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LUIZA MILANO SURREAUX LINGUAGEM, SINTOMA E CLÍNICA EM CLÍNICA DE LINGUAGEM Porto Alegre 2006

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  • LUIZA MILANO SURREAUX

    LINGUAGEM, SINTOMA E CLNICA

    EM CLNICA DE LINGUAGEM

    Porto Alegre 2006

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    REA: ESTUDOS DA LINGUAGEM

    ESPECIALIDADE: TEORIAS DO TEXTO E DO DISCURSO

    LINHA DE PESQUISA: ANLISES TEXTUAIS E DISCURSIVAS

    LUIZA MILANO SURREAUX

    LINGUAGEM, SINTOMA E CLNICA

    EM CLNICA DE LINGUAGEM

    ORIENTADOR: PROF. DR. VALDIR DO NASCIMENTO FLORES

    Porto Alegre 2006

  • Para o Jorge, o Manuel e a Livia.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Jorge, por estar sempre ao meu lado, com tanta pacincia;

    Ao Manuel e Livia, por suportarem bem dividir a ateno da me com a tese;

    Ao Valdir, pela competncia, severidade e dedicao com que sustentou mais que uma tese, um

    projeto de vida;

    Ao Mario, pela escuta;

    Ao Marcelo e Angela, amigos queridos, pelo apoio de fato e de afeto;

    Magali, por dividir as angstias dessa trajetria;

    Tanara, por sua disponibilidade, empenho e parceria;

    Aos colegas do grupo de pesquisa Jefferson, Fabiana, Joo, Leandro e Anglica, por

    partilharem o no-saber que move este trabalho;

    Simone, pela acolhida generosa de minhas inquietaes tericas e clnicas;

    Maria Francisca e Margareth, pela leitura preciosa de meu texto de qualificao;

    Marlene, Maria Jos e Carmen Luci, pela qualidade da interlocuo;

    Cleci, pelo respaldo cotidiano;

    Ao CNPq, pela bolsa concedida, que possibilitou a realizao desta pesquisa;

    Ao PPG Letras, por respaldar minha formao em lingstica nesses ltimos dez anos.

  • RESUMO

    O objetivo desta tese propor uma concepo de clnica de linguagem. Para tanto, so

    articuladas as noes de linguagem, sintoma e clnica. Essa proposta implica a formulao de uma

    abordagem do sintoma de linguagem que considere o funcionamento da linguagem como uma

    forma mpar de o sujeito manifestar-se. Assim, optou-se por conceber este estudo estruturalmente

    dividido em trs partes. A primeira parte versa sobre o conceito de linguagem, a segunda aborda a

    noo de sintoma e a terceira parte dedica-se ao estudo da clnica. Estas trs partes articulam-se de

    forma tal que os conceitos de linguagem, sintoma e clnica imbricam-se compondo uma

    perspectiva de clnica de linguagem em que cada um desses elementos define-se na relao com

    os outros dois.

    Em relao concepo de linguagem, so revisitados os aportes fundantes das teorias

    saussuriana, jakobsoniana e benvenistiana, visando, a partir desse percurso, constituir uma

    concepo de linguagem prpria clnica de linguagem, que comporte em seu escopo um lugar

    para aquilo que se apresenta como irregular na fala dos sujeitos.

    Na abordagem realizada da temtica do sintoma, parte-se da noo mdica e realiza-se

    um estudo da concepo psicanaltica freudo-lacaniana. A partir dessa reflexo, prope-se uma

    viso especfica do sintoma na clnica de linguagem, apontando-o como uma forma criativa de o

    sujeito estar na linguagem.

    A relao entre linguagem, sintoma e clnica sugere que h peculiaridades na escuta

    realizada na clnica de linguagem. Assim, os encaminhamentos finais deste trabalho destacam as

    implicaes clnicas da abordagem do sintoma no mbito da clnica de linguagem, ou seja, os

    efeitos de uma interveno no mbito da linguagem que comporte o irregular em seu

    funcionamento e uma noo de sintoma que permita perceber criao naquilo que se apresenta

    como heterogneo.

  • RSUM

    Le but de cette thse est de proposer une conception de clinique de langage. Pour cela,

    les notions de langage, symptme et clinique sont articules. Cette proposition implique la

    formulation dune approche du symptme de langage qui considre le fonctionnement de la

    langage comme une faon impaire de la manifestation du sujet. Ainsi, on a decid par concevoir

    cet tude structuralement divis en trois parties. La premire partie est consacre la prsentation

    du concept de langage, la deuxime partie se concentre sur la notion de symptme et la troisime

    partie est dedie ltude de la clinique. Ces trois parties sarticulent de forme telle que les

    concepts de langage, symptme et clinique sont entrelacs, en composant une perspective de

    clinique de langage dans laquelle chacun de ces elements est defini dans la relation avec les autres

    deux elements.

    Par rapport la conception de langage, ce travail revisite les thories saussurienne,

    jakobsonienne et benvenistienne envisageant constituer, a partir de ce parcours, une conception de

    langage propre la clinique de langage, qui contient une place pour ce qui se prsente comme

    irrgulier dans la parole des sujets.

    Lapproche considre pour le symptme part de la notion mdicale pour raliser une

    tude de la conception psychanalytique freudienne-lacanienne. Cette rflexion permet proposer

    un point de vue spcifique du symptme dans la clinique de langage, lindiquant comme une

    forme crative du sujet tre dans le langage.

    Le rapport entre langage, symptme et clinique suggre quil y a des particularits dans

    lcoute effectue dans la clinique de langage. Ainsi, les conclusions de ce travail destaquent les

    implications cliniques de lapproche du symptme dans le cadre de la clinique de langage, cest

    dire, les effets dune intervention dans le cadre du langage qui comporte lirrgulier dans son

    fonctionnement et une notion de symptme qui permette percevoir de la cration en cela qui se

    prsente comme htrogne.

  • SUMRIO

    INTRODUO.............................................................................................................. 09

    PRIMEIRA PARTE: A LINGUAGEM...................................................................... 14

    Introduo primeira parte: Sobre a necessidade de falar da linguagem na clnica de linguagem.......................................................................................................

    15

    Captulo 1: Saussure, o homem dos fundamentos...................................................... 22

    1.1.Uma herana revisitada: a lngua............................................................................ 24

    1.2.Dialogando com o no-Um na lingstica.............................................................. 32

    1.2.1.Lalangue redimensiona a teoria do valor...................................................... 35

    1.2.2.O sistema comporta um funcionamento irregular?....................................... 38

    1.3. Efeitos de uma herana.......................................................................................... 40

    Captulo 2: Jakobson e o funcionamento da fala sintomtica................................... 43

    2.1. A subverso da linguagem nas afasias................................................................... 46

    2.2. A subverso da linguagem na funo potica........................................................ 53

    2.3. Efeito artstico / efeito patolgico.......................................................................... 56

    Captulo 3: Benveniste e um lugar para o sujeito na linguagem............................... 62

    3.1.O homem na lngua, o sujeito na clnica................................................................. 64

    3.2.O lugar da significao em Benveniste................................................................... 69

    3.2.1. A significao atualiza-se na enunciao................................................... 72

    3.3. Benveniste, um lingista que interessa clnica de linguagem............................. 73

    Captulo 4: Por uma noo de linguagem prpria clnica de linguagem............... 75

    SEGUNDA PARTE: O SINTOMA.............................................................................. 83

    Introduo segunda parte: O sintoma...................................................................... 84

    Captulo 5: Da patologia ao sintoma............................................................................ 87

    5.1.Por que o patolgico no satisfaz clnica de linguagem?................................. 87

    5.2. Sigmund Freud, ainda neurologista....................................................................... 93

    5.2.1. Um mergulho no texto freudiano das afasias.............................................. 94

    5.2.2. A parafasia como sintoma funcional.......................................................... 96

    5.3. O sintoma e o sujeito............................................................................................. 102

    5.3.1. A linguagem na vida cotidiana: sobre o funcionamento do sintoma.......... 104

  • 5.4. O sintoma estruturado como linguagem................................................................ 110

    5.4.1. Sintoma e sinthoma..................................................................................... 115

    5.4.2. Encaminhando questes para a clnica de linguagem................................ 118

    Captulo 6: Sobre o sintoma na clnica de linguagem................................................. 120

    6.1. O sintoma de linguagem como ato criativo........................................................... 122

    6.1.1. Ato sintomtico, ato criativo....................................................................... 123

    6.2. A abordagem do sintoma na clnica de linguagem................................................ 125

    TERCEIRA PARTE: A CLNICA.............................................................................. 131

    Introduo terceira parte: A clnica.......................................................................... 132

    Captulo 7: A relao oralidade-escrita na clnica de linguagem.............................. 134

    7.1. A instncia da escrita na oralidade........................................................................ 135

    7.2. A escrita da fala sintomtica.................................................................................. 140

    Captulo 8: O sintoma de linguagem na clnica de linguagem.................................. 151

    8.1. A hiptese sobre o funcionamento da linguagem.................................................. 152

    8.2. Sobre o recorte enunciativo dos fatos de linguagem............................................. 154

    8.2.1. Sobre a noo de cena............................................................................. 155

    8.2.2. Sobre a apresentao dos fatos de linguagem............................................. 155

    8.3. Sobre a abordagem do sintoma de linguagem na clnica de linguagem................ 156

    8.4. Traando hipteses sobre o funcionamento da linguagem.................................... 158

    8.4.1. Hiptese sobre o funcionamento da linguagem de P.H............................. 158

    8.4.2. Hiptese sobre o funcionamento da linguagem de P.U.............................. 172

    8.4.3. Hiptese sobre o funcionamento da linguagem de P.F............................... 179

    Captulo 9: A especificidade da interveno em clnica de linguagem...................... 184

    CONCLUSO................................................................................................................ 190

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................... 192

    ANEXO 1........................................................................................................................ 200ANEXO 2........................................................................................................................ 201

  • INTRODUO

    Esta tese formulou-se em torno de uma questo que tem sido um interrogante de meu

    trabalho: como se constitui uma clnica da linguagem que lida simultaneamente com a

    linguagem, o sintoma e o sujeito? So raras as reflexes epistemolgicas sobre essa indagao.

    Normalmente, o que se percebe uma srie de importaes das noes de sintoma e de

    linguagem de outras disciplinas sem que algo seja dito a respeito da especificidade da clnica de

    linguagem. a partir da inquietao com o mal-estar decorrente do quo lacunar a teorizao

    acerca da clnica de linguagem que se construiu este trabalho.

