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 SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS OMC, União Européia e Mercosul

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SOLUO DE CONTROVRSIASOMC, Unio Europia e Mercosul

SOLUO DE CONTROVRSIASOMC, Unio Europia e MercosulAdriana Dreyzin de Klor Luiz Otvio Pimentel Patricia Luza Kegel Welber Barral

EDITOR RESPONSVEL Wilhelm Hofmeister COORDENAO EDITORIAL Eleonora Ceia REVISO Patricia Leite CAPA E DIAGRAMAO Fernanda Abranches

S675 Soluo de controvrsias: OMC, Unio Europia e Mercosul / Adriana Dreyzin de Klor ... [et al.}. - Rio de Janeiro: Konrad-Adenauer-Stiftung 2004, 240p.; 14 x 21 cm. ISBN 85-7504-061-8 1. Pases da Unio Europia Relaes econmicas exteriores Amrica Latina. 2. Amrica Latina Relaes econmicas exteriores Pases da Unio Europia. 3. Jurisdio (Direito internacional pblico) 4. Direito internacional pblico e direito interno. I. Klor, Adriana Dreyzin de. II. Konrad-AdenauerStiftung. CDD341.4098

Todos os direitos desta edio reservados FUNDAO KONRAD ADENAUER Centro de Estudos: Praa Floriano, 19 30 andar CEP 20031-050 Rio de Janeiro, RJ Brasil Telefone: 0055-21-2220-5441 Telefax: 0055-21-2220-5448 Impresso no Brasil

Sumrio

ApresentaoWILHELM HOFMEISTER ................................................................................7

Captulo 1 Soluo de Controvrsias na OMCWELBER BARRAL ....................................................................................... 11

Captulo 2 O Sistema de Soluo de Controvrsias na Unio EuropiaPATRICIA LUZA KEGEL ............................................................................. 69

Captulo 3 O Sistema de Soluo de Controvrsias do MercosulLUIZ OTVIO PIMENTEL E ADRIANA DREYZIN DE KLOR ...........................141

Os autores ...................................................................................................... 235

Apresentao

A presente publicao fruto de um projeto de pesquisa promovido pela Fundao Konrad Adenauer, tendo por finalidade apresentar o sistema multilateral de soluo de controvrsias no mbito da OMC e de dois modelos distintos de integrao regional: o da Unio Europia e do Mercosul e suas eventuais inter-relaes. Nesta perspectiva, o objetivo precpuo deste trabalho contribuir para a discusso sobre o tema soluo de controvrsias no futuro acordo comercial entre ambos os blocos regionais. O pressuposto condutor deste trabalho, baseia-se no fato de que o comrcio internacional tem passado por um processo gradual, porm contnuo de institucionalizao, inicialmente atravs do Acordo Geral sobre Tarifas e Comrcio (GATT), de 1947 e posteriormente com a concluso da Rodada Uruguai e a criao da Organizao Mundial do Comrcio (OMC) em 1994. Este aumento do grau de institucionalizao representou tambm a jurisdicionalizao do comrcio internacional, e neste sentido, o aperfeioamento do sistema de soluo de controvrsias instaurado com a OMC, tornou-se fundamental para que fosse estabelecida a necessria segurana jurdica na soluo dos litgios surgidos no mbito global das relaes comerciais internacionais. Do mesmo modo, a formao de blocos econmicos regionais, de variada intensidade em seus nveis de integrao, ocasionou o surgimento de diferentes sistemas de resoluo de litgios inicialmente circunscritos a seus Estados membros. Por outro lado, a possibilidade de dois blocos regionais celebrarem7

entre si um acordo de livre comrcio, acentua a superposio de distintos sistemas de soluo de controvrsias, os quais podem apresentar eventuais incompatibilidades, tanto formais (processuais), quanto materiais (determinao da norma aplicvel). Para atingir seus objetivos, e mantendo a autonomia conceitual e terica de cada pesquisador, o trabalho foi estruturado em trs captulos, cujo eixo temtico a apresentao da estrutura processual de cada um dos distintos sistemas de soluo de controvrsias, bem como de suas principais implicaes positivas e/ou negativas no inter-relacionamento com os demais atores comerciais internacionais. No caso da OMC, as modificaes introduzidas pelo sistema de soluo de controvrsias aps o final da Rodada Uruguai, geraram a expectativa, tanto nos crculos acadmicos quanto diplomticos, da estabilizao e consolidao das relaes comerciais internacionais em torno a uma ordem jurdica institucionalizada. Em outros termos, esperava-se que as incertezas decorrentes do antigo modelo do GATT/47 de soluo de controvrsias, em especial seu carter diplomtico e negociador, pudessem ser superadas atravs do novo sistema, cuja nfase se d na explicitao dos procedimentos adotados, visando conceder maior transparncia e previsibilidade ao sistema. Ocorre, entretanto, que quase dez anos aps o Tratado de Marrakech, a avaliao das mudanas introduzidas permite identificar alguns problemas. Neste sentido, o artigo do professor Welber Barral apresenta o sistema de soluo de controvrsias da OMC, incluindo suas principais limitaes e perspectivas futuras, desde os problemas derivados da implementao das decises prolatadas at o relacionamento com outros rgos jurisdicionais internacionais e Tribunais nacionais. Por seu lado, apesar de suas origens vinculadas a um processo de integrao inicialmente econmico-comercial, a Unio Europia constituiu-se em um fenmeno poltico-jurdico indito na histria do relacionamento entre Estados. Seu elemento mais marcante e peculiar em relao s demais Organizaes Inter8

nacionais de Cooperao Econmica, seu carter supranacional, do qual deriva a especificidade da ordem jurdica comunitria, e em especial, de seu sistema de soluo de controvrsias. A professora Patricia Luza Kegel analisa a estrutura jurisdicional e recursal comunitria a partir da perspectiva supranacional, inclusive quanto co-determinao do relacionamento externo da Unio Europia com seus parceiros comerciais. Nesta tica, so estudados os sistemas de soluo de controvrsias nos acordos comerciais bilaterais j celebrados pela Unio Europia, bem como seu posicionamento em relao ao sistema multilateral da OMC. Sendo um processo mais recente de integrao regional, o Mercosul encontra-se, ainda, em fase de consolidao plena de sua estrutura jurdica e institucional. Os autores Luiz Otvio Pimentel e Adriana Dreyzin de Klor expem o mecanismo de soluo de controvrsias adotado pelo Protocolo de Olivos, recordando inclusive, as razes que levaram modificao do Protocolo de Braslia. Igualmente analisada, de forma crtica, a situao dos particulares no novo sistema de Olivos, bem como a incompatibilidade com o ordenamento jurdico dos EstadosPartes do Mercosul a criao de um Tribunal supranacional ao estilo comunitrio. O projeto do acordo birregional Mercosul Unio Europia indissocivel do marco mnimo fornecido pelas regras da Organizao Mundial do Comrcio, inclusive no que respeita aos sistemas de soluo de controvrsias. Por outro lado, tambm um acordo amplo o suficiente para necessitar normas claras que promovam a previsibilidade e segurana jurdica aos atores comerciais. A Fundao Adenauer e os autores esperam que este trabalho possa contribuir para a ampliao e aprofundamento do debate.

Wilhelm Hofmeister Diretor do Centro de Estudos da Fundao Konrad Adenauer no Rio de Janeiro

9

Captulo 1Soluo de Controvrsias na OMC*

WELBER BARRAL

1. INTRODUO Com a criao da Organizao Mundial do Comrcio (OMC), supunha-se que uma nova fase estaria sendo inaugurada nas relaes internacionais contemporneas. No conjunto normativo da OMC, uma inovao bastante comemorada foi a criao de uma nova sistemtica para a soluo de controvrsias. Muito comentado no meio acadmico, o sistema de soluo de controvrsias materializado aps a Rodada Uruguai prometia ser um fato marcante na tentativa de consolidar uma ordem jurdica internacional mais segura e previsvel. Oito anos depois do histrico encontro em Marrakech, podese fazer uma avaliao sobre as expectativas criadas com a OMC. Ao mesmo tempo, pode-se vislumbrar alguns problemas, decorrentes, sobretudo, da implementao das decises e de vazios processuais no imaginados quando do fim da Rodada Uruguai. O presente artigo dedica-se a apresentar o sistema de soluo de controvrsias da OMC, avaliando a prtica acumulada neste primeiro perodo. Para tanto, o captulo seguinte apresenta* O presente texto foi revisado por Gustavo Ferreira Ribeiro, Mestrando do curso de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. 11

r a evoluo do sistema, e seus traos caractersticos materializados pela Rodada Uruguai. O terceiro captulo informa quem so as partes envolvidas no procedimento, qual a capacidade processual e os limites de atuao de cada uma. O captulo seguinte detalhar as vrias fases do procedimento, comparando-as com a jurisprudncia acumulada at agora. A quinta parte dedica-se matria atualmente mais complexa no mbito da OMC: a fase da implementao da deciso; conforme se demonstrar, nesta fase que se concentram os grandes problemas atuais para dar maior previsibilidade s solues de controvrsias na OMC. A penltima parte aborda um problema recente, e crescentemente relevante: a relao entre o sistema de soluo de controvrsias da OMC e, de um lado, os demais tribunais internacionais, e de outro, os tribunais nacionais. Por fim, uma parte conclusiva delineia os principais desafios para OMC, a fim de que seu sistema de solues de controvrsias possa servir como um mecanismo de garantia de legitimidade nas relaes econmicas internacionais.

2. HISTRICO

2.1 Evoluo no GATT A atual estrutura jurdica do comrcio internacional teve origem recente nos acordos de Bretton Woods, ao final da Segunda Guerra Mundial. A partir daquele encontro histrico, firmaram-se as bases para a estruturao de uma ordem jurdica internacional calcada na criao de instituies internacionais com poder regulatrio, destinadas a evitar as crises econmicas do perodo entre guerras. Daquela reunio, surgiram os projetos para a criao do Fundo Monetrio Internacional (FMI), do Banco Internacional de Reconstruo e Desenvolvimento (BIRD), e para a criao de uma Organizao Internacional do Comrcio (OIC).12

Os dois primeiros projetos tiveram melhor sorte, mas a OIC nunca se concretizou, fundamentalmente em razo da oposio do senado norte-americano. Em seu lugar, entrou provisoriamente em vigor o Acordo Geral sobre Tarifas e Comrcio (GATT-1947), cujo objetivo primordial era servir como o foro de negociao para a reduo de barreiras tarifrias. O GATT-1947 no continha regras sobre um sistema para a soluo de controvrsias entre as partes contratantes.1 Tampouco havia referncia possibilidade de recurso a um tribunal internacional existente quela poca, como a Corte Internacional de Justia (CIJ). De fato, como foro de negociaes que era, o GATT-1947 ressaltava a soluo diplomtica dos conflitos porventura existentes. Desta forma, o Artigo XXII direcionava a parte reclamante a buscar consultas com a outra, em relao a problemas relacionados com o Acordo Geral. O outro nico artigo sobre soluo de controvrsias, Artigo XXIII, previa a possibilidade de investigaes, recomendaes ou determinaes pelas partes contratantes, que poderiam suspender concesses negociadas entre as mesmas, se as circunstncias fossem srias o bastante para justificar tais medidas. Nos primeiros anos do GATT-1947, esses dispositivos levaram criao de grupos de trabalho para apresentar relatrio sobre reclamaes apresentadas pelas partes contratantes, e recomendar solues prticas para o problema. A evoluo desta prtica resultou numa primeira regulamentao, em 1952, que estabeleceu procedimentos mais formais para o funcionamento dos painis. Esta foi a primeira mudana relevante no sentido de garantir uma soluo jurdica para as controvrsias entre as partes contratantes do GATT, e no apenas procedimentos fundados em negociaes entre estas mesmas partes.1. Com efeito, no se pode dizer da existncia de membros quela poca, pois, no havia, stricto sensu uma organizao internacional formada, mas um acordo internacional entre partes contratantes. 13

