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Direitos dos animais e erros dos humanos
Há limites para o modo como os seres humanos podem tratar legitimamente os
animais não-humanos? Ou podemos tratá-los de qualquer maneira que nos
agrade? Se há limites, quais são eles? São suficientemente fortes, como
algumas pessoas supõem, para nos levarem a ser vegetarianos e a diminuir,
se não mesmo eliminar, o nosso uso de animais não-humanos em experiências
"científicas" pensadas para nos beneficiar?
Para avaliar completamente esta questão, vou contrastá-la com duas
questões diferentes: há limites para o modo como podemos tratar
legitimamente as pedras? E: há limites para o modo como podemos tratar
legitimamente outros seres humanos? A resposta à primeira questão é,
presumivelmente, "Não". Bem, isso não está muito certo. Há alguns limites
para o que podemos legitimamente fazer com ou às pedras. Se a Paula tem
uma pedra de estimação, então a Susana não pode justificadamente tirá-la
da Paula ou esmagá-la com uma marreta. Afinal de contas, é a pedra da
Paula.
Ou, se há uma pedra de beleza invulgar ou que seja de interesse especial
para os humanos, como o "Velho Homem de Hoy" ou o Monte Rushmore, seria
inapropriado, e provavelmente imoral, se eu a destruísse, vandalizasse ou
se tirasse uma das suas partes para usar na minha catapulta.
Porém, estes limites surgem não de alguma preocupação directa pelas
pedras; em vez disso, são impostos devido aos interesses e direitos de
outros humanos. A Susana não pode levar a pedra da Paula pela mesma razão
que não pode levar a borracha da Paula: é da Paula e a Paula tem direito
às coisas que são suas. E ninguém pode destruir ou vandalizar objectos de
grande beleza natural porque, ao fazê-lo, está a prejudicar indirectamente
os interesses que os outros humanos têm nesses objectos. Então, há limites
para o que podemos legitimamente fazer a objectos inanimados, mas, sejam
quais forem esses limites, surgem de uma preocupação humana.[1]
Não é assim com o tratamento que destinamos aos outros humanos. Supomos
que é inapropriado tratar um ser humano de qualquer maneira que nos
apeteça. Eu não posso roubar outro humano; isso seria rapto. Nem posso
esmagar alguém com uma marreta; isso seria, dependendo do resultado,
assalto, tentativa de homicídio, ou homicídio. E a razão pela qual eu não
posso fazer estas coisas não tem nada a ver com o que terceiros querem ou
não. Tem a ver com o interesse e desejos da pessoa particular em causa. É
errado da parte da Susana agredir a Paula, não porque outras pessoas
gostem da Paula ou porque outras pessoas ficariam ofendidas, mas porque a
Paula é uma pessoa. Ponto final.
Assim, há uma diferença fundamental entre aqueles objectos que podemos
tratar como nos apetecer (excepto quando estivermos limitados pelos
interesses de outros humanos) e aqueles que não podemos. As pedras
vulgares enquadram-se no primeiro domínio; os humanos enquadram-se no
último. E os animais não-humanos? Enquadram-se no primeiro ou no segundo
domínio? Ou algures no meio?
Há razões para crer que muitos animais, e certamente os animais
superiores, são mais parecidos com os humanos do que são parecidos com
pedras. Assim, temos razões para crer que há limites para o modo como os
podemos tratar legitimamente, independentemente das nossas vontades e
desejos particulares. Ou pelo menos é isso que defenderei.
Por agora, destacarei simplesmente que estas são crenças que a maior parte
de nós já tem. Isto é, a maior parte de nós presume que é ilegítimo tratar
animais apenas como nos apetece. Por exemplo, a maior parte de nós pensa
que é errado matar arbitrariamente um mamífero superior. Suponha-se que
descobrimos que algum membro da nossa comunidade, digamos o João, tem o
hábito de apanhar cães ou gatos abandonados e decapitá-los com a sua
guilhotina caseira[2], ou tomamos conhecimento que ele inventou uma
máquina que os esquarteja. Ele usa estas máquinas porque se diverte com a
dor dos animais, porque delira ao ver sangue; ou talvez ele seja um
cientista que quer estudar a reacção deles ao stress.Neste caso, nós
concluímos prontamente que o João é imoral. Não quereríamos que ele fosse
nosso Presidente, ou amigo, ou vizinho, ou genro.
Resumidamente, todos nós parecemos concordar que há limites para o modo
como podemos tratar legitimamente os animais não-humanos e que estes
limites surgem devido à natureza dos animais, não apenas devido aos
desejos de outros humanos de verem os animais a ser bem tratados. Isto é,
esses actos são errados não apenas porque outros humanos se incomodam com
eles. Pensaríamos que seriam igualmente errados se fossem praticados
secretamente de modo a que mais ninguém da comunidade soubesse deles.
