inveno do cotidiano. Petrpolis RJ: Vozes, 200. p. 201.
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As fontes utilizadas para a construo de nosso trabalho foram documentos localizados
no Arquivo Pblico do Estado do Piau, nos Fundos do Poder Judicirio e Executivo do
perodo em estudo. Constituem-se em fontes documentais e hemerogrficas, entre as fontes
documentais os relatrios, falas e mensagens de Presidentes de Provncia, relatrios, ofcios e
correspondncias de autoridades policiais, processos crimes, cdigos de posturas e cdigo do
rol dos culpados contriburam de forma consistente para a construo do trabalho. Alm das
fontes documentais, entramos em contato com algumas fontes hemerogrficas, como os jornais
A Imprensa e O Semanrio, cabendo aqui frisar a limitao dessas fontes com relao ao
perodo por estarem, na sua maioria, lacradas e indisponveis para pesquisa.
Para discutirmos sobre a escravido no Piau na segunda metade do sculo XIX,
especificamente o cotidiano, a resistncia e as formas de controle dos escravos, este trabalho
encontra-se estruturado em trs captulos. O primeiro apresenta o cotidiano de vida dos
trabalhadores escravizados na Provncia do Piau em meados do sculo XIX. Sendo que, para
tanto, buscou-se identificar o perfil dos escravos no Piau, as condies de trabalho, as
atividades desenvolvidas pelos trabalhadores escravizados, suas formas de sociabilidades e as
relaes entre escravos e entre estes e pessoas livres, bem como as atividades que eram
realizadas por eles na Provncia.
No captulo seguinte apresentamos as principais formas de resistncia escrava na
provncia do Piau na segunda metade do sculo XIX, de acordo com a documentao
analisada. Nessa perspectiva objetivamos conhecer o cotidiano da resistncia dos escravos, e,
entre elas, destacamos as fugas, os homicdios praticados contra senhores e feitores, os roubos
e furtos e, por ltimo, os suicdios de escravos na Provncia. Destacamos que a resistncia
escrava no se limita s atitudes coletivas e planejadas pelos escravos, ou seja, a atos de
conscincia praticados contra o sistema escravista. Baseados em micro-histrias de homens e
mulheres, em nosso trabalho analisamos as pequenas formas de resistncia cotidiana presentes
no mundo dos trabalhadores escravizados.
Diante da resistncia escrava, a sociedade do sculo XIX, assim como o Estado,
representando por suas instituies, como a polcia e a legislao, elaboraram formas de
controle da populao escravizada que objetivavam a produo de um trabalhador escravo
submisso ao sistema escravista, alm da submisso produtiva do trabalho. Nesse sentido, no
terceiro e ltimo captulo, analisamos as formas de controle, violncia e punio de escravos
produzida pelo sistema escravocrata, com o intuito de descrever como as mesmas foram
praticadas pela sociedade escravista no Piau. Para tanto, enfatizamos o controle domstico e a
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violncia praticada por senhores e membros da famlia senhorial, bem como identificamos as
principais formas de punio de escravos levados Justia e a ao do aparato policial na
Provncia do Piau diante das atitudes insubordinadas dos escravos. Tambm discorremos
sobre o cotidiano dos escravos dentro das prises e, por fim, discutimos o fato de que escravos,
depois de conseguirem a alforria, continuavam sendo explorados pelos senhores.
Por fim, esperamos que esta pesquisa possibilite a compreenso da vida cotidiana dos
escravos no Piau, contribuindo para o enriquecimento das discusses historiogrficas acerca
da temtica, a partir das vivncias de homens e mulheres escravizadas e suas diversas formas
de sociabilidades na sociedade escravista piauiense do sculo XIX.
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CAPTULO I O COTIDIANO ESCRAVO NA PROVNCIA DO PIAU
1.1 PERFIL DA POPULAO ESCRAVA NA PROVNCIA DO PIAU
Atravs da utilizao de uma linguagem fotogrfica registrada nas fontes com as
quais lidamos no decorrer de nossa pesquisa, identificamos algumas caractersticas fenotpicas
dos escravos no Piau. As descries encontradas levaram-nos a perceber as diversas
representaes sobre os negros em meados do sculo XIX. Nesse sentido, do conjunto de
fontes utilizadas, pretendemos retirar no apenas uma imagem, mas a prpria diversidade com
que o elemento negro descrito e apresentado.
As informaes foram extradas das fontes pesquisadas, como os autos de prises da
Secretaria de Polcia, alguns jornais, processos-crime e relatrios de presidente de Provncia.
O auto de priso identificava o ru, no entanto essa identificao dependia muito de quem a
executasse. Encontramos alguns autos de priso que oferecem uma gama de informaes,
enquanto outros, muitas vezes, nada traziam. Nos jornais, as descries das caractersticas
fsicas dos escravos estavam presentes nas sees que noticiavam vendas e fugas daqueles
indivduos. Os senhores, ansiosos em recuperar seus escravos, descreviam detalhadamente
suas caractersticas no intuito de conseguir, da forma mais rpida possvel, sua valiosa pea de
trabalho de volta. Os processos-crime tambm se constituem como fontes valiosas pelas
descries feitas sobre o escravo julgado.
Com relao fenotipia dos escravos na provncia do Piau, a cor da pele era a
primeira identificao, e nos deparamos com uma grande variedade cromtica. Aparecem
escravos de cor, preto, pardo, cabra, cabra claro, mulata, fula, negra. As descries eram
mais minuciosas quando se tratava de fugas de escravos, com o intuito de dar todos os
detalhes possveis para a captura mais rpida do fujo.
Em oficio ao delegado de polcia do termo de Teresina no dia 20 de junho de 1860, o
chefe de polcia da Provncia, Francisco de Farias Lemos, recomendava:
Expeo a Vossa Senhoria as ordens afim de ser capturado o escravo de Benedicta Maria das Flores, de nome Leonardo, cor preta, crioulo, baixo, grosso, sem barba idade de 25 annos, vestido de camiza e cala branca, descalso, regrento, tocador de berimbao, e muito conhecido nesta cidade, morador e vive ganhando na rua; o qual est fugido de 17 dias e consta andar dentro desta e suas immediaes. Deus guarde a Vossa Senhoria o Chefe de
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Policia. Francisco de Farias Lemos. Senhor delegado de Policia do termo de Therezina.12
Geralmente, a informao dada era sobre a estatura: alta, altura regular, baixa,
estatura mdia ordinria. Nos que diz respeito ao corpo, como sinnimos de magro,
encontramos magro, seco de corpo, delgado, fino, enquanto para os mais gordos se
usavam os termos corpulento, grosso, cheio de corpo. A identificao do rosto tambm
era comum, podendo ser oval, comprido, redondo com barba, barbado e sem
barba no caso dos escravos do sexo masculino. O nariz era identificado como grosso,
chato e aguado na ponta; a boca, grande ou os lbios grossos; os olhos tambm no
escapavam linguagem fotogrfica, sendo grandes avermelhados; os dentes
linhados, bons, falta de dentes; as pernas poderiam ser finas, grossas e curtas,
enquanto os cabelos eram carpinos, carapinhos, acaboclados, crespos e
encarapinhados. Entre as caractersticas tambm tm destaque as marcas e cicatrizes nos
corpos dos escravos, que complementavam as caractersticas fsicas, identificando-os de
forma mais particular.
