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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    Gabriel Fleck de Abreu

    FOUCAULT DO CABAR AO LAR: UM ESTUDO SOBRE A APROPRIAO DE

    MICHEL FOUCAULT POR MARGARETH RAGO EM DO CABAR AO LARDE

    1985

    Porto Alegre

    2012

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    Gabriel Fleck de Abreu

    FOUCAULT DO CABAR AO LAR: UM ESTUDO SOBRE A APROPRIAO DE

    MICHEL FOUCAULT POR MARGARETH RAGO EM DO CABAR AO LARDE

    1985

    Trabalho de Concluso de Curso apresentadocomo requisito parcial para a obteno dottulo de Licenciado em Histria, pelo cursode Histria da Universidade Federal do RioGrande do Sul (UFRGS).

    Orientador: Prof. Dr. Fernando FelizardoNicolazzi

    Porto Alegre2012

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    Gabriel Fleck de Abreu

    FOUCAULT DO CABAR AO LAR: UM ESTUDO SOBRE A APROPRIAO DE

    MICHEL FOUCAULT POR MARGARETH RAGO EM DO CABAR AO LARDE

    1985

    Trabalho de Concluso de Curso apresentadocomo requisito parcial para a obteno dottulo de Licenciado em Histria, pelo curso

    de Histria da Universidade Federal do RioGrande do Sul (UFRGS).

    Orientador: Prof. Dr. Fernando FelizardoNicolazzi

    Aprovado em:

    Conceito:

    BANCA EXAMINADORA

    Fernando Felizardo Nicolazzi(Orientador)UFRGS

    Benito Bisso SchmitzUFRGS

    Temstocles Amrico Corra CezarUFRGS

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    AGRADECIMENTOS

    Gostaria de agradecer primeiramente ao suporte e pacincia de meus pais e da minha

    irm nestes cinco anos de graduao. Tambm ao resto da minha famlia e amigos pelo apoio

    e compreenso.

    Ao meu orientador Fernando Nicolazzi pelos timos apontamentos que ajudaram a

    definir os contornos e a escrita deste trabalho desde seu projeto at sua finalizao.

    professora Helen Osrio pela orientao na minha primeira bolsa de IniciaoCientfica, da qual carrego comigo os ensinamentos decorridos das minhas primeiras

    experincias em pesquisa.

    Ao professor Benito Schmidt pela orientao e pelas excelentes discusses nas

    reunies da atual bolsa de Iniciao Cientfica, e tambm por ter aceitado participar da banca

    deste trabalho. A isso, tambm agradeo ao professor Temstocles Cezar.

    Aos amigos da faculdade, que tornaram esta formao to prazerosa e dos quais esperoque a amizade continue ainda que sigamos caminhos diferentes. Menciono alguns

    especialmente: ao Moiss, pela trilha sonora da feitura deste TCC; a Alexandra, Said,

    Brbara, Fernanda, Simone, Camila, Larissa e demais colegas pelas distraes, sempre

    necessrias nos momentos estressantes; ao Diego e Carol pelas conversas nas reunies, pr-

    reunies e ps-reunies.

    Em especial Jlia e minha prima Lcia pela amizade e presena constante nos

    melhores e nos piores momentos.

    Aos que no mencionei, mas que no esqueci, e que tambm ajudaram em minha

    formao.

    Por fim ao meu av que, enquanto esteve comigo, foi o grande responsvel por

    instigar minha paixo pela histria.

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    RESUMO

    Este trabalho analisa a apropriao que Margareth Rago faz de Michel Foucault em

    1985, no seu livro Do cabar ao lar: a utopia da cidade disciplinar - Brasil 1890-1930,

    condensao de sua dissertao de mestrado defendida na UNICAMP em 1984. Procuro

    analisar esta apropriao considerando-a a partir da UNICAMP em um contexto de

    consolidao da universidade e dos cursos de ps-graduao em Histria, de efervescncia

    poltica, social e cultural e de busca por renovaes historiogrficas. Assim, a leitura que

    Margareth Rago faz de Foucault e sua apropriao concomitante com o uso de Thompsonoque em outro momento criticado pela prpria autoraso entendidos dentro de um contexto

    histrico onde as fronteiras epistemolgicas ainda no se encontravam to definidas como

    viriam a ser posteriormente. Enfatiza-se o lugar social de produo do livro, o estilo de escrita

    de Rago em dilogo com o de Foucault, a abordagem paradoxal que a autora faz do

    anarquismo e o papel do sujeito em Foucault, emDo cabar ao lar, e na autocrtica de Rago.

    PALAVRAS-CHAVE: Historiografia brasileiraAnos 80Margareth RagoMichel

    Foucaultapropriao.

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    SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................................................... 7

    1.ODESCORTINARDENOVOSPOSSVEIS:OCONTEXTODEESCRITADEDO

    CABARAOLAR................................................................................................................................. 14

    1.1OLIVRO........................................................................................................................... 14

    1.2OLUGAR.......................................................................................................................... 20

    1.3ACRISE............................................................................................................................ 24

    1.4FOUCAULT....................................................................................................................... 30

    2. MARGARETH LEITORA DE FOUCAULT:AAPROPRIAO FOUCAULTIANA

    NANARRATIVADEDOCABARAOLAR............................................................................... 39

    2.1OESTILO......................................................................................................................... 39

    2.2OANARQUISMO............................................................................................................. 54

    2.3OSUJEITO....................................................................................................................... 62

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................................... 67

    REFERNCIASBIBLIOGRFICAS ................................................................................................ 70

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    INTRODUO

    Na dcada de 1970 chegam ao Brasil os livros Vigiar e punirde Michel Foucault eA

    formao da classe operria inglesade E. P. Thompson1: ambos os trabalhos, cada um sua

    maneira, trouxeram consigo novos olhares que modificaram formas de se escrever a histria.

    Foucault propunha uma escrita da histria que seria efetiva na medida em que ela

    reintroduzir o descontnuo em nosso prprio ser.2Ele recusava a verdadeessa espcie de

    erro que tm a seu favor o fato de no poder ser refutada, sem dvida porque o longo

    cozimento da histria a tornou inaltervel ,3a metafsica, as solenidades da origem, as

    essncias. Foucault repensava o saber e o poder na histria, ambos interligados; o poder como

    relao e no propriedade; disseminado pelo todo social, em seu aspecto positivo: no apenas

    opressor e restritivo, mas produtor de verdades e de sujeitos. A arqueologia dos saberes e a

    genealogia do poder que Foucault traz em seus livros abriram ainda mais o leque de

    possibilidades para a investigao do historiador, podendo ento atentar para a histria da

    loucura, da priso, da medicina, da sexualidade; de campos de saber e poder que disciplinam,

    domesticam, sequestram, mas tambm produzem sujeitos, so pontos de partida para modos

    de subjetivao.

    Thompson, comA formao da classe operria inglesarevisa o conceito de classe tal

    como havia sido trabalhado por certo marxismo at ento. Estudando o fazer-se da classe,

    ele aponta esse processo como fruto tanto da ao humana quanto dos condicionamentos,

    entendendo a classe no como uma categoria nem como uma estrutura, mas como um

    fenmeno histrico encarnado em pessoas e contextos reais.4Para ele,

    A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experinciascomuns (partilhadas ou herdadas), sentem e articulam a identidade de seusinteresses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (egeralmente se opem) dos seus. A experincia de classe determinada, emgrande medida, pelas relaes de produo em que os homens nasceram ouentraram involuntariamente. A conscincia de classe a forma como essas

    1Vigiar e punir(1975) traduzido pela editora Vozes em 1977. JA formao da classe operria inglesa(1963)s traduzido para o portugus pela editora Paz e Terra em 1987; porm, me refiro aqui sua traduo para oespanhol que j circulava entre historiadores brasileiros: La Formacin Historica de La Clase Obrera,Barcelona, Editorial Laia 1977.2FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder, organizao e traduo de Roberto Machado, 1979. 26 ed., Riode Janeiro: Graal, 2008, p. 27.3Ibid., p. 19.4THOMPSON,A formao da classe operria inglesa.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 9-10.

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    experincias so tratadas em termos culturais: encarnadas em tradies,sistemas de valores, idias [sic] e formas institucionais.5

    Com esta redefinio do conceito de classe alicerado nas noes de experincia de classe e

    conscincia de classe, Thompson incorpora anlise histrica o protagonismo da agnciahumana, encarnando os contextos e condicionamentos em pessoas reais com capacidade de

    resistir s determinaes. Suas contribuies vm no sentido de dar voz aos vencidos,

    oprimidos, que eram antes vistos apenas como uma manifestao ou resultado de

    condicionamentos gerais.

    Em 1985, Margareth Rago publica uma verso de seu mestrado, renomeada de Do

    cabar ao lar (1985),6 onde, inspirada nas inovaes terico-metodolgicas trazidas por

    Foucault e Thompson, ela trabalha de um lado as formas de disciplinarizao da vida social

    dentro e fora das fbricas e, de outro, procura perceber, em suas palavras, como os

    dominados resistiram ao encontrar no anarquismo a linguagem poltica capaz de lhe permitir

    formular um projeto radical de transformao social.7 Oito anos depois, em artigo para a

    revistaResgate8a prpria autora critica a apropriao conjunta de Foucault e Thompson em

    trabalhos da virada da dcada de 1970 para 1980, por serem trabalhos que combinam anlises

    genealgicas dos mecanismos de sequestro e poder na sociedade com concepes de

    marxistas britnicos e que procuram ao mesmo tempo valorizar a resistncia e acombatividade histrica das minorias oprimidas. Em outro artigo na primeira edio da revista

    Anos 90, ela refora a autocrtica:

    Ao mesmo tempo que me deslumbrava com Foucault, eu me fascinava porThompson e ficava num dilema muito grande por no saber qual dos dois eugostava mais. (...) queria mostrar que o anarquismo era uma fora, que oslibertrios sabiam se formular a despeito dos intelectuais orgnicos. Mas issoera muito contraditrio porque, ao mesmo tempo em que trabalhava com atendncia de dar voz aos vencidos e retirar os pobres do silncio,mostrando sua racionalidade, ao contrrio do que o discurso liberal afirmava,

    utilizava Foucault, que dissolvia o sujeito e o mostrava como efeito das redesde relaes e da formao de saberes.9

    Em seus trabalhos futuros Margareth Rago se distancia da perspectiva thompsoniana e

    se vincula cada vez mais com noes foucaultianas, sobretudo quanto aos modos de

    5Ibid.p. 10.6RAGO, Margareth.Do cabar ao lar: a utopia da cidade disciplinar - Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1985. O ttulo original da tese Sem f, sem lei, sem rei. Liberalismo e experincia anarquista narepublica, defendida em 1984.7RAGO, Margareth. A nova historiografia brasileira. In:Anos 90, n. 11, jul. 1999, pp. 80-81.8RAGO, Margareth. As marcas da pantera: Foucault para historiadores, In: Resgate, Campinas, n 5, Centro deMemria da UNICAMP, 1993.9RAGO, Margareth. As marcas da pantera: Michel Foucault na historiografia brasileira contempornea. In: Anos90, n. 1, mai. 1993, pp. 133-134.