    Ciente de que no possvel ser indiferente complexidade das formulaes que as

    noes de linguagem e de sintoma j receberam em diferentes instncias, o primeiro passo foi o

    de constituir os interlocutores para a empreitada de fazer uma tese em um campo que , ainda,

    carente de reflexo epistemolgica.

    A concepo de linguagem o ponto de partida. Sabe-se que vrias reas tentam

    responder por tal noo e, principalmente, pelos diferentes ngulos a partir dos quais pode ser

    abordado o funcionamento da linguagem. o caso da neurologia, da filosofia, da psicologia,

    entre outras. A opo foi partir de respostas formuladas pela lingstica. Mas por que a

    lingstica? E qual lingstica?

    A lingstica sempre foi para mim a cincia que, em seu esforo de formalizao, melhor

    deu conta da resposta questo o que a linguagem?. A forma como os lingistas estudam a

    lgica das relaes entre os elementos da lngua, alm de me fascinar, tem me dado a

    oportunidade de fazer inferncias sobre a lgica do funcionamento da linguagem desviante. ,

    acredito, um ponto de partida slido.

    Qual lingstica? A de filiao ao mestre Ferdinand de Saussure e tambm a de seus

    herdeiros: Roman Jakobson e mile Benveniste.

  • Com Saussure busquei a referncia fundante da noo de estrutura da lngua e os

    princpios bsicos de suas relaes internas. Com Jakobson tive a oportunidade de relacionar a

    linguagem dita patolgica com a criao artstica. Minha concepo de funcionamento da

    linguagem no mbito da clnica foi marcada significativamente por seus ensinamentos. E com

    Benveniste tive tambm um feliz encontro que possibilitou relacionar o sujeito com sua prpria

    fala. Essa tripla considerao dos aportes da lingstica um respaldo estruturalmente importante

    no eixo central desta tese.

    Alis, este o motivo principal da tese ter se constitudo no terreno das Letras: minha

    busca investigativa volta-se, nesse momento de minha formao terica e de reflexo clnica,

    para a indagao acerca do funcionamento da linguagem. A acolhida da temtica da fala

    desviante foi uma conseqncia, uma bela conseqncia.

    Ao referencial lingstico articula-se a psicanlise com a funo transversal de um

    atravessamento que marca definitivamente as noes de linguagem, de sujeito e de sintoma.

    Minha formao terico-clnica deve muito ao percurso psicanaltico que me tem respaldado.

    Neste trabalho, a interlocuo com a psicanlise decisiva no que diz respeito circunscrio da

    noo de sintoma. Como a concepo mdica por seu vis patologizante restringe a concepo

    de sintoma, investi numa formulao prpria clnica de linguagem que teve origem no dilogo

    com a teorizao psicanaltica sobre o tema. Devo tambm anunciar que a perspectiva

    psicanaltica que se encontrar nesta tese a da psicanlise freudo-lacaniana.

    Esta tese produz-se em um campo, a clnica de linguagem, em que profundas implicaes

    tericas se do e onde limites disciplinares so suspensos. No se ignora, porm, que h um nus

    a ser pago quando se est numa relao de implicao de diferentes saberes. Um deles, o leitor

    ver, se revela nos excessos e nas faltas que constituem o texto. Em outras palavras, h

    explicaes que podem parecer bvias para um psicanalista, mas no para um lingista, e vice-

    versa. Da mesma forma, para a clnica de linguagem, algumas explicaes tambm podem

    parecer redundantes. Eis um risco que assumo pelas escolhas que ora realizo.

    A tese versa, portanto, sobre linguagem, sintoma e clnica todos, e cada um a seu modo,

    tomados como efeito da interlocuo entre trs reas: clnica de linguagem, lingstica e

    psicanlise. Como se justificam esses trs campos juntos? O que isso tem a dizer sobre o prprio

  • da clnica de linguagem? A interlocuo que busco calcada na diferena entre os saberes desses

    campos. E trabalhar com a diferena supor o lugar do outro.

    No se trata de propor olhar no lugar do outro, mas com o lugar do outro. Tem algo que

    se repete - a falta - nos trs campos, algo sobre o qual no h um saber integral. a partir desse

    no-saber compartilhado que me sinto instigada a trabalhar com o lugar do outro, nesse caso, a

    lingstica e a psicanlise. Mas isso somente possvel por perceber que desde o lugar do outro a

    minha especialidade, a clnica de linguagem, tambm est sendo compartilhada e questionada. Ou

    seja, o meu no-saber funciona como elemento a partir do qual meus pares trabalham e

    interpelam o meu lugar. Partindo das reflexes acerca da linguagem e do sintoma, o caminho

    conduz clnica de linguagem. A prpria utilizao da expresso clnica de linguagem1 se

    relaciona com um posicionamento terico que tem implicaes clnicas.

    Acredito que a trajetria da tese viabilizou-se devido oportunidade de olhar atravs da

    teorizao dessas outras reas (lingstica e psicanlise). Essa atitude metodolgica fruto de

    minha formao terica, da experincia clnica de dilogo interdisciplinar e da felicidade de

    encontrar um orientador aberto interlocuo e colegas de pesquisa igualmente disponveis e

    inquietos.

    Em termos mais tcnicos, para investigar o funcionamento da fala sintomtica em clnica

    de linguagem, parto de duas modalidades de hipteses, uma de cunho terico e outra de cunho

    analtico. Tais hipteses so complementares na medida em que a natureza da primeira visa

    epistemologia e a natureza da segunda visa ao aparato metodolgico. Em outros termos, para

    fazer uma tese em clnica de linguagem que decorra da implicao entre as noes de linguagem,

    sintoma e clnica necessrio supor a necessidade de tal implicao. Os aspectos metodolgicos

    stricto sensu decorrem desse a priori.

    1 A expresso clnica de linguagem proposta pelas fonoaudilogas integrantes do grupo de pesquisa Aquisio da linguagem e patologias da linguagem, orientado por Maria Francisca Lier-De Vitto, no LAEL/PUC-SP. Por ora, a expresso est sendo utilizada para referir a um campo especfico da rea de atuao clnica no terreno dos transtornos de linguagem (demarcando diferenas entre um fazer clnico fonoaudiolgico pautado por aderncia a disciplinas como lingstica, medicina e pedagogia e um fazer clnico em clnica de linguagem com uma escrita prpria). Cabe, porm, avisar que esse campo ser objeto de maior discusso na terceira parte da tese.

  • Assim, do ponto de vista terico, a hiptese que norteia esta tese afirma que a clnica de

    linguagem deve ser concebida como uma instncia em que se articulam a linguagem, o sintoma e

    a clnica.

    A essa se acrescenta a segunda hiptese, a do ponto de vista metodolgico, que supe que

    a anlise do sintoma de linguagem no mbito da clnica de linguagem dependente da forma de

    implicao entre as noes de linguagem, de sintoma e de clnica mobilizadas anteriormente. Tal

    hiptese pode ser explicitada em duas asseres tambm complementares:

    a) a abordagem do sintoma de linguagem precisa considerar as particularidades do

    funcionamento da linguagem para cada sujeito;

    b) a clnica de linguagem precisa tomar a escuta dessa singularidade como

    elemento capaz de produzir efeitos especficos na clnica.

    Apresentados os motivos que me levaram a escrever esta tese, os objetivos e as hipteses

    que a norteiam cabem ainda algumas informaes de cunho geral. Estruturalmente, o leitor

    encontrar uma tese dividida em trs partes. A primeira intitulada A Linguagem, composta por

    quatro captulos que buscam, atravs de reflexo sobre as obras dos lingistas Ferdinand de

    Saussure, Roman Jakobson e mile Benveniste, a construo de uma noo de linguagem que

    contemple a especificidade da clnica de linguagem. A segunda parte, intitulada O Sintoma,

    composta por dois captulos e realiza uma trajetria que parte da patologia - viso oriunda do

    campo mdico - para chegar ao sintoma viso que enfatiza aspectos da singularidade do

    funcionamento da linguagem. D-se, tambm nessa parte, destaque construo de uma noo de

    sintoma especfica clnica de linguagem. Finalmente, a terceira parte, intitulada A Clnica,

    composta por trs captulos, onde, a partir da anlise do funcionamento da linguagem de trs

    pacientes em atendimento em clnica de linguagem, apresentada uma reflexo sobre a

    particularidade da escuta do sintoma de linguagem nesta clnica.

    No decorrer das trs partes construdo o articulador terico-clnico deste trabalho. Trata-

    se do que nomeado de hiptese sobre o funcionamento da linguagem2 do sujeito com fala

    2 O termo hiptese na expresso hiptese sobre o funcionamento da linguagem no tem um sentido comprometido com quadros tericos especficos. Seu uso indica apenas que, em clnica de linguagem, falar

  • sintomtica. em torno deste construto terico que so elaboradas as concepes de linguagem e

    de sintoma prprias clnica de linguagem. A possibilidade de relacionar a hiptese sobre o

    funcionamento da linguagem com o sintoma de linguagem, tal como proposto neste trabalho,

    representa uma abordagem do paciente em clnica de linguagem que leva em considerao o

    sujeito que enuncia, do modo como possvel enunciar naquele momento. Nesse sentido, h uma

    pergunta fundamental que ancora a construo da hiptese sobre o funcionamento da

    linguagem do paciente: como X questionado na sua posio de falante?

    Os objetivos das trs partes igualmente relacionam-se entre si. A primeira parte da tese

    tem como objetivo elaborar uma noo de linguagem prpria clnica de linguagem. A segunda

    parte tem como objetivo buscar uma concepo de sintoma que seja pertinente clnica de

    linguagem. E, finalmente, a terceira parte da tese visa a destacar a necessidade de uma escuta

    original das falas sintomticas.

    A diviso da tese em trs partes no somente didtica. Ela tenta metaforizar o processo

    vivenciado no decorrer desta empreitada. Assim como entre lingstica, psicanlise e clnica de

    linguagem h um no-saber compartilhado, entre as trs partes da tese ocorre algo similar. Por

    no ser possvel uma tomada avulsa das noes de linguagem, sintoma e clnica no campo da

    clnica de linguagem, proponho um trabalho que amarre essas concepes, visto que a reflexo

    acerca de cada uma delas repercute na construo da concepo das outras duas. Essa implicao

    mtua transparece a todo o momento neste trabalho.

    sobre o funcionamento da linguagem para cada sujeito lidar com possibilidades de organizao desse funcionamento num dado momento.