Podemos fazer duas leituras a partir das descries encontradas nas fontes
consultadas: se, por um lado, as cicatrizes e marcas de relhos nos escravos significavam a
violncia do sistema escravista no Piau; por outro, eram sinnimo da resistncia desses
trabalhadores escravizados, isto , quanto mais resistiam, mais apresentavam cicatrizes que
simbolizavam os atos de resistncia. As cicatrizes de relhos eram resultados dos aoites que
os escravos recebiam quando cometiam algum ato de rebeldia ou eram levados Justia.
Sabemos que o mtodo mais utilizado para castigar e punir os escravos no Brasil foi o aoite.
Nesse sentido, a violncia praticada por senhores no Piau no fugiu regra, pois observamos
vrias referncias a escravos aoitados e com cicatrizes de relhos.
Lidas pelos escravos as marcas corporais eram um obstculo ao esquecimento de sua condio de escravo. Ao serem impressos de modo exemplar, estes signos atingiam tambm algo mais profundo que a pele e o corpo: a marca exemplar imprimia no escravo o medo da rebelio, inexorabilidade da dominao senhorial a que estava submetido. 13
12APEPI. Delegados. 1860-1861. SPE. Cd. 722. ESTN. 06. PRAT. 03. 13 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violncia: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro. 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 88.
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As cicatrizes produzidas em decorrncia dos castigos e, principalmente, dos aoites,
representavam uma tentativa de afirmao da dominao senhorial, todavia, em muitos
momentos, elas no impediam novas tentativas de resistncia ao sistema escravista. Muitos
escravos, aps terem sido castigados, voltavam a praticar a resistncia atravs das diversas
formas que discutiremos em seguida. Como exemplo, podemos citar o caso do escravo
Policrpio, que andava fugido e foi encontrado na Provncia do Maranho, na cidade de Cod.
Vejamos o que o delegado de polcia da cidade na qual o escravo foi capturado relata sobre as
caractersticas fsicas do fugitivo:
Secretaria de Policia do Piauhy, em 30 de junho de 1860. Tendo o Dr. Chefe de Policia da Provncia do Maranho me communicado que se acha prezo na cadeia do Cod, como fugido, um preto alto retinho, dentes linhados, olhos pequenos, nariz aguado na ponta, com muitas cicatrizes de castigo em todo o corpo e uma fractura na perna esquerda, o qual diz chamar-se Policarpio, e ser escravo de Jos Maria de Souza, e que fugiu da fazenda Juara acima dos Mates; assim o communico a Vossa senhoria para fazer sciente ao Senhor do dito escravo, para que o mande sollicitar pagando as despezas que tiver feito com elle devendo Vossa Senhoria participar-me o que a este respeito occorrer. Deus guarde Vossa Senhoria Francisco de Farias Lemos. Delegado de Policia do termo de Pedro segundo. 14
Alm de representarem violncia e resistncia, os sinais presentes nos corpos
tambm simbolizavam o trabalho rduo ao qual os escravos eram submetidos. Muitos
trabalhadores se acidentavam no momento de realizao das tarefas, adquirindo assim marcas
e cicatrizes que os acompanhariam no decorrer de suas vidas no cativeiro. Entre esses
personagens, encontramos o escravo Antonio Isidoro, que tem pouca barba, olhos
encarniados, panos pretos no rosto, e alm desses sinais tem um dos dedos grandes de um p
rachado de um talho de machado. 15 Assim tambm encontramos Paulo, crioulo alto e cheio
de corpo, com cicatrizes de fogo da cintura para baixo e com falta dos dedos dos ps. 16 As
cicatrizes apareciam, assim, como resultados da lida com instrumentos de trabalho, um
exemplo foi o caso do escravo Jos Banto.
Cabra, de 40 annos de idade, mais ou menos, barba grisalha, estatura regular, timbre de voz forte, dado ao mister de carreiro, conhecido pelo signal muito
14 APEPI. Delegados. 1860-1861. SPE. Cd. 722. ESTN. 06. PRAT. 03. 15 Ver MONSENHOR CHAVES. Obra Completa. 2 ed. Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 1998. p. 190. 16 Ibid.,p. 190.
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noptavel da mo direita aleijada em conseqncia de um servio tendo-lhe ficado os dedos contrahidos. 17
Uma carga horria de trabalho pesada e exaustiva, juntamente com a falta de
alimentao adequada, causavam o cansao extremo, fazendo com que um descuido, um
cochilo talvez, gerasse pequenos e grandes acidentes. Era comum escravos que perdiam
dedos ou se machucavam devido lida com objetos cortantes, como machados, facas, faces,
foices, entre outros.
No cotidiano de trabalho das mulheres escravizadas no Piau, algumas doenas
constantemente se faziam presentes, como aleijes na mo, problemas de viso e cegueira,
que advinham do uso continuado de rodas e teares. O trabalho das fiandeiras era quase que
completamente realizado noite e com pouca iluminao, desencadeando os problemas
citados.18 Tanto nos anncios de jornais, como nos autos de priso da Secretaria de Polcia do
Piau, so constantes as referncias a esses sinais, como podemos ver a seguir numa circular
aos delegados da Provncia do Piau enviada pelo chefe de polcia da Provncia, Gervzio
Campello Pires Ferreira, em 6 de maio de 1864:
Recommendo-lhe a captura do escravo Ernesto, cabra de 45 a 46 annos de idade, altura regular, magro, rosto comprido, torto de um olho, cabellos um tanto acaboclados e annelados, tem o officio de pedreito e signaes de relhos nas costas; o qual pertence aos orphos Lycurgo e Miguel, filhos do Capitam Loureno Antonio Moraes de Catello Branco, e fugio do Termo de So Gonalo em dias de janeiro deste anno. 19
Nos anncios de jornais, os detalhes so ainda mais minuciosos. Em alguns, o senhor
do escravo tenta descrever as possveis caractersticas da personalidade do escravo
desaparecido, alm de fazer ofertas de recompensas para quem o capturar. No Jornal O
Semanrio de 06 de novembro de 1880, o senhor Maurcio Fernandes Alves Sobrinho
procurava por sua escrava:
Ao abaixo assignado fugio desta povoao, no dia 20 de junho do corrente anno, a escrava Perpetua de 27 annos de idade, cr mulata, altura regular, cabello liso, esta cortado curto, olhos pretos, rosto oval, tem a orelha do lado direito combuca, e na do lado esquerdo uma falha, barriguda,
17 O Semanrio, 06 de novembro de 1880. Ano V. n. 176, p. 03. 18 LIMA, op. cit., p. 170. 19APEPI. Delegados. 1861-1867. SPE. Cd. 724. ESTN. 06. PRAT. 03.
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assemelhando-se estar prenhe, pernas finas, ps regulares quando caminha os dedo grandes e mnimos abrem para fora. Quando evadio-se trajava saia preta e palitot da mesma cor e camisa de algodo n1. A pessoa que captural-a e entregar ao seu senhor na referida povoao, receber a quantia de 50$000 reis de gratificao. 20
Como j destacamos, em alguns momentos, os escravos eram estereotipados como
mal parecidos, alegre, conversadeira, metido, ladino, pouco falador, valente,
brigo, entre outras caractersticas. Em anncio no Jornal O Semanrio do dia 03 de maio
do ano de 1879, descreve-se o escravo Luiz: conhecido por gamella, figura acatruzada, andar
duvidoso e vacilante, metido e ladino, tem maneira de querer ser de famlia boa e
traioeiro.21. Andar duvidoso e vacilante, traioeiro eram tambm as caractersticas do
escravo Luiz, talvez por ser um escravo rebelde, que no se submetia ao senhor e, sempre que
havia uma oportunidade, tentava fugir ou agia de forma rebelde. Escravos assim logo eram
colocados venda por seus donos.
