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PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA
1. Introdução
O Código Civil, em seu artigo 1.361, define como fiduciária a propriedade
resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere
ao credor. Na definição de Caio Mário da Silva Pereira, pode ser conceituada como “a
transferência, ao credor, do domínio e posse indireta de uma coisa, independentemente
de sua tradição efetiva, em garantia do pagamento de obrigação a que acede,
resolvendo-se o direito do adquirente com a solução da dívida garantida”1.
A doutrina aponta que o instituto tem origem no direito romano, do qual se
extraem duas modalidades de fidúcia: fiducia cum amico e fiducia cum creditre2.
A finalidade da fiducia cum amico era a transferência da propriedade para
um “amigo”, que deveria proteger o bem por determinado tempo. Ao final do prazo,
passada a necessidade da transferência, o bem deveria ser restituído ao proprietário
originário. Nota-se, assim, que a confiança era a essência dessa modalidade.
Na fiducia cum creditore, o devedor, para garantir determinada dívida,
transferia ao credor a propriedade de um bem; o credor, por sua vez, se obrigava a
restituir a propriedade ao fiduciante após o cumprimento da obrigação garantida.
No direito brasileiro a propriedade fiduciária foi inicialmente regulada pela
Lei do Mercado de Capitais (Lei nº 4.728/65). Posteriormente o Decreto-lei 911/69,
modificando o artigo 66 da Lei nº 4.728/65, passou a disciplinar a matéria.
O Código Civil de 2002, nos seus artigos 1.361 a 1368, passou a tratar do
instituto com relação a coisa móvel infungível, mantendo, contudo, a plena vigência das
leis especiais que regulam as demais espécies de propriedade fiduciária, conforme
1 Instituições de direito civil. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 426.2 Melhim Name Chalhub afirma que “a fidúcia tem origem mais remota no direito romano, com a concepção de venda fictícia, ou provisória: era a convenção pela qual uma das partes (o fiduciário), tendo recebido de outra (o fiduciante) a propriedade sobre uma coisa, obrigava-se a restituí-la uma vez alcançado determinado fim, estipulado em pacto adjeto (pactum fiduciae)” (Negócio Fiduciário. 4a ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 10).
expressamente prevê ao artigo 1.368-A, acrescentado pela Lei nº 10.931/04. Oportuno
destacar o Código Civil regula a alienação fiduciária de bens móveis infungíveis quando
não se tratar o fiduciário de instituição financeira, pois nessa última hipótese a matéria é
regulada pelo artigo 66-B da Lei 4.728/65, acrescentado pela Lei 10.931/04, e pelo
Decreto 911/69, ressaltando que esses diplomas tratam também da hipótese de
propriedade fiduciária de coisa móvel fungível.
Oportuno mencionar que, a despeito do nome do instituto, a alienação
fiduciária prevista em nosso ordenamento não está ligada propriamente à ideia de
confiança (fidúcia), na medida em que a transferência do domínio tem o propósito
explícito de garantia, e o negócio se resolve de forma automática e irreversível com o
adimplemento da obrigação, ocasião a partir da qual o fiduciante passará a deter a
propriedade plena do bem.
Francisco Eduardo Loureiro chama a atenção para a distinção entre a
alienação fiduciária e o contrato que serve de título para a constituição da propriedade
fiduciária, e esclarece que “a alienação fiduciária é o negócio jurídico, enquanto a
propriedade fiduciária é o direito real com escopo de garantia”3.
A partir da definição do Código Civil já se pode perceber que na alienação
fiduciária o credor (fiduciário) adquire uma propriedade resolúvel, enquanto o devedor
(fiduciante) – que detém a posse direta – torna-se proprietário sob condição suspensiva.
Com relação aos imóveis, tendo ou não como contratante instituição
financeira, a alienação fiduciária é regulada pela Lei 9.514/97, que com as modificações
da Lei 10.931/04, trata também da titularidade fiduciária de créditos com base em
operações de securitização de dívidas do Sistema Financeiro Imobiliário.
Quanto aos requisitos da constituição da propriedade fiduciária, em linhas
gerais devem ser observadas as regras exigidas para qualquer negócio jurídico.
3 PELUSO, Cesar (coordenador). Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 2ª ed. – Barueri, SP: Manole, 2008, p. 1363.