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    subjetivao, desenvolvidos nos ltimos volumes de Histria da sexualidade,10que poderiam

    ser encarados como uma volta ao sujeito: o estudo dos modos de subjetivao atravs dos

    quais os sujeitos se constituem enquanto sujeitos moraisnoo cara aos estudos feministas

    de Rago, dando voz a um sujeito que segundo ela, era antes dissolvido na perspectiva

    foucaultiana.

    Este trabalho se prope a analisar como se d a apropriao 11 do pensamento de

    Michel Foucault em Do cabar ao lar ou seja, de que forma Foucault deslocado,

    combinado, rearranjado e interpretado a fim de compor o argumento de Rago.

    Esta monografia motivada pelo questionamento de como a historiografia brasileira

    se apropriou das ideias de Foucault: Como ela realocou seus conceitos em outros objetos?Como os articulou com outras teorias e campos epistemolgicos na produo do

    conhecimento em histria? Como os interpretou, utilizou e transformou? Por trs desta

    preocupao no se procura defender uma leitura correta de Foucault, mas, ao contrrio,

    parte-se do princpio de que existe uma multiplicidade de leituras possveis de um texto.12

    Assim, procuro analisar a apropriao especfica que Rago fez de Foucault enquanto um

    acontecimento histrico: uma apropriao datada em um determinado momento, relacionada

    com um contexto histrico especfico. Contexto aqui no pode, no entanto, ser pensado comodeterminao apenas poltica, econmica ou social, mas sim levar em conta estes elementos

    em conjunto com o prprio campocientfico historiogrfico,13que possui sua lgica interna.

    Ento no se trata de buscar uma origem que explica a apropriao de Foucault, mas sim

    elencar elementos que definiram de uma maneira ou de outra esta apropriao atravs da

    construo de um campodepossibilidades para Rago. Assim, contexto aqui entendido como

    um repertrio de escolhas e recursos do qual a autora dispunha ao procurar referendar e

    legitimar sua tese.

    10FOUCAULT, Michel.Histria da Sexualidade. 3 vols. Rio de Janeiro: Graal, 1988.11O conceito ser explicado a seguir.12Isto ganha ainda mais relevo ao se tratar de Foucault, uma vez que seu pensamento possui diversos momentose facetas, algumas contraditrias. Retomando o que diz Leandro Mendanha e Silva, o pensamento de Fou cault

    pode ser entendido como um enfrentamento de problemas. Quando estes problemas se deslocam, essespensamentos tambm se deslocam, quando esses pensamentos se veem em impasses, surgem novos problemas enovas abordagens.SILVA, Leandro Mendanha e.Nas transversais do tempo: uma interveno de Foucault na

    histria e sua apropriao pela historiografia . 2009. 221 f. Dissertao (Mestrado em Histria)-Universidade deBraslia, Braslia, 2009, p. 11.13BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da cincia: por uma sociologia clnica do campo cientfico. So Paulo,Editora UNESP: 2004,

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    Do cabar ao lar data de 1985, um momento particular da histria e historiografia

    brasileiras, marcado pela redemocratizao, redescoberta do anarquismo e o surgimento de

    trabalhos baseados nas contribuies do marxismo britnico e da Nova Histria. Assim,

    enquanto uma apropriao especfica e particular, datada deste momento e marcada por certas

    condies e processos que procuro entender esta leitura. Nesse sentido, Margareth Rago, para

    alm de usar Foucault como referencial terico em seus estudos, tambm uma comentadora

    de Foucault, permitindo uma comparao enriquecedora para a anlise. Alem disso, trata-se

    tambm de um trabalho onde a prpria autora, em outro momento, se autocrtica,

    renegociando assim sua prpria identidade.

    Apropriao ento um conceito chave na pesquisa, e o utilizo aqui segundo a

    definio de Roger Chartier, que, em beira da falsia,o pensadentro do projeto de uma

    histria social dos usos e das interpretaes, relacionados s suas determinaes fundamentais

    e inscritos nas prticas especficas que os produzem.14Para ele, apropriao o resultado de

    operaes de construo de sentidos, operaes estas sustentadas por condies e processos

    que devem ser construdos na descontinuidade das trajetrias histricas.15 Assim, este

    trabalho se pretende um estudo atento s condies e processos que sustentam essas

    operaes. Nesse sentido, recusa-se a ideia de influncia, termo que, como lembra Michael

    Baxandall, [...] decide indevidamente sobre o sentido da relao, isto , quem age e quem

    sofre a ao de influncia;16 pois, de fato, ao falarmos em impacto de Foucault na

    historiografia brasileira, ou em influencia de Foucault em Do cabar ao lar, o

    protagonismo da ao invertido, uma vez que foi Margareth Rago quem buscou em Foucault

    as referncias que pudessem lhe ajudar a problematizar, questionar, desenvolver e

    principalmente legitimarsuas prprias ideias. Complementa Foucault:

    H [...] um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um jogo denoes que diversificam [...] o tema da continuidade [...] [como a] noo deinfluncia, que fornece um suporte demasiado mgico para poder ser bemanalisado aos fatos de transmisso e de comunicao; que atribui a um

    processo de andamento causal (mas sem delimitao rigorosa nem definioterica) os fenmenos de semelhana ou de repetio; que liga, distncia eatravs do tempo como por intermdio de um meio de propagao unidades definidas como indivduos, obras, noes ou teorias.17

    Assim, ao invs de influncia, utilizo o conceito de apropriao.

    14 CHARTIER, Roger. beira da falsia: a histria entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed.Universidade/UFRGS, 2002, p. 68.15Ibid.16BAXANDALL, Michael. Padres de inteno: a explicao histrica dos quadros. So Paulo: Companhiadas Letras, 2006, p. 101-102.17FOUCAULT, Michel.A arqueologia do saber, 3 ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1987, p. 23-24.

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    Dentre as condies e processos que permeiam e interferem nesta apropriao, procuro

    no enfatizar demasiadamente um contexto histrico relacionado com a poltica ou a

    economia de modo determinista. No que estes elementos no sejam levados em conta,

    porm, penso com Bourdieu que

    [...] para compreender uma produo cultural (literatura, cincia etc.) nobasta referir-se ao contedo textual dessa produo, tampouco referir-se aocontexto social contentando-se em estabelecer uma relao direta entre otexto e o contexto. [...] Minha hiptese consiste em supor que, entre essesdois plos, muito distanciados, entre os quais se supe, um poucoimprudentemente, que a ligao possa se fazer, existe um universointermedirio que chamo o campo literrio, artstico, jurdico ou cientfico,isto , o universo no qual esto inseridos os agentes e as instituies que

    produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a cincia. Esseuniverso um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais

    mais ou menos especficas.18

    Assim, procuro pensar junto com o contexto histrico dos anos 80 a dinmica do

    campo historiogrfico, que possui sua prpria lgica, um microcosmo relativamente

    autnomo, ou, mais precisamente, lutando por uma consolidao terica do campo.19

    Pensando assim, importante considerar o papel do lugar social de produoda onde parte o

    estudo histrico, que para Michel de Certeau, indissocivel da obra:

    A instituio no d apenas uma estabilidade social a uma "doutrina". Ela a

    torna possvel e, sub-repticiamente, a determina. No que uma seja a causa daoutra. No seria suficiente contentar-se com a inverso dos termos (a infra-estrutura [sic] tornando-se a"causa" das idias [sic]), supondo entre elas otipo de relao que estabeleceu o pensamento liberal quando encarregou asdoutrinas de conduzirem a histria pela mo. , antes, necessrio recusar oisolamento destes termos e, portanto, a possibilidade de transformar umacorrelao numa relao de causa e efeito.20

    Isso se torna central ao pensar a vinculao de Margareth Rago com a UNICAMP, que nas

    dcadas de 1970 e 1980 teve grande importncia na divulgao tanto de Foucault como de

    Thompson.21

    Para completar, acrescento um elemento para alm do campo e do lugar que permite

    pensar esta apropriao: a ideia de estilode Peter Gay.22Este defende a implicao mtua

    18BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da cincia: por uma sociologia clnica do campo cientfico. So Paulo,Editora UNESP: 2004, p. 19-20, grifo meu.19A ideia de campo de Bourdieu vem aqui mais no sentido de recusar uma relao mecanicista e direta demaisentre os movimentos da historiografia e a histria poltica ou social, como alguns trabalhos que veremosabordam. Porm, o grau de autonomia deste campo no perodo algo muito discutvel e carece de pesquisa.20CERTEAU, Michel de. A escrita da histria. Traduo de Maria de Lourdes Menezes; reviso tcnica [de]

    Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1982, p. 69.21A UNICAMP ser trabalhada a partir do item O lugar, p. 20. Estou considerando o lugar social de produovinculando principalmente UNICAMP, porm reconheo que para Certeau uma noo mais ampla que nonecessariamente se restringe apenas instituio.

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    entreforma e contedo, dizendo que o estilo interfere no que dito assim como o que dito

    interfere no estilo. Assim, tem-se uma noo flexvel de estilo, que parte da mxima de

    Buffon o estilo o prprio homem e a ultrapassa, considerando o estilo como respostas

    individuais em dilogo com outros estilos e contextos: um estilo fala do homem, mas no de

    todo o homem; ele fala do homem, mas no apenas do homem. Fornece indcios para pensar o

    homem enquanto historiador em atividade, considerando-se os estilos com os quais ele

    dialoga, o meio em que se insere, e suas respostas individuais em revolta contra seus

    passados, ambientes e si mesmo. Estilo assim pensado por Peter Gay como um objeto de

    estudo fecundo e nesse sentido permite uma leitura abrangente da apropriao de Foucault por

    Rago.

    Eis ento a proposta: analisar dentro da narrativa de Do cabar ao lar a apropriao

    que Margareth Rago faz do pensamento de Foucault para compor e legitimar seus

    argumentos, vinculando-a com o contexto histrico e historiogrfico do perodo e pensando

    esta apropriao enquanto uma interpretao determinada historicamente e sofrendo

    influncias tambm sociais, tanto do lugar de produo, de processos e condies do perodo

    quanto da dinmica interna do prprio campo intelectual de produo do conhecimento

    histrico.

