02 integração comercial, direitos humanos e racismo

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AS MULHERES E A LEGISLAÇÃO CONTRA O RACISMO

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  • AS MULHERES E ALEGISLAO CONTRAO RACISMO

  • AS MULHERES E ALEGISLAO CONTRAO RACISMO

    4Traduzindo alegislao com aperspectiva de

    gnero

  • Copyright 2001 CepiaISBN 85-88222-10-8

    Coordenao editorialLeila Linhares BarstedJacqueline HermannMaria Elvira Vieira de Mello

    ColaboraoMarina Gomes DamioRosana HeringerSimone de Oliveira Teixeira

    Projeto grficoSonia Goulart

    ApoiosFundao FordCentro de Estudos das Relaes deTrabalho e Desigualdades CEERT

    Agradecemos SEDH Secretaria de Estado dos DireitosHumanos e ao artista plstico Claudio Tozzi pela autorizaopara utilizarmos na capa deste volume o trabalho originalmenteelaborado para a publicao Direitos Humanos no Cotidiano,editada pelo Ministrio da Justia/SEDH, em 1998.

    Rio de Janeiro, julho de 2001

  • NDICE

    APRESENTAO 7

    MULHER E NEGRA: NECESSIDADE DE DEMANDASJUDICIAIS ESPECFICAS 9Hdio Silva Jr.

    MULHERES NEGRAS E INDGENAS: A LEI E A REALIDADE 43Leila Linhares BarstedJacqueline Hermann

    INTEGRAO COMERCIAL, DIREITOS HUMANOS E RACISMO 93Jacqueline PitanguyRosana Heringer

    CONVENO INTERNACIONAL SOBRE A ELIMINAO DETODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAO RACIAL (1965) 121

    CONVENO SOBRE A ELIMINO DE TODAS AS FORMASDE DISCRIMINAO CONTRA A MULHER (1979) 139

    PROTOCOLO FACULTATIVO CONVENO SOBRE AELIMINO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAOCONTRA A MULHER (1999) 157

    CONVENES DA OIT 167

    Conveno (111) sobre a discriminaoem matria de emprego e profisso 169

    Conveno (169) sobre povos indgenase tribais em pases independentes 178

    ABSTRACT 195

  • 7AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    A Conferncia Mundial contra o Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata, de 2001, expressa o com-promisso da Organizao das Naes Unidas de atuar face persis-tncia de prticas discriminatrias contra grupos especficos e doressurgimento do racismo, da xenofobia e dos conflitos tnicos emdiversas regies do mundo. Manifesta a inteno das Naes Uni-das de adotar medidas concretas de combate ao racismo e s prti-cas correlatas de intolerncia.

    Nesse novo nmero da Coletnea Traduzindo a Legislao coma Perspectiva de Gnero, a Cepia busca dar visibilidade aos instru-mentos nacionais e internacionais que repudiam o racismo, introdu-zindo na leitura dessa legislao o olhar de gnero, para que sepossa compreender o seu alcance sobre as mulheres. A Cepia pre-tende, assim, articular a discusso da legislao especfica contra oracismo com aquela relativa ao sexismo. esse o esforo dos artigosdessa nova publicao. Naturalmente, no foram abordados todosos temas que fazem parte da pauta da Conferncia Mundial contrao Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e IntolernciaCorrelata. Face aos limites desta publicao, foram selecionadossomente alguns aspectos da problemtica das mulheres negras eindgenas diante de prticas discriminatrias que ainda pesam so-bre elas de maneira dramtica e cotidiana.

    Hdio Silva Jr., a partir de um extenso levantamento de leisbrasileiras anti-racistas, realizado em trabalho anterior, apresenta otratamento histrico legal recebido pela populao negra no Brasildesde o perodo escravocrata, e aponta para a importncia de de-mandas judiciais especficas, em particular na defesa da dignidadedas mulheres negras.

    Leila Linhares Barsted e Jacqueline Hermann destacam os ins-trumentos legais nacionais e internacionais que deveriam estar con-tribuindo para a mudana de prticas e mentalidades racistas naconstruo de uma sociedade verdadeiramente democrtica e apon-

    APRESENTAO

  • 8 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    tam para a persistncia, flagrada nos indicadores scio-econmicos,da grave situao vivenciada pelas mulheres negras no Brasil. Oesforo para a construo dessa sntese identificou a indiscutveldificuldade na obteno de dados sobre as mulheres indgenas, emrelao s quais as autoras s conseguiram recuperar algumas pou-cas informaes, fragmentadas e dispersas.

    Rosana Heringer e Jacqueline Pitanguy destacam a questo t-nico/racial no contexto dos processos de integrao econmica edelineiam um panorama da legislao dos pases do Mercosul emrelao s populaes negra e indgena, com nfase na situaolegal das mulheres.

    Como nos nmeros anteriores da Coleo Traduzindo a Legis-lao com a Perspectiva de Gnero, inclumos, em anexo, os prin-cipais instrumentos jurdicos internacionais de repdio e combateao racismo que, sem se constiturem em instrumentos punitivos,atuam como estmulo construo de uma sociedade mais fraternaatravs da educao e da cultura no-racista.

  • 9AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    MULHER E NEGRA: A NECESSIDADEDE DEMANDAS JUDICIAIS ESPECFICASHdio Silva Jr.1

    Introduo

    Intrigante e desafiadora, a indagao feita pela Cepia compreen-der a legislao anti-racista com um olhar de gnero de incio meremeteu para um estado de indescritvel perplexidade. Vamos a ela:a peculiaridade da opresso que se abate sobre a mulher negra con-ta, ou deveria contar, com alguma previso e/ou proteo especialdo sistema jurdico brasileiro?

    A resposta, j adianto, positiva, a despeito das ressalvas refe-ridas adiante, que procuram demonstrar a importncia de se darnfase efetiva aplicao da lei pelo Poder Judicirio brasileiro.

    A legislao internacional, expressa em Tratados, Convenes ePactos, e a jurisprudncia internacional, que se vai formando a partirdas Declaraes e Planos de Ao do Ciclo de Conferncias sobre Di-reitos Humanos das Naes Unidas, destacam como obrigatoriedadepara os Estados-Partes no apenas a elaborao de uma legislao nodiscriminatria, mas, particularmente, a implementao dessa legisla-o internacional atravs da ao do Poder Judicirio e da implementa-o de polticas pblicas que concretizem os direitos declarados.

    Convm destacar que a Conveno Internacional sobre a Elimi-nao de todas as Formas de Discriminao Racial, de 1968, consi-dera discriminao racial:

    toda distino, excluso, restrio ou preferncia baseada emraa, cor, descendncia ou origem nacional ou tnica que tenhapor objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento,gozo, ou exerccio em um mesmo plano (em igualdade de condi-

    1 Hdio Silva Jr., Coordenador do Programa Direito e Relaes Raciais do CEERT Centro de Estudos das Relaes de Trabalho e Desigualdades, advogado, Mestre edoutorando em Direito pela PUC-SP, consultor de ONGs e rgos governamentais,professor convidado da Faculdade de Direito das Amricas, Assessor Jurdico do INSPIR Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial, autor de Anti-Racismo Coletnea de Leis Brasileiras.

  • 10 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    o) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campospoltico, econmico, social, cultural ou em qualquer outro campoda vida pblica.

    Em 1979, a Conveno contra todas as Formas de Discrimina-o contra a Mulher considerou que a expresso discriminaocontra a mulher significar: ...toda distino, excluso, restrioou preferncia baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultadoprejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exerccio pela mu-lher, independentemente de seu estado civil, com base na igualda-de do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fun-damentais nos campos poltico, econmico, social, cultural e civil ouem qualquer outro campo.

    Essa Conveno2, em seu Prembulo, salienta que:

    ...a eliminao do apartheid, de todas as formas de racismo, dis-criminao racial, colonialismo, neocolonialismo, agresso, ocu-pao estrangeira e dominao e interferncia nos assuntos inter-nos dos Estados essencial para o pleno exerccio dos direitos dohomem e da mulher.

    Ambas as Convenes apresentam em seus textos dispositivosque obrigam os Estados-Membros a desenvolverem aes, inclusi-ve legislativas, para coibir tanto a discriminao por motivo de raacomo por motivo de sexo.

    Em 1994, a Assemblia Geral da OEA Organizao dos EstadosAmericanos aprovou a Conveno Interamericana para Prevenir,Punir e Erradicar a Violncia Contra a Mulher, conhecida como Con-veno de Belm do Par3 que definiu como violncia contra a mulher:

    qualquer ao ou conduta, baseada no gnero, que cause mor-te, dano ou sofrimento fsico, sexual ou psicolgico mulher, tantono mbito pblico como no privado.

    Levando em conta os diferentes contextos scio-econmicos eculturais e as situaes especficas vividas pelas mulheres, essamesma Conveno declara em seu art. 9:

    2 Ratificada pelo Brasil em 1o de fevereiro de 1984.3 Ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995.

  • 11AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    Para a adoo das medidas a que se refere este captulo, os Esta-dos-Partes tero especialmente em conta a situao de vulne-rabilidade violncia que a mulher possa sofrer em conseqncia,entre outras, de sua raa, ou de sua condio tnica, de migrante,refugiada ou desterrada.

    No mesmo sentido registre-se o Prembulo da Declarao Sobrea Eliminao da Violncia Contra a Mulher4, de 1993, aprovadaaps a Conferncia Mundial de Direitos Humanos, realizada nessemesmo ano que destacou a preocupao com:

    ...o fato de que alguns grupos de mulheres, como por exemplo asmulheres pertencentes s minorias, as mulheres indgenas, as refu-giadas, as mulheres migrantes, as mulheres que habitam comu-nidades rurais ou remotas, as mulheres indigentes, as mulheresreclusas ou detidas em instituies, as crianas, as mulheres comincapacidades, as idosas e as mulheres que se encontram emsituaes de conflito armado so particularmente vulnerveis violncia.

    No ser ocioso assinalar que embora o prembulo de qualquerlei no constitua norma jurdica propriamente dita, ele serve, nodizer do jurista Celso Bastos, como diretriz para a atividade inter-pretativa5, de sorte que sempre que os instrumentos jurdicos quese referem aos direitos da mulher considerem, em seu prembulo, apeculiaridade da situao da mulher negra, eles devem ser inter-pretados luz deste valor principal.

    Importa ressaltar que o art. 9o da referida Conveno de Belmdo Par deve ser interpretado como uma lei que impe uma obriga-o positiva ao Estado: a obrigao de considerar, na produo desuas polticas, a peculiaridade da situao da mulher negra, visan-do sua insero em tais polticas. Isso significa que a produo eaplicao de legislao nacional deve dar status legal a tal inseroe adoo plena da legislao internacional que caminha para omesmo objetivo.