Pensamos que são errados devido ao que acontece ao animal.
Por outro lado, estamos integrados numa cultura que usa arrogantemente
animais para a alimentação, para o vestuário, para a pesquisa no
desenvolvimento de novos medicamentos, e para determinar a segurança de
produtos de higiene doméstica. E muitas destas utilizações requerem a
inflicção de uma grande quantidade de dor a animais. Os registos de tais
utilizações são prontamente disponibilizados em vários jornais académicos,
e objecto de crónicas de numerosos escritores deste tópico (Ryder, 1975;
Singer, 1978; Mason and Singer, 1980). Mas, para o leitor que possa não
estar familiarizado com estes registos, descreverei brevemente duas
maneiras em que usamos animais e que lhes infligem uma quantidade
substancial de dor.
Os animais que são criados para a alimentação são obviamente criados com o
objectivo claro de gerarem lucro para o produtor. Nada de surpreendente.
Mas as implicações disto são directa e obviamente prejudiciais para os
animais. O produtor tem duas maneiras pelas quais pode aumentar o seu
lucro. Uma é aumentar os preços dos bens que comercializa, a outra é
gastar menos na produção desses bens. Uma vez que há um limite para o
valor que as pessoas pagarão pela carne, há uma pressão financeira
considerável para reduzir as despesas de produção da carne.
Isto leva compreensivelmente à sobrepopulação nas explorações pecuárias;
afinal de contas, quantos mais animais um produtor conseguir encaixar num
espaço menor, menos custará a produzir carne. E há pressões semelhantes
para limitar o movimento dos animais. Quanto menos os animais se mexerem,
menos comem, diminuindo assim a despesa do produtor. Por exemplo, os
produtores que criam galinhas tendem a pô-las em gaiolas do tipo
"bateria". Oito a dez galinhas são comummente mantidas num espaço mais
pequeno do que uma página de jornal. Incapazes de andarem de forma
minimamente livre ou mesmo de abrir as suas asas, muito menos de criar um
ninho, os animais tornam-se agressivos e atacam-se entre si (Rachels,
1977).
As pessoas comuns parecem igualmente pouco ou nada familiarizadas com o
uso extensivo de animais em experiências laboratoriais. Muitas destas
experiências são apenas moderadamente significativas[3]; muitas delas
envolvem uma dor prolongada para os animais. Por exemplo, N. J. Carlson
administrou choques eléctricos de alta voltagem a dezasseis cães e
descobriu que o "grupo de alta voltagem" ficava "ansioso" mais depressa.
Ou o caso de investigadores no Texas que construíram um pistão pneumático
para fazer com que uma bigorna batesse contra os crânios de treze macacos.
Quando isso não produzia imediatamente concussões, os investigadores
aumentavam a força do pistão até que produzisse problemas cardíacos,
hemorragias e lesões cerebrais (Ryder, 1976). Ou ainda o caso de
investigadores em Harvard que puseram ratos bebés com ratos adultos
esfomeados. Os adultos comeram os bebés. A conclusão dos investigadores: a
fome é um móbil importante nos animais. (Isso, é claro, é algo que
aprendemos com surpresa; nunca saberíamos deste facto de outro modo.)
As Opções
Como dividimos a nossa absoluta repulsa pelo nosso hipotético João e a sua
guilhotina de animais, e a nossa aceitação bastante indiferente do
tratamento dos animais nas explorações pecuárias e nos laboratórios
científicos e comerciais? Não é imediatamente claro que possamos fazer
essa divisão. O que é claro, parece, é que temos três opções, três crenças
alternativas sobre o tratamento que dedicamos aos animais. Estas são:
1) Se ficamos indignados com o tratamento do João aos animais
abandonados, estamos simplesmente a ser inapropriada ou excessivamente
sensíveis ou compassivos. Não devemos sentir aversão por matar, torturar
ou usar animais de qualquer modo que nos apeteça, a não ser, como é
evidente, que o animal seja propriedade de alguém, isto é, seu animal de
companhia.
2) Há razões pelas quais nós devemos tratar os animais não-humanos
melhor do que tratamos as pedras; ainda assim, há também razões pelas
quais podemos usar os animais não-humanos de maneiras segundo as quais
nunca poderíamos usar legitimamente humanos.
3) Nós devemos tratar os animais não-humanos de maneira mais semelhante
ao modo como tratamos presentemente os humanos. Muitas das nossas
maneiras aceites de tratar os animais são, de facto, moralmente
condenáveis.