O contrato, que pode ser feito por instrumento público ou particular - de
acordo com o disposto no artigo 1.362 do Código Civil -, deverá conter o valor da
dívida ou sua estimativa, o prazo de pagamento, a taxa de juros quando houver e a
descrição da coisa objeto da transferência. Essa última exigência decorre da própria
característica do negócio, pois sendo a coisa infungível a garantia da dívida, deve estar
perfeitamente identificada para permitir a busca e apreensão pelo credor no caso de
inadimplemento.
O fiduciante, por ter a posse direta do bem e o direito de utilizá-la, torna-se
espécie de depositário da coisa, e consequentemente se obriga a conservá-la, sob pena
de responder pelos danos que eventualmente venha a sofrer.
Ressalte-se que na hipótese da propriedade fiduciária, não obstante o
devedor não detenha o domínio, por ter a posse direta, responde pelo eventual
perecimento do bem, não se aplicando no caso a regra geral res perit domino. Logo, no
caso de perecimento, o devedor não se desonera do pagamento da dívida.
Ainda sobre esse ponto, oportuno ressaltar que, caso o bem não seja ao final
entregue ao credor na hipótese de inadimplemento, muito embora tenha o artigo 1.363
do Código Civil aparentemente equiparado o devedor ao depositário, não se há de
cogitar de prisão civil, nos termos da Súmula Vinculante nº 25, que dispõe: É ilícita a
prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito. A
questão será aprofundada em tópico específico a seguir.
E se por um lado o adimplemento da obrigação restabelece automaticamente
o domínio do bem ao fiduciante, o inadimplemento cria para o fiduciário a obrigação de
vender a coisa, vedando a lei que se aproprie do objeto da propriedade fiduciária (pacto
comissório).
A princípio não se exige nenhuma formalidade para a venda do bem,
cabendo exclusivamente ao fiduciário promovê-la segundo seus critérios, judicial ou
extrajudicialmente, com ou sem avaliação prévia, e obviamente independentemente da
vontade do devedor, seja porque a propriedade é do credor, seja porque a lei lhe obriga a
assim proceder. Apesar disso, nada impede que o contrato disponha de critérios para a
venda no caso de inadimplemento, procedimento que é inclusive recomendável para
evitar questionamentos futuros.
Após realizada a venda do bem, o produto será utilizado para pagamento do
crédito do fiduciário, cabendo ao fiduciante eventual valor remanescente. E se o valor
da venda não for suficiente para o pagamento da dívida, permanecerá o devedor
obrigado pelo restante.
2. Características específicas
Destacam-se como características marcantes da propriedade fiduciária o
desdobramento da posse, a propriedade resolúvel e o patrimônio de afetação.
Com mencionado na introdução, na propriedade fiduciária há uma
transferência de domínio do bem para o credor fiduciário, que fica com a posse indireta,
enquanto o devedor fiduciante detém a posse direta.
Destarte, ambos são possuidores, e nessa condição legitimados à defesa da
posse contra eventuais intervenções de terceiros, ou mesmo em relação à eles próprios,
ou seja, o fiduciante contra o fiduciário e vice-versa.
A propriedade resolúvel traduz a essência desta modalidade de garantia, na
qual o devedor tem um direito potestativo de retomar o domínio da coisa alienada a
partir do implemento da condição suspensiva. Por outro lado, o credor tem uma garantia
resolúvel, já que a propriedade que detém está sujeita a um evento futuro e incerto
(quitação), que uma vez verificado gera a transferência do domínio ao devedor.
A esse respeito, esclarece Caio Mario que essa espécie de negócio jurídico
está “subordinado a uma condição resolutiva, porque a propriedade fiduciária cessa em
favor do alienante, uma vez verificado o implemento da condição resolutiva, não exige
nova declaração de vontade do adquirente ou do alienante, nem requer a realização de
qualquer novo ato. O alienante, que transferiu fiduciariamente a propriedade, readquire-
a pelo só pagamento da dívida”4.
Orlando Gomes, ao tratar das características dessa transferência, esclarece
que “na transmissão fiduciária o transmitente não aliena plena e definitivamente a
propriedade. Transfere-a até que seja paga a dívida contraída no contrato e
financiamento. Transmite-a para garanti-la. Não é, portanto, a propriedade plena que
aliena, mas propriedade limitada. Consiste a limitação, primeiramente, numa restrição
temporal. O fiduciário não adquire senão uma propriedade temporária, sujeita a
condição resolutiva. Tem, em suma, propriedade restrita e resolúvel”5.