Maria, que fugiu de seu senhor, o capito Pacfico Fortes Castelo Branco, em abril de
1878, foi assim representada em anncio do jornal: uma escravinha de 15 anos de idade,
representando 12 por ser raqutica, de cor cabra e muito conversadeira. 22 Maria era uma
entre as diversas crianas escravas da Provncia cujo raquitismo, caracterstica quase sempre
presente na fisionomia daquelas crianas, resultava das condies de vida dos cativos no
Piau. Verifica-se assim que a iniciao ao trabalho dava-se de forma precoce, com meninos e
meninas experimentando cedo o gosto do trabalho, mesmo que s fossem utilizados nas
tarefas menos pesadas.
O escravo Antonio, do capito Ivo Jos de Carvalho, que tambm andava fugido, era
cabra, baixo, cheio de corpo, cara um tanto cumprida, pouca barba, ps pequenos e pouco
falador. 23 Casimiro era caracterizado como cabra, sem barba, estatura media, queixo
regular, olhos avermelhados, bons dentes, fala moderada. 24 J Maria, escrava do padre Joo
Manoel dAlmendra, morador na vila de Marvo, tem o dedo polegar da mo direita
angagetado proveniente de um pandicio, no mal parecida, alegre e conversadeira.25
Nessas descries fsicas dos escravos no Piau, percebemos que muitas caractersticas
resultavam das condies de vida nas quais se encontravam aqueles trabalhadores. Uma outra
20 O Semanrio, 06 de novembro de 1880. Ano V. n. 176. p. 03. 21 O Semanrio, 03 de maio de 1879. Ano IV. n. 112, p. 04. 22 O Semanrio, 06 de abril de 1878. Ano III. n. 60,p. 04. 23 O Semanrio, 28 de junho de 1880. Ano V. n. 160, p. 04. 24 APEPI. Delegacia de Teresina. 1846-1847-48-49-1851/1942. CAIXA. 570. 25 O Semanrio, 28 de junho de 1878. Ano V. n. 160, p. 04.
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observao importante o fato de que muitas facilitavam a recaptura e identificao de
escravos fugidos. Dessa forma, tais caractersticas auxiliaram os senhores de escravos no
controle, sendo que tambm atravs delas a instituio policial conseguia agir no controle e
ordenamento social. A seguir aprofundaremos essas questes.
1.2 COTIDIANO DO TRABALHO: OCUPAES DOS TRABALHADORES ESCRAVIZADOS NO PIAU
De acordo com o historiador Alcebades Costa Filho26, no sculo XIX, a populao
piauiense era predominantemente rural, sendo que as famlias viviam em fazendas que se
localizavam distantes uma das outras. Entre os produtos, o gado vacum foi uma das principais
fontes de riqueza, ou seja, a base econmica da Provncia, ao mesmo tempo em que ligava
uma fazenda a outra e estas com outras regies do pas. No entanto, outras atividades e
produtos eram realizados para a subsistncia dessas fazendas e a mo-de-obra dos
trabalhadores escravizados se constituiu enquanto fator de suma importncia no
desenvolvimento dessas atividades. 27
Segundo o Relatrio do Presidente de Provncia, Joo Jos de Oliveira Junqueira, no
ano de 1858, o Piau contava com 5.013 (cinco mil e treze) fazendas particulares e 39 (trinta e
seis) fazendas pblicas em todo o seu territrio. As fazendas estavam assim localizadas nos
Municpios: 301 em Teresina, 658 em Oeiras, 176 em Parnaba, 293 em Campo Maior, 180
em Barras, 487 em Piracuruca, 447 em Valena, 775 em Parnagu, 368 em Jerumenha, 306
em So Gonalo, 338 em Prncipe Imperial, 228 em Marvo, 264 em Jaics, 284 em So
Raimundo Nonato e 147 fazendas em Pedro Segundo. Com relao s fazendas pblicas, estas
eram divididas em trs inspees denominadas, Nazar, Canind e Piau. Em 1855 as
propriedades contavam com 738 trabalhadores escravizados.
26 COSTA FILHO, Alcebades. Histria da mulher escrava no Piau. Cadernos de Teresina, p.23-32, ago. 1992. 27 Em seu trabalho sobre os escravos das fazendas pblicas no Piau, Solimar Oliveira Lima aponta que a mo-de-obra escrava era utilizada em todos os tipos de tarefa, assim o autor tenta desmistificar a viso de que os trabalhadores escravizados das fazendas pblicas eram menos explorados do que aqueles que viviam em propriedade privada. Essa tese foi fortemente defendida por Tnya Maria Pires Brando, em O escravo na formao social do Piau, e por Miridan Brito Knox Falci, no livro Escravos do Serto.
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A formao social da Provncia era composta por proprietrios latifundirios,
escravocratas e donos de rebanhos de gados. Alm desse grupo, escravos, trabalhadores livres
pobres e agregados das fazendas, existia tambm uma pequena parcela de empregados na
administrao pblica e profissionais liberais com forte ligao com as famlias oligrquicas,
sendo, em alguns casos membros dessas famlias.28
De acordo com a historiadora Teresinha Queiroz, a populao da Provncia do Piau
era de aproximadamente 202.222 habitantes no ano de 1870, entre pessoas livres e escravas.29
No final do sculo XIX o nmero de habitantes subiu para 250.000, sendo que, entre esses,
17.327 eram escravos. 30 Homens e mulheres escravizados realizavam diversos tipos de
tarefas nessas propriedades rurais, nos povoados e nas vilas. Para organizar a produo havia
a diviso sexual do trabalho se fazia presente nas propriedades maiores, sendo que nas
fazendas de menor porte os trabalhadores eram indistintamente utilizados nas diferentes
tarefas. Com relao diviso do trabalho nas fazendas do Piau, Miridan Falci afirma que
Algumas profisses foram exercidas s por um dos sexos: mas as profisses de criado,
servente, servio domstico, cozinha, costura, carpina, roceiro e tecelo foram exercidas
indistintamente por ambos os sexos.31
No intuito de analisar os tipos de tarefas realizadas pelos escravos no Piau,
trataremos do mundo do trabalho, ou seja, analisaremos quais os ofcios e ocupaes dos
escravos. Inicialmente, abordaremos algumas atividades femininas, em seguida, as atividades
masculinas.
Entre as ocupaes femininas, as mais verificveis foram as atividades de roceiras,
cozinheiras, costureiras, lavadeiras, engomadeiras, fiandeiras, rendeiras e criadas. Essas eram
atividades especializadas e realizadas dentro da casa. Tambm havia escravas que
desenvolviam diversas tarefas, fato que pode ser observado nos casos de propriedades
pequenas onde seus senhores possuam poucas escravas. Nesse caso podemos citar o exemplo
da escrava Luzia, encontrada em um de nossos processos crimes, onde a mesma acusava sua
senhora de violncia. Luzia tinha 30 anos, natural do Piau. Quando lhe foi perguntado qual a
28 COSTA FILHO, op. cit., p. 28 29 QUEIROZ, Teresinha. Os literatos e a Repblica. Clodoaldo Freitas, Higino da Cunha e as tiranias do tempo. 2 ed. Teresina: EDUFPI, 1996. p. 20. 30 CHAVES, Monsenhor. Obra Completa. 2 ed. Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 1998. p. 195. 31 FALCI, Miridan B. K. Escravos do Serto: demografia, trabalho e relaes sociais. Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 1995. p. 125.