Nas dcadas seguintes, a tendncia mais ou menos legalista do sistema de soluo de controvrsias no GATT variou imensamente, dependendo da maior ou menor crena no multilateralismo por parte dos principais atores do comrcio internacional, sobretudo EUA e as Comunidades Europias (CE). Ao fim da Rodada Tquio (1973-1979), um entendimento sobre soluo de controvrsias foi negociado, modificando a prtica adotada at ento: apresentao da reclamao a um painel com trs membros, que remetia um relatrio sobre o problema para o Conselho do GATT. Mas havia a necessidade de consenso no Conselho isto , entre todas as partes contratantes quanto convenincia de instalao do painel, e tambm para aprovao do relatrio final apresentado por este painel. Isto possibilitava que a parte reclamada pudesse bloquear a instalao do painel ou a adoo de seu relatrio. Esta era a mais grave falha do sistema de soluo de controvrsias do GATT. De outro lado, havia ainda problemas de: a) linguagem vaga, com poucas definies sobre o procedimento; b) pouca transparncia sobre o procedimento e os acordos eventualmente adotados pelas partes contratantes envolvidas na controvrsia; c) existncia de vrios procedimentos, a depender da matria em discusso; d) presso dos governos mais poderosos sobre os membros do painel.2

2.2 Rodada Uruguai Quando a Rodada Uruguai se iniciou, em 1986, a reforma do sistema de soluo de controvrsias era um dos temas para a negociao. A abordagem desse tema sempre foi pendular, entre aqueles que preferiam a manuteno de uma estrutura baseada em negociaes entre as partes eventualmente envolvidas numa controvrsia, e outro grupo que pretendia promover uma estrutura2. Jackson, 1999, p. 10. 14

mais baseada em regras. Os argumentos dos primeiros eram centrados no fato de que a flexibilidade diplomtica era mais compatvel com a natureza poltica inerente dos acordos comerciais. No outro extremo, os defensores do legalismo argam que regras mais estritas, e mais fundamentadas em uma interpretao jurdica que obrigasse a todas as partes contratantes, traria maior previsibilidade ao sistema multilateral do comrcio e melhor garantiria a defesa dos interesses de todos os Estados envolvidos. O resultado destas vises contrapostas foi o Entendimento Relativo s Normas e Procedimentos sobre Soluo de Controvrsias (ESC), que passou a constituir um dos acordos obrigatrios para os Membros da ento criada OMC. Conforme se detalhar nos captulos seguintes, o ESC consolidou uma viso mais legalista (rule-oriented) das relaes comerciais internacionais; ao mesmo tempo, manteve algumas importantes brechas para que as solues negociadas fossem preferveis ao litgio entre os Membros da OMC. Assim, podem-se destacar como caractersticas fundamentais do ESC: a) trata-se de um sistema quase judicial, tornado independente das demais partes contratantes e dos demais rgos da OMC;3 cria um mecanismo obrigatrio para os Membros da OMC, sem necessidade de acordos adicionais para firmar a jurisdiO sistema tem natureza sui generis. Possui caractersticas de arbitragem na medida em que um painel estabelecido ad hoc. Ao mesmo tempo se diz judicialiforme quando o demandante pode ser ouvido em um painel, as partes podem apresentar suas argumentaes de forma oral e escrita, terceiros (Estados) podem intervir nos procedimentos e as partes podem recorrer a um rgo de apelao. Por ltimo, como o demandante pode acionar o sistema unilateralmente, os procedimentos e a lei aplicvel so pr-determinados, os terceiros podem intervir sem o consentimento das partes e existe um rgo de apelao permanente, refora-se seu carter judicial. Cf. Iwasa, 2002, p. 287-305. 15

b)

3.

c)

d)

e)

f)

o daquela organizao internacional em matria de conflitos relativos a seus acordos; o sistema quase automtico, e somente poder ser interrompido pelo consenso entre as partes envolvidas na controvrsia, ou pelo consenso entre todos os Membros da OMC para interromper uma fase (consenso reverso); o sistema pode interpretar as regras dos acordos da OMC, mas no aumentar nem diminuir os direitos e obrigaes de seus Membros; o sistema termina com a possibilidade, vrias vezes adotada durante o GATT, de que um Membro da OMC possa impor sanes unilaterais em matria comercial, sem que a controvrsia tenha sido previamente avaliada pela OMC; finalmente, o ESC determina a exclusividade do sistema para solucionar controvrsias envolvendo todos os acordos da OMC, eliminando desta forma a proliferao de mecanismos distintos, como ocorria poca do GATT-1947; foram mantidas ainda algumas regras excepcionais, discutidas abaixo, mas que no destoam fundamentalmente do procedimento geral adotado.

2.3 O ESC na OMC Como se disse acima, o Entendimento sobre Soluo de Controvrsias (ESC) uma das inovaes obtidas aps a Rodada Uruguai. Entre os objetivos declarados da OMC, est o de administrar o sistema de soluo de controvrsias, o que realizado pelo rgo de Soluo de Controvrsias (OSC), que, por sua vez, composto por representantes de todos os Membros da OMC.44. Acordo Constitutivo, Art. 3:3. 16

As outras funes da OMC, segundo seu Acordo Constitutivo, so de implementar os acordos,5 servir como foro de negociaes6 e monitorar as polticas comerciais dos Membros. Estas funes so desempenhadas pela Conferncia Ministerial, rgo mximo, e pelo Conselho Geral, que se rene na qualidade de OSC ou de Mecanismo de Reviso de Polticas Comerciais. O conjunto normativo da OMC abrange uma estrutura extensa e complexa. Alm dos trs acordos fundamentais (GATT 1994, Acordo Geral sobre o Comrcio de Servios - GATS - e o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comrcio - TRIPS), h diversos acordos complementares com implicaes regulatrias para o comrcio internacional. Observe-se que todos esses acordos so obrigatrios para os Membros da OMC, com exceo dos denominados acordos plurilaterais.7 Os princpios fundamentais da OMC so o da nao mais favorecida (NMF) e do tratamento nacional (TN). Pelo princpio NMF, qualquer vantagem concedida a um parceiro comercial estende-se automaticamente a todos os demais Membros da OMC. De acordo com o princpio TN, um Membro da OMC no pode discriminar produtos importados originrios dos territrios de outros Membros, devendo lhes garantir o mesmo tratamento jurdico concedido aos produtores nacionais.5. 6. 7. Acordo Constitutivo, Art. 3:1. Acordo Constitutivo, Art. 3:2. Os acordos plurilaterais foram originariamente negociados na Rodada Tquio. Atualmente, esto em vigor o Acordo sobre Comrcio de Aeronaves Civis e o Acordo sobre Compras Governamentais. O primeiro entrou em vigor em 1980 contando com 26 Partes Contratantes. O segundo entrou em vigor em 1981 e foi renegociado em 1996 entre 25 Partes Contratantes. Dois outros acordos plurilaterais, o Acordo sobre Carne Bovina e o de Produtos Lcteos foram desfeitos em 1997 quando as Partes Contratantes constataram sua pouca utilidade tendo em vista o baixo nmero de adeses e dificuldade em se acordar preos mnimos entre as Partes. Disponvel em: http://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/tif_e/agrm9_e.htm#govt. Acesso em: 14 ago. 2003. 17

Esses dois princpios fundamentais foram estendidos ao longo dos cinqenta anos de construo do sistema multilateral do comrcio. Fundamentalmente, esses princpios buscam substanciar o iderio do livre comrcio. As demais regras da OMC so tentativas de aplicao destes princpios a novos tipos de barreiras, sobretudo barreiras no tarifrias, ou excees a esses princpios, com fundamento em outros interesses relevantes dos Membros ou da sociedade internacional. De acordo com o ESC, o sistema de soluo de controvrsias tem jurisdio para resolver quaisquer controvrsias entre os Membros da OMC que derivem dos acordos firmados no mbito da OMC, inclusive de seu acordo constitutivo.8 Isto cria uma situao processual que visa garantir maior previsibilidade para a soluo das controvrsias. Isto porque alm do ESC abranger todos os acordos da OMC, ele tambm cria uma jurisdio compulsria para os seus Membros, sem necessidade de acordos adicionais, ficando os Membros obrigados a recorrer e acatar as normas e procedimentos do presente Entendimento.9 Ainda em termos processuais, importante notar que o sistema de soluo de controvrsias da OMC baseia-se no direito de um Membro reclamar da violao de regras especficas por outro Membro, devendo tais regras violadoras serem identificadas especificamente pela parte reclamante. Para ser mais exato, a evoluo a partir do GATT permite seis tipos de reclamao. No h correspondncia exata entre a sistemtica processual adotada na OMC e a teoria processual brasileira. A terminologia utilizada neste artigo, portanto, aproximativa, objetivando expor de forma didtica aquele sistema de soluo de controvrsias. Por isso, quando se menciona que h seis tipos de reclamao na OMC, esta classificao no deriva diretamente do tipo de procedimento aplicvel a cada uma, como8. 9. ESC, 1:1. ESC, 23:1. 18

da tradio brasileira, e sim de trs tipos de fundamento jurdico que podem ser invocados para embasar o interesse de agir do Membro reclamante da OMC. Assim, no caso do GATT, por exemplo, a possibilidade jurdica da reclamao tem que estar formulada a partir de (a) qualquer benefcio decorrente do acordo estar sendo anulado ou prejudicado (nullification); ou (b) o atingimento de qualquer objetivo do acordo estar sendo impedido (impairment). Ao mesmo tempo, o Membro reclamante dever comprovar que este fundamento jurdico decorre da: a) b) falha de outro Membro em cumprir as obrigaes previstas no acordo (reclamao por violao); ou aplicao por outro Membro de qualquer medida, conflitante ou no com as regras do acordo (reclamao sem violao); ou existncia de qualquer outra situao (reclamao situacional).

c)