    4 Aprovada pela Assemblia Geral das Naes Unidas, em 20 de dezembro de 1993.5 Celso Bastos (1997, p. 80)

  • 12 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    A fora dos tratados internacionais

    Ao destacar a importncia tica e jurdica dos Tratados e Conven-es internacionais sobre direitos humanos necessrio esclarecercomo o Direito brasileiro se posiciona diante desses importantes ins-trumentos de defesa da dignidade da pessoa humana.

    Os tratados internacionais mereceram especial cuidado porparte da Assemblia Constituinte que elaborou a Constituio Fe-deral Brasileira de 1988. Segundo o art. 5, 2, da ConstituioFederal:

    Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluemoutros decorrentes do regime e dos princpios por ela adotados, oudos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasilseja parte.

    A Constituio no apenas reconheceu a vigncia dos Trata-dos Internacionais ratificados pelo Brasil, como explicitou a ne-cessidade de garantir sua concretizao em nosso pas, atravs daatividade do Poder Judicirio, especificamente do Supremo Tribu-nal Federal e do Superior Tribunal de Justia. Duas regras previs-tas na Constituio devem ser obedecidas para tal garantia:

    a) o Supremo Tribunal Federal (STF) tem competncia para pro-cessar e julgar causas decididas em nica ou ltima instncia, quan-do a deciso declarar a inconstitucionalidade dos tratados interna-cionais ou das leis federais (CF, art. 102, III, b);

    b) o Superior Tribunal de Justia (STJ) tem competncia paraprocessar e julgar causas decididas em nica ou ltima instncia,quando a deciso contrariar ou negar vigncia aos tratados interna-cionais ou lei federal (art. 105, III, a).

    Note-se ainda que o dispositivo do art. 109, inciso III, da Cons-tituio Federal, atribui Justia Federal a competncia para pro-cessar e julgar as causas fundadas em tratado ou contrato da Uniocom Estado estrangeiro ou organismo internacional.

    A Constituio reafirma, assim, a garantia da vigncia internados Tratados Internacionais assinados e ratificados pelo Estado Bra-sileiro ao prever, por exemplo, que a inrcia ou a omisso do Presi-dente da Repblica, em face das providncias necessrias execu-o e ao cumprimento dos tratados internacionais, configura crime

  • 13AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    de responsabilidade, sujeitando-o ao impeachment, conforme dis-posto no art. 8o, item 8, da Lei n 1.079/50.

    No entanto, e apesar dessas garantias constitucionais, a ques-to da posio jurdica da hierarquia ocupada pelos tratados inter-nacionais vem provocando intensa controvrsia.

    Invocando o princpio da mxima efetividade da norma consti-tucional e ancorada em prestigiosa doutrina, Flvia Piovesan6 ad-verte para a necessria distino entre tratados de direitos humanose tratados de outra natureza, concluindo que a Constituio confe-riu aos primeiros o status de norma constitucional:

    A Constituio de 1988 recepciona os direitos enunciados em tra-tados internacionais de que o Brasil parte, conferindo-lhes natu-reza de norma constitucional. Isto , os direitos constantes nostratados internacionais integram e complementam o catlogo dedireitos constitucionalmente previstos, o que justifica estender aestes direitos o regime constitucional conferido aos demais direi-tos e garantias fundamentais.7

    Contudo, contrariando este entendimento, o STF tem se mani-festado a respeito da matria posicionando-se no sentido de con-cluir que os Tratados Internacionais no esto no mesmo plano daConstituio e sim abaixo dela, como as leis elaboradas pelo Con-gresso. Tal posicionamento pode ser encontrado nas seguintes deci-ses do STF:

    1. Os tratados se baseiam em plano de igualdade com atos doCongresso8;2. Os tratados concludos pelo Estado Federal tem o mesmo graude autoridade e de eficcia das leis nacionais9;3. Tratados e convenes internacionais tendo-se presente osistema jurdico existente no Brasil guardam estrita relao deparidade normativa com as leis ordinrias editadas pelo Estadobrasileiro. A normatividade emergente dos tratados internacio-

    6 Cf. Flvia Piovesan e Luiz Carlos Rocha Guimares (1998).7 Ibidem, p. 89.8 Recurso Extraordinrio n. 80.004 Rel. Xavier de Albuquerque, de 1 de junho de 1977.9 Ao Direta de Inconstitucionalidade n. 1.347 Rel. Celso de Mello, de 1 de dezembro

    de 1995.

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    nais, dentro do sistema jurdico brasileiro, permite situar esses atosde direito internacional pblico, no que concerne hierarquia dasfontes, no mesmo plano e no mesmo grau de eficcia em que seposicionam as leis internas do Brasil. A eventual precedncia dosatos internacionais sobre as normas infraconstitucionais de direi-to interno brasileiro somente ocorrer presente o contexto deeventual situao de antinomia com o ordenamento domstico no em virtude de uma inexistente primazia hierrquica, mas, sem-pre, em face da aplicao do critrio da especialidade10 (grifo nos-so). Apesar dessa controvrsia sobre se os Tratados Internacio-nais esto no mesmo plano jurdico da Constituio ou abaixodela, no plano das leis ordinrias, no h dvida, entretanto, deque esses instrumentos internacionais, reconhecidos pela nossaConstituio, esto situados, quando menos, no mesmo grau dehierarquia das leis de direito interno, de sorte que tratado lei,e como tal, pode e deve ser invocado pelos indivduos na defesajudicial de seus direitos e interesses.

    Nesse sentido, torna-se fundamental para as mulheres negras oconhecimento do contedo desses instrumentos internacionais, bemcomo da legislao nacional anti-racista.

    Convm assinalar o que j apontara em trabalho anterior, aoanalisar a relao entre o direito e as relaes raciais no Brasil11, ofato de que a inscrio do princpio da no-discriminao e as reite-radas declaraes de igualdade tm sido insuficientes para estancara reproduo de prticas discriminatrias na sociedade brasileira.Fazia referncia, ento, ampla gama de condutas, explcitas, si-lenciosas ou dissimuladas, capturadas em estatsticas produzidaspor insuspeitadas instituies de pesquisa e em diversos trabalhosacadmicos debruados sobre a mesma problemtica.

    Nesse texto, no pretendemos analisar as inmeras leis contra oracismo existentes no Direito brasileiro.12 O que nos preocupa chamar a ateno para a tradio jurdica brasileira no que diz res-peito ao povo negro no Brasil, dando visibilidade a uma parte do

    10 STF Extradio n. 662 Rel. Celso de Mello, de 30 de maio de 1997.11 Ver Hedio Silva Jr. (1998).12 Ver a esse repeito Hdio Silva Jr. op.cit.

  • 15AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    direito brasileiro que vigorou em nosso pas durante longo perodoe que, mesmo superado pela Constituio Federal de 1988, aindacontinua a produzir efeitos ideolgicos e prticos de carter racista.

    Assim, apesar do desafio da Cepia de pensar o direito contra oracismo com o olhar de gnero, cedemos necessidade de difundiruma histria ainda pouco conhecida sobre a condio jurdica dehomens e mulheres que constituem uma das faces da matriz racialda sociedade brasileira.

    A discriminao contra a mulher negra

    No ser ocioso realar que a discriminao, em sua acepo nega-tiva, ilcita, injusta, refere-se a uma conduta fundada em atributospessoais dos indivduos, com base nos quais estes sofrem violaesde direitos. Esse o entendimento da Conveo sobre a Eliminaode todas as formas de Discriminao Racial, de 1968, e da Convenosobre todas as formas de Discriminao contra a Mulher, de 1979.

    Assim que a discriminao que se abate sobre a mulher negraresulta de uma conduta que agrega dois tipos de discriminao, aindaque fundada em dois atributos pessoais a cor/raa e o gnero.

    Por isso, invivel seria, em princpio, separar em duas partes aconduta discriminatria. Tanto a legislao antidiscriminao racial,quanto a legislao antidiscriminao de gnero j oferecem todo oinstrumental de que necessitamos para defender judicialmente osdireitos e interesses das mulheres negras.

    Nesta ordem de idias, para o jurista e para o operador do direi-to, a questo que se coloca teria os seguintes termos: como construirfrmulas jurdicas capazes de refletir e de enfrentar, no plano dadefesa judicial de direitos, a singularidade da opresso vivenciadapelas mulheres negras?

    Na falta de uma resposta mais elaborada, eu arriscaria afirmarque, alm de buscar a observncia conjugada das normas de direitointernacional e de direito interno, especialmente aquelas que im-pem deveres ao Estado (e aos particulares, naturalmente), a espe-cificidade da condio de ser mulher e ser negra, vista sob o ngulodo direito, reala o problema das vrias dimenses de violncia aque um indivduo possa estar sujeito, todas elas censuradas e

  • 16 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    passveis de punio pelo sistema jurdico brasileiro. De sorteque a eventual no necessidade de instrumentos jurdicos espec-ficos no afasta a necessidade da propositura de demandas judici-ais especficas.

    A violncia moral, abstraindo-se temporariamente aquela denatureza fsica, que vitimiza a mulher negra, s encontra paralelono passado escravista da sociedade brasileira. No entanto, para coi-bir e desestimular essa violncia as demandas judiciais especficasno tm sido suficientemente utilizadas.

    Com efeito, no por mera casualidade a famosa marchinha car-navalesca escrita por Lamartine Babo nos anos de 1930, cujo refrodenota repulsa pela cor da mulher negra ao mesmo tempo em queexpressa desejo pelo seu corpo, ainda hoje desfruta de enorme pres-tgio no repertrio carnavalesco e na memria popular, sendo inclu-sive caricaturada vez ou outra por vultos contemporneos da msicapopular brasileira, dentre outros pelo refinado cantor e palhaoconhecido pela alcunha de Tiririca.

    Antes, contudo, de arriscarmos algumas linhas sobre a necessi-dade de demandas judiciais que pautem a especificidade da mu-lher negra, valeria a pena uma breve digresso histrica sobre otratamento jurdico dado aos negros em geral, com vistas a divisar otratamento diferenciado que o direito j conferiu, no passado, smulheres negras e s brancas.

    O aparato jurdico do escravismo

    At a outorga da Constituio Poltica do Imprio do Brasil, de 25de maro de 1824, seguida da edio do Cdigo Criminal do Im-prio do Brasil, de 1830, o Brasil esteve sob a gide das chama-das Ordenaes do Reino: as Ordenaes Afonsinas (1446-1521),as Manoelinas (1521-1603) e as Filipinas (1603-1830), assinala-das as influncias do Direito Cannico e especialmente do Direi-to Romano13, que no apenas marcaram todo o perodo colonial,como tambm, vale lembrar, respondem pela inscrio do Brasil

    13 A Lei da Boa Razo, de 18 de agosto de 1769, prescrevia a adoo do Direito Romanocomo fonte normativa subsidiria das Ordenaes.

  • 17AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    na galeria dos pases de sistema jurdico de tradio romano-germnica, o civil law.