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sua profisso, respondeu que era empregada nos servios domsticos. 32 Desse modo,
acreditamos que Luzia fazia todas as atividades domsticas dirias de uma casa.
A fora de trabalho das negras escravas foi, portanto, utilizada em diferentes
momentos da economia escravista, especialmente nas atividades domsticas. Segundo o
historiador Alcebades Costa Filho, em pesquisa realizada nas Listas de Classificao, em um
grupo de 4.097 escravas, 3.447 tinha atividades definidas; 1.236 eram roceiras, 976 eram
cozinheiras e 582 eram costureiras. Outras atividades que no foram quantificadas pelo autor,
por aparecerem em menor nmero, foram as de boleiras, fiandeiras, lavadeiras, engomadeiras,
rendeiras, azeiteiras e criadas. Alm dessas atividades, Costa Filho tambm destaca que
existiam algumas escravas vendedoras.
O autor tambm afirma que as escravas eram utilizadas em diversas obrigaes
relacionadas ao trabalho domstico, entre elas, a limpeza da casa, o preparo dos alimentos, o
cuidado das crianas, e dos animais, o fabrico de leo de a cozinha, queijo, manteiga, doces,
bolos, sabo, vela, ou seja, produtos destinados ao consumo da casa.33 No havia, portanto,
escravas especializadas em uma s tarefa, pois uma escrava domstica poderia realizar uma
ou mais tarefas dentro de uma propriedade, apesar de esse servio requerer, entre as famlias
mais abastadas, um nmero maior de empregadas. Havia ainda, famlias que possuam um
nmero menor de escravos e que costumavam alugar suas escravas em servios domsticos.
No sistema escravista existia uma diferena entre os trabalhos internos e os externos.
Os internos estavam ligados s atividades desenvolvidas dentro da casa; j os trabalhos
externos eram os que se faziam fora da casa, nas ruas ou nos mercados. No geral, as
ocupaes mais comuns estavam ligadas s atividades domsticas, como vimos acima.
As atividades realizadas na roa requeriam maior fora de trabalho, sendo por isso
empregado uma maior nmero de escravas trabalhando. Esse tipo de tarefa tambm era
desenvolvido ao lado de escravos do sexo masculino, o que representava uma maior
possibilidade de socializao entre eles: era na roa que tambm surgiam os relacionamentos,
as brigas e, provavelmente, os planejamentos das fugas coletivas, pois, nessas ocasies os
escravos tinham a oportunidade de uma maior aproximao, apesar de muitas vezes estarem
sob vigilncia do feitor. Com relao ao trabalho das roceiras, Maria Lcia de Barros Mott
destaca que algumas escravas j eram habituadas ao trabalho agrcola na frica, sendo que,
no trabalho com as roas elas utilizavam a enxada como os homens, embora os
desmatamentos, realizados a machado, fossem tarefa dos homens, assim como o corte de
32 APEPI. Srie: autos-crimes. Subsrie: Teresina. Anos: 1880-1883. CAIXA 291. 33 COSTA FILHO, op. cit., p. 28.
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cana, ou seja, nas atividades que requeriam ainda mais a fora fsica. s mulheres cabiam os
feixes. 34 Segundo Miridan Falci, ambos os sexos tiveram que trabalhar na roa, ajudando a
capinar, a cortar a lenha ou a fazer covas. Meninos e meninas foram roceiros antes de
aprenderem outra profisso. 35
No trabalho de preparar a terra para ser plantada, inicialmente, limpava-se o solo,
fazendo-se em primeiro lugar, a broca corte de pequenas rvores com foices, depois a
derriba corte das rvores maior com machados e, por ltimo, ateava-se o fogo. Depois
de preparada a terra com a queimada, s restava esperar a chuva para comear o plantio.36
Segundo Lima, as crianas eram, desde muito cedo, iniciadas nos servios das roas, assim
tambm como nas fiadas, contudo o objetivo no era to somente a produo e explorao do
trabalho das crianas, mas uma maneira de vigiar os pequenos e para garantir e ampliar,
futuramente, a produo.37
Era das cozinhas que saa o cheiro do feijo cozido, da carne seca, das delcias
preparadas pelas escravas cozinheiras. Para acompanhar toda a comida preparadas pelas
mulheres, havia tambm a farinha, elemento sempre presente na mesa dos moradores da
Provncia, a qual tambm era produzida pelas escravas nas farinhadas. Desenvolver a tarefa
de cozinhar era uma sria responsabilidade para as escravas. Tinham que ser mulheres
experientes e prontas para os dias de festa onde juntavam pessoas das propriedades mais
prximas, principalmente, em festas religiosas e at mesmo nos velrios. Tambm como
destaca Sandra Graham, alm de demonstrarem competncia as cozinheiras teriam que
conhecer os equipamentos que usavam, como os utenslios, o forno e o fogo, bem como os
cardpios, entre outros. A alimentao de seus parceiros de cativeiro tambm era preparada
pelas cozinheiras, assim como a dos agregados.
Alm de discutirmos as habilidades das cozinheiras com seus instrumentos de
trabalho, temos que enfatizar que das cozinhas tambm saa o sabor da resistncia contra os
senhores e senhoras, j que muitas escravas utilizavam o dom que adquiriam para colocar
veneno dentro dos saborosos pratos preparados para a famlia senhorial. Os senhores, algumas
vezes, tinham medo de saborear os pratos, temendo serem envenenados.
As escravas lavadeiras cuidavam das roupas da famlia senhorial e, como no havia
gua encanada, tinham que carregar a trouxa de pano na cabea e se dirigir ao rio ou riacho
34 MOTT, Maria Lcia de Barros. A mulher na luta contra a escravido. So Paulo: Contexto, 1991. p. 20. 35 FALCI, op. cit., p. 122. 36 LIMA, op. cit., p. 74 37 LIMA, op. cit., p. 72
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mais prximo, ou a uma fonte pblica para realizar seus afazeres. Muitas escravas faziam
desses locais de trabalho espaos de sociabilidade, onde cantavam e conversavam com
companheiras de cativeiro ou de outras propriedades. Alm das conversas e cantorias,
tambm naqueles momentos aproveitavam e tomavam banho nos rios e riachos.
Para algumas, as brincadeiras na gua traziam srias conseqncia, at mesmo a
morte. Nos documentos analisados, encontramos casos de escravas que morreram afogadas
durante a execuo dos trabalhos, como foi o caso de duas mulheres que se afogaram no Rio
Parnaba, um dos principais rios da Provncia, onde escravas costumavam lavar as roupas de
seus senhores. No dia 25 de janeiro de 1879, Dona Felicidade Maria da Cunha e sua escrava
Izabel saram como de costume para lavar roupas. Nesse caso a senhora deveria ser uma
pessoa de poucas posse, por estar ajudando a sua escrava nas atividades domsticas. Apesar
de j estarem habituadas a lavar roupas no rio Parnaba, esse foi um dia diferente dos outros,
tendo os corpos das duas sido encontrados boiando no rio em 27 do mesmo ms. O exame de
corpo de delito concluiu como causa mortis o afogamento. 38 Como veremos adiante,
muitos escravos morriam dessa forma por andarem brios, o que no foi o caso de Dona
Felicidade e da escrava Isabel.