Demonstrar a existncia do fundamento para um desses tipos de reclamao embasa o interesse de agir10 do Membro da OMC. As reclamaes por violao so o tipo mais comum utilizado no sistema de soluo de controvrsias. Na histria das controvrsias comerciais, houve raros casos de reclamaes sem violao e nenhuma reclamao situacional. Isto pode ser compreendido tambm pelo fato de que, segundo as regras da OMC, uma vez comprovada a existncia de violao da regra existente em outros acordos, h uma presuno prima facie de prejuzo. Em outras palavras, o Membro reclamante precisa demonstrar apenas que a medida ou legislao nacional reclamada conflita com uma regra vigente do conjunto normativo da OMC. Comprovado este conflito, presume-se que haja uma diminuio dos10. Aqui entendido como a necessidade da prestao jurisdicional com a providncia adequada satisfao de tal necessidade. Bermudes, 1996, p. 50. 19

benefcios acordados, sem que o Membro reclamante tenha que comprovar efetivamente esses prejuzos. Ainda sobre o procedimento adotado no sistema de soluo de controvrsias da OMC, duas observaes gerais devem ser feitas, antes do exame deste procedimento. Primeiro, que embora o sistema criado pela Rodada Uruguai seja unificado e aplicvel para todos os acordos abrangidos pela OMC, existem ainda regras especiais, constantes nos acordos especficos, e que podem criar algumas particularidades a depender da matria objeto da controvrsia. Exemplos neste sentido o padro de reviso especfico do Acordo Antidumping (AA),11 ou a existncia de um rgo de superviso, no caso de txteis, no Acordo de Txteis e Vesturio (ATV).12 Outra observao importante se refere aos diversos mtodos de soluo de controvrsias previstos no mbito do ESC, e utilizveis a depender de sua aplicabilidade ou do acordo entre as partes envolvidas na controvrsia. Desta forma, o ESC prev, como instncias obrigatrias, as consultas entre os Membros envolvidos na controvrsia e a deciso quase-judicial materializada no relatrio dos painis. Mas poder haver, ainda: a) recurso ao rgo de Apelao (OAp), pelo Membro que discorde do relatrio do painel, o que quase sempre ocorre na prtica; bons ofcios, conciliao ou mediao, inclusive com a interveno do Diretor-Geral da OMC, para buscar uma soluo negociada para a controvrsia; e evidentemente, isso depender do acordo entre as partes para aceitar a interveno do terceiro;13 arbitragem: podem ainda os Membros envolvidos numa controvrsia acordar em submet-la diretamente arbitragem,

b)

c)

11. AA, Artigo 17:6. 12. ATV, Art. 8. A lista de todas regras excepcionais consta no Apndice II do ESC. 13. ESC, 5. 20

identificando claramente as questes conflitantes e concordando em obedecer ao laudo arbitral;14 esta prerrogativa raramente utilizada pelos Membros da OMC. Pode-se questionar sobre as razes para a prevalncia dos mtodos jurisdicionais na soluo de conflitos entre Membros da OMC, nesta primeira dcada de experincia. Mas, seguramente, a explicao mais realista decorre do fato de que um Membro da OMC, quando enfrenta alguma reclamao por parte de outro, tenta prorrogar ao mximo a revogao da medida nacional que est sendo questionada. Ou seja, a prtica at agora revela que os Membros discutem todos os argumentos e apresentam todos os recursos possveis, mesmo quando parece pouco provvel a legalidade das medidas que defendem, o que tambm praxe em processos nacionais. Ainda assim, o ESC foi profcuo em inserir diversos dispositivos que recordam a preferncia pela soluo negociada das controvrsias entre os Membros da OMC. Assim, o ESC assevera que objetivo do mecanismo de soluo de controvrsias garantir uma soluo positiva para as controvrsias. Dever ser sempre dada preferncia soluo mutuamente aceitvel para as partes em controvrsia e que esteja em conformidade com os acordos abrangidos,15 ao mesmo tempo, o primeiro objetivo do mecanismo de soluo de controvrsias ser geralmente o de conseguir a supresso das medidas de que se trata, caso se verifique que estas so incompatveis com as disposies de qualquer dos acordos abrangidos.16 Esses dispositivos so herana visvel do carter negocial na soluo das controvrsias originado poca do GATT-1947. Por isso, correto afirmar que houve um adensamento de juridicidade com o advento da OMC, mas no se pode pretender que o atual sistema seja puramente jurdico, com absoluta neutralidade quanto14. ESC, 25. 15. ESC, 3:7. 16. ESC, 3:7. 21

ao efeito poltico das decises ou ao poder econmico dos Membros envolvidos em cada controvrsia.17 Nenhum sistema de soluo de controvrsias neutro, obviamente. No caso da OMC, esta realidade expressamente reconhecida, asseverando-se que um acordo entre as partes poder ser mais vantajoso do que o litgio, e que o objetivo do ESC , antes de tudo, conseguir eliminar a medida atentatria s regras do livre comrcio, e no garantir compensao por eventual responsabilidade internacional de seus Membros. Este carter oscilante entre legalismo e foro negocial suscita muitas incompreenses entre os crticos da OMC, para quem o reforo do carter estritamente jurdico poderia garantir maior justia na soluo das controvrsias internacionais. Entretanto, h que se observar que a prpria evoluo do sistema de soluo de controvrsias no comrcio internacional sempre foi matizada por extremo pragmatismo, e foi isto provavelmente que garantiu a evoluo dos mecanismos utilizados e sua atual credibilidade, sendo o mais utilizado entre os tribunais internacionais. Tivesse se baseado somente em consideraes estritas de legalidade, provavelmente houvesse menor percentual de cumprimento, pelos Membros, das decises da OMC. Sob este prisma, o sistema de soluo de controvrsias criado na Rodada Uruguai no eliminou o carter realista das relaes econmicas internacionais, mas domesticou este realismo por meio de procedimentos que expem as controvrsias em curso, criando uma motivao para o acordo entre os Membros ou para o cumprimento das decises aprovadas pelo OSC.

3.

AS PARTES NO OSC

Esta parte se dedica a esclarecer quais so as pessoas e entidades envolvidas no sistema de soluo de controvrsias da17. Sobre o conceito de adensamento de juridicidade, veja-se Lafer, 1998, p. 125-130. 22

OMC. Em regra, como as demais organizaes internacionais de carter intergovernamental, a OMC composta por Estados soberanos, que tm poder de interveno e representatividade em todos os atos decisrios da Organizao. Entretanto, a relevncia da OMC e a particularidade do sistema de soluo de controvrsias criaram situaes peculiares, tanto no que se refere representao dos Membros, quanto eventual manifestao de entidades no-governamentais com interesse na soluo da controvrsia. As pginas seguintes discutem cada uma dessas particularidades.

3.1 Membros da OMC As organizaes internacionais de carter intergovernamental tm, como uma de suas caractersticas clssicas, a participao exclusiva de Estados soberanos como Membros. Na teoria clssica do direito internacional, os Estados so aqueles que detm a personalidade jurdica, o pressuposto para ser sujeito de direitos e obrigaes no plano internacional. Este dogma do direito internacional clssico vem sendo excepcionado pelos novos ramos, sobretudo pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos e pelo Direito Internacional Econmico. Neste ltimo caso, pela atribuio de determinadas garantias ou prerrogativas a sujeitos no estatais, sobretudo nos mecanismos de soluo de controvrsias criados em matria econmica.18 No sistema multilateral do comrcio, a primeira exceo ao carter estatal dos sujeitos internacionais vem do GATT-1947, quando se reconheceu aos territrios aduaneiros o direito de serem18. Um exemplo de possibilidade de acesso de pessoas fsicas a um rgo internacional, em matria econmica, o International Centre for Settlement of Investments Disputes (ICSID). Trata-se de uma organizao internacional ligada ao BIRD que possui um sistema de soluo de controvrsias para investimentos privados, com uso de mediao e arbitragem. Tanaka, 1998, p. 77-82. 23

partes do Acordo Geral.19 Outra situao particular foi criada na Rodada Uruguai, quando se reconheceu s Comunidades Europias o carter de Membro, representando os quinze Estados da Unio Europia. Formalmente, os Membros da OMC tm direitos iguais em todos os rgos componentes da organizao. Obviamente, no mundo real, os Membros com a maior participao no comrcio internacional - EUA, CE e Japo - tm atuao determinante no processo decisrio, e so atores relevantes e constantes no sistema de soluo de controvrsias. Alm do que, foram criadas tambm regras especiais, discutidas abaixo, para os pases em desenvolvimento.

3.2 Pases em desenvolvimento Ao longo da histria do sistema multilateral do comrcio, houve vrias tentativas de criao de acordos preferenciais entre pases em desenvolvimento. A mais importante dessas iniciativas foi a criao da Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e Desenvolvimento (UNCTAD), ainda atuante. Malgrado essas iniciativas, a criao da OMC envolveu praticamente todos os pases em desenvolvimento, que hoje representam a maioria de seus Membros. Historicamente, esses pases tm defendido a necessidade de um tratamento especial e diferenciado, que pudesse atender s suas dificuldades de crescimento econmico. Entre os pases em desenvolvimento, h ainda regras especiais para os denominados pases de menor

19. Veja-se Art. XXIV, GATT-1947. Atualmente, os seguintes territrios aduaneiros so Membros da OMC: Hong Kong (China), Macau (China) e Taip Chinesa (territrios aduaneiros separados de Taiwan, Penghu, Kinmen e Matsu). A lista dos atuais 146 Membros encontra-se disponvel em: http:/ /www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/tif_e/org6_e.htm. Acesso em: 14 ago. 2003. 24

desenvolvimento relativo, cuja participao no comrcio internacional nfima. No sistema de soluo de controvrsias, tem sido impressionante a crescente participao de pases em desenvolvimento principalmente como reclamados. Isto pode ser explicado pelo aumento de competitividade no mercado internacional, o que leva os competidores internacionais a terem menor tolerncia com instrumentos tradicionais de promoo comercial, muitas vezes utilizados por pases em desenvolvimento, mas que violam as regras da OMC.20 No ESC, constam dispositivos que reconhecem a situao particular dos pases em desenvolvimento. O grande problema que a maioria dessas regras contm expresses vagas, que trazem pouca ou nenhuma vantagem efetiva para a defesa dos interesses dos pases em desenvolvimento. Desta forma, afirmar que durante as consultas os Membros devero dar ateno especial aos problemas e interesses especficos dos pases em desenvolvimento;21 dispor que nas questes que envolvam interesses de pases em desenvolvimento, os Membros devero receber ateno especial no que tange s medidas que tenham sido objeto da soluo de controvrsias;22 prever que o OSC dever levar em considerao no apenas o alcance comercial das medidas em discusso mas tambm seu20. Com base em estatsticas de Park & Panizzon at maro de 2002, do total de 142 Membros quela poca, cerca de 92 (62%) eram considerados pases em desenvolvimento, 29 (20%) de menor desenvolvimento relativo, 25 (18%) pases desenvolvidos. Tais porcentagens se alteram para 63%, 20% e 17%, respectivamente, com a entrada de Armnia e Macednia, em 2001, e China e Taip Chinesa em 2002. Dos 235 casos analisados entre 1995 e 2001, os pases desenvolvidos participaram, em mdia, como reclamantes, em cerca de 73% dos casos. Em 2000, a relao se equilibrou. Em 2001, entretanto, dos 22 casos levados ao OSC, os pases em desenvolvimento atuaram como reclamantes em 82% dos casos. Veja-se Park & Panizzon, 2002, p. 221-227. 21. ESC, Art. 4:10. 22. ESC, Art. 21:2. 25