  • PRIMEIRA PARTE

    A LINGUAGEM

  • INTRODUO PRIMEIRA PARTE:

    SOBRE A NECESSIDADE DE FALAR DA LINGUAGEM NA CLNICA DE

    LINGUAGEM

    Eles constituem apenas um povo e falam uma nica lngua. Se principiaram desta maneira, coisa nenhuma os

    impedir, de futuro, de realizarem todos os seus projetos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que no se

    compreendam uns aos outros. Gnesis, Antigo Testamento.

    Estudar a linguagem, independentemente do prisma adotado, tarefa complexa. Tal

    complexidade amplia-se se o ponto de vista for circunscrito ao mbito clnico. Nesse caso, a

    diversidade dos trabalhos sobre o tema linguagem e clnica , somada multiplicidade de

    abordagens do objeto relativa s disciplinas que dele se ocupam ou ao direcionamento dado ao

    estudo impem a necessidade da delimitao das especificidades desse campo.

    Nesta parte, a linguagem discutida tendo em vista a clnica de linguagem. Tomada

    isoladamente, talvez, se configure em algo insuficiente para expor tudo o que o sintagma clnica

    de linguagem encerra, mas, como ser visto, um momento necessrio. No caso desta tese

    integrante de um projeto de pesquisa que investiga a instncia do sintoma na linguagem3 essa

    discusso constitui passo fundamental.

    sabido que as diferentes clnicas que demandam estudos aprofundados da linguagem

    tm interpelado a lingstica, buscando respaldar seu fazer clnico com a linguagem em

    3 Trata-se da pesquisa Lingstica e o Sintoma de linguagem: a instncia da falha na fala, coordenado pelo Prof. Dr. Valdir do Nascimento Flores, no PPG-Letras, UFRGS.

  • substratos dessa disciplina por consider-la a mais autorizada a fornecer subsdios tericos.

    Assim, a psicologia, a psicanlise, a fonoaudiologia, a psicopedagogia, entre outras, endeream

    lingstica questes conceituais referentes aos mtodos de abordagem e s especificidades

    descritivas e/ou explicativas dos objetos que cada disciplina e cada perspectiva terica da

    lingstica instaura.

    Este trabalho faz eco a esse procedimento, mas de um ponto de vista singular, qual seja: o

    objetivo no buscar na lingstica respostas que facilitem o acesso patologia da

    linguagem, mas produzir, a partir do referencial de uma lingstica - em especial a de origem

    saussuriana4 elementos que possibilitem abordar a patologia articulada noo de sintoma

    (cf. 2 parte). Por esse vis, formular as questes que sero aqui propostas a partir da clnica de

    linguagem significa, desde o princpio, buscar uma concepo de linguagem que comporte a

    falha, que contemple aquilo que no vai bem.

    Nesse aspecto, meu trabalho, do ponto de vista clnico, caminha lado a lado ao

    pensamento de Flores (2004: 229), do ponto de vista da teoria lingstica, quando, ao situar a

    concepo de linguagem que ancora seus estudos, revela-se interessado em ... uma lingstica

    que nada mais do que um ensaio sobre a singularidade do homem na lngua [para], por ele,

    poder abordar a fala daqueles que a lingstica excluiu para se instituir.

    Conforme Flores & Surreaux (2004: 82), para que o patolgico encontre abrigo em

    alguma teoria da linguagem, necessrio proceder reconfigurao epistemolgica da lingstica

    em, no mnimo, dois aspectos: a) quanto concepo de objeto, para que a patologia possa

    integr-lo como um interrogante; b) quanto concepo de teoria, j que esse objeto passa a ser

    concebido como estruturalmente marcado por relaes que demandam um quadro terico amplo

    (como por exemplo a distino normal/patolgico). Em outras palavras, colocadas em relao,

    clnica de linguagem e lingstica implicam-se mutuamente, uma produzindo interrogantes para a

    outra.

    Como bastante difcil defender a existncia da lingstica una e indivisvel (cf. Milner,

    1987), a primeira parte desta tese objetiva, entre outras coisas, indagar a uma perspectiva da

    4 Com a expresso lingstica de origem saussuriana circunscreve-se este trabalho s teorias de Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson e mile Benveniste. Os motivos de tal escolha sero mais bem apresentados a seguir.

  • lingstica, notadamente a oriunda do pensamento de Saussure, como ela lidou com aquilo que

    falha na linguagem para, a partir disso, elaborar uma concepo de linguagem que seja prpria

    clnica de linguagem. Para tanto, essa pergunta dirigida a trs grandes lingistas do sculo

    passado: Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson e mile Benveniste.

    Nessa direo, vale alertar que, ao menos em linhas gerais, acredita-se na viabilidade

    epistemolgica de uma concepo de linguagem que atenda demanda especfica do trabalho

    com a patologia. Assim procedendo, espera-se evitar a simples aderncia ao saber da lingstica,

    o que, alm de evidenciar falta de originalidade, limita a reflexo acerca do sintoma na clnica de

    linguagem.

    O ponto de partida para a elaborao de uma noo de linguagem especfica clnica

    objetivo geral desta parte advm das indagaes originadas pela escuta que realizo na clnica e

    que so, aqui, analisadas luz da releitura feita da lingstica de linha saussuriana. A questo

    fundamental a partir da qual, a seguir, derivada uma concepo de linguagem : que lugar um

    campo terico que no prev o estudo daquilo que falha na fala a lingstica - reserva, mesmo

    no avesso de suas teorias, para o que no vai bem na fala do sujeito?

    O que chama ateno nessa pergunta o pressuposto que ela carrega, ou seja, que a

    lingstica um campo terico que no se dedicou ao estudo da patologia.

    Ora, tanto a indagao quanto o pressuposto, para mim, no so recentes. Na verdade, eles

    tm integrado desde o incio minha busca acadmica5 de reflexo acerca da linguagem e de seu

    funcionamento. Ao contrrio do que esperava, a formao no campo da lingstica no me

    proporcionou contato com a fala sintomtica; o que encontrei foram teorizaes sobre a lngua

    em diferentes perspectivas sem que nenhuma se ocupasse da singularidade daquilo que no vai

    bem no funcionamento da linguagem.

    A lingstica que encontrei na academia no contempla o sujeito que erra. Talvez a

    instncia da falha tenha sido descartada porque a configurao epistemolgica do campo da

    lingstica impe rigidez na busca pela regularidade (cf. Milner 1987, 2000). A lingstica, ao

    5 Surreaux, L.M. O discurso fonoaudiolgico: uma reflexo sobre sujeito, sentido e silncio. Porto Alegre, IL/UFRGS, 2000. Dissertao de Mestrado.

  • eleger para si o falante/ouvinte ideal, produziu um recalcamento do falante/ouvinte no-ideal6.

    Parece que a lingstica da qual a clnica de linguagem tem tradicionalmente se ocupado no

    aborda a fala que essa clnica encontra em seu dia-a-dia.

    Como adverte Lier-De Vitto (2001), a lingstica no toma para si a tarefa de estudar a

    linguagem patolgica, isto , a polaridade normal/patolgico no faz parte do programa da

    lingstica. Ou ainda, conforme destaca Flores (1999), preciso ver nas teorias lingsticas o

    lugar atribudo ao objeto de estudo, porque nesse lugar reflete-se a concepo de cincia como

    um domnio regular e contnuo, paradoxo que se instaura pelo prprio fato de supor a

    complementaridade sobre uma realidade que falha, ou seja, a lngua7. Porm, se o

    falante/ouvinte no-ideal foi recalcado pela lingstica, no parece absurdo supor seu retorno no

    interior mesmo do objeto. E se retorna porque na verdade ele sempre estava l.

    Considerado o que foi dito acima, cabe ento indagar: como pensar o funcionamento do

    no-funcionamento (ou do mal-funcionamento)? Ou, em termos lingsticos: que contribuio

    pode a lingstica dar para que o clnico de linguagem diga algo sobre a fala que, em princpio,

    est fora da ordem previsvel, que est recalcada? essa fala que, a todo o momento, espreita o

    fazer clnico.

    Conforme aponta Milner (1987), para se constituir como cincia, a lingstica precisou

    ignorar a falta constitutiva de seu objeto para prop-lo como passvel de ser apreendido numa

    suposta completude. Produziu-se, assim, com esse recalcamento, um Real8 que, na perspectiva

    desta tese, retorna sob forma de sintoma de linguagem. Se, por um lado, como ser visto adiante,

    na abordagem prevista pela lingstica para o objeto lngua no est contida a idia de falta ou de

    falha, por outro lado, pode-se dizer que ela estava ali desde o princpio, silenciada. E

    6 As expresses falante/ouvinte ideal e falante/ouvinte no-ideal no carregam especificamente uma crtica terica a Chomsky, nem um uso tcnico dos termos. antes uma forma de denominar, de um lado, a ausncia de erro no campo da lingstica e, de outro lado, a fala em sua atividade linguageira cotidiana, apresente ou no caractersticas de fala sintomtica. Ou seja, com isso quer-se dizer que, em algum momento, todos so de certa forma falantes-ouvintes no-ideais. 7 Embora seja da tradio da lingstica no abordar o patolgico da fala, tenho acompanhado um deslocamento significativo nesse campo. Nesse sentido, encontro aproximaes importantes entre o que se tem investigado na pesquisa Lingstica e o Sintoma na Linguagem: a instncia da falha na fala, coordenada pelo Prof. Dr. Valdir do Nascimento Flores, no PPG Letras/UFRGS, no qual este trabalho encontra inscrio, e o grupo de pesquisa em Aquisio e Patologia da Linguagem do LAEL-PUC/SP, orientado pela Profa. Dra. Maria Francisca Lier-De Vitto.

  • abordagem desta fala esquecida ou silenciada que a primeira parte desta tese dedicada. Em

    outras palavras, a leitura feita da lingstica, neste trabalho, singular, atende a objetivos

    especficos, no vai alm dos limites da clnica de linguagem e est restrita a uma s perspectiva

    que a do estudo do sintoma de linguagem.

    Resta falar ainda dos motivos que levaram escolha dos trs lingistas cujo conjunto

    aqui denominado de lingstica de linha saussuriana. pergunta por que Saussure?,

    inevitavelmente, respondo: por que no Saussure? Assumo a dvida com o mestre pelo simples

    fato do reconhecimento do valor de sua obra nos estudos nos quais me empenho. Concordo com

    Benveniste, ao manifestar-se nos cinqenta anos da morte de Saussure, dizendo que no h um s

    lingista que no lhe deva algo. Ou ainda, como tambm destaca Milner (1987: 32): toda

    lingstica por definio saussuriana.