Sobre as escravas lavadeiras, a historiadora Sandra Graham observa que a lavagem de
roupa era uma das principais ocupaes na organizao da famlia, a qual costumava usar
muitas peas brancas, desde as peas de roupas at as toalhas de mesa e panos de prato da
cozinha, o que significava muito trabalho para as escravas lavadeiras em esfregar toda a
roupa. As fronhas, os bordados, as toalhas de mo, em sua maioria, eram todos de cor branca. 39
Quando as lavadeiras chegavam com a trouxa de roupas praticamente enxuta pelo sol,
era a vez das engomadeiras passarem as peas para ficarem a gosto de seus senhores. O ferro
brasa j estava no ponto de gomar toda a roupa trazida pela companheira de cativeiro, e as
montanhas de roupas aguardavam o esfregao do ferro quente passado com a fora de
braos que trabalhavam muito para dar um bom aspecto s roupas brancas.
Na sua discusso sobre a mulher escrava na Bahia do sculo XIX, Ceclia Moreira
Soares afirma que
A rotina domstica era supervisionada de perto e cuidadosamente pelas senhoras. Porm, ocupaes como fazer compras, carregar gua, etc. fugiam
38 APEPI. Chefe de Polcia. 1879. SPE. Cd. 770. ESTN. 07. PRAT. 02. 39 GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteo e obedincia: criadas e seus patres no Rio de Janeiro 1860-1910. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 54.
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ao controle direto das proprietrias e patres, pois todas dependiam do constante deslocamento das escravas rua. Durante o percurso podiam servir a outras pessoas, ganhar algum dinheiro, criar redes de amizade, escapar enfim da rotina do trabalho domstico.40
Uma outra atividade exercida pelas mulheres escravas no Piau era a de costureira. As
roupas produzidas eram usadas em grande parte pela populao livre e liberta, pois as pessoas
no tinham dinheiro para comprar roupas em outros lugares, fato explicado pela distncia
entre as cidades e a pela dificuldade de deslocamento. As escravas costureiras tambm
confeccionavam as roupas de outros escravos.
Conforme Graham, o trabalho das costureiras era realizado prximo s donas da casa,
as quais tentavam copiar modelos estrangeiros, sendo que, entre eles, os franceses eram os
mais cogitados. Alm das roupas mais elegantes, as costureiras cortavam e ajustavam as
roupas mais simples de toda a famlia, que se tinham boas condies financeiras, mantinha
uma criada servindo apenas de costureira. Quando no, muitos procuravam as escravas
costureiras que trabalhavam para diversas famlias. 41 A profisso de costureira era tpica das
mulheres, no entanto, em sua pesquisa, Miridan Falci encontrou referncia sobre um escravo
costureiro na cidade de Unio, o qual se chamava Anselmo, mulato de 23 anos de idade. 42
Encontramos ainda em nossa pesquisa algumas referncias a escravas que fiavam.
Muitos fios de algodo passaram pelas mos daquelas escravas. Como frisamos antes, a
atividade de fiar iniciava as meninas escravas no mundo do trabalho, por ser um tipo de
atividade que requer pouca fora fsica. Assim, as mais novas auxiliavam as escravas mais
velhas que tambm eram utilizadas nessa atividade pelo mesmo motivo, isto , pelo fato de j
se encontrarem sem o mesmo vigor da juventude as pretas velhas eram colocadas ao lado
das meninas para ensinar-lhes a arte de fiar.
Segundo Lima, nas fazendas pblicas, o ato de fiar e tecer foram ocupaes
predominantes entre as trabalhadoras que eram fisicamente inaptas para desenvolver outras
atividades. As velhas mos nos teares teciam uma pequena produo de tecido apenas para a
subsistncia no havendo produo em alta escala. 43
Alm dos trabalhos domsticos, as escravas tambm realizavam atividades fora da
casa dos senhores. A historiografia indica a existncia de diversos tipos dessas atividades. No
40 SOARES, Ceclia C. Moreira. Mulher escrava na Bahia no sculo XIX. Salvador: EDUNER, 2006. p. 53. 41 GRAHAM, op. cit., p. 50-51. 42 FALCI, op. cit., p. 125. 43 LIMA, op. cit., p. 70-71.
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Piau, entre as mais comuns, podemos citar as de vendedora e as ama-de-leite. Entre os
produtos vendidos, a farinha era bastante comercializada, principalmente, em pocas aps a
sua produo, ou seja, depois das farinhadas.
Costa Filho faz referncias s escravas que trabalhavam fora de casa, as quais levavam
produtos para serem vendidos na feira. Nos cdices que o autor pesquisou, encontram-se
diversas licenas para que livres e escravos comercializassem. Entre as escravas vendedoras,
Ludovica, por exemplo, era vendedora numa quitanda cidade de Oeiras. 44
As escravas que desempenhavam a atividade de ama-de-leite, geralmente, tinham
outras ocupaes, mas, aps o perodo de gestao, deixavam de amamentar seus prprios
filhos porque eram utilizadas para alimentar o filho do senhor ou serem alugadas a outras
famlias com o mesmo propsito.
De acordo com Miridan Falci, essas atividades parecem ter se iniciado s na segunda
metade do sculo XIX, pois, em trabalhos e pesquisas realizados no perodo anterior, a
historiadora no encontrou referncia a atividades realizadas fora de casa.45 No caso das
escravas ganhadeiras, tal atividade lhes proporcionava uma relativa autonomia j que
passavam muito tempo fora da morada.
De acordo com Costa Filho, muitas escravas foram alugadas para servios fora,
destacando-se as lavadeiras, engomadeiras e cozinheiras. No entanto, as escravas eram
utilizadas nas mais diversificadas tarefas. 46
Quanto s atividades masculinas, as mais comuns eram a de carreiro, pedreiro,
roceiro, carpina, sapateiro, vaqueiro, ferreiro e carpinteiro, mas tambm era possvel
encontrar, entre os escravos, alguns cozinheiros, padeiros, tocadores, feitores, marinheiros,
enfermeiros, calafates, barbeiros, ourives, seringueiros e outros, s que em menor nmero. De
acordo com Miridan Falci, as atividades eram divididas de acordo com duas varveis: a
diviso sexual e etria do trabalho e o fator regional.47 Segundo a mesma autora, existiam
algumas ocupaes que s apareciam em uma regio, como por exemplo, a de marinheiro,
que s foi encontrado na cidade de Parnaba.
A atividade de carrear exigia uma especializao, consistindo em guiar os carros-de-
boi, o principal meio de transporte da Provncia. Um escravo guiava o carro-de-boi, no qual
vrios tipos de produtos eram transportados, como a mandioca, a lenha para a fornalha, a
farinha e outros produtos, para serem comercializados. Pessoas tambm eram carregadas nos 44 COSTA FILHO, op. cit., p. 28 45 FALCI, op. cit., p. 127. 46 Ibid., p. 28. 47 Ibid., p. 120-121.
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carros-de-boi quando iam s missas ou quando falecia algum, cujo trajeto at o local do
enterro era feito nos carros. Encontramos, entre os documentos, o escravo Jos Banto, de 40
anos de idade, que foi preso na Provncia do Cear por andar fugido, sendo dado ao mister de
carreiro. 48
Os trajetos percorridos pelos escravos com os carros-de-boi eram longos, indo de uma
vila outra, ora vendendo, ora comprando produtos para seus senhores. O ato de carrear
demandava fora, resistncia e conhecimentos dos caminhos percorridos, por isso o
carreamento era uma atividade exclusivamente masculina e para homens que tivessem fora
fsica, sendo que a maioria dos carreiros eram homens jovens. Tratava-se ainda de uma
profisso que demandava confiana, pois os escravos iam muito longe e poderiam fugir com
toda a carga de produtos que carregavam nos carros-de-boi.