impacto na economia dos pases em desenvolvimento;23 e ordenar que as partes reclamantes devero exercer a devida moderao ao pleitear compensaes ou solicitar autorizao para suspenso da aplicao de concesses [contra pases de menor desenvolvimento relativo];24 so expresses com pouca eficcia para garantir tratamento processual diferenciado entre pases com nveis de desenvolvimento distintos. Alm de frases retricas, outras regras do ESC aludem especificamente aos pases em desenvolvimento. Desta forma, permite-se que esses pases ainda possam invocar a Deciso de 1966 do GATT.25 Esta deciso cria um procedimento alternativo que, teoricamente, facilitaria as reclamaes de pases em desenvolvimento. Na prtica, este procedimento alternativo at agora no foi invocado por qualquer dos pases em desenvolvimento. Outro dispositivo assevera que o painel deve garantir ao pas em desenvolvimento tempo bastante para apresentar sua reclamao.26 Em um caso, o painel concedeu ndia prazo adicional de dez dias para apresentar sua argumentao.27 Uma questo interessante e crescentemente debatida pelos representantes dos pases em desenvolvimento e na literatura especializada a dificuldade desses pases em manter profissionais especializados que pudessem defender seus interesses diante de um sistema complexo como o da OMC.28 No ESC, h ainda dois artigos que buscam preencher esta necessidade. Um deles garante a presena de um integrante originrio de pases em desenvolvimento23. 24. 25. 26. 27. 28. ESC, Art. 21:8. ESC, Art. 24:1. ESC, Art. 3:12. ESC, Art. 12:10. WT/DS90/AB/R. ndia-Restries quantitativas, par. 5.10. [O]s Estados Unidos e a CE esto capacitados a moldar o sistema legal da OMC a seu favor ao longo do tempo. O frum distante. O expertise legal menos disseminado e, portanto, mais caro. H uma influncia do common law no sistema legal da OMC, pois, o Secretariado e o OAp foram treinados pelo Professor John Jackson, formando um grupo que se autoreferencia comumente como parte da mfia de Jackson. Shaffer, 2002, p. 6-8. 26

no painel.29 Isto evidentemente no gera nenhum tipo de garantia adicional, uma vez que este integrante estar em menor nmero, e de qualquer forma o relatrio poder ser revisto pelo OAp. Outro dispositivo determina que o Secretariado da OMC preste assistncia jurdica adicional aos pases em desenvolvimento, mas resguardando sua imparcialidade.30 Novamente, no houve efeitos prticos para este dispositivo. Passados oito anos de vigncia do ESC, no houve qualquer reclamao proposta por pases de menor desenvolvimento relativo. importante lembrar que muitos desses pases sequer tm representao permanente em Genebra, quanto menos conseguiriam manter ou contratar especialistas para a defesa de seus interesses comerciais no sistema de soluo de controvrsias. Em razo disto, em 2001, consolidou-se a iniciativa para se criar um centro consultivo, uma organizao intergovernamental independente da OMC destinada a fornecer consultoria e treinamento para os pases em desenvolvimento (The Advisory Law Centre on WTO Law ACWL).31 Este Centro, criado com doaes dos Membros da OMC, uma iniciativa interessante no sentido de garantia do acesso justia internacional. O curto perodo de existncia, entretanto, no permite uma avaliao mais concreta quanto eficcia desta iniciativa. Ainda sobre os interesses dos pases em desenvolvimento, vale recordar uma questo bastante debatida h algum tempo, mas que acabou sendo pacificada pelo entendimento do OAp. No caso CE-Bananas III, Santa Lucia se fez representar por um advogado privado, o que suscitou a imediata oposio da CE. O painel, entretanto, manteve o representante indicado, o que foi confirmado posteriormente pelo OAp.32 O OAp observou ainda que este tipo de representao, escolhida pelo prprio governo29. ESC, Art. 8:10. 30. ESC, Art. 27:2. 31. Informaes gerais sobre o ACWL, disponvel em: http://www.acwl.ch/. Acesso em: 14 ago. 2003. 32. WT/DS27/AB/R. CE-Bananas III, par. 12. 27

[de um Membro] pode ser de particular significncia, especialmente para Membros em desenvolvimento para que participem integralmente nos procedimentos do sistema de soluo de controvrsias.33 Consolidou-se, destarte, o entendimento de que pode haver a participao de advogados privados no sistema de soluo de controvrsias da OMC, desde que sejam indicados como componentes da delegao oficial dos Membros envolvidos. Esta situao suscita, evidentemente, novas questes sobre aspectos ticos e de confidencialidade, que vm inclusive sendo discutidos na literatura.34

3.3 Terceiros interessados Conforme se mencionou, um Membro da OMC que julgue que suas vantagens advindas dos acordos sendo anuladas ou impedidas, poder apresentar uma reclamao, ao OSC, contra o Membro que julgue estar adotando medidas contrrias a seus interesses. Mas, alm das partes diretamente envolvidas no conflito, o ESC permite que outros Membros da OMC tenham participao limitada na soluo da controvrsia, se tiverem um interesse concreto (substantial interest) no assunto submetido ao painel.35 Esses terceiros interessados podero participar de todo o procedimento e apresentar suas manifestaes ao painel e, eventualmente, ao OAp. No tm, entretanto, direito de recorrer do relatrio do painel.3633. Id. par. 12. 34. This issue now seems to be resolved in favor of the sovereign member disputants choice to hire private counsel. In that case, however, there may develop some questions about ethical or appropriate conduct rules. Ideas about these rules could be approached in different ways, including voluntary codes or commentary from authors as suggestions which might influence how governments relate to their private counsel. More attention may be needed to this question. Jackson, 1999, p. 7. 35. ESC, Art. 10:2. 36. ESC, Art. 17:4. 28

A interveno de terceiros Membros, interessados na soluo da controvrsia, foi imaginada como um meio de dar maior transparncia soluo adotada, e tambm de impedir que solues negociadas pudessem ser alcanadas s custas dos interesses dos demais Membros ou das regras multilaterais do comrcio.37 A prtica nesta matria, entretanto, tem sido de que alguns Membros - notadamente EUA e CE - intervm como terceiros interessados em praticamente todas as controvrsias, quaisquer que sejam as matrias ou partes envolvidas. Neste caso, seria difcil identificar o interesse concreto desses terceiros. Sua interveno se explica pelo fato de que esses Membros querem influenciar as interpretaes adotadas pelos painis, de forma a no criar precedentes contrrios a seus interesses gerais. Cabe aqui uma observao sobre o carter dos relatrios dos painis e do OAp. Na sistemtica adotada pelo ESC, esses relatrios no tm carter vinculante para decises futuras; ou seja, no se adotou a doutrina do stare decisis, pela qual a criao de um precedente limita, atendidos certos requisitos, a interpretao de futuros casos envolvendo a mesma matria. Na prtica, entretanto, os painis e o OAp fazem constantes remisses a relatrios passados, no apenas para a interpretao de regras da OMC, mas inclusive aos painis criados no mbito do GATT-1947. Estas remisses so invocadas, no como precedente vinculante, mas como interpretao jurisprudencial. Em razo disso, compreende-se porque pases com ampla gama de interesses comerciais acabam decidindo intervir como terceiros interessados diante dos painis, mesmo porque cada Membro da OMC que deve decidir se tem um interesse na controvrsia em questo.37. Por isso, o Art. 10:4 do ESC prev que se um terceiro considerar que uma medida j tratada por um grupo especial anula ou prejudica benefcios a ele advindos de qualquer acordo abrangido, o referido Membro poder recorrer aos procedimentos normais de soluo de controvrsias definidos no presente Entendimento. Tal controvrsia dever, onde possvel, ser submetida ao grupo especial que tenha inicialmente tratado do assunto. 29

3.4 Partes no-governamentais Do que se mencionou at agora, observa-se que o sistema de soluo de controvrsias manteve o carter estatal quanto capacidade para intervir no procedimento. Seja como parte reclamante ou reclamada, seja como terceiro interessado, as previses do ESC centram-se nas figuras dos Estados soberanos e territrios aduaneiros. Entretanto, um tema crescentemente debatido se refere interveno de entidades no-governamentais. A constatao de que os acordos da OMC vo muito alm dos temas clssicos de direito internacional vem suscitando o debate e a mobilizao de empresas, organizaes no-governamentais e, em casos mais raros, de cientistas. A primeira situao mencionada se refere ao impacto das decises da OMC para os interesses de empresas privadas, sobretudo de empresas transnacionais. Em muitos casos, a deciso adotada pelo OSC tem impacto relevante para a competitividade dessas empresas no mercado internacional ou mesmo para sua atuao nos mercados internos, quando a OMC decide, por exemplo, que uma determinada medida de defesa comercial ilegal e deve ser retirada. Apesar desses interesses das empresas, o ESC no contempla nenhuma oportunidade especfica para sua atuao no procedimento, nem sequer as reconhecem como partes legtimas para qualquer tipo de ato procedimental. Na prtica, essas empresas podero auxiliar seus respectivos governos a preparar a reclamao, ou contratam advogados especializados para a elaborao dos documentos necessrios, que sero posteriormente apresentados pelos governos OMC.3838. Neste sentido, o Market Acess Database da Unio Europia, destinado a receber inputs das instituies europias, Membros e empresas privadas com relao a possveis barreiras de seus produtos. Disponvel em: http:/ /mkaccdb.eu.int/. Acessado em: 25 jul. 2003. 30

Uma questo interessante se refere obrigatoriedade, para os Membros da OMC, em seguir adiante com a reclamao formulada por um setor de sua indstria nacional. Note-se que no h norma de Direito Internacional Econmico que obrigue os Estados a assumirem causas de seus nacionais perante tribunais internacionais, o que se denomina proteo diplomtica. Em regra, portanto, os Membros da OMC exercero sua discricionariedade quanto a apresentar ou no a reclamao, seguindo seus prprios critrios de convenincia poltica. Uma vez exercida, a reclamao passa a ser do Estado. Em tese, havendo uma eventual indenizao, o que no acontece atualmente na OMC, esta seria distribuda pelo Estado segundo suas regras de direito interno, caso existam.39 A possvel exceo a esta ampla discricionariedade estar na existncia de regras nacionais, que estipulam condies diante das quais os governos devem defender os interesses de sua indstria nacional. Exemplos neste sentido podem ser encontrados na legislao norte-americana40 e na legislao europia.4139. A proteo diplomtica de formao costumeira e da jurisprudncia internacional. Refere-se proteo que o Estado concede quando um de seus indivduos ou sociedade lesado internacionalmente. discricionria e se realiza mediante o preenchimento de certas condies: a) nacionalidade do autor da reclamao; b) esgotamento dos recursos internos; c) o procedimento (conduta) do autor da reclamao. As sociedades comerciais podem, da mesma forma, ser protegidas diplomaticamente. Alguns Estados como EUA, Inglaterra e Frana exigem que pelo menos 50% do capital destas sociedades sejam controlados por seus nacionais. Mello, 2002, p. 511-515. Quanto ao requisito da nacionalidade, necessrio se atentar para algumas excees: the variety of problems involved necessitates separate and somewhat extended treatment of the principle of nationality of claims. At the outset certain important exceptions to the principle must be noticed. A right to protections of non-nationals may arise from treaty or and ad hoc arrangement establishing an agency. Brownlie, 1998, p. 482. 40. Art. 301-302, US Omnibus Trade and Competitiveness Act (1988). Veja-se Cretella Neto, 1998, 133-134. 41. Veja-se Regulamento 3.286/94 da CE, que substituiu o New Commercial Policy Instrument (1984). 31