    Segundo anotaes de Ruy Rebello Pinho,

    As Ordenaes Afonsinas foram lei no Brasil logo aps a desco-berta de Cabral e j tinham quase sessenta anos de vida quandoaqui chegaram. As Manoelinas dirigiram nosso direito cerca denoventa anos. E de mais de dois sculos foi a vida do CdigoFilipino. Durante trezentos e trinta anos, de 1500 a 1830, o comba-te ao crime e ao criminoso se fez, em nossa terra, atravs das ve-lhas leis de Portugal.14

    Dentre os trs, o Cdigo Filipino foi o mais amplamente empre-gado no Brasil. Um exame exploratrio do tristemente famoso LivroQuinto das Ordenaes Filipinas aponta um conjunto de seguintesregras gerais para toda a sociedade e regras especficas destinadas subjugao e controle dos africanos escravizados. Assim, encon-tramos regras gerais e especficas tais como aquelas que: crimina-lizavam a heresia, punindo-a com penas corporais (Ttulo I);criminalizavam a negao ou a blasfmia de Deus ou dos Santos(Ttulo II); criminalizavam a feitiaria, punindo o feiticeiro com apena capital (Ttulo III); puniam a invaso de domiclio com afinalidade de manter conjuno carnal com mulher virgem, vivahonesta ou escrava branca, de onde se infere que caso se tratassede mulher negra e/ou escravizada o crime no se configuraria (Ttu-lo XVI); puniam o estupro, prevendo, no caso de escrava ou prosti-tuta, um procedimento judicial mais brando que possibilitava a no-execuo da pena de morte (Ttulo XVIII); puniam o escravo quesacasse arma contra seu senhor (Ttulo XLI); equiparavam o escra-vo a animais e coisas (Ttulo LXII); puniam os indivduos que au-xiliassem a fuga de escravos ou os acolhessem (Ttulo LXIII); pu-niam a vadiagem (Ttulo LXVIII); criminalizavam reunies, festasou bailes organizados por escravos (Ttulo LXX). Nessa longa listade punies, aplicadas a homens e mulheres, ressalta-se o trata-mento diferenciado entre mulheres brancas e negras quando viti-mas de violncia sexual. Quando sofria esse tipo de violncia, a

    14 Ruy Rebello Pinho (1973, p. 19).

  • 18 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    escrava negra ou no era reconhecida como vtima ou seu agressorrecebia um tratamento judicial mais brando do que aquele previstoquando a vtima era uma mulher branca15.

    Modificaes interessantes neste quadro foram introduzidas pelaConstituio Poltica do Imprio16, de 25 de maro de 1824, e peloCdigo Criminal editado seis anos depois. A propsito, convm prem relevo a prioridade dispensada represso da criminalidade: areferida Constituio de 1824 determinava a organizao quantoantes de um Cdigo Civil e de um Cdigo Criminal (art. 179, XVIII).No entanto, transcorreram-se quase cem anos at que fosse pro-mulgado o Cdigo Civil (1916), sendo que vinte e seis anos de-pois da promulgao da Constituio, em 1850, entrava em vigoro Cdigo Comercial, contendo regras prprias e outras tpicas deum cdigo civil.

    Cumpre notar que o Cdigo Comercial, de 1850, qualificava ju-ridicamente o escravo como semovente, uma categoria jurdica quedesigna coisa inanimada, usualmente empregada para indicar ani-mais e gado, no sendo ocioso lembrar que ainda nos dias atuaiso Cdigo Comercial (ainda o mesmo editado em 1850), prossegue,no artigo 273, utilizando o vocbulo escravo e equiparando-o aossemoventes.

    Na obra de Agostinho Marques Perdigo Malheiro17 podemosidentificar um fenmeno que possivelmente constitui um dos alicer-ces daquele procedimento carinhosamente denominado jeitinhobrasileiro. Para todos os efeitos civis contratos, herana, etc. oescravo no era considerado pessoa, sujeito de direitos. Isso se apli-cava tanto para os homens como para as mulheres negras18.

    15 A leitura dessas normas tambm nos permite perceber a estrutura hierrquica queorganizava a sociedade brasileira daquela poca. Por exemplo, as penas aplicadas afidalgos eram infinitamente mais brandas que as aplicadas a homens brancos sem estirpeque praticassem o mesmo delito.

    16 Escravista sem inscrever uma nica palavra referente ao assunto velha e conhecidafrmula do racismo ptrio a Constituio de 1824 aboliu a pena de tortura, a marca deferro quente e todas as demais penas cruis.

    17 Agostinho Marques Perdigo Malheiros (1994).18 H uma historiografia recente sobre escravido no Brasil que tem apontado brechas

    nessa estrutura que, no entanto, no negam o funcionamento estrutural a que me refiro.Para essa outra perspectiva ver, dentre outros, Silvia H. Lara (1988), Jos Roberto Ges(1993) e Keila Grinberg (1994).

  • 19AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    No entanto, para o direito penal, melhor dizendo, para efeito daperseguio penal, o escravo e a escrava eram considerados res-ponsveis, humanos, isto caso figurassem como rus; j se tivessemuma parte de seu corpo mutilada, a leso era qualificada juridica-mente como mero dano algo atinente ao direito de propriedade eno ao direito penal. Ou ainda, caso fossem escravos arrebatadospor algum, configurado estaria o crime de roubo. Numa palavra:sendo rus eram pessoas, sendo vtimas, coisas.

    Um conjunto de leis, avisos e posturas municipais, asseguravaaos senhores de engenho o direito a organizar parte do aparato defora necessrio para subjugar e explorar o negro e a negra escravi-zados, merecendo destaque, dentre outras: A Deciso de 5 de novembro de 1821 que determinava as

    providncias a serem tomadas contra os negros capoeiras naProvncia do Rio de Janeiro;

    A Lei de 15 de outubro de 1827 que determinava aos Juizes dePaz que destruissem os quilombos e providenciassem para queno se formassem outros;

    O Decreto de 21 de fevereiro de 1832 que tratou do trabalho escravono Arsenal de Guerra da Corte e previa a atuao de um Capeloque alm de celebrar a missa aos domingos e dias santos,instruiria a escravatura nos princpios da religio crist;

    O Decreto 796, de 14 de junho de 1851, que regulava os serviosde enterro e prescrevia a segregao das valas comuns: um tipodestinado aos pobres e indigentes e outro destinado aos escravoshomens e mulheres;

    O Decreto 1331-A, de 17 de fevereiro de 1854, que proibia aadmisso de escravos de ambos os sexos no ensino primrio esecundrio no Municpio da Corte;

    O Decreto 3.609, de 17 de fevereiro de 1866, que determinava apriso dos escravos e escravas localizados nas ruas aps as 22:00hsem autorizao dos senhores;

    O Decreto 7.001, de 17 de agosto de 1878, que previa a produode estatsticas sobre aes policiais e judicirias referentes aosnegros.

  • 20 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    Alm de tais restries e discriminaes que sofriam os escra-vos, homens e mulheres, merecem destaque ainda, algumas penasaplicadas com extrema crueldade. Deve-se dar visibilidade, mesmoesquematicamente, a alguns temas que, pela relevncia que assu-mem na histria do escravismo, necessitam de um registro especial,que passo a fazer abaixo.

    A pena de aoites

    A despeito da Constituio de 1824 prescrever em seu art. 179, incisoXIX, a abolio dos aoites, da tortura, da marca de ferro quente edemais penas cruis, o Cdigo Criminal de 1830 a elas se referiaexpressamente19, no que foi acompanhado pelo entendimento dosTribunais segundo os quais o aludido preceito constitucional no seaplicava aos escravos.

    Assim, o suplcio e demais penas cruis foram largamente em-pregados como meios de subjugao de negros e negras escraviza-dos em todo o perodo colonial e no Imprio.

    Com a adoo de dois Avisos (uma espcie normativa da poca),editados na dcada dos anos trinta do sculo XIX, aos Juzes deDireito competia fixar e acompanhar a execuo da pena de aoites.

    Segundo Lenine Nequete,

    a brutalidade integraria sempre o sistema. J em 1651, no Brasilholands, registrava o cronista Pierre Moreau: Quase receio ex-primir o modo desumano e impiedoso que se usa para com essesdesgraados cativos, pois, ainda mais do que compaixo, despertarepulsa. Eram de tal forma torturados no trabalho assduo quelhes era marcado, que, ainda quando o mesmo excedia suas foras,se algum deixasse, no tempo prescrito, de executar o que lhe haviasido determinado, era amarrado e garroteado, na presena de to-dos os outros escravos reunidos e o feitor ordenava ao mais fortee vigoroso que desse sem interrupo no faltoso duzentas a tre-zentas chicotadas, desde a planta dos ps at a cabea, de sorteque o sangue escorria de todas as partes; a pele, toda rasgada de

    19 Os arts. 60 e 61 do Cdigo Criminal do Imprio previam a aplicao de penas corporaislato sensu, gals, aoites e uso de torniquetes de ferro.

  • 21AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    golpes, era untada com vinagre e sal, sem que ousassem gritar ouse queixar, sob pena de receber o dobro. Algumas vezes, segundoa gravidade da falta, este castigo, ou melhor, esta tortura erarepetida dois ou trs dias consecutivos. Ao sair dali eram presosencadeados em lugar escuro e, no dia seguinte, mais submissosque uma luva, eram reenviados ao servio, onde, em lugar deesmorecer, matavam-se de cansao, nus como animais, seus cor-pos fundindo-se em suor.20

    A pena de morte

    Em resposta proliferao de assassinatos de senhores de escravos,cometidos por negros e negras escravizados, o Imprio faz publicarem 10 de junho de 1835, a Lei n 4, cujo art. 1o transcrevemos aseguir:

    Art. 1. Sero punidos com a pena de morte os escravos ou escravas,que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno,ferirem gravemente ou fizerem qualquer outra ofensa fsica a seusenhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em suacompanhia morarem, e a administrador, feitor, e as suas mulheres,que com eles conviverem.

    Referida lei no previa a possibilidade de recurso21 em caso decondenao, e, segundo Lenine Nequete, o legislador movera-se considerao de que os escravos ora se determinavam por umarevolta do sentimento contra o cativeiro que os oprimia; oradelinqiam simplesmente para deparar com uma cadeia que lhesparecia mais tolervel, mais suave e mais doce do que o misrrimojugo que suportavam.22

    Prosseguindo, Nequete assinala:

    20 Nequete Lenine (1988, p. 8)21 Alguns autores aportam contribuies que relativizam essa impossibilidade. Ver a res-

    peito os trabalhos citados na nota n. 18.22 Ibidem, p. 57

  • 22 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    Dominado, assim, pela fora de tais motivos, o legislador quissuspender pela ameaa de uma pena gravssima o brao do escra-vo, sempre disposto a descarregar o golpe fatal, tanto em vtimasvotadas ao seu dio, como em qualquer que se lhe afigurasse deestorvo removvel ao gozo de sua liberdade. J que o escravo, con-forme seu falso critrio, tanto se libertava do cativeiro matando oprprio senhor, o feitor, ou pessoas da famlia de qualquer dosdois; como igualmente assassinando a indivduo outro estranho,que sua vontade em m hora escolhesse: nada mais justo do queacreditar que a lei de 10 de junho fora concebida quer para uma,quer para outras das hipteses indicadas, pois que em ambas serealizava o fato, a que o legislador quis atender por meio de umapunio toda especial. A lei, eliminando os trs graus da pena,aceitos no Cdigo, exigindo para imposio da pena de morte doisteros dos votos apenas e, negando ao mesmo tempo os recursoscomuns da sentena condenatria, quando proferida pelo jri:criou, decerto, um delito sui generis, de penalidade parte, comque se pretendeu a cessao dos horrores, que em larga escala serepetiam no Imprio inteiro.23

    Sobre o assunto, anota ainda o Professor Basileu Garcia que

    Nas porfias parlamentares sobre o extremo suplcio, o grupo con-servador propugnava-lhe a admisso no Cdigo; outro grupo, dosliberais, se opunha. Venceram os conservadores por pequena mai-oria. O seu argumento principal era a criminalidade do elementoservil, muito difundida. Entendiam que, sem a aludida pena, nose manteria a ordem entre os escravos, os quais, pelo seu teor deexistncia, seriam indiferentes a outros castigos24.