    Para estudar a apropriao de Foucault por Margareth Rago em 1985, vinculo Do

    cabar ao lar com os livros de Foucault que foram citados no trabalho, a saber: Vigiar e

    punir,Microfsica do PodereHistria da sexualidade I: a vontade de saber. Contudo, dentro

    destes trs livros, Vigiar e punirter papel de destaque, uma vez que ele priorizado em Do

    cabar ao lar. Em reforo a isto, a prpria autora na introduo do livro aponta Vigiar e punir

    como a porta de entrada para a anlise do poder em sua positividade,23 e ela mesma,

    posteriormente, comentando sobre a recepo de Foucault no Brasil, aponta Vigiar e punircomo seu principal estudo histrico propriamente dito.24

    O trabalho se divide em dois captulos. O primeiro, O descortinar de novos

    possveis: O contexto de escrita de Do cabar ao lar, trata justamente do que diz o ttulo:

    uma contextualizao da obra. dividido em 4 itens: O livro, onde Do cabar ao lar

    apresentado: seu prefcio, sua organizao e seus argumentos; O lugar, que foca a UNICAMP

    22GAY, Peter. O estilo na histria: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. So Paulo: Companhia das Letras,1990.23Ibid., p. 14.24RAGO, Margareth. As marcas da pantera: Foucault para historiadores, op. cit., p. 23.

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    e sua insero no contexto acadmico da Histria na dcada de 80 como lugar social de

    produo; A crise, que apresenta a discusso terica e historiogrfica em voga naquele

    momento no Brasil; eFoucault, que volta a anlise para a UNICAMP, considerando-a dentro

    do debate do campo historiogrfico e pensando como Foucault se insere no Brasil e na

    UNICAMP neste contexto.

    O segundo captulo, Margareth leitora de Foucault: A apropriao foucaultiana na

    narrativa de Do cabar ao lar, discorre sobre a apropriao de Foucault dentro da narrativa de

    Rago. dividido em 3 itens: O estilo, que atravs das reflexes de Hayden White e Peter Gay

    pensa na construo da narrativa histria deDo cabar ao larem dilogo com a de Vigiar e

    punir, com foco principalmente nas suas introdues, onde so apresentadas suas propostas:

    procura-se, assim, analisar recursos retricos e estilsticos e formas de compor e legitimar

    argumentos, a fim de buscar elementos em comum e diferenas em ambos os autores; O

    anarquismo, que pensa a temtica do anarquismo como um ponto de aproximao paradoxal

    entre Do cabar ao lar e o pensamento de Foucault: por um lado a busca do anarquismo

    como objeto de anlise e de Foucault como referencial terico tem um mesmo cerne, uma

    mesma preocupao, mas por outro lado, a forma como o anarquismo trabalhado pela autora

    a prpria causa da sua posterior autocrtica; por fim O sujeito, aspecto central na autocrtica

    da autora que aqui analisado e relativizado, a fim de entender como a questo do sujeito

    aparece em cada autor e como se d o dilogo entre Foucault e Rago a partir desta temtica.

    Talvez as diferentes abordagens em cada captulo paream um pouco desconexas entre

    si, o que procurarei ligar nas consideraes finais; ademais, quero por fim lembrar aqui o

    carter de um exerccio de pesquisa que possui um TCC; por isso, no tenho a pretenso de

    elucidar de uma vez por todas a dinmica historiogrfica nos anos 80, nem a forma como se

    apropriam determinados autores dentro do conhecimento histrico. Tambm no pretendoexplicar todos os elementos que influenciaram a busca por Foucault de Margareth Rago, uma

    vez que outras formas de pesquisa, como entrevistas orais ou botar em dilogo os diferentes

    momentos da obra da autora trariam respostas diferentes. E principalmente, no pretendo

    apontar a leitura correta e definitiva de Foucault ou recusar erros cometidos em outros

    momentos. Ficarei feliz se este trabalho conseguir apontar alguns elementos que possam

    indicar a forma como Foucault foi apropriado neste caso especfico, e que, com isso, mais

    suscite que responda questes sobre este momento da historiografia brasileira ainda to

    negligenciado.

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    1. O DESCORTINAR DE NOVOS POSSVEIS: O CONTEXTO DE ESCRITA DE

    DO CABAR AO LAR

    Os anos 1980 foram um perodo de grande efervescncia

    poltica. Os movimentos sociais ressurgiam com fora.

    Voc tinha movimentos de bairro, as feministas, os

    homossexuais, os partidos polticos de esquerda e o novo

    sindicalismo. Ao mesmo tempo, crescia tambm a ideia de

    que os sujeitos sociais eram mais variados do que aqueles

    movimentos. Os historiadores comearam a descobrir

    novas fontes que permitiam examinar o cotidiano dos

    trabalhadores de maneira diferente.

    Sidney Chalhoub25

    1980 quando Margareth Rago inicia seu mestrado em Histria na UNICAMP. Em

    1984 ela conclui a dissertao com o ttulo de Sem F, Sem Lei, Sem Rei Liberalismo e

    Experincia Anarquista da Repblica, e em 1985, no mesmo ano em que entra no doutorado

    na mesma universidade, ela tambm a publica pela editora Paz e Terra, mudando seu ttulo

    para Do cabar ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil 1890-1930.26 Meia dcada

    medeia entre o ingresso no mestrado e a publicao da dissertao, inserindo este trabalho no

    corao dos anos 80. com esta insero em vista que discorre este captulo, procurandocontextualizarDCAL, pensando no campo historiogrfico e no lugar social de produode

    que fala Margareth Rago.27

    OLIVRO

    Ao abrir DCAL, Margareth Rago explica em nota que este trabalho condensa a

    dissertao de mestrado defendida sob o ttulo de Sem F, Sem Lei, Sem ReiLiberalismo e

    Experincia Anarquista da Repblica, sob orientao do dr. Edgar S. de Decca

    (Departamento de Histria do IFCH da UNICAMP, novembro de 1984).28Uma vez situado

    o leitor sobre a origem que marca o lugar de onde se fala e que confere legitimidade ao

    trabalho, passa-se estrutura dele atravs do ndice, e ao prefcio, escrito pelo orientador do

    25 CHALHOUB, Sidney. Entrevista. In: Revista de Histria, 02/09/2008. Disponvel em:http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/sidney-chalhoub.Acessado em: 04/12/2012.

    26 RAGO, Margareth. Do cabar ao lar. op. cit. Deste momento em diante, Do cabar ao lar ser referidoatravs da siglaDCAL.27BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da cincia, op. cit.; CERTEAU, Michel de.A escrita da histria, op. cit.28RAGO, Margareth.Do cabar ao lar. op. cit., p. 8.

    http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/sidney-chalhoubhttp://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/sidney-chalhoubhttp://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/sidney-chalhoub
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    trabalho Edgar de Decca, que, se antes legitimava a dissertao em 84 atravs da orientao,

    agora tambm d seu aval presente edio de 85 atravs do prefcio. ndices, dedicatrias,

    prefcios e afins so o que Gerard Genette define como para-textosda obra.29No caso do

    prefcio, ele possui um carter que Fernando Nicolazzi chama de discurso da obra: ele dizo

    texto, com outros termos e de forma diversa, narrando sua construo, definindo seus limites e

    estabelecendo suas condies de possibilidade.30Sobretudo, o prefcio ao mesmo tempo

    posterior e anterior obra: posterior, pois escrito aps ela, geralmente depois de uma

    primeira recepo e depois de indicadas consideraes, crticas ou elogios, comentrios de

    leitores; anterior, pois situado espacialmente antes do trabalho no livro, e assim, dialoga

    com o prprio texto, indicando uma determinada leitura da obra, direcionando o olhar do

    leitor para algum aspecto que se queira enfatizar, comentando as consideraes da primeirarecepo, explicandoa obra.

    O ttulo do prefcio APRESENTAO, porm Decca o chama de prefcio logo na

    primeira frase do texto. Para dizero livro, de dentro e de fora, ele se utiliza da ideia de um

    duplodeDCAL: uma apario espectral, procedida dos espelhos do metal ou da gua, ou

    simplesmente da memria. O duplo de DCALsegundo Decca fora encontrado na biblioteca

    da UNICAMP: tratava-se daRevista Movimento Operrio e Socialistade janeiromaro de

    1980, cujo ttulo era Cultura Operria e Disciplina Industrial. Segundo ele, este ttulo definia

    o tema central de DCAL, e Decca via sua tarefa como prefaciador a de conseguir que os

    duplos sejam bastante diferentes para serem dois e bastante parecidos para serem um. 31

    Segundo ele ento, a revista era fruto de um colquio italiano que, ao juntar tendncias da

    historiografia inglesa, francesa, americana e italiana, sobretudo a partir das consideraes

    sobre a cultura operria por Thompson e a disciplina industrial por Foucault, desfaria as

    linhagens historiogrficas nacionais.32A riqueza de tal abordagem enfatizada por Decca

    ao lembrar que por um lado no havia ainda tradues para o portugus de obras que

    renovaram o estudo das classes trabalhadoras, como The Making of the English Working

    Class (A formao da classe operria inglesa), de Thompson, e que, se havia desde 1977

    traduo para o portugus de Vigiar e Punir, pouco se relacionava esta obra com renovaes

    historiogrficas abertas por Foucault. O duplo eDCALso um s, ento, porque ambos fazem

    este casamento: Thompson e Foucault.

    29 In: NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de histria: a viagem, a memria, o ensaio. Sobre Casagrande &

    senzala e a representao do passado. Tese em histria. Porto Alegre: UFRGS, 2008, p.79.30Ibid., p.80.31RAGO, Margareth.Do cabar ao lar, op. cit., p. II.32Ibid.

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    Sobre este casamento (Foucault e Thompson), Decca aponta:

    As diferenas de abordagens em se tratando de Thomspon e Foucault sosignificativas. Para o primeiro, as classes trabalhadoras so sujeitos de sua

    prpria histria, e por isso, a nfase dada questo da experinciade classe edo fazer (making) de uma cultura de classe. Com os seguidores de Foucaultdesloca-se significativamente o eixo da experincia e/ou da cultura dasclasses trabalhadoras, acentuando-se o significado da ao disciplinar deinmeros agentes sociais na produo do cotidiano e da identidade dostrabalhadores, atravs da criao das instituies basilares da sociedade, taiscomo a famlia nuclear, a escola e a fbrica.33

    Logo de cara Decca direciona, atravs do duplo, certa leitura da obra, que enfatiza o

    uso dos dois tericos e liga cada um a um dos dois temas que ele entende como centrais de

    DCAL: cultura operria (Thompson) e disciplina industrial (Foucault). Fica claro que Decca

    reconhece ambos como abordagens diferentes. No entanto, ele entende essa diferena como

    uma diferena temtica, uma diferena de nfase (para Thompson a experincia de classe;

    para Foucault, a ao disciplinar) e no propriamente epistemolgica. Sendo assim, o

    casamento no seria impossvel, pois bastaria um trabalho enfocar os dois temas que o

    casamento pertinente e inclusive elogivel.

    Mas seDCAL e seu duplo so um s devido combinao Thompson-Foucault, o que

    faz DCAL outro e nico a sua trama: [a] forma pela qual a autora, convivendo com o

    debate instaurado pelo seu duplo, produz uma singularidade inconfundvel pelo arranjo que

    ela d aos elementos de sua histria.34Assim, o casamento realizado por Margareth Rago, na

    viso de Decca, consiste em traar uma trama a partir de duas nfases diversas, combinando

    duas abordagens e vendo dois lados diferentes de um mesmo processo.