A primeira posição, parece, é completamente indefensável. Nenhuma pessoa
razoável, penso eu, está disposta a adoptar uma posição que defende que
torturar animais por divertimento é completamente aceitável; ninguém está
disposto a dizer que o João é um membro bem integrado na sociedade. Esta
crença, parece, é virtualmente inabalável. A maior parte dos leitores
entendeu perfeitamente o que eu queria dizer quando descrevi o
comportamento do João como "tortura". Mas esta afirmação seria um absurdo
se pensássemos que não há limites morais para o modo como podemos tratar
os animais.[4] Então, ficamos com as duas últimas opções. E, é evidente,
aquela que escolhermos terá um impacto crucial nas vidas dos humanos e dos
outros animais.
Um esclarecimento necessário: dizer que os animais devem ser tratados de
maneira mais semelhante ao modo como tratamos os humanos não é o mesmo que
dizer que eles devem ser tratados exactamente como os humanos. Por
exemplo, nós não precisamos de considerar a hipótese de dar aos animais o
direito de voto, o direito de liberdade religiosa, ou o direito de
liberdade de expressão. Tanto quanto possa saber, a maior parte dos
animais não tem as capacidades necessárias para exercer estes direitos.
Contudo, o mesmo é verdade em relação a crianças muito novas e a adultos
com sérios casos de deficiência mental. É por isso que também não têm
estes direitos: não têm as capacidades requeridas para tal. Ainda assim, o
mero facto de que o direito de voto não é concedido a alguns humanos
adultos não significa que seja legítimo comê-los ao almoço ou testar
champô nos seus olhos. Então, por que razão poderemos assumir que o é para
com os animais?
Porque é que os animais não devem sofrer desnecessariamente
Até agora tenho tentado identificar as nossas profundas crenças sobre as
restrições relativas ao tratamento correcto dos animais. Agora é altura de
tentar oferecer uma defesa positiva do nosso entendimento comum, uma
defesa que terá implicações ainda mais radicais do que possamos ter
suposto. Isto é, quero argumentar a favor da opção 3) acima referida;
quero argumentar que há limites rigorosos sobre o que é moralmente
permissível fazer aos animais. Mais especificamente, pretendo argumentar
que todos nós devemos tornar-nos vegetarianos e que devemos reduzir
drasticamente, se não mesmo eliminar, o nosso uso de animais nos
laboratórios.
Embora haja numerosos argumentos que podem ser apresentados em defesa
desta posição, eu quero defender uma afirmação em particular: que nós
devemos não infligir dor desnecessária a animais. Antes de continuar, devo
esclarecer o que quero dizer com "dor desnecessária". O ponto pode ser
estabelecido mais claramente através de uma analogia.
Comparem-se os seguintes casos: 1) eu espeto o braço da minha filha com
uma agulha sem ter uma razão aparente para o fazer (embora não precisemos
de assumir que eu retiro daí qualquer prazer sádico); 2) eu sou um médico
e vacino-a contra a tifóide. O que é que diferencia estes casos? Em ambos
os casos eu espeto o braço da minha filha; em ambos os casos (presumamos)
eu inflijo-lhe uma quantidade similar de dor. Todavia, consideramos que o
último não é apenas justificável, mas possivelmente obrigatório;
consideramos o primeiro caso sádico. Porquê? Porque consiste na inflicção
de dor desnecessária. A minha filha não beneficia de todo com o que lhe
faço. Assim, a dor desnecessária é aquela que é infligida num ser
senciente (física e psiquicamente sensível) quando não tal não acontece
para o bem desse ser em particular. Esta última seria uma dor necessária,
porque seria aquela dor que esse ser sofreria para seu próprio bem.
Há duas premissas principais no meu argumento. A primeira é a afirmação
factual de que os animais sentem, de facto, dor. A segunda é a afirmação
de que o potencial sofrimento de um animal limita fortemente aquilo que
lhe podemos justificadamente fazer, restringindo o modo como podemos
usá-lo legitimamente.
Que os animais sentem dor
Que os animais sentem dor parece relativamente incontestável. É uma crença
que todos partilhamos. Como fiz notar anteriormente, nem faria sentido
falar em "torturar" um animal se assumíssemos que ele não é capaz de
sentir dor. Nem poderíamos entender a repulsa pelo uso dos animais
abandonados da parte do João a não ser que pensássemos que os animais
sofriam nas suas mãos. Se o João apanhasse latas abandonadas e as cortasse
aos pedaços com a sua guilhotina, nós poderíamos pensar que o João seria
extremamente esquisito, mas não imoral.