De outro lado, pases, como o Brasil, que tm pouca tradio de transparncia nesta matria e cuja indstria nacional ainda no atentou para as graves repercusses das decises da OMC, costumam basear-se em avaliaes integralmente polticas, quando decidem apresentar ou no uma reclamao OMC. Um problema correlato se refere interveno de organizaes no-governamentais no sistema de soluo de controvrsias da OMC. Obviamente, essas entidades no tm direito de ser parte (locus standi) no procedimento, e seus interesses teriam que ser apresentados aos respectivos governos. Por outro lado, muitas dessas entidades representam interesses ou defendem ideais justamente contrastantes aos de seus governos. E h que se recordar que as fontes de financiamento dessas entidades tampouco so totalmente transparentes, o que gera o temor de que representem interesses econmicos no declarados. Na OMC, uma questo processual concreta surgiu quando uma entidade no-governamental apresentou um parecer no solicitado, abordando o aspecto ambiental envolvido na controvrsia. O OAp, ao examinar o caso, decidiu que os painis tinham autoridade para aceitar informaes que julgassem relevantes para solucionar a controvrsia.42 No caso EUA-Bismuto, o OAp decidiu ter autoridade ampla para adotar regras de procedimento que no conflitem com quaisquer regras e procedimentos no ESC.43 Posteriormente, o OAp aceitou tambm um parecer apresentado por um Membro (Marrocos) que no tinha solicitado sua interveno como terceiro interessado, mas observando que a recepo de qualquer relatrio amicus curiae uma questo de discreo, em que devemos exercer caso a caso.44 O OAp fundamentou sua deciso no ESC cujos artigos 12 e 13 concederiam autoridade ampla e extensa ao painel, inclusive para aceitar manifestaes de amigos do tribunal (amicus curiae).42. WT/DS58/AB/RW. EUA-Camares, par. 106. 43. WT/DS138/AB/R. EUA-Bismuto, par. 39. 44. WT/DS231/AB/R. CE-Sardinhas, par. 167. 32

O debate sobre a apresentao de pareceres por organizaes no-governamentais suscita a oposio dos pases em desenvolvimento, temerosos de que entidades empresariais ou entidades com interesses escusos possam intervir no procedimento e mitigar o carter diplomtico inerente ao sistema. Neste sentido, em 2000, o Conselho Geral exortou o OAp a exercer extremo cuidado na aceitao de pareceres de amicus curiae. O tema inclusive faz parte das propostas de reforma do sistema de soluo de controvrsias, sem que haja qualquer unanimidade entre os Membros da OMC.45 Uma terceira possibilidade de interveno de entes nogovernamentais no sistema de soluo de controvrsias da OMC refere-se aos casos envolvendo questes cientficas. Nestas hipteses, cujo nmero vem aumentando, pode ser necessria a opinio de especialistas sobre a matria objeto da controvrsia. O ESC prev que os painis podero buscar informao em qualquer fonte relevante e podero consultar peritos para obter sua opinio sobre determinados aspectos de uma questo. Com relao a um aspecto concreto de uma questo de carter cientfico ou tcnico trazido controvrsia por uma parte, o painel poder requerer um relatrio escrito a um grupo consultivo de peritos.46 Este relatrio, contudo, no obriga o painel. Alm disso, os painis podero recorrer informao e ao assessoramento tcnico de qualquer pessoa ou entidade que considere conveniente,47 o que ocorre freqentemente em casos que envolvem coleta e anlise cientfica de dados.48

45. Barral & Prazeres, 2002, p. 42. Sobre uma discusso especfica sobre o tema vejam-se Marceau & Stilwelt, 2001, p. 155-187; Umbricht, 2001, p. 773-794. 46. ESC, Art. 13:2. 47. ESC, Art. 13:1. 48. Como nos casos CE-Hormnios (WT/DS48/AB/R) e CE-Asbestos (WT/ DS135/AB/R), por exemplo.

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4. INSTITUIES PARA SOLUO DE CONTROVRSIAS NA OMC

4.1 rgo de Soluo de Controvrsias (OSC) Na estrutura criada pela OMC, a soluo de controvrsias entre os Membros foi atribuda ao rgo de Soluo de Controvrsias (OSC). O OSC composto por todos os Membros da OMC, que se renem regularmente, normalmente uma vez por ms, para tomar as decises que lhe incumbem, segundo o previsto no ESC. Essas atribuies so: estabelecer painis, acatar relatrios dos painis e do OAp, supervisionar a aplicao das decises e recomendaes e autorizar a suspenso de concesses e de outras obrigaes determinadas pelos acordos abrangidos.49 O processo decisrio no OSC baseado no consenso. Mas duas observaes devem ser feitas aqui: primeiro, consenso no quer dizer unanimidade. Em outras palavras, haver consenso se nenhum Membro votar contrariamente, no havendo necessidade de votos a favor. Esta observao importante, uma vez que alguns Membros, sobretudo pases de menor desenvolvimento relativo, no conseguem comparecer a todas as reunies dos rgos da OMC. Outra observao de que, em determinadas decises, o ESC exige na realidade o consenso reverso. Em outras palavras, para determinadas decises, que so extremamente importantes na soluo de controvrsias, todos os Membros devero votar contra, para que a deciso no seja acolhida. Estas so justamente as decises para estabelecer o painel,50 para adotar os relatrios do painel e do OAp,51 e autorizao para suspender49. ESC, Art. 2:1. 50. ESC, Art. 6:1. 51. ESC, Art. 16:4 e 17:4, respectivamente. 34

concesses.52 Obviamente, muito difcil conseguir este consenso reverso, pois pelo menos o Membro reclamante ter interesse na implementao dos relatrios que o favorea. Por isso, at hoje nunca houve um caso concreto de consenso reverso no OSC. Outras funes do OSC ainda podem ser mencionadas: aprovar a lista indicativa de painelistas,53 receber comunicaes de terceiros interessados,54 nomear os integrantes do OAp,55 e aprovar o prazo para a implementao da deciso pelo Membro vencido.56 Ou seja, o OSC o administrador do sistema de soluo de controvrsias da OMC.

4.2 Painis Para desempenhar suas funes, o OSC utiliza painis, a primeira instncia no procedimento para soluo de controvrsias na OMC.57 Os painis so compostos por trs indivduos, que apresentam o relatrio circunstanciado sobre a controvrsia e uma anlise jurdica quanto ao fundamento da reclamao. Esses indivduos atuam em carter pessoal, independentemente de seus governos, e no podem atuar em casos em que seu pas esteja envolvido. Em geral, so diplomatas, juristas e acadmicos especializados em Direito Internacional Econmico.58 Os painelistas so sugeridos pelo Secretariado e escolhidos pelos Membros na controvrsia, se houver acordo. Caso contrrio, sero indicados pelo Diretor-Geral da OMC, que o que52. 53. 54. 55. 56. 57. ESC, Art. 22:6. ESC, Art. 8:4. ESC, Art. 10:2. ESC, Art. 17:2. ESC, Art. 21:11. Conforme j afirmado, as tradues oficiais dos acordos da OMC em portugus utilizam o termo grupos especiais para designarem os painis, em funo de uma traduo literal do texto em espanhol. Entretanto, a literatura utiliza os termos painel e painelista de forma mais usual. 58. ESC, Art. 8:1. 35

acontece na maior parte das vezes.59 Os painelistas esto submetidos ainda s regras de conduta, aprovadas em 1996, segundo as quais devem atuar com independncia e imparcialidade, tendo ainda a obrigao de informar qualquer interesse no relacionamento que tenham mantido com os Membros envolvidos na controvrsia. Conforme estipulado pelo ESC, a competncia do painel examinar a questo submetida e estabelecer concluses que auxiliem o OSC a fazer recomendaes ou emitir decises.60 importante notar que o painel est limitado por estes termos, e pode-se dizer que sua competncia quase-jurisdicional no o autoriza a estender-se em nada alm destes termos. Esta observao to mais importante quando se recorda que as recomendaes e decises do OSC no podero promover o aumento ou a diminuio dos direitos e obrigaes definidos nos acordos abrangidos,61 e uma das atuais polmicas na OMC justamente a acusao de que alguns painis, e mesmo o OAp, vm sendo protagonistas de ativismo judicial, interpretando os acordos de forma muito abrangente.

4.3 rgo de apelao (OAp) Outro rgo componente do sistema de soluo de controvrsias o rgo de Apelao (OAp). Uma das novidades decorrente da Rodada Uruguai, o OAp composto por sete indivduos, cujos nomes sero aprovados por consenso pelo OSC.62 Devem ser pessoas de reconhecida competncia, com experincia comprovada em direito, comrcio internacional e nos assuntos tratados pelos acordos abrangidos em geral. Adicionalmente, devem59. 60. 61. 62. ESC, Art. 8:7. ESC, Art. 7:1. ESC, Art. 3:2. ESC, Art. 17:1. 36

estar disponveis permanentemente e em breve espao de tempo, e devero manter-se a par das atividades de soluo de controvrsias e das demais atividades pertinentes da OMC.63 O OAp recebe o recurso contra decises dos painis, e trs juzes do OAp atuam em cada caso. Na prtica observada at agora, praticamente todos os relatrios dos painis foram objeto de recurso, que pode confirmar, modificar ou revogar as concluses do painel. Em muitos casos at agora, o OAp concorda com as concluses do painel, mas no com a fundamentao adotada. Este o caso de modificao do relatrio, e tem sido extremamente relevante para harmonizar a interpretao das normas da OMC.64

4.4 Secretariado Por fim, vale lembrar que o ESC atribui algumas responsabilidades ao Secretariado da OMC. O Secretariado, que atua na sede da organizao, em Genebra, alm de manter os registros das reunies e outras responsabilidades burocrticas, tambm deve manter uma lista indicativa de indivduos para o painel,65 receber as argumentaes escritas dos Membros da controvrsia66 e inclusive organizar, para os Membros interessados, cursos especiais de treinamento.67 Na prtica, o Secretariado tem uma outra funo extremamente relevante que auxiliar os painis na elaborao dos relatrios.6863. ESC, Art. 17:3. 64. Por outro lado, existem casos em que o OAp at mesmo desqualificou o termo de referncia estabelecido no painel. Veja-se WT/DS60/AB/R, Guatemala-Cimento, par. 81-89. Sobre termo de referncia, veja-se infra, item 4.6. 65. ESC, Art. 8:4. 66. ESC, Art. 12:6. 67. ESC, Art. 27:3. 68. ESC, Art. 27:1, O Secretariado ter a responsabilidade de prestar assistncia aos painis, em especial nos aspectos jurdicos, histricos e de procedimento dos assuntos tratados, e de fornecer apoio tcnico e de secretaria. 37

4.5 Procedimentos para soluo de controvrsias Uma vez identificados os rgos da OMC que atuam na soluo de controvrsias, deve-se examinar agora o procedimento adotado e suas particularidades. O grfico abaixo demonstra as vrias fases do procedimento na OMC:

A fase inicial, portanto, refere-se s consultas. Esta uma herana da tradio diplomtica do GATT-1947: o ESC consagra grande relevncia fase de consultas, em que Cada Membro se compromete a examinar com compreenso a argumentao apresentada por outro Membro e a conceder oportunidade adequada para consulta com relao a medidas adotadas dentro de seu territrio que afetem o funcionamento de qualquer acordo abrangido.69 A fase de consultas tem, inclusive, ganhado relevncia em termos processuais. Com efeito, o Membro reclamante no poder69. ESC, Art. 4:2.