    Em que consiste esta trama?

    DCAL dividido em quatro captulos, cada uma enfatizando um momento diferente da

    dominao burguesa, I. Fbrica satnica/Fbrica higinica; II. A colonizao da mulher; III. A

    preservao da infncia; IV. A desodorizao do espao urbano. A originalidade da trama

    que em cada captulo, cada um sobre uma temtica, ela discorre uma descrio do que ela

    chama de uma imposio de identidade pelos dominantes, um imaginrio, com o recurso a

    termos foucaultianos (sobretudo sobre os mecanismos de sequestro e disciplina) para entender

    a construo desse imaginrio como parte de uma empresa de moralizao, por parte da

    burguesia para impor uma nova identidade aos trabalhadores. E em seguida, ela sempre passa

    33Ibid., p. III.34Ibid., p. IV.

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    para uma anlise thompsoniana de formas de resistncia a esse discurso dominante. Por

    fim, ela passa para uma exposio valorizadora das ideias anarquistas enquanto contestadoras

    da ordem e disciplinas burguesas. Assim, a cada captulo temos este movimento: da

    imposio resistncia; da burguesia ao operariado; da disciplina ao anarquismo; este

    deslocamento analtico acontecendo em cada uma das quatro temticas (a fbrica, a mulher, a

    criana e a cidade) como momentos diferentes de um mesmo processo.

    No primeiro captulo a autora discorre sobre uma tentativa de reorganizao do

    trabalho fabril centrada na formao de um novo operariado (pautada em uma nova economia

    dos gestos adaptada dinmica da produo, tecnologias de adestramento e controle no

    interior das fbricas visando fabricao de corpos dceis, uma micropenalidade do tempo

    reprimindo atrasos, ausncias e interrupes na produo, etc.), impondo aos trabalhadores

    uma identidade moralizada construda de cima e do exterior, e procurando fazer com que os

    operrios introjetassem a disciplina panptica do trabalho industrial. Em seguida, a nfase

    passa criatividade operria, que cria inmeras formas de resistncia, surdas, difusas,

    organizadas ou no: de greves e organizao em sindicatos a boicotes, ataques aos

    instrumentos, roubos, freio produo, ou seja, lutas midas procurando a renegociao das

    relaes de produo; e depois destacada a imprensa anarquista, principalmente entre 1918 e

    1922, apontando a importncia da criao de formas alternativas de poder dentro das fbricas

    enquanto estratgias de luta cotidiana.35

    No segundo captulo, o tema a construo de um novo modelo normativo de mulher

    como parte da tentativa de imposio do modelo burgus de famlia. Segundo este modelo,

    [] mulher cabia, agora, atentar para os mnimos detalhes da vida cotidiana de cada um dos

    membros da famlia, vigiar seus horrios, estar a par de todos os pequenos fatos do dia-a-dia,

    prevenir a emergncia de qualquer sinal da doena ou do desvio.

    36

    Ela era representada comoafetiva, mas assexuada; sua insero no mercado de trabalho era limitada e tambm era uma

    forma de controle e vigilncia; mesmo o movimento operrio tambm obstaculizava a

    participao feminina nas entidades de classe, pois mesmo quando cobravam mais

    participao das mulheres nos movimentos reivindicatrios, era sempre enquanto filhas,

    esposas ou mes, subordinadas liderana masculina; no entanto, enfatiza-se a resistncia

    feminina, disseminada e tomando formas que no as convencionais da luta poltica dominada

    pelos homens, como divrcios e pedidos de anulao de casamentos, administrao de

    35Ibid., Captulo I. FBRICA SATNICA/FBRICA HIGINICA, p. 15-60.36Ibid., p. 62.

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    fazendas e pequenos negcios, casas prprias, no-amamentao, aborto, etc. O discurso

    mdico-sanitarista representava a mulher como guardi do lar e a maternidade como sua

    misso sagrada, sua vocao natural, atacando assim o abandono infantil, a prostituio e a

    amamentao mercenria; as polticas mdicas e criminolgicas sobre a prostituio so vistas

    ento como simultaneamente tcnicas de saber e estratgias de poder destinadas a

    enclausurar e a domesticar as prticas sexuais extraconjugais.37E por fim, Rago aponta para

    as propostas anarquistas, que mesmo sem unidade absoluta de opinies, a autora organiza em

    3 ncleos de preocupaes: a emancipao da mulher, com nfase na instruo e na

    desmistificao da religio, no ataque Igreja e ao Estado; as relaes afetivas, pregando a

    recusa da moral burguesa sexual e familiar (crtica ao mito do amor materno, assexualidade,

    ao casamento monogmico, etc.); e asprticas condenveis, tratando das crticas anarquistassobre o carnaval, o lcool, o fumo, o futebol e a prostituio, que so vistos pela autora como

    uma recusa a lazeres alienantes promovidos pelas classes dominantes, como instrumentos

    pedaggicos visando a formao de um operariado combativo, e como mecanismo de

    autodefesa, procurando tirar do operrio o estigma de vagabundo.38

    O terceiro captulo tem como temtica a infncia. Inicia falando da redefinio do

    estatuto da criana pelo poder mdico, paulatinamente separada e elevada condio de

    figura central no interior da famlia, demandando um espao prprio e [...] cuidados

    fundamentados nos novos saberes racionais da pediatria, da puericultura, da pedagogia e da

    psicologia.39 Esta redefinio seria pautada em trs eixos principais de preocupao: a

    elevada taxa de mortalidade infantil, o problema do menor abandonado e a necessidade do

    mdico na medicalizao da famlia; assim, enfatiza-se uma inteno disciplinadora e a

    criana pensada como porta de entrada para o poder-saber mdico no interior da famlia

    nuclear burguesa, e apesar dos esforos mdicos, pedaggicos e assistencialistas, o

    trabalhador infantil continuou a ser explorado. Em seguida, passa-se abordagem do

    trabalhador infantil no imaginrio operrio, que se apropria da ideia de inocncia e fraqueza

    da criana para denunciar o trabalho infantil na imprensa, isto figurando como uma luta dos

    trabalhadores adultos contra a competio com o trabalho infantil mais barato, e tambm uma

    luta pela integridade fsica e moral da criana, pretendendo envi-la escola, como a mulher

    ao lar. Depois enfatiza-se a resistncia infantil, ao brincar, correr e conversar durante o

    horrio de trabalho, atravs de fugas, e da participao e organizao de greves. Por fim o

    37Ibid., p. 86.38Ibid., Captulo II: A COLONIZAO DA MULHER, p. 61-116.39Ibid., p. 117.

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    captulo enfatiza a criana no discurso anarquista, que propunha uma pedagogia libertria,

    contra o poder, a disciplina e a hierarquia, propondo novas formas de convivncia baseadas na

    cooperao, desenvolver a espontaneidade criadora da criana, um conhecimento baseado

    na experincia, uma escola laica e privada j que o Estado visto como instrumento de classe,

    e uma educao integral procurando romper com as fronteiras entre trabalho intelectual e

    manual; tudo isso visando formao do homem novo, pautado numa nova concepo de

    poltica, onde o objetivo no a tomada do poder, mas a sua destruio.40

    O ltimo captulo trata das estratgias sanitrias que a burguesia industrial, os

    higienistas e os poderes pblicos promoveram procurando instaurar uma nova gesto da vida

    do trabalhador pobre e controlar a totalidade dos seus atos, ao reorganizar a fina rede de

    relaes cotidianas que se estabelecem no bairro, na vila, na casa e, dentro da casa, em cada

    compartimento.41Trata-se de um projeto utpico de desodorizao da cidade, uma poltica

    sanitarista de purificao e tambm de demarcao precisa dos espaos e dos corpos. Atravs

    da metfora do corpo orgnico para designar a cidade e a sociedade e das teorias sobre

    miasmas, germes e micrbios, os mdicos sanitaristas investiam contra os cortios,

    redefinindo o pblico e o privado e realocando a populao pobre para as vilas operrias. A

    partir da, o captulo trata da disciplina dentro destas vilas, que alm de ser um negcio

    lucrativo por meio da induo dos moradores a gastar nos estabelecimentos das fbricas e

    estratgias semelhantes, era tambm uma pedagogia totalitria que permitia que o poder

    disciplinarexercesse um controle fino e leve sobre o cotidiano dos trabalhadores. A seguir,

    principalmente a partir da dcada de 20, ter-se-ia um outro regime disciplinar baseado em

    uma burocracia impessoal, um corpo de especialistas que operavam o conceito de pobreza-

    sade-imoralidadepara pensar primeiro a habitao popular, e depois discutir a sade dos

    incivilizados, diagnosticar e prevenir doenas, e do perigo da degenerescncia deslocar o

    problema para a moral. As solues encontradas eram baseadas nos modelos de cidade-

    jardim, como anttese do botequim, e do modelo progressista do modernismo europeu,

    estratgias de antiaglomerao. Por fim, o captulo fala das imagens libertrias da cidade do

    futuro, ou seja, a denncia anarquista ao carter marginalizador do projeto arquitetnico das

    classes dominantes,42e, mesmo que no tenha havido um projeto propriamente dito, algumas

    imagens, como a inexistncia da propriedade privada em uma imagem mais coletiva ou a

    40Ibid., Captulo III. A PRESERVAO DA INFNCIA, p. 117-146.41Ibid., p. 163.42Ibid., p. 199.

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    uma das que tinham suas linhas de pesquisa mais definidas: sua rea de concentrao em

    Histria do Brasil concentrava Histria de So Paulo; Movimentos Sociais no Brasil;

    Capitalismo e Agricultura; e o caso brasileiro de Formao do Trabalho Assalariado

    Urbano.47Possua uma biblioteca com mais de 70.000 ttulos e mais de 500 assinaturas de

    peridicos,48 alm de ser uma das poucas a manter um movimento de publicaes dos

    trabalhos defendidos na ps-graduao em geral, com raros ttulos de Histria.49

    A UNICAMP se insere, assim, em um contexto de consolidao dos cursos de ps-

    graduao nos anos 80 que, apesar de terem sido criados na dcada de 70, ao longo da

    dcada seguinte que se configuram enquanto campo especializado do conhecimento histrico,

    tratando-se ento da consolidao de uma universidade em termos modernos, qual coube a

    funo produtora e em grande medida disseminadora do conhecimento anteriormente

    pulverizado ou reunido em torno de ncleos tradicionais, nacionais e locais, ou sob sua

    influncia.50 Assim, temos na dcada de 1980 a criao de 5 mestrados (UNESP/Assis,

    UNESP/Franca, UFRGS, UNISINOS, PUC-RJ) e 4 doutorados (UFSC, UFF, UNICAMP,

    PUC-RS), completando o total de 16 cursos de mestrado e 5 de doutorado em Histria, um

    aumento de 75% em relao aos anos 70.51

    O processo de crescimento da legitimidade da universidade enquanto produtora edivulgadora do conhecimento histrico aparece, por exemplo, na apresentao do primeiro

    nmero dos Cadernos do ICHF-UFF:

    Nos dias de hoje, em que se faz necessrio, mais do que nunca, construir umnovo espao, impe-se a tarefa de compartilhar idias, saberes e aes, demodo a buscar as opes e os questionamentos capazes de produzir umanova

    forma de vida acadmica.A Universidade, com seu compromisso de produzirconhecimento e inventar novas prticas, deve possibilitar as mudanas querepresentem o desejo e as experincias de ao coletiva.52

    Assim, a universidade assume para si no s o compromisso de produzir conhecimento, mastambm promover as inovaes dentro da disciplina Histria,53 inventar novasprticas,

    47Ibid., p. 38. No entanto a maior determinao das linhas de pesquisa ocorre nos anos de 1987 e 1988, com acriao de novas reas de concentrao em Histria Social do Trabalhoe Histria da Arte e da Cultura, cadauma com novas linhas de pesquisa.Ibid., Tabela 1.48Ibid., p. 38.49Ibid., p. 52.50Ibid., p. 21.51Ibid., p. 32-45. Reforando a ideia, se na dcada de 1970 foram defendidos 309 trabalhos (275 dissertaes e

    34 teses), na dcada de 80 so 817 trabalhos (665 dissertaes e 152 teses).52Apresentao. Cadernos do ICHF-UFF, n. 1, jul. 1989, grifo meu.53 Aqui enfoco a disciplina Histria, porm este momento trata-se da consolidao da universidade como umtodo no Brasil.