Mas mais pode ser dito. Nós temos mais do que provas comportamentais
adequadas de que os animais sentem dor e de que podem sofrer. A maior
parte de nós viu um cão que tenha sido atropelado por um carro, embora não
tenha morrido imediatamente. O cão tem convulsões, sangra e gane. De forma
menos dramática, a maior parte de nós, num qualquer momento, já pisou a
cauda de um gato ou a pata de um cão e testemunhou a reacção do animal. A
reacção, surpreendentemente, é como a nossa própria reacção em casos
similares. Se alguém pisa a minha mão, provavelmente eu gritarei e
tentarei mexê-la.
Mas não precisamos de fazer depender o nosso ponto nas provas
comportamentais, embora me pareça realmente que isso é mais do que
suficiente. Devemos também notar que nós partilhamos estruturas anatómicas
importantes com animais superiores. O sistema nervoso central de um ser
humano é impressionantemente semelhante ao de um chimpanzé, cão, porco, e
mesmo ao de um rato. Isto não é o mesmo que dizer que os cérebros são
exactamente iguais; não o são. O córtex cerebral nos seres humanos está
mais desenvolvido do que na maior parte dos mamíferos (embora não
evidentemente quando comparado com um golfinho ou um grande primata); mas
o córtex é a localização nas nossas "funções cerebrais superiores" - por
exemplo, onde se encontra o pensamento, o discurso, etc.. Contudo, as
áreas do cérebro identificadas neurofisiologicamente como os "centros de
dor" são virtualmente idênticas entre animais humanos e não-humanos. De
acordo com a biologia evolutiva, isto é exactamente o que nós devemos
esperar. Os centros de dor funcionaram bem ao aumentar a sobrevivência de
espécies menores, pelo que foram alterados apenas ligeiramente em estágios
evolutivos que se sucederam. As funções cerebrais superiores, no entanto,
conduzem à sobrevivência e, assim, levaram a avanços mais dramáticos no
desenvolvimento cerebral. Considerando tudo isto, parece inegável que
muitos animais sentem dor.
Que eles sentem dor é moralmente relevante
"E depois?", alguém poderá perguntar. "Mesmo que os animais sintam
realmente dor, porque é que deverá isso limitar ou, pelo menos, restringir
seriamente o tratamento que lhes destinamos? Porque é que não podemos
continuar a usá-los para os nossos fins, sejam eles quais forem?".
Coloquemos a questão ao contrário por um momento, e perguntemos: por que
razão pensamos que devemos poder usá-los para os nossos fins, considerando
que eles sofrem? Afinal de contas, nós estamos firmemente opostos à
inflicção desnecessária de dor a seres humanos. Se os animais também
sentem dor, porque é que não devemos ter a mesma relutância em
infligir-lhes dor desnecessária?
Um princípio fundamental da ética é que devemos tratar casos iguais de
forma igual. Isto é, nós devemos tratar dois casos igualmente, a não ser
que haja alguma razão geral e relevante que justifique a diferença no
tratamento. Assim, dois estudantes que têm um desempenho igualmente bom
numa aula devem ter os mesmos resultados na avaliação; dois que tenham um
desempenho bastante diferente devem receber diferentes resultados na
avaliação. Pelo mesmo princípio, se dois seres sentem dor e se é impróprio
infligir dor desnecessária a um deles, seria igualmente impróprio infligir
dor desnecessária ao outro.
Mas o argumento progrediu demasiado depressa. Este argumento funciona
apenas se a razão pela qual é errado infligir dor desnecessária num ser é
que ele sente dor. Se houvesse outra razão que pudesse diferenciar animais
humanos de não-humanos, então não seríamos capazes de inferir que é
ilegítimo infligir dor desnecessária em animais. Assim, se alguém pretende
demonstrar que não é errado infligir dor desnecessária em animais, então
tem que identificar alguma diferença relevante entre animais humanos e
não-humanos, alguma diferença que justifique esta diferença de tratamento.
E, é claro, isto é justamente o que a maior parte dos defensores do modo
como tratamos presentemente os animais estão inclinados a fazer. Embora as
pessoas tenham outrora visto os animais como seres não-sencientes, como
meros autómatos, isso já não acontece. A crença de que os animais são
incapazes de sentir dor não é defensável à luz de todas as provas
comportamentais e científicas. Portanto, o passo comum é encontrar alguma
outra diferença que se pense distinguir significativamente os humanos dos
animais.