A propriedade fiduciária constitui um patrimônio de afetação em razão de
não estar investida do direito de usar e dispor, já que o credor tem apenas a posse
indireta; nada mais. O devedor fiduciante, por sua vez, pode usar e gozar da coisa, mas
igualmente não pode dispor sem o consentimento do credor.
Note-se que a situação cria uma propriedade sui generis, pois nenhuma das
partes envolvidas no negócio jurídico tem a propriedade plena, o que caracteriza o
patrimônio de afetação, no qual o bem objeto da garantia fica num limbo até a quitação
da dívida, ocasião em que o domínio será revertido ao devedor fiduciante, ou até que se
caracterize o inadimplemento, com a consequente consolidação da propriedade em
favor do credor.
Questão interessante que decorre dessa afetação é a consequência da
eventual falência do credor fiduciário, hipótese em que o fiduciante não terá mero
direito de crédito contra a massa, mas, sim, poderá exigir a restituição da propriedade
plena uma vez quitada a sua obrigação.
Quanto à classificação, o contrato que constitui a propriedade fiduciária é
bilateral (por gerar obrigação para as duas partes envolvidas); oneroso (uma vez que
ambos os contraentes obtêm proveito); acessório (já que sua existência está subordinada
4 Op. cit., p. 426.5 Alienação fiduciária em garantia. 2ª ed. – São Paulo: RT, 1971, p. 75.
à obrigação principal); e formal (pois a sua constituição exige a forma escrita, seja por
instrumento público ou particular).
3. Obrigações e direitos do fiduciante (alienante) e do fiduciário (adquirente)
Como já mencionado, sendo o contrato de alienação fiduciária bilateral e
oneroso, gera para os contratantes obrigações e direitos recíprocos.
Uma vez instituída a propriedade ficuciária, o principal dever do fiduciante
é o pagamento da dívida exatamente na forma e prazo contratados, sob pena de ter que
se sujeitar à execução da garantia.
O alienante, apesar da transferência do domínio ao adquirente, conserva a
posse direta do bem, e consequentemente o direito de uso e gozo, mas não o de
disposição, já que proprietário não é enquanto perdurar a alienação fiduciária.
Ao mesmo tempo, tem o fiduciante o dever, na qualidade de depositário, de
zelar pela conservação do bem alienado e entrega-lo ao fiduciário no caso de
inadimplemento.
Como já mencionado, a questão da possibilidade de prisão do fiduciante
suscitou controvérsias na doutrina e jurisprudência, até que em 2008 o Supremo
Tribunal Federal, alterando entendimento até então dominante, decidiu que não se
aplicaria tal pena no caso do depositário infiel.
O acórdão do RE 466.343, de relatoria do então Ministro Cezar Peluso,
inicialmente distingue o contrato de alienação fiduciária do contrato típico de depósito,
e apresenta como fundamentos principais para rechaçar a prisão na hipótese a
desproporção da medida em relação à obrigação, e a vedação da prisão por dívida
prevista no Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.
A decisão, muito embora incongruente com as previsões legais,
notadamente com o disposto nos artigos 5º, LXVII, da Constituição Federal e 1.363 do
Código Civil, é acertada na sua concepção.
Isso porque o contrato de alienação fiduciária de fato tem natureza distinta
do contrato de depósito, e como tal não deve ser equiparado.
Como expressa a doutrina, a propriedade fiduciária tem origem no direito
romano, no qual existia o contrato de fidúcia, cuja essência de fato estava ligada à
confiança das partes.
E igualmente no depósito o elemento confiança é indispensável, na medida
em que a finalidade desse tipo de contrato reside na obrigação de restituir a coisa ao
final. Logo, o dever de restituir é a própria causa do contrato de depósito, valendo
ressaltar que nesse caso não há transferência do domínio, mas apenas da posse.
Na propriedade fiduciária, apesar do nome, a confiança não é da essência do
negócio, pois a lei prevê consequência para o adimplemento regular (propriedade
resolúvel), bem como para a hipótese de inadimplemento (consolidação da propriedade
na pessoa do credor). E a finalidade do contrato não é a transferência da propriedade,
que só existe para garantir a real causa, que é a concessão de crédito.