    Alm da dvida de filiao, destaco um pressuposto importante derivado dos

    ensinamentos saussurianos: a noo de estrutura. A possibilidade de desenvolvimento do estudo

    estrutural da lngua, alm de ter provocado efeitos em toda uma gerao de intelectuais do campo

    das cincias humanas, propiciou um olhar sobre a lngua que leva em considerao as relaes

    imanentes do sistema, o que interessa, ao menos em parte, a este estudo.

    Por que Jakobson? Porque foi o primeiro lingista a sistematizar, de um ponto de vista

    lingstico, o sintoma, em seus artigos sobre as afasias. Soma-se a isso, a reflexo que faz sobre o

    funcionamento da linguagem a partir da fala sintomtica. Acredito ser essa uma preciosa

    contribuio clnica de linguagem .

    Por que Benveniste? Porque resgatou o lugar do sujeito na linguagem atravs do aparelho

    formal de enunciao. Benveniste buscou dar lugar ao sujeito (ou subjetividade), pois acredita

    que a linguagem na vida humana fundante: na e pela linguagem que o homem se constitui

    como sujeito (1991: 286). pelo fato de a abordagem benvenistiana ser concebida a partir de

    um lugar que considera o sujeito que fala como constitudo por essa mesma linguagem que

    acredito ser uma lingstica que interessa clnica de linguagem. Cabe destacar que no se vai

    articular os trs autores buscando uma unidade entre suas posies tericas. A tarefa ser a de

    8 A noo de real implica aqui a idia de algo que incontornvel e que, por no ser simbolizvel, retorna sob forma de um mal-estar.

  • tom-los numa relao de implicao para produzir formas de ver a linguagem na clnica de

    linguagem.

    Importa destacar que a forma como encaminho meu percurso junto aos trs autores no

    tem formato completamente original. Um outro olhar sobre o mesmo muitos j realizaram.

    Saussure j foi relido de forma instigante por Starobinsky9 (1974), Engler10 (1962), Godel11

    (1969), De Mauro12 (1967) e, mais recentemente, por Bouquet13 (1997). Benveniste foi

    resignificado nas leituras de Claudine Normand14 e Dany-Robert Dufour15, cada um de maneira

    muito prpria e original. Jakobson, por sua vez, foi relido por Haroldo de Campos16 quanto

    questo da potica e por Claudia de Lemos17 no mbito do funcionamento da linguagem

    (particularmente na infncia). De certa forma, o prprio retorno de Lacan a Freud pautado por

    esse movimento de releitura da obra de Saussure.

    Porm, trata-se, no meu caso, de um retorno muito prprio, que permite revisar os

    princpios contidos nos autores da lingstica a partir do ponto de interlocuo desde o qual a

    releitura se coloca. O que muda o prisma epistemolgico de olhar para eles.

    Meu gesto de leitura da lingstica, nesse sentido, semelhante ao de Dufour18 com

    relao a Benveniste: buscar nos autores aquilo que eles mesmos no tinham evocado, mas que

    nem por isso no estava l. Assim, s questes anteriores acrescento outra que guiar este

    9 Starobinski, Jean. As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure. So Paulo, Perspectiva, 1974 (ed. original de 1971). 10 Engler, Rudolf. Thorie et critique dun principe saussurien: larbitraire du signe. (Cahiers de F. de Saussure, n.19), Genve, Libraire Droz, 1962. 11 Godel, Robert. Les sources manuscrites du cours de linguistique generale de Ferdinand de Saussure. Genve, Libraire Droz, 1969. 12 De Mauro, Tullio. Notes. In: Saussure, F. Cours de Linguistique Gnerale. Paris, Payot e Rivages, 1967 (p. 405-77). 13 Bouquet, Simon. Introduo leitura de Saussure. So Paulo, Cultrix, 2000 (ed. original de 1997). 14 Normand, Claudine. Os termos da enunciao em Benveniste. In: O falar da linguagem. So Paulo, Ed. Lovise, 1996. 15 Dufour, Dany-Robert. Os mistrios da trindade. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2000. 16 Campos, Haroldo de. O poeta da lingstica. In: Roman Jakobson: lingstica, potica, cinema. So Paulo, Perspectiva, 1970. 17 Lemos, Claudia de. Os processos metafricos e metonmicos como mecanismos de mudana. In: Substratum, v.1, n.3. Porto Alegre, Artes Mdicas, 1998. 18 Dufour (2000) realiza leitura original da obra de Benveniste, concebendo na fundao da teoria deste autor um pensamento trinitrio que permite a releitura de seus princpios tericos. Essa tomada, muito prpria, no foi prevista por Benveniste, mas, nem por isso, inexistente em sua obra. Ou seja, a leitura de Dufour desvela um dizer que passvel de ser enunciado a partir da enunciao de Benveniste.

  • trabalho: como olhar para o que brota na fala dos pacientes atravs da releitura destes trs

    lingistas?

    Como apontei acima, outros autores j olharam para esses lingistas pelo avesso. Mas o

    avesso que reivindico o do funcionamento da fala sintomtica. Em outras palavras, se a

    lingstica, de uma maneira geral, no considerara aquilo que no vai bem na fala dos sujeitos

    isso no impede que eu pergunte: como faria isso? Na verdade, esse movimento que ora pretendo

    realizar recoloca meu olhar sobre a clnica de linguagem atravs da teorizao deles.

    Nesse sentido, importante ratificar que as questes formuladas se enunciam desde a

    clnica de linguagem. Porque, dessa posio, talvez algo possa ser dito sobre a pergunta maior

    desta tese: o que significa abordar o sintoma de linguagem na clnica de linguagem?

    Finalmente, o leitor ver, esta primeira parte da tese est estruturada em quatro captulos:

    o primeiro, que aborda Ferdinand de Saussure, versa sobre conceitos fundantes da reflexo

    saussuriana a respeito da noo de sistema o que permitir a realizao de deslocamentos

    conceituais importantes para o estudo da linguagem no mbito da fala sintomtica; o segundo,

    dedicado a Roman Jakobson, discute a posio inovadora do autor ao trabalhar com a temtica da

    fala desviante nos quadros afsicos e dos desdobramentos de sua proposta sobre o funcionamento

    da linguagem; o terceiro apresenta mile Benveniste, autor responsvel pela incluso do sujeito

    na estrutura lingstica; o quarto captulo desenvolve, a partir de relaes de implicao entre

    esses trs tericos, uma forma particular de conceber a linguagem na clnica de linguagem.

  • CAPTULO 1

    SAUSSURE, O HOMEM DOS FUNDAMENTOS

    ...toda teoria clara, quanto mais clara for, mais inexprimvel em lingstica ela se torna, porque acredito que no exista um s

    termo nesta cincia que seja fundado sobre uma idia clara... Rascunho de carta de F. de Saussure, in: Starobinski, 1974: 11

    Este captulo dedicado aos ensinamentos daquele que considerado o precursor dos

    estudos modernos acerca da linguagem: Ferdinand de Saussure. E o fato de iniciar com Saussure

    vai alm do simples reconhecimento do lugar de fundao de um campo, trata-se mesmo de uma

    filiao.

    Porm, vale advertir, o percurso feito a seguir no tem a inteno de dar conta da totalidade

    do arcabouo terico proposto por Ferdinand de Saussure. O objetivo tampouco elaborar

    resenhas, num exerccio normalmente vo de repetir leituras e apresentar conceitos. Meu

    compromisso com a obra saussuriana de outra natureza: tentarei me colocar em posio de

    revisit-la, tendo como pano de fundo a busca de uma concepo de linguagem que interesse

    clnica de linguagem, tal como a concebo. Para tanto, partirei do Curso de Lingstica Geral

    (CLG) 19 sem, com isso, desconhecer as reflexes desenvolvidas nos anagramas20 (Starobinski,

    19 Notvel empreendimento de Bally e Sechehaye que, ao compilarem as aulas de Saussure numa obra pstuma a partir de manuscritos do prprio e de alguns alunos seus, realizaram o registro de uma produo que, a partir de ento, passa a ser um marco na histria da lingstica. 20 O anagrama composto por uma palavra ou frase formada pela transposio das letras (ou fonemas) de outra palavra ou frase. Saussure realizou um estudo sigiloso nos versos saturninos da poesia latina tentando entender a

  • 1974). feita referncia tambm verso dos Escritos de Lingstica Geral, organizada por

    Simon Bouquet e Rudolf Engler (2004), edio de Godel (1969), s notas de Tullio de Mauro

    (1967) e s reflexes presentes em Bouquet (2000), em Arriv (1994, 1999), em Milner (1987,

    2000) e em Normand (1996).

    Acredito que recorrer no apenas obra cannica de Saussure permite que se abram

    possibilidades de discordncias e/ou redirecionamentos de certas temticas polmicas, o que

    enseja colocar em suspenso o hbito de reproduzir o discurso que, repetitivamente, circula em

    torno do CLG. Assim, no demais dizer, esta tese configura-se, dentre outras coisas, numa

    tentativa de dar um passo alm relativamente ao estudo recorrente da concepo de linguagem na

    teoria saussuriana. O objetivo geral aqui defender a necessidade de, mesmo no quadro sistmico

    estabelecido por Saussure no CLG, observar a lngua em seu funcionamento e, especialmente, no

    funcionamento do sintoma21.

    possvel que, a partir desse percurso, instaurem-se outras vias para o estudo do sintoma de

    linguagem22. Uma dessas, sem dvida, poder lidar com o conceito de linguagem em

    funcionamento como articulador terico na clnica de linguagem sem que, com isso, se tenha de

    abrir mo da noo de estrutura. Como ser visto, da leitura que fao de Saussure, possvel

    inferir que lngua e funcionamento, desde que se suponha sujeito que enuncia (cf. adiante), no

    esto em rota de coliso.

    Se, como diz Silveira (2003: 53), no possvel enunciar o novo sem relao com o

    pregresso, ento este captulo um exemplo contundente disso, uma vez que inicia apontando as

    questes saussurianas que sempre iluminaram minhas reflexes releituras e crticas acerca da

    clnica de linguagem. Essa passagem do pregresso ao novo condio de entendimento da

    interpretao feita da teoria saussuriana, j que esboa uma leitura possvel a que durante anos

    subsidiou meu trabalho em clnica de linguagem dos aportes saussurianos no que tange ao

    sintoma de linguagem. Em outras palavras, necessrio retomar os conceitos, o pregresso, que,

    por terem guiado meu trabalho na clnica de linguagem, desencadearam as interrogaes que

    lgica de fenmenos em que o nome da divindade a quem o poema era dedicado comparecia nos versos atravs de segmentos (slabas, consoantes, vogais) que compunham as palavras dos versos. 21 Nesse caso, ser de suma importncia investigar os processos sintagmticos e associativos como elementos estruturais de um estudo que vise lngua em movimento.