Os sapateiros eram os encarregados de produzir e consertar calados, como Anselmo,
de 31 anos, que era sapateiro da fazenda do senhor Simplcio Dias Mendes, na cidade de
Parnaba. Assim como Anselmo, na mesma fazenda, havia outros escravos que tambm
desenvolviam a mesma atividade, como os escravos Joo, de 33 anos; Joo Cachorro, de 36
anos, e Jos de 22 anos. Do total de 232 escravos pertencentes ao senhor Simplcio s esses
eram sapateiros. 49
Andr, de 25 anos, escravo do Coronel Thoms de Aquino, morador na cidade de
Oeiras, condenado por roubo no ano de 1863, tinha como profisso a de pedreiro. Os escravos
pedreiros foram muito utilizados na Provncia. Vrios escravos das Fazendas Nacionais foram
transferidos para Teresina durante o processo de mudana de capitais50. Os primeiros prdios
pblicos da nova capital foram erguidos pelos braos dos trabalhadores escravizados das
Fazendas Nacionais. A Igreja da Matriz, o hospital, cemitrio, o Quartel de Polcia e a cadeia
da cidade so exemplos de construes executadas por escravos no Piau.
A profisso de pedreiro tambm demandava um esforo exaustivo, pois, para erguer
uma construo, os escravos limpavam o terreno, caavam varetas para baldrames,
amassavam o barro, traavam a cal, escavavam pedras para paredes e soleiras, carregavam
gua para o trabalho e consumo. Alm disso, auxiliavam os carpinteiros na colocao de
assoalhos, janelas, caibros e ripas, entre outras tarefas. 51
48 APEPI. Delegacia de Teresina. 1846-1847-48-49-1851/1942. CAIXA. 570. 49 APEPI. Inventrio de Simplcio Dias Mendes. Parnaba, 1833. 50 Em 1852, a capital da Provncia deixa de ser Oeiras e passa a ser Teresina, que foi construda para esse fim. 51 LIMA, op. cit., p. 92.
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Sobre a atividade de roceiros j descrevemos um pouco quando tratamos das
atividades femininas, sendo que os meninos eram iniciados muito cedo nesse trabalho e
seguiam nessa atividade at conseguirem se especializarem em outra.
O vaqueiro era uma outra atividade realizada na Provncia. J que a economia da
regio tinha como principal atividade econmica a pecuria. Muitos escravos foram vaqueiros
das fazendas no Piau. Tanto das Fazendas nacionais como nas particulares. Os escravos
vaqueiros guiavam os bois nas fazendas, levavam os animais para a matalotagem, guiavam
para as regies onde iam ser comercializados como a Bahia e Pernambuco.
Com relao ocupao de vaqueiro, Solimar Oliveira Lima expe:
O vaqueiro era, no geral, tratado como um trabalhador desqualificado, realizador de servios ou tarefas que no requeriam habilidade [...]. Entre os vaqueiros havia uma estratificao interna que os diferenciava quanto s tarefas a serem executadas. 52
Os escravos Agostinho, mulato de 40 anos; Alexandre, de 32 anos; Elesbo, de 34
anos e Vidal, o mais velho, de 80 anos de idade, eram os quatro vaqueiros na fazenda do
senhor Simplcio Dias da Silva, o qual, no todo, possua 232 escravos. 53
Por muito tempo a historiografia fixou-se na idia de que a mo-de-obra escrava no
poderia coexistir com a atividade da pecuria desenvolvida em diversas regies do Nordeste.
Os argumentos para tal concepo sobre o trabalho escravo na pecuria ligam-se idia de
que os negros seriam inaptos para o trabalho na pecuria, o que foi bastante divulgado por
alguns viajantes e cronistas do sculo XIX.54 O no emprego da mo-de-obra escrava na
pecuria tambm se justificaria pelo custo desta. Assim, para alguns autores, o
desenvolvimento da pecuria, em sua fase inicial de expanso, deveu-se ao trabalho indgena,
o qual apresentaria um custo menor do que o escravo. Uma outra hiptese levantada era a de
que a grande extenso de terra necessria para a pecuria dificultaria a vigilncia e o controle
dos trabalhadores escravizados.
No Piau, entretanto, a literatura historiogrfica mostra o contnuo emprego da mo-
de-obra escrava na pecuria, atividade que proporcionou o desenvolvimento da economia na
regio. As observaes dos viajantes Spix, Martius e Gardiner, por exemplo, contriburam
para a construo de uma nova viso. Acrescente-se que, embora a historiografia piauiense
52 LIMA,op. ct., p. 101-102. 53 APEPI, Inventrio de Simplcio Dias Mendes. Parnaba, 1833. 54 Entre os viajantes que divulgaram essa concepo, podemos citar Tollenare e Ferdinand Denis.
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aponte a presena do trabalho escravo na pecuria, para alguns autores55, essa atividade, por
ser desenvolvida em grandes extenses de terras, dependia quase exclusivamente de recursos
naturais, o que gerava pouco trabalho para os trabalhadores escravizados. Alm disso, alguns
estudiosos compartilham da idia de que tambm existia uma diferenciao de condies de
trabalho e vida entre o cativeiro nas fazendas pblicas e nas fazendas privadas.
Para Lima56, os escravos foram utilizados da mesma forma na atividade pecuria do
Piau, tanto nas fazendas privadas quanto nas pblicas. Alm disso, os trabalhadores tambm
contriburam em outras tarefas que complementavam a atividade da pecuria, na qual os
escravos vaqueiros desenvolveram importantes papis.
1.3 MOMENTOS DE DIVERSO E DESCONTRAO NA VIDA DOS ESCRAVOS
Apesar das duras condies de vida dos trabalhadores escravizados, estes tinham
momentos de lazer e descontrao, sendo que, muitas vezes, essas atividades tambm
representavam a resistncia desses trabalhadores e a luta pela sobrevivncia. O lazer dos
escravos acontecia, geralmente, nos dias e horrios livres e at mesmo durante a prpria
jornada de trabalho, principalmente nos momentos de realizaes de atividades coletivas,
como as farinhadas, fiadas e outras. Como expressamos anteriormente, nessas atividades
homens e mulheres, escravos e livres se socializavam atravs dos cantos, das conversas e
ainda dos conflitos que ocorriam no ambiente de trabalho. Tais conflitos, geralmente, eram
causados por bebedeiras, cimes dos parceiros e motivos ligados ao cotidiano do trabalho.
O historiador Robson Costa, em seu estudo sobre o cotidiano e a resistncia escrava
em Olinda, nas ltimas dcadas da escravido, discorre acerca das redes comunitrias
construdas nas relaes entre os escravos e entre estes e o restante da sociedade. Segundo o
autor,
Para os escravos, as redes comunitrias aparecem como o ponto chaves da resistncia, pois a vida cotidiana perfazia-se no apenas pelo trabalho que ocupava, verdade, boa parte de seu tempo mas tambm das festas, da religiosidade ou mesmo das fugas. Na verdade, todos esses elementos se imbricavam, pois as relaes de parentesco, as manifestaes culturais e o
55 Como exemplo, podemos citar Tnya Brando, Odilon Nunes, Carlos Eugnio Porto, entre outros. 56 LIMA, Solimar Oliveira. Brao forte: trabalho escravo nas fazendas da Nao no Piau. 1822-1871. Passo Fundo: UPF, 2005.