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suscitar, posteriormente, diante do painel, questes que no tenham sido previamente examinadas na fase de consultas.70 Se as partes conseguirem alcanar uma soluo para a controvrsia, que seja compatvel com os acordos da OMC, o procedimento se encerrar, comunicando-se ao OSC a soluo acordada.71 Em tese, essa exigncia possibilitaria a transparncia na soluo de controvrsias, impedindo que os Membros envolvidos pudessem alcanar uma soluo em detrimento dos demais Membros e das regras multilaterais do comrcio. Na prtica, entretanto, nem todas as solues alcanadas so comunicadas, ou no so comunicadas integralmente. Se, ao contrrio, uma soluo negociada no for alcanada em 60 dias, o Membro reclamante poder levar o pedido de painel ao OSC, indicando se foram realizadas consultas, identificando as medidas controversas e fornecendo uma exposio de embasamento jurdico para reclamao.72 No OSC, a no ser que haja um consenso reverso, o painel ser estabelecido, podendo os demais Membros notificar seu interesse em participar como terceiros interessados.73 A fase seguinte, de extrema relevncia, ser estabelecer os termos de referncia para o painel. Genericamente, pode-se dizer que o termo de referncia, que deve ser estabelecido por acordo entre as partes ou por adoo do texto padro estabelecido no ESC, equivale aos limites para a competncia jurisdicional do painel. Em termos didticos, tem semelhana com o despacho saneador no processo civil brasileiro, ato pelo qual fixam-se os pontos controvertidos.74 Em seguida, d-se incio ouvida das partes envolvidas, dos terceiros interessados, e produo de pro70. 71. 72. 73. 74. SCM/179, Brasil-Leite em P, par. 360-362. ESC, Art. 3:6. ESC, Art. 6:2. ESC, Art. 6:1. Cdigo de Processo Civil (CPC), Art. 331. 39

vas, segundo o calendrio estipulado pelo prprio painel, com base em cronograma sugerido pelo ESC.75 Uma questo interessante, e muitas vezes debatida perante os painis, refere-se ao nus da prova quanto aos fatos e argumentos levantados perante os painis. Embora no haja um dispositivo expresso no ESC a este respeito, o entendimento tem sido no sentido de aplicar-se o princpio geral de direito processual, segundo o qual a parte que afirma o fato que tem o nus de prov-lo.76 Ainda sobre a produo de provas, observa-se que o ESC no traz dispositivos detalhados, alm da possibilidade genrica, para o painel, de buscar as informaes que considerar convenientes para a controvrsia. Alm disso, determina o ESC que O Membro dever dar resposta rpida e completa a toda solicitao de informao que um painel considere necessria e pertinente.77 Entretanto, a falta de especificao desta obrigao, ou de sanes processuais decorrentes, permite que as partes acabem por omitir ou no entregar informao relevante solicitada pelos painis. O caso mais notrio neste sentido foi Canad-Aeronaves, em que o governo canadense recusou-se a entregar documentao solicitada, alegando questes de confidencialidade.78 Antes de concluir seu relatrio, o painel ainda apresenta s partes um esboo descritivo,79 e um relatrio provisrio, ainda confidencial, que poder ser objeto de comentrios pelas partes na controvrsia.80 Finalmente, o relatrio do painel circula entre75. Veja-se Art. 12, Apndice 3 do ESC, com a proposta de cronograma para os trabalhos do painel. 76. Por outro lado, o OAp decidiu que If that party adduces evidence sufficient to raise a presumption that what is claimed is true, the burden then shifts to the other party, who will fail unless it adduces sufficient evidence to rebut the presumption. WT/DS33/AB/R, EUA-Camisas e Blusas, Parte IV. 77. ESC, Art. 13. 78. WT/DS70/AB/R, Canad-Aeronaves, par. 47-48. 79. ESC, Art. 15:1. 80. ESC, Art. 15:2. 40

todos os Membros da OMC e colocado disposio no stio eletrnico.81 Submetido o relatrio ao OSC, ser ele aprovado, a no ser que haja o consenso reverso ou que uma das partes da controvrsia recorra ao OAp, o que geralmente ocorre.82 Se as partes na controvrsia recorrerem, devero fundamentar este recurso numa questo de direito ou na interpretao eventualmente adotada pelo painel.83 Em outras palavras, questes de fato previamente examinadas pelo painel no podero ser objeto de recurso. Distinguir questes de direito e questes de fato muitas vezes pode levar a debates interminveis, sobretudo quando a caracterizao do fato leva aplicao de uma ou outra norma jurdica. At agora, o OAp tem adotado a postura de s examinar matria na qual a questo jurdica do problema esteja expressamente manifesta. Diante do OAp, as partes apresentam seus argumentos escritos e em audincia. As deliberaes dos juzes do OAp so confidenciais, e o relatrio final aprovado - que confirma, modifica ou revoga o relatrio do painel - remetido ao OSC, onde ser aprovado, a no ser que ocorra o consenso reverso.84 Com a aprovao pelo OSC do relatrio do painel ou do OAp, encerra-se a fase jurisdicional do sistema de soluo de controvrsias da OMC. O relatrio final aprovado, se concluir que a medida nacional reclamada incompatvel com os acordos da OMC, dever recomendar que o Membro torne a medida compatvel com o acordo.85 O painel - ou, se houver recurso, o OAp - podero ainda sugerir a maneira pela qual a recomendao poder ser implementada. Na prtica, o relatrio final apresenta81. Os relatrios podem ser encontrados em http://docsonline.wto.org/ gen_search.asp?searchmode=advanced. Acessado em: 27 jul. 2003. 82. ESC, Art. 16:4. At agora, o nico relatrio no recorrido foi o do painel WT/DS44/R, Japo-Filmes fotogrficos. 83. ESC, Art. 17:6. 84. ESC, Art. 17:14. 85. ESC, Art. 19. 41

do ao OSC conclui afirmando, em seu ltimo pargrafo, que a medida X incompatvel, ou no incompatvel, com os acordos Y ou Z, invocados pela parte reclamante. A partir de sua aprovao pelo OSC, o relatrio gera a responsabilidade internacional do Membro da OMC, reconhecendo-se sua obrigao de revogar ou alterar a medida questionada, de forma a impedir a continuidade do conflito com as normas multilaterais do comrcio.86

5. IMPLEMENTAO DAS DECISES DA OMC Obtida a deciso do OSC, passa-se a fase de implementao, uma fase ps-jurisdicional, em que se buscar o cumprimento da deciso, visando tornar a medida recorrida compatvel com os acordos da OMC. importante esta observao: a deciso do OSC no tem carter reparatrio, nem de penalizao do Membro que eventualmente tenha transgredido as normas da OMC por meio de uma medida nacional. O objetivo fundamental da fase de implementao, e da eventual suspenso de vantagens, forar o Membro a cumprir a deciso, tornando sua legislao interna compatvel com as obrigaes que assumiu no mbito da OMC.87 Resumidamente, o procedimento ser o seguinte: se a medida recorrida for julgada incompatvel com determinado acordo da OMC, o Membro reclamado dever informar ao OSC suas intenes com relao implementao das decises e recomendaes do OSC.88 O OSC deve aprovar um perodo razovel de tempo para que o Membro reclamado possa revogar a medida o86. ESC, Art. 21:1, O pronto cumprimento das recomendaes e decises do OSC fundamental para assegurar a efetiva soluo das controvrsias, em benefcio de todos os Membros. 87. Por isso, o ESC afirma que nem a compensao nem a suspenso de concesses ou de outras obrigaes prefervel total implementao de uma recomendao. ESC, Art. 22:1. 88. ESC, Art. 21:3. 42

objeto da controvrsia, ou torn-lo compatvel com os acordos da OMC. Na prtica, este perodo vem variando entre 3 a 15 meses. Se a medida no for alterada, devem ser iniciadas consultas entre os Membros reclamante e reclamado, buscando estabelecer uma compensao aceitvel. Se no alcanarem o acordo quanto a esta compensao, o Membro reclamante poder buscar a autorizao do OSC para suspender concesses, ou seja, retirar vantagens negociadas no mbito da OMC, sobretudo vantagens tarifrias, aplicveis aos produtos oriundos do territrio do Membro reclamado.89 Diante deste pedido, e da no-implementao voluntria por parte do Membro reclamado, o OSC conceder a autorizao para a suspenso de concesses. Se o reclamado objetar ao montante das suspenses propostas pelo reclamante, a questo submetida arbitragem para avaliar o valor devido da suspenso.90 A tarefa do rbitro, que preferencialmente ser um dos componentes do painel original que decidiu a controvrsia, decidir se o grau da suspenso de concesses proposta equivalente ao grau de anulao ou prejuzo causado ao Membro reclamante pela medida considerada ilegal.91 Esta retaliao autorizada pelo OSC no revoga eternamente as obrigaes do Membro reclamante em relao ao Membro reclamado; ou seja, a suspenso de concesses ou outras obrigaes dever ser temporria e vigorar at que a medida considerada incompatvel com um acordo abrangido tenha sido suprimida, ou at que o Membro que deva implementar as recomendaes e decises fornea uma soluo para a anulao ou prejuzo dos benefcios, ou at que uma soluo mutuamente satisfatria seja encontrada.92 Da mesma forma, o Membro reclamado pode89. 90. 91. 92. ESC, ESC, ESC, ESC, Art. Art. Art. Art. 22:2. 22:6. 22:7. 22:8. 43

ainda se oferecer para conceder compensaes, normalmente pela extenso de vantagens tarifrias aos produtos originrios do Membro reclamante. Esta compensao voluntria, e deve ser consistente com os demais acordos da OMC.93 Pode-se afirmar que a fase de implementao tem sido, na experincia recente da OMC, o momento mais crtico para o legalismo nas relaes econmicas internacionais. Com efeito, se o ESC foi um avano fundamental em direo a um sistema mais regido por normas (rule-oriented), este avano mais perceptvel na fase jurisdicional, ou seja, perante os painis e OAp. Ainda falta maior grau de legalismo na fase de execuo do ESC, diante dos vrios problemas identificados na prtica recente, sobretudo: a) o problema do perodo razovel de tempo para implementar a deciso, que muitas vezes esbarra com impeditivos constitucionais e legislativos dos Membros; a alternativa entre compensao ou revogao da medida questionada, uma vez que a compensao pode ser oferecida como forma de protelar a revogao ou modificao da medida questionada; em ltima anlise, esta alternativa mitiga o compromisso com o legalismo das decises; a intrincada discusso sobre o meio adequado de tornar a medida questionada compatvel com as normas do comrcio internacional; assim, vrios Membros reclamados adotam seguidamente mudanas superficiais na legislao relativa medida, o que leva os Membros reclamantes a retornar ao rbitro, para reavaliar se a nova roupagem (muitas vezes, apenas maquiagem) jurdica compatvel com os acordos da OMC. Isso tem levado situao denominada de sequenciamento (sequencing), em que uma mesma controvrsia retorna diversas vezes ao rbitro, em razo das modifica-

b)

c)