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    produzir uma nova forma de vida acadmica a ideia de novidade historiogrfica assim

    tinha fora particular dentro daquele contexto.

    Junto com a consolidao dos cursos de ps-graduao, tem-se tambm o crescimentodas associaes universitrias, como, por exemplo, a Associao Nacional dos Professores de

    Histria (ANPUH), que defende para si mesma uma estreita vinculao com as Faculdades

    de Filosofia tendo sua histria paralela delas.54A isto ainda acrescenta-se que [...] os anos

    80 superaram em grande parte os impasses da dependncia de uma ps-graduao marcada

    pelos brazilianists nos anos 70 [...], [consolidando] em grande medida, um corpo docente

    nacional.55 Surgem, tambm diversos peridicos de Histria,56 e h um crescimento na

    publicao de livros de Histria pelas editoras do Brasil, o que mostra, por um lado, maior

    interesse pela histria por parte do pblico em geral, e, por outro, o processo paulatino de

    ocupao do espao de produo histrica pelos cursos de ps-graduao e pelas associaes

    universitrias, de onde partem em geral estes peridicos e novas publicaes.Na apresentao

    do primeiro volume da revistaHistria: Questes e Debates, a Comisso Editorial diz:

    Evidencia-se assim um outro objetivo, muito caro APAH [AssociaoParanaense de Histria]: estimular o dilogo entre a Universidade e acomunidade. Na trama em que se pretende tecer as questes e debates destarevista, propomos ainda inserir um outro elemento entre os articulistas

    convidados: os estudantes de Histria, na Universidade. Este trplice dilogo incluindo nele, enfatize-se, especialistas nas diversas cincias sociaisinteressados nos nossos problemas comunspermitiria, de um lado, resolveralgumas das contradies prprias de nossa estrutura de ensino e pesquisa,melhorar o ensino em todos os seus graus, melhor vivenciar os problemascomuns s cincias humanas, alm de desenvolver novas propostas.57

    Defende-se, assim, um triplo dilogo entre corpo docente, comunidade e alunos, porm com a

    orientao legitimadora de especialistas, a fim de resolver as contradies da rea.

    esta conjuntura que leva Fico e Polito a argumentarem que a dcada de 80 a da

    consolidao da universidade como centro principal do conhecimento histrico, com a

    ampliao destes espaos de produo e divulgao. No entanto, os autores alegam que apesar

    desta consolidao h diversos problemas nos cursos de ps-graduao, como a falta de uma

    definio mais coesa do termo linhas de pesquisa, tendo-se alguns cursos com linhas de

    pesquisa muito especficas e fechadas e outros com definies vagas demais; uma disparidade

    muito grande entre a qualidade dos diversos cursos de ps-graduao; no caso dos peridicos,

    54 CANABRAVA, Alice Piffer. A Associao Nacional dos Professores Universitrios de Histria. In.: Revista

    Brasileira de Histria, n. 1, So Paulo, mar. 1981, p. 3. 55FICO, Carlos; POLITO, Ronald.A histria no Brasil (1980-1989), op. cit., p. 59.56Fico e Polito registraram 68 peridicos, 26 exclusivamente de Histria.Ibid., p. 61-62.57Histria: Questes e Debates. v. 1, n. 1, Curitiba, nov. 1980, p. 6.

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    problemas de financiamento, durabilidade e distribuio/circulao das revistas, alm de

    longa demora entre o recebimento dos artigos originais e sua efetiva publicao, fazendo com

    que a publicao de trabalhos na rea de Histria talvez tenha como finalidade conferir

    prestgio ao autor, mais do que assegurar prioridades, uma vez que envolve principalmente

    um problema de interpretao, de viso terica e metodolgica, do que propriamente de

    descoberta.58

    Do ponto de vista temtico, Fico e Polito fazem uma diferenciao entre Histria

    Social, Econmica, Poltica, Demogrfica e da Cultura. Dentro destes, possua grande

    destaque no perodo a Histria Social, com o maior nmero de trabalhos em teses,

    dissertaes e artigos, e sendo a segunda temtica preferida em livros editados, perdendo

    apenas para a HistriaPoltica. Sobre esta Histria Social, os autores a definem como a

    histria que engloba estudos sobre estrutura social, condies de vida de dete rminados

    grupos sociais, movimentos sociais, cotidiano, artes, literatura, famlia, mulheres, criana,

    sexualidade, mentalidades, temas que perpassam 150 trabalhos.59 Percebe-se aqui que a

    definio dos autores bastante abrangente, englobando desde abordagens mais clssicas de

    estruturas e movimentos sociais a temas considerados na poca renovaes temticas daNova

    Histria, como cotidiano e mentalidades, e que alguns autores procuram situar em polos

    opostos de um debate.60 Isto se daria, segundo os autores, principalmente porque as novas

    preocupaes temticas daNovaHistria, apesar de serem pouco expressivas numericamente

    no que se refere a novos objetos (cerca de 5% dos trabalhos a exceo nos livros de

    histria publicados, com cerca de 15%), atingiram um nmero bem maior na renovao

    metodolgica de temticas antigas como o movimento operrio (em parte, o caso deDCAL).61

    Contudo, os autores apontam como uma das principais dificuldades a ausncia ou

    pequena expressividade de trabalhos tericos em histria, nas teses, dissertaes, artigos elivros publicados. Eles enfatizam esta pobreza terica a despeito de um discurso sobre uma

    58 FERREZ, H. D. apudFICO, Carlos; POLITO, Ronald. A histria no Brasil (1980-1989), op. cit., p. 62-63.Fazendo eco a constatao, assim discorre o primeiro nmero da Revista do Departamento de Histria

    FAFICH/UFMG: Este o primeiro nmero de uma revista que o Departamento de Histria da UFMG pretendetornar anual. Sua publicao prevista para maro deste ano, atrasou-se, prejudicando a lista de livros publicadosno texto de Maria Efignia, mas no a invalidou, da a permanncia do trabalho no corpo da Revista.Dificuldades financeiras s puderam ser superadas, permitindo esta edio, com a ajuda de empresas amigas queaceitaram financiar o Departamento de Histria nesta tentativa de criar o seu espao editorial. Agradecemosainda ao Diretor da FAFICH/UFMG pela cobertura de parte dos gastos que nos oneraram com o atraso da

    publicao. nov. 1985.59Ibid., p. 56.60Vide itemA crise, p. 24.61FICO, Carlos; POLITO, Ronald.A histria no Brasil (1980-1989), op. cit., p. 52.

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    renovao historiogrfica nos anos 80: ao contrrio desta impresso generalizada de

    renovao, a grande maioria dos trabalhos seguiriam, segundo os autores, caminhos

    considerados tradicionais na historiografia; haveria (com exceo de poucas iniciativas como

    a linha de pesquisa em Teoria e Metodologia em Histria na UFRGS) um desencorajamento a

    teses e dissertaes que enfatizem apenas discusses tericas sem a pesquisa emprica, o que

    por vezes figurava como um fetiche pelo arquivo; poucos artigos e teses tratavam de

    discusses tericas e muitas vezes os trabalhos de histria tinham longos captulos tericos

    iniciais com pouca relao com o resto do trabalho.

    Contudo, h textos, sobretudo de carter de balano da poca, que trazem como tema

    um debate terico na historiografia da dcada,62 balizado principalmente por duas ideias

    chave: a de crise da razo histricae a daNova Histria.

    ACRISE

    Ana Maria de Oliveira Burmester aponta que a principal questo que a Histria

    procurava responder na dcada de 1970 era a do modo de ser do capitalismo no Brasil,63da

    o destaque para a temtica da Revoluo. Se essa era a conjuntura nos anos 70, o que aparecenos balanos historiogrficos dos anos 80 a discusso entre a chamada NovaHistria,

    defendendo uma ampliao do leque temtico e metodolgico do historiador enquanto

    renovao do procedimento historiogrfico, e o diagnstico dacrise da razo histrica, que

    v naNova Histriaum reflexo, algumas vezes modista e passageiro, de uma crise da ideia de

    razo enquanto norteadora, no s da produo do conhecimento histrico, mas tambm da

    humanidade. Parece-me que esta discusso, quer seja negada, relativizada ou reforada pelos

    balanos historiogrficos, o cerne da anttese que viria a ser naturalizada entre modernoeps-modernona discusso historiogrfica nas dcadas posteriores que Wagner Geminiano

    dos Santos entende como a elaborao de lugares de demarcao do mtier do historiador no

    Brasil, relacionado intimamente com uma crescente autonomia da crtica historiogrfica

    62 O recorte neste trabalho a historiografia brasileira. No abordo aqui os debates historiogrficos em voga nos

    anos 80 fora do Brasil, apesar de consider-los tambm de grande importncia e em dilogo com a historiografiabrasileira. Abordar isso, contudo, demandaria por si s outro trabalho.63 BURMESTER, Ana Maria de Oliveira. A (ds)construo do discurso histrico: a historiografia brasileira dosanos 70. 2 ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998, p. 97.