  • produziram esta tese, o novo. Ou ainda, retomando Silveira (op.cit.), passar para outro lugar

    implica sair de algum23.

    E por acreditar nas contribuies decisivas de Saussure - em especial em relao teoria

    do valor (presente no CLG) - e em relao ao que elas extrapolam da lingstica bem

    comportada - como o caso dos anagramas e de uma srie de incertezas relativas a conceitos

    tericos presentes nos manuscritos saussurianos - que atualizo nesta tese questes oriundas do

    legado saussuriano na relao com o sintoma de linguagem.24

    Enfim, a partir da releitura de Saussure, busco ancoragem para compreender - dentro

    daquilo que o autor apontou como um sistema de valores em que os signos se relacionam por

    oposio; significado e significante25 se articulam por diferena e a arbitrariedade determina

    todas as relaes - as particularidades do funcionamento do sistema no numa esfera solipsista da

    lngua, mas na realizao da fala de um sujeito de um sujeito com sofrimento no mbito da

    linguagem.

    Passa-se, pois, releitura.

    1.1 UMA HERANA REVISITADA: A LNGUA

    Como sabido, Saussure, ao realizar o gesto fundador da lingstica, exclui do objeto da

    cincia o que no regular. Nesse ponto, Milner (1987:26) enftico: para chegar a, a

    22 A leitura do sintoma no mbito da clnica de linguagem tem particularidades que sero mais bem detalhadas na 2 parte deste trabalho. 23 Ao fazer essa retomada do pregresso, tentarei no reproduzir o que Silveira (2003: 15) chama de ecos da palavra de Saussure sob a forma de um todo orgnico. A autora considera que Saussure no ultrapassvel porque ele no um a mais na lingstica. Ele quem possibilitou a existncia da lingstica tal qual ela : ignorar sua presena ignorar a condio de existncia da lingstica (op.cit.: 22). De certa forma, este trabalho participa desse gesto ao tom-lo como ponto de partida e mesmo ao estend-lo fala sintomtica no contexto da clnica de linguagem. 24 J se deve ter percebido, no se trata, evidentemente, de discordar do fato de a publicao do CLG marcar decisivamente os destinos dos estudos da linguagem. O que se questiona que, em geral, o mesmo gesto que o reconhece como fundador o reduz a um simples captulo introdutrio na histria da lingstica, engessando-o numa leitura acabada e anacrnica. Por isso, aqui, o CLG ser tomado numa relao necessria com os Anagramas e com os Escritos. 25 Significado e significante esto aqui sendo tomados no sentido cannico do CLG, ou seja, respectivamente como conceito e imagem acstica.

  • lingstica precisou ignorar a falta. Ao que acrescento: a fala sintomtica parece estar entre essas

    excluses.

    No CLG, a patologia - no caso, a afasia tal como estudada por Broca - evocada no

    captulo III da Introduo, O objeto da lingstica, apenas para confirmar o carter de

    faculdade da linguagem, sem, no entanto, constituir um objeto propriamente de interesse para a

    teoria.

    A prova de que o patolgico estaria, ao menos enquanto objeto de estudo, fora dos

    interesses de Saussure que a afasia integra o argumento que o possibilita falar de uma

    faculdade da linguagem de natureza heterclita, portanto, distante da regularidade

    pretendida. Em suma, a patologia seria a evidncia de que a linguagem como faculdade

    excederia os limites do objeto da cincia, de que se deve ... atribuir lngua o primeiro lugar no

    estudo da linguagem (CLG26, p.18), ou ainda, ...de que a faculdade natural ou no de

    articular palavras no se exerce seno com a ajuda de instrumento criado e fornecido pela

    coletividade (Idem) . A patologia estaria do lado da linguagem; o objeto da lingstica, o

    regular, do lado da lngua. Diz Saussure:

    Broca descobriu que a faculdade de falar se localiza na terceira circunvoluo frontal esquerda; tambm nisso se apoiaram alguns para atribuir linguagem um carter natural. Mas sabe-se que essa localizao foi comprovada por tudo quanto se relaciona com a linguagem, inclusive a escrita, e essas verificaes, unidas s observaes feitas sobre as diversas formas de afasia por leso desses centros de localizao, parecem indicar: 1, que as perturbaes diversas da linguagem oral esto encadeadas de muitos modos s da linguagem escrita; 2, que, em todos os casos de afasia ou de agrafia, atingida menos a faculdade de proferir estes ou aqueles sons ou de traar estes ou aqueles signos que a de evocar por um instrumento, seja qual for, os signos duma linguagem regular. Tudo isso nos leva a crer que, acima desses diversos rgos, existe uma faculdade mais geral, a que comanda os signos e que seria a faculdade lingstica por excelncia (CLG, p.18). [grifo meu]

    A partir disso, duas perspectivas, mutuamente excludentes, se colocam:

    a) a primeira ancorada numa viso ortodoxa do CLG considera que o aparato

    terico-metodolgico pensado por Saussure, na medida em que se configura numa

    teoria da lngua tida como regular, exclui definitivamente o sintoma de seu

    26 As citaes do Curso de Lingstica Geral sero grafadas pela sigla CLG e a pgina correspondente.

  • horizonte conceptual, uma vez que o sintoma estaria do lado da linguagem, tal

    como as citaes acima sugeririam;

    b) a segunda ancorada numa viso que v o CLG articulado ao restante da obra de

    Saussure e que assume, portanto, um vis menos comprometido com a regularidade

    do paradigma cientfico do incio do sculo XX considera que se poderia

    produzir, nessa articulao, algo novo para abordar a fala sintomtica.

    Evidentemente, a opo pela segunda perspectiva que conduz este captulo. Isso encontra

    justificativa nos estudos de reinterpretao da obra saussuriana que tm apontado para uma

    reviso do enquadramento bem comportado da fundao da lingstica. Tal reinterpretao

    aqui fundamental, porque dela derivam deslocamentos necessrios para o entendimento do

    sintoma como um interrogante da lingstica.

    Certamente, no mbito do pensamento de Saussure, o conceito de lngua parece ser o

    ponto de partida mais bvio na busca de uma concepo de linguagem relevante clnica de

    linguagem, j que o CLG um esforo mpar de tentativa de definio do objeto lngua. E dele

    que parto para a reviso do que chamo de enquadramento bem comportado da lingstica.

    O conceito de lngua est estreitamente ligado mxima o ponto de vista cria o objeto

    (CLG, p.15) que norteia o pensamento em lingstica estrutural do sculo XX. A noo de lngua

    como sistema ponto marcante do CLG e determinante da histria do estruturalismo. Nessa

    viso, a lngua composta de unidades que no so autnomas, j que so elementos que se

    definem pelas relaes com outros elementos do sistema.

    A lngua, concebida nesses termos, produto do mesmo gesto terico que cria a

    semiologia. No CLG (p.24), a semiologia definida como a cincia que estuda a vida dos signos

    no seio da vida social. Ora, sendo a lngua comparvel a outros sistemas e sendo todos os

    sistemas necessariamente compostos de signos, logo, a determinao da lngua como sistema

    to estruturante quanto sua relao com os signos que a compem. A esse respeito, encontra-se

    no CLG (p.24) a definio de que "a lngua um sistema de signos que exprimem idias, e

    comparvel, por isso, escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simblicos, s formas de

    polidez, aos sinais militares etc, etc.".

  • Saussure, com isso, destaca o primeiro ponto, aqui considerado essencial: a lngua ,

    dentre os sistemas, o mais importante sem que isso a prive de um trao comum aos demais.

    Ainda, de acordo com o CLG (p. 17), a lngua um produto social da faculdade da

    linguagem e um conjunto de convenes necessrias adotadas pelo corpo social para permitir o

    exerccio dessa faculdade nos indivduos. Por isso, diz-se que a lngua um todo por si e um

    princpio de classificao. No CLG, no captulo II da Primeira Parte, em que so abordadas a

    mutabilidade e imutabilidade do signo, encontra-se a formulao de que a lngua a linguagem

    menos a fala (p.92).

    Parece que a questo maior para Saussure no apenas polarizar uma dicotomia

    lngua/fala, como normalmente ensinado, mas delinear campos prprios dentro dos estudos

    lingsticos. Conforme destaca Starobinski (1974: 12), no contexto da pesquisa sobre os

    anagramas, a lngua separada do discurso uma abstrao. Se se relacionar isso noo de lngua

    do CLG, v-se que o mrito de Saussure, nesse caso, consiste exatamente em tratar esta abstrao

    como um material concreto, uma matria-prima (Starobinski, op.cit.). Eis o segundo ponto: a

    lngua tem lugar de destaque entre os fatos da linguagem.

    O terceiro ponto advm da releitura de duas dicotomias estreitamente implicadas, so

    elas: a) lngua/fala e b) lingstica da lngua/lingstica da fala.

    Quanto primeira dicotomia, tal como apresentada no CLG, seu estatuto , ainda hoje,

    polmico27. O que se percebe numa primeira visada do livro uma hierarquizao que separa

    primeiro o que social, a lngua, do que individual, a fala; segundo, o que essencial do que

    acessrio e mais ou menos acidental.

    Essa separao encontrou diferentes justificativas no sculo XX. Por exemplo, segundo

    Culler (1979: 24), - cujo enfoque mais parece guiado pela posio dos editores do livro do que

    por algo que se possa atribuir pena de Saussure - o risco que se corre ao estudar a fala (parole)

    levar os lingistas ao reino da confuso, onde pertinncia e impertinncia seriam extremamente

    27 H quem diga que no CLG h uma hierarquizao entre lngua e fala. Recorta-se a lngua como objeto de estudo da lingstica e a fala , de certo modo, descartada. Arriv (1999: 38) posiciona-se radicalmente contra esse argumento, conforme ser demonstrado adiante.

  • difceis de determinar. Talvez a crena desse autor (e de tantos outros) gire em torno do fato de

    que o mbito da lngua (langue) seja mais higienizado para o trabalho do lingista.