    O defloramento e o estupro da mulher negra escravizada

    Lenine Nequete assinala reiterados julgados por meio dos quais osTribunais firmaram jurisprudncia contrria punio dos senhoresestupradores25, mesmo depois da adoo do Cdigo Criminal de

    23 Ibidem, mesma pgina.24 Basileu Garcia. Instituies de Direito Penal. 4a ed., So Paulo, Ed. Max Limonad,

    (1968, p. 121)25 Lenine Nequete, op.cit. p. 60 e ss.

  • 23AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    1830, que capitulava o estupro em seu art. 219. Segundo o entendi-mento de boa parte dos ilustres magistrados, no sendo pessoa, amulher negra escravizada no era portadora de reputao ou dehonra, nem poderia exercer o direito de queixa, deferido legalmen-te apenas aos senhores estupradores.

    Convm notar que o referido preceito legal, como tambm osdelitos de seduo e de atos libidinosos (Cdigo Criminal de 1830,arts. 224 e 226), empregavam a expresso mulher virgem menor dedezessete anos sem qualquer meno cor/raa ou condio deescrava, de sorte que a discriminao imposta pelos Tribunais resul-tava de pura interpretao, refletindo a ideologia racista e o despudo-rado engajamento de parte do Poder Judicirio na defesa dos inte-resses dos senhores de engenho.

    Outro dado interessante refere-se ao enunciado do art. 220 domesmo Cdigo, o qual previa um agravamento da pena na hiptesede estupro praticado contra mulher que estivesse sob poder ou guardado estuprador, circunstncia esta que invariavelmente marcava arelao entre a escrava e seu senhor.

    No obstante, diversos foram os processos nos quais os estupra-dores foram premiados com o beneplcito dos Tribunais com defesascomo a seguinte:

    Sou do nmero dos que pensam que os senhores, em referncia aseus escravos, enquanto existir no pas a respeito deles a legislaoque temos, no podem cometer outros crimes que no provenhamdo abuso do poder dominical, do direito de correo, e que foradessas raias, no podem os senhores cometer crimes em relaoa seus escravos. Privados de direitos civis, no tm os escravos ode liberdade, de honra e de reputao, seus direitos reduzem-se aoda conservao e da integridade do seu corpo; e s quando ossenhores atentam contra seu direito que incorrem em crime pu-nvel, porque no h delito sem a violao de um direito. (Tribu-nal da Relao de Pernambuco Recurso Criminal julgado em11/5/1883)26.

    26 Lenine Nequete, op.cit. pp. 63-67.

  • 24 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    A prostituio da mulher negra escravizada

    Vale notar que a prtica da prostituio da mulher negra escraviza-da que registrava certa preferncia por meninas de 10 a 15 anosde idade forada a tanto por seu senhor e obrigada a entregar-lheuma quantia pela venda do seu corpo, perpassou todo o perodocolonial e o Imprio. Com base em interpretao do direito de pro-priedade, previsto nas Ordenaes e no art. 179, inciso XXII, daConstituio de 1824, entendiam os Tribunais que a plenitudeconferida propriedade inclua a possibilidade dos senhores de-sempenharem o rduo papel de cafetes, de alcoviteiros:

    No aproveita escrava, em favor de sua liberdade, a alegaode ter sido entregue, pelo seu senhor, prostituio. Esta tem sidoa jurisprudncia dos Tribunais do pas, visto que no h lei algumaque autorize a concesso judicial da liberdade por tal motivo, enem a prtica do foro registra caso contrrio (Acrdo do Supre-mo Tribunal de Justia, proferido na Revista Cvel n 8.967, julga-do em 31.10.1876)27.

    O viajante Charles Expilly registra que

    famlias modestas, mas respeitveis, viviam comodamente daprostituio de duas ou trs escravas. Como fosse proibida a circu-lao noturna de cativos pelas ruas do Rio de Janeiro sem permis-so escrita do senhor, era tal permisso fornecida s escravas emtroca da obrigao de trazer determinada soma de dinheiro no diaseguinte28.

    Igualmente digna de nota a aluso feita por Leline Nequetede que na dcada anterior abolio formal do trabalho escravo, oJudicirio registrava 1.604 aes, das quais resultaram a alforria de729 escravas que lograram provar em juzo terem sido constrangidas prostituio e obrigadas a entregar aos seus senhores uma quan-tia diria como produto do trfico de sua carne, sem o que erampunidas com castigos corporais29.

    27 Idibem, p. 79.28 Charles Expilly (1862, p. 290-292) apud Lenine Nequete, op. cit., p. 85.29 Lenine Nequete, op.cit., p. 85.

  • 25AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    A alforria como instrumento de escravizao

    Vale notar que, tanto para homens como para mulheres negras, des-de o ano de 1603, at a edio da Lei n 2.040, de 28 de setembro de1871, a compra da carta de alforria30 constitua uma liberalidade dosenhor, cujo contrato frequentemente previa a chamada clusula deingratido, por meio da qual caso o liberto se mostrasse ingrato,indigno, revelasse desapreo por seu senhor ou se recusasse a pres-tar-lhe servios, a alforria era revogada. Em suma, a alforria, mesmodepois da adoo da referida lei, esteve sempre condicionada a umarelao de subordinao, de servido, de bajulao, sob pena doliberto, homem ou mulher, ser reescravizado. Ademais, a malfadadaingratido configurava crime (Ord., Livro IV, Tt. 63, 10, in fine),punido com priso.

    O Cdigo Criminal do Imprio

    Saudado como smbolo de modernidade e portador das novas idiasliberais ento em voga na Europa31, o Cdigo Criminal editado em16 de dezembro de 1830 exibia, entre seus 312 artigos, um significa-tivo leque de normas diretamente destinadas conteno da rebel-dia negra, seja entre escravos, seja entre livres e libertos, entre elas: fixava a responsabilidade penal em 14 anos;

    atribua ao senhor a responsabilidade pela indenizao dos danoscausados pelo escravo;

    estabelecia a pena de aoites e uso compulsrio de ferros;

    criava o crime de insurreio;

    punia as pessoas livres que encabeassem insurreio;

    punia a ajuda, o incitamento ou aconselhamento insurreio,bem como o fornecimento de armas, munies ou outros meiospara o mesmo fim;

    punia a propaganda da insurreio;

    30 A Carta de Alforria era prevista juridicamente no Livro IV, Tt. 63, 7, das OrdenaesFilipinas.

    31 Ver a respeito. Jurandir Malerba (1994).

  • 26 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    punia a celebrao, propaganda ou culto de confisso religiosaque no fosse a oficial32;

    criava o crime de vadiagem; criminalizava a mendicncia.

    Esse Cdigo estipulava penas severssimas desde a pena demorte at a mais branda de 15 anos em trabalhos de gals paraos escravos que se reunissem para buscar a liberdade, homens emulheres.

    As leis racistas do perodo ps-escravismo

    Um equvoco facilmente localizvel na produo acadmica sobre oracismo no Brasil, cujo impacto negativo sobre o discurso da mili-tncia negra e anti-racismo est a merecer um exame acurado, refe-re-se ao credo na suposta neutralidade da lei na conformao domodelo brasileiro de relaes raciais. Vale dizer, patente o predo-mnio de um certo entendimento segundo o qual o racismo brasilei-ro, mesmo em sua verso ps-abolio, teria prescindido do supor-te, do aparato, da fora da lei na subjugao e marginalizao dopovo negro.

    Sobre o tema, assim se manifesta, por exemplo, Eccles33:

    Minha tese de que o sistema jurdico brasileiro no conseguiugarantir o princpio da no-discriminao contra os negros, noobstante ter sido historicamente neutro com respeito raa, ga-rantindo a todos igual proteo da lei (grifo nosso).

    Noutra passagem, assevera o autor que

    Por muito tempo, a funo da lei com respeito s relaes raciaisamericanas foi simplesmente assegurar a dominao branca so-bre a populao negra.34

    32 O art. 5 da Constituio de 1824 prescrevia que Religio Catholica Apostolica Romanacontinuar a ser a Religio do Imprio.

    33 Peter R. Eccles (1991, pp. 135-163)34 Idem p. 139.

  • 27AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    Com a devida licena do arguto e desbravador pesquisador nor-te-americano, eu diria que, a exemplo dos Estados Unidos da Am-rica, aqui tambm, por muito tempo, includa a primeira metade dosculo XX, e alcanando, em menor grau, os anos de 1970, a funoda lei, especialmente da lei penal, e tambm do Poder Judici-rio35, foi basicamente legitimar e institucionalizar os interessesdos brancos brasileiros, ao mesmo tempo em que servia de instru-mento de controle sobre o corpo e a mente da populao negrabrasileira. A suposta neutralidade da lei tambm escondia o se-xismo que imperava e imperou at a Constituio Federal de 1988,contra as mulheres.

    O Cdigo Penal da Repblica

    Proclamada a Repblica, em 1889, o Governo Provisrio, do qualera Ministro da Justia Campos Sales, encomenda ao ConselheiroBaptista Pereira a organizao de um projeto de Cdigo Penal, con-vertido em lei em 11 de outubro de 1890.

    Somente em 24 de fevereiro do ano seguinte, 1891, foi elabora-da a primeira Constituio Republicana. Nesse sentido, pode-se dizerque o Brasil proclamou a Repblica e antes de elaborar a sua Cons-tituio imps, atravs do Cdigo Criminal de 1890, a obedincia auma ordem poltico-jurdica que s veio a ser definida posterior-mente. Vale dizer, primeiro o dever de obedecer, depois, o detalheda ordem a ser obedecida.

    Segundo Mirabete36,

    Logo foi ele (o Cdigo de 1890) alvo de duras crticas pelas falhasque apresentava e que decorriam, evidentemente, da pressa comque foi elaborado. Aboliu-se a pena de morte e instalou-se regimepenitencirio de carter correcional, o que constitua um avanona legislao penal.