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    dentro do campo da disciplina Histria.64No entanto, neste debate dos anos 80 entreNova

    Histriae crise da razo que Margareth Rago e outros historiadores da dcada, sobretudo os

    da UNICAMP, se encontram, o que fornece pistas interessantes para se pensar o casamento de

    Foucault com Thompson emDCAL.65

    Passo a alguns argumentos desse debate. Fico e Polito definem aNovaHistriacomo

    [...] o conjunto de trabalhos de produo recente que aborda temas at entono pesquisados, especialmente relacionados com a mentalidade coletiva,com a magia, com a sexualidade dentre outros. Estes trabalhos tambm tmem comum o questionamento dos postulados epistemolgicosexcessivamente deterministas e objetivistas que se identificam com posturas

    por isso mesmo caracterizadas como cientificistas.66

    Nesse sentido, a definio essencial daNova Histria a de novas temticas. Sobretudo, paraFico e Polito, o questionamento epistemolgico de posturas deterministas e objetivistas viria

    em segundo plano e, mais do que isso, teria como funo mais legitimar estas novas temticas

    na ordem do dia que questionar ou propor uma verdadeira renovao historiogrfica. Os

    autores, no entanto, dizem que, apesar disso, havia uma impresso generalizada de que estes

    novos temas consistiam em uma renovao da produo histrica:

    Assim, se quisermos reconstruir o imaginrio sobre a produo histrica nasegunda metade dos anos 80, veiculado pela mdia, teramos o seguinte,

    jovens historiadores notadamente da UNICAMP, contrapem-se aosdogmatismos tericos, sobretudo marxistas, e operam uma renovaoterica da Histria que impe um redirecionamento das pesquisas atravs doabandono de velhas noes estabelecidas e da busca de novas temticas.Como se v, h mais equvocos que acertos nessa percepo.67

    O principal equvoco deste imaginrio, para Fico e Polito, seria que a ampliao

    temtica da dcada de 80 no era uma verdadeira renovao epistemolgica uma vez que este

    grupo de historiadores no configurava um grupo homogneo. Assim, percebe-se para os

    autores a ideia de que uma renovao na historiografia, por um lado, precisaria ser terica e

    no temtica; por outro lado, precisaria ter um programa mais ou menos definido, uma certa

    homogeneidade no tipo de abordagem dos historiadores do novo grupo enfim, propor um

    novoparadigmapara a historiografia, o que, segundo eles, no foi feito.

    64 SANTOS, Wagner Geminiano dos. A inveno da crtica historiogrfica brasileira ps dcada de 1980: umcampo de batalhas para modernos e ps-moderno. In.: Revista de Teoria da Histria, ano 3, n. 7, jun/2012, p.128.65No quero apontar a questo da crise da razoe daNova Histrianem como filha da dcada de 80 ignorandoum processo, nem como uma particularidade brasileira desconectada das renovaes tericas, temticas emetodolgicas acontecendo em outros pases. Na verdade, este trabalho no pretende se debruar nestas

    questes. Meu objetivo aqui apenas buscar, no recorte que fiz (dcada de 80), elementos em voga na escrita dahistria que me ajudem a pensar a apropriao de Foucault por Margareth Rago emDCAL.66FICO, Carlos; POLITO, Ronald.A histria no Brasil (1980-1989), op. cit., p. 162.67Ibid., p. 161.

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    De maneira diversa, Michel Zaidan Filho define a NovaHistriacomo dois tipos de

    estudos diferentes. Em primeiro lugar,

    os estudos [...] que reivindicam o pensamento de Michel Foucault. Alis, deum certo Foucault. Aquele ps-estruturalista, da craterologia sem sujeito(no o do ltimo volume daHistria da Sexualidade). Nesta linha de anlise,se redescobriram no Brasil os loucos, os homossexuais, as prostitutas, osleprosos, etc. Foucault foi transformado, malgr lui no maitr--penseurdesses estudos microlgicos, fragmentrios. E tudo isso, em nome da revoltaanarquista contra o imprio de uma razo tecnocrtica, normatizadora,disciplinar.68

    Nesse tipo de estudo, a renovao temtica (loucos, homossexuais, prostitutas, leprosos) anda

    em conjunto com uma nova abordagem epistemolgica, que dissolve o sujeito histrico em

    um ps-estruturalismo identificado com a fase genealgica da obra foucaultiana. Para o autor,

    esta busca de Foucault a maneira da histria, atravs destes estudos microlgicos, se revoltar

    contra a razo.

    Em segundo lugar, os estudos relacionados com

    a moda da nouvelle histoire, com sua pluralidade de mtodos, pluralidadede objetos. O fascnio pelo brilho dos temas no usuais, heterodoxos,tradicionalmente desprezadospela historiografia moderna. Assistimos entoa um assalto pela mirade das novidades temticas que vo desde o sexo, o

    prazer, a moda, o cheiro at o sonho e a feitiaria.69

    Este tipo de estudo tambm careceria de uma homogeneidade epistemolgica sendo

    principalmente uma tendncia temtica, com carter de moda.

    Os dois tipos de estudo teriam em si um elemento em comum fundamental: a crtica

    razo histrica. Nesse sentido a Nova Histria corresponde a uma crise de paradigma, um

    novo surto de irracionalismo, apologia orgistica do sem sentido, da desrazo. Esta crise

    de paradigma responderia a razes de ordem interna e externa: tem-se que no Brasil, [a]

    modernizao monopolista do pas, operada pelos militares nos ltimos decnios, nos legouuma sofisticada indstria cultural, o que explicava a busca de autores estrangeiros como

    Foucault e Walter Benjamin.70Estes por sua vez, do ponto de vista externo, eram filhos de um

    contexto de crisedamodernidade, que Zaidan Filho entende como fruto das contradies do

    capitalismo monopolista de Estado e do socialismo realmente existente.71

    68

    ZAIDAN FILHO, Michel.A crise da razo histrica.Campinas: Papirus, 1989, p. 23.69Ibid.70Ibid., p. 25.71Ibid., p. 20.

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    A esta crise deste paradigma que Zaidan Filho chama de modernidade, haveria uma

    resposta ps-moderna, que se pretenderia, talvez sem sucesso, um novo paradigma,

    caracterizada em um quadro referencial baseado em 4 pontos: 1. A desreferencializao do

    real: cuja origem se encontraria, para o autor, na ao da mdia ao reduzir tudo a

    representaes, simulaes da realidade; 2. O carter intertextual da historiografia, que

    reduziria toda a realidade objetiva ao discurso, fazendo com que o conhecimento se

    resumisse a partir de um texto sobre outro texto; 3. A dessubstancializao do sujeito,

    esfacelado pelas mltiplas e diferentes imagens produzidas pela indstria cultural da

    sociedade de consumo; e 4. O retorno ao estudo do microcosmos, pois com a

    desmaterializao do sujeito vem a fragmentao do social, onde o mundo histrico se torna

    um caleidoscpio de micro-objetos sem orientao conjunta.72A partir deste quadro, ZaidanFilho faz um diagnstico da crise do paradigma da modernidade, paradigma este diretamente

    vinculado razo histrica, e aponta o ps-modernismocomo uma tentativa de estabelecer

    um novo paradigma. Porm o autor questiona a validade desta tentativa e a capacidade do

    ps-modernoconseguir de fato estabelecer um paradigma novo.

    Em consonncia com essa ideia, Astor Diehl tambm contesta o ps-modernocomo

    alternativa crise de valores orientadores, uma vez que o termo em si seria falho: os

    elementos do ps-moderno j se encontravam na modernidade, estavam somente

    disciplinados, sob o manto do mtodo racional moderno.73Diehl explica a crise das idias

    [sic] de progresso, de um progresso linear extirpado de seus trgicos atravs da experincia

    da ditadura militar e do esvaziamento institucional-universitrio pelas reformas introduzidas

    e pela efetiva caa s bruxas; de diagnsticos radicais [que] rompem com a era

    desenvolvimentista e do reformismo populista, levando as pesquisas a se voltarem para as

    classes e estruturas sociais e o debate sobre a dependncia econmica e cultural;74e de uma

    crise do ideal de progresso oriunda do potencial de destruio das condies ecolgicas da

    sobrevivncia humana e de um sentimento de insegurana em relao ao futuro: assim tudo

    passa a ser suspeito, inclusive a razo histrica.75A explicao final de Diehl sobre o porqu

    de esta crise no ter dado seguimento a novas concepes orientadores se encontraria na

    existncia de tendncias, no pensamento histrico brasileiro, contrrias evoluo histrica

    72Ibid., p. 20-22. Tal quadro referencial aparece praticamente nas mesmas palavras em DIEHL, Astor Antnio.A Cultura Historiogrfica nos anos 80: mudana estrutural na matriz historiogrfica brasileira. Porto Alegre:

    Evangraf, 1993, p. 143-144.73DIEHL, Astor Antnio.A Cultura Historiogrfica nos anos 80.op. cit., p. 177.74Ibid., p. 178.75Ibid., p. 179.

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    rumo s grandes snteses, tendncias estas que so frutos dos altos custos sociais e culturais

    da modernizao do pas.76 Por fim, esta conjuntura criticada pelo autor, pois [...] se a

    cincia histrica no (re)estruturar seus modelos tradicionais de interpretao do passado, ela

    corre o risco de servir nica e exclusivamente para a legitimao de grupos dominantes e

    dominados e de assumir o carcter [sic] unicamente academicista, o que significaria perder

    sua relao dialtica com a realidade scio-cultural [sic].77

    Do outro lado do debate, temos a prpria Margareth Rago defendendo a dcada de

    1980 como uma dcada de renovao historiogrfica, em oposio represso cultural

    imposta pela ditadura nas duas dcadas anteriores. Segundo ela,

    Ainda que sob forte abafamento poltico no Pas, vivemos, ao mesmo tempoe contraditoriamente, um perodo de florescimento cultural e intelectual emmuitos campos, como na msica e no teatro, o que se explica, em grande

    parte, pelo prprio crescimento urbano-industrial, pela expanso do mercadoeditorial, publicitrio e artstico, pelo desenvolvimento das telecomunicaesem todo o Pas e, especialmente, pelo relativo fortalecimento econmico dascamadas mdias.78

    Junto com isso teramos a emergncia de novos grupos sociais, tnicos e sexuais

    trazendo novas questes e reivindicaes, contribuindo para um desenvolvimento de novas

    temticas, das questes femininas e do gnero masculinidade, da sexualidade s relaes

    raciais, da histria do pblico ao privado, da cincia religiosidade e magia, da cultura

    erudita popular e mdia, da histria social cultural, etc.,79procurando se atualizar em

    relao s inovaes que se produziam no exterior, o que explicaria a descoberta de autores

    como Thompson, Foucault, Benjamin e Castoriadis. A partir da teramos uma srie de

    inovaes tericas e metodolgicas de fato: a concepo de histria mais como discurso que

    como encontro com os prprios fatos, o documento buscado no mais como espelho do

    real, mas sim como monumento, a incorporao da subjetividade no fazer historiogrfico,

    a preocupao em captar mais integralmente os fenmenos histricos e as aes individuaisou coletivas na trama de complexas relaes sociais, e uma maior flexibilidade e ecletismo

    terico, figurando-se assim em um momento de renovao de fato.80

    Creio que se pode dizer, grosso modo, que temos, de um lado, aqueles que entendem a

    Nova Histria como sintoma ou tentativa de resposta a uma crise da razo histrica,

    76Ibid., p. 180.77Ibid., p. 182.78RAGO, Margareth. A nova historiografia brasileira. In.:Anos 90, n. 11, jul. 1999, p. 73.79Ibid., p. 74.80Ibid., p. 91-93.