O Ministro Cesar Peluso, no acórdão citado, menciona que além da
diferença em relação à transmissão do domínio – que ocorre com a alienação fiduciária,
mas não com o depósito – afirma que “não há parentesco, nem similaridade quanto às
posses, visto que o depósito supõe a entrega efetiva do bem depositário, enquanto, na
alienação em garantia, tal entrega só pode imaginar-se mediante artifício montado a
partir da suposição de que o fiduciário, que recebe a posse por ficção jurídica (constituto
possessório ou traditio ficta), possa tê-la entregue, na modalidade indireta, ao fiduciante
– o que não corresponde à realidade, pela razão óbvia de que nunca a teve antes disso,
pois recebe apenas a indireta, ficando a direta com o fiduciante”.
E se é assim, de fato não haveria de se falar em “restituição”, pois não se
pode restituir (devolver) o que não se havia entregado.
Porém, mesmo após a definição da questão pela Suprema Corte, há na
doutrina vozes dissonantes.
Carlos Alberto Dabus Maluf sustenta, com propriedade, que “o art. 1.363 do
Código Civil não deixa qualquer dúvida a respeito da matéria, tendo em vista que,
literalmente, equipara o devedor fiduciante à condição de depositário. Por esse motivo,
poderá enquadrar-se perfeitamente na figura do ‘depositário infiel’, hipótese em que
arcará com todas as consequências decorrentes, inclusive a prisão civil”6.
Como já mencionado, de fato a partir de uma análise restrita à letra da lei
não há dúvida de que a prisão tem cabimento na hipótese.
Porém, uma interpretação sistemática leva à conclusão de que de fato a
própria Constituição Federal, no seu artigo 5º, parágrafo terceiro, com a redação da EC
45/04, prevê que os tratados e convenções internacionais serão equivalentes às emendas
constitucionais.
Logo, não se pode ignorar a força do Pacto de São José da Costa Rica, que
veda a prisão da hipótese.
Além disso, o próprio Código de Processo Civil de 2015 não repetiu a regra
do artigo 904 do Código Revogado. E apesar disso, prevê medidas que dão efetividade à
tutela reperseicutória, como v.g. o disposto no artigo 311, III, do CPC/15.
Destarte, as regras constitucionais e a legislação ordinária parecem caminhar
no sentido contrário à ideia de prisão civil por dívida, sem, contudo, deixar o credor ao
desamparo, o que faz concluir que a incongruência não está propriamente na Súmula
Vinculante nº 25, mas, sim, nas previsões legais que mantêm esse tipo de pena na
hipótese em comento.
6 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, vol. 3: direito das coisas / Washington de Barros Monteiro, Carlos Alberto Dabus Maluf – 44 ed. – São Paulo: Saraiva, 2015, p. 361.
Ainda em relação aos deveres e obrigações das partes na alienação
fiduciária, temos que quanto ao alienante a primeira e principal obrigação é o
fornecimento do crédito ao fiduciante.
Além disso, considerando que detém apenas a posse indireta, o adquirente
deve respeitar o regular uso do bem pelo alienante, sem prejuízo de fiscalizar a qualquer
tempo essa utilização para certificar o estado da garantia.
No caso de inadimplemento, o fiduciário, antes de promover a busca e
apreensão para a venda do bem dado em garantia, deve intimar o devedor, que por sua
vez, se tiver pago mais de 40% do valor, terá o direito de purgar a mora.
Se a execução for levada a termo com a consumação da venda, havendo
saldo remanescente, o fiduciário tem obrigação de entregá-lo ao fiduciante.
A venda do bem constitui um dever do fiduciário no caso da consolidação
da propriedade fiduciária em seu favor, pois a lei veda que conserve para si a garantia
(artigo 1.365 do Código Civil).
Ao mesmo tempo, porém, a própria lei relativiza tal proibição ao permitir
que, após vencimento da dívida, o devedor, com a anuência do credor, dê em pagamento
o seu direito eventual à coisa, e com isso o fiduciário será imitido na posse direta do
bem, sem a obrigação de vendê-lo a terceiro (parágrafo único do artigo 1.365 do Código
Civil).
Parte da doutrina tece críticas a essa vedação de conservação do bem nas
mãos do ficuciário no caso de inadimplemento.
Isso porque, na alienação fiduciária, ao contrário do que ocorre por exemplo
na hipoteca, o credor já detém o domínio do bem. Além disso, a possibilidade de venda
extrajudicial pode gerar situações inusitadas, tais como a pretensão reparatória do
devedor sob alegação de que a alienação a terceiro se deu por preço vil. E pode ser que
o fiduciário, por alguma razão, simplesmente não consiga vender o bem, situação que a
lei não prevê solução.