A mais frequentemente citada e promissora candidata é a racionalidade ou a
consciência de si como um ser contínuo. Os humanos, diz-se, podem
raciocinar e pensar; os animais (presume-se) não podem. Mais ainda, a
capacidade de raciocínio reflecte-se na capacidade do humano de se ver a
si mesmo como um ser contínuo, como um ser que tem um passado e que terá
um futuro.
Concedamos por um momento que os humanos são racionais e que os animais
não; que os humanos têm uma consciência de si como seres com uma
existência contínua e que os animais não. Porque é que isso haveria de
fazer diferença? Ou, mais precisamente, porque é que haveria de fazer
tanta diferença como faz? Será que o facto de nós sermos racionais
legitima o nosso uso de animais não-racionais de qualquer maneira que nos
apeteça?
Parece que não. Certamente não legitima o tratamento abusivo de outros
humanos. Alguns seres humanos têm sérios atrasos mentais ou estão em comas
irreversíveis, e assim são tão racionais como os animais. Contudo,
pensamos que seria inapropriado usar estes humanos quer para determinar os
efeitos do amoníaco na pele, quer para grelhá-los para o jantar. Assumimos
que fazê-lo iria violar os seus direitos. Então porque é que não devemos
ficar igualmente relutantes quanto a usar animais desta maneira? (Se achar
a sugestão de usar humanos destas maneiras repugnante, pergunte-se: porque
é que é tão fácil usar animais destas maneiras?) Então, a racionalidade
não parece ser o fundamento do que há de errado em infligir dor
desnecessária em humanos.
Ainda mais, podemos imaginar uma situação aparentemente análoga, embora
contrastante. Suponha que uma raça de extra-terrestres especiais vinha à
terra, extra-terrestres cuja inteligência fosse amplamente superior à
nossa. Suponhamos que eles eram mais inteligentes em relação a nós do que
nós somos em relação aos outros mamíferos. Se isso acontecesse (embora
suponhamos que isso não acontecerá), poderiam estes extra-terrestres
justificadamente grelhar-nos em churrascos ou usar-nos para testar um novo
produto de limpeza para a sua nave espacial? Certamente, pensaria (e
esperaria) que não. Se eles não poderiam justificadamente fazê-lo, parece
que temos que concluir que a inteligência e a racionalidade não justificam
a nossa convicção de que é errado infligir dor desnecessária em humanos.
Finalmente, podemos notar que as características em causa estão mais
propriamente ligadas a outros direitos que não sejam o direito de não
sofrer dor desnecessária. A racionalidade está mais ligada ao direito de
voto, de liberdade de expressão, etc., enquanto a capacidade que um ser
tem de ser consciente de si como tendo uma existência contínua parece mais
intimamente ligada ao direito à vida. (Afinal de contas, a morte não é
temida por um ser que não tem consciência de si como existindo no futuro.)
Inversamente, o direito a não sofrer dor desnecessária parece ligado a
apenas uma característica, nomeadamente a capacidade de sentir dor. Se os
humanos não tivessem nenhum centro de dor, se não experienciassem dor,
então não teriam o direito de não sofrer dor desnecessária,
independentemente de quão inteligentes ou racionais fossem.
Consequentemente, parece que é moralmente inaceitável infligir dor
desnecessária em animais.
Objecções à minha perspectiva
O sofrimento dos animais não é desnecessário
Alguém poderia conceder tudo isto que estabeleci, e ainda assim afirmar
que a nossa utilização de animais é aceitável, uma vez que o sofrimento
dos animais não é verdadeiramente desnecessário. Afinal de contas, a maior
parte dos humanos come animais e portanto consegue alimentar-se a partir
deles; a experimentação animal é uma parte significativa e vital da nossa
tentativa de descobrir curas para doenças humanas devastadoras e de
proteger os humanos da introdução de produtos comerciais possivelmente
perigosos.
Sem dúvida que a utilização de animais destas maneiras beneficia por vezes
os humanos. Mas será genuinamente necessária? Não é evidente que assim
seja. Por exemplo, embora a maior parte dos humanos adquira alguns
nutrientes importantes ao comer animais, há alternativas mais adequadas.
Nunca é preciso comer carne para se ser muito saudável. De facto, as
dietas vegetarianas podem ser extremamente benéficas; aqueles que têm
dietas vegetarianas, por exemplo, têm menos incidência de determinadas
formas de cancro. Assim, a razão fundamental pela qual as pessoas são
carnívoras em vez de vegetarianas é que estas preferem (ou pensam que
preferem) a textura da carne em detrimento das alternativas.[5] Mas
certamente satisfazer o palato de certa maneira não é uma razão suficiente
para infligir uma dor significativa a animais. Reportando-me a um caso
referido anterior: o João pode retirar um prazer enorme da tortura de
animais abandonados, mas isso não justifica que eles os torture.