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tempo de trabalho eram indissociveis, muitas vezes contrariando a lgica da escravido e as estratgias senhoriais de enfraquecimento de seus espritos.57
No que diz respeito diverso dos trabalhadores escravizados, entre as atividades de
lazer praticadas pelos cativos na Provncia do Piau, o ato de ingerir bebidas alcolicas era
uma prtica presente no cotidiano daqueles homens e mulheres escravizados, sobretudo entre
os escravos do sexo masculino. Era comum nos relatrios da polcia a priso de escravos por
andarem embriagados.
Os escravos costumavam beber sozinhos e tambm em grupo. Seus companheiros de
bebedeiras eram outros escravos, libertos e, tambm pessoas livres. Segundo Mary Karasch, o
consumo de bebidas alcolicas pelos escravos era comum na Provncia do Rio de Janeiro no
sculo XIX, onde a bebida ajudava a minimizar os efeitos da servido, tendo ainda importante
papel em alguns ritos religiosos e na vida social dos escravos. 58
Em 09 de janeiro de 1862, por exemplo, foi recolhido cadeia da cidade de capital da
Provncia o escravo Justino, que pertencia aos rfos do j falecido Marcelino Gonalves
Pedreira. Segundo o relatrio do chefe de polcia, alm de se encontrar em estado de
embriaguez, o preto Justino ainda ofendia a moral com palavras obscenas.59 Karasch
destaca que a prtica de falar palavres era uma forma no violenta de resistncia
escravido.60 Sidney Chalhoub tambm discorre sobre algumas caractersticas das classes
subalternas, entre elas o humor, e segundo ele, essas caractersticas tinham sentidos prprios e
objetivos dbios.61 Possivelmente, essa teria sido uma oportunidade para Justino fazer alguns
desabafos, ofendendo os seus jovens senhores. Maria da Conceio e o escravo Gonalo
tambm foram presos juntos, em junho de 1875, por andarem embriagados.62
As bebedeiras aconteciam em alguns estabelecimentos chamados de quitandas63 ou
nas propriedades onde os escravos viviam, principalmente, naquelas que possuam plantao
de cana-de-acar e produziam aguardente. Segundo Lima, o lcool no era o nico vcio dos
57 COSTA, Robson. Vozes na senzala: cotidiano e resistncia nas ltimas dcadas da escravido. Olinda, 1871-1888. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2008. p. 116. 58 KARASCH, Mary. A vida dos escravos: no Rio de Janeiro 1880-1850. So Paulo. Companhia das Letras, 2000. p. 436-437. 59 APEPI. Delegacia de Polcia. 1846-1847-48-49-1851/1942. Caixa 570. 60 KARASCH, op. cit., p. 436. 61 CHALHOUB, Sidney. Dilogos Polticos em Machado de Assis. In: CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo A. de M. Histria contada: Captulo de Histria social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 95-122. 62 APEPI. Chefe de Polcia. 1874. SPE. Cd. 766. ESTN. 07. PRAT. 02. 63 As quitandas eram pequenos estabelecimentos comerciais que vendiam gneros alimentcios e bebidas.
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trabalhadores escravizados, havendo tambm o fumo64 que era produzido em algumas
fazendas.
O uso de lcool e a conseqente embriaguez desencadeavam vrios conflitos entre os
escravos, bem como entre estes, os libertos e as pessoas livres. Esses conflitos, muitas vezes,
acabavam em agresses fsicas com leses corporais leves e graves, como tambm em
homicdios. No relatrio da Secretaria de Polcia do ano de 1863, o chefe de polcia da
Provncia relata a priso de um escravo juntamente com uma pessoa livre, porque se
encontravam brigando.
Das partes recebidas nesta Repartio consta que ontem foram prezos nesta cidade a ordem do Subdelegado de Polcia do 2 Districto, por estarem brigando o paizano Manoel Jos Nascimento e o escravo Trajano, pertencente ao finado Vdigal da Silva Rios, o que communico Vossa Excelncia como cumpre.65
Alm das confuses e brigas, devido ao uso de lcool, alguns escravos tinham como
destino final a morte, ocasionada em alguns casos por afogamentos. Nesse sentido,
encontramos casos de homens e mulheres escravos que se afogaram em rios aps terem se
embriagado.
Entre algumas dessas ocorrncias, destacamos o episdio do escravo Galino,66 o qual
foi encontrado morto, sendo que, aps o exame de corpo de delito, foi concludo que a causa
mortis foi o estado de embriaguez no qual o escravo se encontrava. Observamos
anteriormente que os banhos de rio tambm se constitua enquanto forma de diverso entre os
escravos. Como eram rotineiros na vida das escravas lavadeiras, nas horas de trabalho, essas
escravos usufruam de alguns momentos de descontrao.
O jogo tambm era uma forma de diverso entre os escravos, sendo geralmente,
acompanhado por bebedeiras e embriaguez. Homens escravos, libertos e livres disputavam
apostas nas bancas de jogos, como se verifica no seguinte relato:
Secretaria de Policia do Piauhy, em 27 de abril de 1863. Hontem foram recolhidos cadeia desta cidade, minha ordem, Manoel Xavier Pereira, por embriaguez e achar-se jogando com o escravo Jeremias, do Dr. Carlos de Sousa Martins, que tambm foi mero a pedido do seu senhor. 67
64 LIMA, Solimar Oliveira, op. cit., p. 79 65 APEPI. Delegacia de Polcia. 1846-1847-48-49-1851/1942. Caixa 570. 66 APEPI. Delegacia de Polcia. 1846-1847-48-49-1851/1942. Caixa 570. 67 APEPI. Delegacia de Polcia. 1846-1847-48-49-1851/1942. Caixa 570.
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Os cdigos de posturas e as demais leis elaboradas no decorrer do sculo XIX
objetivavam legitimar o domnio senhorial sobre os escravos, no entanto, apesar da existncia
de cdigos que proibiam jogos e bebedeiras entre escravos e entre esses e pessoas livres,
constantemente as mesas de jogos estavam armadas nas quitandas, e os escravos se faziam
presentes sempre que podiam. Provavelmente, as apostas rolavam at tarde da noite e
acreditamos que nesse momento vrios escravos eram recolhidos por andarem depois das dez
horas da noite na rua e sem o bilhete de seus senhores.
O artigo 32 do Cdigo de Postura da cidade de Teresina do ano de 1852 diz que toda
pessoa que for encontrada bria e pelas ruas da cidade ser multada em dois mil ris e trs
dias de priso, sendo escravo s a priso, e o artigo 47 do mesmo cdigo completa: Aos que
consentirem em suas lojas, quitandas, e outras casas pblicas escravos alheios em ociosidade,
ou entretidos em danas e jogos, si impor a multa de 15#Rs com o duplo na reincidncia. 68
notvel que os escravos na Provncia burlavam a ordem disciplinar contida na lei,
reinventavam os espaos e firmavam relaes sociais com libertos e pessoas livres. Assim,
entre apostas, bebedeiras e confuses, escravos, libertos e homens livres construam relaes
de sociabilidade na Provncia durante meados do sculo XIX. Alm de diverso, o jogo
tambm era uma forma de muitos escravos conseguirem dinheiro para a compra de roupas,
bebidas e, at mesmo, da sua alforria.
Uma outra prtica cultural utilizada pelos escravos na Provncia era o bumba-meu-boi,
sua presena dava-se nas festividades das cidades, especialmente na folia de reis. No ritmo
das zabumbas ou das bexigas de bois cheias de ar, escravos danavam o bumba-meu-boi, cuja
origem, apesar de haver uma discusso acerca de ter sido ou no no Piau, sabe-se que essa
manifestao cultural foi muito presente entre os escravos no decorrer do sistema escravista.