93. ESC, Art. 22:1. 44

d)

e)

f)

es adotadas pelo Membro reclamado no satisfazerem o Membro reclamante. Como decorrncia, uma controvrsia pode acabar se prolongando muito alm dos prazos inicialmente previstos pelo ESC;94 outro problema relativo ao montante devido para a compensao, que evidentemente quase nunca oferecido no nvel que o Membro reclamante considera satisfatrio. Isto gera novas, e s vezes interminveis, questes entre os Membros na controvrsia;95 ainda, h que se observar que a compensao oferecida ou a retaliao autorizada nem sempre beneficiam ou atingem os mesmos setores econmicos que foram beneficiados pela medida objeto da controvrsia. Embora o ESC determine que o princpio geral o de que a parte reclamante dever procurar primeiramente suspender concesses ou outras obrigaes relativas ao(s) mesmo(s) setor(es) em que o painel ou rgo de Apelao haja constatado uma infrao ou outra anulao ou prejuzo96, isto nem sempre ocorre na prtica;97 por fim, em alguns casos, a autorizao para suspender concesses no tem qualquer efeito sobre o Membro recla-

94. Put simply, a determined defendant can wring at least three years of delays from the system before facing definitive legal condemnation, enough time for temporary measures- such as the March 2002 US steel safeguardsto wreak sustained havoc without possibility for retroactive compensation. Busch & Heinhardt, 2002, p. 4. 95. Jackson, 1999, p. 7. 96. ESC, Art. 22.3(a). 97. Por isso, alguns autores vm propondo que a compensao seja financeira, e no tarifria: retaliation does not help the complainants exporters who have been and continue to be harmed, nor are the respondents industries harmed by the retaliation the same ones that have been helped by the WTOinconsistent measure. Monetary compensation to the complainant from the respondent may offer more scope for governments to target the transfers to achieve a more-equitable outcome. Anderson, 2002, p. 16. 45

mado, se o Membro reclamante no tiver poder de mercado suficiente para afetar as exportaes oriundas do territrio do Membro reclamado. Isto evidentemente ocorre, sobretudo, com pases em desenvolvimento, cuja participao no comrcio internacional por vezes nfima, e cujo poder econmico para forar uma potncia a cumprir uma deciso do OSC pode ser absolutamente negligenciado.

6. A APLICAO E INTERPRETAO DE NORMAS PELO OSC

6.1 Aplicao das normas Uma ateno particular deve ser dada questo de aplicao e interpretao das normas da OMC pelo sistema de soluo de controvrsias. O ESC contm poucas regras no que se refere a esta matria, e a interpretao do OAp tem sido determinante, e tambm controversa, para caracterizar as metanormas invocadas. No mbito dos acordos da OMC, uma regra de prevalncia geral est no Acordo Constitutivo da OMC que determina que as regras deste prevalecero sobre qualquer outra norma dos acordos multilaterais.98 No que se refere especificamente soluo de controvrsias, no h regras internas de prevalncia, com exceo daquelas segundo as quais os procedimentos especiais, constantes no apndice II do ESC, prevalecero sobre as regras gerais.99

98. Acordo Constitutivo, Art. 16:3. 99. ESC, Art. 1:2.

46

6.2 Interpretao pelos painis No que se refere interpretao assentada pelo painel para solucionar as controvrsias que lhe devam ser submetidas, determina-se que o esclarecimento das normas dos acordos multilaterais deve ser feito em conformidade com as normas correntes de interpretao do direito internacional pblico.100 Estas normas so materializadas na Conveno de Viena, cujo texto relevante determina que:Artigo 31 - Regra Geral de Interpretao 1. Um tratado deve ser interpretado de boa f segundo o sentido comum atribuvel aos termos do tratado em seu contexto e luz de seu objetivo e finalidade. 2. Para os fins de interpretao de um tratado, o contexto compreender, alm do texto, seu prembulo e anexos: a) qualquer acordo relativo ao tratado e feito entre todas as partes em conexo com a concluso do tratado; b) qualquer instrumento estabelecido por uma ou vrias partes em conexo com a concluso do tratado e aceito pelas outras partes como instrumento relativo ao tratado. 3. Sero levados em considerao, juntamente com o contexto: a) qualquer acordo posterior entre as partes relativo interpretao do tratado ou aplicao de suas disposies; b) qualquer prtica seguida posteriormente na aplicao do tratado, pela qual se estabelea o acordo das partes relativo sua interpretao; c) quaisquer regras pertinentes de Direito Internacional aplicveis s relaes entre as partes. 4. Um termo ser entendido em sentido especial se estiver estabelecido que essa era a inteno das partes.100. ESC, Art. 3:2. 47

Artigo 32 - Meios Suplementares de Interpretao Pode-se recorrer a meios suplementares de interpretao, inclusive aos trabalhos preparatrios do tratado e s circunstncias de sua concluso, a fim de confirmar o sentido resultante da aplicao do artigo 31 ou de determinar o sentido quando a interpretao, de conformidade com o artigo 31: a) deixa o sentido ambguo ou obscuro; ou b)conduz a um resultado que manifestamente absurdo ou desarrazoado.

Algumas observaes podem ser adotadas, a propsito da Conveno de Viena. A primeira delas quanto preferncia pela interpretao literal dos termos constantes em tratados internacionais. Esta tem sido a prtica do OAp, que, em muitos recursos que lhe foram submetidos, dispende pginas e pginas discutindo o significado de um termo invocado por uma das partes da controvrsia. A segunda observao que a Conveno de Viena vem sendo utilizada como grande parmetro para a soluo das controvrsias na OMC, mesmo quando envolvendo Membros que no so partes da Conveno de Viena, como o caso do Brasil e dos EUA. Esta prtica nunca foi contestada por qualquer Membro da OMC, o que leva a crer que a conveno de Viena foi entendida como materializando regras consuetudinrias de interpretao de tratados internacionais, regras que, portanto, so obrigatrias para todos os Membros. Ao lado da preferncia por uma interpretao literal dos acordos da OMC, a prtica at agora acumulada demonstra uma preocupao, sobretudo do OAp, em eliminar qualquer interpretao extensiva desses acordos. Esta preocupao tem fundamento normativo, j que o ESC recorda que as recomendaes sobre as controvrsias submetidas no podem au48

mentar nem diminuir direitos e obrigaes dos Membros da OMC. 101 Em razo disto, Jackson observa que recentes atitudes constantes nos relatrios do OAp parecem reforar a regra de considervel deferncia s tomadas de decises dos governos, possivelmente como um caso de restrio jurdica de idias, de acordo com o exposto no ESC, Art. 3, e em outros casos expressado por vrios pases que temem muita interferncia em suas soberanias.102 Apesar desta preocupao, vm sendo freqentes as crticas de alguns Membros - sobretudo dos EUA - quanto a um suposto ativismo judicial por parte de painis e do OAp. Segundo esta crtica, a interpretao dada em alguns casos estaria sendo extensiva, e tendo como conseqncia o aumento das obrigaes desses Membros alm do texto dos acordos multilaterais. Esta crtica deve ser mitigada por duas constataes. A primeira delas que no h interpretao totalmente isenta, por maior preferncia que se d ao texto literal adotado. Em segundo lugar, deve-se observar que os painis muitas vezes tm que lidar com textos vagos, decorrentes da prpria dinmica das negociaes comerciais internacionais. Em outras palavras, muitas vezes, para101. Destarte, o ESC determina que: Os Membros reconhecem que esse sistema til para preservar direitos e obrigaes dos Membros dentro dos parmetros dos acordos abrangidos e para esclarecer as disposies vigentes dos referidos acordos em conformidade com as normas correntes de interpretao do direito internacional pblico. As recomendaes e decises do OSC no podero promover o aumento ou a diminuio dos direitos e obrigaes definidos nos acordos abrangidos (Art. 3:2), e ainda que as concluses e recomendaes do painel e do rgo de Apelao no podero ampliar ou diminuir os direitos e obrigaes derivados dos acordos abrangidos (ESC, Art. 19:2). 102. The emerging attitudes of the Appellate Body reports seem to reinforce a policy of considerable deference to national government decision-making, possibly as a matter of judicial restraint ideas such as that quoted from the DSU Article 3, and otherwise expressed by various countries who fear too much intrusion on sovereignty. Jackson, 1999, p. 11.

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negociar um acordo, os Membros concordam em colocar um texto que evita comprometimento definitivo em relao ao problema ento abordado. Esta estratgia negociadora j foi denominada de ambigidade construtiva no jargo da OMC. Entretanto, na aplicao deste texto ambguo ao caso concreto, os painis acabam tendo que adotar interpretao que no necessariamente seria a prefervel pela parte vencida na controvrsia. Ainda sobre interpretao, h que se acrescentar duas dificuldades para o jurista formado na tradio do direito romano. A primeira delas lidar com o prprio texto dos tratados, normalmente negociados em ingls, e cuja traduo o mais das vezes no muito fiel. Alm disso, o processo negociador, sobretudo nos acordos originrios da OMC, baseou-se em rascunhos (drafts) geralmente propostos pelos EUA. Isto faz com que a tcnica de redao legislativa se assemelhe a da common law, com pargrafos extensos e uma lgica indutiva. Desta forma, juristas de tradio romnica tendem a uma interpretao teleolgica e a uma aplicao sistemtica do conjunto normativo. A prtica na OMC, ao contrrio, tem sido no sentido de limitar estritamente cada uma das obrigaes a seu mbito de aplicao e adotar interpretao mais prxima possvel do sentido literal de cada palavra. Quanto operao mental de subsuno, o ESC determina que os painis devero considerar todas as normas relevantes dos acordos invocados pela parte na controvrsia.103 Ainda, orienta-se o painel a fazer uma avaliao objetiva do assunto, o que dever incluir uma avaliao objetiva dos fatos, da aplicabilidade das normas invocadas, e da compatibilidade entre a medida recorrida e os acordos pertinentes.104 Ao final, o relatrio do painel dever expor as verificaes de fatos, a aplicabilidade de disposies pertinentes e o arrazoado em que se baseiam suas decises e recomendaes.105 Nesta anlise, o103. ESC, Art. 7:2. 104. ESC, Art. 11. 105. ESC, Art. 12:7. 50

painel abordar inicialmente se houve violao de alguma regra especfica dos acordos da OMC. Se a parte reclamante conseguir demonstrar isto, presume-se que a medida recorrida constitua caso de anulao ou diminuio de vantagens acordadas. o que se denomina presuno de violao.106