    35 Ver a respeito Andrei Koerner (1998).36 Julio Fabbrini Mirabete (1996 v. 8, p. 42)

  • 28 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    Dentre os artigos desse Cdigo, convm destacar: a fixao daresponsabilidade penal aos 9 anos de idade e a punio, como cri-me, de diversos comportamentos e atividades como a capoeiragem,o curandeirismo, o culto ao espiritismo, a mendicncia, a vadiagem,dentre outros.

    Aplaudindo a fixao da responsabilidade penal em 9 anos, NinaRodrigues37, reconhecido hoje em dia como um defensor ardorosode teses racistas, discorre sobre as acertadas razes do legislador.Segundo esse autor,

    O nosso Cdigo Penal vigente, inspirado (perdoe-me o legisla-dor), mal copiado do codigo penal italiano, trouxe-nos portantoum progresso reduzindo a menoridade de quatorze para noveannos (...) Os povos civilizados mais cultos, o inglez, o italiano,o allemo, por exemplo, cujas cerebraes devem ser de maislento desenvolvimento, se contentam com sete, nove, doze annos;no Brazil, por causa das suas raas selvagens e barbaras, o limi-te de quatorze annos ainda era pequeno! (...) as raas inferioreschegam puberdade mais cedo do que as superiores (...) o me-nino negro precoce, affirma ainda Letorneau; muitas vezesexcede ao menino branco da mesma idade; mas cedo seus pro-gressos param: o fructo precoce aborta (...) quanto mais baixafr a idade em que a aco da Justia, ou melhor do Estado sepuder exercer sobre os menores, maiores probabilidades de exitoter ella, visto como poder chegar ainda a tempo de impedir ainfluencia deleteria de um meio pernicioso sobre um caracterem via de formao, em poca em que a aco delles aindapossa ser dotada de efficacia.

    Considerado por Lombroso38 como seu apstolo na Amrica doSul, Raymundo Nina Rodrigues denominao atual do Instituto

    37 R. Nina Rodrigues (1894)38 Mdico psiquiatra, militante do Partido Socialista Italiano dos Trabalhadores, Cesare

    Lombroso (1835-1909) considerado fundador da Antropologia Criminal e um dosprecursores da Criminologia, cincia cujo objeto ainda hoje alvo de controvrsias.Deve-se a Lombroso as definies de delinquente nato, atavismo (herana remota) crimi-noso, associao entre fentipo e predisposio delituosa, entre outras. Lombroso respon-de, juntamente com Enrico Ferri e Rafael Garofalo, pela denominada escola italiana aescola do positivismo criminolgico.

  • 29AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    Mdico Legal e de um museu localizado em Salvador no se viudiante de maiores embaraos para proceder a identificao, no con-texto brasileiro, da figura do delinquente nato criada por seu mestreitaliano.

    Posiciona-se Nina Rodrigues que

    ...se pode admittir que os selvagens americanos e os negros afri-canos, bem como seus mestios, j tenham adquirido o desenvolvi-mento physico e a somma de faculdades psychicas, sufficientespara reconhecer, num caso dado, o valor legal do seu acto(discernimento) e para se decidir livremente a commettel-o ou no(livre arbitrio)? Por ventura pode-se conceder que a consciencia dodireito e do dever que teem essas raas inferiores, seja a mesma quepossue a raa branca civilisada?39 (...) O negro crioulo conservouvivaz os instinctos brutaes do africano: rixoso, violento nas suasimpulses sexuaes, muito dado embriaguez e esse fundo decaracter imprime o seu cunho na criminalidade colonial actual40.

    A propsito, dentre as manifestaes da genialidade do cientis-ta Nina Rodrigues, uma seria cmica, no tivesse respondido pelatragdia que se abateu sobre tantas crianas e jovens negros, deambos os sexos, do incio do sculo: a freniatria, frenologia e quetais,notabilizaram-se, na Europa, pela associao entre determinadascaractersticas ou medidas corporais e delinquncia; da a impor-tncia atribuda s medies de estatura, comprimento da cabea,do dedo mdio, dos braos etc., s quais foi acrescentada, no Brasil,a largura do nariz, certamente resultante do esforo adaptativo docientista.

    Crtico feroz do tratameto igualitrio conferido pelo Cdigo Pe-nal a negros e brancos, bem como da noo de livre arbtrio41 eoutras caractersticas do Cdigo, o mdico maranhense propugnavaa adoo de quatro cdigos42: um para os mestios superiores, um

    39 R. Nina Rodrigues, op. cit. p. 11240 Idem, p. 12441 Para Nina Rodrigues a raa e no o indivduo determinava o comportamento. Da porque

    sua oposio adoo da premissa do livre arbtrio prevista no cdigo.42 Nina Rodrigues, op. cit. p. 167.

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    para os mestios evidentemente degenerados, um para os mestioscomuns e finalmente um para os brancos, assim descritos43

    A civilisao aryana est representada no Brazil por uma fracaminoria da raa branca a quem ficou o encargo de defendel-a, nos contra os actos anti-sociaes os crimes dos seus propriosrepresentantes, como ainda contra os actos anti-sociaes das raasinferiores.

    De seu lado, a criminalizao da vadiagem mereceu esfuzianteaclamao por parte do mestre Nina Rodrigues44:

    A indolncia da populao mestia talvez um dos factos sobre oqual menos se discutir no Brazil, e no menor o accordo unanimeem attribuil-a riqueza nativa do slo, que dispensa qualquertrabalho. O ultimo codigo penal, feliz por ter com o consenso ge-ral, encontrado na indolencia dos mestios, uma manifestao dalivre vontade de no querer trabalhar, correu pressuroso, com oart. 399, em auxilio desse prejuizo.

    E arremata o professor45: A bem conhecida incapacidade de um trabalho physico conti-

    nuado e regular dos selvagens tem sua explicao natural naphysiologia comparada das raas humanas; por certo, esquecen-do o mestre o fato de que em 1894, data da obra em questo, osbrancos contabilizavam menos de uma dcada de familiaridade como trabalho propriamente dito, contra quatro sculos de trabalho donegro escravizado.

    Note-se, a propsito, que estudos de Boris Fausto46 atestam oendereamento racial da criminalizao da vadiagem:

    Os relatrios do Secretrio de Justia dos anos 1904 e 1906 nicos a estabelecer um cruzamento entre presos por contraven-o e nacionalidade mostram como os brasileiros so ampla-

    43 Idem, op. cit. pp. 170-17144 Idem, op. cit. p. 14145 Idem, op. cit. p. 14246 Boris Fausto (1984)

  • 31AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    mente majoritrios na rubrica vadiagem, enquanto os estran-geiros predominam em embriaguez e mais ainda em desor-dens. (...) Por sua vez, as indicaes referentes a pessoas processa-das por vadiagem nos anos 1907 e 1908 indicam como os nacio-nais continuam sendo majoritrios, mas em proporo bem me-nor (...) Estes dados do alguma consistncia hiptese de que amassa de vadios era formada por uma populao destituda pre-dominantemente nacional, onde talvez fosse possvel encontrarum nmero significativo de pretos e mulatos, marginalizados deatividades econmicas atraentes nos anos pr e ps-Abolio.

    Fausto cita ainda Audferheid47, que segundo o autor, mostroucomo as autoridades sempre fizeram uma aproximao entre a va-diagem e a populao negra. Por exemplo, as partes de semana,feitas pelos juzes de paz de Salvador (1834-1836) referiam-se commuita frequencia, em suas descries, a crioulo forro, negro, par-do, cabra vadio, ou preto vadio.

    Retomando, convm assinalar que o impacto da produorodrigueana e seus pressupostos lombrosianos no fica restrito sdependncias da Faculdade de Medicina da Bahia, na qual lecio-nava o mdico-legista, mas influenciar a literatura mdica nacio-nal e sobretudo o discurso jurdico hegemnico nas Faculdades deDireito de Recife e de So Paulo, lanando as bases de uma verda-deira escola terica. Trata-se de um perodo de reinado absoluto dafrenologia, da freniatria, da biologia criminal e quetais, conformedemonstra a antroploga Lilia Schwarcz48.

    Nesta mesma trilha, pesquisando julgamentos de curandeirismoe charlatanismo no Brasil, desde o incio do sculo, Schritzmeyer49

    indica nitidamente a associao entre tais delitos e prticas religio-sas de origem africana, vistas como brbaras e primitivas.

    Tratamento especial, e por que no dizer racial, mereceu igual-mente a capoeira, tipificada pelo cdigo em um captulo sugestiva-mente intitulado Dos vadios e capoeiras. Como assevera Fausto50,

    47 apud Boris Fausto, p. 4548 Lilia Moritz Schwarcz (1993)49 Ana Lcia Pastore Schritzmeyr (1997, pp. 135-145)50 Boris Fausto, op. cit. p. 35

  • 32 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    Trata-se, no caso, de um claro exemplo de criminalizao de umcomportamento com o propsito de reprimir uma camada social es-pecfica, discriminada pela cor. A preocupao com a capoeiragemest ligada a uma conjuntura histrica e em particular a uma cidade o Rio de Janeiro no perodo imediatamente posterior Abolio.

    Apesar das citaes aqui reproduzidas no se referirem especi-ficamente s mulheres negras, pode-se inferir que o valor atribudoa elas no se diferenciava daquele atribudo aos homens negros,embora o sexismo articulado ao racismo tenha certamente produzi-do efeitos especficos, inclusive e, principalmente, no pensamentojurdico brasileiro.

    A Constituio de 1891

    A primeira Constituio Republicana ir ampliar os direitos civis epolticos, mas indiretamente impede o acesso do povo negro s ur-nas ao impor a alfabetizao como requisito para o direito desufrgio num pas recm sado do escravismo; alm de excluir ou-tros segmentos, a exemplo das mulheres.

    No ser demais realar que os analfabetos passaram a exercero direito de sufrgio quase um sculo depois da edio da primeiraConstituio republicana, mais precisamente em 1985, por meio daemenda constitucional n 25.

    A Constituio de 1934

    significativo o fato de que a Constituio de 1934, promulgadapor uma assemblia constituinte que contou, pela primeira vez, comuma presena feminina51 e com representao classista, tenha con-signado o repdio discriminao racial, ao mesmo tempo em queprescrevia o ensino da eugenia52 e fixava restries tnicas na sele-o dos imigrantes. Em homenagem a este ltimo preceito, o Decre-to-Lei n 7.967/45, consignava em seu art. 2:

    51 O voto feminino foi conquistado como um direito por lei em 1932 e como um dever naConstituio de 1934. Ver a esse respeito Branca Moreira Alves (1980).

    52 Eugenia (higiene racial), ideologia formulada em 1908 pelo ingls Francis Dalton, quepreconizava a idia de pureza racial como contraposio alegada degenerao decor-rente dos cruzamentos raciais.