    O aspecto limitado da interpretao de Culler faz com que ele afirme ser a distino

    lngua/fala que possibilitou, por exemplo, a criao da fontica e da fonologia como campo de

    estudo, por excelncia, da fala. Sem dvida, no se questiona a importncia fundamental dos

    estudos em fontica e fonologia - inaugurados a partir de uma concepo estruturalista da

    linguagem no Crculo Lingstico de Praga - para o campo da lingstica. No entanto, a fala em

    Saussure no pode ser reduzida fontica e fonologia. Cabe, inclusive, questionar se os estudos

    que derivaram dessas reas trataram o sistema fonolgico de acordo com a definio de fala dada

    no CLG28.

    Quanto segunda dicotomia, ela tem lugar em importante captulo do CLG denominado

    "Lingstica da Lngua e Lingstica da Fala". O CLG , quanto a este captulo, alvo de crticas

    em funo da suposta hierarquizao entre as duas lingsticas. Veja-se passagens que ilustrariam

    tal hierarquizao:

    O estudo da linguagem comporta, portanto, duas partes: uma, essencial, tem por objeto a lngua, que social em sua essncia e independe do indivduo; esse estudo unicamente psquico; outra, secundria, tem por objeto a parte individual da linguagem... (CLG, p.27)

    Ou ainda:

    Pode-se, a rigor, conservar o nome de Lingstica para cada uma dessas duas disciplinas e falar de um Lingstica da fala. Ser, porm, necessrio no confundi-la com a Lingstica propriamente dita, aquela cujo nico objeto a lngua. (CLG, p. 28) [grifo meu]

    Ora, o ponto de vista que se quer defender aqui o de considerar ambas as dicotomias

    como distines em funo das quais Saussure circunscreve seu objeto de estudo. No parece

    haver hierarquizao ou excluso da lingstica da fala e da fala propriamente dita, o que h a

    circunscrio de um objeto.

    28 Em algumas passagens do CLG os editores tomam fala como pura sonoridade. Em outros momentos, no entanto, ela aparece como um sistema lgico-gramatical.

  • Concordo com os autores que puderam avanar relativamente a essas questes e passaram

    a tomar o sujeito como elemento constitutivo dos estudos lingsticos, o que configura a fala

    enquanto discurso, uso da lngua. Como diz Flores (1999: 13), o sujeito a tem a especificidade de

    que sua existncia est ligada existncia da lngua, fazendo, de certa forma, eco a Arriv

    (1999), quando aponta que um equvoco dizer que Saussure excluiu da lingstica o que do

    campo da fala:

    Mas nesse ponto, deve-se evitar um erro. O erro que consiste em dizer que Saussure exclui do campo da lingstica tudo o que utilizao pelo sujeito falante do cdigo da lngua. um erro freqente. (op.cit.: p.37)

    Segundo Arriv, no momento em que Saussure diferencia lingstica da lngua de

    lingstica da fala est tambm instaurando os primrdios da lingstica da enunciao sob o

    nome de lingstica da fala.

    E justamente o vis dessa releitura que permite a considerao do sujeito com fala

    sintomtica. Ao se resgatar a fala, tambm se resgata o sujeito que fala. E como tudo que do

    campo da lingstica da fala da ordem do mais ou menos acidental (CLG, p.30), tem-se aqui

    uma brecha para se levar em considerao o imprevisvel que surge na fala desviante.

    Tem-se, assim, o terceiro ponto fundamental da releitura de Saussure: se a fala est na

    lngua, a fala sintomtica tambm est. Se o sujeito est na fala, o sujeito que apresenta uma fala

    sintomtica tambm est. So derivaes de uma lgica que somente se evidencia a partir de um

    movimento que reflete sobre as implicaes (e no sobre a hierarquia) entre lngua e fala29.

    Deve-se ainda ler cuidadosamente uma importante passagem do CLG acerca de outro

    aspecto fundamental, qual seja, a diferena lngua/linguagem:

    Mas o que a lngua? Para ns, ela no se confunde com a linguagem; somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. , ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenes necessrias, adotadas pelo corpo social para permitir o exerccio dessa faculdade nos indivduos. Tomada em seu todo, a linguagem multiforme e heterclita a cavaleiro de diferentes domnios, ao mesmo tempo fsica, fisiolgica e psquica, ela pertence alm disso ao domnio individual e ao domnio social; no se deixa

    29 Nas notas de Tullio de Mauro, percebe-se que talvez a distino mais importante para Saussure no seja entre lngua e fala. Tullio de Mauro aponta que, conforme os manuscritos editados por Engler, o objetivo distinguir lngua e linguagem.

  • classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois no se sabe como inferir sua unidade. A lngua, ao contrrio, um todo por si e um princpio de classificao. Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto que no se presta a nenhuma outra classificao. (p.17) [grifo meu]

    Milner (2000:41) resume essa discusso ao lembrar que Saussure props como objeto da

    lingstica no a linguagem, mas a lngua. Segundo o autor (op.cit.:28), necessrio, no entanto,

    questionar o estatuto do termo linguagem, pois de nada serve discutir a palavra linguagem se no

    se restitui o conjunto de proposies que ela resume.

    Pode-se perceber que, para Saussure, a lngua que faz a unidade da linguagem. Esse

    parece ser um passo determinante para sistematizar o estudo que faz, j que organiza a noo de

    sistema. O conceito de lngua possibilita o acesso a uma parte desse todo heterogneo e

    multiforme que a linguagem.

    Ora, o risco para quem trabalha com a linguagem querer tomar uma parte (lngua) pelo

    todo (linguagem). E, pensando particularmente na especificidade da clnica de linguagem, lembro

    que o que est em questo o termo linguagem do sintagma, j que no se trata de uma clnica

    da lngua. A clnica de linguagem tem muito a aprender com a concepo de linguagem de

    Saussure, pois o sintoma de linguagem, assim como a prpria linguagem, um todo heterclito e

    multiforme.

    Assim, no parece absurdo entender que o termo linguagem, em Saussure, designa um

    todo heterclito que constitudo por uma regularidade, a lngua. Para meu propsito, qual seja,

    buscar na lingstica saussuriana elementos que permitam construir uma concepo de linguagem

    prpria clnica de linguagem, interessa que o termo designe algo da ordem da heterogeneidade,

    mas que nem por isso seja refratrio regularidade. Afinal, o sintoma de linguagem, nesse caso,

    poderia ser visto como duplamente constitudo pelo regular (a lngua) e pelo heterclito (a

    linguagem). Configura-se o quarto ponto da releitura feita de Saussure.

    Confirma-se, dessa forma, que a teoria saussuriana um subsdio importante para o

    estudo acerca da linguagem na clnica de linguagem. O especfico dessa clnica justamente

    abordar esse todo multiforme e heterclito tendo a noo de funcionamento da lngua como pano

  • de fundo. Partindo desse a priori pode-se observar mltiplas possibilidades de organizao do

    sistema da fala de cada paciente em tratamento. Tentar acompanhar a organizao peculiar da

    linguagem de cada sujeito em atendimento uma das tarefas mais importantes do clnico de

    linguagem. Nesse sentido, a interface com a lingstica proporciona o acesso a um aporte

    fundamental, qual seja, a linguagem em funcionamento.

    Enfim, vale um esforo de sntese da releitura que fiz, ou do que aqui denominado de

    lngua como uma herana revisitada:

    a) a lngua , dentre os sistemas, o mais importante sem que isso a prive de um trao comum

    aos demais;

    b) a lngua tem lugar de destaque entre os fatos da linguagem;

    c) as dicotomias lngua/fala e lingstica da lngua/lingstica da fala no indicam hierarquia

    valorativa, a funo que tm mais a de estabelecer um objeto de estudo a lngua

    compatvel com a exigncia epistemolgica de regularidade da poca. Esse ponto

    fundamental, pois sem a hierarquizao possvel vislumbrar a implicao entre lngua e

    fala;

    d) a relao lngua/linguagem um meio, dentre outros, que o CLG utiliza para demarcar o

    regular em relao ao heterclito, ou seja, o termo linguagem designa um todo

    heterclito que constitudo por uma regularidade, a lngua.

    Tais consideraes so relevantes para a clnica de linguagem por dois motivos: a) sem a

    hierarquia lngua/fala possvel vislumbrar na fala sintomtica elementos do sistema e, por esse

    vis, ao diluir a hierarquia, a relao regular/heterclito est contida no sintagma linguagem em

    funcionamento; b) pela implicao regular/heterclito dilui-se a oposio dentro/fora (ou

    pertinente/no pertinente), desfocando-se da dicotomia lngua/fala para dar lugar relao

    lngua/linguagem.

    Comea, enfim, ser alcanado, ao menos parcialmente, o objetivo que norteia esta

    primeira parte da tese. Em outras palavras, o conjunto das afirmaes acima permite enunciar que

    a primeira contribuio da lingstica de Saussure para a clnica de linguagem est justamente

  • na forma como, na interpretao que fao, ele concebe a linguagem: um todo heterclito que

    comporta regularidade.

    A partir dessa releitura de Saussure, o termo linguagem no sintagma clnica de linguagem

    deve ser entendido como implicao entre o regular e o heterclito o que demanda

    reconfigurao da excluso da afasia destacada anteriormente na citao feita do CLG. Isto ,

    aquilo que subverte a linguagem passaria a fazer parte de uma concepo que no considera a

    lngua como completa, una.

    Isso parece ser autorizado por Milner (1987:41-2) quando trabalha com o Um e o no-Um

    na lingstica. Contempl-los no encerrar a lngua numa viso sistmica estranha ao sujeito.

    isso que, elegantemente, Arriv (1999: 36) formula: ao todo da lngua (de Saussure), aproximar o

    no-todo da linguagem, que heterclita e multiforme - e no cabe na lngua. Atitude que, acima,

    corroborada na ntegra. Este ser o tema do prximo item: a relao do Um da lingstica ao

    no-Um aqui entendidos como o todo da lngua e o no-todo da linguagem. Isso, porm, no

    pode ser feito sem fazer intervir a psicanlise, porque dela deriva a possibilidade de releitura

    epistemolgica da lingstica pelo vis dessa relao.

    1.2 DIALOGANDO COM O NO-UM30 NA LINGSTICA

    Considerar o no-Um anunciar uma nova lingstica? dela que Milner fala ao nomear os

    captulo 3 e 5 de seu O amor da lngua de Lingstica sutil e falha e Uma lingstica desejante,

    respectivamente? Perguntas cujas respostas devero anunciar uma boa nova lingstica: o no-

    Um implica sujeito e sujeito, tal como aqui entendido, implica inconsciente.