Portanto, talvez fosse mesmo o caso de se permitir em determinadas
hipóteses que, no caso de inadimplemento, pudesse o credor conservar para si a
garantia, até porque para o devedor já existem instrumentos suficientes que impedem
abusos na execução por parte do credor.
No caso de adimplemento regular da obrigação, deve o fiduciário restituir a
propriedade ao fiduciante, o que se consuma com a averbação da quitação onde foi
registrada a alienação.
4. Da alienação fiduciária de bem imóvel
A lei 9.514/97, que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário
(SFI), instituiu a alienação fiduciária de bens imóveis.
A estrutura do Sistema de Financiamento Imobiliário está relacionada a uma
operação complexa de financiamento imobiliário que envolve diversos agentes, como o
financiador, a securitizadora, o investidor, o vendedor, o comprador, o registrador, entre
outros.
O propósito da criação do SFI foi o fomento de crédito para estimular a
construção civil, com recursos advindos do mercado de capitais por meio de
investidores em títulos denominados Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs).
O CRI, na definição legal, consiste em título de crédito nominativo, de livre
negociação, lastreado em créditos imobiliários, e constitui promessa de pagamento em
dinheiro, sendo de emissão exclusiva das companhias securitizadoras.
Na securitização o que ocorre é a aquisição de créditos imobiliários, que são
representáveis por títulos mobiliários comercializáveis no mercado de capitais.
A securitização permite uma fonte alternativa de recursos, cujas facilidades
de operação e garantias permitem a redução de custos de financiamento e,
consequentemente, dos bens envolvidos.
“Do ponto de vista do mercado, em geral, o processo de securitização
propicia a intensificação da concorrência, podendo com isso contribuir para a redução
dos custos dos imóveis, e, além disso, transfere o financiamento imobiliário do mercado
financeiro para o mercado de capitais, com o que afasta os problemas decorrentes de
eventuais descompassos entre ativos e passivos do setor”7.
O artigo 22, da Lei 9.514/97, conceitua a alienação fiduciária como sendo
“o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia,
contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa
imóvel”.
A alienação fiduciária de imóvel, nos termos do §1º, do artigo 22 (com a
redação da lei nº 11.481/07), pode ser contratada por pessoa física ou jurídica, não
estando limitada às entidades que operam no SFI.
Também no caso dos imóveis, a constituição da propriedade fiduciária gera
o desdobramento da posse, ficando o fiduciante como possuidor direto, e o fiduciário
como possuidor indireto.
O contrato de alienação fiduciária precisa ser levado a registro no respectivo
Cartório de Registro Imobiliário para constituir a propriedade fiduciária - direito real de
garantia -, e deve conter: I - o valor do principal da dívida; II - o prazo e as condições
de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário; III - a taxa de juros e os
encargos incidentes; IV - a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a
descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de
aquisição; V - a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre
utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária; VI - a
indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios
para a respectiva revisão; VII - a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata
o artigo 27 (cf. art. 24 da Lei 9.514/97).
Com o adimplemento da dívida pelo fiduciante, resolve-se a propriedade
fiduciária, que será cancelada por meio da averbação no Registro de Imóveis do termo
de quitação, que deverá ser fornecido pelo fiduciário no prazo de trinta dias.
7 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio Fiduciário. 4a ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 371.
Uma diferença inicial que se pode apontar entre as modalidades tradicionais
de garantia real é que, na propriedade fidudiária, a garantia se dá sobre bem próprio,
enquanto nas demais em regra sob bem alheio.
A primeira vantagem desse instituto reside exatamente nessa situação, pois a
partir do momento que a garantia deixa de integrar o patrimônio do devedor, não pode
ser alcançada por outros eventuais credores.
Portanto, além da morosidade na execução de outras garantias, como a
hipoteca, há a possibilidade de o credor ser preterido por outros credores preferenciais,
o que não ocorre no caso da alienação fiduciária.
Ainda em relação a essa situação, importante observar que a despeito de não
ser possível o alcance do patrimônio de afetação, permite-se que credores do fiduciário
penhorem o crédito com garantia real decorrente da alienação fiduciária; bem como que
os credores do devedor alcancem o seu direito expectativo da propriedade fiduciária.