Certamente, também muitas experiências em animais são desnecessárias. A
experiência pode não ter sentido ou ser continuamente duplicada. Muitas
experiências são, sem dúvida, meramente motivadas pelo desejo de serem
novamente publicadas (se forem académicas) ou para comercializarem a 97.ª
marca de pasta de dentes. Mais ainda, muitos críticos afirmaram que a
larga maioria de experiências podem ser feitas tão bem, se não melhor,
usando simulações por computador e culturas de células (Pratt, 1980).
Penso que os críticos estão obviamente certos ao dizerem que muitas das
experiências são totalmente desnecessárias, pelo que pura e simplesmente
não devem ser feitas, ou que o seu objectivo previsto pode ser
razoavelmente atingido de uma forma alternativa que seja fazível. Ainda
assim, talvez haja alguns produtos que só podem ser conseguidos, ou pelo
menos conseguidos rapidamente, pelo uso da experimentação animal.
Mas porque é que devemos supor que isso justifica a inflicção de uma dor
enorme nos animais? Parece pelo menos igualmente plausível assumir que há
alguns ganhos científicos que podem ser atingidos apenas através de
pesquisas em seres humanos. De facto, essa é exactamente a afirmação que
os Nazis fizeram quando realizaram as suas "experiências científicas" nos
seus prisioneiros Judeus. Contudo, presumivelmente nós pensamos que tais
experiências são moralmente questionáveis, independentemente do bem que
possa vir (ou que tenha vindo) delas. Os humanos simplesmente não devem
ser usados dessa maneira. Mas então porquê supor que os animais podem
sê-lo?
Parece que enfrentamos o seguinte dilema: ou os animais de laboratório são
ou não suficientemente iguais a nós de modo a que as pesquisas neles
possam ser generalizadas para seres humanos. Se eles não são
suficientemente iguais a nós para permitir generalizar as descobertas
experimentais aos humanos, então as experiências não fazem aquilo para que
servem, e, assim, não têm sentido. Por outro lado, se os animais são
suficientemente iguais a nós para permitir generalizar as descobertas aos
humanos, então eles são suficientemente iguais a nós, de modo que devemos
presumir que tais experiências são imorais. Portanto, em qualquer caso, a
experimentação é inaceitável.
Concordo que esta conclusão parece demasiado forte. Todos nós vemos os
benefícios que podem resultar de certas formas de investigação médica.
Pode até ser que algumas formas limitadas de investigação possam ser
justificadas, embora eu suspeite que não podem. Em todo o caso, se essa
investigação pudesse ser justificada, isso não enfraqueceria de modo
nenhum o facto de que a maioria das investigações laboratoriais com
animais não podem sê-lo.
A senciência não é suficiente
Alguns comentadores, e mais destacadamente R. G. Frey (1980), argumentaram
que, embora os animais sejam sencientes, não são sapientes, isto é, não
podem raciocinar. Assim, afirma ele (para recuperar o argumento anterior),
nós podemos usá-los para os nossos próprios fins.
Anteriormente, tentei defender que os animais não precisam de ser
sapientes para merecerem o nosso respeito. O simples facto de que eles
podem sentir dor sustenta a afirmação de que é errado infligir-lhes dor
desnecessária. Agora quero contrariar o argumento de Frey, segundo o qual
os animais não são racionais. Ele argumenta que os animais não podem
raciocinar. Qualquer comportamento animal que parece racional, afirma ele,
é meramente instintivo. Para ser racional, um ser precisa de ter crenças e
nós não temos razões para supor que os animais têm crenças. Porquê? Porque
eles não têm o uso genuíno da linguagem. Nem são capazes de mentir ou de
afirmar deliberadamente algo de falso.
A afirmação de que estes animais não têm linguagem ou pensamento parece
altamente questionável. Uma série de estudos com chimpanzés e macacos
mostrou que eles têm a capacidade de aprender linguagem gestual (Gardner
and Gardner, 1969). Uma vez que tenham dominado a linguagem, eles
comunicam com os outros humanos; soube-se que alguns ensinaram a linguagem
gestual aos outros primatas.
Frey, contudo, afirma que este comportamento é apenas mimetismo ou uma
resposta a estímulos. Isso parece errado, pois vários animais mostraram
combinar palavras de maneiras que nunca tinham aprendido, em suma, criando
novas palavras. Mais ainda, há pelo menos um caso registado de um babuíno
que mentiu. E alguns investigadores afirmaram que os golfinhos são capazes
de aprender a sintaxe (regras de gramática), bem como o significado de
certas palavras (Griffin, 1976). Dado que tais experiências são
razoavelmente novas e são promissoras, devemos concluir com Griffin que os
animais, mesmo os que estão consideravelmente mais abaixo na cadeia
evolutiva, podem ser capazes de pelo menos terem um pensamento rudimentar.