    Como foi dito acima, o gesto fundador de Saussure elencou prioridades. Ao constituir seu

    objeto, a lingstica teve que ignorar a falta para sustentar seu discurso (Milner 1987:26). Milner

    taxativo ao apontar: Tal a primeira figura do amor da lngua: ns no a encontramos mais,

    pois ela aquilo que a lingstica e a gramtica passam seu tempo a se livrar (op.cit.:23). E a

    30 No campo da psicanlise, diz-se que o que faz Um a idia de unidade, de todo, de completude que imaginariamente produz uma identidade. O no-Um da ordem da impossibilidade, ou da interdio, dessa identidade.

  • falta da qual Milner fala do campo do inconsciente. justamente isso que a lingstica passa o

    tempo todo tentando descartar a existncia do inconsciente.

    A falta evocada pela noo de inconsciente est do lado da linguagem e por isso mesmo

    deve ser levada em conta pela clnica de linguagem. A noo de falta aqui implicada tem relao

    com aquilo que a concepo de lngua no d conta, ou seja, a incompletude fundante da

    linguagem de um sujeito da ordem do que escapa regularidade, ao controle e coerncia.

    Assim, a noo de falta nesta tese remeter sempre linguagem por sua condio de

    heterogeneidade frente a um ideal de comunicao. Assim, deve-se dar nfase, tendo em vista os

    objetivos deste captulo, s reflexes de Lacan acerca da incompletude da linguagem pelo fato de

    partirem do princpio de no-completude da lngua. Ao falar do no-Um da lngua, ele aponta o

    furo na lingstica. Lacan e Milner partilham da mesma opinio quanto necessidade de

    reconfigurao de uma lingstica desejante (cf. Lacan, 1985:136-7).

    Se a lingstica desenvolveu seu discurso em total desconsiderao do inconsciente, esse

    no foi o caminho de Milner (1987), de Arriv (1994) e de Flores (1999), entre outros31. Nesse

    sentido alio-me a eles. De certa forma, a implicao da lingstica com o inconsciente

    preconizada por Lacan (1985:68), quando diz que no h linguagem sem o homem: o signo no

    signo de alguma coisa, mas de um efeito, ou seja, do que se supe ser o funcionamento do

    significante.

    Lacan realiza uma releitura muito particular da lingstica estruturalista ao propor a idia de

    funcionamento do inconsciente moda da linguagem: se o inconsciente mesmo o que digo,

    por ser estruturado como uma linguagem, no nvel da lngua que temos que interrogar esse Um

    (Lacan, 1985:91). Uma lngua pura no existe, sempre do no-Um que se trata. nessa

    direo que aparece a conhecida formulao no h metalinguagem. Conforme lembra Lacan

    (op.cit.:160), nenhuma formalizao da lngua transmissvel sem uso da prpria lngua. Ou seja,

    no h como higienizar a linguagem j que lngua e fala andam sempre juntas. A linguagem no

    se resume lngua pura, ou fala pura. Ela lngua em uso; existe nela e, por ela, um sujeito

    enuncia (ou dois, ou mais).

    31 No se quer dizer que Milner, Arriv e Flores fazem a mesma coisa. O entre outros abre inclusive para outras possibilidades, outros autores. A idia ao cit-los tentar fazer parte de um gesto epistemolgico que, isso sim, h nos trs autores.

  • A noo de incompletude tambm interroga a suposta estabilidade do signo lingstico,

    pois a interpretao que Lacan faz do signo saussuriano vai alm da clssica inverso do

    algoritmo, em que o significante passa para o lado de cima da barra. Segundo Lacan (1985:47),

    o significado no tem nada a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura do que se ouve de

    significante. O significado no aquilo que se ouve. O que se ouve significante. O significado

    efeito do significante. Ao que vale indagar: ser que o significante em si mesmo quer dizer

    alguma coisa? Ou, formulando diferentemente: ser que o significante no quer sempre remeter a

    outra coisa? Essas indagaes reforam a tese de que a tentativa de apreenso do objeto da

    lingstica atualiza sempre essa falha.

    Lacan (op.cit.:51) recorre a James Joyce para demonstrar uma situao em que as

    formaes de linguagem podem ter efeitos inusitados, mas nem por isso menos linguageiros.

    Segundo Lacan (op.cit.), em Joyce o significante recheia o significado. Os significantes se

    embutem, se compem, se acumulam, o que produz um significado que pode parecer enigmtico.

    Essa forma peculiar de entendimento parece ter conseqncias sobre a forma de escuta da

    fala sintomtica rica nas formaes neolgicas - na clnica de linguagem. Poder lidar com um

    aparato lingstico que no se desarme frente ao imprevisvel (ou que tente submeter o irregular

    clausura do previsvel) uma sada desafiadora para a clnica de linguagem.

    Assim, partindo-se de uma viso de linguagem, produto da tomada em implicao de

    lngua/fala/linguagem, ou de um heterclito que comporta regularidade, o que de grande valor

    para a clnica de linguagem, acrescento que a interlocuo que se prope com a lingstica do

    no-Um. a partir dessa interlocuo que o clnico de linguagem est em condies de suportar

    tomar um paciente em tratamento provido de um no-saber total sobre a linguagem.

    Eis o que interessa clnica de linguagem: os pressupostos de uma lingstica que

    considere o no-Um permitem lidar com a idia de falha como constitutiva do sistema. Nesse

    sentido, recordo Milner ao afirmar que pela brecha do no-previsvel que a noo de lngua

    deve ser abalada: somente um semblante pode se prestar a isso, ela mesmo [a lngua]

  • trabalhando pelo equvoco cujo real aqui objetivado: compreende-se que seja apropriado o

    nome que Lacan forjou: alngua32 (Milner,1987:14).

    1.2.1 Lalangue redimensiona a teoria do valor

    Lacan constri o conceito de lalangue para nomear o inominvel, o no-todo da lngua,

    conforme apontado acima. E, segundo ele, atravs das formaes do inconsciente que se tem

    pistas de lalangue. Talvez por isso, Lacan tenha dito: se eu disse que a linguagem aquilo com

    que o inconsciente estruturado, mesmo porque, a linguagem, de comeo, ela no existe. A

    linguagem o que se tenta saber concernentemente funo da alngua (1985:189).

    Concordo com Silveira (2003:77) quando diz que enquanto a lngua ocupava Saussure,

    lalangue ele no a ignorava, mas no tinha para ela uma nomeao. Por um lado, ela dificultava

    seu trabalho em dizer da lngua e, por outro, movia-o a dizer mais alguma coisa sobre a lngua.

    Milner (1987:57) capta essa angstia ao apontar que a posio de Saussure frente aos

    anagramas reflete bem essa questo: o anagrama revela-se, ento, ambguo: de um lado, ele fala

    da pertena da homofonia lngua, como objeto da lingstica; mas, por outro lado, ele diz o no-

    assimilvel disto. Milner supe que Saussure lidou apenas com o lado formulvel dos

    anagramas (a anlise fonemtica da homofonia). J a instncia em que a lngua aparece em

    excesso, que transborda e torna-se incontornvel (o que da ordem de lalangue), ele no

    consegue dar conta. Talvez ali, frente a esse inominvel que o real evoca, Saussure tenha

    interrompido seus estudos sobre os anagramas. Mas talvez essa tenha sido a nica possibilidade.

    Como diz Starobinski (1974:84), Saussure leu os versos como lingista. Economista

    encontraria sistema de trocas; psicanalista, uma rede de smbolos do inconsciente. E, de minha

    parte, pergunto: como terapeuta de linguagem, o que se pode ler? Os anagramas so um bom

    exemplo do mal-estar que provoca o encontro entre o regular e o irregular. Enquanto para alguns

    a tentativa de ler a fala sintomtica como uma espcie de anagrama pode ser descabida, para

    outros e neles me incluo , essa a possibilidade de resgatar a noo de funcionamento de um

    sistema frente a uma fala que aparentemente pura irregularidade. O que o estudo dos anagramas

    32 Alngua a traduo brasileira da expresso neolgica lalangue formulada por Lacan.

  • pode ensinar clnica de linguagem justamente o fato de permitir contato com o inusitado que

    brota na linguagem e pode fazer sistema para o sujeito, diluindo a impresso de que s a

    regularidade que faz sistema. Nesse caso, a prpria noo de regular que antes fora evocada na

    relao lngua/linguagem, reconfigurada porque permite, agora, falar de um regular para o

    sujeito que enuncia.

    Aquilo que escapava ao estudo anagramtico dos versos saturninos segue pulsando nos

    desabafos de Saussure: isso que me escapa absolutamente, eu o confesso. No vejo outra coisa

    a fazer seno apresentar o enigma tal como ele se oferece (Saussure, in Starobinski, 1974:92).

    interessante o quanto no Saussure no divulgado (Saussure da noite, como diriam Gadet e

    Pechux, 1981) as dvidas e as incertezas convivem com as importantes pesquisas e reflexes do

    CLG. Em um caderno de estudos acerca dos anagramas encontra-se:

    No indispensvel, a meu ver, para admitir os fatos dos anagramas, decidir, de pronto, qual devia ser o seu objetivo ou seu papel na poesia, e creio mesmo que nos arriscaramos a nos enganar querendo, a todo preo, limit-lo, precisando-o. Uma vez a coisa instituda, podia ser compreendida e explorada em sentidos muito diferentes, de poca em poca, ou de poesia em poesia. Como para toda outra FORMA instituda e consagrada pelo tempo, sua causa original pode ser completamente diferente de sua razo aparente, mesmo quando parece dar-lhe a melhor explicao, e assim que se pode, creio, considerar o costume potico dos anagramas de maneiras diversas, sem que uma exclua a outra. (Starobinski, 1974:85)

    A investigao acerca dos anagramas permite pensar numa escapada33 de Saussure em

    relao ao funcionamento da linguagem ordinria. Starobinski (op.cit.:25) lembra que a forma

    com que Saussure se dispe a ler os versos saturninos aponta para a tomada da poesia como a

    segunda maneira de ser de um nome: variao que deixaria perceber, para um leitor perspicaz, a

    presena evidente (mas dispersa) dos fonemas condutores. Essa presena tambm destacada por

    Jakobson (1986:25) ao analisar a primeira carta de Saussure a Meillet sobre os anagramas.

    33 A anlise dos anagramas na poesia no a nica escapada de Saussure em relao ao funcionamento bem comportado da linguagem. No prprio CLG (p.18), como j apontamos, vemos uma referncia ao estudo de Broca sobre a afasia e, como bem lembra Bouquet (2000:63), Saussure chegou a empreender uma anlise da fala de uma jovem com glossolalia.