  • 33AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    Atender-se-, na admisso de imigrantes, necessidade de preser-var e desenvolver, na composio tnica da populao, as caracte-rsticas mais convenientes da sua ascendncia europia53...

    Dos anos 1940/1950 deve-se destacar a entrada em vigor do atualCdigo Penal54, o qual fixou a responsabilidade penal em 18 anos,revogou a criminalizao da capoeiragem, do espiritismo e da ma-gia, conservou os delitos de curandeirismo e charlatanismo e pas-sou a tratar mendicncia e vadiagem como contraveno penal, umaespcie de infrao penal qual se atribui pequeno potencial ofen-sivo. importante destacar que esse Cdigo, cuja parte especialque define os crimes e as penas, vigente at hoje, apresenta severaposio que penaliza a mulher em artigos especficos, como porexemplo, no caso de aborto voluntrio e mantm expressesdiscriminadoras como a de mulher honesta na configurao devtima de delitos de natureza sexual.

    No obstante os sinais mesmo tmidos de democratizaoracial do estatuto penal, as prticas dos rgos de segurana pbli-ca permaneceram indiferentes aos ventos da mudana55.

    J em 1951, pela primeira vez, uma lei penal se propunha, aomenos teoricamente, a regulamentar preceito constitucional cons-tante j na Constituio de 1934, referente proibio de discrimi-nao racial. Em 3 de julho de 1951, entrava em vigor a Lei n 1390,a Lei Afonso Arinos, que at 5 de outubro de 1988, foi um dos maisimportantes instrumentos jurdicos antidiscriminatrios.

    Note-se ainda que a Lei n 3.097/1972, do estado da Bahia, quevigorou at o ano de 1976, exigia que os templos de religio dematriz africana fossem cadastrados na Delegacia de Polcia da cir-cunscrio na qual estivessem instalados, fato este que apenas ilus-tra o contedo patentemente racista que algumas normas jurdicasapresentavam at muito recentemente.

    53 Decreto-Lei n. 7.967, de 18 de setembro de 1945 Dispe sobre a imigrao ecolonizao e d outras providncias.

    54 Decreto-lei n. 2.848, de 7 de setembro de 194055 Cf. Hdio Silva Jr. (1998A, pp. 71-90).

  • 34 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    A Constituio de 1988

    Neste contexto, a Constituio de 1988 representa um verdadeiromarco no tratamento poltico-jurdico da temtica racial, como refle-xo inclusive do crescimento da atuao do Movimento Negro, mo-saico no qual historicamente se destaca a atuao das mulheres ne-gras, hoje inclusive articuladas em organizaes prprias. A novaConstituio deu alento elaborao de legislao federal, estaduale municipal anti-racismo, conforme destacado em trabalho anterior56

    e incorporou os preceitos da Conveno sobre a Eliminao de to-das as Formas de Discriminao Racial, de 1965, da Convenosobre a Eliminao de todas as contra a Discriminao contra aMulher, de 1979, e da Conveno contra a Tortura e outros Trata-mentos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes57, de 1984,alm de princpios de outros documentos internacionais de proteoaos Direitos Humanos.

    A Constituio explicita que um dos fundamentos da RepblicaFederativa do Brasil o respeito dignidade da pessoa humana58;e que dentre os objetivos fundamentais da Repblica est a promo-o do bem de todos, sem preconceito de origem, raa, sexo, cor,idade e quaisquer outras formas de discriminao59; declarandocomo um dos princpios da Repblica o repdio ao terrorismo e aoracismo60.

    Convm lembrar que a Constituio da Repblica protege a in-tegridade fsica mas igualmente a integridade moral dos indivduos.

    Dignidade, honra, imagem e proibio de tratamento, para fi-carmos apenas nestes, so alguns dos vocbulos que integramenunciados constitucionais que podem e devem figurar na defesajudicial dos direitos e interesses de homens e de mulheres negras.O artigo 5 da Constituio Federal de 1988, que define os direitose garantias individuais, consagra esses enunciados.

    56 Cf. Hdio Silva Jr. (1998)57 Essa Conveno foi ratificada pelo Brasil em 1989.58 Art, 1, inciso III.59 Art. 3, inciso IV.60 Art. 4, inciso VIII.

  • 35AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    O bem jurdico lesionado pela violnciaanti-mulher negra

    Derivado do latim bene, cujo significado remete idia de virtude,felicidade, utilidade e riqueza, o termo bem, espcie do gnero coi-sa, refere-se a objetos, materiais ou imateriais, aos quais se atribuiespecial valor, seja porque necessrios para a existncia, o desen-volvimento e o bem-estar humano, seja porque dotados de contedotico imprescindvel para a convivncia em sociedade. Assim, o graude proeminncia com que determinado bem socialmente conside-rado, responde pela sua insero ou no na galeria dos bens juridi-camente protegidos61.

    Faamos ento uma breve visita aos conceitos de dignidade dapessoa humana, imagem, honra e proibio de tratamento degra-dante, sublinhando algumas das principais notas caracterizadorasdestes bens juridicamente protegidos de fundamental importnciapara homens e mulheres.

    Dignidade da pessoa humana

    Segundo enunciado do art. 1o, inciso III, da Constituio Federal, apromoo da dignidade da pessoa humana constitui um dos funda-mentos da Repblica e do Estado Democrtico de Direito.

    Conforme o art. 1o da Declarao Universal dos Direitos Hu-manos:

    Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.So dotadas de razo e conscincia e devem agir em relao umass outras com esprito de fraternidade.

    O filsofo Immanuel Kant, arguto pensador das prticas virtuo-sas, assim se refere dignidade de que todos os humanos so por-tadores:

    61 O jurista Luiz Rgis Prado assinala que A conceituao material de bem jurdicoimplica o reconhecimento de que o legislador eleva categoria de bem jurdico o quej na realidade social se mostra como um valor. Esta circunstncia intrnseca norma constitucional, cuja virtude no outra que a de retratar o que constitui osfundamentos e os valores de uma determinada poca. No cria os valores a que serefere, mas se limita a proclam-los e dar-lhes um especial tratamento jurdico.

  • 36 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoacomo na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como ummeio62.

    Em referncia matria, leciona o jurista Franco Montoro que

    a pessoa humana o valor-fonte de todos os direitos. ela a razode ser e o fim de todas as normas jurdicas. As exigncias funda-mentais de sua natureza, como o direito vida, liberdade respon-svel, convivncia social, famlia, aos bens, etc. constituemdireitos subjetivos no plano da justia, comutativa, distributiva ousocial63.

    Temos assim que dignidade da pessoa designa um atributo ina-lienvel dos seres humanos, homens e mulheres, uma essncia ti-co-espiritual de que todos so portadores e que os qualifica, per se,como sujeitos de direitos.

    Imagem

    A imagem da pessoa tutelada pela norma do art. 5, inciso V, daConstituio Federal.

    Para o jurista Jos Afonso da Silva:

    A inviolabilidade da imagem da pessoa consiste na tutela do as-pecto fsico, como perceptvel visivelmente, segundo Adriano deCupis, que acrescenta: Essa reserva pessoal, no que tange ao as-pecto fsico que, de resto, reflete tambm personalidade moraldo indivduo satisfaz uma exigncia espiritual de isolamento,uma necessidade eminentemente moral64.

    Vale notar que a imagem pode ser veiculada por representaogrfica, fotografia, mscara, desenho, som, ou qualquer outra re-presentao idnea para identificar o indivduo. Uma reviso sobrea iconografia sobre os negros no Brasil e, em especial sobre a mu-lher negra, mostra como a imagem do povo negro tem sido estereo-

    62 Immanuel Kant (s/d)63 Franco Montoro (1997, p. 442)64 Jos Afonso da Silva (1999, p. 191)

  • 37AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    tipada para justificar todas as discriminaes e exacerbar a sexuali-dade feminina, justificando prticas sexuais abusivas cometidas con-tra as mulheres negras.

    Honra

    O direito honra tem proteo constitucional na norma do art. 5,inciso V.

    Segundo o jurista Celso Bastos:

    a proteo honra consiste no direito de no ser ofendido ou lesadona sua dignidade ou considerao social65

    No dizer do jurista Jos Afonso da Silva:

    A honra o conjunto de qualidades que caracterizam a dignidadeda pessoa, o respeito dos concidados, o bom nome, a reputao. direito fundamental da pessoa resguardar essas qualidades66.

    A dogmtica penal refere-se ao conceito de honra objetiva, com-preendida como a imagem de que o indivduo desfruta perante acomunidade, a reputao, em oposio honra subjetiva, conceituadacomo a imagem que o indivduo faz de si prprio, a auto-estima.Nesse sentido, conforme j assinalado, o cancioneiro e o anedotrionacionais so exemplos de violaes desse bem jurdico.

    Proibio de tratamento degradante

    O inciso III, do art. 5, da nossa Constituio, endossa a Convenocontra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruis e Degradan-tes, de 1984, assinada e ratificada pelo Brasil.

    A palavra degradante denota aquilo que aviltante, infamante,degradador.Vale lembrar que a parte final do aludido art. 1 da De-clarao Universal dos Direitos Humanos prescreve que a interaohumana deve ser pautada pelo esprito de fraternidade. Convmainda assinalar tambm que o Cdigo Penal incrimina o constrangi-mento ilegal (CP, art. 146), como ato que coage a vtima a no fazer

    65 Celso Bastos (1997, p. 195)66 Jos Afonso da Silva. op. cit., p. 191.

  • 38 AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    o que a lei permite, ou a fazer o que a lei no manda, comportamen-to esse que contribui para degrad-la.

    De resto, uma mxima filosfica de Kant afigura-se bastante atuale til para uma definio do que seja tratamento no-degradante:trate as pessoas do exato modo como gostaria de ser tratado. Inme-ros exemplos poderiam ser dados para caracterizar o tratamentodegradante que o povo negro tem recebido em nossa sociedade. Noque se refere s mulheres negras, muitas inseridas no mercado detrabalho como empregadas domsticas, o exemplo famoso do ele-vador de servio demonstra o quanto de discriminao persiste nasprticas sociais.

    Dano moral e dano psquico sofridospelas mulheres negras

    O vocbulo dano, derivado do latim damnu, denota prejuzo, perda.Anota o jurista Marcus Cludio Acquaviva:

    Prejuzo sofrido pelo patrimnio econmico ou moral de al-gum. O dano pode ser material, tambm chamado real, quandoatinge um bem economicamente apurvel; ou moral, quandomacula bens de ordem moral, como a honra. A parte lesada peloinadimplemento contratual ocasionado pela outra parte poderequerer a resciso do contrato com perdas e danos. O danopode, tambm, configurar crime67.

    No campo patrimonial, leciona o jurista Guilherme Couto Castro:

    as perdas e os danos abrangem, alm do efetivamente perdido,o que razoavelmente se deixou de ganhar. Dois advrbios, efeti-vamente e razoavelmente, comandam a interpretao da lei, oprimeiro ligado aos danos emergentes (aquilo que se perdeu) eo segundo aos lucros cessantes (aquilo que se deixou de ga-nhar)68.