No caso de inadimplemento total ou parcial da dívida, competirá ao
fiduciário constituir o devedor em mora por meio de notificação, com prazo de quinze
dias para satisfazer a prestação vencida e as que se vencerem até o pagamento,
devidamente acrescida dos encargos legais e contratuais. Tal notificação se faz por meio
do próprio Oficial de Registro ou por carta com aviso de recebimento, podendo se
efetivar na pessoa do devedor, de seu representante legal ou procurador, e
eventualmente, na impossibilidade de localização dessas pessoas, por meio de edital.
Note-se que a lei não estabelece o prazo para que se faça tal notificação, e
por isso tal disposição deve constar expressamente no contrato, muito embora tal
previsão não integre o rol de requisitos do aludido artigo 248.
Se o devedor não purgar a mora no prazo fixado na notificação, o Oficial de
Registro certificará o fato e promoverá a averbação na matrícula do imóvel, e com a
8 v. §2º, do art. 26, da Lei 9.514/97.
prova da quitação do imposto de transmissão, consolidará a propriedade em nome do
fiduciário.
A partir de então o credor é obrigado a executar a garantia, que é feita de
forma extrajudicial. Não há possibilidade de nenhum outro procedimento de cobrança
da dívida. Isso porque, na hipótese em estudo, o devedor tem o débito, mas não a
responsabilidade, que recai sobre o patrimônio de afetação. E essa estrutura se dá
também em benefício do devedor, porque especificamente na alienação de bens
imóveis, se o patrimônio de afetação não for suficiente para quitação da dívida, o credor
terá que conferir a quitação.
Assim, nos termos do artigo 27 da lei 9.514/97, no prazo de trinta dias
contados da consolidação da propriedade, deverá o credor promover a realização de
leilão público para a alienação do imóvel.
No primeiro leilão, se o maior lance ofertado tiver valor inferior ao valor do
imóvel, será realizado um segundo leilão, no qual será aceito o maior lance oferecido,
desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos
encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais.
Com a alienação do imóvel e uma vez quitadas as pendências, o valor que
sobejar será restituído ao devedor.
E se no segundo leilão o maior lance oferecido não atingir o valor da dívida
e demais despesas, considerar-se-á extinta a dívida, devendo o credor conferir quitação
expressa ao devedor.
Note-se, assim, que nessa segunda hipótese o imóvel acabará
definitivamente nas mãos do credor; e até que seja imitido na posse, as dívidas que
recaiam sobre o imóvel serão de responsabilidade do fiduciante.
O Superior Tribunal de Justiça já manifestou entendimento no sentido da
possibilidade de purgação da mora após a consolidação da propriedade9, sob a alegação
de que “o contrato não se extingue por força da consolidação da propriedade em nome
do credor fiduciário, mas, sim, pela alienação em leilão público do bem objeto da
alienação fiduciária, após a lavratura do auto de arrematação”.
Contudo, tal hipótese, além de afrontar diretamente o artigo 26 da Lei
9.514/97, é de difícil aplicação prática.
Isso porque, entre outras implicações, a consolidação da propriedade se dá
com o pagamento do imposto e averbação na matrícula do imóvel, atos que não podem
ser simplesmente desfeitos. O eventual cancelamento da averbação e a restituição do
imposto por certo demandariam medida judicial. E mesmo nesse caso não se vislumbra
fundamento legal capaz de legitimar a convalescença do contrato.
Portanto, uma vez esgotado o prazo para a purgação da mora e efetivada a
consolidação da propriedade nas mãos do credor, parece não haver mais espaço para a
purgação da mora pelo devedor.
Questão que também suscita discussão na doutrina e jurisprudência é a
constitucionalidade do procedimento extrajudicial de alienação do imóvel previsto na
Lei 9.514/97.
Os argumentos pela sua inconstitucionalidade se assentam na afronta do
devido processo legal, em especial na vulneração de garantias constitucionais do
contraditório e ampla defesa, inafastabilidade do poder judiciário, bem como na ofensa
à função social e ao próprio direito de propriedade. E tudo isso porque o leilão previsto
na lei é extrajudicial e, portanto, dispensa qualquer participação do Poder Judiciário.
9 Ementa: RECURSO ESPECIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE COISA IMÓVEL. LEI N. 9.514/1997. QUITAÇÃO DO DÉBITO APÓS A CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE EM NOME DO CREDOR FIDUCIÁRIO. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO DECRETO-LEI N. 70/1966. PROTEÇÃO DO DEVEDOR. ABUSO DE DIREITO. EXERCÍCIO EM MANIFESTO DESCOMPASSO COM A FINALIDADE. (REsp 1.518.085-RS – j. 12.05.2015).