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    diretamente relacionada com o declnio da ideia de progresso e da capacidade da histria

    estabelecer um paradigma capaz de representar o passado e a si mesmaassim, as renovaes

    tericas, metodolgicas e temticas da Nova Histria, quer sejam exaltadas, quer sejam

    criticadas, so entendidas como uma resposta ou manifestao da crise. E, de outro lado,

    temos aqueles que veem na Nova Histria nada mais que uma ampliao temtica, cujos

    questionamentos aos trabalhos anteriores respondem ao contexto de efervescncia social e

    redemocratizao dos anos 80, questionamento da razo militar ou disciplinar e valorizao

    da resistncia operria, porm, com criticas que no representariam uma mudana de

    paradigma ou mesmo uma quebra de paradigma do ponto de vista terico. Nesse sentido, o

    termo Nova Histria era uma tentativa de reforar a ideia do novo, de uma renovao

    historiogrfica que estabeleceria novas bases epistemolgicas inaugurando uma nova etapa nahistria da histria no Brasil; isto, porm, mais enquanto discurso legitimador destas novas

    temticas e da crtica razo que como uma renovao terica de fato. De modo geral, os

    autores que refletem sobre o tema no identificam uma proposta homognea e coerente o

    suficiente para o estabelecimento de um novo paradigma, com posturas muito eclticas que se

    definem basicamente pelo inusitado de propostas temticas e a crtica ao paradigma anterior.

    Dentro deste quadro, me parece que ambas as abordagens enfatizam por demasiado a

    necessidade de uma homogeneidade necessria para que historiografia posterior respondesse

    satisfatoriamente aos questionamentos da modernidade. A crise da razohistricaou a crise

    da modernidade sempre vista como uma crise de paradigma, este ltimo enquanto um

    conjunto de princpios e teorias sobre a estrutura da matria que so aceites sem discusso por

    toda comunidade cientfica.81Haveria assim a ideia de que se tinha um consenso terico na

    historiografia anterior aos anos 80, mesmo que no absoluto ou aceito por todos, mas

    figurando, no mnimo, em uma homogeneidade ou uma proposta singular, coerente, total. Em

    segundo lugar, ter-se-ia que para superar este paradigmaseria necessrio o estabelecimento

    de um novo, uma nova proposta fechada e bem definida neste sentido. Creio, como Rago,

    que, se de fato a Nova Histriano faz mais do que questionar este estabilishmentmarxista

    ou determinista dos anos 70, a multiplicidade de respostas a este questionamento a

    verdadeira renovaouma abertura das fronteiras da disciplina histria, em dilogo com um

    momento de efervescncia social e poltica, com uma consolidao da histria dentro das

    universidades, e com a instaurao de um novo debate marcando novas fronteiras tericas e

    metodolgicas no campo historiogrfico.

    81SANTOS, Boaventura de Souza.Um discurso sobre as cincias. Lisboa: Afrontamento, 1996, p. 21.

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    No procuro tambm separar to marcadamente, como fazem Fico e Polito, o discurso

    da Nova Histria e sua prtica de fato, sobretudo porque, como Foucault, penso que os

    discursos so prticas, prticas discursivas,82 e esta autodefinio, esta maneira como

    historiadores viam a si mesmo e procuravam se mostrar para os outros, uma forma de

    constituio da prpria identidade alm de orientar prticas: a ideia do novo, da necessidade

    de inovao historiogrfica no perodo que norteia a busca por novas fontes, novas temticas e

    novas abordagens. D-se incio, assim, a uma discusso que ser levada adiante ao longo das

    dcadas seguintes, e, inclusive naturalizada nos debates entre o moderno e o ps-moderno.

    Nesse sentido, de forma parecida a Wagner Geminiano dos Santos, penso que, quer o

    diagnostico da crise, quer a Nova Histria, ao inaugurar este debate, esto paulatinamente

    definindo fronteiras epistemolgicas na historiografia do Brasil e, assim, a historiografiautiliza este debate para criar seu prprio espao enquanto um campo de saber legtimo e

    relativamente autnomo dentro da disciplina Histria.

    Resta agora pensar a UNICAMP dentro deste novo debate em voga, e Foucault dentro

    do espao de produo histrica que era a UNICAMP.

    FOUCAULT

    Na dcada de 1980, a nfase primordial nos trabalhos de histria, em particular na

    UNICAMP, era Histria Social.83As prprias linhas de pesquisa da faculdade, como vimos,

    mostram esta nfase. Carlos Fico e Ronald Polito identificam a UNICAMP como um centro

    efervescente desta renovao historiogrfica, pelo menos no discurso vinculado pela mdia

    (citam-se nomes como Maria Stella Martins Bresciani, Italo Tronca, Silvia Hunold Lara,

    Maria Odila Leite da Silva Dias, Laura de Mello e Souza e Nicolau Sevcenko, dentreoutros).84Uma autopercepo de historiadores dos anos 80 como renovadores de abordagem

    de temticas da histria socialpor exemplo, o movimento operriofica ntida no prefcio

    2 edio de Trabalho, lar e botequim, de Sidney Chalhoub:

    82 O que ento que Foucault entende por discurso? Algo muito simples: a descrio mais precisa, maisconcisa de uma formao histrica em sua nudez, a atualizao de sua ltima diferena individual VEYNE,Paul. Foucault, seu pensamento, sua pessoa, op. cit., p. 16-17. Cada um destes discursos sucessivos se v

    implicado nas leis penais, nos gestos, nos costumes e at mesmo nos edifcios que o pem em funcionamento eformam o que Foucault chama de dispositivo.Ibid., p. 20.83FICO, Carlos; POLITO, Ronald.A histria no Brasil (1980-1989), op. cit., p. 56.84Ibid., p. 161.

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    O tempo e lugar de um livro85explicam muito de seu feitio. A pesquisa e aredao deste aqui ocorreram em meio a um turbilho poltico contnuo:ressurgimento dos movimentos sociais de massa no pas, luta pela derrubadada ditadura militar, anistia, redemocratizao, eleies para governador,campanha para as Diretas-J. [...] Era um momento histrico raro, desses que

    a crena no futuro vira experincia coletiva. histria vivida pertenciatambm a empreitada de produzir conhecimento histrico Surgiam novos

    programas de graduao, os debates tericos alargavam-se, possibilidades depesquisa e explorao de fontes inditas apareciam a cada dia. O que lembrodeste livro e daquela poca de um estado de excitao poltica e intelectualconstante, que parecia mais do que idiossincrasia individual.

    Penso que o autor de Trabalho, lar e botequimformulava, ao lado de outrosestudiosos do perodo, uma crtica maneira como a sociologia e ahistoriografia sobre movimentos sociais em geral, e sobre movimentooperrio em particular, representavam os trabalhadores e sua experinciahistrica, isto havia a tendncia de reduzir a histria dos trabalhadoresquela dos movimentos polticos organizados, julgados todos a partir de um

    modelo determinado de desenvolvimento da conscincia de classe.86

    Aqui, escrevendo em 2001, Chalhoub refora um contexto de efervescncia poltica e

    intelectual na dcada, impulsionando um grupo de historiadores a se colocar contra uma

    histria dos trabalhadores determinista e esquematista. Esta renovao foi buscada

    principalmente atravs de Thompson, fazendo inclusive Chalhoub falar de uma

    thompsomania na UNICAMP.87Em reforo a isso, diz Edgar de Decca:

    Na verdade, quem introduziu uma vasta literatura inglesa nos cursos

    universitrios de Histria fomos ns da UNICAMP. A UNICAMP de fatono seguiu a escola francesa dos Annales, que dissimulava a luta de classes.Ns queramos uma escola historiogrfica que falasse da luta de classes e issoera a escola inglesa; a histria marxista dos historiadores ingleses.88

    importante ressaltar que ambos os autores alegam isto em outro momento, tratando-

    se ento de uma memria construda a posteriori, uma identidade que este grupo de

    historiadores cria de si. Contudo, esta postura se relaciona em muito com o que Margareth

    Rago chama, tambm de um descortinar de novos possveis na dcada,89impulsionado pelo

    contexto de redemocratizao, redescoberta do anarquismo e efervescncia de movimentos

    polticos e sociais, como as Diretas J ou o novo sindicalismo. Alis, Marcelo Badar Mattos

    defende que a elaborao de Thompson da classe social como processo e relao, em A

    formao da classe operria inglesa, surge no Brasil principalmente a partir de estudos

    85A verso inicial de Trabalho, lar e botequim foi uma dissertao de mestrado defendida na UFF em 1984(mesmo ano deDCAL). Aps o mestrado, ele entra no doutorado na UNICAMP.86CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da bellepoque. 2 ed., CampinasSP: Editora da UNICAMP, 2001, p. v-vi.87QUADROS, Carlos Fernando de.A polmica historiogrfica como um espao de embate terico e poltico: ocaso de Jacob Gorender, Sidney Chalhoub e Svia Lara. Trabalho de Concluso de Curso, Instituto de Filosofia e

    Cincias HumanasUFRGS, Porto Alegre, 2011, p. 41.88DECCA, Edgar de. apud QUADROS, Carlos Fernando de. A polmica historiogrfica como um espao deembate terico e poltico. op. cit., p. 39.89RAGO, Margareth. As marcas da pantera: Foucault para historiadores, op. cit., p. 24.

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    sociolgicos sobre este novo sindicalismo de 1978 em diante, e com a mesma caracterstica

    de DCAL: o uso concomitante com Foucault.90, alis, a mesma conjuntura de contestao

    social utilizada para explicar a thompsomania que Margareth Rago retoma para explicar,

    tambm, o impacto de Foucault. No entanto, a UNICAMP posteriormente reivindica para si

    um carter forte de thomspsonianismo e a nfase na Histria Social no a toa que

    Foucault quando chega, utilizado teoricamente dentro desta temtica.