  • O CLG, se revisto a partir dos anagramas reunidos por Starobinski, refora o fato de que

    a base da tese saussuriana a teoria do valor. Parece que este tambm o ponto de vista de

    Lacan em A instncia da letra no inconsciente (1985: 479), ao apontar que a significao na

    cadeia da fala produto no s da diferena entre significante e significado, mas principalmente

    da diferena que pulsa entre os significantes.

    Na teoria saussuriana do valor, o signo no tem um a priori que o define, ele apenas

    reflete o efeito do encontro de dois fluxos (do conceito com a imagem acstica). Lacan chama

    esse encontro de ponto de estofo. H uma amarrao entre significado e significante.

    Acrescente-se a isso que a relao do signo com os outros do sistema e a relao do signo com

    ele mesmo so da mesma natureza.

    No contexto da clnica de linguagem o enunciado saussuriano A lngua um sistema de

    signos pode ser ao mesmo tempo suficiente e insuficiente. Suficiente se se levar em

    considerao que, no mbito da clnica de linguagem, lidar com essa concepo de

    funcionamento da lngua baseado na teoria do valor j possibilita um olhar atento s relaes

    internas dos elementos dentro do sistema, mesmo sendo este um sistema peculiar. Insuficiente

    porque preciso lidar no s com a lngua enquanto sistema, mas com lngua comportando a

    falha, como apontam Lier De-Vitto (2001) e Flores (2005).

    Para a concepo de clnica de linguagem que procuro direcionar nesta tese, necessrio

    contar com a linguagem em funcionamento na medida em que comporte sujeito, tempo,

    heterogeneidade, incompletude e falta. Mesmo com a presena de desvios na fala, o

    funcionamento da lngua (e da fala na lngua) precisa ser mantido34.

    Tambm sob efeito da teoria do valor, a clnica psicanaltica aponta a existncia de um

    movimento metonmico, que faz sempre um significante remeter a outro. H, nesse sentido, uma

    sobredeterminao que na verdade a marca do efeito de um significante sobre outro(s). Como

    destaca Lemos, M.T.(2002:54), esta sobredeterminao, lidando com a equivocidade, impede a

    34 Os exemplos ilustrados em minha dissertao de mestrado (Surreaux, 2000: 87 e 99) e a anlise da fala sintomtica que empreenderemos nesta tese (cf. adiante) mostram que mesmo em uma fala com alteraes h uma lgica que rege a relao dos signos dentro do sistema.

  • tomada da lngua como cdigo, como Um. Seu funcionamento aponta sempre para combinaes

    imprevisveis35.

    Isso posto, tempo de enunciar a segunda contribuio da lingstica de Saussure para a

    clnica de linguagem, a exemplo do que foi feito no item 1.1. Ela diz respeito ao valor e pode

    assim ser sintetizada: em clnica de linguagem no se trata de lidar com determinaes

    previsveis de um cdigo em mal-funcionamento, mas com a atividade de linguagem de um

    sujeito que realiza combinaes que surpreendem a lgica da fala cotidiana. E como o valor de

    qualquer termo est determinado por aquilo que o rodeia, tambm na fala sintomtica so

    distintos os efeitos de sentido que carregam os termos em cada situao. Percebe-se a que no h

    idias fixadas de antemo, mas valores que emanam do sistema.

    Resta ainda entender a forma como os valores emanam do sistema.

    1.2.2 O sistema comporta um funcionamento irregular?

    Ao tratar da relao dos signos dentro do sistema, Saussure aborda, via teoria do valor,

    duas formas de funcionamento da lngua. A primeira a forma com que as palavras podem se

    associar, ocorre in absentia, numa srie mnemnica virtual. So as chamadas relaes

    associativas. Nesse eixo, podem ocorrer relaes diversas entre significados ou entre

    significantes: uma palavra qualquer pode sempre evocar tudo quanto seja suscetvel de ser-

    lhe associado de uma maneira ou de outra (CLG, p.146). nesse sentido que vale a metfora

    saussuriana da constelao, na qual um termo dado como centro de uma constelao, ponto

    para onde convergem outros termos coordenados numa rede associativa indefinida no a

    priori.

    Essa imprevisibilidade das associaes particularmente interessante para a reflexo

    sobre o funcionamento lingstico da fala sintomtica, porque parece ser tarefa do clnico

    analisar a particularidade dessas relaes da constelao na organizao da fala de cada

    paciente.

    35 Isso leva a realizar uma aproximao do sintoma de linguagem s formaes do inconsciente. Essa aproximao ser contemplada na segunda parte desta tese.

  • A outra forma de associao se d in praesentia. So as chamadas relaes

    sintagmticas36 e se do atravs do encadeamento de termos. De acordo com a teoria

    saussuriana, colocado num sintagma, um termo s adquire valor porque se ope ao que o

    precede ou ao que o segue, ou a ambos (CLG, p.142).

    A articulao dos dois eixos (associativo e sintagmtico) possibilita ver o mecanismo

    de funcionamento da lngua. Entre os agrupamentos sintticos h um vnculo de

    interdependncia (o que precede e o que sucede). Mas a coordenao no espao (virtual)

    que contribui (e condiciona) para criar coordenaes associativas e estas, conseqentemente,

    so necessrias para anlise das partes do sintagma. justamente dessa articulao entre eixo

    sintagmtico e eixo associativo que emana a noo de valor lingstico. Eis a base fundante

    do funcionamento da lngua em Saussure.

    Essa concepo de funcionamento da lngua um ponto de partida importante para

    uma noo de linguagem na clnica de linguagem, porm, no suficiente.

    Conforme destacado no decorrer do captulo, falta concepo de lngua de Saussure

    a idia de falha como constitutiva da estrutura. O atravessamento da psicanlise,

    particularmente com as noes de lalangue e no-todo, uma forma que autores como

    Milner, Arriv e Flores, cada um a seu modo, encontraram para sustentar o discurso da

    lingstica em uma concepo que suporta a idia de falta. Para tanto apoiaram-se nos

    estudos de outros lingistas (como Godel, De Mauro, Starobinski, Engler e Bouquet) que

    tiveram a coragem de abalar a completude do CLG e assim recontextualizar o conjunto da

    obra saussuriana.

    Nesse sentido, torna-se epistemologicamente semelhante a busca aqui empreendida,

    qual seja: o resgate do funcionamento do sistema lingstico em relaes in absentia e in

    praesentia e o questionamento quanto pertinncia dessa reflexo para a clnica de

    linguagem. Ora, se o que os autores supra citados demonstram que a regularidade do

    sistema no era garantida j desde os tempos de Saussure na Universidade de Genebra e

    fazem isso localizando no interior da teoria saussuriana aquilo que a subverte no campo da

    36 De acordo com o CLG (p.143-4), a noo de sintagma no se aplica s s palavras, mas aos grupos de palavras, s unidades complexas de toda dimenso e de toda espcie (palavras compostas, derivadas, membros

  • regularidade por que no se poderia indagar sobre esse mesmo funcionamento referido

    fala que traz tona, desde sempre, o irregular, a fala sintomtica?

    , ento, pelo mesmo rasgo que escapam a poesia, o verso saturnino que Saussure

    estudou, o anagrama, o lapso, o chiste que eu escapo da lingstica bem-comportada do

    CLG. porque a fala que surge na clnica de linguagem esburaca o a priori dado pela lngua

    no encontro marcado entre significante e significado. moda dos anagramas, na clnica de

    linguagem, somos surpreendidos por uma fala que no responde pontualmente a um

    funcionamento cotidiano, mas que tem uma lgica que se apresenta como enigma. Ao estilo

    de Joyce, os pacientes subvertem com suas falas a homogeneidade linear do recorte das

    unidades. Como num sonho ou num lapso, os elementos se relacionam de forma to

    imprevisvel que, muitas vezes, as relaes sintagmticas e associativas apresentam-se

    reordenadas por uma lgica de difcil compreenso. como terapeuta de linguagem (atenta

    fala que foge da regra) e herdeira de Saussure que sigo em busca daquilo que o mestre

    aparentemente no deu conta em suas formulaes tericas.

    1.3 EFEITOS DE UMA HERANA

    Estou em busca de uma concepo de linguagem que interesse clnica de linguagem.

    Porm, vale lembrar, parto da idia de que essa uma concepo especfica que deve ser

    construda. Por tratar-se de um princpio bsico da clnica de linguagem, seria iluso ou

    equvoco imagin-lo formulado por algum lingista.

    Nesse sentido, interessa da obra de Saussure o conceito de lngua, de onde vem a noo

    de sistema. tambm de Saussure a relao da lngua, que da ordem da regularidade, com a

    linguagem, que de natureza heterclita e multiforme. Tomo-as lngua e linguagem numa

    implicao mtua cujo efeito a suposio de uma unidade entre os dois campos. Tal

    unidade no se configura nem em soma, nem em justaposio de contedos. No de uma

    articulao lngua/ linguagem na clnica que se est a falar, mas de pura implicao, ou seja,

    do fato incontornvel de que a definio de uma contm a presena da outra e que, juntas,

    de frase, frases inteiras).

  • designam um terceiro: a lngua constitutivamente falha. Essa abordagem permite dar conta

    de um enfoque clnico que analisa a fala sintomtica pela via do que da ordem de um

    sistema repleto de particularidades, nitidamente heterogneo. Mantm-se a perspectiva de

    sistema, mas subsidiando a fala desviante.

    Dessa forma, pode-se relativizar a excluso atribuda lingstica saussuriana em

    relao fala e, particularmente no escopo desta tese, fala sintomtica. Redimensionando o

    conceito de lngua com as releituras crticas da prpria lingstica contempornea e da

    particular tomada feita por Lacan, a idia de falha como constitutiva da lngua permite incluir

    nessa perspectiva de incompletude a considerao da fala desviante.

    Indaguei anteriormente sobre a pertinncia de se estudar a fala sintomtica via

    deslocamentos dos referenciais cientficos do incio do sculo XX. A resposta afirmativa.

    Evidenciou-se que partindo de uma noo de linguagem que considere o heterclito e de uma

    perspectiva de lngua que suporte o no-Um, est dado o primeiro passo rumo a essa

    reconfigurao. Tem-se ento uma noo de linguagem que suporta a irregularidade e que

    permite analogias com o sistema da lngua estruturalmente fundado pela falta.

    disso que a clnica de linguagem necessita em sua relao com a releitura da

    lingstica saussuriana: alicerar a reflexo sobre a prtica em uma concepo de linguagem

    que comporte a falta. E como poderia ser diferente? Por isso, esse trabalho