Porém, a previsão do um procedimento extrajudicial não implica na
conclusão de que o devedor, na hipótese de qualquer ilegalidade - seja relacionada ao
procedimento ou à própria avaliação do bem -, estaria impedido de acionar o Judiciário.
Portanto, todas aquelas garantias legais estão asseguradas ao fiduciante, não
havendo de se falar em inconstitucionalidade dos leilões extrajudiciais.
Há quem sustente que apesar de constitucional a previsão do leilão
extrajudicial, o disposto no §2º, do artigo 27, da Lei 9.514/97, ao admitir a venda em
segundo leilão por valor igual ou superior à dívida, seria inconstitucional, pois
possibilitaria que o devedor perdesse o imóvel, bem como os valores já pagos, o que
violaria seu direito de propriedade. Mas também essa hipótese parece não implicar
inconstitucionalidade.
Isso porque, em primeiro lugar, a propriedade do imóvel o devedor perde no
momento em que é constituída a propriedade fiduciária, passando a ter mero direito
expectativo de aquisição.
Além disso, não é possível regular especificamente cada situação concreta
de inadimplemento a fim de que não se cometa “injustiça” com o devedor, sedo, pois,
indevido, em razão de um ou outro caso excepcional, taxar de inconstitucional o leilão
extrajudicial.
A lei prevê que em um primeiro momento seja preservado o interesse do
devedor, estabelecendo-se como preço mínimo o valor do imóvel, sendo restituído a ele
o valor que sobejar as pendências.
Num segundo momento há de se garantir que o credor receba o que tem
direito, até porque ele não tem outro meio de cobrança senão a execução da garantia. E
mesmo nessa hipótese não haverá propriamente o adimplemento da dívida, já que o
imóvel não será vendido, mas, sim, consolidado em definitivo nas mãos do fiduciário,
que poderá eventualmente ficar com um ônus. E para o devedor, ao contrário, haverá a
extinção da dívida.
O Supremo Tribunal Federal já se posicionou sobre a constitucionalidade do
procedimento no RE 141.320-RS.
Porém, a questão da constitucionalidade dos leilões extrajudiciais está
pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (RE 627.106 e 556.520), estando
atualmente com 4 votos favoráveis à inconstitucionalidade e 2 pela constitucionalidade.
É certo que esses recursos analisam hipóteses de alienação extrajudicial referente ao
Decreto-lei 70/66, que não regula a alienação fiduciária.
Contudo, considerando que os fundamentos para a alegada
inconstitucionalidade são semelhantes àqueles já analisados para a hipótese de alienação
fiduciária, o julgamento desta questão pode alterar o entendimento que prevalece até o
momento em relação aos leilões previstos na Lei 9.514/97.
Importante citar, ainda, disposição do Código de Defesa do Consumidos
(CDC) que também alimenta controvérsias.
O artigo 53 da lei consumerista prevê que nos contratos de compra e venda
de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações
fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que
estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do
inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
O primeiro ponto a ser observado é que, segundo as regras de hermenêutica,
a Lei 9.514/97, sendo especial e posterior, revoga disposições incompatíveis do Código
de Defesa do Consumidor.
Mas ainda que se considere a possibilidade de dar sobrevida ao dispositivo
do CDC, seu teor seria absolutamente incompatível com o procedimento da alienação
fiduciária.
Como visto, na alienação fiduciária não há propriamente uma compra a
prestação, mas sim uma concessão de crédito pelo fiduciário no valor integral do bem. E
no caso de inadimplemento, que é a hipótese regulada por aquele dispositivo, não busca
o credor a resolução do contrato e retomada do bem, até porque desde o início já é sua a
propriedade.
Logo, com o inadimplemento o que ocorre é a consolidação da propriedade
plena nas mãos do credor, que deverá aliená-lo para saldar a dívida e restituir o
remanescente ao devedor. Portanto, a restituição do que sobejar a dívida é determinação
legal, o que justifica a ausência de cláusula nessa espécie de contrato prevendo perda de
prestações pagas.
Mas ainda assim parte da doutrina e jurisprudência tem admitido a aplicação
do artigo 53 do CDC exatamente na hipótese de alienação em segundo leilão, do qual
pode não resultar sobra a ser restituída ao devedor, cumprindo ressaltar que a Lei
9.514/97 não prevê obrigação de o credor restituir ao devedor qualquer prestação paga.