E se criássemos os animais humanamente?
Alguém poderia opor-se à minha perspectiva da seguinte maneira: eu tenho
defendido que nós devemos não infligir dor nos animais. Mas, e se nós os
criássemos humanamente e os matássemos rapidamente (e, assim, de forma
relativamente indolor)? Daria o meu argumento alguma razão para supor que
comer animais nestas condições seria errado? Se não, com que base poderia
alguém opor-se plausivelmente a comer carne nestas condições?
Esta é uma questão teórica interessante. Mas antes de tentar
responder-lhe, devo deixar claro que a resposta não tem qualquer
influência sobre como devemos actuar na situação presente. Como fiz notar
antes, há fortes questões económicas que tornam a criação humana de
animais altamente improvável. Consequentemente, é provável que nós nunca
tenhamos que decidir se devemos comer animais criados humanamente. Assim,
mesmo que fosse moralmente permissível comer carne nestas circunstâncias
imaginárias, continuaria a ser inaceitável comermos carne nas
circunstâncias actuais (embora, é claro, nada disto invalide o trabalho
para conseguir métodos mais humanos de criar os animais na pecuária).
Em segundo lugar, se, ao contrário de todas as expectativas razoáveis,
começássemos a criar humanamente animais na pecuária, a carne resultante
seria tão cara que o consumo ficaria fortemente limitado. Assim, uma vez
mais, é provável que poucos de nós se deparassem com um verdadeiro dilema
sobre comer animais criados humanamente.
Mas suponhamos, contrariamente à realidade, que poderíamos obter carne de
animais que sofressem apenas ligeiramente (porque a carne teria um preço
razoável). Seria, então, moralmente permissível comê-los? Aqui a resposta,
parece, é mais complicada. Tenho estado primeiramente preocupado em
mostrar que o tratamento presente que dedicamos aos animais é moralmente
indefensável, uma vez que a prática da pecuária intensiva lhes causa uma
dor significativa e desnecessária. Assim, a relevância do meu argumento
para este caso hipotético não é óbvia.
Escolhi usar o argumento que usei porque era simples, embora convincente.
Isto é, parece virtualmente inquestionável que é errado infligir dor
desnecessária em seres sencientes, e que as nossas práticas presentes
causam, de facto, esse tipo de dor aos animais. Mais ainda, uma vez que a
nossa única opção genuína é entre comer animais criados de forma não
humana ou tornar-nos vegetarianos, então este argumento é mais do que
suficiente para os fins em causa. Todavia, parece realmente apropriado no
fim deste artigo entrar em ousadas conjecturas especulativas.
A minha perspectiva, de algum modo tentadora, é a seguinte: o argumento da
dor necessária ajuda-nos a aperceber-nos de que há limites morais sobre
como devemos usar legitimamente os animais. Mais ainda, estes limites
surgem devido aos interesses dos animais em si mesmos, e não devido a
nenhum interesse parasitário que os humanos tenham neles.
Mas isso significa dizer que os animais são, em pelo menos algum sentido
significativo, fins em si mesmos, coisas que não podem ser legitimamente
usadas meramente como meios para fins humanos. Se, contudo, o facto de
serem fins em si mesmos faz com que seja ilegítimo infligir neles dor para
satisfazer o nosso palato, parece que também talvez não seja razoável
matar animais para estimular o nosso palato - mesmo que eles tenham sido
criados humanamente.
Reconheço que esta resposta não será inteiramente convincente. Isso não é
surpreendente. Eu não estou sequer inteiramente convencido da sua força.
Em todo o caso, parece uma extensão plausível do argumento anterior. E,
mesmo que não seja totalmente adequado, estou inclinado a adoptar um
princípio de precaução aqui: é melhor abstermo-nos de cometer acções que
podem ser seriamente imorais (mesmo que não estejamos certos de que o são)
se os ganhos potenciais da acção questionável são mínimos; termos o palato
estimulado de determinada forma parece ser claramente um ganho mínimo.
Mais ainda, uma vez que a escolha moral que realmente enfrentamos não é
como agiríamos neste caso hipotético, mas como devemos agir no mundo real,
então esta admissão não é minimamente prejudicial para o argumento
apresentado aqui.