O bumba-meu-boi uma das criaes dos trabalhadores escravizados, os quais representaram
a mo-de-obra responsvel pela criao dos rebanhos nas fazendas de gado no Piau durante
todo o regime escravista nessa Provncia.
Sobre a origem do bumba-meu-boi, o folclorista e professor piauiense No Mendes de
Oliveira argumenta que
O certo que nosso Boi originou-se aqui mesmo no Nordeste, uma regio colonizada atravs das fazendas de gado, onde o boi era o centro da sobrevivncia local. E o Piau o estado onde esse relacionamento tornou-se
68 CDIGO de postura de Teresina: 1852. Ttulo 08. Artigo. 57. APEPI. Conselho Municipal de Teresina. Cmara Municipal Teresina. 1833-1854. Caixa. 58.
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mais ntimo. Da a brincadeira estar revestida de tanta popularidade, de tanta pompa e colorido. O boi, para ns, no apenas um animal importante como outro qualquer, mas est revestido de uma profunda significao mtica. 69
De acordo com o mesmo autor, a festa do boi no Piau acontecia no decorrer de todo o
ano e, nas vsperas do perodo de So Joo e So Pedro, tinha-se o chamado boi de junho, que
acontecia, principalmente, nas cidades de Teresina, Amarante e Parnaba. 70
Em alguns momentos, a dana do bumba-meu-boi, assim como outras atividades
culturais dos escravos, trazia preocupaes s autoridades da Provncia. Foi o que aconteceu
durante uma apresentao do bumba-meu-boi na cidade de Teresina, em julho de 1862,
quando o escravo Rufino, que pertencia senhora Cndida Canria, foi recolhido cadeia da
cidade por estar cantando e pronunciando palavras desconhecidas da populao. No relatrio
da Secretaria de Polcia ao Presidente da Provncia, Jos Fernandes Moreira, do dia 25 de
junho de 1862, percebemos a preocupao das autoridades com a atitude do escravo:
Communico V. Ex. que hontem foi preso nesta cidade, a ordem de respectivo Delegado de Policia, o escravo Rufino, pertencente a Cndida Canria, que danara no brinquedo Bumba-meu-boi porque nas cantigas envolvia nomes de pessoas estranhas ao tal brinquedo; e por isso cassei a permisso que dei para ser elle apresentado ao publico desta cidade.71
Para Joo Jos Reis, em seu trabalho sobre as festas de escravos no sculo XIX, os
diversos sentidos e as vrias formas de festa no mundo da escravido, freqentemente,
confundiam os responsveis por seu controle. Existia certa discordncia entre os responsveis
por esse controle. As festas, em sua maioria, simbolizavam formas de subverso que geravam
vrios sentidos. Por um lado, muitos viam a festa e manifestaes culturais dos negros como
uma ameaa ao sistema escravista; por outro seriam uma forma de amenizar as tenses
internas do escravismo.72 importante destacar que concebemos as festas escravas como uma
forma no violenta de resistncia escravido, sendo que as mesmas apresentavam um carter
subversivo.
69 OLIVEIRA, No Mendes de. Folclore Brasileiro: Piau. 2 ed. Teresina: EDUFPI, 1995. p. 56. 70 OLIVEIRA, No Mendes de., op. cit., p. 33. 71 APEPI. Delegacia de Polcia de Teresina. 1846-51-58/1860-69/1870-79/1881-87/1990-97/1900-1942. Caixa 570. 72 REIS, Joo Jos Reis. Batuque negro: represso e permisso na Bahia oitocentista. In: JANCS, Istvn; KANTOR, ris. Festa: cultura e sociedade na Amrica Portuguesa. So Paulo: Fapespi; Imprensa Oficial, 2001. p. 340.
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No Piau, a festa negra, como vimos no caso do escravo que brincava no bumba-meu-
boi, tambm incomodava as autoridades e o restante da populao. De acordo com Mairton
Celestino da Silva, em seu trabalho sobre os batuques de negros na cidade de Teresina, capital
da Provncia, os ajuntamentos de negros cativos e livres eram vistos como um perigo para a
ordem instituda, assim tambm com um entrave ao progresso da nao, objetivo to almejado
entre os dirigentes. Desse modo, esses batuques de negros eram alvos de constante vigilncia
policial. 73
O barulho produzido pelos cantos, risadas, batuques e tambores de negros
incomodavam os habitantes das cidades. Encontramos no jornal O Semanrio algumas
notas sobre uma festa de negro que acontecia na capital da Provncia e que, segundo o mesmo
peridico, incomodava os moradores da rua onde acontecia o tambor.
Alguns moradores da Rua Augusta e suas immediaes, pedem-nos que chamemos a atteno da polcia para o folguedo de negros denominado tambor, que todos os domingos se faz naquella rua. Achamos-lhes razo; porque semelhante brincadeira se torna insuportvel pelo barulho que provoca. justo que cada um procure distrahir-se; mas de forma que a distrao de uns no se torne prejudicial a outros. Podem os negros divertir-se, mas que faam em lugares prprios. Satisfazendo o pedido dessas pessoas, contamos que o Sr. Dr. Chefe de Policia tomar o caso em considerao. 74
Ao que parece, o pedido dos moradores mencionado no peridico foi atendido, no
entanto, uma outra nota surge, um ms aps a que foi citada acima, com uma nova reclamao
sobre a festa dos negros. Segundo o mesmo jornal, o tambor havia sido interrompido por
alguns dias, mas logo voltou a acontecer, sendo que, dessa vez, reapareceu com um
entusiasmo mais frentico, por isso, os moradores da Rua Augusta mais uma vez pedem ao
chefe de polcia que tome providncias com relao festa dos negros, que se repetia naquele
mesmo local e com mais fora. 75
Sobre os meios de se controlar a populao escrava durante o sculo XIX, Joo Jos
Reis assim expe:
73 SILVA, Mairton Celestino da. Batuque na rua dos negros: cultura e polcia na Teresina da segunda metade do sculo XIX. 2008. 137f. Dissertao (Mestrado em Histria) - Centro de Cincias Humanas, Universidade Federal da Bahia, 2008. p. 103. 74 O Semanrio, 17 de agosto de 1878. Ano III. n. 79, p. 04. 75 O Semanrio, 14 de setembro de 1878. Ano III. n. 83, p. 02.
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Aps a Independncia parece ter havido um esforo grande dos governos locais para controlar melhor a populao escrava, por meio de leis provinciais e, sobretudo posturas municipais, entre as quais se incluam as que proibiam terminantemente batuque e tendas de negros em qualquer hora e lugar. 76
A msica fazia parte do mundo dos escravos, tanto dos escravos que vieram da frica,
como dos que tinham nascido no Brasil. Nos documentos analisados sobre a Provncia do
Piau, encontramos algumas referncias a escravos que tocavam instrumentos, que seria uma
outra atividade ldica dos escravos. Karasch, no manuseio de relatos de viajantes, destacou
alguns instrumentos produzidos na cidade do Rio de Janeiro, onde os mesmos eram
fabricados pelos prprios escravos, principalmente pelos africanos. 77
No inventrio do senhor Simplcio Dias da Silva78, morador na cidade de Parnaba, no
ano de 1833, a relao de seus escravos somava 232 trabalhadores em apenas uma de suas
fazendas, e, entre estes, 09 escravos tinham a profisso de tocador, sendo