Paulo Restiffe sustenta “ser cabível, sempre, a apuração completa de
valores, em qualquer situação pós-leilões. A extinção ex lege da dívida do fiduciante
não tem como recíproca a extinção ex lege do seu direito a receber eventual
sobejamento: nem devolução total, nem preda total; só devolução parcial de eventual
sobejo apurado”10.
A ideia é que não se admite o enriquecimento sem causa do credor em
detrimento do devedor; mas isso nada tem a ver com a previsão do artigo 53 do CDC.
O dispositivo da lei consumerista trata da hipótese de inadimplemento e
inciativa de resolução por parte do credor. Porém, em tal hipótese a Lei 9.514/97 já
dispõe sobre o procedimento a ser seguido em tal situação no caso alienação fiduciária
de bens imóveis, sendo, pois, inaplicável o CDC.
Para o caso de o devedor pretender a devolução de parcelas decorrente de
prejuízo excessivo em segundo leilão, deve propor medida judicial na qual tem o ônus
de provar ganho indevido do credor que justifique eventual restituição.
10 Propriedade Fiduciária Imóvel. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 116.
Note que o fundamento não estaria no artigo 53 do CDC, até porque, repita-
se, em regra inexiste nos contratos de alienação fiduciária de imóvel qualquer cláusula
prevendo perda de parcelas.
O que não se pode perder de vista em qualquer contrato é o equilíbrio das
partes, a boa-fé objetiva, enfim, a equidade, princípios que são preservados no
regramento da Lei 9.514/97.
O Superior Tribunal de Justiça, em acórdão da lavra do Ministro Hélio
Quaglia Barbosa11, parecia ter posto fim à discussão sobre a aplicabilidade do aludido
dispositivo da lei consumerista nas hipóteses de alienação fiduciária regidas pela Lei
9.514/97.
No entanto, em julgado posterior relatado pela Ministra Maria Isabel
Gallotti12, houve o reconhecimento da incidência do CDC para determinar a devolução
de parcelas em alienação fiduciária de bem imóvel. O acórdão ainda faz indevida
equiparação às hipóteses de arrendamento mercantil, evidenciando que a matéria ainda
gera insegurança na jurisprudência.
5. Conclusão
O Código Civil de 2002 inaugurou a disciplina codificada da alienação
fiduciária, já que o Código revogado não tratava da matéria.
Especificamente em relação à alienação fiduciária de bens imóveis, a
matéria ainda é regulada por lei esparsa editada para incentivar o mercado imobiliário,
aumentar a oferta de crédito, bem como criar uma forma efetiva de garantia que, ao
11 Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. ALEGADA VIOLAÇÃO DO ART. 53, DO CDC. RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS. PREVALÊNCIA DAS REGRAS CONTIDAS NO ART. 27, §§4º, 5º e 6º, DA LEI Nº 9.514/97. DECISÃO RECONSIDERADA. AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPROVIDO. (AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 932750 – SP – j. 10.12.2007)12 Agravo em Recurso Especial nº 554.614-RJ
mesmo tempo em que dê acesso e melhores condições ao fiduciante, garanta o
adimplemento ao fiduciário sem maiores complicações.
Talvez fosse necessária uma sistematização das diversas normas que
regulam a propriedade fiduciária, pois como citado neste trabalho, há ainda muitas
discussões sobre a interpretação e aplicabilidade correta dos regramentos relacionados à
propriedade fiduciária. Mas muitas questões, sobretudo decisões equivocadas dos
nossos Tribunais, poderiam ser solucionadas com um estudo mais aprofundado do tema.
A propriedade fiduciária traduz uma modernização das formas tradicionais
de garantia real, que já não atendiam mais o dinamismo das relações comerciais atuais,
sendo, portanto, indevidos quaisquer movimentos doutrinários ou jurisprudenciais que
visem fragilizar o instituto.
José Carlos Moreira Alves, explicando o surgimento da propriedade
fiduciária em garantia, assevera que “para facilitar a obtenção do crédito, é
indispensável garantir, da forma mais eficiente possível, o credor, sem, em
contrapartida, onerar o devedor a ponto de que fique, por causa da garantia, impedido de
pagar o que deve, ou de se utilizar, de imediato, do que adquiriu a crédito”13.
E é nesse cenário que o instituto deve ser analisado, buscando-se uma
interpretação equilibrada que assegure os direitos de ambas as partes, sob pena de se
desnaturar a essência dessa importante modalidade de garantia.
13 ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 2.
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