    Como pensar ento o uso de Foucault dentro deste ambiente to marcadamente de

    Histria Social e com grande recepo de Thompson, no Brasil e na UNICAMP? Retomo um

    pouco a recepo de Foucault no Brasil: Comentando essa recepo, Astor Diehl define dois

    pontos de referncia para ela: o primeiro foi a presena de Foucault no Departamento de

    Filosofia da Universidade de So Paulo, onde lecionou por duas vezes (1965 e 1975), e o

    segundo foi a tentativa de sistematizao da discusso em torno da obra foucaultiana [...] no

    Colquio realizado em 1985.91 Atravs desta nfase em So Paulo, Diehl negligncia a

    recepo de Foucault em outros locais, sobretudo no Rio de Janeiro atravs de conferncias na

    PUC-RJ em 1973,92ou de Roberto Machado, que organiza e traduzMicrofsica do Poder, por

    exemplo.93

    Ao falar de Foucault, Diehl aponta para a forma fragmentria com que a historiografiabrasileira recebe Foucault, transformando-o em uma vulgata ao comparar o discurso

    foucaultiano ao marxista. Assim, a recepo se concentra na desmontagem dos mecanismos

    de poder. Para Diehl, isto operado numa poca em que as formas de represso do Estado e

    de suas instituies especializadas na represso apresentavam-se no auge, ou seja, no final dos

    anos 60 at meados dos anos 70. Assim, Evidencia-se uma gama ampla de temas: escravos,

    mulher, castigos, literatura, doenas, sexo, cincia, instituies polticas.94

    Ele aponta como a principal causa desta recepo, uma crise de significao: enquanto

    a sociedade passava por uma mudana estrutural esperava-se que as ideias sobre o passado

    90MATTOS, Marcelo Badar. E. P. Thompson no Brasil. In.:Revista Outubro, n. 14, 2006, p. 89.91DIEHL, Astor Antnio.A Cultura Historiogrfica nos anos 80. op. cit., p. 118. O Colquio foi publicado emRIBEIRO, Renato J (org.).Recordar Foucault, SP: Brasiliense, 1985.92FOUCAULT, Michel.A verdade e as formas jurdicas, trad. Roberto Machado, Rio de Janeiro: Nau, 1996.93Roberto Machado tambm coescreve Danao da norma: medicina social e a constituio da psiquiatria no

    Brasil em 1978 (Rio de Janeiro: Graal), e seu publica uma verso em portugus do seu doutorado (1981):Cincia e Saber. A Trajetria da Arqueologia de Foucaultem 1982 (Rio de Janeiro: Graal). A prpria Margareth

    Rago afirma que Foucault foi primeiro lido no Brasil atravs dos textos sobre o poder traduzidos e organizadospor Roberto Machado e reconhece que em seus balanos ela foca So Paulo e omite trabalhos cariocas. RAGO,Margareth. As marcas da pantera: Michel Foucault na historiografia brasileira contempornea. op. cit., p. 122.94DIEHL, Astor Antnio.A Cultura Historiogrfica nos anos 80, op. cit., p. 122.

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    fundamentassem o progressismo modernista, mas, ao contrrio do que se esperava, os

    projetos de modernizao, junto com a noo de modernidade, estavam em fogo cruzado.95O

    primeiro fator explicativo dessa crise de significao seria o desenvolvimento desigual das

    foras produtivas: a convivncia entre diferentes estruturas sociais (avanadas e no-

    avanadas) somadas exploso demogrfica acentuando as tenses sociais e o

    desenvolvimento de uma modernidade para poucos, mas inexistente para o conjunto da

    sociedade dariam origem aos questionamentos da ps-modernidade.96Segundo o autor,

    A crtica modernidade [...] abarca, de forma demolidora, o controle que amoderna cincia histrica faz do passado. A cincia histrica se orienta emsaberes de controle e excluso dos custos culturais da modernizao dasociedade, bem como das potencialidades capazes de se oporemdialeticamente ao processo [...]. Razo pela qual a posio de Foucaultadquire um papel especial na crtica modernidade e na crtica dos saberes.97

    Por fim, Diehl explica esta crise de significao recorrendo quase que na ntegra ao

    quadro referencial de Michel Zaidan Filho, j citado acima, (desreferencializao do real;

    carter intertextual da historiografia; dessubstancializao do sujeito; retorno ao estudo do

    microcosmos).98Tal explicao, como apontei antes, me parece que falha ao considerar os

    movimentos historiogrficos como reflexos ou efeitos de processos externos, de forma

    demasiadamente mecanicista, desconsiderando a dinmica interna do campo historiogrfico,

    que possui sua lgica prpria mesmo que no totalmente autnoma.

    Durval Muniz de Albuquerque Jnior toma as contribuies de Foucault

    historiografia (em geral e no apenas brasileira) apontando elementos que impactam de certa

    forma as bases do conhecimento em histria: a crtica s essncias, a histria como uma tarefa

    interpretativa, o papel do acaso e a imprevisibilidade da histria, a crtica imparcialidade do

    historiador e a histria enquanto discurso fabricado, inventado e fictcio, a histria enquanto

    jogo. Desta forma, ele aponta para a dificuldade de Foucault atingir os historiadores,

    criticando aqueles que foram avessos a ele (no no sentido de no concordar, mas no ceder

    espao), criticando tambm trabalhos historiogrficos da melhor qualidade no campo:

    Mesmo quando nos nomeamos historiadores do cotidiano, micro-historiadores ou historiadores dos excludos, no perdemos nossa mania degrandeza: o moleiro friulano torna-se o representante de uma classe orepresentante de nosso humanismo meta-histrico; o rei africano desterradotorna-se o representante de uma etnia em luta por sua libertao; o lder

    95Ibid., p. 140.96Ibid., p. 141.97Ibid., p. 142-143.98Ibid., p. 143-144.

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    operrio travestido de salvador da humanidade; o tringulo amoroso cariocatorna-se representante da resistncia operria.99

    Em outro artigo, Albuquerque Jnior vai dar centralidade, dentro das contribuiesfoucaultianas historiografia, a procedimentos de anlise utilizados por Foucault que

    rompem com a pretendida separao proposta pela modernidade entre o discurso cientfico, o

    discurso tico ou moral e o discurso poltico ou ideolgico.100 Estes procedimentos de

    anlise o autor define como a busca dos limites dos valores e das verdades da atualidade: um

    olhar de fora:

    A histria e a loucura, as duas juntas constituem procedimentos heursticosque sero importantes em toda a obra foucaultiana. Olhar de fora o seutempo, olhar a sociedade em que se vive de suas margens, perscrutar oslimites dos valores e dos projetos em que nos engajamos e no qual nosreconhecemos como sujeitos, seriam os objetivos a que se props Foucaultem todo o seu percurso. Olhar para os seres invisveis, para aqueles que sosilenciados, entendendo como e por que este silncio foi produzido, seria umatarefa a ser cumprida pelos intelectuais.101

    Assim, ao falar da relao entre Foucault e historiografia, Albuquerque Jnior priorizou o

    apontamento de ideias foucaultianas que so ou poderiam ser caras a historiografia, deixando

    de lado a apropriao destas ideias.

    Margareth Rago prope um balano do impacto de Foucault na historiografia

    brasileira.102Segundo ela, Foucault Amplia o campo da investigao histrica e das fontes

    documentais para temas como a higienizao das cidades, a medicalizao dos corpos, a

    disciplina fabril, polticas do corpo, sexualidade e outros.103 Prope, ento, situar trs

    momentos em que o pensamento de Foucault impactou a historiografia brasileira: O primeiro

    caracterizar-se-ia pelo privilegiamento da concepo de poder como positividade; o

    segundo remeteria questo da eliminao do sujeito como agente histrico fundamental,

    produtor central dos acontecimentos sociais; o terceiro veria entrar em cena reflexes sobre

    os modos de subjetivao e seus processos diferenciados.104

    99Ibid., p. 85.100ALBUQUERQUE JNIOR, Durval Muniz. A Loucura da Histria: cincia, tica e poltica no pensamentode Michel Foucault. Disponvel em: ,abril de 2012, p. 2.101Ibid., p. 5.102RAGO, Margareth. As marcas da pantera: Foucault para historiadores, op. cit.; RAGO, Margareth. O efeito-

    Foucault na historiografia brasileira, In: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, So Paulo, vol. 7, n os1-2,out. 1995103RAGO, Margareth. As marcas da pantera: Foucault para historiadores, op. cit., p. 22104Ibid.,p. 23.

    http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/academico/artigos.htmhttp://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/academico/artigos.htm
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    Desta forma, Rago diz que a historiografia brasileira inverteu cronologicamente o

    caminho da produo do autor: enquanto este passou daanlise arqueolgica das formaes

    discursivas para a genealogia das relaes do poder, ns o encontramos inicialmente em seu

    principal estudo histrico propriamente dito, Vigiar e punir, para, mais tarde, procurarmos

    suas formulaes anteriores.105 Evidencia-se aqui o que, para Rago, seria o momento mais

    histrico dentro da polimorfa obra de Foucault: o livro Vigiar e punir, o que por si s j

    questionvel e reflete uma leitura especfica e particular de Foucault.

    O primeiro impacto de Foucault, para Rago, se daria ento atravs da noo de poder

    disciplinar e da microfsica do poder, inserindo a aproximao de Foucault pela historiografia

    brasileira, juntamente com a redescoberta do anarquismo, no contexto de descortinar de

    novos possveis, na virada da dcada de 1970 para a de 1980 , antes mencionado.106

    Em outro texto, Rago divide em dois tipos as reaes dos historiadores ao impacto

    revolucionrio de Foucault: de um lado, apoiava-se na revitalizao do marxismo com os

    marxistas britnicos, trazendo a agncia dos indivduos na histria e a crena em uma

    realidade para alm dos discursos; e de outro, a apropriao de certos conceitos foucaultianos

    em meio a campos tericos incompatveis, em voga na historiografia brasileira da virada dos

    anos 70 para os anos 80. Mas, principalmente, foucaultianos ou anti-foucaultianos, oshistoriadores se viram obrigados a incorporar ou no mnimo responder a algumas das novas

    indagaes trazidas tona pela revoluo-Foucault.107

    Sobre estes primeiros trabalhos, Rago atesta para o aspecto problemtico da

    apropriao de alguns conceitos de Foucault: entendo que vrios autores trabalharam com

    determinadas noes, como o de poder disciplinar, sem, contudo, questionar o quadro

    conceitual ou a referncia metodolgica que norteava suas produes,108sobretudo casos em

    que a anlise micro foi combinada com modelos macro de interpretao globalizante da

    sociedade, quando Foucault defendia o projeto de histria geral, construda a partir das

    descontinuidades, das rupturas e do entrecruzamento de sries organizadas pelo

    historiador:109por exemplo, trabalhos combinando anlises genealgicas foucaultianas dos

    mecanismos de sequestro e poder na sociedade, com concepes dos marxistas britnicos,

    como Thompson, que procuram ao mesmo tempo valorizar a resistncia, a combatividade

    105Ibid., grifo meu.106Ibid., p. 24.107RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira,op. cit.108RAGO, Margareth. As marcas da pantera: Foucault para historiadores, op. cit., p. 26.109Ibid.

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    histrica das minorias oprimidas e realar o papel do sujeito na histria. Segundo Rago, esta

    combinao problemtica, pois, enquanto os marxistas britnicos buscam desfazer os

    silncios das minorias na historiografia e torn-los os protagonistas da histria atravs do

    destaque para o papel do sujeito enquanto agente histrico, a perspectiva foucaultiana

    delineada pelo pensamento diferencial apontavajustamente para a eliminao do sujeito na

    histria, minimizando a importncia de sua ao racional e consciente.110 Em suma, para

    Margareth Rago em 1993, impossvel aplicar conceitos foucaultianos