Conclusão
Compreendo que a afirmação de que há limites morais significativos para o
modo como podemos legitimamente tratar os animais opõe-se bastante à
atitude para com eles que nos foi legada, pois, enquanto a maior parte das
pessoas pensa que é errado ou pelo menos de mau gosto torturar animais, a
maioria geralmente assume que os animais estão aqui para nossa utilização.
Nesse ponto, a minha perspectiva é um afastamento radical da nossa herança
cultural. Mas, à luz dos argumentos apresentados, é um afastamento com
mérito.
Não sei exactamente até onde leva esta perspectiva. Não sei se toda a
experimentação animal é injustificada, não sei exactamente como lidar com
algumas pragas, o que fazer com o gado actualmente existente, etc.. Mas o
facto de que nem todos os pormenores estão pensados não pode ser
considerado contra a afirmação de que a nossa perspectiva presente é
moralmente inaceitável.
Quando as mulheres começaram a exercer pressão a favor do direito de voto
ou da igualdade de direitos em geral, não sabiam exactamente onde é que as
suas reivindicações nos levariam. E ainda não sabem; nem eu. Mas estou
bastante confiante de que é uma mudança para melhor, muito embora os
pormenores específicos das mudanças só se venham a revelar com o tempo. E
o mesmo é verdade sobre o tratamento que destinamos aos animais. Talvez um
dia as nossas crianças olharão para a geração presente e questionar-se-ão
sobre como é que nós alguma vez acreditámos que era tolerável tratar os
animais da maneira que os tratamos. Eu espero sinceramente que sim.
Referências
Frey, R.G., Interests and Rights, Oxford, The Clarendon Press, 1980.
Gardner, B.T. and Gardner, R.A., "Teaching Sign Language to a Chimpanzee",
Science, 165: 664-72, 1969.
Griffin, D.G., The Question of Animal Awareness: The Evolutionary
Continuity of Mental Experience, New York, The Rockefeller University
Press, 1976.
Mason J. and Singer, Peter, Animal Factories, New York, Crown Publishers,
1980.
Pratt, D., Alternatives to Pain in Experimentation on Animals, New York:
Argus Archives, 1980.
Ryder, Richard, "Experiments on Animals", in Animal Rights and Moral
Obligation, ed. T. Regan and P. Singer, Englewood Cliffs, NJ,
Prentice-Hall, Inc., 1976.
Ryder, Richard, Victims of Science: The Use of Animals in Research,
London, Davis-Poynter, 1975.
Rachels, James, "Vegetarianism and the "Other Weight Problem"", in World
Hunger and Moral Obligation, ed. W. Aiken and H. LaFollette, Englewood
Cliffs, NJ, Prentice-Hall, Inc., 1977.
Singer, Peter, Animal Liberation, New York, Avon Books, 1978.
Hugo LaFollette
East Tennessee State University
Tradução de Miguel Moutinho
Sociedade Ética de Defesa dos Animais
[1] Na verdade, penso que a situação é bastante mais complexa do que
sugeri. Há muito a dizer a favor da afirmação de que há limites para o que
os humanos podem legitimamente fazer a objectos inanimados, e que esses
limites não acabam nos interesses dos humanos neles. Mas essa posição é
reconhecidamente controversa. Mais ainda, eu posso defender o ponto que
pretendo defender sobre os animais sem abordá-la. Então, pelo menos para
já, farei como se as únicas restrições para o nosso comportamento
relativamente aos objectos inanimados derivem dos interesses humanos.
Outros ensaístas discutirão sem dúvida as preocupações ambientais mais
abrangentes nos seus ensaios.
[2] Este exemplo não é, como pode ter suposto ou esperado, uma mera peça
de ficção. Alguns cientistas investigadores compram guilhotinas em
miniatura feitas especialmente para decapitar ratos de laboratório.
Anúncios destes instrumentos aparecem frequentemente nas páginas de
jornais de medicina veterinária.
[3] O Professor Harry Harlow, cuja investigação em bebés macacos é
conhecida em todo o mundo, disse que "a maior parte das experiências não
valem a pena ser feitas e as informações obtidas não são dignas de
publicação", in Journal of Comparative and Physiological Psychology (1962).
[4] Deixarei agora de referir "animais não-humanos" e, daqui em diante,
referir-me-ei a eles simplesmente como "animais". A expressão mais longa,
embora seja mais precisa, é simplesmente demasiado pesada.
[5] Digo "penso que eles preferem" porque já vi muitas pessoas que
descobriram, depois de eliminarem ou mesmo reduzirem o consumo de carne,
que as suas dietas são mais variadas e saborosas do que quando eram
carnívoros.
N. Dower (org.), Ethics and the Environment, Gower Press, 1989, pp. 79-90.
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