    67 Marcus Cludio Acquaviva (1993, pp. 410-11)68 Guilherme Couto de Castro (1997, p. 18)

  • 39AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    Quanto ao dano moral, prossegue o autor, a primeira questo defini-lo, e o fazemos anotando que se cuida do abalo de sentimen-to, da angstia, da mgoa ou do sofrimento experimentado por umapessoa69.

    Sucede que freqente, a doutrina e a jurisprudncia nofazerem distino entre dano moral e dano psquico, procedimentorejeitado pela jurista Celeste Leite dos Santos Pereira e outros au-tores, para os quais, em tese, o dano moral (sofrimento) pode nodegenerar-se para uma patologia, aspecto caracterstico do danopsquico (dano sade). Desse modo, o dano psquico espcieautnoma ao dano moral, integrando a esfera da proteo sa-de, protegida constitucionalmente70, sintetizam os autores.

    Cabe registrar que a Constituio Federal tutela o direito sa-de (art. 196), sendo que a Organizao Mundial de Sade conceituasade no apenas como situao de inexistncia de doena, mastambm, como situao de bem-estar.

    Distingue-se, portanto, o dano moral, pela ofensa honorabilida-de, dignidade pessoal ou tcnica, integridade moral, estimasocial, auto-estima, imagem da pessoa, pelo que seu dimen-sionamento pode ser percebido sem maiores embaraos pelo pr-prio Juiz.

    De sua parte, o dano psquico consiste em um transtorno men-tal, uma disfuno, uma deteriorao ou um distrbio71, demarca-dos impecavelmente por Pereira e outros autores:

    O estudo da interrelao entre as correntes do dano e do ofen-dido, leva-nos a considerar que existem casos em que ocorreu osofrimento, mas com repercusses biolgicas, psquicas e soci-ais de pequena monta e aqueles casos em que tal repercussotrouxe agravos significativos sade do ofendido podendo serde natureza biolgica (lcera gstrica, infarte cardaco, re-tocolite ulcerativa, acidente vascular cerebral, etc.) ou sociais (per-

    69 Ibidem, p. 19.70 Celeste Leite dos Santos Pereira Gomes; Maria Celeste Cordeiro Leite Santos & Jos

    Amrico dos Santos (1998, p. 29)71 Enfermidade catalogada na Classificao Internacional de Doenas CID-10, da Orga-

    nizao Mundial de Sade.

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    da de emprego, desestruturao familiar, perda de clientela, deamizades, etc.)72.

    Analisando o aspecto processual, a jurista Norma GriseldaMiotto73, apresenta os seguintes procedimentos bsicos: aferio dasseqelas do fato sobre o psiquismo do ofendido; descrio das se-qelas; grau e porcentagem de incapacidade emergente; necessi-dade e tipo de tratamento; custo do tratamento; prognstico.

    Vale a pena reproduzirmos aqui extratos de uma sentena pro-ferida pelo Tribunal de Justia do Paran, na qual se fixou uma in-denizao devida por um empregador sua empregada domstica,negra, em razo de ofensas verbalizadas no momento em que esteshomologavam a demisso da referida empregada:

    Dano moral. Palavras ofensivas. Dever de compensar a dor mo-ral. Procedncia parcial em 1 grau. Pretenso de elevar oquantum indenizatrio. Critrios de valorao subjetivos. Artigo5, inciso V, da Constituio Federal. Recurso provido parcial-mente para elevar a indenizao. O insulto sofrido pela apelan-te teve forte sentido de menosprezo pessoa humana, alm decaractersticas de preconceito racial, cabendo, nos termos daMagna Carta, a recomposio dos danos sofridos, com base narepercusso do fato, na capacidade do ofensor suportar a conde-nao e na possibilidade de proporcionar vtima condies deexperimentar um benefcio que lhe amenize a aflio moral(TJPR Apelao Cvel n 55.179.500 Rel. Octavio Valeixo, de4 de maro de 1998);

    Dano moral. Racismo. Recusa de pagamento de indenizaosecuritria, por sinistro devastador, apenas em razo da cor dapele da segurada. Atitude preconceituosa caracterizada. Ilcitoque afronta os sentimentos da honra e reputao do consumi-dor. Verba devida. Fixao em igual valor ao quantum securitrioa ser pago. Recurso provido para esse fim. O preconceito ex-presso de uma perverso moral que deve ser incansavelmente

    72 Celeste Leite dos Santos Pereira Gomes et alli, op.cit., p. 15.73 Norma Griselda Miotto (1997)

  • 41AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    denunciada e combatida (TJSP Apelao Cvel n 72.692-4 Rel. nio Santarelli Zuliani de 23 de fevereiro de 1999).

    Essa nova interpretao que se forma a partir dos instrumentosinternacionais de direitos humanos e da Constituio Brasileira de1988, mas principalmente por fora do Movimento Negro, estimulao recurso a demandas judiciais tanto no sentido de proteo honraobjetiva quanto honra subjetiva e deve ser um mecanismo impor-tante para a luta das mulheres negras contra a discriminao deraa e sexo.

    Temos, pois, que a questo levantada pela Cepia compreen-der a legislao anti-racista com um olhar de gnero est a de-mandar no apenas novas leituras do sistema jurdico, mas, sobre-tudo, novos e mais complexos esforos por parte daqueles que selanam ao desafio de lutar judicialmente em defesa dos direitos einteresses das mulheres negras.

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  • 43AS MULHERES E A LEGISLAO CONTRA 0 RACISMO

    MULHERES NEGRAS E INDGENAS:A LEI E A REALIDADELeila Linhares Barsted e Jacqueline Hermann*

    Introduo

    Neste texto pretendemos esboar uma viso sociolgica do direi-to a partir da situao das mulheres negras e indgenas brasilei-ras. Admitindo-se que o ordenamento jurdico estrutura-se a partirdas relaes de poder, a ao dos grupos e movimentos sociais fundamental para introduzir e ampliar, no jogo de foras sociaisexistentes em democracias formais, o paradigma dos DireitosHumanos.

    Para analisar os textos jurdicos, buscamos incorporar tanto umaperspectiva de gnero1 que possibilite a compreenso das relaesde poder entre homens e mulheres, como uma perspectiva tnico/racial2 para entender como essas relaes de poder atuam de formamais contundente contra as mulheres negras e indgenas. Tendo emvista dar alguma visibilidade s discriminaes sofridas por essasmulheres, reunimos alguns dados estatsticos que descortinam osexo e a cor da discriminao, e justificam a luta pela igualdadelegal e por polticas pblicas concretas para as mulheres negras eindgenas.

    * Leila Linhares Barsted advogada e Diretora da Cepia. Jacqueline Hermann historia-dora, professora da UFRJ e membro do Comit de Especialistas da Cepia.

    1 Sobre o conceito de gnero, ver Rubin, Gayle (1975) e Heilborn, Maria Luiza (1992)dentre outras contribuies.

    2 Sobre o conceito de raa, Santos, Hlio (2001:83) considera que este conceito perdecada vez mais fora no campo das cincias. Na mesma direo, Santos, Joel Rufino(2001:404) destaca que no se pode cientificamente falar em raas. Adeski, Jacques D(2001:44-49) chama anteno para a ambigidade do conceito de raa; concorda quedo ponto de vista gentico no existe raa, mas incorpora as contribuies tericas dePierre-Andr Taguieff, considerando que no contexto da luta anti-racista no Brasil apalavra raa tem um valor ideolgico e poltico para o Movimento Negro. Tambm parao mesmo autor, apesar da noo de etnia ser imprecisa e insuficiente para dar conta detodas as nuanas sobre grupos e comunidades, essa noo pode atuar como fonte desolidariedade e de afirmao de identidade (Adeski, 2001, pp. 56-57).

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    Desde logo, importante reconhecer que a luta pelos direitosdas mulheres e da populao afrodescendente brasileira no temsido assumida como uma questo da sociedade em geral. Na reali-dade, os movimentos sociais tm se organizado de forma fragmen-tada, defendendo direitos de grupos especficos. De fato, mulheres,negros, trabalhadores rurais e urbanos, povos indgenas, homosse-xuais, dentre outros, lutam por direitos especficos sem necessaria-mente atuarem de forma articulada e sinrgica. Essa fragmentaoe no incorporao de demandas especficas nas pautas gerais temtornado mais difcil a concretizao da cidadania para a populaobrasileira como um todo.

    A concretizao da cidadania aponta, por outro lado, para a ne-cessidade de alargar o alcance desse conceito face ao paradigmados direitos humanos, compreendidos como universais e indivis-veis. A partir da, a cidadania deve ser estendida para alm doacesso a direitos civis e polticos, incorporando as dimenses social,econmica, cultural e ambiental. Nesse sentido, tendo como marco aDeclarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, o conceitode cidadania est intimamente relacionado ao conceito de direitohumanos.

    No entanto, a perspectiva universalista do direito de cidadania,que declara a igualdade de todos, no tem sido suficiente para queo ordenamento jurdico brasileiro garanta de fato o acesso justia eo respeito a esses direitos, independentemente de sexo, raa e/ouetnia. Assim, fundamental, para a efetivao da eqidade, a con-cretizao da igualdade de oportunidades atravs da garantia dedireitos especficos. Trata-se, portanto, de conciliar o princpio uni-versalista da igualdade com o reconhecimento das necessidadesespecficas de grupos historicamente excludos da riqueza social eculturalmente discriminados.

    Muito tem sido dito sobre a enorme distncia entre declaraesformais de direito e a efetivao prtica da cidadania. No Brasil, osdados estatsticos apontam para uma imensa desigualdade socialque se amplia quando consideramos os indicadores de raa/etnia esexo. Alm da desigualdade scio-econmica, o reconhecimento deque todos tm direitos e a capacidade ou o poder para demand-losainda esto em patamares muito baixos em nosso pas, particular-

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    mente para indivduos pertencentes a grupos que s muito recente-mente passaram a ser reconhecidos como cidados, como o casodas mulheres e, em especial, das mulheres negras e indgenas.

    Mesmo sabendo que ainda h muito o que fazer para a efetiva-o prtica de direitos j garantidos pela legislao brasileira, o re-conhecimento formal de direitos um fator de suma importncia,um passo fundamental, embora no signifique, logicamente, quehomens e mulheres, brancos e negros, por exemplo, passem a ter,automaticamente, um poder de deciso maior sobre suas vidas esobre os destinos do pas. Particularmente, no que se refere s mu-lheres, a declarao legal de igualdade no significa que estas sesintam, de imediato, titulares dos direitos expressos na ConstituioFederal de 1988.

    Petcheski e Judd (1998)3 destacam que para um indivduo sertitular de direitos necessrio um conjunto de condies que impli-cam tanto a existncia de uma declarao formal desses direitos, emleis nacionais e internacionais; a correspondncia entre esses direi-tos e os costumes, valores e comportamentos sociais; a implementa-o efetiva desses direitos; como a introjeo destes, ou seja, a cons-cincia de que os indivduos so portadores de direitos fundamen-tais bsicos por serem seres humanos.