6.3 O OSC e os judicirios nacionais Ao discutir a aplicao e interpretao das normas da OMC pelos painis, o problema sempre evocado o da correlao entre estas decises e a interpretao eventualmente dada pelas autoridades administrativas e judiciais dos Membros da OMC. O problema bastante amplo, pois envolve desde particularidades constitucionais at o efeito direto dos tratados nas ordens jurdicas internas. Por muito tempo, este problema foi abordado a partir do debate simplrio entre monistas e dualistas, cujos modelos demonstraram ser insuficientes para explicar todas as variveis envolvidas neste problema. Sem pretender o aprofundamento do tema, que seria inalcanvel nos limites deste estudo, deve-se, contudo, registrar a correlao entre decises do OSC e interpretaes de entidades nacionais. Trs questes especficas merecem ser abordadas: qual a relao entre a interpretao adotada por uma autoridade nacional e da interpretao do OSC? H necessidade do esgotamento dos recursos internos, para que a reclamao possa ser apresentada ao OSC? Qual o efeito da interpretao do OSC para o comportamento futuro das autoridades nacionais? Sobre o primeiro questionamento, observe-se que o OSC no uma instncia supranacional para recurso contra decises nacionais que se cr violadoras das normas da OMC. Em outras palavras, o objeto da reclamao ao OSC uma medida nacional, cuja106. Isso significa que normalmente existe a presuno de que toda transgresso das normas produz efeitos desfavorveis para outros Membros que sejam partes do acordo abrangido, e em tais casos a prova em contrrio caber ao Membro contra o qual foi apresentada a reclamao. ESC, Art. 3:8. 51

vigncia viola, de acordo com o Membro reclamante, uma determinada obrigao constante nos acordos da OMC. Se esta medida provm do legislativo, do executivo, ou do judicirio do Membro reclamado, este um problema de direito constitucional, alheio s possibilidades de regulamentao do Direito Internacional Econmico. Portanto, a obrigao dos painis e do OAp ser fazer uma avaliao objetiva da aplicabilidade dos acordos invocados pelo Membro reclamante e de sua compatibilidade com a medida adotada pelo Membro reclamante. Este o do denominado padro de reviso (standard of review) que deve ser seguido pelos painis e pelo OAp. Ou seja, nem conceder total deferncia interpretao dos acordos da OMC eventualmente dada pelas autoridades nacionais, nem servir como instncia recursal contra esta interpretao.107 A exceo mais importante a este padro geral de reviso previsto no ESC est no Acordo Antidumping (AA). Por presso dos EUA, no AA consta uma regra especial de interpretao que induziria os painis a conceder maior deferncia s autoridades nacionais na interpretao do AA na imposio de direitos antidumping.108107. Neste sentido, o OAp j decidiu que: although panels are not entitled to conduct a de novo review of the evidence, nor to substitute their own conclusions for those of the competent [national] authorities, this does not mean that panels must simply accept the conclusions of the competent authorities (...) Thus, in making an objective assessment of a claim under Article 4.2(a), panels must be open to the possibility that the explanation given by the competent authorities is not reasoned or adequate. WT/ DS177/AB/R, EUA-Carne de Carneiro, par. 106. 108. AA, Art. 17:6. O painel, ao examinar a matria objeto do pargrafo 5: a) ao avaliar os elementos de fato da matria, determinar se as autoridades tero estabelecido os fatos com propriedade e se sua avaliao dos mesmos foi imparcial e objetiva. Se tal ocorreu, mesmo que o grupo especial tenha eventualmente chegado a concluso diversa, no se considerar invlida a avaliao; b) interpretar as disposies pertinentes do Acordo segundo regras consuetudinrias de interpretao do direito internacional pblico. Sempre que o grupo especial conclua que uma disposio pertinente do acordo admite mais de uma interpretao aceitvel, declarar que as medidas das autoridades esto em conformidade com o acordo, se as mesmas encontram respaldo em uma das interpretaes possveis. Sobre a histria e o impacto do Art. 17.6 do AA, veja-se Barral, 2000, p. 111-115. 52

Apesar desta regra, os EUA vm constantemente sendo vencidos em controvrsias sobre medidas antidumping, o que vem gerando crescentes presses para limitar mais ainda o padro de reviso a ser adotado pelos painis. O segundo problema mencionado se refere ao esgotamento dos recursos internos. Esta regra, que constitui uma norma consuetudinria de direito internacional, exige que, antes de recorrer a um tribunal internacional para defender interesses de seus nacionais, os Estados devero verificar se esses nacionais esgotaram os recursos judiciais disponveis na ordem jurdica do Estado reclamado.109 Embora este seja um princpio bastante assentado de Direito Internacional, a verdade que em Direito Internacional Econmico no se exige normalmente o esgotamento dos recursos internos como pressuposto para apresentao da reclamao perante a OMC. Desta forma, e apesar de alguns trabalhos doutrinrios em contrrio, nenhum Membro da OMC jamais alegou que o esgotamento de recursos internos seria pressuposto necessrio para a legitimidade da reclamao.110 Por fim, um problema interessante e ainda longe de ser equacionado, relativo ao sistema de soluo de controvrsias da OMC, refere-se ao efeito dessas decises nas ordens jurdicas109. Trata-se de um princpio clssico do direito internacional de forma a evitar a ingerncia internacional em questes que podem ser resolvidas internamente pelos Estados. Desta forma, somente aps o Estado reclamado ter tido a oportunidade de reparar supostos danos internamente que poderia ser evocada sua responsabilidade internacional. Tal princpio teria origem no final do sculo XVII e modernamente adquiriu novas matizes, principalmente em direitos humanos, recebendo tratamento especfico. Cf. Trindade, 1997, p. 23-41. 110. As GATT dispute settlement procedures are designed to protect treaty benefits of the contracting parties, rather than individual rights of theirs citizens, the legal admissibility of GATT complaints has never been made conditional on prior exhaustion of local remedies, and the legal remedies sought were hardly ever expressed in terms of reparations of injury suffered by their nationals. Pettersmann, 1997, p. 242.

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internas. Como regra geral, o prprio efeito direto das normas da OMC depender da estrutura constitucional e do status concedido aos tratados pela ordem jurdica de cada Membro. Ou seja, em determinados Estados, os tratados em matria comercial no so auto-executveis, pretendendo-se dizer com isso que um particular no poder invocar estes tratados como fundamento para a defesa de um direito perante o judicirio desses pases. Esta a situao, genericamente falando, nos EUA e na CE.111 Em outros pases, como o caso do Brasil, no h basicamente questionamento sobre a matria, e os tratados internacionais em geral so invocveis em litgios internos. Entretanto, qualquer que seja a situao constitucional particular, no h qualquer regra no sistema de soluo de controvrsias da OMC que possa criar implicaes futuras para os judicirios nacionais, seja para obrig-los a uma determinada interpretao, seja para alcanar a execuo de uma recomendao ou deciso do OSC. Estas possibilidades at existem em sistemas recentes de soluo de controvrsias, como o caso do TJCE ou da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).112 Na OMC, entretanto, no h regras que gerem efeitos diretos, para a esfera normativa nacional dos Membros, das decises do OSC ou das interpretaes eventualmente adotadas pelos painis e pelo OAp.

111. Em um caso bastante polmico, o Tribunal de Justia das Comunidades Europias (TJCE) decidiu que Portugal no poderia invocar os acordos da OMC no litgio contra a Comisso Europia. Veja-se TJCE, Caso C-149/ 96 Portugal versus Comisso [1999] ECR I-8395. Veja-se tambm recente anlise sobre o caso em Eeckhout, 2002, p. 91-110. 112. Veja-se Santana, 2001, p. 98-101.

54

6.4 O OSC e os tribunais internacionais Uma questo interessante, e ainda pouco suscitada na literatura sobre o assunto, a duplicidade de competncia para solucionar as controvrsias internacionais. Ou seja, a existncia de determinadas controvrsias que podem ser submetidas a mais de um foro internacional, seja em razo de sua matria, seja em razo de os Estados envolvidos participarem de mais de um processo de integrao econmica. Esta hiptese no apenas terica. A proliferao de esquemas regionais de integrao traz, entre outras conseqncias, a criao de mecanismos de soluo de controvrsias, muitas vezes abrangendo a mesma matria que poderia ser submetida tambm ao OSC. Evidentemente, no h uma instncia internacional que possa solucionar este eventual conflito positivo de jurisdio. As seguintes alternativas acabaram sendo adotadas: a) haver uma preferncia poltica por privilegiar um mecanismo regional, em razo do que os Estados envolvidos na controvrsia abdicaro do recurso ao sistema multilateral; haver uma vantagem procedimental (celeridade, clareza de regras, maior abrangncia dos acordos) que poder induzir o Estado reclamante a escolher um dos mecanismos disponveis, numa situao de forum shopping internacional; ou haver uma regra privilegiadora de um dos foros - uma regra de preveno de foro - que exclua a possibilidade de apresentao simultnea da controvrsia.

b)

c)

Observe-se, entretanto, que no ESC no h qualquer dessas regras de preveno de seu foro, ou de impedimento de conhecer a controvrsia que j esteja sendo submetida, ou tenha sido submetida, a um mecanismo regional de soluo de controvrsias. Isto pode criar, inclusive, uma situao jurdica complexa, em55

que uma determinada medida nacional pode ser considerada legal, por um tribunal regional, e posteriormente ser considerada incompatvel com os acordos da OMC, pelo OSC.113 De outro lado, alguns acordos regionais vm atentando para este risco de sentenas dspares proferidas por tribunais internacionais distintos. Para minimizar este risco, alguns acordos recentes incorporam uma regra processual que impede os Estados envolvidos numa controvrsia de submet-la a mais de um mecanismo de soluo de controvrsias. Neste sentido a previso do North America Free Trade Agreement (NAFTA) segundo a qual controvrsias surgidas em razo do acordo do NAFTA ou do GATT podem ser solucionadas em qualquer dos foros, segundo escolha da parte reclamante.114 A mesma regra vem sendo adotada em acordos bilaterais firmados pelos EUA, como no acordo com o Chile.115 Tambm113. Esta foi, alis, a situao ocorrida entre Argentina e Brasil, numa controvrsia envolvendo a aplicao de medidas antidumping nas exportaes brasileiras de frango. Inicialmente, a medida foi considerada legal pelo tribunal arbitral constitudo no mbito do Protocolo de Braslia. Veja-se captulos III e IV do laudo arbitral do Tribunal Ad Hoc do Mercosul, Aplicao de Medidas Antidumping contra a exportao de frangos inteiros, provenientes do Brasil, Resoluo N 574/2000 do Ministrio de Economia da Repblica Argentina, de 21 de maio de 2001. Inconformado, o Brasil apresentou nova reclamao OMC cuja deciso foi pela incompatibilidade entre a medida argentina e o acordo antidumping. WT/DS241/R, Argentina-Frango, par. 8.1-8.7. 114. NAFTA, Article 2005.1: [...] disputes regarding any matter arising under both this Agreement and the General Agreement on Tariffs and Trade, any agreement negotiated thereunder, or any successor agreement (GATT), may be settled in either forum at the discretion of the complaining Party. 115. US-Chile Free Trade Agreement, Article 22.3: Choice of Forum. 1. Where a dispute regarding any matter arises under this Agreement and under another free trade agreement to which both Parties are party or the WTO Agreement, the complaining Party may select the forum in which to settle the dispute. 2. Once the complaining Party has requested a panel under an agreement referred to in paragraph 1, the forum selected shall be used to the exclusion of the others. Disponvel em: http://www.ustr.gov/new/fta/ Chile/final/22.dispute%20settlement.PDF. Acesso em: 14 ago. 2003. 56

a regulamentao proposta para a rea de Livre Comrcio das Amricas (ALCA) busc