    No Brasil, as declaraes formais de direitos iguais para ho-mens e mulheres, brancos e negros, esto presentes em leis nacio-nais e internacionais, protegidas pela Constituio Federal de 1988.No entanto, as dificuldades para a concretizao da titularidade le-gal das mulheres, e mais ainda das mulheres negras e indgenas,podem ser observadas nas estatsticas oficiais relativas a acesso aotrabalho, ascenso profissional, renda, sade, escolaridade,aos cargos de poder, dentre outros indicadores. No caso das mulhe-res indgenas, ainda estamos diante de uma invisibilidade absurda,face ausncia de dados desagregados por sexo sobre os povosindgenas.

    Constatamos, tambm, como mais um obstculo para o reconhe-cimento da titularidade de direitos, o desconhecimento das leis e a

    3 A respeito da noo de titularidade, ver Petchesky, Rosalind e Judd, Karen (org)Negotiating Reproductive Rights. International Reproductive Rights Research ActionGroup IRRRAG, N.Y., Zed Books, 1998.

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    presena de padres culturais calcados em relaes hierrquicas,elitistas e fundadas nas prticas paternalistas do favor, ainda topresentes na sociedade brasileira. A vivncia da titularidade de di-reitos no Brasil dificultada para homens e mulheres. No entanto,pelo fato das mulheres terem obtido mais tardiamente o status decidads4, de ainda estarem pouco representadas nas instncias depoder no Estado e na sociedade, estas so afetadas de forma maiscontundente, tanto no que diz respeito s discriminaes sociaisquanto ao reconhecimento, incluindo o auto-reconhecimento, de queso titulares de direitos. Essa situao ainda mais grave para asmulheres afro-descendentes e indgenas. Para estas ltimas, soma-das invisibilidade estatstica, destacam-se a indiferena do Estadoe da sociedade para com suas necessidades concretas e especficas,alm das poucas conquistas legislativas. No se pode, contudo, dei-xar de reconhecer que a legislao anti-racista fruto de uma longae contnua luta do Movimento Negro e das mulheres negras organi-zadas que tm buscado interferir no ordenamento jurdico interna-cional e nacional para introduzir a perspectiva tnico/racial no pa-radigma tico e moral dos Direitos Humanos.

    A partir desses princpios, pretendemos dar visibilidade s le-gislaes nacional e internacional contra o racismo, bem como com-preender o alcance dessa legislao atravs dos dados estatsticos,sobre as condies sociais, econmicas e culturais que revelam asbarreiras existentes na sociedade brasileira contra o real exerccioda titularidade dos direitos formalmente garantidos pela lei.

    Chamamos ateno, portanto, para o j to discutido e histricodescompasso existente entre a lei e a realidade social no Brasil,procurando compreender como esse descompasso tem, de um lado,justificado a descrena no Direito como instrumento de mudanasocial e, de outro, atuado para banalizar e naturalizar as desigual-dades no tratamento dado aos indivduos, em particular as desi-gualdades provocadas por motivo de cor e de sexo. Assim, muitasvezes, deparamo-nos com a chamada lei que no pega e com a

    4 O voto feminino s foi conseguido em 1932, e era facultativo, s passando a ser dever dehomens mulheres com a Constituio de 1934. A plena capacidade jurdica da mulhercasada s foi reconhecida em 1962. Sobre a luta das mulheres brasileiras pelo sufrgiouniversal ver Alves, Branca Moreira (1980).

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    utilizao da expresso sabe com que est falando? que marcamde forma contundente os limites da cidadania em nosso pas. Con-cordamos, assim, com Hdio Silva Jr. quando enfatiza que a ins-crio do princpio da no-discriminao e as reiteradas declara-es de igualdade tm sido insuficientes para estancar a reprodu-o de prticas discriminatrias na sociedade brasileira5.

    Por outro lado, e mesmo considerando, como j apontado, que afora da lei, por si s, no pode de fato transformar a realidade socialde forma imediata, no devemos aceitar de forma passiva a ineficciadas normas jurdicas, sobretudo se tivermos como marco o paradig-ma dos Direitos Humanos. Entendemos, assim, que as leis tm umpapel importante a cumprir, concreto e pedaggico, na luta por umasociedade mais justa, verdadeiramente igualitria e democrtica.

    Acreditamos que um dos elementos bsicos para ampliar a efi-ccia das normas anti-racistas e anti-discriminatrias a sua difu-so e compreenso plena por toda a sociedade. Atuar nesse sentido uma das intenes desse texto, para o que faz-se necessrio efundamental dar visibilidade aos estudos qualitativos e quantitati-vos que flagram as discriminaes que persistem, apesar das leisdemocrticas e universalizantes hoje encontradas no Brasil.

    No que se refere s mulheres em geral, deve-se destacar que,por vezes, as normas jurdicas so to genricas e abstratas que noapenas desconhecem a diversidade tnico/racial, como sequer in-cluem a palavra mulher, utilizando sempre o plural genrico mas-culino como, por exemplo, as expresses todos, cidados, indi-vduos etc. Nesse sentido, faz-se necessria uma leitura crtica dasnormas anti-discriminatrias, analisadas a partir de uma perspecti-va de gnero.

    A evoluo do repdio ao racismo eao sexismo na legislao internacional

    A Conveno Internacional contra Todas as Formas de DiscriminaoRacial, de 1965, e a Conveno para a Eliminao de Todas as Formasde Discriminao contra a Mulher, de 1979, so os instrumentos le-gais internacionais bsicos para a luta contra o racismo e o sexismo.

    5 Ver a respeito Silva Jr. (1998).

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    Para as mulheres, foi de fundamental importncia a realizao,pela Organizao das Naes Unidas (ONU), da 1 ConfernciaMundial da Mulher em 1975. Essa Conferncia foi contemporneaao desenvolvimento de estudos, realizados, especialmente por fe-ministas, para dar visibilidade situao das mulheres e analisaras causas da discriminao contra as mulheres nas sociedadesem geral. Esses estudos constituram-se em forte instrumento dedenncia das discriminaes sofridas pelas mulheres e em meca-nismo de presso por polticas sociais que atuassem concretamentena superao dessas discriminaes. A Conveno para a Elimi-nao de Todas as Formas de Discriminao contra a Mulher,aprovada pela Assemblia Geral das Naes Unidas em 1979, sin-tetiza essa preocupao, embora ao dedicar-se s mulheres em geral,no tenha se preocupado especificamente com as mulheres negrase indgenas.

    O aprofundamento desses estudos apontou para a necessidadede dar conta das significativas diferenas entre as mulheres, emespecial quando introduzidos os indicadores por cor e etnia. A an-lise das relaes de gnero/raa e etnia passou a ser instrumentalefetivo utilizado pelo movimento de mulheres para rejeitar a idiade uma naturalizao da subordinao das mulheres, dos negros edos indgenas, e para fundamentar a luta pela eqidade de sexo,raa/etnia6.

    Podemos afirmar que, no final do sculo XX, o ordenamentojurdico de grande parte dos pases democrticos foi profundamentealterado pelo paradigma tico dos direitos humanos, exposto eminmeros instrumentos internacionais. As perspectivas de gnero/raa/etnia influenciaram tais instrumentos internacionais de prote-o aos direitos humanos, que passaram a ser valiosos aliados naluta contra todas as formas de discriminao.

    Dentre os instrumentais internacionais de proteo aos direitoshumanos, a Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948,foi um marco histrico ao declarar que todos tm direito a um con-junto de benefcios econmicos, polticos, sociais, culturais e am-

    6 Ver a esse respeito Ribeiro, Matilde (organizadora) Dossi Mulheres Negras (1995) eFranchetto, Bruna (organizadora) Dossi Mulheres Indgenas (2000).

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    bientais. Este documento explicitou ainda o repdio a qualquer for-ma de discriminao por motivo de raa, sexo, religio, cultura eoutros atributos. No entanto, a percepo sobre a mulher enquantosujeito de direitos ficou por um longo tempo esquecida.

    Na dcada de 1960, um conjunto de Convenes Internacio-nais, no mbito das Naes Unidas, possibilitou a substituio daexpresso genrica todos pela utilizao das categorias homense mulheres. Dentre esses Instrumentos podemos citar o Pacto In-ternacional de Direitos Civis e Polticos (1966, ratificado pelo Brasilem 1992), o Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais eCulturais (1966, ratificado pelo Brasil em 1992), a Conveno Ame-ricana sobre Direitos Humanos Pacto de So Jos da Costa Rica(1969, ratificada pelo Brasil em 1992).

    Em dezembro de 1965, atravs da Resoluo n 2.106-A, a Orga-nizao das Naes Unidas elaborou a Conveno Internacional con-tra Todas as Formas de Discriminao Racial, ratificada integral-mente pelo Brasil, em 27 de maro de 19687. Deve-se lembrar que,em 1963, a ONU j havia elaborado uma Declarao sobre a Elimi-nao de todas as Formas de Discriminao Racial, que afirmavaa necessidade de eliminar rapidamente a discriminao racialno mundo, em todas as suas formas e manifestaes, e de assegu-rar a compreenso e o respeito dignidade da pessoa humana.

    A Conveno Internacional significou o compromisso da Orga-nizao das Naes Unidas de lutar contra o colonialismo e as for-mas de opresso presentes nesse sistema de dominao econmica,social, poltica e cultural. Essa uma Conveno na qual so repu-diadas as doutrinas racistas, consideradas condenveis, falsas, in-justas e perigosas. No podemos esquecer de que a dcada de 1960foi marcada pela luta contra o colonialismo na frica e na sia e,tambm, pela luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Uni-dos. Sansone (1998) chama ateno para o fato de que, at meadosda dcada de 1950, diversos estados norte-americanos possuam le-gislao segregacionista por cor e etnia. Como destaca Heringer(1998), a partir de 1964, passaram a vigir, nos Estados Unidos, leis

    7 No Brasil, esse instrumento internacional tem fora de lei interna, conforme o disposto no 2 do artigo 5 da Constituio Brasileira.

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    anti-discriminatrias e foram criadas instituies responsveis pelaimplementao dessa nova legislao, como, por exemplo, a Comis-so pela Igualdade de Oportunidade no Emprego (Equal EmploymentOpportunity Commission EEOC) e o Escritrio de Fiscalizao dosContratos com o Governo Federal (Office of Federal Contract CompliancePrograms OFCCP). Portanto, a Conveno Internacional contra To-das as Formas de Discriminao Racial inseriu-se no conjunto de mani-festaes que marcaram a grande luta contra o colonialismo e pelosdireitos civis do afro-descendentes americanos.

    A Conveno afirma a que a existncia de barreiras raciaisrepugna os ideais de qualquer sociedade humana. Por isso mes-mo, a ONU em 1965 manifestou-se alarmada com a discriminaoracial evidenciada em vrias partes do mundo. Atravs dessa C